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Vinicius R.

Soares

Práticas disruptivas
na arquitetura da
América Latina
um debate a partir da obra
La Casa de Meche
Práticas disruptivas
na arquitetura da
América Latina
um debate a partir da obra Universidade Federal
La Casa de Meche do Rio Janeiro

Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo

Trabalho Final de Graduação


Dez/2022

autor
Vinicius R. Soares

orientação
Ana Paula Polizzo
_SUMÁRIO

__PREÂMBULO

1__INTRODUÇÃO
1.1__Arquitetura na América Latina
1.2__O Lugar do Arquiteto

2__ PRÁTICAS DISRUPTIVAS

2.1__Ensusitio Arquitectura
5.2__La Casa de Meche

3__NARRATIVAS DISRUPTIVAS
3.1__Arquitetura emancipatória
3.2__Coletividade radical
3.3__Ecologia de saberes construtivos
3.4__Hiperlocalismo conectado

4__CONSIDERAÇÕES FINAIS

5__BIBLIOGRAFIA
_PREÂMBULO serrando peças de madeira que descobri definitivamente meu interesse
pela arquitetura.
Este trabalho é fruto das experiências pessoais e profissionais Dentro da universidade, foi particularmente importante para a
que me levaram a buscar uma formação em arquitetura, de reflexões minha formação e para a delimitação do tema deste trabalho a
críticas sobre a sociedade, pautadas pelo reconhecimento das participação, desde 2020, na pesquisa “Narrativas latino-americanas:
desigualdades sociais como desafio fundamental e urgente a ser Uma construção histórica a partir das bienais latino-americanas
enfrentado, e pela própria trajetória acadêmica dentro da universidade. [NALA]” 1, coordenada pela professora Ana Paula Polizzo, vinculada ao
A partir da minha formação como biólogo, concluída em 2009 Grupo de Pesquisa Laboratório de Narrativas em Arquitetura (LANA),
pela UFRJ, me aproximei das questões relativas à relação entre do PROARQ-FAU/UFRJ. Ao longo da pesquisa pude conhecer diversas
sociedade e ambiente, e ao longo da minha trajetória profissional e experiências em arquitetura na América Latina que se destacavam das
acadêmica posterior percorri as implicações dessa relação desde a formas convencionais de atuação da profissão. A partir das discussões
floresta até a metrópole, o que me fez perceber a relevância de uma construídas coletivamente com o grupo de pesquisa a cerca dessas
reflexão crítica sobre a forma com que intervimos sobre o espaço e a experiências, pretendo me aprofundar na investigação dessas práticas
necessidade urgente de transformação dessa relação. que denomino, por hora, como disruptivas e contribuir para o
Outro aspecto importante que me levou a escolha do tema da aprimoramento do papel da arquitetura na transformação da sociedade
pesquisa diz respeito às experiencias construtivas anteriores à contemporânea.
universidade, nas quais posso afirmar que comecei minha formação
como arquiteto. Foi no canteiro de obras da minha própria casa,
aprendendo na prática com pedreiros, marceneiros, eletricistas e
outros trabalhadores da construção, virando massa de concreto,
assentando tijolos, peneirando barro e areia, cortando bambu e

1O projeto de pesquisa tem como objetivo gerar subsídios para a discussão sobre o processo
de visibilização e legitimação institucional da arquitetura contemporânea latino-americana,
buscando compreender, assim, os diferentes discursos sejam eles institucionais ou curatoriais
que foram moldando o olhar internacional em direção a essa produção arquitetônica.
1_INTRODUÇÃO outras partes do mundo” e que “acreditam que existe uma espécie de
“eu” indivisível que pertence à região (talvez uma alma?) que se
1.1_Arquitetura na América Latina
expressa em traços claramente identificáveis e isso os faz reagir em
O século XX foi marcado por processos nos quais as
unissonância contra qualquer estímulo externo”. De acordo com o
populações dos países da América Latina buscaram consolidar sua
Liernur essa atitude dos autores deve pôr fim às narrativas sobre
independência política ao mesmo tempo em que lutavam para superar
“arquitetura na América Latina”, representando uma mudança de
a dependência econômica e cultural que os mantinha sob a tutela da
paradigma, rumo a uma interpretação não ideologizada da produção
Europa e posteriormente também dos Estados Unidos. No bojo desses
arquitetônica na região. Paradoxalmente, tal afirmação parece dar
processos é que se constitui a própria ideia de uma América latina, a
continuidade a própria discussão que Liernur pretende por fim, e assim
despeito das controvérsias que ainda permanecem sobre a aplicação
corre o risco de revelar-se datada.
desse conceito.
Mais pertinente me parece a ideia defendida por Lara de uma
Jorge Liernur, no prefácio do livro Modern Architecture in Latin
mudança no centro de gravidade da América Latina, anteriormente
America, um dos livros mais recentes sobre o tema, publicado em 2015
localizado fora da região em algum lugar no Altântico Norte, mantendo
em inglês, salienta o fato do título apresentar a América Latina como
os países da região como ilhas isoladas entre si, atualmente encontra-
uma localização geográfica e não como um atributo, como no caso do
se na própria América Latina, “em algum lugar entre Quito, Medellín,
livro de Henry Russel Hitchcock [Latin American Architecture since
Brasília, Rosário, Tijuana e Assunção”, [Lara, 2014]. Dessa maneira, a
1945] ou como nos, mais recentes, Seminários de Arquitetura Latino-
produção arquitetônica nos países da região deixa de orientar-se para
americana – os SAL. A questão para esse autor é que dessa maneira
os interesses externos, e passa a se voltar para uma maior integração
“a obra “Latino-americana” não é apenas um edifício nessa região do
regional. No entanto, essa proposição pode ser confrontada com o
mundo mas, ao contrário, um edifício que expressa essa região” 2
próprio contexto de publicação do livro, escrito em inglês e editado no
[Liernur, 2014 p. ], o que para ele representa uma visão ideológica
Texas, nos Estados Unidos da América do Norte, evidenciando que
propagada por “Latino-americanistas” que “argumentam que a cultura
qualquer discussão e contradição está longe de ser encerrada.
produzida nessa região é radicalmente diferente da que é gerada em

2George Bataille, em texto publicado na revista Documents em 1929, no qual faz uma crítica à das sociedades, da mesma maneira que a fisionomia é a expressão da verdadeira alma dos
relação da arquitetura com o poder, afirma que “A arquitetura é a expressão da verdadeira alma indivíduos” [Montaner, 2014 p. 31]
O fato importante e de interesse para esta pesquisa é que a dois outros arquitetos latino-americanos foram premiados com o Leão
arquitetura produzida na América Latina nas últimas duas décadas tem de Ouro, o brasileiro Paulo Mendes da Rocha, por sua trajetória, e o
promovido a atenção e a troca entre arquitetos, críticos e paraguaio Solano Benitez, por sua desafiadora instalação que concilia
pesquisadores da própria região, e recebido crescente tradição e inovação, artesania e tecnologia [Allard, 2016].
reconhecimento nos países que historicamente dominaram os Outro exemplo que expressa a atual conjuntura da disciplina na
cânones da arquitetura mundial. Um exemplo disso é que, em um região foi a constituição, em 2012, da Rede de Bienais de Arquitetura
intervalo de 10 anos, dois arquitetos latino-americanos receberam o da América Latina, e a criação do prêmio Oscar Niemeyer para a
prêmio Pritzker – Paulo Mendes da Rocha e Alejandro Aravena – o que Arquitetura Latinoamericana, cuja primeira edição ocorreu em 2016,
não acontecia desde 1988 quando Oscar Niemeyer dividiu o prémio consolidando uma integração regional e a disputa de protagonismo na
com o norte-americano Gordon Bunshaft. E no mesmo ano em que definição dos cânones e na historiografia da arquitetura mundial. O
recebeu o prêmio [2016], Aravena foi convidado para dirigir a Bienal de prêmio notabiliza-se por premiar obras construídas contemporâneas
Arquitetura de Veneza, considerada a maior celebração global da que tenham sido indicadas pelas bienais de arquitetura que ocorrem
arquitetura, exercendo grande influência sobre os rumos da disciplina. no continente, constituindo uma curadoria de curadorias. A cada
A curadoria de Aravena, intitulada “Reporting from the front”, edição são selecionadas 20 obras finalistas, e dentre estas pode-se
representou uma mudança de foco explícita em relação às mostras observar uma grande variedade de programas, escalas, materiais,
anteriores, arraigadas em reflexões estéticas e autorreferentes próprias contextos e grupos sociais, bem como práticas projetuais e
da arquitetura. O próprio título sugere a proposta de aproximar o construtivas refletindo a diversidade do continente latino-americano.
debate arquitetônico às questões reais enfrentadas pela sociedade O destaque da América Latina no cenário internacional segue
reafirmando um compromisso político da arquitetura, sem por isso nos anos seguintes com a realização do concurso Young Architects of
abdicar da beleza como valor fundamental. O discurso de Aravena e Latin America, enquanto evento oficial paralelo à Bienal de Veneza, em
do Elemental sempre defendeu com pragmatismo a necessidade de 2018, e a concessão pela UNESCO do primeiro título de Capital
enfrentar a desigualdade como desafio profissional, disputar a Mundial da Arquitetura à cidade do Rio de Janeiro, em 2019, onde
relevância da disciplina na esfera pública e papel transformador do realizou-se também o 27º Congresso Mundial de Arquitetos em 2021.
arquiteto e da arquitetura. Nessa mesma edição da bienal, pelo menos
1978 1985 2012 2016

2006 2009 2016 2016 2018 2021

_história da arquitetura na América Latina


_linha do tempo representando os principais marcos na história da arquitetura na América
Latina, no período desde o final dos anos 1970 até a atualidade. [Elaborado pelo autor]
_obras finalistas do prêmio Oscar Niemeyer [edições 2016/18/20]
No entanto, é relevante notar dentre os finalistas selecionados e andinas, como os projetos Parque Educativo Vigia del Fuerte
a presença expressiva de obras relacionadas a espaços coletivos [Mauricio Valencia + Diana Herrera + Lucas Serna + Farhid Maya],
[públicos ou comunitários], e principalmente de obras que resultaram Escola em Chuquibambilla [AMA + Bosch Arquitectos], Centro de
de práticas arquitetônicas não-convencionais, ou seja, que rompem Capacitação Indígena Käpäcläjui [Entre Nos Atelier] e Escola Rural
com os cânones e com processos tradicionais da disciplina. Dentre Productiva [Bachillerato Rural Digital + Comunal Taller de
estes, podemos citar projetos que lidam com a emergência causada Arquitectura]. Isso significa que foram colocados lado a lado em termos
por terremotos, como o Projeto Chacras [Natura Futura], a Casa em de relevância para a arquitetura latino-americana contemporânea uma
Ocuilan [Rozana Montiel] e a Residência Melani [BIOSARQS], e com habitação de emergência construída coletivamente por voluntários e
interesses e usos coletivos em comunidades das periferias urbanas e pela própria família desabrigada por um terremoto, utilizando pallets e
metropolitanas – Catia 1100 [Aparatos Contingentes] e La Comuna pedaços de madeiras descartados, e grandes museus, edifícios
[Natura Futura] – e também em comunidades ribeirinhas, amazônicas institucionais, mansões, hotéis e torres de escritórios.

