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FABRÍCIO LIMA SILVA

IURI PINHEIRO

Manual
do Compliance
Trabalhista
Teoria e prática

2020

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DESVENDANDO O COMPLIANCE

1.1. GOVERNANÇA CORPORATIVA: NOTAS INTRODUTÓRIAS

As organizações nacionais e internacionais estão passando por gran-


des transformações, principalmente, em decorrência do fenômeno da
globalização e da volatilidade dos investimentos internacionais, o que as
obriga a realizar significativas alterações institucionais, com a readequa-
ção das estruturas societárias e adoção de novos modelos de gestão.

Nesse contexto, surge a governança corporativa, que remete à im-


plantação de um modelo de administração, com a finalidade de otimizar
o desempenho da empresa e facilitar o acesso ao capital, abrangendo o
relacionamento entre sócios, conselho de administração, órgãos públicos
de fiscalização, empregados e demais partes interessadas (stakeholders).

A governança corporativa tem como objetivo instituir um modelo de


gestão por meio do qual as empresas procurem, voluntariamente, cum-
prir as regras e tomar decisões no interesse comum de longo prazo da
organização, com adoção de medidas de transparência e sustentabilidade
financeira, adotando um modelo de autorregulação.

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MANUAL DO COMPLIANCE TRABALHISTA – teoria e prática

A Comissão de Valores Mobiliários – CVM, em sua cartilha de Reco-


mendações sobre Governança Corporativa, destaca que:

Governança corporativa é o conjunto de práticas que tem por finalidade


otimizar o desempenho de uma companhia ao proteger todas as partes
interessadas, tais como investidores, empregados e credores, facilitando o
acesso ao capital. A análise das práticas de governança corporativa aplica-
da ao mercado de capitais envolve, principalmente: transparência, equi-
dade de tratamento dos acionistas e prestação de contas1.

O americano Robert Monks, formado em direito pela Universidade


de Harvard, ficou conhecido como o “pai da governança”, por ter per-
cebido, a partir da segunda metade da década 80, que havia inúmeras
distorções na gestão das companhias, uma vez que que os destinos destas
não eram delineados por seus proprietários e acionistas, mas sim pelos
seus dirigentes e administradores, ocasionando os denominados conflitos
de agência.

Ele criticava a omissão dos acionistas, que apenas se preocupavam


com a manutenção de seus privilégios e com o valor das ações, passando
a ser o principal defensor da necessidade de uma mudança de tal postura,
propugnando que os investidores institucionais de todo o mundo se unis-
sem para tornar as corporações mais responsáveis perante seus acionistas.

Um dos primeiros documentos sobre governança corporativa de que


se tem notícias no mundo foi o relatório Cadbury (Cadbury Report),
elaborado no Reino Unido em 1992, para definir responsabilidades de
conselheiros e executivos, objetivando a prestação responsável de con-
tas e transparência, em atenção aos interesses legítimos dos acionistas. O

1 CF. CVM – Comissão de Valores Mobiliários, 2012. Recomendações da CVM sobre Go-
vernança Corporativa. Disponível em: <http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/
anexos/0001/3935.pdf>. Acesso em 20 de jan. 2019.

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referido relatório abordou dois valores fundamentais do atual modelo de


governança: a prestação de contas responsável (accountabiliy) e a maior
transparência (disclosure).

Em 1999, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Eco-


nômico (OCDE), que constitui foro composto por 35 países dedicado
à promoção de padrões convergentes em vários temas, como questões
econômicas, financeiras, comerciais, sociais e ambientais, lançou um do-
cumento de referência denominado “Princípios de Governança Corpo-
rativa” (OECD Principles of Corporate Governance)2.

Em 2004, em razão da importância que o documento assumiu inter-


nacionalmente, este foi revisto e ampliado3.

A partir dos princípios da OCDE, a cultura de boas práticas de go-


vernança corporativa difundiu-se por vários países, com a implantação de
códigos nacionais, não apenas em países desenvolvidos, mas também em
países emergentes.

