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Mito n° 3

“Português é muito difícil”

Essa afirmação preconceituosa é prima-irmã da idéia que


acabamos de derrubar, a de que “brasileiro não sabe português”.
Como o nosso ensino da língua sempre se baseou na norma
gramatical de Portugal, as regras que aprendemos na escola em boa
parte não correspondem à língua que realmente falamos e
escrevemos no Brasil. Por isso achamos que “português é uma
língua difícil”: porque temos de decorar conceitos e fixar regras que
não significam nada para nós. No dia em que nosso ensino de
português se concentrar no uso real, vivo e verdadeiro da língua
portuguesa do Brasil é bem provável que ninguém mais continue a
repetir essa bobagem.
Todo falante nativo de uma língua sabe essa língua. Saber uma
língua, no sentido científico do verbo saber, significa conhecer
intuitivamente e empregar com naturalidade as regras básicas de
funcionamento dela.
Está provado e comprovado que uma criança entre os 3 e 4
anos de idade já domina perfeitamente as regras gramaticais de sua
língua! O que ela não conhece são sutilezas, sofisticações e
irregularidades no uso dessas regras, coisas que só a leitura e o
estudo podem lhe dar. Mas nenhuma criança brasileira dessa idade
vai dizer, por exemplo: “Uma meninos chegou aqui amanhã”. Um
estrangeiro, porém, que esteja começando a aprender português,
poderá se confundir e falar assim. Por isso aquela piadinha que
muita gente solta quando vê uma criancinha estrangeira falando —
“Tão pequeno e já fala tão bem [pg. 35] inglês [ou outra língua]” —
tem seu fundo de verdade: muito pouca gente conseguirá falar uma
língua estrangeira com tanta desenvoltura quanto uma criança de
cinco anos que tem nela sua língua materna! Por quê? Porque toda
e qualquer língua é “fácil” para quem nasceu e cresceu rodeado por
ela! Se existisse língua “difícil”, ninguém no mundo falaria húngaro,
chinês ou guarani, e no entanto essas línguas são faladas por
milhões de pessoas, inclusive criancinhas analfabetas!
Se tanta gente continua a repetir que “português é difícil” é
porque o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o
uso brasileiro do português. Um caso típico é o da regência verbal. O
professor pode mandar o aluno copiar quinhentas mil vezes a frase:
“Assisti ao filme”. Quando esse mesmo aluno puser o pé fora da sala
de aula, ele vai dizer ao colega: “Ainda não assisti o filme do Zorro!”
Porque a gramática brasileira não sente a necessidade daquela
preposição a, que era exigida na norma clássica literária, cem anos
atrás, e que ainda está em vigor no português falado em Portugal, a
dez mil quilômetros daqui! É um esforço árduo e inútil, um
verdadeiro trabalho de Sísifo, tentar impor uma regra que não
encontra justificativa na gramática intuitiva do falante.
A prova mais visível disso é que aquelas mesmas pessoas que,
por causa da pressão policialesca da escola e da gramática
tradicional, usam a preposição a depois do verbo assistir, também
dizem que “o jogo foi assistido por vinte mil pessoas”. Ora, se o
verbo assistir pede uma preposição é porque ele não é transitivo
direto, e só os verbos transitivos diretos podem, segundo as
gramáticas, assumir a voz passiva. Desse modo, quem diz “assisti
ao [pg. 36] jogo” não poderia, teoricamente, dizer “o jogo foi
assistido”. Só que essa esquizofrenia gramatical acontece o tempo
todo. Basta ler jornais como a Folha de S. Paulo e o Estado de S.
Paulo, cujos manuais de redação decretam que o verbo assistir tem
que vir obrigatoriamente seguido da preposição a. Na voz ativa, a
preposição aparece: “Vinte mil pagantes assistiram ao jogo”, porque
assim manda o manual da redação. Mas na hora de usar a voz
passiva, a gramática intuitiva brasileira do redator se manifesta, e
a gente encontra milhares de exemplos do tipo “o jogo foi assistido
por vinte mil pagantes”. Essas pessoas, então, ficam em cima do
muro: “acertam” na voz ativa, por causa do patrulhamento