_’outros fazeres’
_obras finalistas do prêmio Oscar Niemeyer [edições
2016 | 2018 | 2020] destacadas por basearem-se
em outras formas de fazer arquitetura, e suas
localizações no território [Cartograma elaborado
pelo autor]
1.2_O Lugar do Arquiteto genéricas demais, me parece senso comum que os contratantes
predominantes são pessoas físicas de alta renda, construtoras mais
A arquitetura é certamente uma das atividades humanas que preocupadas com taxas de retorno de investimentos e empresas que
mais fascina as pessoas, interseccionando arte, tecnologia, cidade, precisam de um espaço físico para desenvolver seus negócios. Sendo
monumento, paisagem, história, ciência etc., presente desde o mais assim, em que medida arquitetos e arquitetas, enquanto categoria
banal ato cotidiano à grandiosidade dos maiores feitos da humanidade. profissional, estão conseguindo fazer valer suas obrigações para com
E de forma geral acredito que seja essa a ideia de arquitetura presente o interesse público preconizado no código de ética da profissão?
na maior parte dos currículos das faculdades brasileiras, nas Obviamente não se pode atribuir a responsabilidade por essa situação
publicações e no imaginário dos arquitetos. a escolhas individuais, nem mesmo como exclusiva dessa categoria
No entanto devemos nos perguntar o que faz de fato o profissional. Também não devemos insinuar que o arquiteto não possa
contingente de mais de 140.000 profissionais diplomados como prestar serviços privados, mas questionar o lugar e a responsabilidade
arquitetos hoje no país. Quantos desses profissionais estão envolvidos dos profissionais em um país onde mais de 11 milhões de pessoas
na concepção de equipamentos públicos, no planejamento de cidades vivem em favelas 4, cerca de 35 milhões não tem acesso a água tratada
mais democráticas ou na melhoria das condições de moradia dos que e 97 milhões não tem acesso a coleta de esgoto 5 me parece
mais precisam? Provavelmente a resposta a essa pergunta seja inescapável.
“inferior ao necessário”, apesar de ser difícil obtê-la com precisão. De A autoconstrução da moradia – entendida como “construção sem
3
acordo com o censo realizado pelo CAU/BR , menos da metade dos a participação de profissionais especializados” –, da qual os arquitetos
arquitetos brasileiros trabalha com concepção ou execução de estão entre os primeiros profissionais a serem excluídos, representa a
arquitetura e urbanismo, enquanto cerca de dois terços trabalham com maior parte da produção de moradias e do próprio espaço urbano,
arquitetura de interiores. Os clientes mais frequentes são pessoa física especialmente no Brasil e nos países da América Latina, onde o
[76%] e pessoa jurídica [50%], e somente 20% presta serviços para crescimento das cidades é marcado pela ocupação de favelas e
órgãos públicos. Apesar das categorias utilizadas na pesquisa serem loteamentos irregulares. Associado a isso, observamos na produção

3
Censo do CAU/BR https://caubr.gov.br/censo2020/ 5
Dados do SNIS 2020 [MDR]
4 Dados do Censo 2010 [IBGE]
formal de moradias tanto o mercado imobiliário quanto as políticas controle e da vigilância. Na sociedade moderna tal relação é patente
públicas habitacionais produzindo habitações de baixa qualidade nas em regimes autoritários, mas também em regimes democráticos, como
periferias das grandes e médias cidades onde a infraestrutura urbana no emblemático caso de Brasília, no qual arquitetura e urbanismo
é precária, deixando patente a ausência dos mais elementares exerceram papel fundamental na implantação de um projeto político.
conhecimentos arquitetônicos e urbanísticos. Não obstante devemos ressaltar a relação da arquitetura e a expressão
O arquiteto e professor da Escola de Arquitetura da UFMG e o exercício do poder econômico, que talvez seja a forma mais
Wellington Cançado em seu manifesto sobre o projeto Espaços evidente na sociedade contemporânea, na qual a ideologia neoliberal
Colaterais aponta que é hegemônica. [Montaner & Muxí, 2014]
Nesse sentido, podemos entender a arquitetura como fator
“Sub-aproveitados na cadeia da indústria da construção,
excluídos da agenda cultural e distanciados dos desafios reais
fundamental na geração de valor de troca para a valorização do capital

das cidades brasileiras, os arquitetos contemporâneos agem no processo de produção do espaço, seja contribuindo através do
como técnicos obedientes, pragmaticamente treinados em desenho para a fetichização do espaço enquanto mercadoria seja
escolas incapazes de vislumbrar modelos alternativos de ação dando corpo às ambições materiais de grupos dominantes em busca
no mundo. E a arquitetura subsiste como uma profissão refém de distinção social. Não menos importante, mas talvez menos evidente,
de arcaicas tipologias disciplinares, clientes conservadores, é o papel do arquiteto no exercício do controle do trabalho coletivo
interesses escusos e utopias privadas. Sustentada pelo
através da alienação entre desenho e canteiro, como já apontava
espólio de um passado glorioso e pela frivolidade das
Sergio Ferro na década de 1970. Fernando Lara retoma esse debate
celebridades instantâneas.”[Cançado, 2008 p. 12]
ao apontar que
Tal diagnóstico deveria nos levar a questionar: qual o papel do
“A crescente especialização dos processos de modernização
arquiteto e da arquitetura na sociedade contemporânea, e
criou uma separação drástica entre as partes do processo de
particularmente na América Latina e no Brasil? construção, reforçando a narrativa que os arquitetos trabalham
Historicamente é notória a relação entre arquitetura e poder, que com a mente e todos os demais trabalham com o corpo,
se dá mediante as diversas dimensões da arquitetura desde a quebrando a possibilidade do próprio espaço em construção
expressão do poder através da linguagem ao efetivo exercício do
servir de referência para o pensamento crítico/relacional dos que professores da Escola Técnica Superior d’Arquitectura de Barcelona
ali trabalham.” [Lara, 2021] defendem que

Essa questão parece fundamental para o quadro de produção de “Aquilo que denominamos crise da profissão é uma
moradias e cidades na modernidade, e na contemporaneidade. A consequência dos desajustes entre a cultura e a formação do
maior parte das construções, e consequentemente da cidade, é arquiteto e aquilo que a sociedade neoliberal demanda dele, da

produzida exclusivamente por trabalhadores sem instrução técnica contraposição entre um modelo universitário de formação de

formal, cuja aprendizagem se dá nos próprios canteiros de elites e o processo de democratização do acesso à
universidade.” [Montaner & Muxí, 2014 p. 38]
autoconstrução e principalmente nos canteiros das empresas de
construção civil, onde a especialização do trabalhador e a Portanto, devemos questionar se a formação de arquitetos mais
hierarquização da divisão do trabalho produz trabalhadores conscientes da posição que ocupam na sociedade e aptos a
completamente alienados de qualquer reflexão sobre a produção do exercerem sua atividade em benefício de quem mais precisa, será
espaço e sobre as técnicas e materiais empregados. No caso possível sem uma mudança epistemológica na disciplina.
brasileiro, o resultado disso é a predominância da utilização do sistema
“Processos alternativos nos quais o arquiteto se afasta para
trilítico de concreto com vedação de tijolos de forma indiscriminada nas
desempenhar o papel de consultor ou cultivador foram
casas populares, claramente influenciado pelas decisões projetuais da sistematicamente marginalizados até muito recentemente. Em
arquitetura modernista e perpetuadas até hoje, também de forma vez disso, as publicações de arquitetura valorizam apenas as
indiscriminada, no mercado imobiliário com a conivência de arquitetos experiências nas quais o arquiteto retém o poder de decisão,
avalizados pelas escolas em que se formaram [Lara, 2009]. mesmo quando a participação, a autoajuda e a construção

A formação do arquiteto atrelada a um sistema universitário incremental estão no centro do processo.” [Lara, 2021]

elitizado – na qual o acesso tanto de docentes como de discentes Todavia a grande maioria [87%] dos arquitetos brasileiros
favorece às camadas mais capitalizadas econômica e culturalmente da considera que “há outras áreas do mercado ainda inexploradas pelos
sociedade – talvez seja um dos principais entraves à ruptura com esse arquitetos e urbanistas”, seja lá o que isso significa para cada um. E de
sistema, e o processo de democratização do acesso à universidade fato um fenômeno tem chamado a atenção de alguns autores e críticos
sua maior ameaça. Josep Maria Montaner e Zaida Muxí, ambos de arquitetura nos últimos anos: a proliferação de coletivos de
arquitetura formados por jovens arquitetos que tentam se infiltrar nos
interstícios deixados por um mercado dominado por grandes
construtoras e investidores [Arango, 2018], servir como agentes de
transformação espacial, social, econômica e política [Calisto, 2011] e
expandir os limites tradicionais da disciplina reposicionando o arquiteto
no cenário político contemporâneo [Cançado, 2008].
Não se trata de acreditar que o arquiteto seja capaz de
promover uma transformação radical da macroestrutura da sociedade,
mas de pensar formas de exercer a arquitetura capazes de fissurar os
mecanismos que sustentam essa macroestrutura viabilizando uma
prática emancipatória voltada para a massa de excluídos que hoje
ainda corresponde à grande maioria da sociedade nos países da
América Latina.
2_PRÁTICAS DISRUPTIVAS conexões entre projetos e os meios de circulação dos discursos em
arquitetura, considerados como as publicações especializadas, as
Pensar outras maneiras possíveis de fazer arquitetura requer
exposições e as premiações.
uma investigação de experiências concretas, pois é na prática que a
A partir da pesquisa conhecemos os trabalhos de alguns
arquitetura se materializa e onde os desafios, as respostas e as
coletivos de arquitetos equatorianos como Natura Futura, e o próprio
contradições se evidenciam. Assim, optei por partir da investigação de
caráter colaborativo da atuação dos coletivos, frequentemente
uma obra construída para então debater as narrativas que vêm sendo
realizando parcerias, nos levou a outros coletivos como Al Borde,
construídas sobre práticas disruptivas na arquitetura da América Latina.
Frontera Sur, ESEcolectivo, El Sindicato, Taller General. O filme

