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CAPÍTULO I

AS COORDENADAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO


COMERCIAL

1. O Direito Comercial na enciclopédia jurídica

I — Num ordenamento jurídico, a sistematização do material normativo faz-se, para


efeitos dogmáticos e didácticos, em ramos, isto é, conjuntos normativos que têm um
mesmo tipo de situações sociais por objecto e que se subordinam a princípios comuns.
A tradicional summa divisio de um ordenamento — para os efeitos considerados
e no que respeita à família dos direitos romano-germânica — faz-se separando duas áreas:
a do Direito Público e a do Direito Privado, distinção de origem romana (ius publicum est
quod ad statum rei romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem)1. A cada
uma destas grandes áreas correspondem subdivisões, ou seja, ramos menores. Os critérios
de distinção entre os ramos do Direito Público, por um lado, e do Direito Privado, por
outro, constituem objecto específicos de estudo das Introduções ao Direito e das Teorias
Gerais do Direito Civil.
Numa perspectiva histórico-dogmática, são tradicionalmente referidos como
critérios de distinção entre Direito Público e Direito Privado os seguintes: (i) o do
interesse; (ii) o da qualidade dos sujeitos na relação jurídica e (iii) o da posição dos
sujeitos da relação jurídica.
Dir-se-á, sumariamente, que, nos termos do primeiro e mais antigo critério, o do
interesse, o Direito Público é definido como respeitando à actividade do Estado e à
disciplina da sua actividade, correspondendo ao Direito Privado aquilo que respeita à
utilidade dos particulares. Segundo o critério da qualidade dos sujeitos na relação
jurídica, seria Direito Público o que regulasse situações nas quais interviesse o Estado ou
um ente público, e Privado, aquele em que apenas interviessem particulares. Por último,
segundo o critério da posição dos sujeitos na relação jurídica, é Direito Público o que

1
Cf., entre outros, BURDESE, Manuale di diritto privato romano, 5.

6
“constitui e organiza o Estado e outros entes públicos e regula a sua actividade como
entidade dotada de ius imperii”2, sendo Privado o que regula situações que relacionam
sujeitos em termos paritários.
Segundo o que a tradição fixou como conteúdo do Direito Público e do Direito
Privado, nenhum dos referidos critérios conduz a resultados inteiramente isentos de
crítica, muito embora se possa dizer que os critérios do interesse e da posição dos sujeitos
na relação jurídica conduzem a resultados satisfatórios se tomados como meramente
tendenciais ou dominantes; nesse sentido, o interesse público é dominante no Direito
Público e o interesse privado no Direito Privado, do mesmo passo que as relações
reguladas pelo Direito Público são tendencialmente verticais (reconhecimento jurídico de
um poder de autoridade de um sujeito relativamente ao outro) e as de Direito Privado
tendencialmente horizontais (tratamento jurídico paritário dos sujeitos).
Após a consideração dos critérios tradicionais de distinção entre Direito Público
e Direito Privado, parece dogmaticamente mais frutuosa a abordagem da questão através
do critério da generalidade/especialidade, atribuindo ao Direito Público a qualificação de
direito especial (o Direito que regula a Administração, ou as Finanças Públicas ou
quaisquer outros domínios do Estado) e, ao Direito Privado, a de direito comum,
regulador de generalidade das relações humanas3.

II — No âmbito do Direito Privado, nos sistemas jurídicos integrados na família romano-


germânica4 distinguem-se tradicionalmente o Direito Civil, ou Direito Privado Comum,
e os direitos privados especiais. O Direito Civil não poderia ser mais bem caracterizado
do que na frase, que citamos, de OLIVEIRA ASCENSÃO: “[d]isciplina a vida comum das
pessoas comuns, portanto o que é comum a todas as pessoas, abstraindo de qualificações
especiais”5. Nas suas configurações nucleares, o Direito Civil foi herdado de Roma e
dele se foram destacando sectores normativos que ganharam autonomia através da
afirmação de princípios próprios: têm a designação, tradicional, de direitos privados
especiais (ramos de direito privado especial).

2
OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito: introdução e teoria geral, 335.
3
MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, 99 e ss.
4
Sobre a concepção das famílias ou sistemas de direito, cf., entre outros, DAVID/JAUFFRET-SPINOSI, Les
grands systèmes de droit contemporains, 15 e ss.; OLIVEIRA ASCENSÃO, ob. cit., 146 e ss.
5
OLIVEIRA ASCENSÃO, ob. cit., 343.

7
III — Um ramo de direito privado especial historicamente consolidado é o Direito
Comercial ― não obstante a importante brecha que à tradição foi trazida pela unificação
italiana, em 1942, do Direito Civil e do Direito Comercial num único código de direito
privado6 ―, que tem a particularidade de se não distinguir ratione materiae relativamente
ao Direito Civil. Na verdade, o Direito Comercial tem por objecto relações sociais
também reguladas pelo Direito Civil — em particular, pelo subsector obrigacional7 —,
mas que se caracterizam por um particularismo legalmente relevante, que espoleta a
aplicação de regras diversas, afastando as correspondentes regras civis, nos termos do
princípio geral lex specialis derogat lex generalis. Um exemplo simples, retirado do
ordenamento jurídico nacional: nas obrigações contituladas, se forem civis, vigora uma
regra geral de conjunção (arts. 512, 513 e 519, 1, todos do CC), nos termos da qual o
credor só pode exigir de cada um dos devedores a sua quota-parte de responsabilidade;
tratando-se, porém, de obrigação contitulada comercial, a regra é a da solidariedade (art.
100 CCom., proémio), podendo o credor exigir de qualquer dos co-obrigados o
cumprimento da totalidade da obrigação, ficando este com direito de regresso sobre os
restantes por aquilo que exceda a quota-parte da sua responsabilidade (arts. 519 e 524,
ambos do CC); a aplicação do art. 100 é espoletada pela qualificação comercial da
obrigação ― que, no contexto do Código Comercial de 1888, é, necessariamente, a que
resulta de actos de comércio (art. 2.º do CCom.) ―, prevalecendo sobre a correspondente
regra geral de direito civil e, na verdade, arvorando em regra geral de Direito Comercial
o que, no Direito Civil, é excepção (art. 513).

2. O Direito Comercial: considerações prévias à determinação do seu objecto;


a interpretação histórica

I — Num escrito que se propõe funções didácticas, é desejável que o mesmo se abra com
a delimitação do objecto sobre o qual versa.

6
Sobre o assunto, cf., entre muitos outros, ASCARELLI, “Sviluppo storico del Diritto Commerciale e
significato dell'unificazione”, in Saggi di Diritto Commerciale, 25 e ss.; FRANCESCHELLI, “Autonomia e
ragione d’essere attuale del Diritto Commerciale”, in Dal vecchio al nuovo Diritto Commerciale - Studi”,
51 e ss.
7
O que explica certas experiências legislativas de unificação do Direito das Obrigações em termos civis e
comerciais, como a da Suíça, que aprovou um Código Federal das Obrigações, datando de 14 de Junho de
1881.

8
Pressuposto o conhecimento da noção de ramo do direito, delimitar o Direito
Comercial implica, por um lado, a identificação da matéria regulada, e, com isso e por
outro lado, o estabelecimento do seu lugar na enciclopédia jurídica. Neste último
domínio limitamo-nos aos sistemas da família jurídica romano-germânica.
O Direito Comercial não é uma categoria material, isto é, cuja presença no
ordenamento possa ser explicada em função de um objecto exclusivo; na verdade, as
situações jurídicas de que se ocupa o Direito Comercial são também, em parte, objecto
de regulações do Direito Privado comum (naturalmente, sob diversos pressupostos, o que
explica a presença, no ordenamento, de uma dualidade de regulações).
Não correspondendo a uma categoria material, o Direito Comercial constitui antes
― e num duplo sentido ― uma categoria histórica: por um lado, não é um produto
necessário das economias de troca8; por outro lado, a sua essência só se capta com a
consideração diacrónica da matéria pelo mesmo regulada, valendo isto por dizer que uma
qualquer consideração (simplesmente) sincrónica dessa matéria é insuficiente para tal
efeito.
A plena compreensão de ambos os sentidos oferecidos para concretização da
categoria histórica que o Direito Comercial constitui necessita de explicações adicionais.
Para efeitos operativos pode afirmar-se, quanto ao primeiro sentido da categoria
histórica, que o Direito Comercial, pressupondo uma economia de troca, não é uma
constante histórica nas economias de troca. A afirmação pressupõe um certo
entendimento do Direito Comercial: se com tal expressão pretender significar-se um
corpo normativo particular e autónomo, especialmente orientado à regulação do comércio
e estruturado em princípios diversos dos orientadores das restantes relações sociais — e
não, diversamente, a mera existência num ordenamento de regras que se aplicam a uma
generalidade de relações sociais nas quais se indiferenciam as relações comerciais —
verificaremos que esse agregado normativo só surgiu na Baixa Idade Média (século XII),
com particular expressão para as repúblicas italianas.
Assim entendido o Direito Comercial, e reconhecendo que as economias de troca
das civilizações da Antiguidade Clássica e Pré-Clássica conheceram já regras reguladoras
do comércio, não pode ainda assim sustentar-se aí a existência de Direito Comercial,
porque as regras em causa eram indiferentes aos eventuais particularismos dessa
actividade; num exemplo: a compra com o objectivo de venda do bem comprado (visando

8
GALGANO, História do Direito Comercial, 21 e ss.

9
obter vantagem entre o preço da aquisição e o da venda do bem) é, provavelmente, o
núcleo histórico mais antigo do comércio, entendida a expressão em sentido económico
(intermediação especulativa), sendo que a aplicação de regras (gerais) da compra e venda
ao negócio de compra e venda à que tem objectivos especulativos não permite divisar aí
um conjunto normativo particular do comércio.
Cremos que o só o entendimento do Direito Comercial como corpo normativo
particular permite atribuir-lhe um sentido histórico-sistemático relevante e, assim,
alinhamos com a perspectiva doutrinária que o tem como de surgimento tardo-medieval,
na tradição encabeçada por GOLDSHMIDT9, num contexto complexo de espaço e de tempo.
O Direito Comercial surgiu historicamente associado, por um lado, ao
reflorescimento ocidental da actividade comercial que antes fora secularmente afectada
no Império Romano do Ocidente, sucessivamente, pelas invasões bárbaras (século V e VI
d.C.), a Norte, e pela progressão árabe para Ocidente (a partir do século VII d.C.), que
produziu um corte civilizacional entre o Norte e o Sul, e, por outro lado, à ascensão da
burguesia a força política dominante da cidade.
O domínio político urbano da burguesia mercantil permitiu-lhe criar um corpo de
regras jurídicas, que impôs aos restantes grupos sociais, destinado a assegurar a
proeminência dos seus interesses sócios-económicos típicos, em particular o da
maximização do lucro. O Direito Comercial surgiu, assim, porque no tempo e no espaço
considerados se caldearam circunstâncias político-económicas que a História do Ocidente
nunca conhecera; disso surgiu um produto original. Eis o significado da primeira
qualificação do Direito Comercial como categoria histórica: a explicação do seu
surgimento só se consegue eficazmente com recurso a análises de história social.
Vale a pena, a tal propósito, citar ALESSANDRO LATTES, um autor italiano do
princípio do século XX, referindo (Il dirito commerciale delle città italiane) que na Alta
Idade Média “[…] as leis contidas no direito romano foram suficientes para regular as
relações jurídicas obrigacionais decorrentes do comércio, porque na teoria das
obrigações, aquelas leis, inspiradas mais nos cânones do ius gentium do que nas severas
máximas do ius civile nacional, conservaram uma autoridade e uma eficácia muito maior
do que qualquer outro sector do direito, mesmo quando a autoridade soberana das quais
emanaram deixou de dominar em Itália. As nomas dos direitos bárbaros sobre esta matéria
são escassíssimas, porque os povos germânicos, ferozes e belicosos, aborreciam-se com

9
GOLDSCHMIDT, Storia Universale del Diritto Commerciale, 33 e 34, 60 e 61 (original:
Universalgeschichte des Handelsrechts, 36 e 37, 65 e 66).

10
as artes da paz […]”. Mas, no Baixo Medievo, e citando ainda LATTES, “[a], separação
do direito comercial do direito civil […] começou a tornar-se manifesta nas repúblicas
italianas, às quais, precisamente, o comércio trouxe riqueza e potência, e pode explicar-
se pelo poder legislativo, que as corporações de mercadores exerciam com órgãos
próprios e com autoridade que lhes era reconhecida pelas leis civis”10.
A segunda qualificação do Direito Comercial como categoria histórica, que
assume a insuficiência de uma delimitação material sincrónica na captação da sua
essência, permite compreender que esse âmbito material variou segundo coordenadas
espácio-temporais, evidenciando que o mesmo nem sempre teve o seu núcleo concebido
da mesma maneira, e que, mesmo nos períodos de estabilidade de um certo núcleo
material de regulação, as relações sociais atraídas à regulação na orla do núcleo se
mostraram sempre em crescendo e, por isso, instáveis as fronteiras desse sector
normativo.

II — Os núcleos materiais das situações sociais juridificadas como comerciais11


vinculam-se tradicionalmente (i) ao comerciante, (ii) ao comércio e (iii) à empresa
comercial, constituindo, cada um deles, um diverso modo de delimitar o âmbito do
Direito Comercial, podendo, todavia, compatibilizar-se reciprocamente. É intuitivo,
todavia, que, de entre as três noções elencadas, a de comércio antecede logicamente as
restantes.
É doutrinariamente tradicional referir o comércio como noção oriunda da Ciência
Económica; neste domínio do conhecimento humano, a expressão tem o sentido de
actividade económica de compra de produtos e sua revenda12.
Para a análise da expressão comércio veja-se o que, a propósito do Mercantilismo,
diz HENRI DENIS (História do pensamento económico): “[n]o comércio, o lucro depende
da diferença entre o preço que se deve pagar para obter a mercadoria e o preço a que se
pode revendê-la noutro lugar. O comércio frutuoso consiste na compra de uma mercadoria
numa região em que é facilmente produzida, em que o seu preço é, portanto, baixo, para

10
ALESSANDRO LATTES, Il diritto commerciale delle città italiane, 57 (trad. nossa).
11
O sugestivo conceito de situações sociais juridificadas como comerciais é recolhido de OLIVEIRA
ASCENSÃO, Direito Comercial, I, 5 e 6, mas, substancialmente, a sua concepção pode encontrar-se já em
FERNANDO OLAVO, Direito Comercial, I, 2.ª ed., Editora, Coimbra, 1978, 9 e 10.
12
HERMES DOS SANTOS, “Comércio”, in Polis, 1, 991.

11
a revender numa região em que o seu preço é elevado, porque é difícil de produzir ou
porque se não pode produzir”13.
Com estes dados de partida e na perspectiva analítica de um jurista, o comércio,
em sentido económico, pode, pois, definir-se como uma actividade de intermediação —
mais ou menos vasta, entre o produtor de um bem que o não consome e o destina a ser
alienado e o consumidor do bem — que implica a transmissão da propriedade do bem
para o(s) intermediário(s) e que visa a obtenção pelo mesmo de um ganho,
correspondente à diferença entre o preço de compra do bem e o da sua venda, seja a
compra efectuada directamente ao produtor do bem ou a outro intermediário, ou a venda
efectuada directamente ao consumidor do bem ou a outro intermediário14.
Assim considerado, o comércio será quase tão antigo como a própria espécie
humana, devendo remontar, pelo menos, à revolução urbana pós-neolítica do Próximo
Oriente. A actividade de troca de produtos — mediada, ou não, pela moeda — com o
objectivo de lucrar a diferença, para mais, entre o valor da aquisição e o da alienação é,
inquestionavelmente, o mais antigo núcleo histórico-cultural do comércio.
Na história do Direito Comercial, o papel da produção nunca foi central até ao
século XIX, querendo com isto dizer que os interesses na base da sua autonomização
perante o direito comum nunca foram os dos produtores de bens: agricultores, artesãos e
pequenos industriais; pelo contrário, as relações entre a produção artesanal e a mercatura
chegaram a ter regulações nos estatutos comunais, mas na perspetiva do controlo da
primeira pela última15.
A Revolução Industrial será, todavia, portadora de uma mudança para o âmbito
do Direito Comercial. A multiplicação capitalista permitida pela própria essência da
Revolução Industrial — em particular no que se refere à atividade transformadora — dará
lugar ao nascimento de um novo tipo de capitalismo, dito industrial, cuja lógica de
acumulação de riqueza é semelhante à do capitalismo puramente comercial: multiplicação
das operações (produção; economias de escala e de gama), colocação no mercado e
reinvestimento. O interesse capitalista de controlo direto de certas áreas da produção —
em particular nas manufaturas e na extração e transformação de minérios — conduziu ao
alargamento do âmbito do Direito Comercial, que da original mercatura, no sentido de

13
HENRI DENIS, História do pensamento económico, Livros Horizonte, Lisboa, 2000, p. 106, trad. port. de
António Borges Coelho, a partir do original em língua francesa com o título Histoire de la Pensée
Économique, PUF, Paris, 8.ª ed., 2000.
14
Cf., a título de exemplo, CUNHA GONÇALVES, Comentário ao Código Comercial português, I, 10.
15
Supra, n. 18; GALGANO, História do Direito Comercial, 33 e ss.

12
pura intermediação entre a produção e o consumo, passou a regular também, a título
principal, a transformação industrial. Assim se explica a passagem ao Code de commerce
de 1807 da empresa de manufaturas (art. 632), inexistente qua tale na Ordonnance de
1673 de Luís XIV (1673).
A apetência do Direito Comercial da industrialização europeia para regular as
relações sociais juridicamente relevantes do sector económico-industrial e, portanto, de
uma actividade que não é de intermediação, mas de produção de bens a partir de outros
bens (matérias primas) é notória nas codificações comerciais de primeira geração (século
XIX), na medida em que associam a indústria transformadora ao âmbito jurídico do
comércio16. Tanto basta para que a doutrina tradicionalmente conclua que o Direito
Comercial tem objecto mais vasto do que a actividade que corresponde ao comércio em
sentido económico, o que, numa outra perspectiva, vale por dizer que, para efeitos desse
ramo do direito, o comércio significa mais do que a mera actividade de ligação entre o
produtor (oferta) e o consumidor (procura), com intuito especulativo.
Não vá, porém, sem assinalar-se que uma total coincidência entre o âmbito da
matéria regulada pelo Direito Comercial e a actividade das pessoas dedicadas ao comércio
em sentido económico — ou seja à compra de bens como o objectivo de posteriormente
os vender, visando o lucro — nunca se verificou. A regulação da actividade produtiva de
bens pelo Direito Comercial é anterior à Revolução Industrial, existindo já desde a Idade
Média. Atente-se, nesse sentido, nas palavras de CARLO CIPOLLA (História Económica da
Europa Pré-Industrial), reportando-se à Europa pré-industrial: “[o] equivalente do actual
homem de negócios era o mercador, que não era o que chamamos comerciante. A
especialização ainda não se desenvolvera até ao ponto que caracteriza as sociedades
industriais, sendo o mercador muitas vezes o chefe de uma manufactura, um fornecedor
do capital e um negociante, tudo isto ao mesmo tempo. Enquanto negociante, manuseava
geralmente uma variedade de produtos, tanto roupas como especiarias, cereais ou metais.
Mesmo a distinção entre comércio por grosso e a retalho não existia. A única diferença
notória entre mercadores era que uns operavam a nível internacional com capitais

16
À cabeça temos o Code de commerce (1807), o primeiro Código Comercial em sentido moderno
(científico, sistemático e sintético), com a associação da empresa industrial à regulação comercial; no art.
632 do Código Comercial francês lê-se que a lei considera acto de comércio… toda a empresa de
manufactura. Num outro exemplo, veja-se o Código Comercial italiano de 1865, que considera actos de
comércio as empresas de manufactura (art. 2.º, número 2.º).

13
substanciais, enquanto outros eram mercadores pequenos, locais, de horizontes e meios
limitados”17.
Há, todavia, que assinalar diferenças na perspectiva essencial da regulação das
actividades produtivas pelo Direito Comercial entre o antes e o depois da Revolução
Industrial: antes dela, o produtor/artesão tinha a sua actividade regulada essencialmente
numa perspectiva externa, como fornecedor da actividade especulativa, que era a
verdadeira destinatária do ius mercatorum18; a enorme capacidade lucrativa que a
Revolução Industrial possibilitou com a massificação produtiva trouxe um interesse
directo do capitalismo comercial na própria actividade produtiva e, assim, o
enquadramento do nascente capitalismo industrial numa ampla noção (jurídica) de
comércio, o que equivale a regular a actividade de produção industrial numa perspectiva
interna.

III — As observações antecedentes permitem a interpretação histórica de que o Direito


Comercial constitui a estrutura jurídica do sistema económico capitalista, na sua
dimensão central, da especulação reprodutiva, surgindo com o apogeu político do
capitalismo comercial e ampliando-se com o surgimento do capitalismo industrial.
Admitindo-se que pode, com propriedade científica, identificar-se uma economia digital
como a fase de superação da economia industrial, está-se ainda longe de poder fazer uma
avaliação corretã do seu impacto no núcleo do Direito Comercial.

3. O Direito Comercial: o objecto (numa perspectivação histórico-material)

I — A ligação do Direito Comercial ao núcleo material correspondente ao comerciante


está muito difundida na doutrina como veículo da ideia de um dos modos de o conceber
(e que corresponde a uma realidade histórica): conjunto normativo subjectivamente
delimitado; o Direito Comercial corresponderia, assim, a um conjunto normativo de

17
18
Para situar historicamente aquilo que referimos como perspectiva externa da regulação da actividade
produtiva, atente-se em ALESSANDRO LATTES, Il diritto commerciale delle città italiane, 60:
“Relativamente ao conteúdo dos estatutos, deve notar-se que não se encontram aí apenas determinações de
direito privado, mas também, na verdade, prevalentes regras de polícia económica e industrial para as
indústrias manufactureiras, exercidas por muitos dos membros da corporação para incremento e
fornecimento da industria comercial, à qual se dedicavam outros, em número não inferior” (trad. nossa).