No referido documento, restou consignado que a boa governança


corporativa ajuda a construir um ambiente de credibilidade, transparên-
cia e responsabilidade necessárias para fomentar o investimento a longo
prazo, a estabilidade financeira e a integridade dos negócios, apoiando
um crescimento mais sólido e inclusivo.

Entretanto, a adoção de boas práticas de governança não impediu


que ocorressem diversas fraudes e escândalos corporativos no início do

2 CF. OECD, 1999. OECD Principles of Corporate Governance, OECD Publishing,


Paris. Disponível em: <https://doi.org/10.1787/9789264173705-en>. Acesso em 30 de
mar. 2019.
3 CF. OECD, 2004. OECD Principles of Corporate Governance 2004, OECD Publish-
ing, Paris. Disponível em: <https://doi.org/10.1787/9789264015999-en>. Acesso em 30 de
mar. 2019.

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século XXI, dentre as quais podemos citar as que envolveram grandes


empresas norte americanas: World.com, Xerox e Enron.

No Brasil, ocorreram escândalos envolvendo as empresas dos grupos


EBX, JBS e da Petrobrás, demonstrando falhas na implementação de po-
líticas de governança corporativa e a necessidade de revisão das práticas
de mercado.

Nesse contexto histórico, começaram a surgir legislações nacionais tor-


nando a adoção de práticas de governança obrigatórias, com a previsão de
punições aos envolvidos em fraudes, podendo-se citar como exemplo a Lei
Sabaney-Oxley, aprovada pelo Congresso dos EUA, em julho de 2002.

No Brasil, em 1995, foi fundado o Instituto Brasileiro de Gover-


nança Corporativa (IBGC), responsável pela edição do “Código das
Melhores Práticas de Governança Corporativa”4.

O IBGC assim define a governança corporativa:

Governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais or-


ganizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os re-
lacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos
de fiscalização e controle e demais partes interessadas. As boas práticas de
governança corporativa convertem princípios básicos em recomendações
objetivas, alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar
o valor econômico de longo prazo da organização, facilitando seu acesso
a recursos e contribuindo para a qualidade da gestão da organização, sua
longevidade e o bem comum5.

4 CF. IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, 2015, 5ª Edição. Código das
melhores práticas de governança corporativa. Disponível em: <http://www.ibgc.org.br/
userfiles/files/Publicacoes/Publicacao-IBGCCodigo-CodigodasMelhoresPraticasdeGC-5a-
Edicao.pdf >. Acesso em: 27 de dez. 2019.
5 CF. IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, 2019. Página institucional.
Disponível em: <http://www.ibgc.org.br/>. Acesso em: 27 de dez. 2019.

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Em 1998, foi a aprovada a Lei de combate aos crimes de lavagem de


dinheiro (Lei no 9.613), que criou o Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (COAF) e foi editada a Resolução n. 2.554 do Banco Central
do Brasil (BCB), que passou a disciplinar a criação de estruturas e me-
canismos de controles internos de riscos para as instituições financeiras.

Em 2013, foi publicada a Lei 12.846, denominada Lei de Combate


à Corrupção ou Lei da Empresa Limpa, com a previsão de redução das
sanções pecuniárias para empresas que passassem a adotar programas de
integridade, in verbis:

Art. 7º Serão levados em consideração na aplicação das sanções:


(...)
VIII - a existência de mecanismos e procedimentos internos de integri-
dade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação
efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica;

O Decreto 8.420/15 regulamentou a referida lei, passando dispor


sobre os programas de integridade, estabelecendo com exaustão as ferra-
mentas e mecanismos de programas de integridade. A definição de pro-
grama de integridade está no art. 41 do Decreto6:

Art. 41. Para fins do disposto neste Decreto, programa de integridade consiste,
no âmbito de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimen-
tos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades
e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes
com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos
praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
Parágrafo Único. O programa de integridade deve ser estruturado, apli-
cado e atualizado de acordo com as características e riscos atuais das

6 Ao final deste capítulo, será transcrito o art. 42 do Decreto, ante sua inegável importância e
amplitude.

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atividades de cada pessoa jurídica, a qual por sua vez deve garantir o
constante aprimoramento e adaptação do referido programa, visando ga-
rantir sua efetividade.

