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ÍNDICE/

1.NOTA INTRODUTÓRIA 6/7


2.SOBRE LEONARDO 8/9
3.UM GÉNIO DA COZINHA 10/11
4.A FIGURA DE LUDOVICO SFORZA 12/13
4.ACERCA DO COMPORTAMENTO IMPRÓPRIO À MESA DO MEU AMO 14/15
6.MÁQUINAS DE LEONARDO PARA POUPAR TEMPO NA COZINHA 16/19
7.AS RECEITAS DE LEONARDO 20/23
a/Sopa de folhas de nabo

b/Pudim de mosquito branco

c/Pudim de natal

d/Pavão assado

8.AS MÁQUINAS QUE AINDA TENHO DE INVENTAR PARA AS MINHAS COZINHAS 24/25
9.O CÓDEX ROMANOFF DE LEONARDO DA VINCI 26/27
8/9

Pelo Doutor Marino Albinesi, promotor de justiça em Roma e presidente do Circolo Enogastronomico d’Italia.

Causou sempre uma certa estranheza o facto de alguém tão curioso em relação a
tudo (como era o caso de Leonardo da Vinci) ter deixado um espólio tão reduzido
em termos de referências relevantes acerca da comida e da culinária. Isto, num
homem cuja maior e mais conhecida realização pictórica, essa representação de
parcimónia culinária denominada A Última Ceia, em que gastou três anos da sua
vida, abordava tanto questões de comida como valores espirituais. Isto num
homem que no seu testamento deixou uma parcela considerável dos seus bens a um
ser muito particular: a sua cozinheira, Battista de Villanis. Isto num homem
que, durante toda a sua vida, se interessou tanto por alimentação e culinária
como por projectos de pinturas e fortificações, além de investigar inúmeros
outros assuntos que despertavam a sua curiosidade. Realmente, o seu interesse
pela culinária foi mais activo do que em outro domínio qualquer. Teve mesmo de
o ser. Não apenas quando ainda pouco mais era do que um rapazinho e conseguia
algumas dispensas das obrigações que o retinham no estúdio de Verrochio, tra-
balhando, para realizar algum dinheiro de bolso, nas cozinhas de um botequim
florentino; não apenas na altura em que, de parceria com Sandro Boticelli,
tentou abrir o seu próprio botequim; mas, muito especialmente, nas
suas aptidões como mestre das folias e banquetes na corte dos Sforza
– e convém recordar que desempenhou esse cargo durante mais de treze
anos – o que implicava um conhecimento vasto, e muito próximo, dos
assuntos de alimentação. Todavia, o número de referências à comida e
à bebida nos cadernos de apontamentos de Leonardo conhecidos até hoje
é por assim dizer, mínimo – meia dúzia de generalizações e alguns
aforismos, mas nem uma só menção ou receita, depois de todo o tempo
que viveu na corte dos Sforza.
Hoje, numa tentativa para preencher esta lacuna, é-nos apresentado
finalmente aquilo a que um número cada vez maior de pessoas, incluindo
os presentes autores, designam por Codez Romanoff e até a minha velha
amiga, Shelagh Marvin Routh, que, juntamente com o marido Jonathan,
passou muitos anos em busca desta pista culinária de Leonardo, tem
de admitir que não há absolutamente nenhuma forma de de autenticar
como texto genuíno de Leonardo da Vinci esta cópia de um manuscrito
Italiano, que trata quase exclusivamente de comida, e que parece ter
surgido vinda de parte nenhuma.1

Que sentido deveremos atribuir à breve nota que encabeça esse ma-
nuscrito, e que diz: “Este é o texto que eu, Pasquale Pisapia, copiei
por extenso a partir do manuscrito de Leonardo da Vinci, que agora se
encontra no Ermitage, em Leninegrado”? Quem era, ou quem é, Pasquale
Pisapia? Como se explica ser ele a única pessoa a ter tido conhecimento
do manuscrito? E, tendo os funcionários do Ermitage negado que tal
obra de Leonardo existia no seu museu, é tarefa complemente inglória
procurar fundamentar a sua autenticidade, para já não falar da sua
própria existência. (Ainda que não me custe nada reconhecer que, ainda
não há muito tempo, os Russos “negaram” muitas outras coisas).

1. falo aqui em termos metafóricos, mas até ao momento em que aristocrática família do Piemonte

(alegadamente avessa a toda a forma de publicidade e em cuja posse, segundo consta, o dactiloscrito

se encontra desde a última guerra) vier a público fornecer uma explicação satisfatória, “de parte

nenhuma” continua a ser a expressão que prefiro usar.