14
aplicação particular aos que exercem o comércio profissionalmente e por causa desse
exercício.
Este modo de ver traduz a — dogmaticamente — chamada concepção subjectiva
do Direito Comercial, ou seja, a delimitação da sua aplicação em função de uma qualidade
do sujeito-destinatário: ser comerciante. Uma regulação particular da actividade das
pessoas que ostentassem a qualificação de comerciante constitui a marca histórica de
origem do Direito Comercial.
A funcionalidade da chave aplicativa comerciante supunha, porém, um outro
critério, que permitisse proceder à determinação das pessoas que poderiam como tal
qualificar-se; noutros termos, que permitisse determinar quem era e quem não era
comerciante. Na origem do Direito Comercial, o critério corresponde à matricula na
corporação do ofício, o que é diverso da dedução de um conceito legal de comerciante a
partir de um outro conceito, o de acto de comércio, que só surgirá no Code de commerce
(1807), em consequência, por um lado, da extinção das corporações pela nova ordem
económico-social instaurada pela Revolução Francesa (1789-1799) e, por outro lado, pela
continuada necessidade de aferir a qualidade de comerciante para diversos efeitos
jurídicos.
No interior da cidade tardo-medieval, o exercício lícito de uma profissão realiza-
se no contexto de uma organização, a corporação, que tem, essencialmente, funções
internas, de controlo, e externas, de protecção económica. No que respeita às funções
internas, estava em causa o ensino da prática profissional e a disciplina do ingresso e do
progresso na profissão, constituindo meios de controlo da qualidade da produção ou do
desempenho e da repartição das necessidades de mercado pelos seus diversos membros,
segundo critérios vários, designadamente o da maior ou menor qualificação profissional;
este controlo interno funcionava como mecanismo de prevenção da concorrência entre os

15
membros da corporação, cujas decisões enquanto agentes de mercado19 não eram,
portanto, autónomas20.
Em escrito de 1954, o — justamente — afamado TULLIO ASCARELLI (Teoria della
concorrenza e interesse del consumatore21), identificava na história do Direito Comercial
uma tripla periodização: (i) do nascimento, no século XII, ao século XVI; (ii) do século
XVI à Revolução Francesa e, por último, (iii) do marco simbólico de 1789 à (então)
actualidade; esta periodização é genericamente aceite pelos historiadores do Direito

19
O vocábulo mercado é polissémico, podendo individualizar-se, pelo menos, quatro significados do
mesmo com relevo para as Ciências Sociais: (i) mercado como lugar; (ii) mercado como ideologia; (iii)
mercado como paradigma de acção social, e; (iv) mercado como instituição (cf. MARIA ROSARIA
FERRARESE, Diritto e mercato: il caso degli Stati Uniti, 20). No plano da pura significação linguística, a
mais antiga acepção de mercado terá sido a da localização geográfica de encontro entre pessoas que se
propunham vender os bens que produziam (a, economicamente, denominada oferta) — tratasse-se do
excesso em relação à quantidade produzida ou, depois, de atingida a especialização do trabalho, de
produção especialmente destinada a ser vendida — a quem estivesse disposto, por necessidade ou mera
apetência, a adquiri-los (a, economicamente, denominada procura). A disponibilização de bens imateriais
para utilidade de outrem, designadamente a própria força de trabalho e os serviços terão forçado uma
evolução semântica do vocábulo mercado para um sentido mais amplo, como encontro entre a oferta e a
procura, implicando, ou não, a presença de ofertantes e adquirentes uns perante os outros.
20
Na civilização ocidental, a história das corporações profissionais pode reconstituir-se até à civilização
romana dos primeiros tempos da República; FRANCHESCHELLI, “Concorrenza e monopolio nella storia
lontana”, em Studi e capitoli sul diritto della concorrenza, 40 e 41, refere que “[n]os séculos da conquista
itálica e mediterrânica, Roma, e numerosas outras cidades, viram multiplicar-se os gabinetes, as tabernas,
as oficinas e, por fim, a indústria [...] e as organizações artesanais ou profissionais que os agrupavam em
tipos homogéneos. Nos primeiros tempos do Império, paralelamente à actividade mercantil, desenvolvia-
se em numerosas outras cidades da Itália uma limitada actividade industrial. [...] [c]onexo ao
desenvolvimento dos mesteres, das profissões, da indústria e do comércio [surgiam] as organizações de
artesãos e trabalhadores livres ou collegia opificum. Essas corporações surgiram, aparentemente, de modo
espontâneo, e, por muito tempo, não dotadas de reconhecimento jurídico, eram centros de solidariedade
profissional e espiritual (ocupavam-se, por exemplo, da sepultura dos seus membros), organizando a
resistência na defesa de interesses comuns, agregadas pelo sentimento religioso, algumas com o seu próprio
deus, o seu génio tutelar, o seu templo, a sua escola, nos quais os confrades se reuniam para discutir os
interesses comuns, repousar, conversar, sentar-se à mesma mesa, participar nos mesmos sacrifícios” (a
tradução para português é nossa; o itálico consta do original, em italiano). Nesta sua primeira configuração
histórica, as corporações profissionais não tinham, portanto, nem uma função de controlo dos métodos da
arte, nem de organização do tirocínio, nem, tão-pouco, gozavam de privilégios monopolísticos
profissionais. O gozo do privilégio surgirá no final do Império, “[...] quando, perante a crise emergente,
assumidos pelo Estado e pelos municípios sempre novas tarefas e serviços essenciais, estes endossá-los-ão
às corporações, das quais se valerão para os realizar. A realização de tais serviços torna-se obrigatória para
a corporação, que pelos mesmos é tornada responsável; e logo que esse peso se tornou insuportável e os
confrades tentaram delas desobrigar-se, saindo da corporação, isso torna-se proibido e a pertença à
corporação torna-se hereditária e coactiva. As corporações, investidas em funções públicas, tornam-se
obrigatórias e monopolísticas” (FRANCHESCHELLI, ob. cit., loc. cit.). Deixando o Estado de ocupar-se,
directamente, da produção de bens e serviços que garantia, tornou-se o maior adquirente de produtos e o
maior solicitador de serviços, sendo, assim, poucas, as indústrias, os mesteres e as profissões que não caem
sob o vínculo da pertença hereditária à respectiva corporação Pese embora a dificuldade da reconstrução
histórica da sorte das corporações profissionais após a queda do Império Romano do Ocidente (assinada,
simbolicamente, em 476 d.C.), as mesmas ressurgem com renovada vitalidade na Baixa Idade Média, em
particular nas cidades-Estado Italianas, que tomam a dianteira no reflorescimento do fenómeno municipal
e do próprio comércio de longo curso, estabelecendo, através do Mediterrâneo, correntes mercantis
Ocidente-Oriente e Norte-Sul (seguimos de perto FRANCHESCHELLI, ob. cit., loc. cit).
21
ASCARELLI, “Teoria della concorrenza e interesse del consumatore”, in Rivista Trimestrale di Diritto e
Procedura Civile; citado a partir dos Saggi di Diritto Commerciale, Giuffrè, Milão, 1955, pp??

16
Comercial. No primeiro período, de matriz italiana, refere ASCARELLI que “[…] o Direito
Comercial surge num invólucro corporativo; as suas normas vão-se elaborando, na
autonomia das corporações e por via costumeira, por obra dos mesmos mercadores,
voltadas, antes de mais, para os problemas dos mercados e da troca”.
O problema do mercado estava presente, igualmente, na função de controlo
externo das corporações: sendo o exercício lícito da profissão limitada aos que se
encontrassem matriculados na corporação, assegurava-se que as demandas do mercado
eram canalizadas para os seus membros, prevenindo-se o seu desvio para terceiros, que
não se sujeitavam às regras de controlo interno, assegurando-se o mercado para os que a
tal controlo se submetiam.

II — A Revolução Francesa tem na história do Direito Comercial a importância própria


de a nova ordem económico-social que instaurou ter provocado a disrupção do anterior
modelo de delimitação do conjunto normativo em causa.
A generalidade da doutrina comercialista identifica no Código de Comércio
napoleónico (1807) o início da mudança do paradigma da delimitação do Direito
Comercial, que teria passado a assentar no critério do acto de comércio, assim
inaugurando a chamada conceição objectiva do mesmo. Neste contexto, o Direito
Comercial aplicar-se-ia a qualquer sujeito, desde que praticasse actos de comércio.
Num plano de significação ideológica, a diferença entre ambos os paradigmas, o
subjectivo e o objectivo, é marcado: o critério do comerciante chocava com os ideais que
inspiravam a nova ordem social, podendo ser interpretado como sustento de um —
intolerável — direito particular e privilegiado dos comerciantes; o critério do acto de
comércio satisfazia formalmente o ideário da igualdade perante a lei e, em particular, o
da liberdade de comércio e indústria, cuja afirmação teria que ditar o termo da
organização corporativa.
Se o papel da Revolução Francesa tem de ser aqui devidamente denotado em razão
da nova ordem económico-social que estabeleceu e está, efectivamente, na origem da
transição, na história do Direito Comercial, do paradigma subjectivista para o objectivista,
é exagerado pretender ver o Code de commerce como o marco cronológico da viragem.
Se é verdade que o código francês formalizou a noção de acto de comércio, que surge nos
seus arts. 632 e 633, não o é menos que o faz, antes de mais, com o objectivo de
determinação do âmbito de competência dos tribunais de comércio, jurisdição separada
da civil, cuja autonomia se manteve como resquício da origem medieval. A demonstração

17
da incidentalidade da noção de acto de comércio no Code de commerce é suficientemente
indiciada pelo conteúdo do seu art. 1.º, que o abre com a definição de comerciante:
aqueles que praticam actos de comércio e disso fazem profissão habitual. Aliás, embora
o código francês inove na consagração formal da noção de acto de comércio,
materialmente, a sua consideração não é diversa da que, no final do século XV, haviam
feito Colbert e Savary na Ordonnance de 167322-23.
A noção de acto de comércio não tem no Code de commerce a centralidade que
viria a obter em códigos comerciais posteriores, de que são exemplos o alemão de 1861,
o italiano de 1882, o espanhol de 1885 e o português de 1888, que o erguem a critério
delimitador central do âmbito de aplicação do Direito Comercial; nesta linha evolutiva,
situa-se na transição o Código de Comércio italiano de 1865, que abre com a noção de
comerciante (art. 1.º), para, logo de seguida (art. 2.º), enumerar os actos que a lei
considera comerciais.

III — Na consideração histórica da transição do paradigma subjectivista para o


objectivista não pode, porém, deixar de notar-se que a mesma não se verificou na esfera
germânica, tendo o Código de Comércio da Alemanha unificada (Handelsgesetzbuch), de
1897, continuado a via subjectivista, o que, no plano histórico, pode interpretar-se como
reacção do Romantismo ao ideário iluminista subjacente aos valores revolucionários
franceses derrotados em 1815, na formação da ordem europeia pós-bonapartista.

22
Com efeito, determinava a Ordonnance, no art. 4.º do Título XII (Da jurisdição e dos Cônsules), que
“[l]es Juges et Consuls connaîtront des différents pour ventes faites par des marchands, artisans et gens de
métier, afin de revendre ou de travailler leur profession, comme à tailleur d’habit, pour étoffes, passements
et autres fournitures; boulangers et pâtissiers, pour blé et farine; maçons, pour pierre, moellon et plâtre;
serruriers, maréchaux, taillandiers et armuriers, pour fer; plombiers et fontainiers, pour plomb; et autres
semblables”. É preciso notar, todavia, que já na Ordonnance de 1673 começaram a despontar indícios da
futura viragem do Direito Comercial à via objectivista, como refere GUISEPPE AULETTA (“Atto di
commercio“, em EDD, IV, Giuffrè, [s.l.] [Milão], 1959, 196-203, ‟[...] com as ordenanças de Luís XIV,
que reproduzem antecedentes de alguns estatutos italianos, sujeitam-se à jurisdição consular e são reguladas
pelo direito comercial as relações originadas pelas letras de câmbio e por muitos contratos do comércio
marítimo, independentemente da profissão dos sujeitos de tais actos. Trata-se, assim, de relações sujeitas
ao ordenamento e à jurisdição comercial com relação à qualificação do acto e independentemente da
qualificação dos sujeitos do acto (que, assim, surge denominado como acto de comércio absoluto)” (trad.
nossa).
23
Vejam-se, a tal propósito, as palavras de JEAN ESCARRA (Principes de Droit commercial, Librairie du
Recueil Sirey, Paris, 1934, 101), escritas com um Code com mais de um século de vigência: «[d]ans un
système par lequel on prétendait — comme celui de 1807 — généraliser [o Direito de] l’exception et
modifier le caractère traditionnel du droit commercial, le maintien pur et simple des textes de l’Ordonnance
à la fin du Code, et l’aggravation considérable de leur portée attestée par l’insertion des mots: “La loi répute
actes de commerce” dans l’article 632, ne pouvaient conduire qu’à un conception mal équilibrée, hybride,
et qui a pesé depuis sur tout notre droit commercial positif ».

18
A referida transição limita-se, pois, à área latina, que, durante o século XIX, se
colocava no eixo de influência cultural francesa (Itália, Espanha e Portugal).
Não pode, igualmente, deixar de notar-se que a implantação de um paradigma
objectivista no Direito Comercial não significou a completa erradicação do
subjectivismo. Na verdade, ao comerciante continuou a ser reconhecido um papel
relevante na aplicação do Direito Comercial. É que a nova centralidade, do acto de
comércio, se, por um lado, admitiu a aplicação do Direito Comercial a não comerciantes
— ponto é que praticassem actos de comércio —, não fez cessar, por outro lado, a
relevância jurídica do exercício profissional do comércio, e, portanto, do comerciante, ao
qual continuou a associar consequências jurídicas particulares, que não afectavam os não
comerciantes quando praticavam actos de comércio. Subsistiram, pois, no Direito
Comercial objectivado, normas apenas aplicáveis a comerciantes, nessa qualidade e por
causa dela, de que são exemplos as do chamado estatuto passivo, como os deveres de
escrituração mercantil, a sujeição à falência e a matrícula num registo comercial. Neste
contexto, não deixara, pois, de ser legalmente relevante a determinação de um critério
para aferir a qualidade de comerciante, que foi remetida para conjugação da prática de
actos de comércio e da profissionalidade, o que era já diverso do critério medieval e de
Antigo Regime da matrícula na corporação24.
É no contexto que antecede que pode compreender-se que a viragem do século
XIX a uma matriz objectivista no Direito Comercial não tenha prescindido de uma
determinação do comerciante, para um duplo efeito: (i) funcionar como critério
secundário de determinação do âmbito de aplicação das suas normas, subordinado ao
critério, principal, do acto de comércio; (ii) funcionar como critério aplicativo de normas
ditadas apenas para o exercício profissional do comércio. No primeiro contam-se, por
exemplo as normas do art. 632, V, do Code de Commerce, que determinava reputar a lei
como actos de comércio todas as obrigações entre negociantes, mercadores e
banqueiros, bem como o art. 2.º, segunda parte, do Código Comercial português de 1888,
que considera actos de comércio — para além dos especialmente regulados neste código
— todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza
exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar; descontada a deficiente
técnica que consiste em equiparar actos jurídicos e o seu conteúdo (obrigações),
compreende-se bem que ratio da solução é a de alargar a categoria do acto de comércio

24
Na linha aberta pelo art. 1.º do Code de commerce (1807), vejam-se o art. 1.º do Código de Comércio
italiano de 1865 e o art. 13, § 1.º, do Código Comercial português de 1888.

19
através de uma previsão de atipicidade legal, que tem como critério de atracção de certos
actos à regulação comercial a qualidade de comerciante de quem os realiza.

IV — O centramento do Direito Comercial num critério de empresa comercial ocorreu


no século XX, embora de um modo que não pode considerar-se totalmente linear,
desenvolvendo-se a partir da negação formal da sua autonomia perante o Direito Civil.
Na verdade, a empresa não era estranha aos códigos comerciais do século XIX;
para tanto, basta notar, por um lado, que o Code de commerce de 1807 considerava acto
de comércio qualquer empresa de manufacturas, de comissão, de transporte por terra ou
por água, de fornecimentos e de agenciamento (art. 632), no que foi seguido com
proximidade pelo art. 2.º, números 2.º e 3.º, do Código Comercial italiano de 1865; por
outro lado, o Código Comercial português de 1888, avançando um passo, autonomizou
formalmente a empresa comercial relativamente à noção de acto de comércio (art. 230),
muito embora a função da mesma na demarcação do Direito Comercial português não
seja inteiramente clara, sendo ambíguo o relacionamento do instituto com os de acto de
comércio e de comerciante.
O Código Civil italiano de 1942 — o segundo da pós-unificação — reuniu os
anteriores sectores normativos autónomos do Direito Civil e do Direito Comercial, o que
equivale à extinção formal do último, que se explica como resultado da prevalência, nos
trabalhos preparatórios, da tese da falta da autonomia substancial do segundo
relativamente ao primeiro25.
No Código Civil de 1942, várias disciplinas antes contidas no Código Comercial
(1882) — v. g., tipos societários, associação em participação e estabelecimento comercial
— foram incluídas no Livro V, relativo ao trabalho. No mesmo livro disciplina-se o
trabalho na empresa, dedicando-se o Capítulo I à empresa em geral e a correspondente
Secção I ao empresário.
O empresário é definido no Código Civil de 1942 (art. 2082) como aquele que
exerce profissionalmente uma actividade económica organizada com o fim da produção
ou da troca de bens ou de serviços. Desapareciam, assim, do panorama legislativo italiano
os institutos do acto de comércio e do comerciante26.

25
Remiss.
26
Deve, todavia, assinalar-se que o código faz uso da expressão comerciante no art. 2083, para definir o
pequeno empresário, de estatuto jurídico diferenciado, estabelecendo no art. 2083 que são pequenos
empresários os cultivadores directos do solo, os pequenos comerciantes e aqueles que exercem uma
actividade profissional organizada prevalentemente com o próprio trabalho e dos membros da família.

20
No Itália da época, de domínio político do Partido Nacional Fascista (1922-1943),
de Benito Mussolini, o contexto significativo-ideológico da disciplina do trabalho e da
empresa contida no código de 1942 — que, aliás, subordinava o exercício de uma
actividade económica a uma organização corporativa — era o da superação da
organização económica liberal, da luta de classes associada à mesma e da reacção
comunista27. A organização corporativa pretendia-se como constituinte de um diverso
paradigma económico-social, centrado em instâncias de coordenação de interesses sociais
antagónicos, harmonizados na subordinação hierárquica aos superiores interesses
económicos da Nação.
A generalidade da doutrina privatista posterior ao Código Civil de 1942 entende
que a unificação formal do Direito Comercial com o Civil não determinou, todavia, a
perda de autonomia substancial do primeiro, que foi sendo recortada dentro do Livro V
com recuso à noção aglutinadora do empresário comercial, que pode destacar-se — por
contraposição à noção legal de empresário agrícola (art. 2135) — do art. 219528, o qual
determina a sujeição a registo das empresas cujo objecto seja: (i) uma actividade industrial
de produção de bens ou serviços; (ii) uma actividade intermediária na circulação de bens;
(iii) uma actividade de transporte por terra, por água ou por ar; (iv) uma actividade
bancária ou seguradora; (v) outras actividades, auxiliares das precedentes.

4. A questão da autonomia [projectado]

Em finais do século XIX inicia-se a defesa doutrinária da unificação do Direito


Comercial e do Direito Civil num único corpo de direito privado. No ensino universitário,
a ideia partiu de Vivante, que o defendeu numa lição inaugural, em Bolonha, no ano de
1892. Não falta, porém, quem sustente a existência de um precedente no Brasil, em
Teixeira de Freitas, que em 1867 teria proposto ao governo brasileiro a aprovação de um
código único de obrigações29.
A premissa desta tendência foi a própria objectivação do Direito Comercial,

27
Assim, por exemplo, GIUSEPPE GIUFFRIDA, “Imprenditore agricolo”, in EDD, XX, 549.
28
VINCENZO BUONOCORE, “Imprenditore (dir. priv.)”, in EDD, XX, 539: “[è] questa la norma [art. 2195]
che delinea, per così dire, la nozione di imprenditore commerciale. Secondo opinione accreditata, la nozione
di impresa commerciale si ricava per sottrazione delle nozione di impresa agricola — che divienta pertanto
la nozione fondamentale — dalla nozione generale di impresa; ed ha perciò contenuto essenzialmente
negativo”.
29
Solà Cañizares, I, 61.

21
[incompleto]

22
CAPÍTULO II

O DIREITO COMERCIAL DA GUINÉ-BISSAU ENTRE A


INTEGRAÇÃO ECONÓMICA REGIONAL E A
UNIFORMIZAÇÃO JURÍDICA SECTORIAL

1. A independência e o núcleo central do Direito Comercial

I ― A plena compreensão do modo de ser do actual Direito Comercial guineense supõe


uma análise dos aspectos históricos que influíram na sua evolução no período que se
seguiu à constituição do Estado da Guiné-Bissau.
A emergência da Guiné-Bissau como Estado soberano resulta de declaração de
independência, unilateral, datada de 24 de Setembro de 197330. Portugal, anterior Estado
detentor de soberania sobre o território guineense, reconheceu a Guiné-Bissau como
Estado, soberano e independente, em 1975.
A história do Direito Comercial aplicado na Guiné-Bissau até à sua constituição
como Estado soberano reflecte uma parte da história do Direito Português, que pode ser
seguida ― havendo nisso interesse, designadamente de carácter académico ― através da
doutrina jurídica da época que estiver em questão; trataremos aqui, portando, apenas dos
aspectos evolutivos do Direito Comercial especificamente Bissau-Guineense e, assim,
produzidos após a independência.
Em 1997 a Guiné-Bissau iniciou-se num processo de integração jurídica sectorial
regional, através da adesão ao tratado constitutivo da OHADA, que interferiu
directamente com a conformação do seu direito comercial. Mas essa integração regional
só se compreende plenamente num contexto mais amplo, que considere uma anterior
movimentação de integração económica transnacional, no mesmo âmbito regional.
A constituição da Guiné-Bissau como Estado soberano não representou uma
ruptura com o anterior ordenamento jurídico aplicável no seu território. Com efeito, a Lei
n.º 1/73, também de 24 de Setembro de 197331, determinou a recepção material do direito
português (isto é, produzido pelos órgãos do Estado português com competência

30
A declaração de independência encontra-se publicada no Boletim Oficial n.º 1/75, de 4 de Janeiro (2 e 3).
31
Publicada no Boletim Oficial n.º 1/75, de 4 de Janeiro.

