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ENSAIO SôBRE O DIREITO FISCAL

LOUIS TROTABAS
Professor na Faculdade de Direito da
Universidade de Nanci

SUMÁRIO: 1. Duas concepções opostas do Direito fiscal: o di-


reito fiscal se subordina ao direito civil, ou constitui uma
disciplina autônoma? - 2. A antinomia do dÚ'eito civil e
do direito fiscal. - 3. As afirmações da teoria civilista.
Discussão. - 4. A autonomia das disciplinas jurídicas. -
5. O direito fiscal se relaciona com o direito público. -
6. A autonomia do direito fiscal no seio do direito público.
7. As relações do direito fiscal e do direito privado. -
8. Conclusão.

* 1 - De algum tempo a esta parte, uma oposição muito nítida e


que vai se acentuando, se revela entre duas maneiras bem distintas
de considerar os problemas de direito fiscal. Os juristas que se as-
senhorearam dêsses problemas se repartem, com efeito, em dois cam-
pos. O primeiro, que, na verdade, é o mais numeroso, e o mais re-
presentativo pela qualidade de seus paladinos, vai ao combate des-
fraldando a bandeira do direito privado, visando, antes de mais nada,
a proteger o contribuinte contra as arremetidas do fisco. É o partido
dos civilistas. Através dos estudos fi8cais de Gény 1, Pilon 2, Savatier 3,
Lalou 4, se exprime verdadeiramente um ato de fé na supremacia do
direito privado e tais autores condenam severamente todos danos que
lhe causam a jurisprudência ou as praxes fiscais. A essa atitude de-
fensiva se opõe a de um partido que parece mais ousado e inovador,
mais livre, pelo menos, porque se recusa a reconhecer, a priori, a su-
perioridade de uma fórmula jurídica qualquer, até mesmo a do Có-
digo Civil. Tendendo, pelo contrário, a admitir o caráter específico, a
autonomia, pelo menos relativa, das diferentes disciplinas êsses "in-

* NOTA DA RED.: Ver o artigo de F. Geny. ·0 particularismo do direito fiscal".


in Revista de Direito Administrativo, vol. 20. p. 6.
1 Nota de jurisprudência. in Sir., 1927.3.41.
2 Nota de jurisprudência. in D P, 1927.1.17.
3 Le Partage et les récentes lois fiscales, Chronique au DaIloz Hebdomadaire, 1926.
p. 41.
4 Droir fiscal contre Code civil, ibid., 1937, p. 9.
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dependentes" consideram como uma realidade jurídica que é inútil cri-


ticar, e que é muito melhor explicar a lei, a jurisprudência e as pra-
xes fiscais. Na verdade, tal partido é pouco numeroso 5, mas preten-
demos mostrar: que êle pode reivindicar a autoridade de eminentes
mestres; que repousa sôbre uma jurisprudência bem caracterizada,
bem definida pelos Comissários do Govêrno perante o Conselho de
Estado; e que, longe de ser herético ou revolucionário, está de acôrdo
com a verdadeira tradição das doutrinas jurídicas clássicas, as quais
o campo adverso crê possuir o direito de defender. Hoje, é comum
verificar que os mais modernos dentre os nossos músicos ressuscitam
os movimentos clássicos de Bach, os mais avançados dentre os nossos
pintores redescobrem as composições e o rítmo de Poussin, os arqui-
tetos mais inovadores, na aparência, tornam a inventar as linhas mais
simples e mais raras da arte antiga - e os artistas que julgam per-
manecer na tradição dos mestres, por uma estéril imitação, se afas-
tam, em compensação, das fórmulas essenciais: a arte jurídica, sem
dúvida, conhece igual vicissitude.
A oposição das duas doutrinas, que se defrontam sôbre o terreno
do direito fiscal, foi muito bem delineada pelo Deão Gény, que se
dignou lançar sôbre a nossa ofensiva um olhar, sem dúvida alguma
severo, mas, pelo menos, revelador de algum interêsse. 6 Existe aí, a
nosso ver, um malentendido que merece ser claramente focalizado, e
desejaríamos mostrar que a autonomia do direito fiscal se apóia em
algo mais do que "dois ou três "truismos" de uma banalidade rudi-
mentar". Para isso, verificando que os autores de tendência civilista
constituem hoje a maioria, tentaremos, de início, demonstrar que a
doutrina, por assim dizer oficial, do direito fiscal tende a considerar
êste último como uma ciência secundária. Eis aí, com efeito, a pri-
meira censura que se pode fazer a essa fórmula que conduziu pro-
priamente à negação, por asfixia, do direito fiscal. De outro modo
não poderia ela ter agido, porquanto pretende explicar as divergên-
cias evidentes do ponto de vista fiscal e do ponto de vista civil por
meio de simples "técnica fiscal". Estas primeiras pesquisas consti-
tuem apenas uma parte crítica e negativa, na qual desejaríamos mos-
trar os defeitos essenciais da doutrina civilista. Numa parte constru-
tiva, colocaremos em seguida o direito fiscal no quadro do direito pú-
blico, que é o seu. Veremos como sua autonomia se deve construir
em tôrno da noção do poder fiscal, como se deve conciliar com as ou-
tras disciplinas jurídicas, e, mais especialmente, com o direito privado.
Realmente, ninguém pode abordar o estudo do direito fiscal sem
ficar surpreendido com o lugar exíguo que se tem reservado a essa
disciplina entre tôdas as demais disciplinas jurídicas. Pois não foi a

5 Gény. que o combateu na nota precitada. faz referência às nossas próprias


publicações Chronique ao D.H .• 1926. p. 29 e nota in D.P. 1925.3.25 in fine. e aos
estudos de Charles Ambroise Colin. not. Cass • ciu. 1.0 de julho de 1925. D.P. 1926.1.19.
Citaremos. pelo menos. a nosso favor: Merlin. Rep .. V.o Enregistr .• § XIV. e o artigo
vigoroso de Ed. Thomas. Rev. de Droit Belge. 1891·1895. p. 353 e 424.
6 Vide Fr. Gény. nota precitada in Sir .• 1927.3041.
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doutrina civilista que - recusando ao direito fiscal a independência


de que o mesmo carecia para desenvolver-se e abusando dessas ima-
gens fáceis segundo as quais o direito fiscal seria encerrado no direito
comum ou no direito privado, o qual, ao mesmo tempo, "lhe serve de
base" e "o domina" 7 - acabou, propriamente, por sufocá-lo? Por
um paradoxo incrível, o direito fiscal, que penetra no fundo de tôda
atividade jurídica, controlando a vida nacional como a de cada pessoa,
garantindo a gestão dos bilhões do Estado, bem como avaliando as
magras economias do contribuinte menos favorecido, é, no conjunto
de nossas doutrinas jurídicas, o parente pobre, a "Cinderela", de quem
ninguém se ocupa. E tal sujeição, em princípio, do direito fiscal ao
direito privado, não constitui a única explicação para o fato de que
os próprios programas de nossas Faculdades ignoram, ainda hoje, que
as preocupações e os problemas de ordem fiscal estão no primeiro pla-
no da atualidade juridica? 8 Faz, apenas, três anos que os Cursos de
"Ciência e Legislação Financeira" 9 foram inscritos, em caráter obri-
gatório, nas matérias de licença universitária: com êsse novo regi-
me, os licenciados não contam, a título de ensinamento, em três anos
de estudo, senão com quarenta horas de aulas consagradas a tôda a
ciência e legislação financeira.
E ainda se pode acrescentar que essa concepção conduziu, quan-
do da recente reforma do doutorado, ao mais inconcebível desprêzo
pelo direito fiscal: doravante, êste último será afastado dos diplomas
de direito público, mesmo como matéria de opção - como se o direito
fiscal não tivesse essencialmente o seu lugar entre as disciplinas jurí-
dicas que se preocupam com os direitos do Estado e as relações do
Estado com os particulares! 10
Poderíamos nos alongar no exame das conseqüências - negati-
vas - às quais a doutrina civilista conduziu o direito fiscal. Isso, po-
rém, nos parece inútil. Mas pelo menos confessaremos não compreen-
der essa espécie de crença mística que a maioria dos juristas que
abordam os estudos dos problemas financeiros, e, principalmente, das
questões tributárias, revela possuir na superioridade do direito pri-
vado em tais assuntos. A sua principal cogitação deve ser a de pro-
teger o contribuinte contra o fisco, 11 sendo o Código Civil, com as

7 Fide Gény. nota precitada in Sir., 1927.3.41. 2. a col.. e ibid., p. 46, 3. a col.
8 Existe aí. ao nosso ver,· uma atitude científica que reproduz exatamente a ati-
tude social e política da burguesia para com as doutrinas fiscais, tão bem focalizada
por E. Allix no Prefácio de seu Tratado sôbre L' Impôt sur le Revenu, em colaboração
com Lacerdé, Paris, 1926, 2 vol.
9 E. na própria qualificação do ensino, que relembra as qualificações caducas de
"Cadeira de Código Civil", não existe a negação. pelo menos parcial. do Direito Fiscal.
convertido assim numa simples regulamentação legal? (Vide sôbre êste ponto G. Renard,
Le Droit, la Justice et la Volonté, Paris. 1924. p. 26).
10 Parece. aliás. que essa reforma jamais foi criticada. pelo menos sôbre êste
ponto, mesmo nos "meios autorizados": vide nota. na Revue Générale du Droit, de
la légis. et de la juris., 1927, p. 78, artigo assinado J. B.
11 Entendemos a palavra Fisco no seu sentido usual e geral. querendo, com isso.
significar a Administração das Finanças Públicas. e não o Estado considerado como pro-
prietário do Domínio privado e realizando. segundo antigas concepções, uma certa per-
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suas concepções individualistas, considerado como excelente sistema


de defesa. Mas não existe aí, em favor da doutrina civilista, senão
uma base bastante frágil. Tal doutrina, todavia, parece ter sido, ou-
trora, jurIdicamente bem fundamentada. É que a geração anterior
quase não conheceu, como dificuldades importantes em matéria de im-
postos, senão problemas de registro fiscal. Os impostos diretos do
tipo antigo eram pouco propícios à eclosão de dificuldades jurídicas
comparáveis àquelas suscitadas pelos impostos modernos sôbre as
rendas.
E, sob a influência do aspecto patrimonial que apresentam as
questões de registro, bem como sob a influência da formação jurídica,
aliás, levada ao extremo, dos próprios agentes fiscais; e, ainda, sob a
influência da alçada judiciária mal analisada, é que se adquiriu o
hábito de se resolver as dificuldades fiscais como se elas fôssem uni-
camente dificuldades de direito privado. Perdeu-se de vista o fato
de que as relações contribuinte - fisco não se estabelecem no plano
de igualdade própria do direito civil. Se bem que a fórmula da apli-
cação das regras do direito privado ao direito fiscal pareça, de fato,
perpetuar uma rotina: rigorosamente defensável em matéria de re-
gistro, 12 desde que se trate de outro impôsto, ela procede, nesse caso,
de um êrro jurídico evidente, o qual, entretanto, é preciso fixar com
exatidão.
2. - Quando a doutrina civilista afirma, como já se viu, que o
direito fiscal estaria de algum modo enquadrado no direito privado,
não pretende, contudo, sustentar que o Código Civil deva reger o lan-
çamento, a liquidação e a cobrança do impôsto. Todo o mundo sabe
que leis especiais têm ingerência nesses assuntos, principalmente para
determinar as bases da imposição e para submeter certos bens ao im-
pâsto. No próprio sentido literal da lei fiscal, já existem, portanto,
os elementos de uma diferenciação desta lei e da lei civil, ou, se o
quiserem, o sinal de uma independência da primeira em relação à se-
gunda. Recentemente, H. Lalou mostrou que numerosos artigos do Có-
digo são deliberadamente desprezados pelas disposições da lei fiscal. 13
A demonstração é por demais evidente para que se deva repetir.
Acrescentaremos apenas que tal desacôrdo legislativo não é peculiar
às leis fiscais mais recentes, por isso que, por exemplo, uma lei de
1836 já desprezava os artigos do Código Civil relativamente à distin~
ção entre móveis e imóveis no que dizia respeito a uma determinada
lei tributária. 14
sonalidade moral independente de direito privado (vide L. Michoud. La théorie de la
personalité morale, 2. a ed., 1924. t. r. ps. 21-25), por oposição ao Tesouro conside-
rado como sendo o Estado credor e devedor (vide Hauriou, Précis dp Droit administratif.
10. a edição. 1921, p. 807).
12 Mas isso não passa de aparência. porque o estatuto do contribuinte é inde-
pendente da categoria do impôsto.
13 Vide a Chronique precitada in D.H. 1924. p. 9: adde R. Savatier. Le partage
et les récentes lois fiscales, D.H., Chronique, 1926. p. 41. e F. Gény. loc. cito
14 Lei de 18 de julho de 1836. art. 2. Vide as aplicações da jurisprudência
relativa aos móveis considerados como imóveis do ponto de vista fiscal em F. Imbrecq.
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Os que consideram o direito fiscal como tributário do direito pri-


