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ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
SALVADOR
2023
Estrada cruzada: Um corpo preto na música de concerto
Irma Ferreira
Resumo
Eu sou a terceira das cinco mulheres da minha família que conseguiram adentrar
o ensino superior até o momento. A primeira Cristiane Santos Souza, minha prima, hoje
antropóloga, pós-doutora pelo Centro de Estudos Africanos em Moçambique; a segunda
minha irmã Angélica Ferreira, Assistente Social e Psicopedagoga; eu que atualmente
estou doutoranda em Educação musical pela UFBA, minha tinha Madalena Soares,
formada depois dos 50 anos em Pedagogia pela Universidade de São Paulo e mais
recentemente mãe Rita Maria Ferreira Santos, enfermeira, que aos 53 anos, que me deu o
privilégio de acompanhá-la no dia do vestibular, no dia matrícula no curso de
enfermagem, de levá-la na escola no primeiro dia de aula, enfrentar com ela todos os
medos e inseguranças que um curso superior, numa faculdade particular, pode causar a
uma mulher preta cursando sua primeira graduação depois dos 50 e por fim, depois de 4
anos de luta, entrar segurando sua mão em sua formatura, no momento de receber o tão
esperado diploma.
Nesse ponto se alicerça a história que contarei daqui em diante, um pouco da Irma
Ferreira, cantora lírica preta, que canta macumba e busca trazer para o palco e para a
academia vivências que são constantemente invisibilizadas e inviabilizadas em
decorrência dos atravessamentos contidos nas trajetórias formativas e performáticas de
cantoras e cantores líricas(os) negras (os) de Salvador.
Além das mais de duas horas entre o início da viagem e o ponto final, tinham os
caminhos esburacados, que em período de chuva viravam grandes armadilhas para os
coletivos que quebravam com frequência, os assédios, os engarrafamentos sem fim, a
falta de ventilação que fazia com que muitos passassem mal, principalmente aqueles que
quase não se alimentavam antes de sair de casa, e ainda tinha as temidas blitz policiais,
que enxergavam todos de uma única forma: suspeitos.
Mas como falei acima, venho de uma geração familiar onde estudar é a única
opção... e assim o 1607 – Paripe – Barra, das 5:10 da manhã entra na minha vida. Em
meados de 2002, aos 11 anos, embarquei pela primeira vez no coletivo que me transportou
por pelo menos mais 15 anos, até a minha chegada aqui no Programa de Pós Graduação
em Música da Universidade Federal da Bahia.
Greves de professoras e professores das escolas públicas - Destino Ginásio do
Servidor Público
Dito isso, minha segunda parada foi no Colégio Estadual Deputado Manoel
Novaes, e lá estava eu no ponto de ônibus às 5:10 da manhã esperando o 1607. Aqui eu
já tinha sido apresentada ao grupo Simples Rep’ortagem, obviamente por Angélica. Nesse
período eu devia ter uns 14 anos, mas ainda hoje é impossível ouvir a faixa Quadro negro
e não me emocionar, sabendo que ali aprendi que “das nuvens mais negras caí água limpa
e fecunda”; também aprendi sobre cotas, sobre o conceito de raça e o que seria
branquitude.
Nesse momento as coisas eram mais complexas, eu já era adolescente, sabia que
era preta, entendia algumas sutilezas do racismo e decidi participar do curso técnico de
música estudando violino, dando sentido às fitas K7 e ao pianinho que falei no início
deste tópico. Para conseguir essa vaga no colégio, minha mãe precisou dormir numa fila,
afinal era a única oportunidade da filha estudar aquela música, numa escola tida como
referência.
Assim cheguei, mais uma vez, à música de concerto, e o ônibus 1607 das 5:10 da
manhã, que sempre vinha lotado, continuou presente na minha rotina. Agora além de
procurar espaço pra mim tinha que achar espaço para o violino, que era da escola porque
eu não tinha condições de comprar o meu. Quantas vezes passei mal por causa da lotação?
