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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

IRMA FERREIRA SANTOS

Estrada cruzada: Um corpo preto na música de concerto

Programa de Pós-graduação em Música da


Universidade Federal da Bahia
Disciplina: Introdução aos estudos de gênero,
corpo, sexualidades em música
Professora: Laila Rosa
Doutoranda: Irma Ferreira

SALVADOR
2023
Estrada cruzada: Um corpo preto na música de concerto

Irma Ferreira

Resumo

Ao tomar como ponto de partida os atravessamentos raciais que vivenciei ao longo da


minha trajetória aponto as maneiras como o sistema da branquitude e do racismo podem
se apresentar na vida de pessoas negras que experienciam o universo da música de
concerto, seja no seu período de formação ou em suas atuações profissionais. Para a
construção deste artigo, que se trata de um relato autobiográfico, utilizo como ferramenta
metodológica a escrevivência cunhada por Dona Conceição Evaristo (2020), que ao lado
de outras mulheres como Anzaldúa (2002), Akotirene (20219) Oyěwùmí (2002), Dona
Cida Bento (2022), Kilomba (2020), Dona Sueli Carneiro (2005) fundamentam esta
escrita, que tem como objetivo tratar desses atravessamentos ao tempo que mostra a
importância da representatividade positiva na formação e atuação de cantoras e cantores
líricas(os) negras(os).

Palavras-chave: negro no canto lírico, atravessamentos raciais, negro na música de


concerto, racismo e branquitude na música de concerto
Estrada cruzada: Um corpo preto na música de concerto

Meu corpo é vivência, é palavra percorrida a pés descalços em longas estradas, é


vida minha e daqueles que me trouxeram até aqui, é espelho que reflete passado, presente
e futuro, é erudição e conhecimentos antigos que agora começam a se fazer ouvir, por
isso trago a escrevivência cunhada por Dona Conceição Evaristo como norte para essa
escrita.

A Escrevivência não é uma escrita narcísica, pois não é uma escrita de


si, que se limita a uma história de um eu sozinho, que se perde na solidão
de Narciso. A Escrevivência é uma escrita que não se contempla nas
águas de Narciso, pois o espelho de Narciso não reflete o nosso rosto. E
nem ouvimos o eco de nossa fala, pois Narciso é surdo às nossas vozes.
O nosso espelho é o de Oxum e de Iemanjá. Nos apropriamos dos abebés
das narrativas míticas africanas para construirmos os nossos aparatos
teóricos para uma compreensão mais profunda de nossos textos. Sim,
porque ali, quando lançamos nossos olhares para os espelhos que Oxum
e Iemanjá nos oferecem é que alcançamos os sentidos de nossas escritas.
No abebé de Oxum, nos descobrimos belas, e contemplamos a nossa
própria potência. Encontramos o nosso rosto individual, a nossa
subjetividade que as culturas colonizadoras tentaram mutilar, mas ainda
conseguimos tocar o nosso próprio rosto. E quando recuperamos a nossa
individualidade pelo abebé de Oxum, outro nos é oferecido, o de Iemanjá,
para que possamos ver as outras imagens para além de nosso rosto
individual. (EVARISTO, 2020. p.39)
Filha de Rita Maria Ferreira Santos e de Itamar Soares Santos, irmã de Angélica
Ferreira Santos, neta de Maria da Conceição Ferreira e de Maria Teodora Soares Santos,
eu, Irma Ferreira Santos, sou mulher preta, candomblecista, bissexual, cantora, graduada
canto lírico, mestra em performance musical e doutoranda em educação musical,
professora e pesquisadora, oriunda do Subúrbio Ferroviário de Salvador – Bahia. Sou um
corpo preto, um corpo preto político, que em um misto de resistência e teimosia dou
continuidade a uma história iniciada por mulheres e homens que vieram antes de mim, ao
tempo que abro caminho para aquelas e aqueles que virão depois.