vado, e censuram aquela legislação de violar a regra civil, acabam,
entretanto, por se acomodar a tal situação, porque não existe nisso,
segundo êles, senão uma série de exceções, que confirmariam a regra
da supremacia do Código: forçados a inclinar-se perante a lei, re-
conhecem que a lei fiscal é capaz de libertar-se do direito comum. 15
Mas é preciso reconhecer, ainda, que a jurisprudência fiscal despreza
também a lei civil, ou, mais geralmente, as regras do direito privado.
Assim é que a jurisprudência fiscal (quer provenha dos tribunais ad-
ministrativos, quer dos tribunais judiciários) não vacila em qualifi-
car como "renda", e na ausência de qualquer definição legal, quantias
que costumam ser qualificadas como "capital" nas relações de direito
privado; 16 em considerar como negociantes certas pessoas não clas-
sificadas como comerciantes do ponto de vista da lei civil, pelo sim-
ples fato de auferirem lucros comerciais; 17 em reconhecer a existên-
cia regular de certas atividades que, em direito privado, são conside-
radas como contrárias aos bons costumes, 1~ ou como sujeitas à san-
ção da lei penal; 19 ou, ainda, em se separar deliberadamente do Có-
digo Civil quando se recusa a conceder juros ao contribuinte que ob-
tém restituição de um imposto, 2'0 como, aliás, se recusa a concedê-los
ao fisco por atraso do contribuinte.

Tr. prato de I'Impôt su.r la Propriété Bâtie, Paris. 1925. p. 23 - Adde e opr. Casso civi.,
8 de março de 1927. Sir., 1927.1.239.
15 Vide infra. n.o 3. a exposição da tese de F. Gény.
16 Vide noto Cons. d'Et.. 15 de fev. de 1923. D.P. 1923.3.9. e nossa nota;
5 fev. de 1925. D.P. 1925.3.25 e nossa nota; Casso civ., 1.0 de julho de 1925. D.P.
1926.1.19 e a nota de Charles Ambroise-Colin.
17 Vide Cons. d'Et., de 5 de janeiro de 1923. Dame Doin, D.P. 1923.3.1 com
as Conclusões de Berget e uma nota. aliás em sentido contrário. de Palmade. Assinala-
remos também que a mulher casada ou o menor não têm, de ser autorizados para serem
comerciantes. do ponto de vista fiscal. (Vide L. Bocquet. L'[mpôt sur le Revenu, 3. a ed ..
Paris. 1926. p. 242). Sem dúvida. só invocamos aqui a jurisprudência construtiva.
isto é. a jurisprudência que não repousa sôbre uma definição legal do comerciante do
ponto de vista fiscal. Assim. não extraímos argumentos do Decreto de Cod. de 15
de outubro de 1926 que. em seu art. 56. par. 5. assemelha os titulares de cargos e
ofícios aos comerciantes.
18 Cons. d'Et., de 8 de junho de 1923. Dame X. D.P. 1923.3.65,6. caso.
19 Casso Reg., de 21 de novo 1898. D.P. 1899.1.41; Casso crim., de 8 de
abril de 1922. D.P. 1922.1.125.
20 Vide nota Cons. d'Et .. de 29 dez. 1866. Cie. de Lyon, Lebon, p. 1082;
26 fev. de 1875, Rigaud, D.P. 1875.3.119; 28 de dez. 1877. Piédove. D.P. 1878.3.34;
Casso civ .• 6 de novo de 1900, D.P. 1901.1.186; Trib. civ. de Tizi-Ouzou. de 21
de março de 1900. D.P. 1902.1.97. com a nota de Sarrut. e. para uma confirmação
mais recente. Cons. d'Et., de 27 de julho de 1923. Sir., 1927.3.41-47. com uma nota
de Fr. Gény. O Sr. Gény. em face do art. 1.153 do Código Civil não chega natu-
ralmente a justificar essa jurisprudência: aqui também êle se vê obrigado a reconhecer
a existência de ·uma regra de favor e como um privilégio das finanças públicas.
uma prescrição especial de direito fiscal", que vem • enxertar-se no direito comum". Não
está aí a expressão mesma da doutrina da autonomia do direito fiscal. que êle combate
por outro lado? Foi. aliás. a respeito dos juros de mora em direito fiscal (Des intérêt.
moratoires en Droit fiscal) que Ed. Thomas expôs na Ret). du Droit belge precitada
(r. lI. pS. 353 e 424) a doutrina da independência do direito fiscal e do direito civil.
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3. - É em face dessa jurisprudência dissidente que se define a


doutrina fiscal dos civilistas. Embora a maioria se limite a procla-
mar a superioridade do direito civil sôbre o direito fiscal, o que é uma
afirmação gratuita e não uma razão demonstrativa, temos, pelo con-
trário, a boa sorte de encontrar, na pena do deão Gény, a justifica-
ção teórica dessa doutrina. O Sr. Gény, em presença da antinomia rf'-
velada entre a lei fiscal e a lei civil, reconhece que existe "uma técnica
propriamente fiscal que introduzirá na técnica jurídica geral alguns
elementos novos, que a completarão sem destruí-la, que poderão mes-
mo, por vêzes, estorvar alguns de seus preceitos". 21 E êsse autor
acrescenta: "Sob a condição, apenas, de ser formalmente legalizada, a
técnica fiscal é levada a ferir ou atentar contra o direito comum, que,
por outro lado, a domina com o seu valor universal". 22 Isto é o mesmo
que dizer que o direito fiscal somente pode exprimir-se através de um
texto legal, e que no silêncio do texto, suas dificuldades devem ser re-
solvidas de acôrdo com as regras do direito privado.
Tal fórmula revela, ao nosso ver, o êrro da concepção civilista do
direito fiscal. O ponto essencial da controvérsia está fixado com bas-
tante nitidez: ninguém contesta que a lei tem o poder de estabelecer
regras especiais para o direito fiscal; trata-se simplesmente de saber
se, quando a lei fiscal é omissa, o juiz e o intérprete devem ou não su-
jeitar-se, para resolver uma questão de direito fiscal, à regra do di-
reito privado. 23
Para combater a tese civilista, observaremos, antes de mais nada,
que a lei fiscal se libertou de tal maneira do direito privado, principal-
mente nos dias atuais, que acabou por constituir realmente um corpo
de doutrina independente, que se traduz fatalmente por uma autono-
mia, a qual não pode ficar restrita, como o quer Gény, a "uma técni-
ca propriamente fiscal".
Os poucos exemplos, que acabamos de apontar, mostram que a
concepção jurídica da lei fiscal tão longE está dE. concepção civilista
que existe, no fundo, uma antinomia, uma independência de algum
modo "material" entre as duas categorias de leis. Há, porém, mais.
A lei fiscal, ou pelo menos a lei que estabelece um impôsto, está
sujeita a um processo legislativo especial 24 que pressupõe, ou que
acarreta, uma autonomia "formal" da lei fiscal: isto prova, inciden-
talmente, que a matéria fiscal é "privativa", mesmo em direito posi-
tivo, de uma ordem jurídica especial, em relação ao qual a ordem do
direito privado deve ser considerada como inoperante.

21 F. Gény. nota precitada in Sir .• 1927.3.41.


22 Ibid.
23 A situação faz lembrar exatamente o que se pôde observar em direito admi-
nistrativo quando se indagava. por exemplo. as questões de responsabilidade ou de
procedimento podiam ser resolvidas mediante regras próprias. ou. pelo contrário. deviam
obedecer às regras do direito privado (vide infra. nota 48).
24 Lei Constitucional de 24 de fev. de 1875. art. 8. à qual convém ajuntar as
disposições dos Regulamentos de Câmaras que organizam de modo especial. em matéria
fiscal. o procedimento legislativo (direitos de emenda. por exemplo).
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É inútil, aliás, insistir sôbre tais argumentos. Parece, com efei-


to, segundo as próprias doutrinas de Gény, que a "técnica propria-
mente fiscal", cuja existência é pelo mesmo autor reconhecida, deve
acarretar o reconhecimento da autonomia do direito fiscal. Tendo em
vista que a lei escrita não contém todo o direito positivo em vigor, 25
parece fatal que tôda lei escrita deve segregar um outro direito posi-
tivo, que a desenvolva e prolongue, e quando essa lei escrita é especia-
lizada, como a lei fiscal, deve, portanto, criar um corpo de direito po-
sitivo especializado, autônomo. Como limitar o direito fiscal a uma
pura técnica, pois que a "técnica", de acôrdo com o que escreve o
próprio Gény, transpondo a idéia de "coisa construída", designa "o
esfôrço especial, e de algum modo profissional, que assume, na ordem
jurídica, um relêvo predominante bem como uma importância consi-
derável"; 26 pois que é sabido que "elementos básicos e construções se
misturam e se entrecruzam para fornecer à vida jurídica tôdas as di-
reções necessárias" e que" não se deve desprezar o fato de que a
construção, obra de vontade artificial, senão arbitrária, acaba por
aumentar, gradativamente, a soma dos "elementos básicos"? 27 Por
direito autônomo ninguém jamais concebeu um direito arbitrário, e,
somente a lei, certamente, pode estabelecer ou aumentar os impostos. 28
Mas qualquer que seja a importância da lei escrita, em assunto fiscal
como em qualquer outro assunto, subsiste ao lado da mesma um do-
mínio da "livre pesquisa", 29 pelo menos para aplicar e interpretar a
lei, domínio que vai necessàriamente permitir a eclosão de uma "cons-
trução" jurisprudencial ou consuetudinária, e tudo o que nós deseja-
mos, é que tal pesquisa seja tanto mais "livre", quanto mais deixe de
respeitar o direito privado.
Admitamos, porém, que tais argumentos não tenham valor, e ve-
jamos se, penetrando fundo na controvérsia, é possível admitir, com
Gény, que o direito fiscal só existe no caso de ser "formalmente le-
galizado". Entende Gény, nesse ponto, segundo suas próprias refe-
rências, que o direito fiscal, ou mais especialmente, a lei de impôsto,
faz parte dessas hipóteses para as quais "uma lei escrita" (ou pelo
menos um costume nitidamente caracterizado) se afigura hoje ne-
cessária para formular uma regra de direito, que escapa, por isso
mesmo, ao círculo da "livre pesquisa" do jurisconsulto. 30 Eis aí, po-
rém, uma afirmativa difícil de ser aceita, tanto mais que não se com-
padece com certas regras do nosso direito público atual. Assim, quan-
do Gény cita, de um modo geral, como a primeira dessas hipóteses,
de onde se exclui a livre pesquisa, "as disposições escritas, ou mesmo