Em 2015, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE),


autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça, que tem como objeti-
vo orientar, fiscalizar, prevenir e apurar abusos do poder econômico, publi-
cou o “Guia de Programas de Compliance”7, com orientações sobre estru-
turação e benefícios da adoção dos programas de compliance concorrencial.

A Lei 13.303/16 passou a impor às empresas estatais os deveres de


integridade, transparência e controle interno, estabelecendo a obrigato-
riedade de adoção de estruturas e práticas de gestão de riscos e controle
interno, de elaboração e divulgação de um Código de Conduta e Integri-
dade, com a previsão da existência de canais de denúncias, sanções, pro-
teção contra retaliações, treinamentos periódicos, auditoria e adequação
periódica de suas práticas ao Código de Conduta e Integridade e a outras
regras de boa prática de governança corporativa.

Recentemente, a Portaria 86/2019 do Ministério da Justiça instituiu


o “Sistema de Governança do Ministério da Justiça e Segurança Pública
- SG-MJSP”, com o objetivo de organizar o processo decisório quanto à
gestão estratégica, gestão de riscos e controles internos, integridade, ges-
tão de políticas públicas, transparência e gestão administrativa.

Por fim, está em trâmite em nosso Congresso Nacional, o Projeto


de Lei 7.149/2017, que contém a previsão de que "as pessoas jurídicas
que celebrarem contrato com a administração pública deverão desenvolver
programas de compliance”.

7 CF. CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica, 2015. Guia de Programas


de Compliance. Disponível em: <http://www.cade.gov.br/acesso-a-informacao/publicaco-
es-institucionais/guias_do_Cade/guia-compliance-versao-oficial.pdf>. Acesso em 20 de jan.
2019.

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Importante ressaltar que, após os escândalos contábeis e de corrup-


ção, os mercados, sensíveis aos reflexos das mudanças ocorridas em de-
corrência da implantação de programas de governança, passaram a adotar
ágio por ações de empresas com sistemas mais aprimorados de governan-
ça e deságio nos casos opostos, conforme índices adotados por agências
de avaliação.

O que se nota, portanto, é a inegável tendência de que todos os seg-


mentos, sejam públicos ou privados, preparem-se para essa nova realidade
de agir em conformidade, tanto para cumprir o dever que vêm sendo
imposto pelas leis como para evitar litígios, formação de passivo e cuidar
adequadamente da imagem e função social da empresa.

Não se pode ignorar que o retorno da filosofia liberal abre espaços


públicos para o segmento privado (concessões, privatizações, terceiriza-
ções, dentre outras perspectivas), mas com esse alargamento de espaço
também surgem mais responsabilidades, afinal, direitos e deveres são fa-
ces da mesma moeda.

Importante destacar que a adoção de boas práticas de governança


corporativa não se restringe às empresas de capital aberto, com ações ne-
gociadas em bolsas de valores, podendo ser implementadas em empresas
de pequeno e médio porte, ainda que familiares, sempre com o foco na
excelência empresarial, com a diminuição de riscos e obtenção de vanta-
gens concorrenciais.

1.2. QUAIS SÃO OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA


GOVERNANÇA CORPORATIVA?

A governança corporativa possui como princípios fundamentais: i)


transparência (disclosure); ii) equidade (fairness); iii) prestação de
contas (accountability); e, iv) conformidade (compliance).

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A transparência é o requisito de divulgação precisa e oportuna de


todas as questões relevantes relacionadas com a corporação, inclusive si-
tuação financeira, desempenho, composição societária e governança da
empresa, o que pode ser realizado por meio de um balanço social cor-
porativo, transmitindo ao mercado uma imagem de respeitabilidade e
confiabilidade.

A questão é tratada no Código das Melhores Práticas de Governança


Corporativa do IBGC, segundo o qual, tal princípio consiste “no desejo de
disponibilizar para as partes interessadas as informações que sejam de seu in-
teresse, e não apenas aquelas impostas por disposições de leis ou regulamentos.
Não deve restringir-se ao desempenho econômico-financeiro, contemplando
também os demais fatores (inclusive intangíveis) que norteiam a ação geren-
cial e que conduzem à preservação e à otimização do valor da organização”8.