2.1_Ensusitio Arquitectura
Ao longo da investigação dos projetos finalistas do prêmio
Oscar Niemeyer [ON] evidenciou-se um protagonismo de arquitetos do
Equador na articulação latino-americana e no desenvolvimento e na
divulgação de práticas não-convencionais na arquitetura atualmente. CHICAGO
PARIS

Em primeiro lugar, devido ao fato de Quito, capital do Equador, realizar, CIDADE DO MÉXICO

desde 1978, uma bienal panamericana de arquitetura, onde foi criada


QUITO
a RedBAAL, em 2012, e onde ocorreram as três cerimônias de prêmio
SÃO PAULO
ON já realizadas. Além disso, a sede da RedBAAL está situada no
BUENNOS AIRES
Colégio de Arquitetos do Ecuador e o atual diretor da RedBAAL, Handel
Guayasamin, é um arquiteto equatoriano. Dessa maneira, Quito tem
representado um importante nó na rede de integração das narrativas
sobre a arquitetura na América Latina, conforme pode ser visto no
cartograma apresentado adiante. Esse cartograma foi elaborado no _rede narrativas latino-americanas
obras finalistas do prêmio Oscar Niemeyer [2016-2020] conectadas aos locais onde
âmbito da pesquisa desenvolvida junto ao NALA e representa as foram divulgadas [publicações | exposições | premiações]. [Elaborado pelo autor]
documental Hacer Mucho com Poco [2017], produzido por Al Borde,
retrata muito bem o estado da arte da atuação desses coletivos de
jovens arquitetos que estão transformando a prática da arquitetura na
América Latina e recebendo atenção internacional. E foi ai que
descobrimos o trabalho do ateliê Com lo Que Hay, desenvolvido na
Pontifícia Universidade Católica do Equador [PUCE] e do coletivo
Ensusitio Arquitectura.
Esse trabalho chamou atenção devido a sua atuação na
formação de arquitetos no âmbito da universidade, rompendo seus
muros e levando suas práticas para o enfrentamento de problemas
reais, com a proposta de elaboração de respostas que são de fato
implementadas. Uma das premissas desse grupo é a realização das
_atelier Con lo que hay
intervenções “con lo que hay em su sitio”, em conjunto com imagens dos trabalhos realizados no âmbito do atelier Con lo que hay
[Fonte: http://ensusitioarq.com/con-lo-que-hay.html]
comunidades organizadas em todas as partes do território da periferia
dos grandes centros urbanos às comunidades indígenas e cacaueiras Por esses motivos me interessei por analisar o trabalho do
do interior do país. Desde 2016 já foram realizadas 20 edições do ateliê, coletivo Ensusitio, como base para o aprofundamento de uma
cada um consistindo numa intervenção no território, além de outros investigação a cerca dessas práticas e suas narrativas. E assim como
projetos autônomos e oficinas de extensão realizadas pelo escritório vínhamos fazendo na pesquisa desenvolvida previamente, seria
Ensusitio, que atua desde 2001. Isso nos oferece um leque de opções fundamental partir da análise da obra para então compreender de que
de experiências para serem analisadas. Além disso, a atuação maneira as narrativas se materializam enquanto arquitetura de fato. E a
sistemática dentro da universidade significa uma influência importante partir de uma análise preliminar, a obra intitulada La Casa de Meche
na formação de arquitetos dessa geração no país, algo que deverá parecia reunir um conjunto bastante representativo dos elementos que
reverberar no futuro breve com ainda mais intensidade. caracterizam o trabalho desenvolvido pelo Ensusitio e assim essa obra
foi selecionada como objeto de estudo para este trabalho. Dentre esses
elementos, destaco o enfrentamento de um problema real emergente por eles, por corroborarem os aspectos que levaram a sua escolha
beneficiando uma população e especialmente uma pessoa das mais como objeto de pesquisa. Três pontos sintetizam esse relato. O
vulnerabilizadas, a participação da comunidade, a inserção dos primeiro é a peculiaridade das práticas que vem sendo desenvolvidas,
estudantes, a colaboração da universidade e de outras organizações, especialmente por arquitetos do Ecuador, que as distinguem de outras
o material didático elaborado e a certificação da universidade. E arquiteturas de caráter público ou social e que também foram destaque
posteriormente, como viemos a descobrir, o processo de nas últimas décadas. Enrique começa sua explanação apontando a
concretização da obra resultou em uma publicação premiada na Bienal influência que os projetos urbanos realizados em Medelín, na
de Arquitetura de Quito, em 2020, corroborando a relevância desse Colômbia, e que foram muito bem recebidos e divulgados regional e
trabalho para os evolvidos e o reconhecimento de sua importância internacionalmente, exerceram sobre a sua geração de arquitetos
perante a comunidade de arquitetos. equatorianos, e provavelmente por toda a América Latina. No entanto,
Além da investigação da obra a partir de seus registros já os processos que ocorreram em Medelín tiveram um grande
publicados, foi realizada uma conversa por videoconferência com os protagonismo e participação estatal principalmente na disponibilização
arquitetos Enrique Villacís e Cynthia Ayarza – representantes do de recursos, o que não ocorreu no Equador. Por esse motivo, na visão
coletivo Ensusitio -, em novembro de 2022, a fim de conhecer melhor de Enrique, as práticas arquitetônicas que se desenvolveram na
o trabalho desenvolvido por eles, o processo de realização da Casa de Colômbia caracterizaram-se mais por processos fomentados pela
Meche e o contexto em que essas práticas estão acontecendo. Assim, competição entre arquitetos através dos concursos públicos, projetos
este trabalho se desenvolverá a partir da análise da obra Casa de realizados nos grandes centros urbanos e de magnitudes equivalentes
Meche, bem como dos processos e contexto em que esta se a disponibilidade de recurso estatal.
desenvolve, para uma articulação com conceitos e análises de outros Enquanto isso, no Ecuador não houve um movimento em que
pesquisadores que buscaram compreender práticas e narrativas houvesse recursos públicos para realizar os projetos de interesse
similares, complementando com os comentários extraídos da conversa público, então o que houve foi “pura colaboração”. E os projetos foram
com os arquitetos. principalmente obras privadas, como moradias e equipamentos
Nesse sentido, é relevante destacar o relato dos arquitetos comunitários. E por isso era preciso ser criativo, de maneira que os
sobre o histórico e o contexto em que se dá o trabalho desenvolvidos projetos fossem os mais econômicos possíveis para que pudessem ser
de fato construídos. De acordo com Enrique, um dizer popular resume
bem as condições nas quais tais projetos vêm se desenvolvendo no
Equador: “Quanto ao dinheiro não se preocupe por que não há”. Essa
condicionante de escassez de recursos portanto é o que estimulou o
desenvolvimento de processos mais colaborativos e inventivos, e
assim em suas sinceras palavras:
Jose Maria Saez
“Eu considero que a arquitetura equatoriana, dentro dessa visão
de construir um bem comum, desde um enfoque bastante
ambiental e social, é uma das melhores arquiteturas do mundo.”
[Villacís, 2022 - entrevista]

Isso nos leva ao segundo ponto, no qual evidencia-se a


consolidação de uma expressiva rede de arquitetos no Equador, onde
a colaboração manifesta-se tanto na formação de coletivos quanto na
realização de trabalhos em conjunto com outros arquitetos e coletivos,
regional e internacionalmente. Enrique conta um pouco sobre a
influência do professor Jose Maria Saez, importante arquiteto de
origem hispânica radicado no Equador, que organizava o Taller
Experimental, e sua experiência de trabalho com arquitetos que
posteriormente vieram a constituir outros coletivos como Al Borde e
Natura Futura, com os quais continuam colaborando até hoje.
Por fim, destaco o terceiro ponto que é o fato de Enrique e
Cynthia focarem seu trabalho na formação de arquitetos dentro da
universidade, e assim constituindo um importante nó nessa rede _rede de parcerias do Ensusitio
diagrama esquemático da rede de relações entre arquitetos e coletivos de arquitetos
equatoriana. Nesse sentido, Enrique e Cynthia relatam que alguns dedicados a desenvolver outras formas de fazer e ensinar arquitetura
[Elaborado pelo autor]
arquitetos e arquitetas que hoje constituem coletivos destacados que
realizam esse tipo de práticas passaram pelo ateliê Con lo que hay, E isso nos leva a outra premissa fundamental, sistematicamente
como El sindicato e Taller General, este inclusive realizando trabalhos repetida em seus discursos, que é o compartilhamento.
em colaboração com José Maria Saez. Compartilhamento de saberes, compartilhamento de
A partir dessa contextualização Enrique e Cynthia contam um responsabilidades, compartilhamento de recursos, compartilhamento
pouco sobre o que consideram como premissas ou aspectos de decisões, e também compartilhamento dos resultados. Enrique e
fundamentais do trabalho desenvolvido por eles. Em primeiro lugar, Cynthia contam como se dá sua prática pedagógica com os alunos, na
“Não é uma arquitetura baseada em produtos e sim baseada em qual o ponto de partida com os estudantes não é o projeto, é uma
processos.” [Villacís, 2022 - entrevista]. Por isso o enfoque não está na pergunta muito pessoal: “o que você quer fazer este semestre?”. A
divulgação das obras, ou na participação em concursos, mas sim na partir dessa pergunta individual os estudantes devem chegar a uma
formação de sujeitos – arquitetos e cidadãos – mais conscientes e resposta e uma proposta de atuação coletiva, cuja formulação é
ativos na construção do espaço comum. Essa fala é interessante pois compartilhada por todos. Esse processo faz com que os estudantes
vai ao encontro de uma percepção que já havíamos tido ao longo da vão muito além da preocupação com sua avaliação e estabeleçam um
pesquisa, inclusive no discurso de outros atores, o que parece ser desafio pessoal, e os professores então se convertem em seus
fundamental para compreender o diferencial dessas práticas. assessores. Essa é a chave emancipatória de empoderamento de
Outra premissa bastante destacada na conversa é o qualquer processo realizam.
empoderamento, tanto de estudantes quanto das populações das
É vida real, e aterrizar em tudo que isso implica. Depois da
comunidades em que atuam. Um empoderamento que só é possível primeira aula os estudantes estão no comando. E depois
justamente em função do enfoque do trabalho estar no processo e não retornamos aos acordos que eles mesmos estabeleceram. E é
assim que aprendem a trabalhar com a comunidade que vão
no produto, já que o empoderamento se dá mediante as relações que trabalhar. É o mesmo processo: “o que vocês necessitam
se estabelecem e as responsabilidades que se compartilham ao longo realmente?”. E a partir disso fazer o justo e o necessário, não mais
que isso, e com os recursos que estão à mão. [Ayarza, 2022 -
de um processo no qual a participação é fundamental. E conforme entrevista]
frisado pelos arquitetos, esse empoderamento é essencial como
Assim se deu o processo desenvolvido na casa da Meche, que
processo de emancipação, de maneira que os participantes não se
iremos analisar em detalhes a seguir.
tornem dependentes, distinguindo-se de uma atuação assistencialista.
La Casa de
Meche

[Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
FICHA TÉCNICA
Certificação FADA – PUCE
Local Pedro Carbo - Esmeraldas, Eqcuador
Sylvia Jimenez [Decana FADA] Giada Lusardi [Directora Vinculación]
Data 2016- 2017
Sistematização
Lorena Rodríguez com apoio gráfico de Jaire Cagigal, Carla Flores,
Categoria Atelier de construção e casa familiar
Juan Pablo García
Status Construindo e aplicando conhecimientos
https://ensusitioarq.com/casa-meche.html
Equipe Desenho e oficina
ENSUSITIO [Cynthia Ayarza Lorena Rodríguez]
Enrique Villacís [PUCE]

Residentes de obra
[PUCE] Jaire Cagigal, Carla Flores, [PACARI] Carla
Barbotó, Santiago Peralta, Gabriela Paredes, [COPADE]
Basilio RodrÍguez

Engenharia estrutual e assesoria com terra


Ing. Patricio Cevallos

Participantes
Olmedo Castro, Reina Briones, Yasmani Castro, Alicia
Cevallos, Denis Cevallos, Mery Castro, Mariuxi Mercedes
Cevallos, Manuel Cruz, Efrén Leones, Mariano Vazquez,
Linder Zambrano, Argentina
Esmeralda.

