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Resumo: O presente trabalho tem por objetivo central compreender em que medida as práticas
do autocuidado e do cuidado coletivo entre ativistas tem possibilitado a sustentabilidade da
luta feminista e auxiliado na construção de um projeto político radical e emancipatório de
sociedade. O que apresento é o recorte do que venho trabalhando em meu projeto de
doutorado, através do estudo de iniciativas que vem sendo desenvolvidas pelo Centro
Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), cujo objetivo é fomentar práticas de
autocuidado e cuidado coletivo entre mulheres ativistas de todo o Brasil, e da experiência
tecida durante a pandemia da Covid-19 das Tecelãs do Cuidado, que vem girando Rodas de
autocuidado e cuidado coletivo para mulheres ativistas. Estas iniciativas, vem fortalecendo a
construção de alternativas políticas e afetivas para a sustentabilidade das ativistas feministas
e suas lutas. Além de contribuir para a construção de uma cultura política feminista,
antirracista, pautada na Ética do cuidado e na sustentação da vida como elemento central para
o Bem Viver.
Abstract: The main objective of this work is to understand to what extent the practices of self-
care and collective care among activists have enabled the sustainability of the feminist struggle
and helped in the construction of a radical and emancipatory political project for society. What
I present is a snippet of what I have been working on in my doctoral project, through the study
of initiatives that have been developed by the Feminist Center for Studies and Assistance
(CFEMEA), whose objective is to promote self-care and collective care practices among
women activists of throughout Brazil, and from the experience woven during the Covid-19
pandemic of Tecelãs do Cuidado, which has been turning. Wheels of self-care and collective
care for women activists. These initiatives have been strengthening the construction of
political and affective alternatives for the sustainability of feminist activists and their
struggles. In addition to contributing to the construction of a feminist, anti-racist political
culture, based on the Ethics of care and life support as a central element for Bem Viver.
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Introdução
Nos últimos anos temos vivido tanto no Brasil quanto na América Latina um aumento
significativo do conservadorismo político, religioso e o aprofundamento de desigualdades
sociais decorrentes da consolidação de projetos econômicos neoliberais, o que vem
contribuindo ainda mais para a precarização das condições de vida, sobretudo das mulheres,
sendo as mulheres negras e periféricas as mais afetadas. Diante de um contexto que já impunha
muitos desafios a estas mulheres em suas lutas pela sobrevivência e de suas famílias a
instauração da pandemia da Covid-19 agravou ainda mais as desiguais condições de vida
vivenciadas por elas.
A pandemia da Covid-19 aumentou a sobrecarga com os trabalhos domésticos e com
aqueles relativos ao cuidado, cujas tarefas, incluem, dentre outros: a gestão e a sustentação da
vida, a organização dos espaços e bens domésticos, cuidados com os corpos, a educação e
saúde, e a manutenção das relações sociais da família e suas redes de vínculos e afetos (Biroli,
2018). Estas atividades, desempenhadas pelas mulheres, sobretudo pelas mulheres negras –
tanto o trabalho doméstico não remunerado desenvolvido em suas próprias casas, quanto o
desempenhado pelas trabalhadoras domésticas que, à revelia dos altos números de contágio e
exposição ao vírus, permaneceram obrigadas a trabalhar nas casas das família dos grandes
centros urbanos do país.
Este contexto de precarização das condições de vida, de enfrentamentos cotidianos
pela sobrevivência e sobrecarga com os trabalhos domésticos e relativos ao cuidado tem
pesado sob as mulheres, e ser ainda ativista feminista é outro desafio, pois são elas que estão
nas linhas de frente da resistência política, historicamente, e quem vem atuando em seus
territórios nesta pandemia, com ações de solidariedade conscientizando e distribuindo e
distribuição de alimentos.