25 Vide nota de Fr. Gény. Science et Technique, t. I (2. a edição - 1922). n.o 11.
26 F. Gény, ibid., t. I. n.o 34. p. 99.
27 Ibid" n.o 33. p. 97.
28 Ibid., 1924, t. IV. n.o 278, 4.°, p. 42.
29 Fr. Gény, op. e loco cit., p. 45.
30 Vide Fr. Gény, nota precitada in Sir., 1927.3.41 e Science et Technique, t. IV.
n.o 278, pS. 39-40. Verificar-se-á, aliás, que Gény é coerente consigo mesmo quando
repete as mesmas fórmulas a propósito da validade jurídica da cláusula ·pagável em
ouro", na Rev. Trim. de Droit Civil, 1926, ps. 557-636. noto p. 618.
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consuetudinárias, que constituem, sôbre qualquer ponto, um direito p0-


sitivo, nitidamente estabelecido, 31 êle não leva em conta a jurispru-
dência administrativa que se afasta freqüentemente do sentido lite-
ral da lei, e não hesita em "construir" (interpreta) contràriamente às
disposições do texto escrito. 32
Quando, em seguida, aquêle autor afirma que "o direito moderno
~xclui, também, da esfera da livre interprp.tação a determinação das
Incriminações e das penalidades", 33 esquece, ainda, a prática de di-
reito público da Côrte de Justiça, excepcional é bem verdade, porém,
não obstante isso, bastante definida. 34 Quando continua, dizendo que
"as formas de processamento, de publicidade, de prova, e de modo
mais geral, a maioria das formas jurídicas (principalmente as forma-
lidades administrativas) não podem, na mor parte das vêzes, em nos-
so estado de civilização, ser criadas pelo intérprete", 35 deixa de "lado
tôda a jurisprudência administrativa que, no silêncio dos textos, con-
seguiu elaborar, por si própria, as regras de processo impostas aos
corpos deliberativos, 36 bem como a jurisprudência pela qual o Con-
selho de Estado autoriza a Administração a não observar certas re-
gras formais, certos prazos expressamente previstos pela lei, 37 e não
leva em conta, finalmente, o fato de que o processo administrativo "é
distinto do processo civil, tem sua índole própria, e se desenvolve de
maneira independente: quando os textos que o regulamentam são in-
suficientes, compete ao próprio juiz administrativo formular-lhe as
regras". 38

31 Science et Technique, loco cit., p. 40.


32 Ex.: o Conselho de Estado decide que os Montepios são Estabelecimentos
Públicos, embora a lei de 24 de junho de 1851, art. I, os qualifique de Estabelecimentos
de utilidade pública: v. Cons. d'Er., de 20 de junho de 1919, Brincat, D.P. 1922.3.13
e a nota de H. Puget; de igual modo, o Conselho de Estado decide, apesar dos têrmos
formais da lei de 25 de abril de 1905, art. 65, que se pode, por vêzes, destituir um
funcionário sem lhe dar conhecimento dos autos do processo de destituição: vide Cons.
d'Et., de 7 de agôsto de 1909, Winchel, Sir., 1909.3.105, com a nota de Hauriou e
R.D.P. 1909, p. 474, com a nota de Jeze; ou ainda, o Conselho de Estado admite a
aceitabilidade do recurso contra excesso de poder formulado contra uma decisão verbal.
embora o Decreto de 22 de julho de 1806 obrigue o requerente, sob pena de nulidade,
a anexar ao seu agravo o texto da decisão atacada: vide Cons. d'Er., de 8 de julho de
1900, Bruant, Lebon, p. 565. Os exemplos poderiam ser multiplicados indefinidamente.
33 Op. cit., p. 41.
34 Vide, Cour de Justice, 6 de agôsto de 1918, Malvy, D.P. 1923.3.25 e a
nota de L. Sarrut. Adde, G. Renard, Le Droit, la Logique et le bon Sens, Paris, 1925.
p. 307.
35 Op. cit., p. 43.
36 Vide R. Alibert, Le Contrôle juridictionnel de I'Administration, 1926, p. 225
e a juris. citada.
37 Vide, Cons. d'Et., de 25 de março de 1904, Gaudin, Lebon. pS. 278-280.
38 Hauriou. Précis de Droit Administrarif, lo.a ed •• 1921, p. 907, nota 1. Num
acórdão recente (Cons. d'Et., de 13 de março de 1925. Desreumaux, D.H., 1925, p. 272).
o Conselho de Estado aplicou uma regra de processo civil. por omissão da lei adminis-
trativa, mas definindo bem que a lei de 20 de abril de 1810, segundo a qual dOÍl
parentes no grau de irmão não podem ser simultâneamente membros de um mesmo tri-
bunal. somente tem em mira os tribunais da ordem judiciária. Tal disposição somente
se transporta para o direito administrativo porque o Conselho de Estado, sem nenhuma
- 42-

Vê-se, por êsses poucos exemplos, que as diferentes hipóteses das


quais seria excluída a livre pesquisa, segundo Gény, se acham inva-
lidadas em direito público. Ora, como foi entre tais hipóteses que se
nos apresentou a fórmula da "técnica propriamente fiscal", oposta à
"autonomia do direito fiscal", não parece certo que tal fórmula possa
justificar a tese civilista. Sem contestar o valor dos princípios esta-
belecidos por Gény, na medida em que se trata, segundo o próprio
título de sua obra, de "ciência e técnica em direito privado positivo",
pode-se afirmar que a aplicação pura e simples de tais princípios se
torna contestável quando se trata de direito público, como se acaba de
verificar, porquanto "as normas jurídicas que regem a organização e
o funcionamento do Estado, ou as relações dos indivíduos com êste
último compõem o direito público, se bem que caindo sob a noção ge-
ral do direito positivo, gozam de maior elasticidade e comportam san-
ções menos rígidas, inclusas na própria organização do Estado". 39
E isso nos leva a definir, com exatidão, o sentido e o alcance da au-
tonomia do direito fiscal: é em direito público que deve ser construída,
porque o direito fiscal, mesmo na medida em que se relaciona com a
aplicação das leis de impôsto, emana do direito público, e não do di-
reito privado, que regula unicamente "as relações dos particulares en-
tre si. 40
4. - Antes de construir, destarte, a autonomia do direito fiscal
em direito público, não nos desagrada verificar, como um precioso enco-
rajamento, e como uma espécie de comprovação prévia, que a pesquisa
dessa autonomia parece ter sido naturalmente alcançada pela evolução
de nossas doutrinas jurídicas: os contemporâneos movimentos de
idéias parecem favorecer a especialização das disciplinas. Recente-
mente se viu um célebre autor, que sempre estêve disposto a pregar
a fusão do direito comercial e do direito civil, reivindicar, no fim de
sua carreira, por uma dessas mudanças de opinião que honram a cons-

obrigação legal, a julga de acôrdo com os pnnClplOS da organização contenciosa adminis-


trativa. De igual maneira, se o juiz administrativo (estatuindo, aliás, em matéria fiscal)
recusa pronunciar-se ultra petita, nenhum texto invoca para justificar esta regra (v. Cons.
d'Et., de 17 de dezembro de 1926, Sir., 1927.3.48). Pode-se ainda acrescentar que é
na ausência de texto expresso que a jurisprudência administrativa aplica o princípio se-
gundo o qual tôda decisão suscetível de um recurso, deve ser motivada (vide em matéria
fiscal: Sons. d' Et., de 10 de agôsto de 1918 a 5 de julho de 1919, citadas por E. Besson,
Tr. prato de la Contl'ib. extraord. SUl' les Bénéf. de guerl'e, 3. a ed., n.o 279, ps. 259).
Sôbre o estudo geral das condições em que as regras pocessuais adotadas quanto aos tri-
bunais judiciários se aplicam às jurisdições adrmnistrativas, vide a nota referente ao
acórdão do Conselho de Estado, de 12 de novo de 1926, Soe. Dickson Walrave et Cie.,
D.P., 1927. 3 . 35. Observar-se-á, enfim, que a elaboração jurisprudencial dessas regras
de processo se verifica por meio de certas inversões de jurisprudência: vide, por exemplo,
o acórdão do Conselho de Estado, de 26 de dez. de 1925, D.P., 1926.3.52. Em tôdas
essas hipóteses, vê-se que a fórmula de Gény, segundo à qual o intérprete seria Nna
maioria das vêzes" incapaz de Ncriar", está completamente às avessas (sôbre o poder da
jurisprudência administrativa, vide ainda Hauriou, op. cit., 10. a ed., p. 886, nota 1
r p. 891).
39 F. Gény, op cit., t. I. n.o 20, p. 64 .
... 0 Ibid.
- 43-

ciência profissional, a autonomia do direito comercial. 41 De modo mais


geral, o Sr. G. Renard, um de nossos mestres maIS operosos, que sabe
conciliar o respeito da tradição e as iniciativas audaciosas, por uma
série de resenhas, ricas de ensinamentos vivos e de observações con-
cretas, pôs em foco as tendências modernas para a "especificação" das
disciplinas jurídicas. 42 E se invocarmos, ainda, o testemunho bem
nítido de eminentes mestres, quer do ponto de vista geral dos "méto-
dos jurídicos",43 quer, enfim, do ponto de vista mais particular da
autonomia da ciência das finanças, 44 ver-se-á que não partimos para
o combate sem chefes, e que a autonomia do direito fiscal não pode
ser sustentada por uma fórmula revolucionária, ou pela expressão de
uma idéia "no ar", de um ponto de vista talvez original, porém
contestável.
Importa, aliás, definir com exatidão aquilo que entendemos por
autonomia do direito fiscal. Trata-se, em última análise, de assegu-
rar a independência jurídica dessa disciplina. Do mesmo modo que,
na organização romana, certas cidadts do Império podiam governar-se
por suas próprias leis, e eram, ipso facto, autônomas, assim também,
na organização jurídica moderna, certas disciplinas são regidas por
normas que lhes são próprias, dizendo-se, então, que elas são autôno-
mas. Para não falarmos senão em disciplinas de direito público, que
compreendem, aliás, o direito fiscal. como veremos mais adiante, di-
remos que o direito administrativo é um direito autônomo porque pos-
sui regras de direito que lhe são próprias, 45 e que tais regras são apli-