O padrão colonial ora elege as mulheres negras como dirigentes do


tráfico de drogas, ora homicidas de companheiros violentos, quando não,
pactuam com as coações impostas por filhos e maridos encarcerados para
que transportem drogas até o sistema prisional, numa faceta hedionda
punitivista das mulheres negras (AKOTIRENE, 2019. p 36)
Fugindo dessa estatística, mais uma das muitas construídas pela branquitude, e
aqui descrita por Akotirene, venho de uma família preta, matriarcal, pobre, onde um dia
o trabalho foi a única possibilidade de sobrevivência e o acesso à educação era apenas
uma utopia, fazendo parte de uma geração onde sobreviver não é mais o suficiente e a
educação é vista como o único caminho para viver com dignidade.

Eu sou a terceira das cinco mulheres da minha família que conseguiram adentrar
o ensino superior até o momento. A primeira Cristiane Santos Souza, minha prima, hoje
antropóloga, pós-doutora pelo Centro de Estudos Africanos em Moçambique; a segunda
minha irmã Angélica Ferreira, Assistente Social e Psicopedagoga; eu que atualmente
estou doutoranda em Educação musical pela UFBA, minha tinha Madalena Soares,
formada depois dos 50 anos em Pedagogia pela Universidade de São Paulo e mais
recentemente mãe Rita Maria Ferreira Santos, enfermeira, que aos 53 anos, que me deu o
privilégio de acompanhá-la no dia do vestibular, no dia matrícula no curso de
enfermagem, de levá-la na escola no primeiro dia de aula, enfrentar com ela todos os
medos e inseguranças que um curso superior, numa faculdade particular, pode causar a
uma mulher preta cursando sua primeira graduação depois dos 50 e por fim, depois de 4
anos de luta, entrar segurando sua mão em sua formatura, no momento de receber o tão
esperado diploma.

Nesse quadro, a palavra é minha firma, seja falada, escrita ou cantada. No


exercício de me fazer compreender viva no ambiente da música de concerto uso dessa
ferramenta para me fazer vivente, pensante, pensamento, ação, corpo preto que carrega a
ancestralidade e a responsabilidade de ser estrada cruzada, sem me afastar ou apagar meu
eu pelo racismo e medo transfigurado do outro.

O homem branco diz: talvez se rasparem o moreno de suas faces.


Talvez se branquearem seus ossos. Parem de falar em línguas,
parem de escrever com a mão esquerda. Não cultivem suas peles
coloridas, nem suas línguas de fogo se quiserem prosperar em
um mundo destro. (ANZALDÚA, 2000, p2)
Como bem coloca Anzaldúa, na tentativa de convencer a mim e aos meus do
contrário, a branquitude se empenha em minar nossas identidades e nos enquadrar em
padrões inalcançáveis, que quanto mais perto acreditamos estar, mais longe se fazem.

Nesse ponto se alicerça a história que contarei daqui em diante, um pouco da Irma
Ferreira, cantora lírica preta, que canta macumba e busca trazer para o palco e para a
academia vivências que são constantemente invisibilizadas e inviabilizadas em
decorrência dos atravessamentos contidos nas trajetórias formativas e performáticas de
cantoras e cantores líricas(os) negras (os) de Salvador.

O 1607 - Paripe / Barra


Para estar doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Música da UFBA,
sendo uma mulher preta retinta de 32 anos, um longo caminho foi percorrido, grande
parte dele a bordo ônibus 1607, da empresa Praia Grande, da linha Paripe/Barra, que na
viagem das 5:10 da manhã transportava pelo menos 200% de passageiros a mais que o
permitido pela norma de segurança que rege os transportes públicos em Salvador.