A luta contra o sistema capitalista, sexista e racista, que já impõe desafios no contexto
atual, tem causado ainda mais efeitos morais, psicológicos e materiais na vida das mulheres
ativistas. Diante disto, foi criado logo no início da pandemia da Covid-19 um grupo de
mulheres feministas, antirracistas, anticapitalistas, antiLGBTfóbicas e anti capacitistas que
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atuam em diversos movimentos sociais com o objetivo de fortalecê-las, seus coletivos e redes
de atuação, com rodas de cuidado e autocuidado virtuais entre ativistas.
Esta iniciativa fomentada pelo CFEMEA1, é parte de um projeto político que vem se
consolidando dentro dos movimentos feministas no Brasil, que é a construção da prática do
autocuidado, a partir de uma perspectiva política de fortalecimento individual e coletivo para
as ativistas com o intuito de contribuir para a sustentabilidade das lutas feministas.
Proponho neste artigo alguns elementos e conclusões parciais da minha pesquisa, que
nos ajudem a refletir sobre esta perspectiva política-afetiva do autocuidado entre ativistas,
compreendendo em que medida estas práticas tem possibilitado a sustentabilidade da luta
feminista e auxiliado na construção de um projeto político feminista antirracista, radical e
emancipatório para a sociedade, através das iniciativas do CFEMEA, e da atuação da rede das
Tecelãs do Cuidado em tempos de pandemia da Covid-19.
Para o desenvolvimento deste trabalho parto da perspectiva de conhecimento situado,
em que sou parte deste campo, enquanto mulher, feminista antiracista, pesquisadora e
integrante das Tecelãs do Cuidado (Haraway, 2010; Collins, 2019; Evaristo, 2016). Com este
artigo pretendo contribuir para o incipiente debate teórico e político sobre o cuidado e o
autocuidado em sua perspectiva emancipatória e antisistêmica e também como parte de um
compromisso político com a construção da memória coletiva do movimento feminista e suas
ações. Diante de um contexto social e político que apaga as trajetórias das mulheres, sobretudo
das mulheres negras, é fundamental registrar as suas (re) existências para que suas narrativas
não sejam apagadas e continuem inspirando a luta por uma sociedade mais justa e igualitária
para todas e todos nós.
1 O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) é uma organização feminista não governamental
sem fins lucrativos criada em 1989, que concebe em 2015 um plano político e estratégico pela sustentabilidade
do ativismo feminista no Brasil.
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e coletivos feministas de lutas: das mulheres negras, camponesas, trabalhadoras sem-terra, de
mães que perderam seus filhos para a violência do estado, de jovens das periferias, do
artivismo, por soberania alimentar, pelos direitos sexuais e direitos reprodutivos e contra a
intolerância e o racismo religioso. São mulheres diversas, com idades que vão dos trinta aos
sessenta anos, negras, brancas, indígenas, localizadas nas cinco regiões do país, lésbicas,
bissexuais e heterossexuais; mulheres organizadas em coletivos informais, formais, redes de
articulação e sindicatos; algumas que estão na luta há mais tempo, outras que chegaram mais
recentemente, mas todas ativistas pelos direitos das mulheres, sejam em grupos e coletivos
autorganizados2 ou mistos.
A iniciativa das Tecelãs do Cuidado parte dos acúmulos vivenciados ao longo dos
últimos cinco anos em diversos encontros de autocuidado e cuidado entre ativistas e processos
formativos que reuniram mais de cem mulheres nas cinco regiões do país. Estes processos
formativos vêm acontecendo desde 2015, quando o CFEMEA concebe um planejamento
político e estratégico pela sustentabilidade do ativismo feminista no Brasil. O projeto elenca
dentre seus objetivos: fortalecer as ativistas, os seus coletivos e as lutas feministas em todo o
país.