4 I C. Vivante. L' autonomie du droit du commerce et les projets de reforme em


Annales du droit commercial. 34.0 ano. out.-dez .. 1925. p. 265.
42 G. Renard. Le Droit. la Logique et le bon sens. Paris. 1925. 9. a conferên-
cia. ps. 297 - 3 3 5 .
43 Vide F. Larnaude. Les méthodes juridiques. Conferência proferida no Co/lege
Libre des Sciences sociales. Le Droit publico 50 conception. 50 méthode. dans Revue du
Droit Publico 1902. p. 5.
44 Vide Gaston Jhe. Cours de Science des finances. 6. a edit .• Paris. 1922. p. 21.
e seus diversos Cours de Finrrnces publiques. noto Cours de 1926-1927. Paris. 1927.
p. 23. com as referências às obras de L. Einaudi. Flora e Tangorra.
45 Ver. no sentido da autonomia do direito administrativo. assim entendida: Hau-
riou. Précis de Droit Administratif. Il.a edição. 1927. p. 2: "Nos países sob regime
administrativo. . .• não há uma só espécie de leis. mas é preciso distinguir leis ordiná-
rias e leis administrativas". e ibid .• p. 7: "o regime administrativo comporta um poder
administrativo dotado de autonomia"; aLide em Précis élémentaire de Droit Administratif.
1926. p. 15: "os caracteres do direito administrativo, sua autonomia e seu caráter ex-
cepcional em relação com o direito comum"; J. Appleton. Traité élémentaire du con-
tentieus administratif. 1927. p. I 2: "os textos e os princípios do direito civil são. em
geral. inaplicáveis às relações entre o poder público e os administrados. Durante longo
tempo essa verdade passou despercebida. sobretudo na doutrina e perante os tribunais
judiciários: esforrava-se por ddinir as instituições próprias ao direito administrativo.
determinando-lhes os efeitos. fazendo-as entrar artificialmente no quadro das instituições
do direito privado. e aplicando-lhes por analogia as regras dêste último direito. Tal
método vicioso retardou. de certo modo. o desenvolvimento do contencioso administra-
tivo. que sômente atingiu a sua plenitude graças ao perseverante esfôrço feito pelo Con-
selho de Estado para aplicar. aos litígios submetidos à sua jurisdição. regras próprias
do direito público"; Raphael Alibert. Le contrôle jun'dictionnel de l' Administration . ..•
1926. p. 12: -a separação do direito público e do direito privado. .. é tão nítida que
- 44-

cadas por uma jurisdição que lhe é própria. Todo o mundo sabe,
aliás, que essa autonomia do direito administrativo é. uma conquista
recente: a subsistência da distinção de atos de autoridade e atos de
gestão, segundo a grande autoridade de Laferriere, continuaria mes-
mo a sujeitar certas matérias do direito administrativo às regras do
direito privado. 4G Mas essa autonomia, hoje inc::mteste, permitiu, real-
mente, o desenvolvimento feliz do nosso direito administrativo, e, quer
esteja êste último delimitado pela idéia de fim de utilidade pública,
quer pela idéia de meio de serviço público, 4i ninguém mais duvida,
por isso mesmo, que êle se coloca fora do direito privado. Pràtica-
mente isso se traduz pelo fato de que a lei administrativa tem quali-
dade para regular as situações jurídicas diferentemente da lei do di-
reito privado, e de que, no silêncio da lei administrativa, o juiz e o
intérprete não devem obrigatoriamente recorrer a lei de direito pri-
vado, considerada como direito comum, executivo de si próprio. Têm,
pelo contrário, o poder de apreciar até que ponto convém recorrer ao
direito privado e até que ponto convém elaborar uma regra de direito
própria do direito administrativo. 48
Nada mais reivindicamos para o direito fiscal. Falar em sua au-
tonomia é dizer que a lei fiscal, assim como a lei administrativa, tem
assegura a independência completa do direito público. transformando-o num monumento
jurídico auto-suficiente. a independência do direito público se manifestando mesmo
nas matérias em que a autoridade pública se encontra numa situação jurídica análoga
áquela que rege os particulares"; G. Renard. Cours élémentaire de Droit Public, 1922.
ps. 61 e seguintes: "da existência de um direito administrativo autônomo"; G. Jhe.
Les principes généraux du droit administratif, 3. a ed.. 1925. expondo passim (e noto no
Préface da 2. a ed .. pS. VI-XVIII) a teoria do processo de direito público em oposição
ao processo de direito privado; L. Duguit. Tr. de Droit Constitutionnel. 2. a edição. t. I.
1921. rejeitando inteiramente a distinção tradicional de direito público e de direito pri-
vado (parágrafo 59. pS. 52 e seguintes). chega, entretanto. a isolar diferentes disciplinas.
dentre as quais o direito administrativo (p. 544); R. Bonnard indica. com muita pre-
cisão. que "em princípio. a legislação do direito privado não é aplicável ao direito pú-
blico" (Le pouvoir discrétionnaire ... R.D.P .. 1922. p. 387). Vide ainda as idéias de
um precursor. demasiadamente ignorado. A. Gautier. Précis des matieres administratives
dans leurs rapports avec les matieres civiles e judiciaires. '. et avec le droit public, 2 voI.,
Paris. 1879 e 1880.
46 Vide nota sôbre êste ponto: H. Berthélemy. Traité de Droit Administratif,
10.a ed.. ps. 40 e segs.
47 Vide o Préface de Hauriou. no frontispício da II. a ed. do seu Précls de Droit
Administratif, 1927.
48 Quando. em direito administrativo. se aplica a lei de direito privado. tal não
se dá porque essa lei seja considerada a priori como obrigatória. mas porque os prin-
cípios que ela exprime são considerados como válidos com relação ao direito adminis-
trativo. É. principalmente. o que se verifica a propósito do processo administrativo (vide
supra nota 38) e a propósito da responsabilidade administrativa. após a jurisprudência
do acórdão Blanco (vide P. Duez. La Responsabilité de la Puissance publique (en dehors
du contrat) , Paris. 1927. nota. ps. 10-11). Sôbre êsse último aspecto. poder-se-á ava-
liar todo o alcance prático da autonomia do direito administrativo comparando a nossa
jurisprudência tão liberal com a jurisprudência pelo contrário muito severa que se de-
senvolveu na Bélgica. onde não existe direito administrativo autônomo (para o estudo
dessa última jurisprudência. vide nota em: A. Meyers. De la Responsabilité civile de
l' Etat e des Administrations publiques du fait de leurs fonctionnaires et agentes. Dis-
curso pronunciado na sessão de reabertura do Tribunal de Liege. em. 1.0 de outubro
de 1923 e nossa C.R .. Revue Critique, 1924, t. XLIV, p. 182.
- 45-

a faculdade de regular, a seu modo, situações jurídicas, e que, quando


é omissa, no caso de se apreciar uma situação jurídica em matéria
fiscal, não é necessàriamente a lei civil a que mais convém seja
aplicada.
Como sucede em direito administrativo, esta última não se impõe
a priori ao juiz fiscal, sendo também inútil querer resolver, custe o
que custar, uma questão fiscal pelas regras do direito privado, ou pre-
tender que "o direito civil domine e deva dominar o direito fiscal", 49
bem como seria debalde, em direito administrativo, querer resolver
uma questão que se relacione ao funcionamento de um serviço público
de acôrdo com o Código Civil.
As razões que obrigam a reconhecer a autonomia do direito fiscal,
assim bem delimitada, parecem evidentes: porque existem para o di-
reito fiscal, como para o direito administrativo, fontes de direito que
são próprias dessa disciplina, e mesmo uma ordem de jurisdição, se-
não uma jurisdição, que lhe é própria,50 o que caracteriza a autono-
mia jurídica. 51 Tudo isso, aliás, resulta como adiante haveremos de
ver, da incorporação do direito fisca,z ao direito público; veremos, de-
pois, que, mesmo no direito público, o direito fiscal se organiza com
uma fôrça criadora particular, e que está longe de restringir-se a uma
sêca regulamentação, a uma simples técnica. Enfim, restar-nos-á in-
dicar até que ponto o direito fiscal parece admitir as regras do di-
reito privado.
5. - Ao afirmarmos que o "o direito fiscal faz parte do direito
público", reconheceremos, de boa vontade, que esta fórmula não pas-
sa, se assim o quisermos, de um "truismo"; 52 mas confessamos pre-
ferir a expressão de uma verdade banal ao desprêzo dessa verdade.
Quando dizemos que o direito fiscal faz parte do direito público, longe
de reivindicar, com efeito, uma descoberta, exprimimos simplesmente
uma opinião que tem a seu favor tôda a doutrina. A independência do
direito fiscal em relação ao direito privado, e se acha assim colocada
sob o patrocínio dos melhores autores.

49 E. Pilon. nota em D.P .. 1927.1.17. in fine.


50 É-nos impossível apresentar aqui uma visão de conjunto do contencioso fiscal.
assim compreendido. Mesmo assim. forçoso será convir em que a devolução dos litígios
fiscais e a sua solução. seja perante o juiz administrativo. seja perante o juiz judiciário.
se acham submetidas a regras tão particulares que se pode admitir. pelo menos provi-
sôriamente. uma ordem jurisdicional especial. meio administrativa. meio judiciária. Pros-
seguiremos. aliás. por outro lado. o estudo sôbre "La Nature juridique d·u Contentieux
fiscal en droit français. Além disso. a existência de uma jurisdição especial é mais uma
verificação do que uma condição sine qua non da autonomia jurídica.
5 I Vide supra. no segundo parágrafo do item 4 do presente trabalho.
52 Vide F. Gény. nota precitada em Sir.. 1927.3.41
53 Seria de grande interêsse verificar as origens históricas da incorporação do di-
reito fiscal ao direito público. Na falta de uma documentação suficiente sôbre êsse
aspecto. limitar-nos-emos a fazer referência a Domat. Les lois civiles dans leur oráre
naturel. le Droit public et Legum delectus. nova edição. 2 voI.. Paris. Durand. 1777.
que estuda perfeitamente o problema jurídico das Finanças no Direito Público (t. 11.
livro I. título V. Adáe ibid .• t. I. Tr. des Lois. capo XI. p. 41). - Vide ainda A.
Vuitry. Etudes sur le régime financier de la France avant la Révol .• Paris. 1878. se-
gundo o qual. até o século XIII. "as quantias que o fisco arrecadava não era.m verda-
- 46-