Encarregados da construção
Yasmani Castro, Efrén Leones, William Leones

Voluntarios
Juan Pablo García, Joanna Kilp, Michelle Em, Ximena
Gutiérrez
2.2_La Casa de Meche antes em 2014. Desta vez, o trabalho se desenvolveu através de um
curso de extensão certificado pela FADA-PUCE, intitulado Oficina de
La Casa de Meche é uma
Boas Práticas de Construção Local, e realizado entre fevereiro e
habitação unifamiliar construída para
novembro de 2017.
uma família que perdeu sua casa após
os eventos causados pelo terremoto
que atingiu o Equador em 2016. A
Meche é uma mulher da região de
Pedro Carbo – Esmeraldas, no Equador.
A família é composta pela Meche, suas _atores na construção da casa da Meche
[Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
5 filhas e dois netos.
O convite para a colaboração do ateliê Ensusitio na
reconstrução da casa de Meche foi feito pela empresa de chocolates
Na conversa com Enrique e Cynthia, estes relataram com mais
PACARI. Uma empresa de chocolates fundada em 2002, no Equador,
detalhes as questões que antecederam a organização da oficina e
com o objetivo de produzir chocolate de alta qualidade para
alguns pontos são relevantes para compreender com mais
exportação, baseado no respeito aos “princípios da mãe natureza”, em
profundidade a sua forma de atenção. O terremoto teve consequências
“práticas orgânicas”, no “comércio justo” e na valorização dos
devastadoras sobre o território, principalmente nos centros urbanos
“saberes ancestrais”. A empresa desenvolve projetos de apoio,
onde houve muitas mortes e, também onde se concentrou a ajuda
capacitação e valorização dos produtores e da cultura das
estatal. Nas áreas rurais as consequências foram menos fatais e, de
comunidades cacaueiras, através de um programa de agroturismo
acordo com Enrique e Cynthia, essas populações têm maior resiliência
chamado de Ruta del Cacao Pacari. A empresa e o Ensusitio já haviam
devido a sua maior capacidade e meios para reconstruir, já que estão
realizado uma parceria anterior na Comunidade Kichwa Amazônica de
acostumadas a usar os recursos, como madeira e bambu, e o saber
Santa Rita, para construção da Cabaña del Cacao, através do Ateliê
que dispõe para construir suas casas. Nas áreas periurbanas, no
Com lo que hay, ligado à Facultade de Arquitetura, Desenho y Artes da
entanto, as populações muitas vezes perderam a sua autonomia
Pontifícia Universidade Católica do Equador [FADA-PUCE], três anos
construtiva, “se esqueceram do bambu, se esqueceram da terra, se comunidade. A pessoa nessa situação era Meche, uma mulher solteira
esqueceram da madeira”, e passaram a construir com blocos de uma que cuidava sozinha de cinco filhas e duas netas, com seu oficio de
maneira convencional urbana. Como consequência, houve muitas cabeleira, e havia perdido mais uma vez a casa em que morava, e onde
perdas e mortes, ao mesmo tempo em que a capacidade de auto- também exercia seu trabalho. Além disso, ela corria o risco de perder
reconstrução estava comprometida e pouca ajuda chegou a esses a guarda de uma de suas filhas, caso não demonstrasse ao estado ter
lugares. Por esse motivo decidiram atuar nessas áreas, onde capacidade de sustentá-la. Apesar dessa situação, Meche não pode
encontravam-se as populações mais excluídas. ser considerada apta a receber uma das casas construídas pelo
Além disso, quando receberam o convite da PACARI para Ministério da Habitação, pois o seu terreno encontrava-se em uma
ajudar na reconstrução das casas de alguns agricultores, já nos dias encosta e os protótipos não estavam projetados para adaptar-se às
seguintes ao evento, a primeira decisão dos arquitetos foi de não agir condições do terreno [Villacís, Rodriguez & Ayarza, 2020].
naquele momento. Pois, segundo eles, aquele seria o momento da A capacidade de Meche se recuperar daquela tragédia
ajuda emergencial, que, além de precisar ser feita por pessoas enfrentando as dificuldades de acumular a responsabilidade de
especializadas em resgate e com capacidade para levar os cuidado da família, geração de renda para seu sustento e reconstrução
suprimentos básicos necessitados, seria muito difícil desenvolver as de sua casa, sem o apoio do Estado, era quase impossível. Porém a
práticas com as quais vinham trabalhando, compromissados com a ajuda que os arquitetos do Ensusitio estavam oferecendo também não
formação e a geração de processos emancipatórios. E a decisão do
que fazer e como fazer veio após alguns dos arquitetos e estudantes
percorrerem o território ajudando na distribuição de filtros de água para
as populações atingidas, em uma atividade promovida pela PACARI.
Essa peregrinação permitiu que a equipe do Ensusitio compreendesse
melhor as necessidades das populações e as suas possibilidades de
ação. Nesse momento, decidiu-se então por realizar uma atividade do
atelier que deveria beneficiar a pessoa mais vulnerável e necessitada
_situação da Meche após o terremoto
naquela situação, mas ao mesmo tempo deveria envolver toda uma [Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
seria como a ajuda do Estado, que reconstruía casas padronizadas no
menor tempo possível, com técnicas e recursos todos de fora,
deixando apenas o objeto construído como legado. A proposta do
Ensusitio se baseava primordialmente no processo, cujo resultado
poderia levar muito mais tempo, porém tinha como premissa o
empoderamento dos sujeitos e o envolvimento de toda a comunidade,
deixando como legado muito mais do que um objeto construído.
“Sabíamos que o importante não era o produto mas o processo. O
importante não era construir mas saber onde e como construir.”
[Villacís, 2022].
Recinto Pedro Carbo

Meche
A OBRA

Com relação ao objeto arquitetônico em si, ou seja, aquilo que


configura o espaço e compõe a paisagem independente da atividade
humana, mas ao mesmo tempo como resultado desta, poderíamos
descrever a Casa de Meche sucintamente, da seguinte maneira.
A edificação possui uma fundação em concreto armado, com
nove sapatas posicionadas sobre um terreno com alta declividade,
amarradas por uma viga baldrame de forma que o primeiro pavimento
esteja ligeiramente abaixo do nível da rua, que está situada na parte
mais alta do terreno. Sobre a fundação apoia-se um assoalho de
tábuas madeira e ergue-se uma estrutura do tipo gaiola em bambu
guadua, com vedações em blocause 6, taipa de mão e uma espécie de
gelosia de ripas de bambu dispostas de diferentes maneiras, de forma
a controlar a permeabilidade visual, a luminosidade e a ventilação. As
paredes das fachadas voltadas para leste e oeste, onde a incidência
do sol é mais intensa, são de taipa, pois o barro confere maior proteção
térmica. Já na direção norte e sul utilizou-se principalmente o pau a
pique e a gelosia de bambu, na fachada voltada para a rua, permitindo
a circulação cruzada do ar e permeabilidade visual com rua. As janelas
são do tipo basculante e construídas manualmente com sarrafos de
madeira e ripas de bambu.

_elevações
6Variação do pau-a-pique na qual as ripas são dispostas na horizontal, e não na vertical, de vistas de frente [abaixo] e fundos [acima]
[Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
acordo com Weimer, G. [2012].
A cobertura também é estruturada em bambu guadua e coberta configurações do espaço. Além disso, uma extensão do piso em
por telhas de fibrocimento/alumínio, por onde realiza-se a captação da solocimento em direção à rua, apoiado sobre uma fundação de
água da chuva. A coleta da água do telhado evita a erosão do solo no mamposteria [tipo de alvenaria rústica de pedras], forma uma varanda
entorno da edificação e o seu armazenamento permite sua utilização de cerca 3,5 metros de largura ao longo de toda a fachada sul de frente
no banheiro e na cozinha. para rua. O pé direito alto, de cerca de 6 metros, além de favorecer o
A volumetria é simples e ao mesmo tempo flexível e funcional. conforto térmico, permitiu a construção de um mezanino, que pode vir
Os nove pilares que formam a base, dividem o espaço interno em a ser expandido conforme a necessidade dos moradores formando um
quatro ambientes, de aproximadamente 4 x 4,5 metros, dispensando segundo pavimento.
espaços exclusivos para circulação e possibilitando diferentes