Diante de tantos desafios, como manter as mulheres e suas lutas sustentáveis? Este
projeto de abrangência nacional aglutina ativistas de todo Brasil e diversos locais políticos,
regionais e contextos sociais. A ideia é que, a partir das formações, cada participante,
representando seus grupos e coletivos, possa desenvolver o aprendizado em seus locais
políticos e com isso tornar a prática do autocuidado uma práxis cotidiana, ferramenta de
cuidado de si e com as outras (Oliveira, 2015). Desde seu surgimento aconteceram processos
formativos na região Nordeste, Norte, Centro-Oeste, Sul e Sudeste, com o intuito de refletir,
experimentar, aprender e mobilizar trocas e compartilhar o cuidado de si e coletivo.
Ao longo destes quase dois anos de pandemia, crise política, econômica e social, o
CFEMEA realizou duas formações virtuais, a partir dos acúmulos presenciais, elas
readaptaram a metodologia para a virtualidade e aglutinaram mulheres de várias regiões do
país.
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Diante deste grave contexto vivenciados por nós até então, em abril de 2020 o grupo
das Tecelãs, a partir do convite do CFEMEA, assume o desafio de construir uma: “resposta
cuidadosa e solidária com as mulheres, frente à pandemia da Covid-19 e às crises e agravos
estruturais dela decorrentes” (Cartilha Rodas Virtuais de Cuidado e Autocuidado entre
Ativistas, p. 03, 2020). A ideia era que cada ativista mobilizasse, em seu contexto, grupos e
articulações, Rodas Virtuais de autocuidado e cuidado coletivo, e contariam com a ajuda da
equipe do CFEMEA e também das companheiras do próprio grupo para fazer acontecer esta
nova experiência. Como aconteceriam no ambiente virtual, cada roda poderia contar com a
participação de mulheres diversas, sendo inclusive uma possibilidade que fossem formadas
com mulheres de coletivos localizados em territórios diferentes:
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iniciais desta construção, sobretudo os referentes ao acesso às tecnologias e a internet. Tendo
em vista que, a falta de acesso a rede de wifi e a uma boa internet, é parte da realidade de
muitas mulheres em nosso país, onde este acesso é bastante limitado pelas desigualdades
sociais, econômicas, raciais e territoriais. Tal como apontou uma pesquisa realizada pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2019, que afirmou que as desigualdades
presentes na virtualidade refletem às vivenciadas no mundo real do nosso país.3
Para o desenvolvimento das Rodas Virtuais foi necessária uma adaptação da
metodologia presencial, que se adequasse às possibilidades e necessidades das mulheres. Logo
no início das rodas foi elaborada pelo CFEMEA uma Cartilha para a condução das Rodas
Virtuais de Autocuidado e Cuidado Coletivo entre mulheres ativistas, fundamental neste
processo. A Cartilha compilou, de forma criativa, lúdica e acessível, os objetivos das Rodas e
também várias dinâmicas a serem desenvolvidas, acordos de convivência e técnicas de
cuidado e autocuidado, tais como exercícios de respiração, de dança, movimentos, com o
intuito de proporcionar momentos de conexão com o corpo, ativando outras formas de
expressão que auxiliem na reconexão entre o corpo e a mente, o presente e a potência de cada
uma.
Como parte desta construção metodológica, foi acordado um número mínimo de
facilitadoras por roda, que seriam três, possibilitando assim, uma melhor divisão para a sua
condução e também como parte dos princípios norteadores desta prática, que são: a
circularidade, horizontalidade e corresponsabilidade. E também como um apoio mútuo, pois
para muitas Tecelãs, a experiência das rodas na virtualidade era bastante nova. Também foi
acordado o tempo de cada encontro, até 1:30h e a quantidade média de quinze participantes
por roda.
Este princípio para a condução também é parte da proposta política das Rodas, que
consiste em fortalecer os vínculos e a responsabilidade partilhada entre todas as participantes,
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sendo parte desta ideia que as integrantes, em seu tempo, possam facilitar também os
encontros, fortalecendo a perspectiva circular e horizontal das rodas.