23
normativa), estabelecendo, no seu art. 1.º, que a legislação portuguesa em vigor à data
da proclamação do Estado soberano da Guiné-Bissau continuaria a aplicar-se, com a
ressalva da sua conformidade à soberania nacional, à Constituição da República de
197332, às suas leis ordinárias a aos princípios e objectivos do PAIGC.

2. A integração económica regional Oeste-africana

I ― Nas palavras de ADAMA DIAW, “[a] integração económica pode definir-se como o
processo pelo qual os Estados soberanos se empenham na eliminação de todas as formas
de discriminação entre os seus agentes económicos, a fim de formar um único espaço
económico”33.
A integração regional de mercados constituiu uma via a que recorreu grande parte
dos países em vias de desenvolvimento, nos anos sessenta e setenta do século XX, através
de acordos comerciais e de projectos de co-produção. A África subsariana inscreveu-se
nesta tendência histórica. Nos anos oitenta, e no que se refere à região ocidental,
contavam-se três acordos comerciais: a Comunidade Africana da África Ocidental
(CEAO), a Comunidade dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e a União do Rio
Mano34.
Os resultados de crescimento económico visados com as referidas técnicas de
integração mostraram-se largamente insuficientes, o que, posteriormente, conduziu à
realização de esforços no sentido do aprofundamento da integração, através de uma
técnica diversa: a cooperação institucional transnacional, criando-se instituições
particulares no âmbito geral da política económica, com competências sectoriais em
matérias de câmbio, moeda, fiscalidade, política ambiental e definição de regras comuns
e de instituições de fiscalização e de jurisdições comuns.
Na região subsariana-ocidental, a integração económica foi aprofundada pela
transição da CEAO (Comunidade Económica da África Ocidental), criada em 1973, para

32
Também publicada no Boletim Oficial n.º 1/75, de 4 de Janeiro.
33
ADAMA DIAW, “Avantages et inconvénients de l’intégration de la Guinée-Bissau à l’Union Economique
et Monétaire Ouest-Africaine », in Boletim da Faculdade de Direito de Bissau, 5, 1998, 53 (53-65), trad.
nossa).
34
Idem, 54, n. 2.

24
a CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados das África Ocidental), constituída em
197535.
A CEAO e a CEDEAO filiam-se historicamente numa matriz de integração
económica de um grupo de colónias francesas em África, que remonta a 1895, ano da
institucionalização da África Ocidental Francesa, com livre circulação de bens, tarifa
exterior comum, moeda emitida por um banco comercial e equivalente à moeda francesa,
dando origem, em 1939, à zona franco, e que seria continuada, em moldes diversos, após
as independências dos territórios em questão36. No enquadramento das independências,
em 1959, seis novos Estados da África Ocidental ― todos anteriores territórios coloniais
franceses ―, a Costa do Marfim, o Daomé (actual Benim), o Alto Volta (actual Burkina-
Faso), a Mauritânia, o Níger e o Senegal constituíram o Banco Central dos Estados da
África Ocidental (BCEAO), para a gestão de uma moeda comum: o Franco CFA (Franco
da Comunidade Financeira de África)37.
No âmbito da CEDEAO funciona a UEMOA (União Económica e Monetária
Oeste-Africana), sucedendo à original UMOA (União Monetária Oeste-Africana), que se
propõe coordenar e harmonizar as políticas macroeconómicas e sectoriais dos Estados-
membros, criar um mercado único de bens, serviços e factores de produção e a
harmonização do quadro legal e regulamentar da actividade económica no âmbito da
União.
A UMOA foi criada por Tratado de 12 de maiô de 1962, visando apenas a
harmonização das legislações monetária e bancária dos Estados-membros, instrumentais
relativamente ao objectivo monetário na base da sua criação38. O Tratado não previa,
porém, a atribuição de poder normativo às instituições por ele criadas (a Conferência de
Chefes de Estado e de Governo e o Conselho de Ministros), tendo a harmonização
intentada sido realizada por intermédio do Banco Central dos Estados da África Ocidental
(BCEAO), instituição da própria União, através de procedimento ad-hoc. O alargamento

35
Sobre a constituição e a evolução da CEDEAO, cf. JOÃO MENDES PEREIRA, Direito Comunitário
Material e Integração Sub-Regional: Contributo para o Estudo das Mutações no Processo de Integração
Económica e Monetária na África Ocidental, 23 e ss.
36
Cf. JOÃO MENDES PEREIRA, ob. cit., 35 e ss. Sobre a emergência histórica da zona franco, cf. ainda a
Histoire de l’Union Monétaire Ouest Africaine, Banco Central da África Ocidental, Tomo I, 38 e ss.
37
Sobre a zona franco das pós-independências, refere JOÃO MENDES PEREIRA, ob. cit., 44, que “[a] zona
franco pode ser considerada como um espaço monetário homogéneo no qual os Estados-membros são
levados a adoptar uma política comum no que concerne à moeda e ao crédito, assim como à regulamentação
uniforme em matéria monetária e bancária”; sobre o assunto cf. ainda a Histoire de l’Union Monétaire
Ouest Africaine, Banco Central da África Ocidental, Tomo II, 23 e ss.
38
Cf. JOÃO MENDES PEREIRA, ob. cit., 218 e ss.; cf. ainda a Histoire de l’Union Monétaire Ouest Africaine,
Banco Central da África Ocidental, Tomo II, 66 e ss.

25
do âmbito da integração ― económica e não apenas monetária ― constituiria,
posteriormente, a via do aprofundamento institucional e normativo da União. Surgia,
assim, por Tratado de 14 de Novembro 1973, a sucessora UEMOA, já com o objectivo
de criar entre os Estados-membros um mercado comum baseado na livre circulação de
pessoas, serviços e capitais39.

III — A Guiné-Bissau foi admitida como membro da UEMOA por acordo firmado em
29 de Janeiro de 199740; a adesão a um tratado de harmonização do direito dos negócios
(OHADA) pode relacionar-se ― apesar de poder presidir-lhe uma complexa
multiplicidade de objectivos — com o reforço da unificação monetária e com a facilitação
da integração económica41.

3. O Código Comercial de 1888: critérios de delimitação da matéria comercial


e ordenação sistemática

I ― Com já foi visto, a constituição da Guiné-Bissau como Estado soberano não


representou uma ruptura com o anterior ordenamento jurídico aplicável no seu território.
Com efeito, a Lei n.º 1/73, de 24 de Setembro de 1973, determinou a recepção material
do direito português, com a ressalva da sua conformidade à soberania nacional, à
Constituição da República, às suas leis ordinárias a aos princípios e objectivos do PAIGC.
Sustentamos, desde 1997, que a expressão legislação portuguesa em vigor — algo
ambígua — contida na Lei n.º 1/73, deve ser restritivamente interpretada, com o sentido
de legislação portuguesa cuja aplicabilidade havia sido estendida ao território antes
denominado de Guiné Portuguesa42.
A recepção material do direito português foi assim, duplamente condicionada: (i)
por um lado, à sua conformidade à soberania nacional, à Constituição da República de
1973, às suas leis ordinárias a aos princípios e objectivos do PAIGC; (ii) por outro lado,
à sua efectiva extensão ao território da (antes) Guiné Portuguesa.

39
Sobre a transição da UMOA para a UEMOA e um enquadramento geral de ambos os tratados, cf. JOSEPH
ISSA-SAYEGH/JACQUELINE LOHOUES-OBLE, OHADA. Harmonisation du droit des affaires, 64 e ss.
40
Sobre os antecedentes da adesão, cf. JOÃO MENDES PEREIRA, ob. cit., 59, n. 36.
41
JOÃO MENDES PEREIRA, Direito Comunitário Material e Integração Sub-Regional, cit., 242.
42
JOÃO ESPÍRITO SANTO, “Apontamentos sobre os regimes jurídicos guineenses de fonte legal do
casamento e do divórcio”, Boletim da Faculdade de Direito de Bissau, n.º 4, 1997, 211-213.

26
II ― A recepção material da legislação portuguesa pela Guiné-Bissau abrangeu, assim, e
entre vários outros diplomas legais, genericamente, o segundo Código Civil português,
de 196643 (na generalidade), e o segundo Código Comercial português, de 188844.
O CC havia sido estendido ao território português da Guiné pela Portaria n.º 22.
869, de 4 de Setembro de 1967; o CCom foi estendido a esse território pelo Decreto de
20 de Fevereiro de 1894.
Esses dois códigos passaram, pois, a vigorar na Guiné-Bissau, a título de leis
nacionais, pelo que a sua correcta designação doutrinária será, respectivamente, Código
Civil Bissau-Guineense e Código Comercial Bissau-Guineense.

III ― A estrutura sistemática CCom comporta quatro Livros, sendo o primeiro dedicado
ao comércio em geral, o segundo, aos contratos especiais do comércio, o terceiro, ao
comércio marítimo, e, o quarto, às falências.
Sobre o Código Comercial, e em estreita conexão com o que já foi referido no
Capítulo I sobre a delimitação do seu objecto, destacamos aqui, por um lado, a
determinada demarcação do âmbito de aplicação da lei comercial a partir da noção de
acto de comércio; com efeito, dispõe-se no seu art. 1.º que a lei comercial rege os actos
de comércio sejam ou não comerciantes as pessoas que neles intervêm.
Destacaremos também, por outro lado, que logo o art. 2.º, primeira parte, do
CCom estabelece o principal critério, formal, de determinação da comercialidade de um
acto jurídico: encontrar-se especialmente regulado no código.
Refira-se ainda que o Libro II do CCom, dedicado, como se viu, aos contratos
especiais do comércio, comportava, originariamente, vinte Títulos, sendo o primeiro
dedicado a disposições gerais, o segundo, às sociedades, o terceiro, à conta em
participação, o quarto, às empresas, o quinto, ao mandato, o sexto, às letras, livranças e
cheques, o sétimo, à conta corrente, o oitavo, às operações de bolsa, o nono, às operações
de banco, o décimo, ao transporte, o décimo primeiro, ao empréstimo, o décimo segundo,

43
Na versão originária, que não é, portanto, coincidente com a versão que resultou da grande reforma
operada em Portugal em 1977, sobretudo em matéria de Direito da Família e Direito das Sucessões, para o
adaptar aos princípios da Constituição portuguesa de 1976, designadamente o da igualdade entre os
cônjuges e o da igualdade entre filhos nascidos dentro e fora do casamento (sobre a questão, cf. JOÃO
ESPÍRITO SANTO/PEDRO FERREIRA MÚRIAS, “Notas sobre a emancipação e idade núbil no direito guineense
de fonte legal”, in Boletim da Faculdade de Direito de Bissau, n.º 5, 1998, 291 e ss.).
44
O Código Comercial português de 1888 resultou de um projecto de Francisco António da Veiga Beirão
(1841-1916), que, por essa altura, era Ministro da Justiça e Assuntos Eclesiásticos do governo
constitucional (o primeiro: 1886-1890) presidido por José Luciano de Castro Pereira Corte-Real, no reinado
de D. Luís I.

27
ao penhor, o décimo terceiro, ao depósito, o décimo quarto, ao depósito de géneros e
mercadorias nos armazéns gerais, o décimo quinto, aos seguros, o décimo sexto, à
compra e venda, o décimo sétimo, ao reporte, o décimo oitavo, ao escambo ou troca, o
décimo novo, ao aluguer, e, o vigésimo, à transmissão e reforma de títulos de crédito
mercantil.
Se bem que o CCom utilize um segundo critério de determinação da
comercialidade de um acto jurídico, o do comerciante (art. 2.º, segunda parte, e art. 13.º),
e, por essa via, do próprio âmbito do Direito Comercial, o certo é que mesmo é
subalternizado ao do acto de comércio.

4. A adesão à OHADA e o Ato Uniforme relativo ao Direito Comercial Geral

I ― Em 17 de Outubro de 1993 foi firmado, na República das Maurícias, o Tratado da


OHADA (Organização para a harmonização do direito dos negócios em Árica)45, que se
inscreve num mais amplo movimento de integração económico-jurídica dos Estados
africanos francófonos46.
O Tratado da OHADA, que se compõe de 63 artigos, tem por objecto a
harmonização do direito dos negócios dos Estados Partes, finalidade que se propõe
alcançar, entre outros meios, pela “[…] elaboração e adopção de regras comuns simples,
modernas e adaptadas à situação das suas economias […]” (art. 1.º)47.
Para a execução das tarefas previstas no Tratado, designadamente a de produção
jurídica uniforme no âmbito do direito dos negócios, institui o mesmo uma organização,
denominada Organização para a Harmonização do Direito dos Negócios em África
(OHADA) (art. 3.º, I).
Nos termos do art. 2.º do Tratado, o âmbito do seu objecto ― direito dos negócios
― abrange as regras relativas ao direito das sociedades, ao estatuto jurídico dos
comerciantes, às cobranças de créditos, às garantias e meios de execução, ao regime de
recuperação das empresas e de liquidação judicial, ao direito da arbitragem, ao direito do

45
O acrónimo reflecte a terminologia francesa: Organisation pour l´Harmonisation en Afrique du Droit
des Affaires.
46
Sobre o Tratado da OHADA, cf., entre outros, JOSEPH ISSA-SAYEGH/JACQUELINE LOHOUES-OBLE,
OHADA - Harmonization du droit des affaires, 91 e ss.; TIAGO SOARES DA FONSECA, O Tratado da
OHADA, passim; SALVATORE MANCUSO, Direito Comercial Africano (OHADA), 19 e ss.
47
Trad. nossa, a partir da versão oficial em língua francesa.

28
trabalho, ao direito contabilístico, ao direito da compra e venda e dos transportes, a que
acresce “[…] qualquer outra matéria que o Conselho de Ministros considere, por
unanimidade, aí incluir, em conformidade com o objecto do […] Tratado nos termos das
disposições do subsequente artigo 8.º”48.
Saliente-se, ainda, que o Tratado estipula, no seu art. 5.º, I, que os actos aprovados
para a adopção das regras uniformes previstas no art. 1.º tomam a denominação de Atos
Uniformes. Os AU são, portanto, fonte de direito da OHADA com carácter derivado.
Nos termos do art. 10.º do Tratado, os actos uniformes são directamente aplicáveis
e vinculativos nos Estados-Partes (efeito directo), não obstante qualquer disposição
contrária de direito interno, anterior ou posterior. Não é demais frisar a importância desta
disposição convencional: por um lado, a eficácia dos AU nos ordenamentos internos dos
Estados Partes é directa, dispensando, portanto, actos normativos de transposição
praticados por aqueles; por outro lado, o direito derivado da OHADA tem nível
hierárquico superior ao do direito interno dos Estados Partes. O art. 10.º do Tratado
consagra a unificação do direito dos Estados Partes, nos sectores abrangidos, e não a sua
mera harmonização; repudia-se, assim, o entendimento doutrinário que sustenta uma
interpretação daquele preceito como determinando apenas a harmonização dos direitos
dos Estados Partes do Tratado da OHADA49.

II — O superior nível hierárquico do direito derivado da OHADA sobre o direito de


produção interna dos Estados-Partes determina, quando exista contrariedade entre ambos,
a revogação do segundo, quando anterior, ou a sua nulidade, por violação de norma
hierarquicamente superior, quando posterior.
O Tratado da OHADA foi firmado por catorze Estados (Benim, Burkina-Faso,
Camarões, Chade, Comores, Congo, Costa do Marfim, Guiné Equatorial, Mali, Níger,
República Centro-Africana, Senegal e Togo), tendo entrado em vigor, nos termos do art.
52, II, primeira parte, sessenta dias após o depósito do sétimo instrumento de ratificação,

48
Trad. nossa, a partir da versão oficial em língua francesa.
49
Para um conspecto doutrinário das duas teses em presença, unificação versus harmonização, cf. OSVALDO
SILVA, Sociedade criada de facto e sociedade de facto no direito da OHADA, no prelo. Suscitando, todavia,
a questão da inexistência de cobertura constitucional na Guiné-Bissau para a aplicabilidade directa do
direito internacional derivado, cf. CLÁUDIA MADALENO, As garantias das obrigações nos direitos
guineense e da OHADA, 48 e ss., concluindo a A., apesar disso, pela aplicabilidade directa na Guiné-Bissau
dos actos uniformes da OHADA, em razão da ratificação do Tratado pelo órgão constitucionalmente
competente, em construção com a qual concordamos.

29
o que ocorreu a 18 de Setembro de 1995, com o depósito do instrumento de ratificação
do Níger.
Nos termos o art. 53, I, do Tratado, desde a sua entrada em vigor, está o mesmo
aberto à adesão de qualquer Estado-membro da OUA, bem como de qualquer Estado que
não seja membro da OUA mas que seja convidado a aderir-lhe por acordo ente todos os
Estados Partes. Nos Estados aderentes, o Tratado e os Atos Uniformes entram em vigor
sessenta dias após a data do instrumento de adesão. O Tratado não admite reservas, nos
termos do seu art. 54.
Posteriormente à assinatura do Tratado constitutivo, aderiram à OHADA a Guiné-
Conacri e a Guiné-Bissau50.
O Tratado foi objecto de revisão em 17 de Outubro de 2008.

III ― Não obstante o âmbito assinalado ao Tratado da OHADA na delimitação do seu


objecto (art. 2.º), pela determinação do que constitua, para tal efeito, direito dos negócios,
o presente escrito incide apenas sobre o AU/DCG, de 15 de Dezembro de 201051, e que
corresponde a uma segunda geração do AU/DCG aprovado em 17 de Abril de 1997, bem
como sobre o AU/DSC-GIE, de 30 de Janeiro de 201452, que também corresponde a uma
segunda geração do AU/DSC-GIE, de 17 de Abril de 1997. Ambos os actos uniformes
considerados, na versão de primeira geração, foram aprovados após a adesão da Guiné-
Bissau à OHADA.

50
A Guiné-Bissau aderiu ao Tratado OHADA em 15 de Janeiro de 1994, tendo depositado o instrumento
de ratificação em 26 de Dezembro de 1995; o Tratado entrou em vigor na Guiné-Bissau em 20 de Fevereiro
de 1996 (TIAGO SOARES DA FONSECA, O acto uniforme relativo ao direito das sociedades e do agrupamento
complementar de empresas: considerações gerais, 23, n. 24).
51
Publicado no Jornal Oficial da OHADA, n.º 23, de 15 de Fevereiro de 2011.
52
Publicado no Jornal Oficial da OHADA, número especial, de 4 de Fevereiro de 2014.

30
CAPÍTULO III

O ATO UNIFORME DA OHADA RELATIVO AO DIREITO


COMERCIAL GERAL

1. Apresentação geral

O AU/DCG compreende nove livros, bem como um Capítulo Preliminar: o Livro I


tem por objecto o estatuto do comerciante e do empreendedor, o Livro II, o registo
comercial e do crédito mobiliário, o Livro III, o ficheiro nacional, o Livro IV, o ficheiro
regional, o Livro V, a informatização do registo do comércio e do crédito mobiliário, do
ficheiro nacional e do ficheiro regional, o Livro VI, o arrendamento profissional e o
estabelecimento comercial, o Livro VII, os intermediários de comércio, o Livro VIII, a
venda comercial e, o Livro IX, disposições transitórias e finais.
A designação atribuída ao AU, centrando-o no Direito Comercial geral assume, à
partida, que o mesmo se inseriria no ordenamento jurídico da OHADA em contraposição
a regulações comerciais especiais. De facto, assim sucedeu: em 17 de Abril de 1997, data
aprovação do AU/DCG, foi também aprovado o AU/DSC-GIE, tendo por objecto
particular as sociedades comerciais e o agrupamento de interesse económico.
A denominação do AU/DCG não é inteiramente harmónica com a delimitação
material efectuada no art. 2.º do Tratado OHADA para o direito dos negócios: se bem
que não fosse utilizável para o AU a designação de direito geral dos negócios ― porque
manifestamente incorrecta, por excesso ―, este também se não reporta exclusivamente
ao estatuto do comerciante, que surge referido naquele preceito legal.