_corte e elevação
vistas oeste [esquerda] e leste [direita]
[Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
_plantas
Primeiro pavimento [esquerda] e mezanino [direita]
[Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
O PROCESSO como o bambu, além de serem de fácil compreensão e reprodução.
Isso fica evidente na incorporação da malha de aço na taipa de mão, o
No entanto, mais do que o objeto arquitetônico propriamente
uso do concreto e do vergalhão nos encaixes de bambu, bem como a
dito, nos interessa aqui compreender a arquitetura como construção,
utilização de produtos químicos no seu tratamento e no acabamento
como ação que articula os indivíduos para a transformação do espaço,
das paredes com terra. A organização do espaço em função da direção
da paisagem e de suas próprias vidas. Como Enrique e Cynthia
do sol e dos ventos e da relação visual com o entorno, a captação de
repetiram muitas vezes em nossa conversa, “o importante não é o
água da chuva, dentre outras tecnologias, também são claras
produto, mas o processo”.
contribuições de um saber arquitetônico especializado, mas de fácil
Uma análise atenta do objeto, que é produto de um
assimilação e utilização popular.
determinado processo construtivo, pode revelar alguns aspectos
Um aprofundamento da análise desse tipo de fazer
desse processo como o emprego de materiais locais e de técnicas
arquitetônico deve considerar também a narrativa elaborada e
artesanais tradicionais de comunidades rurais da américa latina,
publicada pelos atores envolvidos, além de outros aspectos como
apontando para um fazer coletivo e cooperativo de pessoas sem
veremos adiante. Nesse sentido, um ponto fundamental do trabalho
formação ou experiência técnica em construção civil necessariamente.
empreendido pelo coletivo Ensusitio evidencia-se na introdução da
Contudo, a combinação dessas práticas com tecnologias de caráter
descrição de La Casa de Meche em seu sítio eletrônico:
mais científico-industriais, como a fundação em sapatas de concreto
armado, revela uma associação entre saberes tradicionais empíricos e “Quando nos perguntamos a melhor forma de contribuir para a
reconstrução após o terremoto de abril de 2016, tínhamos claro
conhecimento científico. Tal associação de práticas não se dá de que não deveríamos construir por construir e que o melhor
maneira excludente ou imiscível, já que as tecnologias de base suporte é a transferência de conhecimento.” 7

científica utilizadas são adequadas ao fazer artesanal, à moldagem in Tal afirmação evidencia um ponto fundamental de disrupção no
loco e à adaptação às irregularidades do terreno e de materiais naturais fazer arquitetônico convencional onde o arquiteto utiliza seu saber e

7 Traduzido do espanhol pelo autor. Texto original: “Cuando nos planteamos la mejor manera

de aportar a la reconstrucción después del terremoto de abril de 2016, teníamos claro que no
debíamos construir por construir y que el mejor apoyo es la transferencia de conocimiento.”
[Disponivel em http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
sua técnica de forma a exercer um certo poder sobre o projeto.
Portanto projetar compartilhando seu conhecimento e sua técnica,
poderia ser considerado praticamente o avesso da prática profissional
convencional. Na conversa com os arquitetos, estes mencionaram
diversas vezes e com muita ênfase a importância de compartilhar não
só experiências, técnicas e saberes, mas também a tomada de
decisões, as responsabilidades e os resultados.
_compreendo a problemática
A primeira etapa do trabalho consistiu em uma oficina de Meche com a família [esq.] e outros participantes da oficina [dir.]
durante a parte de compreensão da problemática da oficina
diagnóstico, na qual participaram os arquitetos e a comunidade onde [Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]

seria realizada a construção, incluindo a família da Meche e seus casa. Dessa maneira rompeu-se com a habitual prática do arquiteto
vizinho, que também tinham tido suas casas danificadas pelo terremoto que chega com as respostas para um dado problema e buscou-se
e se dispuseram a participar da oficina e ajudar na reconstrução da envolver a comunidade na sua resolução.

_’porque as casa caíram?”


diagrama representativo das causas do desabamento das casas
[Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
A primeira pergunta colocada para o grupo foi “porque nossas loja de materiais de construção mais próxima, e são importantes pois
casas caíram?”, ao invés de “como se constrói ‘corretamente’ ou como conferem resistência e durabilidade para a construção. A fundação em
se constrói uma casa resistente a movimentos sísmicos?”, o que concreto armado confere a estabilidade suficiente para a ocupação da
representaria uma abordagem de cima para baixo, uma imposição de encosta e a resistência aos abalos sísmicos, possibilitando a
conhecimento que desconsidera qualquer forma de conhecimento sobreposição de uma estrutura em terra e bambu para a confecção do
imanente. Tal pergunta levou a comunidade a refletir sobre o seu restante da casa.
próprio entendimento da realidade e sobre as práticas construtivas e Contudo a experiência empírica dos moradores da comunidade
os modos de ocupação do espaço tradicionalmente empregados, mas os fazia desacreditados das possibilidades de construção com os
também contribuiu para que os próprios arquitetos entendessem que materiais locais, e conforme relatado, alguns vizinhos diziam a Meche
decisões foram tomadas na construção das casas da comunidade que que a casa feita com bambu e terra iria cair novamente, e que ela
as tornaram suscetíveis aos efeitos do terremoto. Dessa maneira, deveria construir com blocos. Ao longo do processo de projeto, que
poderíamos dizer que o fundamental já está feito, pois a envolveu a elaboração de desenhos, maquetes e protótipos, os
autoconstrução já é a forma usual de construção de moradias daquela moradores foram compreendendo a importância do tratamento
comunidade e seguirá sendo, portanto, a intervenção deve ser adequado do bambu para sua durabilidade, da utilização das
emancipatória. diagonais e do concreto nos encaixes para o travamento da estrutura
A etapa de diagnóstico seguiu-se ainda com o entendimento e da aplicação de resina sobre a face externa das paredes de terra:
das especificidades do local, do entorno e das necessidades da família
“Eu já construí com bambu, mas com o tempo racha, não serve
moradora. A partir daí foram definidos os materiais a serem utilizados, para estrutura”, comenta um responsável pela oficina.
com base naquilo que está disponível no local ou que seria acessível Compartilhar o processo de compreensão da importância das
diagonais e do uso do concreto nas junções dá segurança e
aos moradores tanto do ponto de vista financeiro como logístico. Assim
combinou-se o cimento, o vergalhão, a areia, a pedra, a terra, a
madeira, o bambu e a fibra de coco. Alguns desses materiais podem
ser encontrados em sua forma natural no próprio local, de maneira que
seu uso e reposição é barato e sustentável, outros estão disponíveis na
confiança para demonstrar que o bambu bem usado funciona vez rompendo um padrão de habitação popular no qual a atividade
como estrutura.” 8
produtiva é completamente apartada da moradia e esta é inflexível de
Nesse caso, o componente prático concreto no processo de dimensões imutáveis resultando em alterações posteriores totalmente
projeto mostrou-se fundamental para dar credibilidade às propostas alienígenas. O primeiro aspecto já foi descrito anteriormente e se refere
dos arquitetos, pois era necessário romper com o senso comum de aos diferentes arranjos possíveis dos cômodos e de sua ampliação
que as técnicas tradicionais têm valor menor frente aos materiais interna em um segundo pavimento. O segundo aspecto é a adequação
industrializados e às técnicas modernas. da varanda como espaço de transição entre o público e o privado

Outras decisões de projeto resultantes desse processo de possibilitando à moradora que é cabelereira montar o seu próprio salão

entendimento das necessidades atuais e futuras dos usuários, que não de beleza, conciliando o cuidado da casa, das filhas e netos com a

seria possível sem a colaboração ativa dos mesmos e um ouvido atento geração de uma renda.

dos arquitetos, são a concepção de uma configuração flexível e


mutável do espaço e a incorporação de um espaço adequado para o
desenvolvimento de uma atividade produtiva dentro da casa, mais uma

_projeto participativo _diagramas de concepção da casa


participação da Meche, família e comunidade no processo de projeto [Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
[Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]

8 Traduzido do espanhol pelo autor. Texto original: “ ’Yo si ha construido con caña pero con el
tiempo se rompe, no sirve para estructura’, menciona un tallerista. Compartir el proceso de
entender la importancia de las diagonales y el uso del hormigón en las uniones brindan
seguridad y confianza para demostrar que la caña bien utilizada si funciona como estructura.”
[Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
As etapas de diagnóstico e desenho que desencadearam o espaço de aprendizado e projetação permanente, onde predominam
trabalho foram realizadas na primeira oficina em fevereiro, outras nove as trocas orais, a sensibilidade táctil, a adaptação visual, a observação
oficinas foram realizadas ao longo de todo o ano, nas quais se climática, dentre outros fatores que costumam ser ignorados pelo
desenvolveu a construção da casa efetivamente. Isso significa trabalho convencional do arquiteto.
sobretudo que o papel dos arquitetos não se limitou à abstração do Por exemplo, o uso do barro para construção depende das
desenho desconectado do processo de construção e da efetivação do características locais, pois cada solo apresenta suas particularidades
resultado concreto para a comunidade. Considerando que essa que podem indicar as potencialidades, limitações e necessidades de
atividade está inserida no âmbito da universidade, podemos considerá- preparo para sua utilização. A sua análise pode ser feita por métodos
la uma oportunidade singular na formação de arquitetos, até mesmo científicos em laboratório dependo da sua aplicação, mas também
para os cursos que possuem algum tipo de canteiro experimental onde pode ser realizada no canteiro através de elementos tácteis e visuais.
se desenvolvem atividades práticas. Construir de fato uma casa desde No local da casa da Meche, foi identificado um solo argiloso com boas
a fundação certamente não é algo comum nos cursos de graduação características para a construção requerendo menos cimento na sua
em arquitetura, e provavelmente até mesmo entre arquitetos formados aplicação.
que em geral limitam-se a execução de atividades intelectuais, como o Para a colheita do bambu foi observada a fase da lua e o
desenho, ou quando se envolvem na obra atuam como gerentes ou período do dia mais adequado, a fim de garantir uma melhor qualidade
supervisores dos trabalhadores braçais. Nesse sentido, lidar com desse material. Essa prática é muitas vezes de conhecimento popular,
limitações construtivas reais, sejam estas financeiras ou técnicas, e dentre aqueles que tem por tradição a utilização desse material, mas
com as necessidades reais da sociedade, em especial daqueles que há também um saber científico que corrobora esse entendimento,
enfrentam maiores dificuldades dada a situação econômica e social, capaz de explicar por que isso acontece, e, portanto, estes tornam-se
deve representar um diferencial significativo na formação desses complementares. O tratamento do bambu por imersão em uma
profissionais. solução química, utilizado na oficina, também corrobora essa
Considerando o caráter artesanal desse tipo de projeto, em que complementação entre saber científico e popular para o
os materiais são irregulares e o seu preparo e manipulação muitas aperfeiçoamento de práticas vernaculares:
vezes dependem de fatores naturais, o canteiro torna-se também
“Olmedito (cacaueiro e oficineiro) contava que sempre levou as vizinhos era importante manter um tecido que lhes fosse mais
varas de bambu da sua fazenda até Pedro Carbo pelo estuário, familiar.” 10
mas que não sabia que deixando as varas submergidas na água
salgada por alguns dias curava o bambu, e foi assim como
trataram o bambu usado na casa.” 9
O LEGADO
Além disso as peças de bambu são extremamente irregulares e
difíceis de serem regularizadas, isso implica que cada peça a ser A construção de um lugar para Meche e sua família morarem é

posicionada demandará uma adaptação em relação ao que está no sem dúvida um grande legado da oficina de boas práticas construtivas

desenho. Um bom exemplo disso está no relato sobre a definição do realizada pelo Ensusitio. Uma atividade da universidade atingir esse

padrão a ser utilizado na disposição das ripas de bambu para feito é por si só um fato destoante, dado a sua característica teórica

construção da gelosia da fachada da frente. Se observarmos bem, o intrínseca com seu foco principal na formação e na produção de

que está nos desenhos técnicos apresentados está diferente do conhecimento. Não à toa, frequentemente nós pesquisadores e

construído que pode ser visto nas fotos. Além disso está registrado na estudantes ouvimos o descontentamento de integrantes das

narrativa sobre o projeto que no canteiro houve uma proposta dos populações estudadas em relação à falta de retorno para as

arquitetos que começaram a tecer as ripas de uma maneira a comunidades após a realização de atividades de pesquisa ou ensino.