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Reconhecido como um dos maiores génios da humanidade em função de seu
inigualável talento artístico e de sua grande capacidade inventiva,
Leonardo da Vinci tinha um lado menos conhecido, mas igualmente in-
teressante e curioso, o de chef de cozinha e inventor de utensílios
culinários. Ele trabalhou como cozinheiro em alguns restaurantes de
Florença, cidade na qual foi sócio de Sandro Boticelli em uma cantina.
‘Os Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci’ recupera os apontamentos
feitos pelo grande mestre renascentista que foram escritos durante
sua estada no palácio de um de seus mecenas, Ludovico Sforza, Senhor
de Milão. O livro reflete os diferentes interesses do grande pensador
renascentista. Foram compiladas receitas culinárias, com a inclusão de
comentários sobre a preparação dos pratos. Apesar de muitas receitas
serem destinadas a banquetes, saindo, assim, do alcance da cozinha
doméstica, o leitor encontrará uma grande quantidade de pratos de fácil
preparo, como o Caldo de grão-de-bico e a Chuleta.
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Em 1980 foi descoberto o Codex Romanoff ou, para simplificar, os


“Cadernos de Cozinha” de Leonardo Da Vinci. Não há, evidentemente,
comprovação total de que os registros anotados nesse documento te-
nham sido produzidos pelo gênio maior do Renascimento. Entretanto,
existem vários indícios nos escritos que nos permitem supor que essa
relíquia seja autêntica.
Entre eles poderíamos citar nomes de personalidades da época com
as quais Leonardo teve contato, locais nos quais viveu ou pelos quais
passou, hábitos típicos do período renascentista, alimentos próprios
da região onde vivia o artista e inventor,...
Uma outra informação que nos coloca em sintonia com a descoberta
dos “Cadernos” refere-se ao fato de que Da Vinci anotava sistematica-
mente tudo aquilo que acontecia em sua vida. Mantinha total regulari-
dade em relação a seus apontamentos e tinha como prática detalhar to-
dos os acontecimentos, mesmo aqueles que faziam parte de um cotidiano
que a maioria das pessoas parece viver, mas não perceber e saborear.
A partir da descoberta desse precioso arquivo pessoal de Da Vinci está sendo possível
perceber que seus conhecimentos avançaram não apenas na área das artes plásticas e da
ciência, da engenharia ou da filosofia. Atingiram também as artes da mesa. Essa passagem
de Leonardo pela gastronomia foi significativa. Nos legando desde alguns artefatos con-
siderados básicos (e essenciais) na área, como os guardanapos e as tampas de panelas e
repercutindo também pelo fato do artista ser vegetariano, numa época em que as carnes
eram consideradas essenciais para a composição de uma alimentação farta e um indicativo
de posição e status social.
Leonardo não parecia muito interessado em firmar-se dentro desse universo social das
elites de Milão e Florença a partir de concessões que lhe fizessem ser reconhecido como
parte do grupo. Por isso, pouco parecia se importar com a idéia de que comer carne era
como um quesito fundamental para participar desse seleto “clube”. Privilegiava os legumes
e as verduras por acreditar se tratarem de alimentos mais leves e saudáveis, numa época
em que poucas pessoas pareciam se importar com a relação entre alimentação e saúde.
Um outro dado esclarecedor dessa relação de proximidade entre Da Vinci e a Gastronomia
refere-se ao fato de que o inventor (em sociedade com o amigo Sandro Botticelli) chegou
a abrir um restaurante. Foi um verdadeiro e retumbante fracasso comercial, especialmente
pelo fato de que não se serviam pratos com carnes. O estabelecimento, se antecipando em
aproximadamente 500 anos, era vegetariano.
Além de trabalhar com verduras e legumes numa época em que as pessoas estavam mais
interessadas em saborear um bom e suculento filé, Da Vinci e Botticelli preparavam pratos
ornamentados, uma tendência que se celebraria no período contemporâneo, para a qual as
pessoas comuns do Renascimento não estavam preparadas.
Outro feito de Leonardo na área gastronômica foi trabalhar como mestre de cerimônias
para os banquetes do poderoso Ludovico Sforza, governante da poderosa cidade italia-
na de Milão. Não tinha como incumbência a organização do cardápio, mesmo por conta de
suas preferências vegetarianas, cabendo-lhe ordenar os banquetes quanto aos serviços,
os instrumentais utilizados, a programação artística, a ornamentação dos locais onde se
realizariam as refeições,...
No período renascentista a alimentação tinha o intuito de definir as bases sociais,
especialmente na Itália, das poderosas e ricas cidades que controlavam o acesso de espe-
ciarias provenientes do Oriente, através do Mar Mediterrâneo. Por isso, as tradicionais
e poderosas famílias que reinavam em Florença, Milão, Veneza ou Gênova organizavam suas
refeições cotidianas, e especialmente suas grandes recepções, com o intuito de comprovar
sua riqueza e seu poder.
Outra informação importante refere-se ao fato de que, a composição básica da alimen-
tação cotidiana era feita com produtos típicos de cada região. Especialmente no que se
refere aos alimentos que estragam com maior rapidez. Por isso, os produtos importados
do Oriente eram caros demais para o povo e, dificilmente atingiam os pratos daqueles que
estivessem longe das cidades.
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Nos cadernos de cozinha de Leonardo da Vinci, Ludovico Sforza é uma das figuras
mais citadas. No entanto, as referências do artista a esse personagem não são
positivas, visto que ele é tratado como exemplo de comportamentos reprováveis:
Parece-me indigno dos tempos presentes o costume de Meu Senhor Ludovico
de amarrar coelhos à cadeira de seus convidados para que estes possam limpar
a gordura das mãos nas costas dos animais (DA VINCI, 2005, p. 189).