Cada giro é pensado para proporcionar às participantes acolhimento, momentos de fala
e também de escuta ativa, respeitando o momento e o processo de cada uma. Nas rodas não
julgamos, não aconselhamos e falamos sempre na primeira pessoa, com o intuito de incentivar
as mulheres a olharem para si como sujeitas individuais, em suas necessidades e desejos, pois
consideramos este um dos maiores desafios para nós ativistas feministas: desvincular-se do
“nós”, sujeito coletivo que a luta feminista institui, para olhar para si em sua individualidade,
com foco na própria experiência.
A metodologia das rodas é dividida em cinco momentos: a Chegança, que é o
momento em que todas chegam na Roda, desejamos as boas-vindas e apresentamos o objetivo
do giro; a Conexão, que é o momento de proporcionar:
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A Partilha é o momento posterior ao Sentir e Pensar e tem como propósito a partilha
coletiva das sensações e vivências da Roda, sempre na tentativa de manter as participantes no
presente, conectadas com a sua própria experiência e com o objetivo do encontro.
Por fim temos o momento do Aconchego para fechar o encontro e: “celebrar o fato de
estarmos juntas nos cuidando, nos fortalecendo para atravessar esse período de desconforto,
incertezas e impotência.” (Rodas Virtuais de Autocuidado e Cuidado entre Ativistas, 2020).
Nas Rodas são propostas atividades que proporcionem o descaso, a desaceleração e o cuidado
de si, como ferramentas que possibilitem a restauração da saúde física e emocional delas.
Entre os meses de abril e novembro de 2020, quinze rodas giraram em estados como
Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Paraíba, Bahia, Rio Grande
do Norte, além de duas Rodas que aglutinaram mulheres de todo o país, que foram as rodas
da AMB (Articulação de Mulheres Brasileiras) e Rio Bonito, resultado de uma formação
ocorrida em 2019. Entre esses meses, mais de 100 giros aconteceram, alcançando uma média
de 250 mulheres.
Desta forma, as Rodas Virtuais se inserem dentre as várias iniciativas de solidariedade
e fortalecimento coletivo desenvolvido pelas ativistas na pandemia, cujo objetivo central é o
fortalecimento individual e coletivo das mulheres, como uma ferramenta política e afetiva para
a sustentabilidade das lutas feministas. Foram e ainda são elas, as mulheres, principalmente
negras, que tem feito a solidariedade e o cuidado circularem como forma de sobrevivência de
si e dos seus; a doação de alimentos, kits de higiene pessoal, e cuidados com a saúde e
prevenção contra a Covid-19, foram ações desenvolvidas com base no cuidado coletivo, no
afeto e no fortalecimento da autonomia das mulheres. E as Rodas Virtuais são parte desta
solidariedade e cuidado que circula e contribui para que as mulheres permaneçam vivas e
atuantes.
Tendo em vista, a instauração e institucionalização cada vez mais forte de uma política
de morte praticada pela sociedade e pelo Estado (Mbembe, 2018), que mata e deixa morrer,
através da necropolítica, da violência doméstica, policial, do racismo estrutural, do
capacitismo e da pobreza. O autocuidado, em sua dimensão política e afetiva, torna-se uma
ferramenta fundamental dentro dos movimentos, pois fortalece a vida das mulheres, frente à
uma política de morte. Uma ferramenta que tem auxiliado as ativistas na luta pela
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sobrevivência e pelo Bem Viver, uma motivação para seguir, tendo as suas dores, vitórias e
trajetórias de vida acolhidas e respeitadas.