semelhança de um ninho, mais aleatória, mas os participantes da Na grande maioria das vezes, vai-se a campo para levantar dados

oficina optaram por um padrão de tecido que fosse mais familiar. É sobre um dado problema, porém se recolhe nos muros da

interessante observar, para além do fato em si, o destaque dado no universidade para a análise do problema e a proposição de soluções

relato sobre o projeto, enfatizando a troca, o compartilhamento das sem qualquer participação dos analisados. Ou ainda, com o

decisões e a fusão entre desenho e canteiro: desenvolvimento de atividades de extensão e divulgação científica,
limita-se a oferecer um conhecimento teórico que nem sempre possui
“No processo de trançagem do bambu (ninho) foram propostas
diferentes formas de traçar, a ideia era tornar visíveis as
possibilidades que este material dá, porém para Meche e os

9Traduzido do espanhol pelo autor. Texto original: “Olmedito (cacaotero y tallerista) contaba 10 Traduzido do espanhol pelo autor. Texto original: “En el proceso de entramado de cañas

que siempre han pasado las cañas desde su finca por la ria a Pedro Carbo, pero que no sabían (nido) se plantearon diferentes formas de tejer, la idea era hacer visible las posibilidades que da
que dejando las cañas sumergidas en el agua salada por unos días curaban la caña, fue así como este material, sin embargo para Meche y los vecinos era importante mantener un tejido que les
se trataron las cañas para la casa.” [Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html] sea más familiar.” [Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
uma aplicabilidade pratica ou cuja aplicação esbarra nas dificuldades comunicação gráfica. A chave está na utilização dessas habilidades
materiais para sua implantação. como catalisadoras de processos construtivos coletivos
Entretanto, não se pode incorrer no cenário oposto em que se emancipatórios. A sistematização e o registro das técnicas construtivas
entrega uma resposta como se fosse uma mercadoria, que aterriza no utilizadas na Casa da Meche através de desenhos diagramáticos de
território sem o envolvimento da comunidade, em uma atitude fácil compreensão, são um exemplo de como o ‘desenho de
assistencialista. Como relatado por um dos participantes da oficina: arquitetura’ pode contribuir para a troca de ideias no canteiro e a

‘’ Com outros projetos não se deixou nada aqui. A casa que


difusão de conhecimento. A elaboração e a distribuição de um caderno
construíram ao lado foi construída rapidamente, mas os bambus, contendo tais desenhos e informações sobre as técnicas construtivas
os mestres, tudo foi trazido pelo engenheiro, deixou a casa feita,
utilizadas, são outro importante legado da oficina para a comunidade.
mas nada ficou no nosso bairro.’ [Yasmani Castro]" 11
E o caderno é apenas a materialização do aprendizado gerado através
Retomamos então a afirmação de que “o melhor suporte é a
da prática e das trocas orais transcorridas ao longo da oficina, mas que
transferência de conhecimento”, que pode se dar em uma via de mão
contribui como suporte para a continuidade da difusão desse
dupla entre teoria e prática, academia e comunidade, conhecimento
conhecimento de forma autônoma pelos participantes da oficina.
científico e saber popular, trabalhador intelectual e trabalhador manual,
O certificado concedido, pela universidade, aos participantes da
e assim por diante. A oficina de Boas Práticas Construtivas realizada
oficina, é significativo devido ao benefício prático que este proporciona,
para a construção da Casa da Meche, parece conseguir colocar em
conforme apontado na descrição do projeto, mas também pelo valor
prática uma práxis arquitetônica que rompe com o ideal do arquiteto
simbólico que a chancela da universidade representa na sociedade:
desenhador genial detentor de todo o conhecimento necessário para
a solução dos problemas espaciais da sociedade. Contudo, de forma “Para quem fez parte da oficina, ter um certificado da Pontifícia
Universidade Católica que atesta seu aprendizado significa abrir
alguma isso tira o mérito da capacidade do arquiteto de abstração a possibilidade de futuros empregos na construção civil e garante
espacial, de cálculo estrutural, de manipulação da matéria e de a quem os contrata conhecimento de técnicas como a taipa e o
bambu em estrutura, alvenaria e janelas .” 12

11Traduzido do espanhol pelo autor. Texto original: “ ‘Con otros proyectos nada se ha quedado 12 Traduzido do espanhol pelo autor. Texto original: “Para quienes fueron parte del taller, contar

aquí. La casa que construyeron alado se hizo rápido, pero las cañas, los maestros, todo lo trajo con un certificado de la Universidad Católica que certifica sus aprendizajes significa abrir la
el ingeniero, dejó hecha la casa, pero nada se quedó en nuestro barrio.’ [Yasmani Castro]" posibilidad de futuros trabajos en la construcción y garantiza a quienes les contraten un
[Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
A certificação da universidade representa um reconhecimento e Ojos en la casa de Meche, lançado em março de 2020 às vésperas da
um aval institucional, acadêmico, científico em relação a essa prática pandemia de COVID-19. De acordo com seu relato essa publicação
arquitetônica, a seus métodos pedagógicos e a sua maneira de ampliou o alcance do seu trabalho, estabelecendo redes para além do
inserção na sociedade, rompendo com a dicotomia entre saber âmbito da arquitetura, despertando o interesse principalmente da
científico e saber popular e com a segregação entre produção de engenharia e levando-os a participar de conferências com a presença
conhecimento, ensino e transformação da sociedade. Principalmente de engenheiros de grandes escritórios responsáveis por obras grandes
para os moradores da comunidade, contar com um certificado da magnitudes e disponibilidade de recursos. No entanto, o livro foi
universidade, nesse sentido, é mais do que um incremento no publicado apenas em formato impresso pela editora da PUCE e não
currículo, e pode contribuir para o autorreconhecimento desses está disponível para venda no Brasil, evidenciando algumas limitações
sujeitos como cidadãos, para quem o acesso à universidade é à integração da rede latino-americana.
historicamente um fator de distinção social.
_ Ojos em la casa de Meche
Além disso, conforme relatado por Cynthia e Enrique, a casa da capa do livro
[org.: Villacís, Rodriguez e
Meche acabou por se transformar em uma referência na região, onde Ayarza, 2020]

moradores de outras localidades vem para conhecer e fotografar. As


qualidades construtivas e ambientais da casa se espalharam, e este
reconhecimento também é bastante significativo para a autoestima e o
empoderamento da Meche, que recebe os curiosos, conta do processo
de construção e explica as técnicas empregadas e os seus benefícios,
assim como outros participantes da oficina eventualmente também
fazem.
Enrique e Cynthia também destacaram em nossa conversa o
reconhecimento acadêmico que receberam após a publicação do livro

conocimiento de técnicas como el bareque y caña guadua en estructura, mampostría y


ventanerías.” [Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
_técnicas construtivas
fotos do processo de construção da casa e ilustrações da
apostila de boas práticas construtivas elaborada na oficina
[Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
_legado da oficina
ilustrações da apostila de boas práticas construtivas elaborada na oficina, fotos da casa
construída e certificado de participação concedido pela universidade
[Fonte: http://ensusitioarq.com/casa-meche.html]
3_NARRATIVAS DISRUPTIVAS 3.1_Arquitetura emancipatória

A partir da investigação do trabalho desenvolvido pelo coletivo Um dos aspectos mais expressivos da prática desses arquitetos

Ensusitio aqui representado pela obra La Casa de Meche, bem como é o compromisso social, ou seja, uma atuação junto aos grupos sociais

da análises de outros projetos, realizados previamente no âmbito do mais vulneráveis e excluídos das garantias da democracia e dos

grupo de pesquisa, e da revisão de textos publicados, foram direitos humanos. Sensíveis às diversas dimensões dessa exclusão,

identificados alguns conceitos chave que caracterizam um certo tipo que não são apenas econômicas, e em consonância com o

de prática arquitetônica que se distingue significativamente da prática pensamento crítico e com as lutas contemporâneas contra todas as

hegemônica de se fazer arquitetura, e que buscam deliberadamente formas de desigualdade, como o machismo, o racismo, o colonialismo,

romper com essa hegemonia. Inicialmente agrupamos esses projetos dentre tantas outras formas de exclusão abissais, como bem descreveu

na categoria “outros fazeres”, o que mostra o reconhecimento de um Boaventura de Souza Santos em “O Fim do Império Cognitivo” [2019].

“fazer” outro, alternativo, contra-hegemônico, disruptivo, mas também Fazendo uma analogia com as proposições de Boaventura,

uma dificuldade em rotular devido a multiplicidade de camadas que os poderíamos denominar essas práticas como uma “arquitetura das

caracterizam. Em função disso, apresento adiante uma breve emergências”.