2. O âmbito da revogação do Direito Comercial interno

2.1. O artigo 10.º do Tratado da OHADA

Nos termos já assinalados a propósito do Tratado OHADA, a entrada em vigor do


AU/DCG determinou a revogação das normas do direito interno guineense que lhe fossem
contrárias, designadamente as do Código Comercial. Mas com isso não se esgotam todas
as questões que podem colocar-se no âmbito do relacionamento entre o direito derivado

31
da OHADA e o direito interno dos seus Estados-membros. Vejamos: na teoria geral das
fontes do direito, a assinalada contrariedade normativa, resulta num caso de revogação
tácita, implícita ou por incompatibilidade, isto é, que pode concluir-se de uma vontade
legislativa que não explicita o sentido de fazer cessar a vigência (revogação expressa ou
por declaração).
Mas a teoria geral das fontes de direito conhece uma terceira modalidade de
revogação: a global, que opera por ramo de direito ou por instituto jurídico (no CC, essa
modalidade de revogação tem expressa consagração no n.º 3 do art. 7.º, ocorrendo pela
circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior).
Os actos uniformes da OHADA abrangem sectores jurídicos unitários, seja por
referência a ramos de direito — v.g., Direito Comercial, Direito Contabilístico, Direito da
Insolvência — seja a institutos singulares — v.g., sociedades comerciais, transporte
terrestre de mercadorias —, colocando-se, por isso, a questão adicional de saber se a sua
eficácia revogatória atinge normas de direito interno, de um ramo de direito ou de um
instituto objecto de um acto uniforme, mas que nele não tenham correspondência, no
sentido de não serem contrárias ao direito uniforme.
A solução da questão prende-se com a interpretação da norma do art. 10.º do
Tratado que institui a OHADA, que não é doutrinariamente pacífica: para uma tendência,
o preceito deve ser — amplamente — interpretado no sentido de que o direito uniforme
da OHADA produz a revogação global do direito interno sobre a matéria em causa; uma
outra tendência — restrita — sustenta que a revogação do direito interno é limitada às
normas em situação de concreta incompatibilidade com o direito uniforme53.
A primeira via interpretativa, evitando juízos de incompatibilidade norma-a-
norma, apresenta a vantagem da simplificação aplicativa, mas também a desvantagem do
potenciamento de lacunas, nos casos antes cobertos pelo direito interno e que não o são
pelo direito derivado da OHADA. A segunda via de interpretação, preservando o direito
interno não contrário ao direito uniforme, evita a criação de lacunas, mas pela admitida
concatenação normativa, de dois níveis, potencia conjuntos normativos efectivamente
diversos em cada um dos Estados Partes, e, alegadamente, desarmonias na solução de
questões idênticas54.

53
Cf., entre outros, SALVATORE MANCUSO, Direito Comercial Africano (OHADA), 45 e 46; CLÁUDIA
MADALENO, As garantias das obrigações nos direitos guineense e da OHADA, 56 e ss., tendo em vista do
direito interno guineense relativo à garantias especiais das obrigações.
54
JOSEPH ISSA-SAYEGH/JACQUELINE LOHOUES-OBLE, OHADA. Harmonisation du droit des affaires, 134;
CLAUDIA MADALENO, ob. cit., 57.

32
O argumento da desarmonia prova, todavia, demais: é que atenta a aplicação
imediata do direito da OHADA nas ordens jurídicas internas dos Estados-Partes (art. 10.º
do Tratado), a invocada desarmonia só pode verificar-se em área a descoberto desse
direito, que, portanto, está fora dos interesses regulatórios da OHADA; uma tal
desarmonia é, portanto, neutra no confronto da OHADA55.
A primeira via interpretativa do art. 10.º do Tratado, a restrita, parece-nos, pois,
mais bem fundada, sendo, também, a que atinge um melhor resultado do ponto de vista
do problema das lacunas de direito interno.
O alcance do art. 10 do Tratado foi já objecto de um parecer do TCJA, solicitado
pela Costa do Marfim e emitido nos termos do art. 14, II, do Tratado, tendo o tribunal
perfilhado o sentido interpretativo restrito56; o parecer não é vinculativo para a entidade
que o solicita, mas é improvável que os seus entendimentos tendentes a assegurar uma
interpretação e aplicação comuns do Tratado, dos regulamentos de aplicação, dos actos
uniformes e das decisões, não sejam acatados pelas autoridades dos Estados Partes, uma
vez que as decisões destes podem, em ultima análise, vir a ser sindicados pelo TCJA57.
Partilha-se, assim, da interpretação do art. 10 do Tratado OHADA no sentido de
que a revogação provocada pelos AU no direito interno do Estados Partes não é global;
ao contrário, trata-se de revogação individualizada, que só atinge, portanto, as disposições
normativas internas que sejam contrárias ao direito uniforme da OHADA, sendo tal
revogação de qualificar — num plano analítico que parta, como objecto do AU, de um
ramo do direito ou de um instituto jurídico — como parcial58.

2.2. O âmbito de aplicação do AU/DCG

55
Julgamos ser próximo o entendimento de CLÁUDIA MADALENO, As garantias das obrigações nos direitos
guineense e da OHADA, 74, pese embora nos parecer equívoca a utilização que faz a A. da locução
“objecto” (dos AU), que tanto pode significar, no seu discurso, a questão regulada como o ramo de
direito/instituto jurídico.
56
Parecer n.º 001/2001/EP. O referido parecer corresponde a uma mudança na orientação da jurisprudência
do TCJA, que, inicialmente, sustentara a tese da revogação global; sobre o assunto, cf. CLÁUDIA
MADALENO, ob. cit., 66 e ss.
57
SALVATORE MANCUSO, Direito Comercial Africano (OHADA), 34; BORIS MARTOR/NAVETTE
PILKINGTON/DAVID S. SELLERS/SÉBASTIEN THOUVENOT, Business Law in Africa: OHADA and the
harmonization process, 2.ª ed., GMB, 2007, 10, 18 e 19.
58
Subscrevem-se, assim, as conclusões de CLÁUDIA MADALENO (ob. cit., 75 e ss.) sobre a interpretação do
art. 10.º Tratado da OHADA, bem como sobre o âmbito da revogação produzida pelos AU no direito interno
dos Estados Partes.

33
I — O AU/DCG abre com uma delimitação do seu âmbito de aplicação, declarando-se no
seu art. 1.º, I, II e III, que “[q]ualquer comerciante, pessoa singular ou colectiva, incluindo
quaisquer sociedades comerciais nas quais um Estado ou uma pessoa de direito público
seja sócio, bem como todos os agrupamentos de interesse económico, cujo
estabelecimento ou sede social se situe no território de um Estado Parte do Tratado
relativo à Harmonização do Direito dos Negócios em África, abaixo denominados
“Estados Partes”, está sujeito às disposições do presente Ato Uniforme.
Salvo disposições diversas, estão, igualmente, sujeitas ao presente Ato Uniforme
e nos termos adiante determinados, as pessoas singulares que tenham optado pelo estatuto
do empreendedor.
Os comerciantes e os empreendedores ficam também sujeitos às leis do Estado
Parte no qual que se situe o seu estabelecimento ou sede social e que não sejam contrárias
ao presente Ato Uniforme […]”.
Para os efeitos que agora nos interessam, o preceito revela dois aspectos
importantes: (i) que a delimitação do âmbito de aplicação do AU/DCG se faz através de
um critério subjectivo: a qualidade de comerciante ou de empreendedor; (ii) que, nas áreas
não cobertas pelo AU/DCG, a esses sujeitos aplica-se o correspondente direito interno
dos Estados Parte. A disposição uniforme supõe, pois, uma legislação nacional cujo
critério de aplicação seja essa qualidade pessoal, sendo o sentido razoável da última
norma citada o de que comerciantes e empreendedores ficam sujeitos à legislação interna
não contrária ao AU/DCG enquanto detentores dessa qualidade pessoal e por causa dela.

II — A concatenação entre o AU/DCG e o Direito Comercial interno da Guiné-Bissau


suscita questões problemáticas que parecem longe das preocupações das doutrinas
francófonas e que se prendem com o facto de o direito da OHADA ter operado uma
derrogação num conjunto normativo objectivamente orientado (critério prevalente do
acto de comércio) através de legislação de orientação matricialmente subjectiva (critério
do comerciante). Dito de outro modo, se, por um lado, o direito da OHADA introduziu
no ordenamento jus-comercial da Guiné-Bissau um conjunto normativo subjectivamente
orientado e se preservou, em certos termos, a legislação nacional aplicável a
comerciantes, por outro lado, o Direito Comercial interno Bissau-Guineense é,
prevalentemente, aplicável aos actos de comércio, independentemente da qualidade de
quem os pratica (comerciante ou não comerciante).

34
CAPÍTULO IV

O ÂMBITO DO DIREITO COMERCIAL BISSAU-


GUINEENSE: A CONFLUÊNCIA ENTRE O ATO UNIFORME
RELATIVO AO DIREITO COMERCIAL GERAL E O CÓDIGO
COMERCIAL

1. Os critérios de delimitação do âmbito do Direito Comercial às vésperas da


vigência do AU/DCG

I — Às vésperas do início de vigência na Guiné-Bissau do AU/DCG (primeira geração),


o Direito Privado Bissau-Guineense tinha, como foi visto, uma conformação dualista,
separando-se formalmente, em dois códigos, o civil e o comercial.
Corporizando o Direito Comercial da Guiné-Bissau, o CCom apresentava uma
matriz objectiva de delimitação do seu âmbito, regendo a lei comercial, nos termos do
seu art. 1.º, os actos de comércio, independentemente de serem realizados por
comerciantes por não comerciantes. Neste enquadramento, ficava explícita a inexistência
de uma dependência lógica da noção de acto de comércio relativamente à de comerciante.
Ao contrário, era a noção de comerciante que dependia logicamente da de acto de
comércio, como expressava o n.º 1.º do art. 13 do CCom.: são comerciantes as pessoas
que, tendo capacidade, para a prática de actos de comércio, fazem deste profissão.
Sendo este o aspecto central — objectivo — da delimitação do Direito Comercial
Bissau-Guineense, encontrava-se no CCom uma sua extensão, na periferia, que articulava
duplamente a noção de acto de comércio em torno da noção de comerciante. Se o acto de
comércio importava à qualificação das pessoas que os realizavam profissionalmente
como comerciantes (art. 2.º, primeira parte, e art. 13, 1.º), essa qualificação subjectiva
era, ela mesma, fonte de qualificação de actos de comércio (art. 2.º, segunda parte).
Esta dupla articulação da noção de acto de comércio em torno da de comerciante
havia conduzido a doutrina portuguesa a evidenciar a presença no CCom. de duas
categorias de actos de comércio: a dos previstos na primeira parte do art. 2.º do CCom.
— dogmatizados como objectivos — e dos previstos na segunda parte do mesmo preceito
legal, dogmatizados como subjectivos. Esta dogmatização é inteiramente justificada: se,
por um lado, o art. 1.º do CCom evidenciava que a noção central de acto de comércio

35
tinha uma matriz objectiva — porque não dependia da de comerciante —, na periferia do
sistema verificava-se o reconhecimento da existência de uma particular categoria de actos
de comércio, que pressupunha a qualidade de comerciante do seu autor (actos de comércio
subjectivos).
A dupla articulação da noção de acto de comércio em torno da de comerciante tem
um encadeamento lógico: os actos de comércio (objectivos; art. 2.º, primeira parte, do
CCom.) qualificam quem os realiza profissionalmente como comerciante (art. 13, 1.º, do
CCom) e a qualidade de comerciante qualifica certos actos como comerciais (art. 2.º,
segunda parte, CCom); não há, portanto, possibilidade lógica de qualificação simultânea
de um e do mesmo acto jurídico como comercial nos termos do art. 2.º, primeira parte
(acto de comércio objectivo), e, igualmente, nos termos da segunda parte do mesmo (acto
de comércio subjectivo): a comercialidade de um acto não pode, simultaneamente, ser a
causa e a consequência da qualidade de comerciante.

II — O que vem de dizer-se permite a afirmação de que o âmbito da aplicação do CCom


de 1888 é mista, misturando um critério objectivo (acto de comércio) com um critério
subjectivo (comerciante), sendo o primeiro predominante.

2. O âmbito de aplicação do AU/DCG

I ― O AU/DCG abre com uma delimitação do seu âmbito de aplicação, declarando-se no


seu art. 1.º, I e II, que “[o] presente Ato Uniforme é aplicável aos comerciantes, pessoas
singulares ou pessoas colectivas, incluindo as sociedades comerciais que tenham como
sócio um Estado ou uma pessoa de Direito público, bem como aos agrupamentos de
interesse económico, cujos estabelecimentos ou sedes sociais se situem no território de
um Estado Parte do Tratado relativo à Harmonização do Direito dos Negócios em África
(aqui denominados “Estados Partes”).
Salvo disposições diversas, estão, igualmente, sujeitos ao presente Ato Uniforme
e nos termos adiante determinados, as pessoas singulares que tenham optado pelo estatuto
do empreendedor”.

II — Na sua própria concepção, o Direito Comercial (geral) da OHADA, é, portanto, o


direito aplicável a certos sujeitos, em função de uma particular qualificação que
detenham, o que está expresso no art. 1.º, I e II do AU/DCG, abrangendo comerciantes,

36
incluindo sociedades comerciais com participação pública, agrupamentos de interesse
económico59 e empreendedores.
A uma primeira análise poderia admitir-se, em tese geral, que todos os sujeitos
referidos naqueles preceitos legais compusessem uma categoria ampla de comerciante,
que incluísse, como espécie, a do comerciante em sentido restrito. Não é, todavia, o caso,
uma vez que a categoria legal do empreendedor, relacionando-se com a de comerciante,
não se esgota nela.

III — Todavia, o AU/DCG não desconhece a noção de acto de comércio, que, surgindo
em manifestações parcelares no art. 2.º (acto de comércio por natureza) e no art. 4.º (acto
de comércio pela forma), tem na primeira a importância própria de se tratar da noção da
qual decorre a noção de comerciante.
Assim sendo, a matriz subjectiva assumida pelo AU/DCG no seu art. 1.º necessita
de ser sindicada com recurso às suas regulações materiais.
Como haverá ocasião de comprovar adiante, o Direito Comercial Geral Uniforme
da OHADA é, efectivamente, matricialmente subjectivo, determinando os pressupostos
da aquisição da qualidade de comerciante e de empreendedor (arts. 2.º e 30), regulando a
capacidade para o exercício do comércio (arts. 6.º e 7.º), regulando os impedimentos ao
exercício do comércio e as incompatibilidades para tal exercício (isto é, situações
subjectivas que impedem a pessoa atingida de adquirir a qualidade de comerciante; arts.
8.º a 10), estabelecendo deveres inerentes à qualidade de comerciante (arts 13 a 15 e 34 a
61), determinando os pressupostos da aquisição da qualidade de empreendedor e os
deveres inerentes à mesma (arts. 30 a 32), regulando contratos de intermediação
comercial a partir de tipos subjectivos de intermediários (art. 169 a 233) e regulando a
prova de actos em que intervenham comerciantes e a prescrição de obrigações resultantes
de actos em que intervenham comerciantes, sejam, ou não, as contrapartes comerciantes
(arts. 5.º e 16 a 29).
No Livro VIII do AU/DCG surge a regulação da venda comercial, também com
recurso a uma técnica de jus-subjectivação, uma vez que a aplicação de tal regime implica
que as partes do contrato sejam comerciantes (art. 234); o mesmo se pode dizer da

59
O grupamento de interesse económico é juridicamente personificado, nos termos do art. 872 do AU/DSC-
GIE: o agrupamento de interesse económico goza de personalidade jurídica e de plena capacidade a partir
da sua matrícula no Registo do Comércio e do Crédito Mobiliário (trad. nossa, a partir do original em
língua francesa).

37
regulação do estabelecimento comercial, que, à cabeça, o AU/DCG define como um
conjunto de meios que permitem ao comerciante atrair e conservar uma clientela (art.
135).
A uma estrita jus-subjectivação escapam, apenas, as regulações, institucionais,
organizativas e técnicas, relativas ao Registo do Comércio e do Crédito Mobiliário (arts.
34 a 100), bem como as relativas ao arrendamento profissional, uma vez que o tipo
contratual em causa não exige que o senhorio seja comerciante nem, tão-pouco, que o
arrendatário (tratando-se de arrendamento para o exercício de actividade comercial) o seja
no momento da celebração do contrato.
Tudo visto, a relevância do conceito de acto de comércio no AU/DCG, em
particular no segmento do acto de comércio por natureza (art. 2.º) limita-se a constituir o
ponto de apoio externo da noção de comerciante; nos termos do art. 3.º “[é] comerciante
aquele que faz da prática de actos de comércio por natureza a sua profissão” (art. 2.º do
AU/DCG). O acto de comércio não tem, pois, no AU/DCG um relevo autónomo, no
sentido de conduzir, per se, à determinação de um regime particular de certos actos
jurídicos. Diga-se, aliás, que num sistema que não supõe uma jurisdição particular para
os litígios emergentes de actos de comércio nem um regime comum desses actos
independente da qualidade de quem os realiza (comerciante ou não comerciante), mal se
compreende a ratio da qualificação de certos actos jurídicos como actos de comércio pela
forma (art. 4.º), já que de tal qualificação não decorre nem um regime particular autónomo
relativamente à qualidade de comerciante nem uma ordem jurisdicional própria.
Assim se conclui que o Direito Comercial da OHADA é de matriz exclusivamente
subjectiva, reproduzindo, na sua concepção nuclear, o modelo francês do Code de
commerce (1807).

3. A conjugação entre o AU/DCG e as regulações do CCom que permanecem


vigentes: o actual âmbito do Direito Comercial bissau-guineense

I — O resultado da sobreposição do AU/DCG ao Direito Comercial interno guineense


não é diverso da situação anterior quanto à utilização simultânea de dois critérios, um,
objectivo (acto de comércio), e outro, subjectivo (comerciante).
Na verdade, o AU/DCG faz uso do conceito de acto de comércio, não para o efeito
de delimitar o âmbito das suas regulações, mas antes como critério para fixar o conteúdo
da sua única chave: o comerciante. Já o Código Comercial — e mesmo considerando as

38
partes que lhe foram amputadas pelo AU/DCG — tem o seu âmbito essencialmente
recortado pelo conceito de acto de comércio.

II — Se o Direito Comercial guineense que é produto destas duas camadas continua, pois,
a não ter o seu âmbito exclusivamente recortado sobre um dos critérios tradicionais do
acto de comércio e do comerciante, a verdade é que a supremacia hierárquica do AU/DCG
sobre o direito de produção interna parece justificar o juízo de que neste produto original
é predominante o critério subjectivo.

III — A delimitação do vigente Direito Comercial bissau-guineense é, pois, diversa da


que antes se continha no CCom, de matriz predominantemente objectiva, regulando os
actos de comércio, independentemente da qualidade, de comerciante ou não comerciante,
do seu autor (art. 2.º).
A consideração destes diversos pontos de partida explica as diferenças de
concessão de ambas as regulações: se no caso do CCom se regulavam os actos de
comércio com tendencial independência da qualidade do seu autor — comerciante ou não
comerciante60 —, no caso do AU/DCG, as regulações particulares, seja de actos de
comércio, como é o caso da venda comercial (art. 234), seja de actividades profissionais,
como é o caso dos intermediários de comércio (arts. 169 e 170), pressupõem ou
determinam a qualidade de comerciante dos envolvidos.

60
Tal independência é meramente tendencial porque nem todos os actos (de comércio) especialmente
regulados neste Código (art. 2.º do CCom) o são em termos puramente objectivos [veja-se o caso das
operações de banco (art. 362 CCom) e do contrato de transporte (art. 366 CCom)], sendo que a categoria
de actos de comércio da segunda parte do art. 2.º do CCom pressupõe, precisamente, a qualidade de
comerciante.

39
CAPÍTULO V

O COMERCIANTE

1. Comerciante

1.1. Aspectos gerais

I ― Determina-se no art. 2.º do AU/DCG que “[é] comerciante aquele que faz da prática
de actos de comércio por natureza a sua profissão”, não se distinguindo aí entre pessoas
singulares e colectivas.
O Direito Comercial — tenha-se em vista o direito da OHADA ou o CCom —
não opera com um quadro próprio de personificação jurídica, recorrendo, para o efeito,
às construções do Direito Civil. Sujeitos de situações jurídico-comerciais são, portanto,
os centros de imputação jurídica dogmatizados como pessoas em sentido jurídico,
singulares ou colectivas (arts. 66, n.º 1, e 158, ambos do CC)61. O quadro civil da
personificação jurídico-colectiva está, pois, subjacente quer ao regime do Capítulo II do
Título I do Livro I do AU/DCG, quer às nomas do Capítulo I do Título II do Livro
Primeiro do CCom.
O comerciante pode ser pessoa singular ou colectiva, conforme resulta do art. 1.º,
I, do AU/DCG.

II — A noção do art. 2.º foi retocada na segunda versão do AU/DCG, não correspondendo
exactamente à original; entre a versão original e a de 2011 verifica-se: (i) ter sido a
redacção singularizada; (ii) ter sido introduzida a delimitação por natureza dos actos de
comércio em causa; e, (iii) ter sido eliminada a referência à habitualidade da profissão.
As modificações na redacção do art. 2.º do AU/DCG, entre as suas duas versões,
merecem ser positivamente sublinhadas.
A delimitação dos actos de comércio atributivos da qualidade de comerciante
àqueles que o são por natureza encontra um generalizado consenso doutrinal, tomado

61
Sobre a pessoa em sentido jurídico-civil, cf., entre outros, PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do
Direito Civil,

40
aqui como referência as doutrinas francesas e portuguesa, e devendo assinalar-se, em
paralelo, que tal representa a adopção legal de um termo classificativo de origem
doutrinária (que, por exemplo, há muito é utilizada pela doutrina portuguesa, mas que não
tem consagração legal, designadamente no CCom)62.
Já a eliminação da referência à habitualidade da profissão tem a óbvia justificação
de eliminar uma redundância da redacção original: por definição, a profissão implica
habitualidade.