Um coletivo carregado de trabalhadoras, trabalhadores, estudantes, algumas mães


e avós a caminho de atendimentos médicos com seus filhos e netos, ou filhas
acompanhando suas mães e pais idosos ao famoso Hospital das Clínicas, ou, nas quartas
feiras, à Fundação de Neurologia e Neurociência - Instituto do Cérebro, localizado na
Barra, em seu único dia de atendimento gratuito, naquela época, no qual os estudantes de
neurologia em seus períodos de estágios estariam atuando junto a seus orientadores.
Pessoas pretas, em sua maioria, que saiam do subúrbio ferroviário naquela lotação em
condições precárias para alguns dos metros quadrados mais caros de Salvador - Campo
Grande, Graça, Corredor da Vitória, Barra.

Além das mais de duas horas entre o início da viagem e o ponto final, tinham os
caminhos esburacados, que em período de chuva viravam grandes armadilhas para os
coletivos que quebravam com frequência, os assédios, os engarrafamentos sem fim, a
falta de ventilação que fazia com que muitos passassem mal, principalmente aqueles que
quase não se alimentavam antes de sair de casa, e ainda tinha as temidas blitz policiais,
que enxergavam todos de uma única forma: suspeitos.

A definição do que é atividade criminosa está muito ligada a


quem (negro, branco, rico, pobre) está envolvido na atividade .
(OYĚWÙMÍ. 2002. p6)
Ao tratar da concepção de que “A sociedade é constituída por corpos e como
corpos” (p2), Oyěwùmí (2002) explica o pensamento racista e a tentativa de associar a
violência e a criminalidade à predisposição genética de uma população ou grupo, no caso
dos corpos negros, e isso era o que podia ser visto em dias de blitz no 1607.

Mas como falei acima, venho de uma geração familiar onde estudar é a única
opção... e assim o 1607 – Paripe – Barra, das 5:10 da manhã entra na minha vida. Em
meados de 2002, aos 11 anos, embarquei pela primeira vez no coletivo que me transportou
por pelo menos mais 15 anos, até a minha chegada aqui no Programa de Pós Graduação
em Música da Universidade Federal da Bahia.
Greves de professoras e professores das escolas públicas - Destino Ginásio do
Servidor Público

Em greve há 18 dias, cerca de 2.000 professores da rede estadual da


Bahia (de um total de 60 mil) ocuparam todas as dependências do
plenário e do saguão da Assembléia Legislativa do Estado.(...) Desde o
início do ano, os professores já paralisaram as suas atividades por 54 dias
_12 em abril, 24 em maio e 18 até hoje. (FRANCISCO, 2002. p1)
Neste ano, assim como nos outros, o epistemicídio segue atuando na vida das
pessoas negras, e as escolas públicas da Bahia, que foram minha segunda casa desde a 2ª
série, entraram em greve com 90% das unidades escolares aderindo o movimento, número
que incluía todas as escolas do bairro em que morava, que já há algum tempo não
ofereciam condições dignas de trabalho para os professores, que por sua vez não davam
conta de oferecer um ensino de qualidade por falta de estrutura e má remuneração, e tudo
isso se refletia na violência ao redor desse cenário, que seguia ao encontro das estatísticas
pré-moldadas pelo sistema branquitude e do racismo - então meus pais resolveram me
colocar, junto com a minha irmã, para estudar na “cidade”, que seria o Centro de Salvador.
Como nos abre os olhos Dona Sueli Carneiro (2005):