CHAGAS e OLIVEIRA, ao tratarem de Governança Corporativa e


Sustentabilidade, destacam que:

O mercado, tanto no plano nacional quanto internacional, é indutor


de mudanças nas organizações. As organizações, para se tornarem mais
atrativas a investimentos procuram demonstrar o seu compromisso com
a perenidade do negócio.
Com isso, há um aumento na pressão por transparência, não só com re-
lação às regras que regem o relacionamento dos interesses de acionistas

8 Ibidem.

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controladores, acionistas minoritários e administradores dentro de uma


companhia, mas também com relação às atividades que evidenciam a
inclusão de aspectos sociais e ambientais nas atividades da empresa e
nas interações com stakeholders. O conceito de Friedman de que a única
responsabilidade social dos negócios seria puramente econômica, ou
seja, que a organização, ao maximizar seus lucros, geraria bem-estar
para toda a sociedade, já não encontra mais lugar na sociedade atual.
Os investidores cada vez mais buscam aplicações de seus recursos em
negócios que equilibrem estratégias de curto e longo prazo, com compo-
nentes de perenidade e sustentabilidade. Dessa forma, privilegiam a alo-
cação de investimento em negócios que sejam socialmente responsáveis,
sustentáveis e rentáveis, pois elas gerariam valor para o acionista a longo
prazo, uma vez que estariam mais preparadas para enfrentar os desafios
futuros9.

Pelo princípio da equidade, o sistema de governança corporativa deve


garantir o tratamento justo e isonômico entre todos os sócios e demais
partes interessadas, incluindo-se os acionistas minoritários e estrangeiros,
levando em consideração seus direitos, deveres, necessidades, interesses e
expectativas.

Pela prestação de contas, os gestores devem cumprir a obrigação de


prestar contas de seus atos ligados à administração da sociedade, como
medida de transparência e de comprometimento com os princípios insti-
tucionais a serem perseguidos. Trata-se de uma importante ferramenta de
controle e prevenção de desvios de conduta/finalidade.

Segundo o Código das Melhores Práticas do IBGC, os “agentes de


governança devem prestar contas de sua atuação de modo claro, conciso,

9 CF. CHAGAS, Ana Paula; OLIVEIRA, Luís Gustavo Miranda de. Governança Corpora-
tiva e Sustentabilidade: A Importância do Compliance Ambiental. In: OLIVEIRA, Luis
Gustavo Miranda de (Org.). Compliance e integridade: aspectos práticos e teóricos. V. 2.
Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019, pp. 65/66.

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compreensível e tempestivo, assumindo integralmente as consequências de seus


atos e omissões e atuando com diligência e responsabilidade no âmbito dos
seus papéis”10.

Por fim, temos o princípio da conformidade ou do complian-


ce, sendo este último termo amplamente utilizado em ambientes de
negócios em nosso país. O compliance, objeto da presente obra, é
apenas uma das facetas da governança corporativa, mas de extrema
relevância para prevenção de litígios e criação de oportunidade de
expansão negocial.

O termo compliance deriva do verbo inglês: “to comply”, que sig-


nifica cumprir, realizar ou satisfazer o que foi imposto. E, no âmbito de
uma organização, as obrigações a serem observadas são extremamente di-
versificadas (ambientais, cíveis, empresariais, consumeristas, trabalhistas,
dentre outras).

1.3. COMPLIANCE: O QUE SIGNIFICA AGIR EM


CONFORMIDADE?

O compliance pode ser definido como o princípio de governança


corporativa que tem por objetivo promover a cultura organizacional de
ética, transparência e eficiência de gestão, para que todas as ações dos
integrantes da empresa estejam em conformidade com a legislação, con-
troles internos e externos, valores e princípios, além das demais regula-
mentações do seu seguimento.

Caracteriza-se como um conjunto de procedimentos e boas práti-


cas, realizados de forma independente, no âmbito das organizações,
para identificar e classificar os riscos operacionais e legais, estabelecendo

10 Ibidem.

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