1.2. O artigo 13 do Código Comercial de 1888

Determina-se no art. 13 do CCom que: “[s]ão comerciantes: 1.º As pessoas, que,


tendo capacidade para a prática de actos de comércio, façam deste profissão; 2.º As
sociedades comerciais”
A redacção do art. 2.º do AU/DCG não difere substancialmente da do art. 13, 1.º, do
CCom. senão não redução à qualificação por natureza contida no primeiro. O n.º 2.º do
art. 13.º do CCom continha a expressa atribuição da qualidade de comerciante às
sociedades comerciais.
Parece, assim, poder admitir-se a revogação do art. 13, 1.º, do CCom pelo art. 2.º do
AU/DCG, com novação do título da regra, que permanece essencialmente a mesma
(considerado que é doutrina esmagadoramente maioritária sobre o art. 13.º, 1.º, a que
limita a susceptibilidade de aquisição da qualidade de comerciante à prática de actos de
comércio por natureza).
No que especificamente respeita às sociedades comerciais, importa salientar, antes
de mais, que o art. 13, 2.º, do CCom não define o que seja sociedade comercial, limitando-
se a fixar a qualidade de comerciante da sociedade que tenha a qualificação de comercial.
No actual sistema jurídico guineense, a qualificação comercial da sociedade resulta do
art. 6.º do AU/DSC-GIE, no qual se estabelece que o carácter comercial de uma
sociedade é determinado ou pela sua forma ou pelo seu objecto. São comerciais em razão
da forma e qualquer que seja o seu objecto, as sociedades em nome colectivo, as
sociedades em comandita simples, as sociedades de responsabilidade limitada, as
sociedades anónimas e as sociedades por acções simplificadas. Fica, portanto,
esclarecido que qualquer eventual contrariedade desta noção legal com o disposto no

62
Infra, Capítulo VI, Erro! A origem da referência não foi encontrada..

41
CCom em matéria de qualificação comercial de sociedades não contende com o disposto
no art. 13.º, 2.º, do CCom.
Nem o AU/DCG nem o AU/DSC-AIE contêm regra expressa que qualifique as
sociedades comerciais como comerciantes. Essa qualificação está implícita, todavia, no
art. 1.º do AU/DCG, que considera como comerciantes pessoas singulares ou colectivas,
incluindo todas as sociedades comerciais nas quais um Estado ou qualquer outra pessoa
de Direito Público seja sócio. Nessa perspectiva, pode considerar-se, por um lado, que
não há qualquer incompatibilidade entre os AU relevantes e o art. 13, 2.º, do CCom, sendo
que também não se terá verificado revogação por novação da regra, uma vez que nenhum
dos AU em causa contém regra expressa de idêntico sentido.
Concluímos, assim, pela manutenção da vigência no ordenamento jurídico
guineense do disposto no art. 13, 2.º, do CCom.

1.3. Comerciante pessoa singular

1.3.1. Aspectos gerais

I — Ao reportar-se a actos de comércio por natureza, o art. 2.º do AU/DCG tem em vista,
naturalmente, o que vai disposto no art. 3.º, que define e enumera os actos de comércio
por natureza63. Essa delimitação permite, desde logo, excluir que os actos de comércio
enumerados no art. 4.º — pela forma — tenham a virtualidade de atribuir a qualidade de
comerciante.
A enumeração do art. 3.º deve, todavia, ser restritivamente interpretada,
excluindo-se dessa categoria os actos cuja comercialidade resulta de serem praticados por

63
AU/DCG (art. 3.º), versão de 2011, trad. nossa: [o] acto de comércio por natureza é aquele pelo qual
alguém intervém na circulação dos bens que produz ou adquire ou pelo qual realiza prestações de serviços
com a intenção de disso retirar um proveito pecuniário. São actos de comércio por natureza,
designadamente:
– A compra de bens, móveis ou imóveis, para revenda;
– As operações bancárias, de bolsa, de câmbio, de corretagem, de seguros e de expedição;
– Os contratos celebrados entre comerciantes relativos às necessidades das respectivas actividades
comerciais;
– A exploração industrial de minas, pedreiras e de todos os jazigos de recursos naturais;
– As operações de locação de móveis;
– As operações de manufacturas, de transporte e de telecomunicações;
– As operações dos intermediários de comércio, tais como a comissão, a corretagem e a agência, bem
como as operações de intermediação para a compra, a subscrição, a venda ou a locação de imóveis, de
estabelecimentos comerciais, de acções ou de partes de sociedades comerciais ou imobiliárias;
– Os actos praticados por sociedades comerciais.

42
comerciantes pessoas singulares e por sociedades comerciais; manifestamente, ao incluí-
los na enumeração dos actos e comércio por natureza, disse o legislador mais do que
quereria, sendo que o intérprete não está vinculado à letra da lei para efeitos de lhe fixar
o sentido (art. 9.º, 1, CC)64. Trata-se de um resultado interpretativo que se explica em
razão da alteração da redacção do art. 3.º introduzida pela versão de 2011, uma vez que
na sua redacção originária se continha apenas um elenco de actos de comércio, que não
se limitava à categoria por natureza.

II — A profissão implica habitualidade e objectivo de ganho (no sentido de meio de vida);


nesse enquadramento, exclui-se do âmbito da profissão o acto de comércio praticado
ocasionalmente (por exemplo, uma compra para revenda, visando o lucro)65 e, bem assim,
o acto de comércio praticado habitualmente, mas sem finalidade de ganho (por exemplo,
a aquisição de géneros alimentícios com o objectivo de os revender a pessoas carenciadas,
a preço inferior ao do seu custo para o vendedor).

III — Nas doutrinas francófona e lusófona há muito que que é reconhecido ser condição
da aquisição da qualidade de comerciante que os actos de comércio realizados
profissionalmente o sejam em nome e por contra próprios; tanto vale por dizer que os
actos de comércio praticados por conta de outrem ou em nome de outrem não atribuem a
quem os pratica a qualidade de comerciante.
A questão cobra um sentido próprio quando se consideram os auxiliares de
comércio, que, por força de contrato oneroso, devam praticar habitualmente actos de
comércio, mas cujos efeitos não são imputados à sua esfera jurídica, mas à do dono do
negócio. Pense-se no caso da pessoa que, num supermercado, em razão de um contrato
de trabalho celebrado com o respectivo dono, tem por função atender os clientes,
vendendo-lhes o que estes querem comprar: as compras e vendas que realizar são-no em
termos profissionais, mas os efeitos desses actos, designadamente a própria qualidade de
comerciante são imputados a esfera jurídica alheia.
Cabe aqui fazer uma referência específica à categoria subjectiva do intermediário
de comércio, objecto do Livro VIII do AU/DCG.

64
Substancialmente no mesmo sentido, AKÚÉTÉ PEDRO SANTOS/JEAN YADO TOÉ, OHADA - Droit
Commercial Géneral, 78.
65
Cf. o art. 3.º, primeiro travessão, AU/DCG.

43
Em abstracto, um exercício profissional não é incompatível com inteira
subordinação jurídica de uma parte de um contrato em relação à outra no que respeita ao
modo de exercício e à organização da actividade objecto do contrato; a conjugação desse
tipo de subordinação jurídica com os requisitos da profissionalidade ocorre no contrato
de trabalho66. No que particularmente se refere à intermediação comercial do direito da
OHADA, a posição jurídica do intermediário envolve sempre algum grau de autonomia
no exercício da actividade objecto do contrato, o que, no âmbito das disposições gerais
sobre os intermediários comerciais pode intuir-se, desde logo, na qualificação que produz
o art. 170, I, de que o intermediário é um comerciante. O exercício da actividade de
intermediação, objecto do contrato, com autonomia — variável segundo coordenadas
várias — implica a assunção de um risco económico próprio do intermediário,
contrapartida de uma potencialidade lucrativa que é gerada na sua própria esfera jurídica
e não na do principal.
A qualificação legal de comerciante do intermediário de comércio visa ultrapassar
algumas hesitações doutrinárias relativamente a intermediários cuja actuação por conta
de outrem produz a imputação directa dos efeitos dos actos praticados à esfera jurídica
do principal, que se manifestaram na doutrina francesa67, mas também na doutrina
portuguesa relativamente ao mandatário mercantil e ao comissário 68. O intermediário
comercial exerce — passe a tautologia — intermediação entre a produção e o consumo e,
se a exerce com finalidade lucrativa, na medida da profissionalidade a que se refere o art.
169, não parece que deva ser sobrevalorizado o facto de a intermediação ser exercida por
conta de outrem porque todo o jogo dos valores do comércio, designadamente no campo
do relacionamento com terceiros, está presente na sua actividade, razão pela qual bem
andou o legislador OHADA na qualificação expressa que faz do intermediário comercial
como comerciante. Aliás, nos termos do art. 3.º, as operações dos intermediários de
comércio são qualificadas como acto de comércio, que, portanto, se realizadas
profissionalmente, conferem a qualidade de comerciante (art. 2.º)69.

66
67
Cf., entre outros, JEAN HÉMART, “Les agents commerciaux”, em Revue Trimestrielle de Droit
Commercial, 586 e ss.; AKÚÉTÉ PEDRO SANTOS/JEAN YADO TOÉ, OHADA - Droit Commercial Géneral,
Bruylant, Bruxelas, 2002, 242 e 243, salientando que, ao tempo da aprovação do AU/DCG, o direito da
OHADA só inovou em relação ao direito francês no que respeita à qualificação do agente como
comerciante, negada pela Lei (francesa) de 25 de Junho de 1991.
68
Cf., entre outros, JANUÁRIO GOMES, “Contrato de mandato comercial”, 512 e ss.
69
Saliente-se, porém, que na redacção do art. 3.º do AU/DCG da segunda geração se consideram as
operações dos intermediários de comércio como actos de comércio por natureza, o que, na conjugação
dessa norma com a do art. 2.º (qualificação do comerciante), cria um círculo vicioso: tais operações
constituem actos de comércio se realizadas por intermediários de comércio, o que equivale a fazer depender

44
1.3.2. Capacidade comercial

I — Num sistema juscomercial objectivo é abstractamente concebível que a capacidade


jurídica exigida para a prática — válida — de actos de comércio não coincida com a
capacidade exigida para a aquisição da qualidade de comerciante70.
O art. 7.º do CCom determina que toda a pessoa, nacional ou estrangeira, que for
civilmente capaz de se obrigar, poderá praticar actos de comércio, em qualquer parte
destes reinos e seus domínios, nos termos e salvas as excepções do presente Código.
Por seu turno, os arts. 6.º e 7.º, I, do AU/DCG determinam, respectivamente, o
seguinte: (i) a pessoa que não tiver capacidade jurídica para exercer o comércio, não
pode praticar actos de comércio como profissão; (ii) o menor, salvo quando emancipado,
não pode ser comerciante nem praticar actos de comércio.

II — Antes mesmo de se verificar se as normas citadas do AU/DCG são compatíveis com


a do art. 7.º do CCom deve salientar-se que o Direito Comercial — tenha-se em vista o
direito da OHADA ou o CCom — não opera com um sistema próprio de capacidade,
sendo, portanto, nessa matéria, tributário do Direito Civil.
Na capacidade civil das pessoas de estatuto pessoal guineense pode distinguir-se,
relativamente à pessoa singular, entre capacidade de direito ou de gozo, por um lado, e
capacidade de agir ou de exercício, por outro; no que respeita à pessoa colectiva, se se
pode igualmente falar de capacidade de gozo, não cobra sentido falar de capacidade de
exercício (ou, pelo menos, não no mesmo sentido em que disso se pode falar para a pessoa
singular).
A capacidade de gozo representa a medida de direitos e obrigações de que uma
pessoa pode ser titular. A das pessoas singulares é genérica (art. 67, 1, CC); a das pessoas

uma qualificação objectiva (acto de comércio por natureza) de uma condição subjectiva (ser a operação
realizada por intermediário de comércio) e, assim sendo, não poder a qualidade de comerciante do
intermediário decorrer da prática profissional de actos (art. 2.º) que foi a sua própria condição subjectiva
de intermediário a determinar; por outras palavras, a qualidade de comerciante do intermediário não pode,
em simultâneo, por um lado, constituir a causa da qualificação como comerciais (por natureza) dos actos
que pratica profissionalmente e, por outro lado, ser a consequência da pratica profissional de actos cuja
comercialidade decorre da qualidade subjectiva do seu autor. No ãmbito do CCom, e para a doutrina que
sustenta a qualidade de comerciante do mandatário comercial e do comissário, este vício lógico não se
verifica uma vez que a qualificação do mandato e da comissão como actos de comércio (arts. 231 e 266)
depende apenas de requisitos objectivos.
70
Apesar de entendermos que o Code de commerce de 1807 está na transição entre o subjectivismo e o
objectivismo, a distinção referida no texto está claramente espelhada no teor originário dos seus arts. 2.º
(qualidade de comerciante do menor) e 3.º (capacidade do menor para a prática de actos de comércio
isolados).

45
colectivas de Direito Privado comum, segundo cremos, também (art. 160)71. O âmbito da
capacidade genérica de gozo cobre, em termos positivos, todos os direitos e obrigações
compatíveis com a natureza, singular ou colectiva, da pessoa em questão, exceptuados os
que lhes estejam legalmente vedados.
A capacidade de exercício representa a medida das situações jurídicas, activas e
passivas, que podem ser adquiridas ou assumidas, respectivamente, de forma pessoal e
livre, por cada pessoa. Em particular no que respeita à pessoa singular, o Direito Civil
determina incapacidades de exercício relativamente aos menores, aos interditos e aos
inabilitados (arts. 122 a 156 do CC).

III — Determina-se no art. 6.º do AU/DCG que a pessoa que não tiver capacidade
jurídica para exercer o comércio, não pode praticar actos de comércio como profissão.
É medianamente claro que o legislador opõe aí o exercício do comércio à prática de actos
de comércio como profissão; dito de outra forma, exercício do comércio não vale aí por
fazer do comércio profissão. Ora, por assim ser, o exercício do comércio a que se reporta
esse preceito legal tem, necessariamente, um sentido mais amplo do que praticar actos
de comércio por profissão, valendo antes como — simples — prática de actos de
comércio.
Crê-se, assim, que o sentido útil do preceito é o seguinte: quem não tem
capacidade para a prática de actos de comércio não pode adquirir ― rectius, não adquire
(ex lege) ― um status profissional que implique essa prática. Não sendo absolutamente
inequívoca, a redacção do art. 6.º indicia que há uma incapacidade de gozo a reboque das
incapacidades de exercício: a incapacidade de exercício torna a esfera jurídica do incapaz
impermeável à entrada da qualidade de comerciante, o que se traduz na insusceptibilidade
de tal esfera suportar as correspondentes situações jurídicas activas e passivas.

IV — A conclusão atingida quanto ao sentido do art. 6.º é dobrada no art. 7.º, I,


relativamente ao menor, nos termos do qual, salvo se emancipado, o menor não pode ter
a qualidade de comerciante nem realizar actos de comércio: a incapacidade por
menoridade determina a incapacidade de gozo do menor para adquirir as situações
jurídicas inerentes à qualidade de comerciante.

71
JOÃO ESPÍRITO SANTO, Sociedades por quotas e anónimas/Vinculação: objecto social e representação
plural, Almedina, Coimbra, 2000, 167 e 168.

46
Na Guiné-Bissau, a maioridade atinge-se aos 18 anos72; atente-se, todavia, que o
art. 7.º, I, do AU/DCG, impede uma interpretação da norma do art. 127, 1, c), do CC que
faculte aos pais autorizarem ao menor o exercício profissional de uma actividade
comercial.
Na orla da conclusão de que o menor não emancipado é incapaz de gozo para a
prática de actos de comércio, não podendo, ex lege, adquirir a qualidade de comerciante,
suscita-se a questão de saber qual o tratamento a dar à hipótese de ao menor beneficiar de
deixa testamentária ou doação pura (art. 951, 2, do CC) de estabelecimento comercial73.
Na doutrina francófona, é opinião corrente a de que, sendo o menor não emancipado
beneficiado por sucessão com um estabelecimento comercial, e não podendo o mesmo,
por deficiência de gozo, receber na sua esfera jurídica os efeitos da exploração do
estabelecimento, devem os seus representantes legais vendê-lo, ceder a sua exploração ou
dá-lo de entrada em sociedade comercial na qual os sócios não tenham a qualidade de
comerciante (que, nesta tradição, correspondem às sociedades comerciais ditas de
capitais)74.

V — A emancipação constitui uma causa de antecipação dos efeitos da maioridade (art.


133 do CC); o emancipado tem, portanto, capacidade de exercício e, sendo equiparado a
maior, pode validamente praticar actos de comércio e adquirir a qualidade de comerciante
(art.7.º, I, AU/DCG)75.
Na Guiné-Bissau, a idade mínima exigida para a emancipação é de 16 anos (art.
2.º da Lei n.º 5/56, de 3 de Maio de 1976).

72
Lei n.º 5/56, de 3 de Maio de 1976, que derrogou o art. 122 do CC.
73
No direito português esta hipótese foi expressamente contemplada no art. 1889, na versão da revisão de
1977 (Actos cuja validade depende de autorização do tribunal): 1. Como representantes do filho não podem
os pais, sem autorização do tribunal: […] c) Adquirir estabelecimento comercial ou industrial ou continuar
a exploração do que o filho haja recebido por sucessão ou doação”.
74
AKÚÉTÉ PEDRO SANTOS/JEAN YADO TOÉ, OHADA - Droit Commercial Géneral, 96; MESTRE/PANCRAZI,
Droit commercial, 170.
75
O direito da OHADA desliga-se, aqui, da sua matriz francesa. Na tradição francesa, o menor, mesmo
emancipado, não podia exercer o comércio sem autorização dos detentores do poder paternal (art. 2.º do
Code de commerce de 1807); o art. 487 do Code civil, na redacção que lhe foi dada em 1964, estabelece
que o menor emancipado não pode ser comerciante (actual art. 413-8). A solução que vigora actualmente
em França para a relação entre a emancipação e a qualidade de comerciante remonta a 2010, estando a meio
caminho entre a tradicional proibição da aquisição da qualidade e a oposta solução permissiva adoptada
pela OHADA [art. L121-2 do Code commerce 2018 (reacção da Lei n.º 2010-658, de 15 de Junho): “Le
mineur émancipé peut être commerçant sur autorisation du juge des tutelles au moment de la décision
d'émancipation et du président du tribunal de grande instance s'il formule cette demande après avoir été
émancipé”].

47
VI — O Capítulo II do Livro I do AU/DCG não contém normas especialmente dirigidas
ao interdito e ao inabilitado; a situação destes é abrangida pela norma geral do art. 6.º;
são, portanto, incapazes de gozo relativamente às situações jurídicas inerentes à qualidade
de comerciante, porque são civilmente incapazes de exercício (arts. 139 e 156, ambos do
CC).

VII — Retomemos agora a norma do art. 7.º do CCom para verificar se a mesma é
compatível com as dos arts. 6.º e 7.º do AU/DCG ou se, sendo com elas incompatível, se
encontra revogada. Na primeira parte da norma do art. 7.º do CCom equipara-se a
capacidade para a prática de actos de comércio à capacidade civil para se obrigar.
Uma primeira questão que pode suscitar-se quanto a tal norma é a de saber a qual
das categorias civis de capacidade se reporta a mesma, questão que mostra uma conexão
com a da capacidade necessária à aquisição da qualidade de comerciante, mas que com
ela se não confunde.
Pode argumentar-se, a favor do entendimento de que se trata da capacidade de gozo,
que o preceito legal se não refere à capacidade civil de vinculação pessoal e livre; parece-
nos, todavia, que o legislador terá pretendido antes referir-se à capacidade de exercício.
Na verdade, se a expressão praticar actos de comércio inculca, em termos literais, isso
mesmo, e a conexão próxima com a norma do art. 8.º (capacidade do menor emancipado)
confirma-o. Acresce, também no âmbito literal, que a redacção da norma é harmónica
com a do art. 98 do Código Civil de 1867, nos termos do qual “[o]s menores são incapazes
de exercer direitos civis, e os seus actos e contratos não podem constituí-los em obrigação
jurídica, salvo nos casos expressamente exceptuados na lei”. A terminar, refira-se que
consideração da capacidade de exercício no art. 7.º constitui a única interpretação do
preceito harmónica com os seus precedentes histórico-comparativos latinos76.
O sentido da norma do art. 7.º é, pois, o da equiparação da capacidade para a prática
de actos de comércio à capacidade civil de exercício77, equivalente, portanto ao sentido
que pode retirar-se das normas dos 6.º e 7.º do AU/DCG.

76
Cf. o art. 2.º do Código Comercial francês (1807), o art. 4.º do Código Comercial espanhol de 1829, os
arts. 4.º e 5.º do Código Comercial italiano de 1865, o art. 9.º do Código Comercial italiano de 1882 e o art.
4.º do Código Comercial espanhol de 1885.
77
Sustentando que no art. 7.º do CCom alude o legislador à capacidade de exercício, cf., entre outros,
ADRIANO ANTHERO, Comentario ao Codigo Commercial Portuguez, I, 36; PINTO COELHO, Direito
Comercial Portuguez, I, 155 e ss; CUNHA GONÇALVES, Comentário ao Código Comercial Português, 1, 79-
80; BARBOSA DE MAGALHÃES, Princípios de Direito Comercial, 118-119; FERNANDO OLAVO, Direito
Comercial, I, 2..ª ed. 400-401; BRITO CORREIA, Direito Comercial, I, 190-191; COUTINHO DE ABREU, Curso

48
O art.7.º do CCom equipara a capacidade civil e comercial, de nacionais e
estrangeiros, reportando-se à prática de actos de comércio em qualquer parte destes
reinos e seus domínios, nos termos e salvas as excepções do presente Código; esta parte
nada acrescenta de preceptivo à equiparação, razão pela qual se entende que a norma foi
revogada, com novação, pelos 6.º e 7.º do AU/DCG78.