Para nós (...) o epistemicídio é, para além da anulação e


desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um
processo persistente de produção da indigência cultural: pela
negação ao acesso a educação, sobretudo de qualidade; pela
produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes
mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor
de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela
carência material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos
processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto
porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos
povos dominados sem desqualificá-los também, individual e
coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-
lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo”
ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a
racionalidade do subjugado ou a seqüestra, mutila a capacidade de
aprender etc. (CARNEIRO, 2005. p 97)
Tentando fugir dessa realidade, ou ao menos diminuir o estrago causado por ela,
meu primeiro destino foi o Colégio Ginásio do Servidor Público, uma escola de referência
na época, inicialmente destinada à filhos de servidores públicos do Estado e depois aberta
para o toda a população, localizada na Rua Carlos Gomes no Centro de Salvador, ao lado
da antiga escola de música da Faculdade Católica, uma das poucas escolas que seguiram
com seu funcionamento nesse período.
E lá estava eu, a menina preta, do subúrbio, vinda de uma escola de bairro que
esteve em greve por quase três meses, antes mesmo de finalizarmos o primeiro semestre,
chegando no novo colégio no meio do ano, um colégio que diferente das escolas do meu
bairro tinha alunos de muitos lugares de Salvador, com diferentes realidades, vivências e
concepções de certo e errado, justo e injusto, e de brincadeira e racismo.

Nesse contexto diverso, uma primeira chave virou e eu comecei a me perceber


como pessoa preta, que dali pra frente precisaria lidar com uma realidade muito mais
complexa do que a encontrada na minha bolha familiar. Minha irmã, companheira de vida
e de descobertas, que é mais velha e muito mais descolada que eu desde sempre, logo se
envolveu com o grêmio da escola e foi apresentada ao CEAFRO e, apesar de eu não ter
idade para participar oficialmente do Escritório da Juventude Negra, passei a frequentar
o Instituto como a irmã mais nova e muito séria de Angélica.

A música no 3º andar - Colégio Estadual Deputado Manoel Novaes

Diferente de grande parte dos meus colegas de profissão, brancos, que


desenvolveram suas carreiras a partir de uma tradição musical familiar, minha relação
com a música se deu de maneira muito particular, ao ganhar do meu tio Anemar Soares,
um homem preto, mestre de obras, um piano infantil e uma coleção em fita k7 de música
clássica qual ele deveria jogar no fora por ordem do seu contratante em uma obra. Mesmo
sem ter nenhum tipo de vivência com aquele material, ao invés de jogá-lo no lixo ele
trouxe para casa e me deu. Assim, aos 5 anos de idade, esse foi o meu primeiro contato
com a música de concerto, onde o que era considerado lixo me deu caminho.

Dito isso, minha segunda parada foi no Colégio Estadual Deputado Manoel
Novaes, e lá estava eu no ponto de ônibus às 5:10 da manhã esperando o 1607. Aqui eu
já tinha sido apresentada ao grupo Simples Rep’ortagem, obviamente por Angélica. Nesse
período eu devia ter uns 14 anos, mas ainda hoje é impossível ouvir a faixa Quadro negro
e não me emocionar, sabendo que ali aprendi que “das nuvens mais negras caí água limpa
e fecunda”; também aprendi sobre cotas, sobre o conceito de raça e o que seria
branquitude.

A luta pelas cotas não anula a luta pela melhora


Da qualidade de ensino público, tu ignora
Pelo contrário, quanto mais negros na academia
Muito mais força pra se lutar por um novo dia
Racismo, o que mais me causa espanto
Não se encara como problema do branco
Mas entre esses, há os que lutam pelo seu fim
"ah se todo branco fosse assim"
Branquitude, pouco se ouve falar
O que explica o privilégio que sua etnia pode conquistar?
Pra quem nasceu em berço de ouro é difícil entender
Que não é só porque seus pais fizeram por merecer
Foram anos de exploração no passado pra que um dia
A sociedade fosse estruturada a favor de uma minoria (SIMPLES
REP’ORTAGEM. 2004)

Nesse momento as coisas eram mais complexas, eu já era adolescente, sabia que
era preta, entendia algumas sutilezas do racismo e decidi participar do curso técnico de
música estudando violino, dando sentido às fitas K7 e ao pianinho que falei no início
deste tópico. Para conseguir essa vaga no colégio, minha mãe precisou dormir numa fila,
afinal era a única oportunidade da filha estudar aquela música, numa escola tida como
referência.