Foi através de iniciativas como estas e de tantas outras desenvolvidas pelas mulheres,
que a importância do autocuidado e do cuidado coletivo, tem estado cada vez mais forte na
agenda política dos movimentos sociais e da sociedade. Pois, a pandemia desvelou o que há
muito já era denunciado pelo movimento de mulheres, da necessidade de colocar o cuidado e
a sustentação da vida na ordem do dia das lutas por transformação social, pois não é possível
transformar as desiguais relações raciais, de gênero e classe, se não for o cuidado encarado
como uma responsabilidade coletiva e dos Estados. E o autocuidado vem recuperando às
mulheres o seu direito ao cuidado de si, ao descanso, ao prazer e a alegria como um direito,
uma efetivação de sua integralidade e cidadania.
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a manutenção da casa aos cuidados com a saúde e bem-estar das pessoas que nos cercam.
Essa naturalização entre feminilidade e domesticidade torna-se um elemento estruturante
nos processos de subjetivação feminina, isto é, nos processos de formação e modificação da
identidade das mulheres (Luna, 2016) ) e, ao longo dos tempos, se materializa como uma
sobrecarga em suas vidas, pois o trabalho doméstico e o cuidado com os outros demanda
uma quantidade significativa de tempo, esforço e energia.
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e uma boa remuneração salarial.
Como foi dito por Biroli (2018), os dados da Pesquisa Nacional Por Amostra de
Domicílios (PNAD) de 2013 apontam que o percentual de mulheres negras que exerciam
trabalho doméstico era de 18%. Já entre as mulheres brancas era de 10,6%. Em 2013, apenas
31,8% das trabalhadoras domésticas tinham carteira assinada, mas esse percentual fica
abaixo de 30% quando se consideram apenas as mulheres negras e abaixo dos 20% nas
regiões Norte e Nordeste do país (2018, p. 42).
Nesse sentido, o trabalho doméstico impõe uma série de impactos na vida das
mulheres, sejam eles econômicos, pois tomam uma grande quantidade de tempo em suas
vidas, as impedindo muitas vezes de realizar um trabalho remunerado. (Hirata, Kergoat,
2007; Tronto, 2007); Sociais, pois muitas vezes as impossibilitam de desenvolverem
aptidões, desejos e potências alheias ao mundo doméstico e atividades com o cuidado – já
que, consumidas por essa lógica, tendem a passar muito tempo em suas casas e/ou
despendendo energia para cuidar de questões relacionadas à família e sua sobrevivência.
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vista que essas atividades são encaradas como parte da obrigação cotidiana das mulheres,
algo que se espera que elas realizem de forma natural e espontânea, como parte de seu
trabalho no mundo e que, portanto, não são merecedoras de visibilidade e respeito por parte
de quem recebe esses cuidados.
Essas consequências tornam-se ainda mais graves na vida das mulheres, pois partem
de um princípio que norteia toda esta lógica desigual de que as mulheres não são
reconhecidas enquanto merecedoras de cuidado, sendo vistas apenas como aquelas que o
provêm. Consideremos ainda o fato de que é parte estruturante do mundo privado a
violência doméstica pela qual as mulheres passam. Violações sexuais, físicas, psicológicas
e morais, sendo dentro de casa onde estão, na maioria das vezes, mais vulneráveis e
submetidas ao poder e dominação dos homens, maridos, pais e filhos.
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situações de violências e embates (Cuentro, 2017), sobretudo num contexto atual de crescente
conservadorismo e fundamentalismo religioso e político.
Com a chegada da pandemia da Covid-19, o somatório destas sobrecargas aumentou
bastante. Segundo o relatório da Sempre Viva Organização Feminista (2020)4, que entrevistou
mais de duas mil mulheres durante a pandemia, mais de 50% delas passaram a cuidar de
alguém neste período, 72% delas afirmaram que a necessidade de acompanhamento e
monitoramento aumentou, além dos casos de violência doméstica que cresceram
assustadoramente, tornando o ambiente doméstico ainda mais hostil às mulheres. Somada a
estas sobrecargas, o contexto de precarização, pobreza, violência também agravou a situação
de vulnerabilidade das mulheres, principalmente das mulheres negras e periféricas.