Sem remontarmos às idades heróicas do direito público francês, 53


limitar-nos-emos a lembrar que, desde os meiados do século XIX, an-
tes mesmo que o direito administrativo fôsse realmente organizado, o
direito fiscal já estava incorporado ao direito público. Numa obra do
século passado, de título sugestivo, lemos que a "ciência das finanças
reproduz ora princípios gerais e independentes dos lugares e das épo-
cas, ora as combinações mais favoráveis à aplicação dêsses mesmos
princípios num país e momento dados: quanto ao primeiro aspecto,
ela depende essencialmente da economia social de que faz parte; quan-
to ao segundo, liga-se ao direito público e administrativo ao qual ser-
ve de base". Na mesma época, Cotelle expunha que "o lançamento e
a cobrança do impôsto ... , e tudo o que diz respeito à utilidade pú-
blica do Reino e das diferentes regiões, constitui o direito público". 54
Alguns anos mais tarde, M. F. Laferriere escreveu: "a administração
financeira e os impostos constituem a parte mais geral das matérias
do direito administrativo, assim como o orçamento é a lei mais geral
da administração. Eis o motivo pelo qual colocamos os impostos de-
pois de todos os títulos que concernem à administração geral do Es-
tado, considerada em suas relações com a conservação da sociedade". 55
Mais próximo de nossa época, quando Ducrocq aborda, em seu Curso,
o estudo da Dívida Pública e do Impôsto, êle adverte que "embora êste
volume, em sua totalidade, trate exclusivamente de partes capitais da
legislação financeira da França, tal legislação, em seu conjunto, se
acha unida tão estreitamente a cada um dos elementos do direito ad-
ministrativo, do qual constitui parte essencial, que não existe um só
de nossos outros volumes que não contenha mai~ ou menos matéria
de legislação financeira".56 E se atentarmos para as autoridades

deiros impostos" (p. 412) porque o feudalismo as fizera passar do direito público para
o direito privado" (p. 414). - Enfim. citaremos ainda L'insriturion du Droit français.
por CIaude Fleury (ed. Ed. Laboulaye e R. Dareste. Paris. 1858. 2 vol.) que contém.
em apoio de nossa tese. argumentos muito interessantes: após estabelecer que o direito
público compreende tudo "o que se refere ao Estado". Fleury acrescenta: "Sabe-se que
a França é governada por um Rei .. ' Todo o poder público. isto é. tôda a autoridade
de comandar os Franceses e de dispor de suas pessoas e bens. conforme a utilidade do
Estado. reside somente na pessoa do Rei. Ora. essa utilidade pública. que é o obje-
tivo do poder do Rei. consta principalmente de dois aspectos: manter a França em
tranqüilidade interna mediante a administração da justiça e defendê-Ia pelas armas contra
os inimigos externos. e como é impossível que o Rei administre a justiça a todos os
seus súditos por si próprio e faça a guerra sem exército. êle tem necessidade de grandes
rendas para desobrigar-se de uma e de outra tarefa. e é isso que se denomina finanças.
Assim. todo o direito público de França se reduz a três capítulos: a justiça. a guerra.
as finanças" (op. cit., t. I. ps. 8586). Não é impressionante ver. destarte. o colaborador
de Fénelon para a educação do Duque de Borgonha. construir o direito público. com-
preendendo a matéria das Finanças. sôbre o poder público e sôbre a idéia de fim e de
utilidade pública? Eis aí. para certas doutrinas modernas. uma verificação cheia de in-
teresse (cf. o Préface citado de Hauriou. op. cir .• 11. a ed .. 1927).
54 R. GandilIot. Essai sur la Science des Finances. Paris. 1840.
55 CotelIe. Cours de Droit Administratif appliqué aux Travaux Publics. 2 vaI..
Paris. 1835. t. I. p. 6.
56 F. Laferriêre. Cours théorique el pratique de droit public et administrarif.
4.& ed .. 2 vol.. Paris. 1854. t. lI. p. 149.
- 47-

atuais. e mais reais, do direito administrativo, perceberemos que 8


unanimidade da doutrina se pronuncia ainda no sentido da incorpo-
ração do direito fiscal ao direito público. Hauriou, 67 Berthélemy, 58
Duguit, 59 Allix, 60 Moye, 61 Roger Bonnard, 62 estão perfeitamente de
acôrdo a êsse respeito. Quanto a Gaston Jeze, cuja autoridade tem um
valor particular em matéria de ciência e legislação financeiras, se
não parece ligar, à primeira vista, as Finanças ao direito público, é
que êle se atém, antes de tudo, a estabelecer que "todo problema fi-
nanceiro é, a um só tempo, político, social, econômico, histórico e ju-
rídico".63 Mas para êsse autor, mais do que para outro qualquer, a
Ciência das Finanças se enquadra bem no direito público, pois que t0-
dos os seus problemas, quer se trat€ de despesas, taxas, impostos ou
empréstimos, se resumem no problema da distribuição dos encargos
públicos entre os indivíduos. 64 Quanto ao mais, Gaston Jeze explica
excelentemente que "os serviços públicos, base da ciência das finan-
ças, funcionam em condições essencialmente diversas das questões par-
ticulares", o que "faz com que os fenômenos financeiros sejam regi-
dos por princípios próprios, cujo estudo forma justamente a ciência
das finanças", 65-66
Com apoio na autoridade de tais mestres, reunidos aqui numa
unanimidade bastante rara, pode-se considerar como fato consuma-
do a vassalagem do direito fiscal ao direito público. Mas, nesse caso,
é preciso reconhecer o sentido e o valor dos vocábulos. Dizer que o
direito fiscal faz parte do direito público, é talvez uma verdade banal,
mas não é, certamente, uma fórmula de alcance restrito, e vazio de
sentido: porque isso implica, necessàriamente, que o direito fiscal -
isto é, o conjunto das regras jurídicas que regem os orçamentos, os
empréstimos públicos e os impostos - pertence a um mundo jurídico
estranho ao direito privado, cujas regras são válidas somente, segundo
a antiga definição de Domat, para as relações de particular a parti-
cular. Jus privatum, veZ civil e, quod ad privatum, veZ civium, utilita-
tem directo spectat. Ou, se preferem, as fórmulas civilistas que pre-
tendem sujeitar o direito fiscal ao direito privado são inconciliáveis
com a fórmula, todavia reconhecida por todos, da incorporação do di-
reito fiscal ao direito público. Jus publicum, quod directo ad publicam
utilitatem spectat.

57 Th. Ducrocq. Cours de Droir Adminisrrarif, 7. a ed .• em 6 vol.. t. V. por


Th. Ducrocq e E. Petit. Paris. 1904, p. 4.
58 Hauriou. Précis de Droir Adminisrrarif, 10. a ed., 1921. ps. 800 e seguintes.
59 H. Berthélemy, Tr. de Droir Adminisrrarif, 10. a ed., 1923, p. 894.
60 L. Duguit, Trairé de Droir Constirutionnel, 2. a ed., t. L 1921. p. 544.
61 E. Allix. Tr. élémentaire de Science des Finances et de Ligis. financiere fran-
çaise, 5. a ed .• Paris, 1927, noto Inrroduction, p. XV e na definição do impôsro, p. 396
(implicitamente pelo menos).
62 Move, Précis élémenraire de Législation financiere, 8. a ed., 1926, Préface, p. IX.
63 R. Bonnard. Précis élémentaire de Droit Administrarif, 1926, p. 70.
64 G. Jeze, Cours de Science des Finances er de Légis. Financ. franç., passim.
nota na 7. a ed .. 1922, Préface, p. 11.
65 Ibid., p. 2.
66 Ibid., ps. 21-22.
- 48-

6. - A incorporação do direito fiscal ao direito público basta


para acarretar a autonomia do direito fiscal em relação ao direito
privado, como nos propomos, especialmente, estabelecer. Algo mais,
porém, existe, e não será indiferentE' demonstrar que, mesmo no seio
do direito público, o direito fiscal possui uma autonomia real. Embo-
ra, com efeito, a maioria dos autores se limite a ligar o direito fiscal
ao direito público, ou mesmo a vinculá-lo ao direito administrativo, 67
Gaston Jeze, pelo menos, definiu que os fenômenos financeiros são
regidos do ponto de vista jurídico por "princípios próprios",68 o que
constitui a autonomia real do direito fiscal em direito público, mesmo
com relação ao direito administrativo. 69
Êsse novo aspecto da autonomia do direito fiscal tem sido pôsto
em foco pela jurisprudência do Conselho de Estado, o qual, quando se
vê obrigado a resolver um conflito entre uma lei de direito fiscal e
uma lei de direito administrativo, distingue mui nitidamente o domí-
nio próprio de uma e outra disciplina. Isto significa que uma mesma
situação pode ser juridicamente analisada de um certo modo em di-
reito fiscal, e de modo diverso em direito administrativo: 70 eis aí o
caráter distintivo da autonomia.
O mais convincente acórdão de jurisprudêncil1 a tal respeito é um
acórdão do Conselho de Estado, de 21 de janeiro de 1921, sôbre o
Sindicato dos Agentes Gerais das Companhias de Seguros do Territó-
rio de Bellol"t. i1 Êsse acórdão foi proferido em circunstâncias de fato,
que merecem lembradas. Sabe-se que as leis fundamentais de nossa
organização administrativa submeteram os órgãos administrativos a
um regime severo, limitando a sua competência às matérias puramente
administrativas. 72 Essa "competência privativa" foi imposta aos "de-
partamentos" (divisões territoriais em França), de maneira bastante
clara, pelos artigos 46, 47 e 48 da Lei de 10 de agôsto de 1871. Re-

67 No trecho citado anteriormente, G. Jeze faz referências a certos autores que


enquadram a Ciência das Finanças na Economia Política. Existe, com efeito, íntimas
relações entre a Ciência das Finanças e a Economia Política. Os problemas de Finanças
devem ser estudados sob o ponto de vista econômico, bem como sob o ponto de vista
jurídico. Equivale dizer que a Ciência das Finanças depende da economia política como
todos os outros fenômenos que apresentam um aspecto econômico. Assim como a orga-
nização das estradas de ferro - para darmos um exemplo concreto - interessa a Eco-
nomia Política, mas, por outro lado, aparece em direito administrativo, quando se trata
de organizar as regras jurídicas do serviço público - que a economia despreza - assim
também existe, fora do aspecto econômico dos problemas financeiros, um aspecto jurídico,
que nos interessa mais particularmente, e para o qual reclamamos exclusivamente o pa-
trocínio do direito público.
68 Vide supra, o segundo parágrafo constante do item 5 do presente trabalho
r as referências das notas 58 e seguintes.
69 Ibid., nota 64.
70 E. com mais forte razão, em direito privado.
71 D.P. 1922.3.34, com as conclusões de Corneille. Vide uma confirmação dessa
jurisprudência num acórdão do Cons. d'Et. de 23 de 1921, Lebon, p. 1.105.
72 Excetuando-se, todavia, certas modificações recentemente introduzidas pelo de-
creto de 28 de dezembro de 1926 na competência das Comunas (Vide nosso artigo
IÔbre as reformas da organização administrativa francesa realizadas pelos Decretos de
1926, em 1'Année Politique française et étrangere, 2. a année, fase. 4, Paris. 1927.
-49 -

sulta dêsses textos que, afora os serviços cuja criação é especialmente


prevista por lei, o Conselho Geral somente poderá criar um serviço, se
não ocorrer a iniciativa particular. Duas leis financeiras vieram, po-
rém, de início, isentar de uma taxa "as Caixas Departamentais de Se-
guros organizadas pelos Conselhos Gerais", 73 para depois estabelecer
que "ficam isentos dessa taxa todos os capitais segurados pelas Caixas
Departamentais". 74 Por fôrça dêsse texto que, sem dúvida, parece tra-
zer implícito o reconhecimento legal das Caixas Departamentais de Se-
guros, um determinado Conselho Geral resolve criar uma Caixa de
Seguros. Logo, porém, as Companhias de Seguros se inquietam com
essa competição administrativa, e denunciam ao Conselho de Estado,
como ilegais, as decisões administrativas que deram origem à criação
daqueles estabelecimentos regionais. Perante a egrégia Assembléia,
o Sr. Corneille, Comissário do Govêrno, em conclusões que já invoca-
mos, definiu, então, com uma clareza difícil de ser ultrapassada, a in~
dependência do direito administrativo e do direito fiscal: "trata-se,
disse êle, para condenar a criação da Caixa pelo Conselho Geral, de
textos de leis financeiras, e, em princípio, as leis financeiras que só
devem ter por objeto regular o Orçamento da República e a arreca-
dação dos impostos, não poderiam modificar textos orgânicos tão
importantes como os artigos 46, 47 e 48 da lei de 10 de agôsto de 1871,
sem que a intenção de modificação esteja explicitamente declarada no
próprio texto. 75
Quer isso dizer, todavia, que a lei financeira será incapaz de mo-
dificar situações jurídicas estabelecidas por outras leis, às quais ela
estaria subordinada, como pretendem os civilistas? De forma alguma,
porque a lei financeira pode, ao contrário, modificar a seu talante tais
estados de direito, pelo menos do ponto de vista do direito fiscal; ou,
mais exatamente, a lei financeira pode decidir o que lhe convém, com
a máxima liberdade, abstração feita de qualquer situação de direito an-
terior (no caso em aprêço, de ordem administrativa e, nos demais, de
ordem civil ou comercial), porque, a rigor, não deve cogitar dêsse úl-
timo aspecto: a autonomia e a independência das disciplinas jurídicas
não poderiam ser comprovadas por melhor exemplo. E é isto justa~
mente o que estabelece o Sr. Corneille, quando prossegue: "Que é,
com efeito, uma lei fiscal? É uma lei destinada a incidir sôbre a ma-
téria fiscal, a matéria tributável, atingindo-a onde a mesma se encon-
tra, sem se inquietar, de maneira primordial, com as condições em
que a mesma se encontra, atingindo-a tal como se manifesta de fato,
sem se preocupar com o que a mesma vale do ponto de vista jurídico.
A lei fiscal incide, portanto, sôbre estados de fato e não sôbre situa-
ções de direito, e nesses estados de fato ela faz uma separação entre
aquilo que irá sofrer a ação do impôsto e aquilo que poderá esca-
I