Assim cheguei, mais uma vez, à música de concerto, e o ônibus 1607 das 5:10 da
manhã, que sempre vinha lotado, continuou presente na minha rotina. Agora além de
procurar espaço pra mim tinha que achar espaço para o violino, que era da escola porque
eu não tinha condições de comprar o meu. Quantas vezes passei mal por causa da lotação?
quantas vezes fui assediada dentro do ônibus? E quantas vezes porque o ônibus quebrou
ou porque a Av. Suburbana estava alagada, cheguei atrasada por alguns minutos e não
pude entrar na aula? Com todo esse contexto, mesmo com as notas mais altas da sala, era
impossível para alguns professores compreender que para chegar na escola eu precisava
percorrer 28 km, com 20 paradas e cerca de 200 pessoas em um ônibus que devia
comportar 57, uma realidade na qual as consequências do sistema do racismo e da
branquitude eram palpáveis e que quando colocada ao lado de realidade colegas brancos
visualizamos mostra o oposto do que Kilomba (2002) traz em seu texto sobre o que
deveria ser a relação (ideal) entre professor e aluno:

Devido ao racismo, pessoas negras experienciam uma realidade


diferente das brancas e, portanto, questionamos, interpretamos e
avaliamos essa realidade de maneira diferente. Os temas, paradigmas e
metodologias utilizados para explicar tais realidades podem diferir dos
temas, paradigmas e metodologias das/os dominantes. Essa
“diferença”, no entanto, é distorcida do que conta como conhecimento
válido. Aqui, inevitavelmente tenho de perguntar, como eu, uma mulher
negra, posso produzir conhecimento em uma arena que constrói, de
modo sistemático, os discursos de intelectuais negras/os como menos
válidos (KILOMBA, 2020, p 54).

Essas relações não mudaram com o tempo e os atravessamentos não deixaram de


existir. Agora minha casa era o 3º andar da escola, espaço destinado às aulas do curso
técnico em música e onde eu passei a maior parte do meu tempo durante o período que
estudei no Manoel Novaes. A aula de violino era no turno oposto, então a regra era chegar
na escola às 7:10 e só voltar para casa depois das 17h. O ônibus de volta fazia um trajeto
de cerca de duas horas por causa dos engarrafamentos, não era tão cheio quanto o 1607,
mas sentar nunca era uma opção. No almoço a marmita na escada do 3º andar e alguns
olhares de graça pela cena. Os professores de música sempre foram um porto seguro, mas
muito ouvi que aquele não era meu lugar por parte de “colegas” que se liam como brancos,
dos vizinhos que perguntavam onde já se viu violinista preto e diziam “Essa menina fica
o dia todo vagabundeando com esse troço nas costas”, falavam que o era instrumento para
elite e não para mim.
Mas Quadro negro me cantava que “se querer é uma faceta eu quero e desejo uma
elite preta”. De fato, eu não via violinistas pretos e as falas pesavam cada dia mais, mas
isso não podia me travar. Um dia num trabalho da escola eu precisei falar sobre um
compositor da Bahia e escolhi Lindembergue Cardoso. Aqui mais uma chave virou,
quando eu conheci a sua ópera Lídia de Oxum. Sim. A primeira ópera que assisti, tinha
uma protagonista negra, falava de Orixá e era da Bahia.

O Canto Lírico

Por uma questão de saúde precisei me afastar da escola por quase um ano, precisei
parar de tocar e reformular todos os meus planos. Minha meta era estudar violino, passar
no vestibular da UFBA e tocar no palco do TCA com um black bem para cima. Nesse
momento ouvi de uma professora que se já era raro ver preto violinista imagine preto e
deficiente? Eu sabia o que queria, compreendia, aceitava e tinha orgulho da minha cor e
dos meus traços, mas nem por isso o sistema da branquitude e do racismo deixavam de
existir.