1.3.3. Casamento e qualidade de comerciante

I ― O AU/DCG não tem por objecto ― e compreensivelmente ― os efeitos civis do


casamento. Todavia, no art. 7.º/II determina-se que “[o] cônjuge do comerciante só é
comerciante se praticar os actos previstos nos artigos 3.° e 4.° do presente Ato Uniforme
a título de profissão habitual e de forma independente dos actos praticados pelo outro
cônjuge”.
A norma em questão está integrada num capítulo relativo à capacidade para o
exercício do comércio, expressão aí empregue em sentido amplo: capacidade para a
prática de actos de comércio e capacidade para adquirir a qualidade de comerciante79. Em
boa verdade, porém, a norma do art. 7.º/II é alheia à temática da capacidade jurídica; dela
pode unicamente extrair-se que a qualidade de comerciante é pessoal e liga-se à realização
profissional de actos de comércio, cujos efeitos são imputados na esfera jurídica do seu
autor; dito de outra forma: o casamento não implica a aquisição da qualidade de
comerciante como consequência da prática de actos de comércio, em termos
profissionais, pelo outro cônjuge.

de Direito Comercial, I, 79; contra, Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, I, Universidade de
Coimbra, 1973, 123-124, Reprint 95-96, MENEZES CORDEIRO, Direito Comercial, I, 187 e ss
PAIS DE VASCONCELOS, Na doutrina portuguesa, o fundamental apoio à tese de que o art. 7.º CCom se
reporta à capacidade de gozo resultou, na reforma de 1977 do CC, da nova redacção dada ao art. 1889
(supra, n. 73), mas o argumento não é, segundo cremos, decisivo, uma vez que tem que ser esclarecido se
da norma da alínea c) do n.º 1 pode extrair-se uma solução geral sobre a capacidade do menor não
emancipado para a prática de actos de comércio, ou se se tratará, antes, de uma solução excepcional,
decorrente da aquisição gratuita do estabelecimento; cremos que a interpretação correcta é a segunda, por
ser a que melhor se harmoniza com a norma do art. 7.º CCom com o sentido que o seu contexto histórico
permite fixar-lhe.
78
No que respeita a situações jurídicas plurilocalizadas, há a considerar que a capacidade civil das pessoas
singulares — e, por equiparação legal, a capacidade para a prática de actos de comércio — é regulada pela
lei pessoal, que, relativamente a nacionais de outros Estados, é, em princípio a da nacionalidade, e,
relativamente aos apátridas, a da residência habitual (arts. 25, 31, n.º 1, e 32, todos do CC, e 12 do CCom.).
79
Supra…

49
II — O originário art. 8.º do CCom tinha a seguinte redacção: “[a] mulher que praticar
qualquer acto de comércio por conta própria ou associada com outrem, nos casos em que
tal lhe é permitido, não pode reclamar contra o que dele derivar benefício algum
concedido pela lei nacional ou estrangeira às pessoas do seu sexo”.
A norma pressupunha o sistema de capacidade jurídico-privada do direito comum,
como decorria do art. 7.º, que a antecedia e, assim, a restrição da capacidade de exercício
das mulheres maiores em razão do casamento, prevista pelo Código Civil de Seabra
(1867) até ao início da vigência do Código Civil de 1966 e, depois disso, por este.
O sistema civil de um tratamento desigual do marido e da mulher em matéria de
capacidade jurídica de exercício previsto pelo Código Civil de 1966 (arts. 1674 e 1676,
2) é contrário aos princípios constitucionais guineenses de tratamento igualitários dos
cidadãos pela lei — em geral e no contexto do casamento — saídos da Constituição da
República da Guiné-Bissau de 24 de Setembro de 1973 (arts. 13.º e 16), razão pela qual
o disposto nos arts. 1674 e 1676 não pode considerar-se como abrangido na recepção
material do direito português pela República da Guiné-Bissau, realizada pela Lei n.º 1/73,
de 24 de Setembro de 1973. Por esse motivo, a norma do art. 8.º do CCom, pressupondo
a vigência no ordenamento guineense de um regime jurídico que nunca existiu na
República da Guiné-Bissau, deve ter-se por caduco.

III — Nos termos do art. 10, proémio, do CCom, “[o] pagamento das dívidas comerciais
do marido, que tiver que ser feito pela meação dele nos bens comuns pode ser exigido
antes de dissolvido o matrimónio ou de haver separação, sendo, porém, a mulher citada
para, querendo, requerer a separação judicial de bens no decêndio posterior à penhora”80.
A norma é bilateralizável em função do casamento, razão pela qual a sua
compatibilização com os referidos princípios constitucionais de 1973 e, por outro lado,
com o teor da Lei n.º 1/73, tem que ser bilateralizada, para abranger dívidas comerciais
de qualquer um dos cônjuges, seja o marido ou a mulher.
A norma do art. 10 CCom pressupõe a prévia determinação de que a
responsabilidade por uma dívida comercial é exclusiva do marido ou da mulher,
determinação que se realiza á luz do sistema civil da responsabilidade dos cônjuges pelas
dívidas contraídas por cada um deles. Esse sistema surge nos arts. 1690 a 1697 do CC.

80
Na fixação do actual alcance da norma deve ter-se em consideração que o regime jurídico da separação
judicial de pessoas e bens foi abolido pela Lei n.º 6/76, de 3 de Maio de 1976, que aprovou um novo regime
jurídico do divórcio, revogando os arts. 1773 a 1788 e 1790 a 1724, todos do CC.

50
Prevêem-se aí regras sobre a legitimidade dos cônjuges para contrair dívidas (art.
1690), sobre a responsabilização de ambos os cônjuges por certas dívidas (art. 1691) e
exclusiva de um deles por outras dívidas (art. 1692) e sobre os bens afectos à garantia do
cumprimento das primeiras (art. 1695) e das segundas (1696).
Nos termos do art. 1696, 1, “[p]elas dívidas da exclusiva responsabilidade de um
dos cônjuges respondem os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua
meação nos bens comuns; neste caso, porém, o cumprimento só é exigível depois de
dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento, ou depois de decretada a separação
judicial de pessoas e bens”. A regra da segunda parte manifesta, pois, um favor
matrimonii de contexto patrimonial, em detrimento do interesse típico de credor em
receber a prestação devida na data do vencimento; a solução legal impõe ao credor que
suporte uma dilação na percepção da prestação devida.
Não, assim, porém, se a obrigação for da responsabilidade exclusiva de um dos
cônjuges e se for comercial, caso em que a regra do proémio do art. 10 do CCom
determina que o cumprimento pode ser exigido pelo credor antes de dissolvido o
matrimónio ou de haver separação; esta regra excepciona, portanto, a do art. 1696, 1,
segunda parte, CC, evidenciando que um favor creditoris mercatorum se impõe mesmo
perante o valor civil do matrimónio.
Nos termos do art. 1691, 1, d), CC, “[s]ão da responsabilidade de ambos os
cônjuges […] [c)] [a]s dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do
comércio, salvo se vigorar entre eles o regime da separação de bens”. Por outro lado, nos
termos do art. 15 CCom, “[a]s dívidas comerciais do cônjuge comerciante presumem-se
contraídas no exercício do seu comércio”.
A presunção referida é iuris tantum (art. 350, 2, CC), sendo que, em razão do
disposto no art. 1691, 1, d), CC, será o cônjuge daquele que contraiu a dívida, e que
pretende evitar a própria responsabilização pela mesma, que tem tipicamente interesse
em ilidir a presunção.

1.4. Comerciante pessoa colectiva

I — No direito comum, gozam inequivocamente de personalidade jurídica as associações


e as fundações (art. 158, 1, do CC)81, mas em domínios privados especiais — Direito

81
No que respeita às associações, entendemos que a norma do n.º 1 do art. 158 do CC, determinando que
adquirem personalidade jurídica pelo reconhecimento, padece de inconstitucionalidade superveniente, por

51
Comercial incluído — podemos encontrar outras personalizações colectivas. No Direito
Comercial há a considerar, em particular, as sociedades comerciais e os agrupamentos de
interesse económico (arts. 98 e 872, ambos do AU/DSC-AIE)82.

1.4.1. Sociedade comercial

I — Nos termos do art. 104 do CCom, são condições essenciais para que uma sociedade
se considere comercial: 1.º Que tenha por objecto praticar um ou mais actos de
comércio; 2.º Que se constitua em harmonia com os preceitos deste código.
No art. 105, 2, do CCom determinam-se os tipos de sociedades comerciais, que
incluem: (i) a sociedade em nome colectivo; (ii) a sociedade anónima; (iii) a sociedade
em comandita.
A sociedade em comandita comporta duas espécies: comandita simples e
comandita por acções (art. 199).
No direito vigente na Guiné-Bissau à data da entrada em vigor do AU/DSC-AIE
conta-se ainda a Lei de 11 de Abril de 1901, reguladora das sociedades por quotas,
designação portuguesa do tipo societário genericamente conhecido nos restantes países
europeus como sociedade de responsabilidade limitada.

II — No contexto da OHADA, as sociedades comerciais são reguladas pelo AU/DSC-


AIE, sendo que no seu art. 4.º, que encabeça um título designado por conceito de
sociedade, pode ler-se que: “[a] sociedade comercial é constituída por duas ou mais
pessoas que acordam, por contrato, afectar a uma actividade dinheiro ou outro bem, ou a
sua indústria, com o fim de repartirem os lucros ou beneficiarem da economia que dela
possa resultar. Os sócios obrigam-se a quinhoar nas perdas segundo as condições
previstas no presente Ato Uniforme./A sociedade comercial é constituída no interesse
comum dos sócios”.
Assinale-se, ainda, a determinação do art. 5.º do AU/DSC-AIE: “[n]os casos

contrariar a norma do n.º 1 art. 55 da Constituição da República da Guiné-Bissau de 1984 (na versão
resultante da Lei Constitucional n.º 1/93, de 21 de Fevereiro (os cidadãos têm o direito de, livremente e
sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a
promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei); com a mesma perspectiva, Osvaldo
Júlio da Silva, “O artigo 158.º do código civil e as constituições da Guiné-Bissau: sobre o regime
constitucional da liberdade de associação” (artigo inédito, no prelo).
82
Cfr., entre outros, SAMORA ILÌDIO DELGADO SAMPA, Os negócios entre a sociedade e os sócios no direito
da OHADA, Almedina, Coimbra, 2014, 69 e ss.

52
previstos no presente Ato Uniforme, a sociedade comercial pode igualmente ser
constituída, por acto escrito, por uma só pessoa, denominada sócio único”.
Na verdade, o art. 4.º não apresenta uma noção de sociedade comercial, mas antes
uma descrição, assente, fundamentalmente, no conteúdo do acto constitutivo, que pode
ser um contrato ou um acto jurídico unilateral, pelo qual a(s) parte(s) se obrigam, para o
exercício de uma actividade, à realização de prestações, de dare (dinheiro ou outro bem)
ou de facere (indústria), com a finalidade económica de partilharem lucros (acréscimo
patrimonial por referência a uma situação anterior) ou beneficiarem de poupanças
proporcionadas pela referida actividade. Na descrição cabe ainda a proibição da sociedade
leonina83.

III — O carácter comercial da sociedade resulta do disposto no art. 6.º; I, do AU/DCS-


AIE: a comercialidade de uma sociedade é determinada pelo seu tipo ou pelo seu
objecto./São comerciais em função do tipo, seja qual for o seu objecto, as sociedades em
nome colectivo, as sociedades em comandita simples, as sociedades de responsabilidade
limitada e as sociedades anónimas.
O regime da sociedade comercial compreende, pois, vários tipos legais [art. 6.º, II
do AU(SC/AIE84]: (i) a sociedade em nome colectivo; (ii) a sociedade em comandita
simples; (iii) a sociedade de responsabilidade limitada; (iv) a sociedade anónima; e, (v) a
sociedade por acções simplificada. Em relação ao direito antes contido no CCom assinala-
se, pois, por um lado, o desaparecimento da sociedade em comandita por acções (art. 199
do CCom), que aí constituía um subtipo da sociedade anónima, que emergiu no século
XIX nas legislações europeias como um híbrido entre a sociedade anónima e a velha
sociedade em comandita85, e, por outro lado, o surgimento, já na versão de 2014 do

83
Diz-se leonina a sociedade em que uns sócios apenas participem nos lucros e outros só arquem com as
perdas; a denominação é originária da fábula, atribuída a Esopo, A partilha do leão, na qual um grupo de
animais (um leão, uma raposa, um chacal e um lobo) combina uma caçada e a posterior partilha da caça,
mas em que o leão, o mais forte, no final reclama para si todo o produto do esforço conjunto. Na tradição
latina, a sociedade leonina é proibida, sendo traço dessa proibição a regra da última parte do art. 4.º do
AU/DSC-GIE. No âmbito civil veja-se o art. 994 do CC.
84 Art. 6.º, II do AU(SC/GIE (versão de 2014): o carácter comercial de uma sociedade é determinado pelo

seu tipo ou pelo seu objecto./São comerciais em função do tipo, seja qual for o seu objecto, as sociedades
em nome colectivo, as sociedades em comandita simples, as sociedades de responsabilidade limitada, as
sociedades anónimas e as sociedades por acções simplificadas.
85
O que, aliás, deveria ter feito desaparecer do AU/DSC-AIE o adjectivo simples na sobrevivente
comandita, elevada de subtipo a tipo autónomo.

53
AU/DSC-AIE, da sociedade por acções simplificada, de matriz francesa e criada em
199486.
Deve aqui assinalar-se que o carácter comercial de uma sociedade ― que a
distingue, portanto, de uma sociedade civil (art. 980 do CC) ― decorre ou do tipo ou do
objecto. Assim é que, adoptado que seja na constituição da sociedade um dos tipos
comerciais está assegurado o seu carácter comercial seja qual for a natureza do objecto
(portanto, ainda que se trate de actividade civil); mas, num outro ângulo, se o objecto da
sociedade consistir numa actividade comercial, tem a mesma carácter comercial ainda
que os sócios a não tenham constituído segundo um desses tipos87.

IV — A solução do AU/DSC-AIE quanto à sociedade que é comercial exclusivamente


pelo objecto relaciona-se com a admissão da sociedade em participação (arts. 856) e da
sociedade de facto (arts. 864 a 868).
Este esquema normativo só se compreende pela consideração do plano da
subjectividade, sendo que esse AU estabelece uma dualidade entre sociedades comerciais
com e sem personalidade jurídica (arts. 97 e 98). Via de regra, a constituição de uma
sociedade deve ser objecto de registo junto do serviço estadual competente (art. 97); o
registo é constitutivo da personalidade jurídica.
A uma tal imposição faz excepção, formalmente, a sociedade em participação,
que o AU/DSC-AIE admite como sociedade existente entre várias pessoas, que acordam
entre si que a sociedade não será registada, o que, portanto, tem o efeito negativo,
expresso no art. 97 do AU/DSC-GIE, da não aquisição da personalidade jurídica.
No âmbito da sociedade de facto inscreve-se uma previsão de sociedade aparente
(art. 864) e uma outra de sociedade com processo constitutivo incompleto (art. 865).

V ― As sociedades comerciais dotadas de personalidade jurídica são, pois, comerciantes


(art. 1.º do AU/DCG e art. 13, 2.º, do CCom), o mesmo não se podendo sustentar quanto
às que, sendo apenas comerciais pelo objecto, não são dotadas de personalidade jurídica.

86
Cf., entre outros, DOMINIQUE VIDAL, Droit des sociétés, 3.ª ed. LGDJ, 2001, 529 e 530.
87
Esta construção, de matriz francesa, é formalmente diversa da portuguesa que resultava do CCom, nos
termos da qual poderia adoptar-se para uma sociedade de objecto civil um tipo comercial (art. 106 do
CCom: sociedade civil sob forma comercial), à qual seria aplicável o regime das sociedades comerciais,
mas que não podia ser qualificada como comerciante (art. 13, 2.º, do CCom), sendo tratada como irregular
a sociedade de objecto comercial não constituída segundo um dos tipos comerciais (art. 107 do CCom).

54
1.4.1. Agrupamento de Interesse Económico

I — O agrupamento de interesse económico foi introduzido, como novo tipo


organizativo-empresarial, pelo legislador francês através da Ordonnance 67-821, de 23
de Setembro de 1967. Daí irradiou para outros ordenamentos, designadamente o
português (Agrupamento Complementar de Empresas)88 e o da União Europeia
(Agrupamento Europeu de Interesse Económico)89.
O AU/DSC-AIE define o AIE no art. 869: agrupamento de interesse económico é o
que tem por exclusiva finalidade reunir, por tempo determinado, todos os meios
necessários a facilitar ou desenvolver a actividade económica dos seus membros ou
melhorar ou aumentar os resultados dessa actividade./A actividade do agrupamento deve
ser essencialmente conexa à actividade económica dos seus membros, devendo ter um
carácter auxiliar em relação a ela.
Resulta da noção legal que o objecto mediato da AIE é o de (i) facilitar ou
desenvolver a actividade económica dos seus membros, ou (ii) melhorar ou aumentar os
resultados dessa actividade. Mais do que isso, a actividade do AIE não é desenvolvida a
título principal, mas em termos de acessoriedade à actividade económica dos respectivos
membros, precisando o art. 870, I, que o agrupamento de interesse económico não pode
autonomamente dar lugar à realização e distribuição de lucros.
Mais adiante, no art. 871, determina-se que o agrupamento de interesse
económico pode ser constituído por duas ou várias pessoas, singulares ou colectivas,
incluindo profissionais liberais sujeitos a um estatuto legal ou regulamentar específico
ou cujo título seja protegido. À luz da versão originária do art. 3.º do AU/DCG parece
inquestionável que o legislador pretendeu incluir as actividades civis no âmbito do
objecto imediato do GIE, que, assim, poderá ser constituído para a prática de
actos/actividades civis ou de actos/actividades comerciais e, consoante a natureza do seu
objecto, qualificado como civil ou comercial90; já considerando o art. 3.º do AU/DCG na
sua redacção actual, é questionável que os serviços prestados por profissionais não
configurem actos de comércio, mas não põe em causa a conclusão alcançada quanto

88
Criado pela Lei n.º 4/73, de 25 de Agosto.
89
Cf. o Regulamento (CEE) n.º 2137/85 do Conselho, de 25 de Julho de 1985, relativo à instituição de um
Agrupamento Europeu de Interesse Económico (AEIE)
90
A doutrina francófona parece unânime quanto a essa conclusão, à luz da regulação francesa (Code de
commerce 2018, arts. L. 251 e ss.); para uma pronúncia nesse sentido, cf., por exemplo, DOMINIQUE VIDAL,
Droit des sociétés, 3.ª ed. LGDJ, 2001, 84.

55
àquilo que foi visado pelo legislador: abranger no âmbito do AIE actividade civis e
comerciais.

II — O AIE goza de personalidade jurídica, sendo a matrícula no Registo do Comércio e


do Crédito Mobiliário dela constitutivo (art. 872 do AU/DSC-GIE). Esse dado, conjugado
com a possibilidade de o seu objecto consistir em actos de comércio, permite a
qualificação do AIE como comerciante, nos termos do art. 2.º do AU/DCG, interpretando
amplamente a referência aí contida à profissão como abrangente, igualmente, do objecto
das pessoas colectivas.
A relevância dessa qualificação é, todavia, limitada. Na verdade, o efeito directo
desta qualificação é a sujeição do AIE comercial ao estatuto passivo do comerciante (arts.
13 e ss. do AU/DCG), designadamente às obrigações de registo e de manutenção de
escrituração, sendo que tais obrigações resultam, para o AIE, em parte, de normas
autónomas91.

1.4.2. Pessoas colectivas de direito privado comum: associações e fundações

As associações (em sentido restrito) de direito privado não podem ter por fim a
obtenção e partilha de lucro entre os associados, sendo que as fundações se destinam à
prossecução de fins de interesse social (art. 157 do CC). Temos, assim, que,
tipologicamente, nem as associações stricto sensu nem as fundações podem constituir-se
exclusivamente para a prática de actos de comércio; é que, não obstante a finalidade
lucrativa não entrar na tipologia do acto de comércio, nem no AU/DCG nem no CCom
— e não obstante essa finalidade lucrativa corresponder a um tipo social —, ter como
fim exclusivo a prática de actos de comércio implica, no caso das associações, que possam
existir lucros e que os mesmos não possam reverter em benefícios dos associados; no caso
das fundações, não se vê em qua medida um objecto que consista exclusivamente na
prática de actos de comércio possa reverter em finalidade de interesse social.
A isto acresce que o art. 14 do CCom proíbe a profissão do comércio às associações
ou corporações que não tenham por objecto interesses materiais, o que, pelo menos em
parte, coincide com a conclusão antes atingida quanto às associações stricto sensu.

91
Veja-se, a esse título, o que dispõe o art. 786 do AU/DSC-AIE sobre os requisitos de publicidade do
contrato constitutivo do AIE e das suas alterações.

56
Isto dito, tem, todavia, de admitir-se a capacidade de gozo para a assunção de posições
jurídicas resultantes da prática de actos de comércio por associações e fundações, na
medida em que tal se mostre necessário ou conveniente à realização dos seus fins (art.
160, 1, do CC).

1.4.3. Sociedade cooperativa

No âmbito da OHADA foi aprovado, em 15 de Dezembro de 2010, um Acto


Uniforme Relativo às Sociedades Cooperativas (AU/SC), tendo o mesmo entrado em
vigor nos Estados Partes no vigésimo quarto dia a contar da data da publicação no Jornal
Oficial da OHADA, o que ocorreu em 15 de Fevereiro de 201192.
À data do início de vigência do AU/SC, o regime jurídico aplicável às sociedades
cooperativas continha-se nos arts. 207 a 224 do CCom.
Nos termos do art. 4.º, I, do AU/SC, a sociedade cooperativa é um agrupamento
autónomo de pessoas, voluntariamente associadas para a satisfação das suas aspirações
e necessidades económicas, sociais e culturais comuns, por meio de uma empresa cuja
propriedade e gestão são colectivas e nas quais o poder é exercido democraticamente e
segundo princípios cooperativos.
As sociedades cooperativas são dotadas de personalidade jurídica, nos termos do
art. 78, I, do AU/DS: qualquer sociedade cooperativa goza de personalidade jurídica a
partir da sua matrícula no Registo das Sociedades Cooperativas.
Para a consideração da eventual qualificação das cooperativas como comerciantes
é importante ter em conta o disposto, por um lado, no art. 5.º do AU/SC, nos termos do
qual, as sociedades cooperativas exercem a sua actividade em todos os domínios da
actividade humana, e, por outro lado, no art. 20, I, segundo o qual qualquer sociedade
cooperativa tem um objecto, constituído pela actividade que realiza e que deve ser
determinada e descrita nos seus estatutos.
O objecto da sociedade cooperativa pode consistir numa actividade comercial, isto
é, na prática de actos de comércio, o que, nos termos do art. 21 AU/SC, determina o seu
carácter comercial.