par-lhe". 76

73 Lei de 13 de abril de 1898. art. 17.


H Lei de 30 de janeiro de 1907. art. 5.
75 D.P. 1922.3.34.
76 Loc. cito
- 50-

E o Conselho de Estado adotou essa concepção da lei fiscal, r~


conhecendo, no acórdão supracitado, que as disposições legislativas in-
vocadas na espécie pelo Conselho Geral, "de caráter puramente fiscal",
não poderiam ter resultado em modificar a competência do Conselho
Geral fixada pela Lei de 10 de agôsto de 1871. 77
Num acórdão recente, o Conselho de Estado acaba de reafirmar
a mesma jurisprudência. 78 Um funcionário público ataca, mediante
recurso contra excesso de poder, uma nomeação que lhe parece extre-
mamente ilegal. Mas a lei cujas llisposições foram violadas não é
urna lei de natureza administrativa: é uma lei fiscal, a lei de 10 de
agôsto de 1922, organizando o contrôle de despesas empenhadas e sub-
metendo certos atos à obrigação do visto. E, nesse caso, apesar da
fórmula geral que permite ao Conselho de Estado de anular "em caso
de violação da lei", êsse órgão não pronuncia, na espécie, a nulidade
da nomeação havida por ilegal, porque "o visto do controlador das
despesas empenhadas faz parte de um conjunto de medidas exclusi-
vamente destinadas a assegurar a execução das normas orçamentá-
rias". Disso resulta "que a inobservância dessa formalidade, que só
pode envolver, dado o caso, a responsabilidade civil dos administrado-
res, não poderia ser invocada em apoio de um recurso contra excesso
de poder". Existe, portanto, no seio do direito público, dois mundos
bem diferentes, o mundo administrativo e o mundo fiscal, cada qual
tendo suas regras próprias, sua autonomia . "Verdade aquém dos Pi-
rineus, verdade além" - dizia Pascal: podemos traduzir hoje: o que
é legal em direito fiscal pode ser ilícito em direito administrativo
o que viola a lei fiscal pode ser impecável do ponto de vista da lei
administrativa.
N o seio do direito público, a autonomia do direito fiscal poderia,
aliás, se estabelecer não somente em relação ao direito administrati-
vo, mas ainda em relação a qualquer outra disciplina. Basta, apenas,
lembrar as regras especiais que isolam o direito fiscal das regras co-
muns do direito constitucional: existe, com efeito, um direito constitu-
cional fiscal, ou, se o quiserem, um aspecto inteiramente fiscal do di-
reito constitucional. 79 De igual modo, poder-se-ia estudar um direito
fiscal internacional, cujas regras, apenas exploradas no setor do di-
reito internacional privado, ainda estão inteiramente por ser destaca-
das no setor do direito público internacional. 80 E, desde já, se pode

77 Poderíamos citar outras decisões no mesmo sentido. Limitar-nos-emos a lem-


brar um outro acórdão do Conseil d' Etat, 25 novo 1921. Phi/ipon, D.P. 1922.3.25,
no qual o Conselho de Estado se recusou a aplicar, com relação à organização judi-
ciária, as disposições de urna lei fiscal. Vide, além disso, nossa Chronique já citada,
D.H. 1926 e as referências.
78 Cons. d'Et., 24 mai 1927, Levei, D.H., 1927, p. 387.
79 Vide, supra, p. 209.
80 Ter-se-ia, por exemplo, de estabelecer urna concepção fiscal da soberania, no-
tadamente do ponto de vista territorial (Vide, sôbre êsse aspecto, A. Wahl. Les Droíts
d'enregistrement dans les rapports internationaux, no Journal de Droit International Privé,
1891. p. 1.065). Ou, se preferirmos um exemplo recentemente fornecido pela prática,
existe urna concepção fiscal do Protectorot (assimilação a território estrangeiro): Vide
- 51-

afirmar que, tanto em relação aos outros ramos de direito público,


como em relação ao direito privado, a lei fiscal possui uma indepen-
dência que lhe permite estabelecer regras próprias: o direito fiscal,
como o "carvoeiro" da locução popular, é senhor de si mesmo dentro
de sua casa.
7. - A "compartimentação" do direito fiscal que acabamos de
expor, principalmente em relação ao direito privado, não deve ser in-
terpretada como um isolamento absoluto. No ponto a que chegamos
com as nossas pesquisas, resta-nos demonstrar como o direito fiscal
autônomo se acomoda o direito privado, porque autonomia não quer
dizer independência total, e, menos ainda, desprêzo e violação siste-
máticos. O direito administrativo, cuja autonomia ninguém contesta,
apela, por vêzes, não somente ao espírito da lei de direito privado, 81
mas também ao seu próprio texto. 82 O mesmo acontece, naturalmente,
em direito fiscal: sua autonomia não acarreta, em princípio, a igno-
rância do direito privado; mas, por vêzes, é tributária de suas dis-
ciplinas. 83 A razão bem simples disso é que tôda autonomia, tôda
especificação, não se concebem jamais de maneira absoluta, mas fa-
zem parte de um conjunto, de uma unidade iuríd1'ca, com a qual tôda
disciplina é solidária. 84
Daí resulta que se deve reconhecer a existência de um certo "fun-
damento jurídico comum", que torna o direito fiscal necessàriamente
tributário do direito privado, porque êsse direito comum se aproxima,
"em grande parte, daquilo que hoje chamamos de direito civil". 85 Mas,
nesse caso, contràriamente à tendência dos civilistas, que querem fa-
zer prevalecer, em direito fiscal, tôdas as regras do direito privado
consideradas como igualmente válidas, pensamos, com outros auto-
res, que êsse direito comum "não abrangeria todo o direito civil: re-
tiraria dêste último somente as noções mais gerais, e ainda sob a con-
dição de abrandá-las. 86 Isto é, que nesse conflito que vai pôr em cho-
que duas disposições legais contrárias - uma disposição de direito
civil e uma disposição de direito fiscal, longe de se dar preferência
àquela em relação a esta, pondo-se à prova o valor do direito fiscal
em relação ao direito privado - é, antes, o valor do texto de direito

a Resposta Ministerial ao pedido de informações n.o 11.077. formulado pelo Depu-


tado Demellier. Journal Officiel. de 18 de março de 1927. Chambre, p. 877.
81 É a jurisprudência típica do acórdão Blanco.
82 Vide numerosos exemplos de jurisprudência administrativa aplicando a lei de
direito privado. em E. H. Perreau, Technique de la jurisprudence en droit privé, Paris.
2 vol.. 1923. t. I. p. 362. com as referências dadas em nota.
73 Vide nossa Chronique já citada. D.H .• 1926. p. 29.
84 Cf. G. Renard. Le Droit, la Justice et la Volonté, Paris. 1924. p. 35. nota I.
85 G. Renard. Le Droit, la Logique e le Bon Sens, Paris. 1925. p. 321.
86 G. Renard. ibid. Cf., no mesmo sentido. as conclusões de Corneille. sôbre
Cons. d'Et., de 29 de março de 1917: "Em matéria de contrato de serviço público,
os princípios gerais sôbre a teoria das nulidades devem se aplicar; porque são princípios
gerais que o Código Civil. por exemplo. não fêz senão adaptar. em diversos artigos
seus, a casos particulares; e os princípios gerais dos contratos não devem permanecer
estranhos ao contrato de serviço público, enquanto nãJo forem contrários ,ao caráter'
próprio dêsses contratos" (R.D.P .. 1917, p. 269).
- 52-

privado que deve ser medido e apreciado. Pertence êle a essas noções
gerais, que fazem parte da base comum, presente em qualquer disci-
plina? Em caso afirmativo, terá o seu lugar nas discussões de direito
fiscal, terá o seu valor. Em caso contrário, constituirá apenas uma
regra de alcance relativo, válida na autonomia do direito civil, mas
não em direito fiscal. 87 Poder-se-á objetar, talvez, que o princípio des-
sa escôlha será arbitrário, e que as regras segundo as quais êle se
aplicará, serão incertas. Mas outras disciplinas souberam extrair as
regras que resolvem semelhantes conflitos, e, na espécie, bastará con-
sultar as coletâneas de jurisprudência para descobrir mil decisões que
tendem precisamente a delimitar a aplicação do direito civil em di-
reito fiscal. A prática da jurisprudência revela, ~ôbre um grande nú-
mero de pontos, uma libertação cada vez maior do direito fiscal em
relação à regra de direito privado, libertação essa que somente tim-
bram em desconhecer aquêles que, por parti pris, proclamam a supre-
macia dessa regra: essa jurisprudência, tanto por seu espírito, por
seus motivos, como pelas soluções positivas que nos oferece, propor-
cionou as bases de uma autonomia que não deve ser interpretada, e
que basta ser aceita objetivamente.
Não temos a pretensão, neste Ensaio, de extrair de tõda a ju-
risprudência fiscal algumas fórmulas que permitissem delimitar pre-
cisamente as relações do direito fiscal e do direito privado. Seria
obra de longo fôlego, da qual bastará apenas fornecer amostra re-
presentativa. Mais especialmente, não procuraremos aqui reconhecer,
na jurisprudência fiscal, quais são as regras do Código Civil que, a
título de direito comum, são válidas tanto perante a jurisdição fiscal
como perante a jurisdição civil. 88 Limitando-nos ao estudo de alguns
acórdãos recentes proferidos em matéria de impôsto sôbre a renda e
de conclusões dos Comissários do Govêrno, desejaríamos simplesmen-
87 A necessidade dessa conjugação da lei fiscal e da lei civil foi focalizada em
têrmos excelentes no Traité des Droits d'Enregistrement. '. de Championniere e Rigaud,
2. a ed., 6 vol., Paris, 1839. A passagem, contestável nessas afirmativas. mas irrepre-
ensível no seu espírito. merece ser citada na íntegra: "A aplicação da lei fiscal exige
a de duas legislações: ora são as regras particulares à lei especial que se devem pôr em
prática; ora se devem aplicar as da lei comum".
"Assim. quando se trata da necessidade do registro. dos prazos de pagamento, do
devedor do tributo. de sua prescrição. é a lei fiscal que é preciso interrogar; mas no
caso de se estabelecer o tributo. reconhecer sua exigibilidade. determinar-lhe a quota. a
dificuldade. quase sempre, versa sôbre o exame da lei civil; o registo de um contrato
de casamento. por exemplo. apresenta o problema de se decidir em que prazo o ato deve
ser submetido à formalidade. se o notário fizer a cobrança antecipada dos direitos. em
que data deve. a êsse respeito. fazer-se o lançamento no registo; a solução dêsses pontos
pertence exclusivamente à lei fiscal. Deve-se. todavia. examinar igualmente se as dis-
posições do contrato contêm uma liberalidade ou somente uma convenção entre associa-
dos; se a doação é atual ou subordinada à ocorrência da morte; se é mobiliária ou
imobiliária; Se é feita aos cônjuges ou sàmente a um dêles; a lei fiscal, sôbre tôdas
essas dificuldades. guarda o mais completo silêncio; nada. em seus dispositivos, poderá
ou mesmo deverá servir para resolvê-las, cabendo unicamente à lei civil a tarefa de abrir
caminho para a sua solução" (t. L Introduction, n.o 16). Vide igualmente. ibid.,
uma justificação dêsses princípios. pesquisada nas relações da lei especial e da lei geral.
exposta num julgado do Tribunal de Pamiers. de 25 de abril de 1825. Sir .• 1826.2.265.
88 Vide, a êsse respeito. todavia. alguns exemplos citados supra, nota 38 e nota 82.
- 53-