Um ano depois entrei no projeto Tim Música nas Escolas, para ser cantora, pois
já estava finalizando o ensino médio e o violino ainda não era uma opção. Entrei para
cantar música brasileira com uma orquestra juvenil de formato big band. Lá minha
professora de canto e outros professores me disseram que se eu quisesse ser “alguém” na
música precisaria estudar canto lírico, só dessa maneira poderia me profissionalizar no
canto, e assim foi.

Na busca por possibilidades de crescimento intelectual e financeiro, afinal, diziam


“você vai estudar canto mas vai trabalhar com o quê? Como vai pagar as contas? e como
vai ajudar a família?”, vejo mais uma vez o dedo da branquitude e do racismo aparecer.
Por que a única música que me daria caminho de crescimento seria uma que atende por
um estereótipo e a uma estética branca? E por que, depois de tantos atravessamentos e
sem muitas opções, ao me firmar nesse universo preciso provar, mais que qualquer outro
colega branco, se posso ocupar um lugar de protagonismo nesse universo? ou, eu até
posso cantar lírico, mas sem ocupar este lugar, pois não tenho a aparência esperada para
tal.

Assim, trago a voz de Bento (2022), que vai tratar sobre o que ela chama Pacto da
Branquitude, que no ambiente do canto lírico vai garantir que esse estereótipo criado no
imaginário coletivo das pessoas sobre quem é e quem pode ser um(a) cantor(a) lírico(a)
venha se perpetuando ao longo dos séculos, passando muitas vezes por cima de questões
técnicas e de estética musical:
Descendentes de escravocratas e descendentes de escravizados
lidam com heranças acumuladas em histórias de muita dor e
violência, que se refletem na vida concreta e simbólica das
gerações contemporâneas. Fala-se muito na herança da
escravidão e nos seus impactos negativos para as populações
negras, mas quase nunca se fala na herança escravocrata e nos
seus impactos positivos para as pessoas brancas. É possível
identificar a existência de um pacto narcísico entre coletivos que
carregam segredos em relação a seus ancestrais, atos vergonhosos
como assassinatos e violações cometidos por antepassados,
transmitidos através de gerações e escondidos, dentro dos
próprios grupos, numa espécie de sepultura secreta. Assim é que
a realidade da supremacia branca nas organizações públicas e
privadas da sociedade brasileira é usufruída pelas novas gerações
brancas como mérito do seu grupo (BENTO, 2022, p. 16).

Pois bem, em 2010, resolvi fazer o vestibular para canto, tinha assistido o concerto
da Jessie Norman no TCA e tinha certeza de que podia fazer aquilo. Fiz o vestibular e
passei, aqui ainda sou usuária fiel do 1607, agora não mais todo dia. Entrei na faculdade
e ouvi que não tinha professor de canto, pois o professor “dono da cadeira” estava fora e
o substituto não tinha vagas, quem podia pagava professor particular, quem não podia
ficava para trás, adivinha a cor destes? O professor apareceu e, por ironia ou não, alguns
alunos ficaram sem aula por falta de vaga, e adivinhem novamente qual era a cor de suas
peles? Eu consegui vaga, mas os colegas que não conseguiram terminaram abandonando
o curso.

A graduação se desenrolou e a Lídia de Oxum ficou no meu inconsciente como a


única ópera com protagonistas negros que conhecia; as minhas referências negras nunca
eram citadas nas aulas, meus professores eram todos brancos e minha proposta de TCC
sobre as cantoras negras não foi aceita. Aqui eu já era a “chata” que racionalizava tudo.

A Profissão

Enfim a vida profissional. De um lado a sala de aula, onde aos 18 anos recebi o
nome de Pró, minha primeira experiência foi no Programa Mais Educação e lá todos os
dias eu era barrada pelo porteiro... nas aulas particulares nos condomínios de luxo de
Salvador ser parada pelos porteiros era uma regra e não estou falando da parada simples,
sempre havia um protocolo a mais... na performance, passei pelos coros e por recitais
próprios, até chegar aos papéis principais e por coincidência ou não, na nova montagem,
a Lídia de Oxum foi a minha primeira protagonista em Salvador.