discussão a cerca desses conceitos, baseado em interpretações de Uma questão interessante citada pela Ana Maria Calisto [2011] e

outros pesquisadores e nas narrativas dos próprios autores dos muito presente no discurso desses arquitetos é a perspectiva de levar

projetos. Com isso pretendo defender de que forma esses “outros” a arquitetura para quem mais precisa e que sequer compreendem o

fazeres arquitetônicos caminham para um ponto de disrupção, potencial do saber arquitetônico como resposta a diversos problemas

configurando mais do que uma atuação de oposição, contrária ou cotidianos. Em geral essas pessoas não estão recebendo nem mesmo

alternativa, mas de fato um rompimento com certas bases constitutivas o apoio do Estado, que deveria promover “programas de construção

de um fazer arquitetônico hegemônico. de moradias e melhoria das condições habitacionais, de saneamento


básico, das calçadas, dos passeios públicos, do mobiliário urbano e
dos demais espaços de uso público” [art. 3º, inciso III] para “garantia
do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra
urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, realidade concreta dos sujeitos para o desenvolvimento de uma
ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as percepção crítica de sua forma de estar no mundo, “passando a ver
presentes e futuras gerações” [art. 2º, inciso I], conforme determina o seu contexto não como uma realidade estática, mas como uma
Estatuto da Cidade [Lei Federal nº 10.257, de 2001]. Devido à situação realidade em processo de transformação” [Lara, 2021]. Interpretando
de total exclusão em que estão inseridos, não lhes é permitido contar e adaptando a célebre frase de Paulo Freire, poderíamos dizer que
com o suporte da arquitetura para transformação do espaço em que arquitetura não transforma o mundo, pessoas transformam o mundo,
vivem, e a autoprodução do espaço reflete a condição social, portanto para transformar o mundo através da arquitetura faz-se
econômica e cultural dessas populações. necessário uma prática arquitetônica capaz de mudar as pessoas.
A opção dos arquitetos do Ensusitio, por trabalhar nas áreas O método de trabalho desenvolvido pelo Ensusitio, tanto do
periurbanas onde eles identificaram a situação mais precária em ponto de vista pedagógico quanto projetual, busca colocar em prática
termos de danos e apoio à reconstrução, além da escolha da pessoa essa visão de maneira radical, como evidenciou-se na preocupação em
mais vulnerabilizada para receber a construção vai justamente nessa apoiar as populações afetadas pelo terremoto sem renunciar ao
direção. desenvolvimento de um processo emancipatório e de
Essas práticas arquitetônicas que buscam um compromisso empoderamento.
radical contra a desigualdade, que estão surgindo na América Latina O papel desses arquitetos, portanto, não se presta à função de
contemporânea, pretendem ir além da mera provisão de benefícios e impor através do desenho a re-união do trabalho coletivo, disperso pela
soluções seja por parte do estado, do mercado ou mesmo de destituição da cooperação simples entre trabalhadores, a serviço da
organizações da sociedade civil. Conscientes das limitações e exploração do canteiro pelo capital, conforme descrito por Sérgio Ferro
contradições dessas práticas, chamadas de assistencialistas, esses em “O canteiro e o desenho”, publicado em 1979. Sua prática caminha
arquitetos entendem que uma transformação significativa do espaço
requer a produção de sujeitos críticos e conscientes do seu poder de
transformar o mundo ao seu redor. Nesse sentido, seus métodos
sugerem uma influência do pensamento do professor Paulo Freire e
suas bases para uma pedagogia libertadora, na qual parte-se da
na direção apontada pelos pioneiros da Arquitetura Nova 13, buscando A arquiteta colombiana Silvia Arango, reconhecida por dedicar-
a formação e a organização de trabalhadores coletivos livres, se à historiografia da arquitetura latino-americana, aponta dois fatores
fomentando a autonomia, a cooperação e a transformação radical das explicativos do que ela denomina “dissolução da autoria”, por um lado
relações de produção do espaço como forma de atender as uma reação imediata à lógica de ranqueamento de ganhadores e
necessidades mais fundamentais dos marginalizados. Como propôs perdedores que se enraizou no panorama arquitetônico dos arquitetos-
Ferro [2021] seu lema é: “inverter o impossível em condição, a utopia celebridade, e por outro lado a influência de um debate mais radical e
no que deve ser feito agora”. amplo presente nas artes em geral desde 1968 quando Roland Barthes
previu a morte do autor, questionando a ideia de criação inédita tendo
em vista os procedimentos de cópia, citações, desconstruções,

3.2_ Coletividade radical reconstruções e referências, hoje amplamente aceito como


procedimento projetual em arquitetura. A autora aponta, então, a
Outro aspecto relevante característico dessas práticas criação coletiva como forma de organização desses arquitetos em
arquitetônicas que estamos analisando é a radicalização da consonância com práticas já consolidadas em outras atividades
coletivização do trabalho, em duas dimensões principais. A primeira é artísticas, e a criação colaborativa com profissionais e artistas de outras
a dissolução do autor e a segunda é a dissolução da autoridade do áreas [Arango, 2018].
arquiteto perante os demais trabalhadores e sobretudo em relação aos Nesse sentido, Ana Maria Calisto, ao descrever o que ela entende
próprios usuários do espaço em construção. Essas dimensões como paradoxos dos coletivos de arquitetura latino-americanos,
isoladas não representam algo inédito, tendo suas raízes em práticas aponta para uma “arquitetura ampliada e implosão do estúdio”. O que
e ideias presentes desde o século passado, por isso a questão a se significa uma transgressão das fronteiras tradicionais da arquitetura,
destacar é a conjunção entre elas. atuando colaborativamente com outros profissionais e artistas para a
produção de outras formas de intervenção no espaço, como

13
A teoria da Arquitetura Nova, ou Desenho/Canteiro, foi elaborada a partir de
estudos e experiências desenvolvidas pelos arquitetos Sérgio Ferro, Rodrigo Lefévre e
Flávio Império, a partir da década de 1960.
instalações temporárias, material audiovisual, cartografias, sobre o projeto. Isso sem prejuízo a possibilidade do arquiteto exercer
publicações, exibições, oficinas, laboratórios etc. [Calisto, 2011]. um papel ativo na identificação das demandas, na mobilização dos
Os coletivos organizam-se em redes transnacionais, fluídas, atores e na viabilização das intervenções junto às comunidades.
eventualmente temporárias ou transitórias, realizam parcerias entre
Como escreveu Giancarlo de Carlo, “a participação destrói os
grupos, e seus membros eventualmente transitam entre grupos privilégios misteriosos da especialização, desvenda o segredo
diferentes [Calisto, 2011]. Similarmente, Arango elenca quatro critérios profissional, desnuda a incompetência, multiplica
responsabilidades e as converte do privado em social” [LARA,
relacionados a forma de organização dos coletivos, que de acordo com 2021]
ela caracterizam-se por serem nômades, transnacionais,
Diversos elementos da prática de trabalho do Ensusitio vão ao
multidisciplinares e por conformarem-se de forma aleatória, ou seja,
encontro dessa dissolução da autoria, da coletivização do trabalho e
não há uma estrutura organizacional rígida bem definida em comum.
de uma organização horizontal. Conforme descreveram Enrique e
A noção de coletividade para esses arquitetos de forma alguma
Cynthia, um dos fundamentos do seu trabalho é compartilhar as
se limita ao extrato dos profissionais e artistas formados em
decisões e as responsabilidades tanto com os estudantes quanto com
universidades. O mesmo nível de participação é conferido aos
as comunidades, ao ponto em que eles passam a atuar como meros
trabalhadores manuais e aos usuários em todas as etapas do
consultores do processo. A participação e colaboração ativa em todas
processo, da gestão ao projeto, da mesma maneira que os arquitetos
as etapas do processo é a base da sua prática, como pode ser
também participam das etapas de construção exercendo atividades
observado no processo de planejamento, compreensão da
manuais. Dessa maneira, poderíamos dizer que a ideia de processo
problemática, desenho e construção. Até mesmo após a construção
participativo, que não é de forma alguma uma novidade no âmbito da
observamos a continuidade da colaboração, como na organização do
arquitetura – tendo marcado principalmente o período das décadas de
livro no qual diversos autores foram convidados a escrever suas
1960 e 1970 com diversas experiências na América Latina – hoje é
impressões sobre o trabalho desenvolvido para a Casa da Meche.
retomada de forma radical com a consciência de que a participação da
comunidade é imprescindível em todo o processo e toda a tomada
decisão deve ser dos próprios usuários e trabalhadores, e o arquiteto
atua quase como um consultor desprovido da autoridade tradicional
3.3_Ecologia de saberes construtivos arquitetônico hegemônico e a sua superação depende de uma relação
dialógica entre diferentes saberes construtivos e formas de produção
A destituição da autoridade do arquiteto e uma organização do espaço. Dessa maneira, tais práticas parecem pretender ir além ou
mais coletiva do trabalho abrem caminho para uma outra relação entre talvez radicalizar as práticas contra-hegemônicas desenvolvidas ao
desenho e canteiro – conforme proposto por Sergio Ferro na década longo do século XX, especialmente nas décadas de 1960 e 70, em
de 1970 – permitindo uma troca entre os diversos saberes envolvidos diversos países da América Latina, nas quais, de acordo com Lara
nos processos de projeto e construção. Mais do que isso, a prática [2021], desafiavam-se “os métodos tradicionais de construção, mas
contemporânea pretende incorporar outros atores e seus saberes ainda preservavam a maioria das decisões de projeto para o arquiteto
nesses processos, transbordando os limites tradicionais da disciplina treinado”. Como exemplo dessas práticas o autor menciona o trabalho
e incorporando outras culturas, outras visões de mundo, de Sergio Ferro, Rodrigo Lefevre e Flávio Império, através do grupo
proporcionando uma ‘ecologia de saberes construtivos’, Arquitetura Nova, no início da década de 1960; os trabalhos publicados
parafraseando mais uma vez o Boaventura de Souza Santos. na revista Autogobierno, lançada em 1972 no México, por alunos e
Dessa maneira pensamento e construção se aproximam e professores, propondo uma transformação da prática e do ensino de
outras formas de projetar e representar o projeto emergem, valorizando arquitetura em torno de seis pontos: conhecimento total; praxis;
a palavra falada – o que Solano Benitez chama de Cum-versar – e a arquitetura para as pessoas; pedagogia do diálogo; autogoverno; e
execução de protótipos em canteiro [Quintana, 2020], substituindo a autocrítica, e ainda o extraordinário trabalho desenvolvido pela
abstração típica da arquitetura de autoridade. Podemos retomar aqui Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda de Ayuda Mutua –
mais uma vez o pensamento de Paulo Freire para o qual FUCVAM, no Uruguai, que desde 1972 coordena as atividades de