te mostrar como é possível extrair algumas regras, que pesquisas


mais completas, abrangendo maior número de espécies, permitiriam
aprofundar e completar.
Dos acórdãos examinados - apenas uma dezena - podem ser
deduzidas as fórmulas seguintes:
1.0 - Todos os princípios admitidos em matéria de direito civil
não influem necessàriamtnte sóbre as modalidades de apli-
cação da lei fiscal.
2. 0 - Para resolver as questões de lançamento tributário, as si-
tuações jurídicas estabelecidas por contrato não podem
se opor ao Fisco.
3. 0 O mesmo sucede com situa.ções jurídicas estabelecidas pela
lei civil.
4. 0 Essa lei, pelo contrário, pode ser mantida quando, achan-
do-se estabelecido o lançamento do impôsto, está em jôgo
a pesquisa dos contribuintes para que se possa proceder
à arrecadação.
Cada uma dessas regras, fácil é de reconhecê-lo, comprova a au-
tonomia do direito fiscal, pois que cada qual exprime uma interpreta-
ção original, sem qualquer formalidade legal. Vamos ver como essas
normas são estabelecidas pela jurisprudência e qual é o alcance das
mesmas.
1.0 - As regras do direito civil não influem necessàriamente
nas modalidades de aplicação da lei fiscal. Essa fórmula é a expressão
exata da autonomia do direito fiscal, 89 é a resposta nítida, formal,
a todos os defensores da primazia do direito civil. Ora, ela não
pode ser contestada seriamente, porque se acha inscrita, de modo
cabal, num grande número de acórdãos de jurisprudência. Se re-
passarmos os diferentes casos que determinaram o divórcio entre o
direito civil e o direito fiscal, que ela implica, 90 mostraremos que
tal regra é a expressão por assim dizer oficial da tese do fisco,
cuja opinião, embora interesseira, não é destituída de valor. 91 As-
sinaiaremos, ainda, que o reflexo da independência do direito fiscal e
do direito privado se encontra nos motivos determinantes das deci-
sões de jurisprudência, quer emanem dos tribunais judiciários ou

89 Vide, supra, o parágrafo segundo do item 4 do presente trabalho.


90 Vide, supra, notas 16 e 15 e notas 17 e 20.
91 Labouchere, comissário do Govêrno, resumindo em suas conclusões a tese do
Ministro das Finanças. expõe perante o Conselho de Estado que "os princípios admi-
tidos em matéria de direito civil não influem necessàriamente sôbre as modalidades de
aplicação das leis fiscais" (vide D.P. 1921. 3. a parte, p. 12 Cons. d'Et., de 28 jan.
1921). Se, no caso ell1j aprêço (não sujeição dos prêmios das loterias ao impôsto geral
sôbre a renda), Labouchere e o Conselho de Estado não admitiram a tese do Ministro,
tal não se deu, pelo menos, com repúdio à fórmula que acabamos de focalizar.
92 É assim que se vê o Tribunal Supremo fundamentar os seus acórdãos "em
direito fiscal" (Cass. Req. 30 avril 1927, Cie. franç. du Gypse, D.H., 1927, p. 285).
- 54-

administrativos. 92 É inútil insistir mais sôbre essa primeira fórmula,


que constitui apenas a expressão muito geral da autonomia do direito
fiscal; as fórmulas seguintes vão, aliás, defini-la com maior exatidão.
2. 0 - Em matéria de la,nçamento, as situafões contratuais não
se podem opor ao fisco. Com isso se deve entender que, embora os par-
ticulares possam, pelos contratos, criar situações jurídicas, e, por
isso mesmo, qualificar situações jurídicas, tais qualificações não se
podem opor ao fisco. 93 Assim, quando o fisco procede a operações de
lançamento de impôsto, estas últimas devem afetar a matéria tribu-
tável conforme a qualificação que é dada objetivamente pela lei fiscal,
e não conforme a qualificação que pode ser dada subjetivamente pe-
las partes. A jurisprudência administrativa e a doutrina dos Comis-
sários do Govêrno se acham firmadas muito nitidamente nesse sen-
tido, como se poderá depreender das conclusões dos Srs. Corneille 94
e Andrieux. 95
Essa jurisprudência, aliás, não é nova. Já se achava estabele-
cida, então sem nenhuma contestação, em matéria de registro: aí,
qualquer que seja a qualificação que as partes possam dar a um ato,
o fisco tem o poder de restabelecer, acima de suas vontades indivi-
duais, uma qualificação que dê lugar à percepção do impôsto. 95 O

Êsse costume é. aliás. tradicional nos usos de nossos tribunais judiciários. No seu Traité
des droits d'Enregistrement já citado, Championniere e Rigaud, que. aliás. criticam tal
praxe. assim a expõem: alguns acórdãos "acrescentam,. ao enunciado dos princípios, as
seguintes expressões restritivas: relativamentl' ao registro, tendo em vista a lei fiscal,
de acôrdo com a Repartição fiscal, e outras equivalentes; fazendo saber. a quem de di·
reito. que tais regras deverão ser aplicadas quando o processo girar em tôrno de um
contribuinte e o fisco. e poderão deixar de o ser quando a questão se agitar entre dois
particulares". (t. V. Introduction au Nouveau Dictionnaire des Droits d'Enregistrement,
1841. p. IV). Nos fundamentos dos acórdãos do Conselho de Estado. encontra-se, por
outro lado. uma fórmula que revela. em matéria fiscal. um processo de interpretação da
lei, particularmente extensivo: às vêzes. com efeito. o Conselho de Estado se pronuncia.
em matéria fiscal. não em virtude de uma disposição legal. nem mesmo por analogia.
mas simplesmente porque nenhuma disposição legal vl'da uma certa interpretação (vide
Cons. d'Er.. 10 agôsto de 1926, D.P. 1927.3.30. em matéria de impôsto geral sôbre
a renda; 27 novo 1925. 23 fev. 1927, ibid., pS. 13 e 16. em matéria de benefícios de
guerra; e sobretudo: 16 de julho de 1926 (2. a exp.) , ibid., p. 6. com a nota, muito
substancial, assinada P.-L.J.).
93 Notar-se-á que essa fórmula está de acôrdo com a evolução jurídica contempo-
rânea, que se afasta cada vez mais das concepções subjetivas e individualistas do direito
postas em lugar de destaque pelo princípio da autonomia da vontade (Cf., sôbre êsse
aspecto, Em. Gounot, LI' Principe de l'autonomie de la Volonté en droit privé, Paris,
191 2. noto p. 416 e segs.).
94 Vide as conclusões precitadas R.D.P., 1917, p. 269.
95 • A Vontade das Sociedades não pode, com relação ao Fisco, se opor sobera-
namente à própria natureza das coisas, segundo as quais o caráter de renda ou de ca-
pital de um produto pode determinar-se" (concl. Andrieux, sôbre Cons. d'Et., 15 fev.
1923. D.P. 1923.3.9).
96 Vide A. WahI. Traité de Droit Fiscal, Paris, 1903, t. 11, n.o 518, ps. 371-372
e n.o 524, pS. 379-383. Adde, Casso civ., 16 dez. 1907. Sir., 1909.1.465. etc. As
mesmas considerações são válidas para a jurisprudência relativa à aplicação dos arts. 10
e 11 da lei de 22 frin. an VII. sôbre a questâo das disposições dependentes e indepen-
dentes em direito fiscal (vide nota, sôbre êste aspecto, de G. de Colonjon, tese, Paris,
- 55

que há, na realidade, nada mais do que o desenvolvimento dessa ju-


risprudência nos recentes acórdãos do Conselho de Estado, que torna-
ram sujeitas ao impôsto sôbre a renda quantias que as partes inte-
ressadas classificavam como "capital" e que,' por isso, foram cri-
ticadas por certos autores.
Alguém poderia tentar ver nessa segunda regra uma aplicação
do adágio civilista: res ínter alios acta aliis neque nocere neque pro-
desse potest. Mas não haveria nisso, no máximo, senão uma "transpo-
sição", porque, em direito fiscal, existe uma concepção especial de
"terceiro". O fisco não é, com relação ao contribuinte, um "terceiro"
no sentido do Código Civil. 96 Uma questão de lançamento não inte-
ressa nem os direitos subjetivos do fisco nem os do contribuinte; a
autonomia da vontade contratual é limitada, em relação ao fisco, pela
lei do impôsto que estabelece um estatuto objetivo, e é êsse estatuto
que constitui a essência do debate. Com efeito, a lei do impôsto apli-
cada pelo poder fiscal impõe soberanamente as suas qualificações e
o juiz não se vê obrigado a respeitar, na espécie, o princípio da rela-
tividade dos contratos: jamais invoca, aliás, a própria letra do art.
1.165 do Código Civil, e, no máximo, se poderia dizer que essa juris-
prudência oferece um daqueles exemplos em que uma regra de direito
privado é aplicada pelo direito fiscal não porque se acha inscrita no
Código, mas porque ela é a expressão de uma dessas "verdades de evi-
dência" 97 que, acima das barreiras das especificações e da autonomia,
pertencem a tôdas as disciplinas jurídicas.
Gény, que não pode contestar essa jurisprudência, e para quem
a fórmula da autonomia do direito fiscal, que êle combate, não pode
servir de explicação, teve, ainda há pouco tempo, o ensejo de apresen-
tá-la como uma exceção no "rol das categorias reais na técnica do
direito".98 Sem dúvida, como êle o declara, "entre vários meios ju-
rídicos, aptos a realizar certo resultado prático visado pelas partes,
estas últimas têm a faculdade de escolher o meio que dá lugar ao
impôsto de registo, o menos elevado possível". 99 Mas como essa regra
deve ser imediatamente abrandada, poder-se-ia dizer transtornada,
pela jurisprudência que temos citado desde o início, é preciso reco-
nhecer que a fórmula primitiva só faz "abusar das categorias jurídi-
cas" empregadas aqui "para encobrir operações que a organização po-
sitiva entendeu proibir ou submeter a exigências vexatórias: 100 ou,