A sobrecarga, o esgotamento físico e emocional, ainda se dá pelo fato de que são as
mulheres quem, historicamente constroem as redes de apoio e solidariedade em seus
territórios. A pandemia veio para reafirmar este lugar, pois são as mulheres negras e periféricas
que têm construindo ao longo destes meses iniciativas de acolhimento, distribuição de
alimentos e kits de higiene pessoal às famílias em suas comunidades, sendo boa parte delas
comprometidas com a luta anticapitalista, antirracista e pelo fim da violência policial. Os
desafios estão cada vez mais complexos e exigindo cada vez mais dessas mulheres.5
O agravamento deste cenário tem se tornado um desafio a sustentabilidade do ativismo
feminista. Se por um lado enfrentamos um contexto de aumento de sobrecarga com o trabalho
doméstico e com os cuidados, que dobraram nesta pandemia. Por um outro, enfrentamos, um
contexto socioeconômico e político que precariza ainda mais as condições de vida das
mulheres, ameaçando nossas possibilidades materiais de sobrevivência. Sendo um desafio
para as ativistas feministas permanecerem atuantes. Como cuidar de nós mesmas e dar
sustentabilidade a luta feminista?
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Ao compreendermos que a relação entre pessoal e político é central para a luta
feminista, como enfrentar esse contexto político, pensando alternativas e desenvolvendo novas
perspectivas e práticas democráticas que garantam a sobrevivência e o Bem Viver para as
mulheres?
As concepções inseridas na dimensão do autocuidado como uma prática política
feminista têm demonstrado a sua capacidade de traçar perspectivas políticas e pessoais frente
a estes desafios. Dizem respeito não apenas as ativistas feministas, mas configuram-se
enquanto um projeto político emancipatório para todas e todos, pois subverte uma lógica
gendrada, racializada e desigual da divisão do trabalho doméstico e do cuidado. Quando
propõe que este seja reconhecido, redistribuído de forma igualitária e reduzido à sua carga de
trabalho e de responsabilidade na vida das mulheres, sobretudo das mulheres negras. Nessa
concepção, o cuidado de si e com os outros é compreendido enquanto uma experiência
humana, parte fundamental do cotidiano de todas e todos, é encarado através, de uma
perspectiva holística, partilhada, para ser realizado de forma mais democrática e igualitária.
O cuidado, afirma Tronto (2007), precisa ser parte de uma ética coletiva que rompa
com ideais liberais e individualistas que apenas perpetuam relações desiguais, que
responsabilizam quem o executa e privilegia quem o recebe. Enfatiza-se a dimensão ética do
cuidado e seu poder de fortalecer outras estruturas sociais realmente democráticas, sendo a
maneira como as sociedades encaram a responsabilidade com o cuidado um dos reflexos de
suas práticas políticas e sociais (Tronto, 2007; Molinier, Paperman, 2015). Este projeto
político subverte também a lógica da prática política normativa e seus valores masculinos
falaciosamente universais que invisibilizam os contextos e vozes das mulheres, bem como as
experiências e desafios do mundo doméstico, como uma esfera à parte da construção política
que ocorre na esfera pública.
A ética do cuidado subverte esta lógica, pois compreende que as dimensões subjetivas
e políticas vividas pelas mulheres são diretamente afetadas pelo sexismo, racismo, lesbofobia
e pobreza estruturais, constituindo-se em fatores que afetam diretamente o exercício da
cidadania e da política, como direitos democráticos universais.
É através desta compreensão que o conceito e prática do autocuidado, a partir de uma
ênfase na dimensão da ética do cuidado, vêm se consolidando como ferramenta de
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fortalecimento e sustentabilidade do ativismo feminista e antirracista, constituindo-se como
uma das questões centrais para os movimentos feministas, na atualidade. Ao ser praticado
entre as ativistas como forma de fortalecimento individual e coletivo, politizando as dores para
transformá-las em ação e transformação daquilo que almejam e, nesse processo, fortalecer os
grupos, coletivos e movimentos na construção de um projeto político de sociedade
emancipatório, no qual possamos viver e ser livremente (Oliveira, 2015; Tronto,2007).