quantas vezes fui assediada dentro do ônibus? E quantas vezes porque o ônibus quebrou
ou porque a Av. Suburbana estava alagada, cheguei atrasada por alguns minutos e não
pude entrar na aula? Com todo esse contexto, mesmo com as notas mais altas da sala, era
impossível para alguns professores compreender que para chegar na escola eu precisava
percorrer 28 km, com 20 paradas e cerca de 200 pessoas em um ônibus que devia
comportar 57, uma realidade na qual as consequências do sistema do racismo e da
branquitude eram palpáveis e que quando colocada ao lado de realidade colegas brancos
visualizamos mostra o oposto do que Kilomba (2002) traz em seu texto sobre o que
deveria ser a relação (ideal) entre professor e aluno:
O Canto Lírico
Por uma questão de saúde precisei me afastar da escola por quase um ano, precisei
parar de tocar e reformular todos os meus planos. Minha meta era estudar violino, passar
no vestibular da UFBA e tocar no palco do TCA com um black bem para cima. Nesse
momento ouvi de uma professora que se já era raro ver preto violinista imagine preto e
deficiente? Eu sabia o que queria, compreendia, aceitava e tinha orgulho da minha cor e
dos meus traços, mas nem por isso o sistema da branquitude e do racismo deixavam de
existir.
Um ano depois entrei no projeto Tim Música nas Escolas, para ser cantora, pois
já estava finalizando o ensino médio e o violino ainda não era uma opção. Entrei para
cantar música brasileira com uma orquestra juvenil de formato big band. Lá minha
professora de canto e outros professores me disseram que se eu quisesse ser “alguém” na
música precisaria estudar canto lírico, só dessa maneira poderia me profissionalizar no
canto, e assim foi.
Assim, trago a voz de Bento (2022), que vai tratar sobre o que ela chama Pacto da
Branquitude, que no ambiente do canto lírico vai garantir que esse estereótipo criado no
imaginário coletivo das pessoas sobre quem é e quem pode ser um(a) cantor(a) lírico(a)
venha se perpetuando ao longo dos séculos, passando muitas vezes por cima de questões
técnicas e de estética musical:
Descendentes de escravocratas e descendentes de escravizados
lidam com heranças acumuladas em histórias de muita dor e
violência, que se refletem na vida concreta e simbólica das
gerações contemporâneas. Fala-se muito na herança da
escravidão e nos seus impactos negativos para as populações
negras, mas quase nunca se fala na herança escravocrata e nos
seus impactos positivos para as pessoas brancas. É possível
identificar a existência de um pacto narcísico entre coletivos que
carregam segredos em relação a seus ancestrais, atos vergonhosos
como assassinatos e violações cometidos por antepassados,
transmitidos através de gerações e escondidos, dentro dos
próprios grupos, numa espécie de sepultura secreta. Assim é que
a realidade da supremacia branca nas organizações públicas e
privadas da sociedade brasileira é usufruída pelas novas gerações
brancas como mérito do seu grupo (BENTO, 2022, p. 16).
Pois bem, em 2010, resolvi fazer o vestibular para canto, tinha assistido o concerto
da Jessie Norman no TCA e tinha certeza de que podia fazer aquilo. Fiz o vestibular e
passei, aqui ainda sou usuária fiel do 1607, agora não mais todo dia. Entrei na faculdade
e ouvi que não tinha professor de canto, pois o professor “dono da cadeira” estava fora e
o substituto não tinha vagas, quem podia pagava professor particular, quem não podia
ficava para trás, adivinha a cor destes? O professor apareceu e, por ironia ou não, alguns
alunos ficaram sem aula por falta de vaga, e adivinhem novamente qual era a cor de suas
peles? Eu consegui vaga, mas os colegas que não conseguiram terminaram abandonando
o curso.
A Profissão
Enfim a vida profissional. De um lado a sala de aula, onde aos 18 anos recebi o
nome de Pró, minha primeira experiência foi no Programa Mais Educação e lá todos os
dias eu era barrada pelo porteiro... nas aulas particulares nos condomínios de luxo de
Salvador ser parada pelos porteiros era uma regra e não estou falando da parada simples,
sempre havia um protocolo a mais... na performance, passei pelos coros e por recitais
próprios, até chegar aos papéis principais e por coincidência ou não, na nova montagem,
a Lídia de Oxum foi a minha primeira protagonista em Salvador.
Sigamos
Depois de tudo isso, resta dizer que, sem dúvida, meu percurso até aqui foi e
continua sendo mais árduo devido às questões sócio-raciais e enquanto a minha
presença/cor causar algum tipo de estranheza, enquanto ao sair do teatro ou da academia
eu for vista como suspeita por ser preta, a palavra firma será necessária e meu corpo
político falará.
Referências Bibliográficas