1908. noto p. 23). Assim é que duas disposições são taxadas separadamente. mesmo
que. no pensamento das partes interessadas. elas sejam indivisíveis (Vide. Casso 14 dez.
1896. Sir.. 1898. 1. 97 e a nota de M. A. Wahl; Casso civ., 26 out. 1926. Srr.,
1927.1.236) .
97 Sôbre o sentido. aliás relativo da palavra "terceiro" em direito civil. COM
referência ao princípio da relatividade dos contratos. vide Colin e Capitant. Cours de
Droit Civil, t. lI. 4. a ed.. 1924. p. 318.
98 Vide Colin e Capitant. op. e loco cito
99 F. Gény. Science er Technique en Droir privé posirif, t. III. Paris. 1921.
ns. 207 a 213, nota. p. 165.
100 Op. e loco ciro
101 Ibid., p. 170.
- 56-

por outras palavras, que as categorias culminariam por desnaturar


fatos ou atos jurídicos que a lei fiscal pretende tributar. E, então,
nos parece mais simples, mais jurídico, e, em todo caso, menos "opor-
tunistas", assim como o próprio Gény o indica, 101 estabelecer-se como
regra geral, e não como exceção, que o direito fiscal não está ligado
pelas categorias que o direito privado oferece à livre escôlha das par-
tes. Quanto às hipóteses em que o direito fiscal, pelo contrário, leva
em conta essas categorias, elas resultam simplesmente do fato de que
a qualificação fiscal e a qualificação civil se resguardam com igual
cuidado: e, como não há conflito, é inútil aqui (mas é a exceção e não
a regra) manejar o princípio da independência e da superioridade da
qualificação fiscal sôbre a qualificação civil.
3.0 - Em matéria de lançamento, as situações jurídicas esta-
belecidas pela lei civil não podem se opor ao fisco. Acaba-se de
ver que as situações contratuais, criadas pelo contribuinte no quadro
da lei, podem ser desprezadas pelo direito fiscal. O mesmo pode acon-
tecer com situações ou qualificações estabelecidas diretamente pela
lei. Aplicando-se esta regra, ver-se-á que o fisco ultrapassa não só a
"autonomia da vontade" das partes, como também qualquer definição
legal estabelecida em direito privado.
É ainda nas conclusões dos Comissários do Govêrno perante o
Conselho de Estado que se acha a expressão bem clara dessa nova
fórmula. Estabelecida já nas conclusões dos Srs. Corneille e An-
drieux, 102 foi definida pelo Sr. Berget no caso da classificação das
villas (casas de campo) e apartamentos mobiliados na cédula tribu-
tária das profissões comerciais: certo que a lei de impôsto dá à ex-
pressão "profissões industriais e comerciais", um sentido mais amplo
do que aquêle que ela possui em direito comercial. A lei tributa, in-
contestàvelmente, tôda uma série de profissões que são consideradas
como comerciais pelo Código de Comércio e pela jurisprudência da
Côrte Suprema de Justiça ... Pode-se, portanto, dizer que à juris-
prudência é que caberá decidir, conforme as circunstâncias, se tal ou
qual profissão se inclui na cédula dos lucros comerciais ou na dos lu-
cros não comerciais". 103
É preciso, portanto, admitir que o fisco não está prêso às regras
do direito privado ou às fórmulas da jurisprudência civil. Pode, pelo
contrário, por uma "livre pesquisa", estabelecer o lançamento de um

102 lbid., p. 172.


103 Vide, supra, p. 30, nota 2 e 3. Notar-se-á. nas conclusões de Andrieux. a
passagem seguinte: U A questão que vos foi submetida. está dominada pela signifi-
oção que acreditais deva ser atribuída à jurisprudência judiciári\l. quando considera as
relações rntre particulares .. Essa jurisprudência parece-nos que se !Y.lseia nas relaçõe,
da Sociedade com os seus participantes. na capacidade das sociedades de determinarem.
elas próprias. nessas relações. aquilo que constitui uma reserva As interpretações re-
lativas às distribuições feitas pelas Sociedades não têm, portanto. em direito privado.
um valor absoluto. Com mais forte razão, não são, por si mesmas, aplicáveis em direito
fiscal".
104 Concl. sôbre Cons. d'Et., 5 jan. 1923. Dame Doin, D.P. 1923.3.1.
- 57-

impôsto: porque as próprias definições da lei civil não são necessà-


riamente válidas em direito fiscal, sendo falso pretender que a lei
fiscal se refere sempre à lei civil para conhecer a matéria tributável. 14K
Em face dessas comprovações, não se pode clamar contra o arbitrá-
rio: por extenso que seja, o poder fiscal está, em definitivo, sujeito
ao contrôle do juiz, 105 isto é, no mais completo acôrdo com as concep-
ções tradicionais do direito francês.
4.° - Para a arrecadação do impôsto, as relações jurídicas que
permitem determinar o contribuinte, poderiam ser apreciadas de
acôrdo com as regras do direito privado. A êsse respeito, atualmente,
a jurisprudência fiscal parece aplicar as disposições do direito pri-
vado. Quando um bem é considerado "matéria tributável", abstração
feita, se fôr o caso, da lei de direito privado, é preciso, ainda, saber
em nome de quem o impôsto deve ser estabelecido. Nessa nova hipó-
tese, que se apresenta desde as operações de lançamento, mas que não
se relaciona unicamente a tais operações, o fisco busca determinar o
contribuinte, fazendo um registo da sua situação de direito privado.
O contribuinte parece, com efeito, estar definido por certas relações
jurídicas (propriedade, posse) que existem entre êle e a matéria tri-
butável, base do impôsto. Isto significa que o direito fiscal deixa ge-
ralmente ao direito privado o cuidado de estabelecer as relações de
uma pessoa e de um bem, e não as relações dessá pessoa ou dêsse bem
com o fisco.
Foi, talvez, pela aplicação dessa regra que o Conselho de Estado
tributou a mulher, após a morte de seu marido, sôbre os rendimentos
percebidos pelo mesmo quando ainda vivo, e incluídos no regime de
comunhão - se bem que se trate aqui de saber se, antes da morte
do seu marido, a mulher teve, no sentido da lei fiscal, o "direito de
dispor" de sua parte de rendimentos comuns. O Conselho de Estado
decidiu pela afirmativa invocando os arts. 883, 1.401 e 1.476 do Có-
digo Civil. 106 Foi, provàvelmente, essa regra que permitiu ao mesmo
juiz proibir a cobrança do impôsto geral à mulher casada com se-
paração de bens, no caso de insolvabilidade do marido. 107 Pode-se di-
zer que, nessas hipóteses, é perfeitamente explicável lançar-se mão
do direito privado, porque não está somente em causa o lançamento

105 Vide, por exemplo. L. Bastine. Théorie du drait fiscal. 3. a edição. Bruxelas.
1883. Introduction. n.o 14. p. 13. principalmente aí. porque êsse autor. algumas pá-
ginas mais acima. acaba de expor. com bastante precisão. que "as \eis fiscais. .. formam
uma legislação especial. completa. tendo seus princípios. seu caráter próprio. suas relações
jurídicas com outros ramos do direito e principalmente com o direito civil" - Cf. G.
Galopin. Les Draits d'Enregistrement (t. I do Cours de Droit fiscal. vide V. Gothot),
Liege. 1926, p. 11. ns. 10 e sego
106 Cf., sôbre êsse aspecto. a nossa nota sôbre Cons. d·Er., 7 jan. 1927, Farrao.
D.P.. 1927.3.25. em matéria de contrôle e de sanção.
107 Vide, Cons. d'Et., 31 mars 1925 (2. a esp.) D.P .. 19253.57 e nossa nota;
Adde: 17 dez. 1926 (3. a esp.) e Cons. de Préf. de la Seine, 29 déc. 1926. D.P. 1927.3.47.
108 Vide, Cons. d'Er., 29 ave. 1926. D.P. 1927.3.49.
58

do impôsto, mas se trata, antes de saber quem vai ser classificado


como contribuinte.
Seria, necessário, entretanto, não considerar essa jurisprudência
de um modo demasiado absoluto. Ao nosso ver, ela somente se jus-
tifica na medida em que, sendo omissa a lei fiscal, o juiz se vir obri-
gado a resolver o conflito de acôrdo, por assim dizer, com a lei das
partes; porque esta última se aplica somente a título de disposição es-
pecial, de técnica própria, e não a título de princípio geralmente vá-
lido. Também nos parece que a lei civil deve ser afastada, sempre
que a lei fiscal resolver o litígio a seu modo; 108 que a lei civil, por ou-
tro lado, pode ter a sua interpretação algo desvil tuada pelo meio ex-
cepcional em que deve ser aplicada; 109 e, enfim, que a questão de sa-
ber se a lei civil pode ser aplicada, e, até que ponto, deve ser resol-
vida pelo juiz fiscal. 110
8. - Tais são as primeiras regras que se podem extrair da ju-
risprudência fiscal, os seus primeiros ensinamentos. E' preciso não
considerá-las como expressão definitiva do direito fiscal, porque êste
é demasiado vivo, demasiado complexo para ser cristalizado em pou-
cas fórmulas. Aí está apenas uma "indicação", verificada por uma
análise, voluntàriamente delimitada, da jurisprudência. Esta última,
na prática atual do direito fiscal, parece, infelizmente, estar depre-
ciada, senão ignorada. Ao passo que o direito administrativo se su-
jeita a um conhecimento preciso dos acórdãos, perscrutando-lhes os
motivos determinantes, e se socorre das conclusões dos Comissários
do Govêrno, que constituem, talvez, o seu melhor sustento, o direito
fiscal se limita, as mais das vêzes, quando recorre à jurisprudência, a
registar algumas decisões de casos, não vendo, talvez, nos acórdãos,
bem como na lei, senão uma regulamentação, uma "técnica". É no-
tável, por exemplo, verificar que os Tratados que se propõem fazer o
estudo teórico e prático de nossos impostos, revelando, por vêzes, uma
cultura jurídica perfeita, ao deduzirem sàbiamente as idéias da le-
gislação fiscal, se esquecem, quase completamente, do estudo crítico do
contencioso: os acórdãos do Conselho de Estado e da Suprema Côrte
de Justiça, tão importantes, na elaboração jurisprudencial do direito
fiscal, mal se mencionam, e não são discutidas as conclusões dos Comis-
sários do Govêrno.
Reincorporar o direito fiscal ao direito público, libertando-o de
uma injustificável sujeição de princípio ao direito privado; reconhecer,
por outro lado, o valor construtivo da jurisprudência fiscal, quer se
trate do Conselho de Estado ou da Suprema Côrte de Justiça; e dar,

109 Vide, principalmente. nossa nota sôbre a espécie acima.


110 Cf. sôbre a possibilidade dessa "desnaturação" no tempo: Fr. Gény. Méthode
d'interprétation et sout1Ces en droit privé positif, 2 vol.. Paris. 1919. t. 1. n. 99. noto
p. 273.
11 I Vide. como aplicação. Cons. cf'Et., 24 fév. 1922. Veuve M ... " D.P .•
1922.3.41. Essa decisão. inexplicável em relação à lei penal. é um exemplo do conflito
resolvido pelo juiz fiscal em favor do direito fiscal. de conformidade com os seus prin·
cípios.
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pela análise jurídica, a essa jurisprudência, até aqui olvidada, a au-


toridade que deve possuir: tais são, em sua essência, as reivindica-
ções expressas pela "autonomia do direito fiscal", reivindicações que
nos parecem bastante clássicas, e, sem dúvida, "sólidas e fecundas". *

* NOTA DA RED.: Traduzido por Guilherme Augusto dos Anjos. - In Revue


de Science et des Législation Financieres - T. XXVI. ps. 201-236. Paris. 1928.

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