Em consonância com esta concepção, o autocuidado é concebido por Audre Lorde,
não como um ato de autoindulgência, mas, segundo a intelectual, como uma autopreservação,
um ato de guerra política frente à um processo histórico, colonizador, racista e sexista que tem
imposto às mulheres e a população negra uma política de morte. (Mbembe, 2018; Davis, 2016)
que em sua base dialoga diretamente com o cuidado coletivo, sendo estas duas dimensões,
autocuidado e cuidado coletivo, fundamentais para autotransformação e transformação social.
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sobretudo das mulheres negras, como valores inegociáveis e essenciais para a transformação
da sociedade.
É também em defesa da alegria e do direito das mulheres de viverem livres de
exploração sexual, econômica, da violência e das políticas históricas de silenciamento de suas
histórias que o autocuidado vem se constituindo. É fundamental que as mulheres estejam vivas
e vivendo para construir as suas trajetórias. Não o autocuidado como autoajuda ou, como vem
sendo vendido nas propagandas de TV, como cuidados com a beleza ou alardeando novos
modos de vida naturais, com base em alimentação saudável e práticas de exercícios físicos em
uma concepção individualista, eco-capitalista, que em sua maioria são inacessíveis às
mulheres. Não é esta concepção que defendemos, é a sua perspectiva política e afetiva de
garantia de direitos aos sujeitos políticos que as mulheres instituem.
É por entender o desafio da sustentabilidade individual e coletiva como um dos
maiores desafios que os movimentos feministas enfrentam hoje que coletivamente se
constroem a proposta das Rodas Virtuais de Autocuidado e Cuidado entre ativistas.
O que apresentei até aqui foi o acúmulo dos debates, estudos e observação participante
das vivências com as Tecelãs do Cuidado, nas Rodas Virtuais de autocuidado e cuidado
coletivo entre ativistas, tanto como participante, quanto facilitadora e de diálogos
estabelecidos com as Tecelãs em nossos encontros. As Formações Virtuais em 2020 e 2021
em Autocuidado e Cuidado Coletivo entre mulheres ativistas também são parte destas análises
preliminares. Ainda em 2019 tive a oportunidade de me formar enquanto facilitadora de
TREM (Técnica de Redução de Estresse entre Mulheres -uma técnica adaptada para o
movimento feminista aqui no Brasil, que visa, através de exercícios e alongamentos, causar
tremores no corpo e com isso, a liberação de cargas, estresse, tensão, provocando o
relaxamento) e de aprender metodologias e técnicas de autocuidado e cuidado coletivo para
facilitar Rodas para mulheres ativistas.
Alinhado à observação participante, que já realizo desde 2019, às leituras e vivências
enquanto facilitadora de TREM e práticas de autocuidado e cuidado coletivo entre mulheres,
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irei iniciar as entrevistas em profundidade. Terceira técnica que vem completar a minha
proposta metodológica. Nesta fase, realizarei seis entrevistas em profundidade, na intenção de
fazer um acompanhamento das mulheres ativistas, com duas ou três entrevistas cada, para
compreender os impactos do autocuidado e do cuidado coletivo em suas vidas.
De forma geral a minha percepção é de que sim, estas práticas vem contribuindo para
a vivência política e afetiva das mulheres, fortalecendo-as e colaborando para a
sustentabilidade de suas vidas e consequentemente das lutas feministas. Mas, compreendo que
a fase das entrevistas me trará novas perspectivas a respeito das questões apresentadas aqui.