92
As traduções portuguesas de normas do AU/SC, que de seguida se utilizam, são nossas.

57
Sendo o objecto da sociedade cooperativa comercial (art. 3.º AU/DCG), deve a
mesma ser qualificada como comerciante (art. 2.º AU/DCG).

1.5. Incompatibilidades e inibições para o exercício do comércio

1.5.1. Aspectos gerais

Numa divisão sistemática relativa à capacidade para o exercício do comércio


(Capítulo II do Livro I), o AU/DCG regula as incompatibilidades e as interdições para
o exercício do comércio.
As incompatibilidades para o exercício do comércio constituem objecto dos arts.
8.º e 9.º; as interdições, objecto dos arts. 10 a 12.

1.5.2. Incompatibilidades

I — Nos termos do art. 8.º, I, do AU/DCG, as pessoas que estiverem sujeitas a um estatuto
especial que determine uma incompatibilidade, não podem exercer uma actividade
comercial.
Manifestamente, está em causa na norma a aquisição da qualidade de comerciante,
que está excluída por regra relativa a um estatuto especial. Uma tal exclusão não decorre,
assim, de um defeito de capacidade — pense-se no caso de uma pessoa maior e capaz de
exercício (art. 67 do CC) —, mas antes de uma proibição normativa. Com o
estabelecimento de incompatibilidades para o exercício do comércio visa-se evitar-se a
verificação de conflitos de interesses na mesma esfera, uns decorrentes do exercício da
actividade sujeita a estatuto particular e, os outros, do exercício da actividade comercial.
As incompatibilidades para o exercício do comércio devem resultar de norma
expressa (art. 8.º II), cabendo àquele que invocar uma incompatibilidade fazer a sua
demonstração (art.º 8.º, III).
A lei não se limita, porém, a dobrar normas que estabeleçam incompatibilidades para
o exercício do comércio (art. 8.º, I). No art. 9.º, é o próprio AU/DCG a estabelecer
incompatibilidades com as seguintes funções ou profissões: (i) funcionários e pessoal das
pessoas colectivas públicas e das empresas com participação pública; (ii) funcionários de

58
ministérios e auxiliares da justiça: advogado, solicitador, encarregado de venda em hasta
pública, corrector de bolsa, notário, escrivão, administrador e liquidatário judicial; (iii)
técnico superior de contas inscrito, contabilista inscrito, revisor de contas, consultor
jurídico, corrector marítimo; (iv) em geral todas as profissões cujo exercício seja objecto
de uma regulamentação que proíba a cumulação dessa actividade com o exercício de uma
profissão comercial.
A última determinação parece desnecessária, uma vez que é mera dobragem de
normas, pressupostas, do direito interno dos Estados Partes. As incompatibilidades
concretamente decretadas impõem-se ao direito interno dos Estados Partes, sendo
discutível o rigorismo da solução em relação a algumas profissões, como as de advogado,
solicitador ou contabilista inscrito.

II — Estando em causa a realização profissional de actos de comércio pelas pessoas


atingidas por determinações normativas de incompatibilidade, coloca-se o problema do
regime dos actos praticados com infracção das normas proibitivas. Determina-se no art.
8.º, que (IV) os actos praticados por uma pessoa em situação de incompatibilidade são
eficazes em relação a terceiros de boa fé, bem como que (V) os terceiros de boa fé podem,
se lhes aprouver, prevalecer-se dos actos praticados por uma pessoa em situação de
incompatibilidade, mas esta não se pode prevalecer dos mesmos.
A boa fé tem aqui um sentido subjectivo: está de boa fé o terceiro que desconhece
sem culpa a situação de incompatibilidade. O terceiro de boa fé pode prevalecer-se do
acto, o que significa que pode aproveitar das vantagens que tal acto lhe ofereça; a pessoa
em situação de incompatibilidade não aproveita, contra terceiros de boa fé, dessas
eventuais vantagens.

III — A norma do art. 14, 2.º, do CCom determina que é proibida a profissão do comércio
aos que por lei ou disposições especiais não possam comerciar. A regra do CCom é
convergente com a do art. 8.º, I, do AU/DCG, razão pela qual deve considerar-se
revogada, com novação do título.
Já no que respeita à norma do art. 17 do CCom93, não nos parece que exista

93
CCom, art. 17: O Estado, o distrito, o município e a paróquia não podem ser comerciantes, mas podem,
nos limites das suas atribuições, praticar actos de comércio, e quanto a estes ficam sujeitos às disposições
deste Código. § único. A mesma disposição é aplicada às misericórdias, asilos, mais institutos de
beneficência e caridade.

59
contradição com o AU/DCG, razão pela qual a mesma se deve considerar vigente.

1.5.3. Impedimentos

I — Uma pessoa capaz de exercício pode não se encontrar em situação de


incompatibilidade para o exercício do comércio, mas, ainda assim, não poder exercê-lo
em razão de um impedimento.
Nos termos do art. 10.º:
Não podem exercer a actividade comercial, directamente nem por interposta pessoa,
as pessoas que tenham sido sujeitas:
– a uma inibição geral definitiva ou temporária proferida por uma jurisdição de um
dos Estados Partes, quer esta inibição tenha sido proferida como pena principal, quer
como pena acessória;
– a uma inibição proferida por uma jurisdição profissional; neste caso, a inibição
só é aplicada à actividade comercial aí considerada;
– a uma condenação definitiva com pena privativa de liberdade, por um crime de
direito comum, ou a uma pena não suspensa de, pelo menos, três meses de prisão, por
um crime contra o património, ou ainda a uma infracção em matéria económica ou
financeira.
Ao contrário das incompatibilidades, que resultam de determinação normativa, as
inibições resultam de determinações jurisdicionais dirigidas a pessoa determinada,
podendo ser gerais ou especiais (abrangendo, neste caso, apenas certos sectores de
comércio), temporárias ou definitivas.
Tratando-se de inibição definitiva ou temporária de duração superior a cinco anos,
pode ser requerido o seu levantamento, cinco anos após a mesma se ter tornado definitiva
(art. 11, I e II). O inibido pode ser reabilitado (art. 11, III).

II — Também em relação à inibição se coloca o problema do regime dos actos praticados


com infracção das determinações de inibição. Dispõe-se no art. 12 que, sem prejuízo de
outras sanções, os actos praticados por um inibido são inoponíveis a terceiros de boa fé,
o que está em linha com a norma do art. 8.º, IV.
Diversamente do que se dispõe no art. 8, no art. 12, II, estabelece-se uma
presunção juris et de jure quanto à boa fé do terceiro; no diferente tratamento da mesma

60
matéria parece avultar a ideia de que, sendo a inibição o resultado de uma determinação
concreta, existirá uma forte probabilidade de que os terceiros a desconheçam.
À semelhança, porém, da pessoa em situação de incompatibilidade, também o
inibido não pode aproveitar as vantagens do exercício do comércio contra terceiros (art.
12, III).

1.6. Situações jurídicas associadas à qualidade de comerciante

No CCom, a qualidade de comerciante constitui causa da sujeição a um conjunto


de deveres particulares, que se enunciam no art. 18: (i) adopção de uma firma; (ii) manter
escrituração mercantil; (iii) fazer inscrever no registo comercial os actos a ele sujeitos;
(iv) dar balanço e prestar contas; essas obrigações do comerciante compõem uma parte
de um conjunto que toma a designação doutrinal de estatuto passivo. Na versão originária
do CCom estas obrigações encontravam-se reguladas nos preceitos subsequentes (firma:
arts. 19-28; escrituração: arts. 29-44; registo: arts. 45-61; balanço e prestação de contas:
arts. 62 e 63).
No AU/DCG o comerciante está, nessa qualidade, sujeito a um conjunto de
adstrições. Com efeito, prevê-se, no art. 13 que qualquer comerciante, pessoa singular
ou colectiva, deve manter todos os livros de comércio, nos termos das disposições do Ato
Uniforme Relativo à Organização e à Harmonização das Contabilidades das Empresas.
Deve, além disso, respeitar. segundo os casos, as disposições previstas pelo acto
Uniforme Relativo à Organização e à Harmonização das Contabilidades das Empresas
e ao Ato Uniforme Relativo ao Direito das Sociedades Comerciais e do Agrupamento de
Interesse Económico.
O art. 13 AU/DCG tem em vista, assim, duas realidades: a manutenção de
escrituração (I) e o cumprimento de disposições legais cujo objecto não é concretamente
identificado, que se insere no AU/OHCE (II), mas que pode assumir-se aqui,
preliminarmente, e atento o objecto do próprio AU em causa, que se trata de obrigações
relativas a organização contabilística.
Relativamente aos comerciantes que sejam pessoas colectivas, o art. 15 do AU/DCG
determina que devem estabelecer todos os anos os seus documentos de prestação de
contas nos termos das disposições do Ato Uniforme Relativo à Organização e à
Harmonização das Contabilidades das Empresas e do Ato Uniforme Relativo ao Direito

61
das Sociedades Comerciais e do Agrupamento de Interesse Económico.
O AU/OHCE foi aprovado em 24 de marco de 200094.

1.6.1. A matrícula no Registo do Comércio e do Crédito Mobiliário

I — Determinava-se no art. 25 da versão originária do AU/DCG que as pessoas


singulares que tenham a qualidade de comerciante nos termos do presente Acto
Uniforme, devem [...] requerer a sua matrícula no Registo.
O preceito que, no AU/DCG de segunda geração, corresponde ao citado art. 25, é
o art. 44, no qual pode ler-se que qualquer pessoa singular cuja matrícula seja
determinada por lei deve, no primeiro mês de exercício da sua actividade, requerer à
secretaria do tribunal competente ou ao órgão competente no Estado Parte em cujo
âmbito territorial de competência desenvolve a sua actividade a sua matrícula no Registo
do Comércio e do Crédito Mobiliário95.
Na vigente redacção do AU/DCG a lei não é, portanto, tão clara quanto antes o
foi na determinação de que os comerciantes pessoas singulares estão obrigados a registo.
Não obstante isso, o vigente art 35, 1.º — determinando que o Registo do Comércio e do
Crédito Mobiliário tem por objecto receber os pedidos de matrícula das pessoas singulares
que tenham a qualidade de comerciante — não deixa margem para dúvidas sobre a
continuidade da solução claramente adoptada no art. 25 da versão originária do AU/DCG.
No que respeita às pessoas colectivas, determinava o art. 27 da versão originária
do AU/DCG que as sociedades e as demais pessoas colectivas previstas pelo Ato
Uniforme relativo ao Direito das Sociedades Comerciais e dos Agrupamentos de
Interesse Económico devem requerer [...] a matrícula no Registo do Comércio e do
Crédito Mobiliário.
O art. 46 do vigente AU/DCG determina que as pessoas colectivas sujeitas
legalmente a matrícula devem requerê-la no prazo de um mês a contar da sua
constituição, junto da secretaria do tribunal competente ou do órgão competente do
Estado Parte em cujo âmbito territorial de competência está situada a sua sede social ou
o seu estabelecimento principal96.
A redacção do vigente art. 46 espelha a maior complexidade da regra do art. 35, 1.º,

94
Publicado no JO OHADA n.º 10, de 20 de Novembro de 2000.
95
Trad. nossa.
96
Trad. nossa.

62
quando comparada com a sua antecedente no AU/DCG1997 (art. 19). Não vá sem
assinalar-se, porém, que as cooperativas são dotadas de personalidade jurídica e são de
qualificar como comerciantes quanto tenham objecto comercial97, e nem por isso estão
sujeitas a matrícula no Registo do Comércio e do Crédito Mobiliário, tendo um regime
registral próprio (Registo das Cooperativas; art. 74 AU/SC).

II — O art. 18, 3.º, do CCom. determina que os comerciantes são especialmente


obrigados a fazer inscrever no registo comercial os factos a ele sujeitos.
Originariamente, a matéria do registo estava contemplada nos arts. 45 a 61 (Livro
I, Título V: Do Registo). O regime do registo comercial constante do CCom foi revogado
pelo DL n.º 42644/1959, de 14 de Novembro (Registo Comercial), que vigorou na Guiné-
Bissau a partir de meados de 196698. O sistema registral DL n.º 42644/1959 é globalmente
incompatível com o do AU/DCG relativo ao Registo Comercial e do Crédito Mobiliário
(Livro II), razão pelo qual aquele diploma tem de considerar-se revogado pela
superveniência do AU/DCG.

1.6.1.1. Efeitos da matrícula

I — Nos termos do art. 59, I, as pessoas matriculadas no Registo do Comércio e do Crédito


Mobiliário presumem-se comerciantes; a presunção é juris tantum, na medida em que
admite prova em contrário (art. 350, 2, CC)99.
A regra do art. 59, I, é, todavia, negativamente delimitada pela do segundo
parágrafo do mesmo artigo: a presunção não tem aplicação em relação a pessoas
singulares não comerciantes cuja matrícula no Registo do Comércio e do Crédito
Mobiliário resulte de disposição legal, bem como a pessoas colectivas que não são
consideradas comerciantes pelo presente Ato Uniforme, pelo Ato Uniforme Relativo ao
Direito das Sociedades Comerciais e do Agrupamento de Interesse Económico ou de uma
disposição legal particular. No âmbito da exclusão relativa a pessoas singulares caberão,

97
Supra, neste Capítulo, 1.4.3.
98
O diploma foi abrangido na recepção direito vigente no território da Guiné à data da declaração de
independência, operada pelo Lei n.º 1/73 (supra, Capítulo II, 1), uma vez que havia, efectivamente,
vigorado, por determinação da Portaria n.º 22139, de 20 de Julho de 1966 (Portugal). Também assim
sucedeu com o Regulamento do Registo Comercial, aprovado pelo Decreto n.º 42645, de 14 de Novembro
de 1959.
99
A regra tem um antecedente comparativo no art. 64 do Decreto (francês) n.º 84-406, de 30 de Maio de
1984, que corresponde, actualmente, ao art. L 123-7 do Code de commerce 2018.

63
a título de exemplo, as pessoas que exercem uma actividade profissional (não comercial,
bem entendido), que a lei submeta a matrícula no Registo do Comércio e do Crédito
Mobiliário, referidas no art. 35, 1.º, sétimo travessão. No que respeita às pessoas
colectivas, o âmbito da exclusão abrange os grupos dotados de personalidade jurídica
que a lei submeta a matrícula no dito registo, referidas no art. 35, 1.º, sexto travessão;
relativamente às sociedades cooperativas, não tem sentido considerar a exclusão, pelo
motivo de que, não estando as mesmas sujeitas a matrícula no Registo do Comércio e do
Crédito Mobiliário, não pode verificar-se a própria presunção da qualidade de
comerciante.

II — As pessoas sujeitas a matrícula no Registo do Comércio e do Crédito Mobiliário e


efectivamente matriculadas devem indicar nas facturas, notas de encomenda, tabelas de
preços, documentos comerciais e em toda a sua correspondência, o número e o local da
respectiva matrícula (art. 59, III).

1.6.1.2. Incumprimento do dever de requerer a matrícula

I — Incumpre o dever de requerer matrícula no Registo do Comércio e do Crédito


Mobiliário a pessoa que, estando à mesma sujeita por determinação dos actos uniformes
da OHADA ou de outras disposições legais, a não requer nos prazos legalmente fixados
(arts. 44, I, e 46, I, designadamente).
A omissão da matrícula produz efeitos diversos consoante a pessoa à mesma
obrigada seja singular ou colectiva.

II —Tratando-se de pessoa singular, caso o dever de matrícula resulte da qualidade de


comerciante — o que nem sempre será o caso, como pode verificar-se pela leitura do art.
35, 1.º, sétimo travessão —, determina o art. 60, I, que não pode a mesma prevalecer-se
da qualidade de comerciante antes de efectuada a matrícula; não pode prevalecer-se tem
o óbvio sentido de não poderem, em tal caso, ser invocados pelo comerciante não
matriculado regimes jurídicos que lhe confiram, qua tale, posições jurídicas favoráveis,
de que pode citar-se o exemplo da regra probatória contida no art. 5.º, II.

III — Tratando-se de pessoa colectiva com a qualidade legal de comerciante, a indevida


64
omissão do requerimento de matrícula no Registo do Comércio e do Crédito Mobiliário
tem consequência idêntica à já verificada para o comerciante pessoa singular: não pode
prevalecer-se da qualidade de comerciante até que seja efectuada a matrícula (art. 60, I).
Todavia, determina o art. 60, II, que a pessoa colectiva sujeita a matrícula no
Registo do Comércio e do Crédito Mobiliário que a não requerer no prazo legal não pode
prevalecer-se da personalidade jurídica antes de efectuada a matrícula. Literalmente, a
previsão da regra abrange todas as pessoas colectivas sujeitas a matrícula no Registo do
Comércio e do Crédito Mobiliário, tenham, ou não, a qualidade de comerciante; crê-se,
todavia, que o legislador se expressou em termos mais amplos do foi sua pretensão,
devendo, assim, o resultado interpretativo da norma ter-se como de interpretação
restritiva. É que, relativamente às sociedades comerciais e aos agrupamentos de interesse
económico, a matrícula no Registo do Comércio e do Crédito Mobiliário é, per se,
constitutiva da personalidade jurídica, pelo que a hipótese de não se poderem dela
prevalecer antes da matrícula não tem sentido.
Em boa verdade, a exclusão do âmbito da previsão do art. 60, II, das sociedades
comerciais e dos agrupamentos de interesse económico vale por considerar aí incluídas
as pessoas colectivas que, não sendo legalmente qualificadas como comerciantes, estão
sujeitas a matrícula no Registo do Comércio e do Crédito Mobiliário (exemplos escassos,
podendo mencionar-se o do art. 35, 1.º, oitavo travessão: estabelecimentos públicos com
actividade económica que gozem de autonomia jurídica e financeira). Fora do âmbito da
previsão do art. 60, II, estão as sociedades cooperativas que sejam comerciantes, uma vez
que não estão sujeitas a matrícula no Registo do Comércio e do Crédito Mobiliário, mas
a um sistema de registo próprio, o Registo das Sociedades Cooperativas (Registo das
Cooperativas; art. 74 AU/SC), que é, aliás, constitutivo da personalidade jurídica100.

IV — Do texto do art. 60, III, em tradução literal para português, resulta que […] ela [isto
é, a pessoa singular ou colectiva, na sequência das regras do art. 60, I e II] não pode
invocar a omissão da sua matrícula no Registo do Comércio e do Crédito Mobiliário
para se subtrair às responsabilidades e obrigações inerentes a essa qualidade. Ora, nos
dois parágrafos antecedentes referem-se (art. 60, I) a qualidade de comerciante e (art. 60,
II) a personalidade jurídica como atributo. Não obstante a ambiguidade da redacção
original em francês do art. 60, III, é manifesto que o sentido atribuído a essa qualidade é

100
Supra, neste Capítulo, 1.4.3.

65
o de qualidade de comerciante, como resulta evidente da comparação da regra com o seu
antecedente normativo (art. 39, II, AU/DCG1997).
Fica, portanto, claro, que o incumprimento do dever de requerer matrícula no
Registo do Comércio e do Crédito Mobiliário, no que respeita às pessoas com a qualidade,
legalmente atribuída, de comerciante, não constitui causa legal de subtracção ao estatuto
passivo que tal qualidade implica, podendo dar-se como exemplo, no contexto do
AU/DCG, a obrigação de manter escrituração comercial (art. 13)101, que se imporá, ainda
que o comerciante não tenha requerido a sua matrícula.

V — Numa apreciação conclusiva sobre o regime do incumprimento do dever de requerer


matrícula no Registo do Comércio e do Crédito Mobiliário pode, portanto, dizer-se,
relativamente às pessoas com a qualidade, legalmente atribuída, de comerciante, que esse
incumprimento, por um lado, não permite aproveitar regimes legais de vantagem para o
comerciante, e, por outro lado, não o isenta dos regimes legais que fixam o estatuto
passivo do comerciante. Esta solução bivalente para o incumprimento do dever de
requerer matrícula junto do sistema de publicidade registral da qualidade de comerciante
é, de há muito, sustentada pela doutrina francesa e viria a obter consagração expressa no
art. 65, I, do Decreto (francês) n.º 84-406, de 30 de Maio de 1984 e, daí, passaria ao Code
de commerce 2000 (art. L123-8).

1.6.2. Escrituração comercial e organização contabilística

I — A aquisição da qualidade de comerciante implica a obrigação de manter livros de


comércio — isto é, registos da actividade, designados, na tradição lusófona, escrituração
mercantil — nos termos determinados pelo Ato Uniforme Relativo à Organização e à
Harmonização das Contabilidades das Empresas (art. 13, I), que, em substância, adopta
um sistema contabilístico para a OHADA102.

101
Infra, 1.6.2.
102
AU/OHCE, art. 1.º: qualquer empresa abrangida pelo artigo 2.° deve dispor de uma contabilidade
destinada a prestar informação externa, bem como para o seu próprio uso.
Para este efeito:
– Classifica, identifica e regista na sua contabilidade todas as operações, implicando movimentos de valor
que são negociados com terceiros ou constatados ou efectuados no quadro da sua gestão interna;
– Fornece, após tratamento adequado destas operações, a prestação de contas a que está legalmente
sujeita ou devido aos seus estatutos, assim como as informações necessárias às necessidades dos diversos
utilizadores; art. 2.º: estão obrigadas a organizar uma contabilidade, dita contabilidade geral, as empresas

66
II — Na versão originária do AU/DCG elencavam-se no art. 13 os livros de escrituração
que o comerciante era obrigado a manter: o Diário, o Razão e o Livro de Inventário.
Assim sendo, o art. 31 do CCom deve ter-se, desde o início de vigência do AU/DCG,
como derrogado quanto ao livro copiador, que deixou de ser obrigatório.
Para além disso, o originário art. 13 determinava que os livros obrigatórios
deveriam ser mantidos de acordo com o determinado no Ato Uniforme Relativo à
Organização e à Harmonização das Contabilidades das Empresas. Tratava-se, portanto,
de uma remissão — no essencial — para o disposto nos arts. 14 a 24 do referido AU
(Título I, Cap. II — Organização Contabilística), que, no seu complexo conjunto, não
poderia deixar de considerar-se como incompatível com as normas dos arts. 32 a 36, 38,
e 40 (na parte relativa aos livros), todos do CCom., ainda que em relação a algumas delas
se possa admitir terem sido objecto de novação do título. Tais normas devem, portanto,
considerar-se revogadas (derrogada, a do art. 40) pelo AU/DCG, na sua primeira versão.
Na versão de 2011 do AU/DCG toda a matéria da escrituração mercantil —
mesmo a própria determinação dos livros obrigatórios — foi remetida para o AU/OHCE
(art. 13, I), em termos que em nada alteram a conclusão anterior sobre as normas
revogadas do CCom.