As aulas, os casamentos, os “bicos” de produção e principalmente meus pais me


ajudaram a arcar com os custos de uma formação para além da faculdade e isso me fez
ganhar espaço no cenário da ópera nacional, onde cantei com pessoas que sempre admirei.
Cantar um trio com Edna e Edneia d’Oliveira, duas mulheres pretas, dois dos nomes mais
importantes da ópera nacional foi uma das minhas maiores realizações; cantei uma ópera
em Paris ao lado de Gilberto Gil e fui reconhecida por meus pares, mas...

Depois de uma récita na qual eu interpretava o personagem título da ópera e estava


há um mês praticamente morando no teatro, com um crachá no peito, fui barrada pelo
segurança pois pela porta que passei só os artistas podiam ter acesso; um diretor de cena
no primeiro dia de ensaio me pediu pra sair da sala pois aquele momento era só com os
solistas; recebi um convite pra fazer uma protagonista e o convite foi retirado pois uma
das pessoas da produção não acreditava que eu daria conta e exigiu uma audição aberta
com outros cantores do Brasil, na qual passei e assumi o papel e essa pessoa se recusava
me cumprimentar durante toda a produção; em uma outra situação como protagonista fui
eliminada de todas as entrevistas e só os cantores brancos iam para a TV...

Situações assim acontecem o tempo todo, são desgastantes e adoecem...


atualmente já não ando de ônibus lotado e o 1607 ficou no passado, e hoje estou cursando
o doutorado em Educação Musical, vale dizer veementemente que não estou falando
sobre meritocracia, essa é mais uma das ferramentas da branquitude e do racismo, estou
falando sobre atravessamentos que sempre inviabiliza nossas trajetórias.
Hoje tenho o prazer de ouvir de meus alunos negros e periféricos, alguns usuários
do 1607, que se enxergam em mim, que desejam trilhar o mesmo caminho que eu, que
decidiram estudar música por minha causa ou que sempre se veem diferentes depois de
um papo sério com a pró Irma, que consegue ser “pró, cantora e preta”.

Sigamos

Depois de tudo isso, resta dizer que, sem dúvida, meu percurso até aqui foi e
continua sendo mais árduo devido às questões sócio-raciais e enquanto a minha
presença/cor causar algum tipo de estranheza, enquanto ao sair do teatro ou da academia
eu for vista como suspeita por ser preta, a palavra firma será necessária e meu corpo
político falará.
Referências Bibliográficas

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA,


2019.

ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do


terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 01, p. 229-236, 2000.

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. Companhia das Letras, 2022.

CARNEIRO, Sueli; FISCHMANN, Roseli. A construção do outro como não-ser como


fundamento do ser. 2005.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

EVARISTO, Conceição. Escrevivência: a escrita de nós : reflexões sobre a obra de


Conceição Evaristo/organização Constância Lima Duarte, Isabella Rosado Nunes,
ilustrações Goya Lopes. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro : Mina Comunicação e Arte, 2020;

FRANCISCO, Luiz. Em greve, professores invadem Assembléia Legislativa da Bahia.


Folha de São Paulo, Agência Folha, Salvador
https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u59369.shtml acesso: 12/12/2023;

OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. Matripotência: ìyá nos conceitos filosóficos e instituições


sociopolíticas [iorubás]. Disponível: https://filosofia-africana. weebly.
com/uploads/1/3/2/1/13213792/oy% C3% A8r% C3% B3nk% E1% BA% B9% CC%
81_oy% C4% 9Bw% C3% B9m% C3% AD_-_matripot% C3% AAncia. pdf. Acessado
em, v. 25, n. 04, 2020.
REP’ORTAGEM, Simples. Quadro Negro. Salvador. 2004

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