No entanto, posso apontar, enquanto parte das minhas conclusões parciais, que é
inegável que a pandemia possibilitou a entrada do cuidado na agenda política do dia. Os
agravamentos do contexto social, político e econômico, decorrentes da crise sanitária vivida
hoje no país, deram o tom da urgência deste debate, na sociedade à nível nacional e mundial
e da necessidade da implementação de transformações radicais na estrutura da divisão sexual
e racial do trabalho, que historicamente sobrecarrega os cotidianos das mulheres, sobretudo
das mulheres negras. E também ganhou bastante relevância nos debates e reflexões dos
movimentos feministas, por sentirem, através, destes agravamentos e diante da complexidade
dos desafios a serem enfrentados, a necessidade do cuidado como uma alternativa de
sustentabilidade de si e das lutas sociais.
E a forma como o desenvolvimento das Rodas Virtuais se deu ilustra bem esta
relevância e a sua capacidade de expansão e capilaridade ao longo desta pandemia. Foram
quinze rodas espalhadas pelo país, que giraram ao longo de 2020 e com uma boa adesão das
ativistas feministas. Uma média de 250 mulheres vivenciaram esta experiência neste período,
multiplicando e semeando as práticas de autocuidado e cuidado coletivo em seus grupos,
coletivos, redes e articulações políticas.
A própria crise humanitária que vivemos hoje em nosso país e no mundo, com o
colapso eco-social consolidado pela Covid-19, vem demonstrando a urgência em
transformarmos as nossas relações sociais, e as mulheres são protagonistas nestas lutas que
apontam para o Bem Viver como premissa para novos caminhos civilizatórios, em que a
intersecção das lutas feministas, antirracistas, anticapitalistas, antissexistas, anticapacitistas,
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antiLGBTQIA+fóbicas, sinalizam para as alternativas sociais e políticas verdadeiramente
radicais e emancipatórias.
O autocuidado e o cuidado coletivo, são desta forma: “alicerces, armas e munição para
as guerras cotidianas que estamos travando para sobrevivermos e vencermos o fascismo que
nos oprime e construirmos um mundo de Bem Viver” (Cfemea, 2020).
As vivências e perspectivas que se desenvolvem hoje dentro dos movimentos
feministas, se constroem também como alternativas políticas reais para a transformação social,
pois afirmam a urgência com o compromisso político de uma sociedade pautada na ética do
cuidado, e que seja por ela orientada. Não há hoje a possibilidade de construir uma sociedade
verdadeiramente democrática sem que o cuidado seja compreendido em sua integralidade,
sendo ofertado e também recebido por quem oferta, em uma relação de cooperação,
solidariedade e igualdade.
A forma como as mulheres, sobretudo as mulheres negras, permanecem responsáveis
pelo trabalho doméstico e as atividades relativas ao cuidado continuam como fortes
marcadores das heranças coloniais, racistas, sexistas, classistas e desiguais da história do nosso
país e traçar novos caminhos civilizatórios precisa ter por princípio acabar com estas
desigualdades. E esta responsabilidade é tanto dos movimentos sociais, que lutam por uma
sociedade igualitária para todos e todas. Quanto do estado, em garantir políticas públicas, que
retirem das mulheres as sobrecargas com as responsabilidades relativas ao cuidado: com mais
creches, uma educação e saúde pública de qualidade. Bem como a garantia de empregos, e
direitos sociais, que permitam o acesso ao cuidado das pessoas que necessitam, e também
daquelas que o ofertam.
Por fim, gostaria de dizer que a escrita deste artigo é parte também do meu
compromisso em compartilhar este incipiente e tão necessário debate e prática política que é
o autocuidado e o cuidado entre ativistas como estratégia de sustentabilidade. Também é parte
da minha contribuição na construção das memórias das lutas que as mulheres constroem
historicamente, é, como aponta Conceição Evaristo e o seu conceito de “escrevivência”
(2016), uma forma de contar as nossas histórias, para que elas não sejam apagadas.
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Referências Bibliográficas:
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um manual prático. 2ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
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