lingüístico, mas “erram” na passiva, porque se deixam levar pelo
uso normal do português brasileiro. Tudo isso por causa da
cobrança indevida, por parte do ensino tradicional, de uma norma
gramatical que não corresponde à realidade da língua falada no
Brasil. O professor Sirio Possenti, da UNICAMP, em seu excelente
livro Por que (não) ensinar gramática na escola, classifica a
regência “assistir a” como um arcaísmo, uma forma sintática que já
caiu em desuso, mas continua sendo cobrada injustificadamente
pelo ensino tradicionalista, que se recusa a admitir a extinção desse
e de muitos outros dinossauros lingüísticos.
Por isso tantas pessoas terminam seus estudos, depois de onze
anos de ensino fundamental e médio, sentindo-se incompetentes
para redigir o que quer que seja. E não é à toa: se durante todos
esses anos os professores tivessem chamado a atenção dos alunos
para o que é realmente interessante e importante, se tivessem
desenvolvido [pg. 37] as habilidades de expressão dos alunos, em
vez de entupir suas aulas com regras ilógicas e nomenclaturas
incoerentes, as pessoas sentiriam muito mais confiança e prazer no
momento de usar os recursos de seu idioma, que afinal é um
instrumento maravilhoso e que pertence a todos! Falaremos disso
na terceira parte deste livro.
Se tantas pessoas inteligentes e cultas continuam achando que
“não sabem português” ou que “português é muito difícil” é porque
esta disciplina fascinante foi transformada numa “ciência
esotérica”, numa “doutrina cabalística” que somente alguns
“iluminados” (os gramáticos tradicionalistas!) conseguem dominar
completamente. Eles continuam insistindo em nos fazer decorar
coisas que ninguém mais usa (fósseis gramaticais!), e a nos
convencer de que só eles podem salvar a língua portuguesa da
“decadência” e da “corrupção”. Hoje em dia, aliás, alguns deles estão
até fazendo sucesso na televisão, no rádio e em outros meios de
comunicação, transformando essa suposta “dificuldade” do
português num produto com boa saída comercial. Para o já citado
Arnaldo Niskier, trata-se de uma “saudável epidemia que tomou
conta da imprensa brasileira”. Que é epidemia, concordo, mas
quanto a ser “saudável”, tenho muitas e sérias dúvidas... É livro, é
curso em vídeo-cassete, é CD-ROM, é “Manual de Redação do Jornal
Tal”, é “consultório gramatical” por telefone... Eles juram que quem
não souber conjugar o verbo apropinquar-se vai direto para o
inferno! Na segunda parte deste livro tratarei de explicar por que
não considero “saudável” essa “epidemia”. [pg. 38]
No fundo, a idéia de que “português é muito difícil” serve como
mais um dos instrumentos de manutenção do status quo das classes
sociais privilegiadas. Essa entidade mística e sobrenatural
chamada “português” só se revela aos poucos “iniciados”, aos que
sabem as palavras mágicas exatas para fazê-la manifestar-se. Tal
como na Índia antiga, o conhecimento da “gramática” é reservado a
uma casta sacerdotal, encarregada de preservá-la “pura” e
“intacta”, longe do contato infeccioso dos párias.
A propaganda da suposta “dificuldade” da língua é, como diz
Gnerre no livro já citado,”o arame farpado mais poderoso para
bloquear o acesso ao poder” (p. 6). Sustentar que “português é muito
difícil” é cavar uma profunda trincheira entre os poucos que “sabem
a língua” e a massa enorme de “asnos” (termo usado por Luiz
Antonio Sacconi em seu livro Não erre mais!) que necessitam,
assim, do “auxílio” indispensável daqueles “mestres” para saltar
com segurança por sobre o abismo da ignorância.
Em termos mais brandos, a embalagem do CD-ROM Nossa
língua portuguesa oferece o produto como uma ajuda a evitar as
“armadilhas” da língua. Ora, não é a “língua” que tem armadilhas,
mas sim a gramática normativa tradicional, que as inventa
precisamente para justificar sua existência e para nos convencer de
que ela é indispensável.
Não seria a hora de acionar a Lei de Defesa do Consumidor
contra essa “reserva de mercado”? [pg. 39]

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