III — O preceito remetido pelo art. 13 do AU/DCG é o art. 19 do AU/OHCE, que tem o
seguinte teor103: os livros contabilísticos e os outros suportes, cuja existência é
obrigatória, são:
– O Diário, no qual são inscritos os movimentos do exercício registados em
contabilidade, nas condições indicadas no número 4 do artigo 17.°;
– O Razão, constituído pelo conjunto das contas da empresa, onde são registados ou
inscritos simultaneamente, no Diário, conta por conta, os diferentes movimentos do
exercício;
– O Balanço geral das contas, situação recapitulativa, que mostra no fecho do exercício,
relativamente a cada conta, o saldo devedor ou o saldo credor no início do exercício, o

submetidas às regras do Direito Comercial, as empresas públicas, as empresas parapúblicas, as empresas


de economia mista, as cooperativas e, de um modo geral, as entidades produtoras de bens e serviços,
comercializáveis ou não, na medida em que exercem, com fim lucrativo ou não, actividades económicas a
título principal ou acessório, com carácter de continuidade, à excepção das que se regem pelas normas da
contabilidade pública.
103
Nas transcrições ulteriores deste AU utiliza-se a tradução incluída em ……………….com coordenação
de M. Januário da Costa Gomes e de Rui Ataíde.

67
acumulado desde a abertura do exercício dos movimentos devedores e o acumulado dos
movimentos credores, o saldo devedor ou o saldo credor, na data considerada;
– O Inventário, no qual estão transcritos o Balanço, a Demonstração de Resultados de
cada exercício, assim como o resumo da operação de inventário.
A elaboração do Diário e do Razão pode ser facilitada por diários e razões auxiliares ou
suportes que os substituam, em função da importância e das necessidades da empresa.
Nesse caso, os totais desses suportes são, periodicamente e pelo menos uma vez por mês,
respectivamente centralizados no Diário e no Razão.
É de assinalar que o âmbito da remissão do art. 13, I, do AU/DCG abrange não
apenas os livros obrigatórios, mas também o conteúdo dos mesmos.

IV — Também o AU/DSC-AIE é remetido pelo art. 13, II, o que se compreende,


particularmente, em relação às pessoas colectivas que sejam sociedades comerciais — e,
por isso, comerciantes —, uma vez que nesse AU se estabelece a obrigação de registos
próprios das deliberações dos sócios (actas: art. 134 AU/DSC-AIE).

V — Os livros de escrituração comercial mencionam obrigatoriamente o número de


matrícula do comerciante (art. 14).

VI — As pessoas colectivas que sejam comerciantes (sociedades comerciais,


agrupamentos de interesse económico e cooperativas com objecto comercial) estão,
ainda, obrigadas à aprovação periódica (de exercício económico104) de documentos de
demonstração financeira (estados financeiros de síntese), nos termos previstos pelo
AU/OHCE (art. 15). O enunciado dos documentos de demonstração financeira consta do
art. 13 do AU/OHCE: os resultados financeiros anuais compreendem o Balanço, a
Demonstração de Resultados, o Mapa da Origem e da Aplicação de Fundos, assim como
o Anexo ao Balanço e à Demonstração de Resultados.

104
AU/OHCE, art. 13: os resultados financeiros de síntese agrupam as informações contabilísticas, pelo
menos uma vez por ano, num período de doze meses, designado por exercício; são os denominados
resultados financeiros anuais.
O exercício coincide com o ano civil.
A duração do exercício é, excepcionalmente, inferior a doze meses, caso o primeiro exercício seja iniciado
no decurso do primeiro semestre do ano civil. Esta duração pode ser superior a doze meses, caso o primeiro
exercício seja iniciado no segundo semestre do ano. No caso de cessação de actividade, qualquer que seja
o motivo, a duração das operações de liquidação é contada num único exercício, desde que se estabeleçam
situações anuais provisórias.

68
Constituem um todo indissociável e descrevem de modo regular e verdadeiro os
acontecimentos, as operações e as situações do exercício, de forma a dar uma imagem
fiel do património, da situação financeira e dos resultados da empresa.
São elaborados e apresentados de acordo com o disposto nos artigos 25.° a 34.°, de modo
a permitir a sua comparação no tempo, exercício por exercício, e a sua comparação com
os resultados financeiros anuais das outras empresas, que estejam nas mesmas condições
de regularidade, fidelidade e comparabilidade.

VII — A obrigação de dar balanço, prevista no art. 62 do CCom equivale parcialmente,


no AU/DCG, à de aprovar anualmente documentos de prestação de contas, determinada
pelo art. 13, II, cujos termos são remetidos para o Ato Uniforme Relativo à Organização
e à Harmonização das Contabilidades das Empresas, em particular para disposto nos arts.
25 a 34 (Título I, Cap. III — Os Resultados Financeiros Anuais)105.
O art. 62 do CCom deve, assim, considerar-se revogado pelo conjunto do art. 13,
III do AU/DCG (versão originária) e das regras do AU/OHCE por aquele remetidas.

VIII — A obrigação de prestação de contas prevista no art. 63 do CCom reporta-se a


negociações, transacções comerciais de curso seguido e contrato de conta corrente.
Trata-se, portanto, de obrigações de prestação de contas instrumentais de negócios
jurídico-privados e, portanto, diversas das que se prevêm no AU/CE. Crê-se, portanto,
que o art. 63 do CCom, não colidindo com o AU/DCG, se mantém em vigor.

1.6.3. A firma: considerações gerais

A firma constitui o nome do comerciante enquanto tal. Trata-se da sua


identificação enquanto comerciante, que não tem necessariamente de coincidir com o
nome civil.
Historicamente, a firma surgiu como sinal individualizador do comerciante
perante outros comerciantes, constituindo-se como espécie de um mais vasto conjunto de
sinais distintivos da actividade comercial: nome do estabelecimento, insígnia ou emblema
do estabelecimento e marcas de fábrica e de comércio.

105

69
O AU/DCG não impõe a adopção de uma firma, em geral, ao comerciante, solução
que se compreende, modernamente, com algum desuso do instituto relativamente ao
comerciante em nome individual, no sentido da efectiva adopção por este de nome que
seja diferente do seu nome civil.

1.6.3.1. Comerciante pessoa singular

Determina-se no art. 18, 1.º do CCom que os comerciantes são especialmente


obrigados a adoptar uma firma, sendo que o subsequente art. 19 dispõe que todo o
comerciante, nos termos do artigo 13 deste Código, será designado, no exercício do seu
comércio, sob um nome comercial, que constituirá a sua firma, e com ele assinará todos
os documentos àquele respectivos (redacção do Decreto n.º 19638, de 21 de Abril de
1931).
Recuando ao teor originário do CCom, os comerciantes [individuais e sociedades
comerciais (art. 13 do CCom.)] deviam adoptar uma firma, nos termos do art. 19,
proémio, cujo teor original era o seguinte: “[t]odo o comerciante exercerá o comércio, e
assinará quaisquer documentos a ele respectivos, sob um nome, que constituirá a sua
firma”. Todavia, no que especialmente respeitava às sociedades anónimas, dispunha-se
no § único do mesmo preceito que “[a]s sociedades anónimas existirão, porém,
independentemente de qualquer firma, e designar-se-ão apenas por uma denominação
particular, sendo, contudo, aplicáveis a estas as disposições do presente Código relativas
à firma”. Essa denominação particular não poderia incluir nomes de sócios ou de outras
pessoas e deveria, “[...] quanto possível, dar a conhecer o seu objecto [...]” (art. 23 do
CCom, na redacção originária). A denominação particular constituía, pois, sinal distintivo
do comércio privativo das sociedades anónimas e das sociedades por quotas (estas
admitiam tanto a firma como a denominação particular). O sinal distintivo do comércio
dos restantes tipos societários e dos comerciantes individuais era constituído por uma
firma, composta por nomes de sócios, no primeiro caso, ou pelo nome do comerciante,
aditado ou não de referência à espécie de comércio exercido, no segundo. O art. 1.º do
Decreto nº. 19638, de 21 de Abril de 1931, viria, no entanto, a alterar a redacção do que
antes fora o proémio do art. 19 do CCom., eliminando também o seu § único. O mesmo
preceito alterou ainda o art. 23 do CCom. — dispondo-se então que a firma das sociedades
anónimas consistiria numa denominação, que deveria, quanto possível, dar a conhecer o
seu objecto, podendo conter ainda o nome de quaisquer pessoas — e acrescentou-lhe um
70
§ único, dispondo que “[s]empre que na lei se fale em ‘denominação particular’ de uma
sociedade anónima, deverá esta expressão considerar-se equivalente à palavra ‘firma’ ”.
Esta equiparação da denominação particular à firma foi maioritariamente interpretada
pela doutrina no sentido da criação de uma figura geral de nome comercial (firma em
sentido amplo), no âmbito da qual deveriam distinguir-se duas espécies: a firma-nome ou
firma em sentido restrito e a firma-denominação [FERNANDO OLAVO refere que o
alcance da reforma “(...) foi o de ter criado uma figura geral de nome comercial, que
designou por firma, dentro da qual (porque o respectivo regime assim o impõe) se podem
distinguir duas categorias: a firma ‘stricto sensu’, firma-nome ou firma pessoal, que não
pode deixar de existir com nomes de pessoas, embora excepcionalmente se permita ao
comerciante em nome individual aditar-lhe a espécie de comércio; e a firma-
denominação, que não pode deixar de mencionar o objecto do comércio, muito embora
possa conter nomes de pessoas”106].
Perante estes dados, parece dever admitir-se que permanecem vigentes, no direito
bissau-guineense, as normas dos arts. 18, 1.º, 19, e 20, todos do CCom, conclusão para a
qual concorrem a norma do art. 1.º, III, do AU/DCG, por um lado107, bem como, por outro
lado, a norma do art. 44, 4.º), também do AU/DCG, da qual pode concluir-se que, não
estando o comerciante em nome individual obrigado (nos termos do direito da OHADA)
a adoptar uma firma, tem a faculdade de a adoptar e, nesse caso, de a registar, ficando,
assim, demonstrado que não há antítese entre o direito da OHADA e a imposição da
firma por via do direito interno.
Em consonância com a conclusão já obtida, sustenta-se que também as normas
dos arts. 24 e 26 a 28 do CCom se mantêm em vigor na ordem jurídica bissau-guineense.

1.6.3.2. Sociedades comerciais

I — No CCom, as sociedades comerciais, como comerciantes que são (art. 13, 2.º), são
obrigadas à adopção de firma. A composição da firma, disciplinada nos arts. 21 a 23 do
CCom reflecte a diversidade dos tipos: (i) a firma da sociedade de em nome colectivo
deve conter, quando não individualizar todos os sócios, conter pelo menos o nome ou a
firma de um deles, com o aditamento abreviado ou por extenso “e Companhia” ou

106
FERNANDO OLAVO, Direito Comercial, I, 289 e 290; contra, TAVARES DE CARVALHO, Das firmas e das
denominações das sociedades, 10, 21 e ss.
107
Supra, Capítulo III, 2.1.

71
qualquer outro que indique a existência de outros sócios (art. 21); (ii) a firma da
sociedade em comandita deve conter, pelo menos, o nome de um dos sócios que forem de
responsabilidade ilimitada e um aditamento que indique a existência de uma sociedade
em comandita; os nomes dos sócios comanditários não podem figurar na firma social
(art. 22); (iii) a firma da sociedade anónima consistirá numa denominação que deverá
quanto possível dar a conhecer o seu objecto, podendo todavia, conter o nome de
quaisquer pessoas, quando obtida a autorização destas ou de seus representantes; esta
denominação será sempre precedida ou seguida das palavras “sociedade anónima de
responsabilidade limitada” ou das iniciais “S.A.R.L”; sempre que na lei se fale em
“denominação particular” de uma sociedade anónima, deverá esta expressão
considerar-se equivalente à palavra “firma” (art. 23).
Quanto à sociedade por quotas, determina o art. 3.º da LSQ que as sociedades por
quotas de responsabilidade limitada, adoptarão uma firma ou uma denominação
particular; a firma, quando não individualize todos os sócios, deve conter o nome ou
firma de um deles; a denominação deve, quanto possível, dar a conhecer o objecto das
sociedades; à firma ou denominação social aditar-se-ão sempre as palavras
“responsabilidade limitada” ou simplesmente a palavra “limitada”.

II — No AU/DSC-AIE, nas menções obrigatórias do acto constitutivo de qualquer


sociedade comercial inclui-se “[a] […] denominação seguida, se for o caso, da […] sigla”
(art. 13.º, 2.º).
A denominação social tem um regime comum nos arts. 14 a 18 do AU/DSC-AIE,
dele devendo destacar-se, para o que aqui interessa, as regras dos arts. 15 — salvo
disposição contrária do presente Acto Uniforme, os nomes de um ou mais sócios ou
antigos sócios podem ser incluídos na denominação social — 16 — a sociedade não
pode adoptar a denominação de uma outra sociedade já registada no Registo do
Comércio e do Crédito Mobiliário — e 17: a denominação social deve figurar em todos
os actos e documentos emitidos pela sociedade e dirigidos a terceiros, nomeadamente
cartas, facturas, anúncios e publicações diversas. Deve ser precedida ou seguida, em
caracteres legíveis, da indicação do tipo social, do montante do capital social, do
endereço da sua sede social e da menção da sua matrícula no Registo do Comércio e do
Crédito Mobiliário.

72
A denominação social das sociedades comerciais no Direito da OHADA é,
portanto, funcionalmente equivalente ao instituto da firma, tal como aplicável às
sociedades comerciais do direito interno da Guiné-Bissau anterior ao AU/DSC-AIE.
A denominação social sociedade em nome colectivo encontra-se regulada no art.
272 do AU/DSC-AIE: a sociedade em nome colectivo é identificada por uma
denominação social, que deve ser imediatamente precedida ou seguida, em letra legível,
da expressão: “sociedade em nome colectivo” ou da sigla: “S.N.C.”.
No que respeita à sociedade em comandita simples, determina o art. 294 o
seguinte: a sociedade em comandita simples é identificada por uma denominação social,
que deve ser imediatamente precedida ou seguida, em letra legível, da expressão:
“sociedade em comandita simples” ou da sigla: “S.C.S”./o nome de um sócio
comanditário não pode, em caso algum, ser incluído na denominação social, sob pena
de o mesmo responder ilimitada e solidariamente pelas obrigações sociais.
Sobre a sociedade de responsabilidade limitada, dispõe o art. 310 que a sociedade é
identificada por uma denominação social, que deve ser imediatamente precedida ou
seguida, em letra legível, da expressão: “sociedade de responsabilidade limitada” ou da
sigla: “S.A.R.L.”.
Por último, em relação à sociedade anónima, determina o art. 386 que a sociedade
anónima é designada por uma denominação social que deve ser imediatamente precedida
ou seguida, em caracteres legíveis, da expressão “sociedade anónima” ou da sigla
“S.A.”, bem como de um dos modos de administração previstos no artigo 414 do presente
Acto Uniforme.
Os preceitos sobre a composição das denominações sociais das sociedades
comerciais do Direito da OHADA são, pois, contraditórios com os correspondentes do
CCom, razão pela qual devem considera-se revogados pelo AU/DSC-AIE os arts. 21 a 23
do CCom, bem como o art. 3.º da LSQ, sem que aqui pretenda ajuizar-se da eventual
revogação global desta lei pelo AU/DSC-AIE, que terá melhor cabimento numa análise
específica do direito das sociedades comerciais.

73
CAPÍTULO VI

O EMPREENDEDOR

1. Aspectos gerais

I — O AU/DCG abrange no seu âmbito o empreendedor (art. 1.º, II), que define no art.
30, I: empresário individual, pessoa singular que, por simples declaração prevista no
presente Ato Uniforme, exerce uma actividade profissional civil, comercial, artesanal ou
agrícola.
A qualificação jurídica do empreendedor, inovação do AU/DCG na versão
aprovada em 2011, justifica-se num desagravamento de estatuto passivo em relação ao
do empresário individual, que surge referido no art. 30, IV.
O principal efeito da qualificação de alguém como empreendedor é a sua sujeição
a um regime de declaração de actividade e de escrituração que, comparativamente com
o estatuto de comerciante, se mostra aligeirado. Assim, o empreendedor não está sujeito
a matrícula no Registo do Comércio e do Crédito Mobiliário, mas tem uma obrigação
declarativa do seu início de actividade (art. 30, VI).
No estatuto passivo do empreendedor conta-se ainda uma obrigação de
escrituração simplificada (art. 31), que configura regime diverso do previsto nos arts. 13
e seguintes.
Já fora do estatuto passivo, pode ainda mencionar-se do regime jurídico do
empreendedor a verificação de regras particulares de prescrição (art. 33), que afastam o
regime geral, estabelecido nos arts. 16 e seguintes.

II — O objectivo visado pelo legislador com a criação do estatuto subjectivo do


empreendedor é claro, mas não é jurídico-sistemático. Na verdade, trata-se de cumprir
uma finalidade de política económica: promover a entrada no sistema fiscal das
actividades exercidas no contexto da economia informal108, o que tem uma tradução na
regra do art. 30, VII: cada Estado Parte estabelece as respectivas medidas de incentivo

108
Sobre o conceito de economia informal, cf. OSVALDO JÚLIO DA SILVA, Sociedade criada de facto e
sociedade de facto no direito da Ohada (Dissertação de Mestrado apresentada em 2017 à Faculdade de
Direito de Lisboa), 6.1., no prelo.

74
comercializáveis ou não, na medida em que exercem, com fim lucrativo ou não,
actividades económicas a título principal ou acessório, com carácter de continuidade, à
excepção das que se regem pelas normas da contabilidade pública.
Para situar a matéria que agora nos importa convém conhecer alguns outros
preceitos desse AU.
Assim, o seu art. 11 determina que os resultados financeiros anuais são
obrigatórios, total ou parcialmente, em função da dimensão das empresas, apreciada
segundo critérios relativos ao volume de negócios do exercício.
Qualquer empresa está submetida, salvo excepção justificada pela sua dimensão, ao
«Sistema normal» de apresentação dos resultados financeiros e de prestação das contas.
Todavia, se o volume de negócios não atingir 100.000.000 (cem milhões) de francos
CFA, a empresa pode utilizar o «Sistema simplificado».
No art. 13 determina-se que as empresas de reduzida dimensão, cujas receitas anuais
não sejam superiores aos limites mínimos fixados no segundo parágrafo do presente
artigo, estão sujeitas, salvo quando utilizem um dos dois sistemas previstos no artigo 11
supracitado, a um «Sistema minimal de tesouraria», que derroga as disposições gerais
do presente Ato Uniforme.
Estes limites são os seguintes:
– Trinta (30) milhões de francos CFA para as empresas de negócio,
– Vinte (20) milhões de francos CFA para as empresas artesanais e similares,
– Dez (10) milhões de francos CFA para as empresas de serviços.

Refira-se ainda o disposto no art. 21 do AU/OHCE: as empresas visadas no artigo


13, que dependem do Sistema minimal de tesouraria, têm uma contabilidade de
tesouraria simples nas condições prescritas pelo Sistema Contabilístico OHADA. Os
resultados financeiros dessas empresas, assim como as suas normas de estabelecimento,
são objecto de uma edição distinta.
Por último, em matéria de prestação anual de contas, estabelece o art. 27, que o
sistema simplificado compreende a elaboração do Balanço, da Demonstração de
Resultados do Exercício e do Anexo ao Balanço e à Demonstração de Resultados,
simplificados segundo as condições definidas no Sistema Contabilístico OHADA.

II — O enquadramento normativo citado serve o propósito, por um lado, de explicitar os


limiares de volume de negócios a que se refere o art. 30, II, do AU/DCG e, por outro lado,

77
de deixar marcado que o critério do volume de negócios serve para delimitar o tipo
subjectivo empreendedor, mas não se segue daí que o mesmo esteja sujeito ao sistema
minimal de tesouraria; com efeito, nada no regime jurídico do empreendedor o permite
concluir, sendo que outro entendimento seria contraditório com a pretensão do legislador
de, com tal tipo, trazer a economia informal para o âmbito do sistema fiscal.

3. Empreendedor vs. comerciante

As qualificações jurídicas de comerciante e de empreendedor intersectam-se, embora


a primeira não cubra todo o âmbito da segunda. Com efeito, o empreendedor será
comerciante se ― e apenas se ― a actividade a que se dedica, profissionalmente, for
comercial (arts. 2.º e 3.º). Tratando-se, antes, de actividade profissional civil, artesanal ou
agrícola, a pessoa singular que à mesma se dedica será empresário individual — se,
naturalmente, houver empresa — mas não comerciante.
Havendo sobreposição das qualificações de empreendedor e de comerciante, há
desaplicação do regime comum do estatuto passivo do comerciante (obrigações de
escrituração e de matrícula), para emergir como único conjunto normativo aplicável o do
empreendedor, que não impõe a matrícula, mas uma mera declaração de actividade, bem
como a existência de um único livro de registo contabilístico (art. 31).

78
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