“não seria possível à educação problematizadora realizar-se cooperativas habitacionais em todo o país, construindo milhares de
como prática da liberdade, sem superar a contradição entre o moradias para a classe trabalhadora uruguaia através de processos de
educador e os educandos. Como também não lhe seria possível
projeto e construção participativos [Lara, 2021].
fazê-lo fora do diálogo” [Freire, 1974 apud Lara, 2021]
Um dos pontos chave para a distinção das práticas e das
Portanto, romper com uma prática arquitetônica que reproduz
narrativas contemporâneas, talvez seja justamente a valorização de
os mecanismos geradores das formas de opressão na sociedade,
outros saberes construtivos e visões de mundo, aprofundando a
envolve necessariamente assumir as contradições inerentes ao saber
superação das contradições da produção capitalista do espaço já já alcançava, antes disso, todas as partes do planeta, indicando que a
apontadas por esses arquitetos e pensadores marxistas do século XX, urbanização planetária já havia se realizado na prática, conforme
trazendo à tona a dimensão colonial do saber e da prática da sugeriu o filósofo francês Henri Lefebvre em um ensaio de1989 sobre
arquitetura hegemônica. a dissolução das cidades e a metamorfose planetária [apud Cançado,
Os saberes “outros” que vem sendo progressivamente 2017]. De acordo com Cançado [2017], “a construção civil é
incorporados nessa ecologia de saberes construtivos, estão nas responsável pela devoração de 50% de todos os recursos disponíveis
periferias autoconstruídas das grandes cidades do sul global, no planeta”, e ainda
consideradas justamente o espaço contemporâneo mais freiriano para
“50% da água disponível e 45% da energia produzida no
Lara [2021], e também no que Ailton Krenak – liderança indígena mundo estão sendo consumidas para construção de
constituinte, jornalista, educador e ambientalista – chamou de “periferia edifícios em que ninguém pretende morar, de viadutos que
não resolverão o problema do trânsito, de hidrelétricas que
da humanidade”, em referência aos povos originários, indígenas,
arruinarão as florestas e a vida de seus habitantes, de
aborígenes, quilombolas, caiçaras – todos aqueles que não se calhas de concreto que condenarão por gerações os rios e
enquadram na noção de humanidade propagada pelo ideal iluminista tantas outras modernizações indesejáveis. Assim como
emanado do continente Europeu. Nas palavras de Krenak, uma gente 80% das áreas agricultáveis estão sendo ocupadas por
empreendimentos imobiliários, 30% dos rios, sendo
que insiste em ficar agarrada na terra, que ousa resistir a alienação
despejados em caçambas como areia, 40% das
entre Terra e humanidade, para quem montanhas, britadas ou transformadas em fachadas de
luxo, 25% das florestas tropicais estão sendo
“A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo transformadas em decks, assoalhos e forros pela
numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a
compulsão construtiva anônima ou pelo cinismo estrutural
diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência
de arquitetos-celebridades.” [Cançado, 2017]
e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se
possível, a mesma língua para todo mundo.” [Krenak, 2019] Portanto, acredito que a chamada questão ambiental tem
E no caso da dimensão espacial, a única opção no cardápio aparecido nas narrativas dessas práticas arquitetônicas que identifico
que está sendo apresentado para as 8 bilhões de pessoas que hoje como disruptivas, mais como tentativas de estabelecimento de outras
habitam a Terra, é a cidade capitalista de base industrial, que desde relações entre os seres humanos e a Terra, evocando essas
2006 abriga mais da metade da população mundial, mas cuja influência epistemologias do sul, e menos como a aplicação de tecnologias
“sustentáveis” de base industrial, perpetuando a mesma lógica dos práticas disruptivas em arquitetura tem defendido uma hiper
processos que levam à destruição em massa da natureza. valorização do local nas suas diversas dimensões.
Uma dessas dimensões é diretamente política, e está
Quando os arquitetos do Ensusitio priorizam o uso de materiais
relacionado ao movimento de apropriação do espaço pelas
disponíveis no local e técnicas acessíveis aos usuários e potenciais
populações locais no qual os arquitetos vem se inserindo e buscando
construtores autônomos do espaço, faz-se necessário investigar,
potencializar a partir da sua prática. Esse é o sentido do que o
resgatar e compartilhar saberes construtivos artesanais tradicionais em
economista brasileiro Ladislau Dowbor chamou de “poder local”.
complementação com tecnologias e conhecimentos científicos, como
ficou evidente nas técnicas construtivas e nos materiais utilizados na “O poder local está no centro do conjunto de transformações que
envolvem a descentralização, a desburocratização e a
Casa da Meche. E conforme destacado por Enrique e Cynthia, isso tem
participação, bem como as chamadas novas “tecnologias
como propósito o empoderamento dos sujeitos e a obtenção dos urbanas”. O poder local não é condição suficiente para mudar o
mundo, sem dúvida, mas é sim condição necessária.” [Dowbor,
benefícios compatíveis com as condições ambientais e culturais de
2016]
cada local.
Outra dimensão importante, especialmente para a arquitetura,
é a valorização do contexto e das particularidades locais na leitura do
3.4_Hiperlocalismo conectado espaço existente e no planejamento das intervenções, tanto no âmbito
da gestão quanto do desenho propriamente dito. E aqui podemos
Em contraposição aos aspectos homogeneizantes e
elencar subdimensões ou camadas dessas particularidades locais
desterritorializantes da globalização, que, associado à velocidade de
como a memória, as relações territoriais, a forma de organização local
transmissão de informações e imagens pelas tecnologias digitais,
do corpo social, as relações dos habitantes com o espaço e com a
repercutiu na arquitetura uma prática voltada para a produção de
natureza, mas também as condições ambientais locais, os materiais
objetos fotografáveis a uma escala planetária ignorando o contexto em
disponíveis e compatíveis com o saber local, as tipologias e as técnicas
que estão inseridos, vem ganhando cada vez mais força a valorização
construtivas vernaculares. Soma-se a isso uma perspectiva ecológica,
dos atributos locais. Em sintonia com as insurgências de outras lutas
já mencionada anteriormente, que não é tratada de forma isolada, e
como no caso das questões ambientais, cuja ideia de ameaça global
sim transversal e integrada aos demais temas.
resultou na invisibilização de problemáticas e desigualdades locais, as
Portanto, as narrativas arquitetônicas que identifico como aos interesses e a visão de mundo dos países dominantes, conforme
disruptivas não são aquelas cuja ênfase se dá na utilização de materiais apontado por Calisto [2011] e Lara [2014]. Esses diálogos têm aberto
industrializados completamente alóctones carimbados com um selo novas possibilidades de análise das realidades locais e das diversas
“verde”. Isso não significa um purismo na utilização de materiais práticas construtivas na América Latina, ao mesmo tempo em que
autóctones ou o desmerecimento completo das tentativas de melhoria reforça às trocas e o compartilhamento de técnicas e soluções
e regulação dos processos produtivos industriais como se estes em projetuais, constituindo uma certa linguagem arquitetônica latino-
nada fossem diferentes dos processos mais devastadores. Mesmo americana. E em um segundo momento, é preciso apontar que isto
porque nem todos os locais dispõem de materiais naturais suficientes, não se dá de forma isolada, alheia ao resto do mundo, muito pelo
e ainda certa quantidade de materiais como cimento e aço podem contrário. Esse aprofundamento das questões locais e das trocas
contribuir para o aprimoramento de técnicas tradicionais e garantir regionais têm resultado em uma maior visibilidade e prestígio para a
alguns benefícios essenciais das tecnologias modernas para qualidade produção arquitetônica latino-americana, rompendo com estereótipos,
de vida das pessoas. A questão é a concepção de uma visão crítica e consequentemente no estabelecimento de trocas e parcerias com
sensível às diversas dimensões dos atributos locais e também aos profissionais das mais diversas partes do mundo [Calisto, 2011;
diversos locais impactados pelas decisões projetuais e construtivas de Arango, 2018]. Um exemplo emblemático dessa prática é o coletivo
uma determinada obra, que podem estar a milhares de quilômetros de Supersudaca, que se autodenominam um coletivo internacional de
distância conectados pelos fluxos de energia, matéria e informações reflexão e investigação sobre arquitetura e urbanismo formado por
que hoje alcançam uma dimensão planetária. arquitetos espalhados pelo mundo todo com uma preocupação em
Nesse sentido, é notório que o trabalho dos arquitetos e comum: explorar as diversas possibilidades da Arquitetura em
arquitetas envolvidos nessas práticas está cada vez mais conectado
formando redes de cooperação regionais e até mesmo
intercontinentais, sem abandonar uma relação direta e concreta com
as realidades locais. Em um primeiro momento, devemos destacar a
amplificação e a consolidação de um diálogo latino-americano, que
passa a formular suas próprias questões com autonomia em relação
territórios “sudacas” 14. A figura a seguir representa a localização dos redes de colaboração e compartilhando conhecimento e experiências.
diversos atores que contribuem para o trabalho desse coletivo. Enrique e Cynthia destacaram o desenvolvimento de uma cátedra
permanente em uma universidade no Peru, trabalhos desenvolvidos na
Costa Rica e outros países latino-americanos, e a participação em
conferências na Europa e nos Estados Unidos, despertando o interesse
inclusive de profissionais e pesquisadores de outras áreas para além
da arquitetura. A disposição em conceder a entrevista para o
desenvolvimento deste trabalho é também um indicativo desse
interesse em ampliar essa rede, amarrando novos nós com a
consistência compatível com o seu trabalho.

_Supersudaca ao redor do mundo


[2001 – 2008]
[Fonte: Calisto, 2011]

Esse princípio de valorização dos atributos locais está no cerne


da formação do coletivo Ensusitio, cujo método é fazer ‘con lo que hay
em su sitio’, ou seja ‘com o que há em seu local’. Esse aspecto já foi
vastamente explorado anteriormente. Cabe ressaltar aqui, então, a
capacidade de atuação em diversas partes do território equatoriano, de
outros países da América Latina e de outras partes do mundo, tecendo
_Ensusitio ao redor do mundo
[Fonte: http://ensusitioarq.com/contacto.html]

14
Termo pejorativamente usado na Espanha para se referir aos latino-americanos,
particularmente aos de origem andina que migraram para lá em grande número
[Calisto, 2011]
4_CONSIDERAÇÕES FINAIS território latino-americano, e provocar o aprofundamento de um debate
necessário sobre o reposicionamento do papel da arquitetura na
A partir das investigações realizadas nesta pesquisa evidencia- sociedade.
se a relevância e a singularidade dessas práticas arquitetônicas que Com este trabalho espero contribuir para a reflexão de
tem buscado romper com os limites tradicionais da disciplina, arquitetos e arquitetas sobre a sua prática e para a formulação de
reformular os modos produção e gestão do espaço, reposicionando o práticas pedagógicas orientadas para a formação de arquitetos mais
arquiteto no cenário político contemporâneo. aptos a lidar com as desigualdades no processo de produção e gestão
Neste trabalho, optou-se por partir de um estudo de caso, de do espaço e estabelecer novas formas de relação entre sujeito e
uma prática específica, como forma de aprofundar questões que ambiente.
poderiam ser vistas em outras práticas semelhantes, provavelmente
apontando para a construção de uma possível "pauta" latino-
americana.
A análise de obras construídas e trabalhos realizados é de
grande importância para a compreensão de como os discursos se
concretizam arquitetonicamente, e também como suporte para a
divulgação e a replicação das experiências. Contudo, o
aprofundamento teórico sobre os conceitos aplicados na prática pode
levar a um aprofundamento e um aperfeiçoamento dos métodos
utilizados, e portanto o debate em torno dessas ideias é igualmente
relevante e pertinente.
Este trabalho, no entanto, não tem a pretensão de elaborar
conclusões ou estabelecer conceitos a serem testados ou
reproduzidos, mas apenas dar visibilidade a práticas arquitetônicas e
pedagógicas disruptivas que com muito esforço se espalham pelo
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