O que o Meu Senhor Ludovico tem em sua mesa fere a minha vista. Todos os pratos
são monstruosos... é tudo abundância. Assim comiam os bárbaros (DA VINCI, 2005, p. 77).

Essa reprovação aos atos do amigo demonstra como o artista foi influenciado
pelo ideal ciceroniano de virtu, o qual foi retomado no Renascimento. Nesse
momento, assuntos como educação, retórica e conhecimento filosófico passaram
a ser pauta de uma discussão que pretendia estabelecer os principais âmbitos
que deviam compor a instrumentalização de um verdadeiro cavalheiro. A idéia
de que todo homem pode alcançar a excelência impulsionou uma busca contínua
por virtudes que eram consideradas essenciais à vida pública.
Como todo homem é filho de seu tempo, Da Vinci não poderia fugir desse ideal.
Para ele, Sforza, como governante de Milão, deveria ser um homem virtuoso,
com boas maneiras. Suas atitudes à mesa não eram condizentes com a de um ca-
valheiro, o qual deveria ter como objetivo principal de sua vida a busca pela
sabedoria e eloqüência. Da Vinci chegou ao ponto de comparar seu senhor aos
bárbaros, evidenciando, assim, seu horror ao presenciar aquelas cenas que ofen-
diam os valores humanistas, nos quais as boas maneiras à mesa faziam parte de
um conjunto de comportamentos necessários a um governante possuidor da virtu.
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Há hábitos impróprios que um convidado à mesa do meu Amo não deve


contrair, sendo o catálogo que se segue baseado nas observações
que fiz daqueles que tomaram assento junto do meu Amo durante o ano
que passou:

Convidado algum se deve sentar em cima da mesa, nem de costas vol-


tadas para ela, nem ao colo de outro comensal. /nem deve pôr as
pernas em cima da mesa. /nem se deve sentar debaixo da mesa por
qualquer tempo que seja. /não deve pôr a cabeça em cima do prato
para comer. /não deve tirar comida do prato do vizinho, sem pri-
meiro lhe pedir autorização. /não deve colocar no prato do vizinho
partes desagradáveis ou semimastigadas da sua própria comida, sem
primeiro lhe pedir autorização. /não deve limpar a sua faca às
vestes do vizinho. /nem usar a sua faca à mesa para trinchar. /não
deve limpar à mesa as suas armas. /não deve retirar comida da mesa,
colocando-a na bolsa ou na bota para consumo ulterior. /não deve dar
dentadas nos frutos que se encontram na fruteira, voltando depois
a colocá-la na mesma. /não deve cuspir na frente do meu Amo. /nem
ao seu lado. /não deve dar beliscadelas ou palpadas ao vizinho. /
não deve emitir ruídos resfolegantes ou dar cotoveladas. /não deve
revirar os olhos ou fazer caretas assustadoras. /não deve meter o
dedo no nariz ou no ouvido durante uma conversação.
/não deve fazer maquetas, nem acender fogos, nem treinar-se na arte
da pantomina em cima da mesa (a menos que o Amo o solicite). /não
deve soltar os seus pássaros em cima da mesa. /nem o mesmo fazer
com cobras ou escaravelhos. /não deve tanger alaúde ou qualquer
outro instrumento que possa importunar o vizinho (a menos que o
meu Amo o solicite).
/não deve cantar, nem fazer discursos, nem proferir impropérios, e
ainda menos lançar adivinhas lascivas quando a seu lado se encon-
trar uma dama. /não deve conspirar à mesa (a menos que seja com o
meu Amo) /não deve fazer propostas obscenas aos pajens do meu Amo,
nem retoiçar com os corpos deles. /nem deve pegar fogo ao vizinho
enquanto se encontra à mesa. /não deve agredir um serviçal (a menos
que seja em defesa própria). e se sentir vontade de vomitar, que
abandone a mesa. /Tal como se tiver de urinar.
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A experiência adquirida por Leonardo da Vinci nas cozinhas da Taber-


na dos Três Caracóis teve um efeito profundo no seu espírito inqui-
sitivo. Revelou-lhe como era primitiva a preparação dos alimentos
nos tempos em que vivia, originando um enorme desperdício de tempo
e de trabalho. E, daí em diante, começou a imaginar “aparelhos que
permitem poupar tempo” na cozinha. Foi por esta altura que começou a
escrever nos seus cadernos de apontamentos, e é assaz surpreendente
a quantidade de desenhos que, de acordo com o que os intérpretes
das suas obras têm dito durante os últimos quatrocentos anos, se
trataria de máquinas de guerra e que exprimem, afinal, uma intenção
oposta à de Leonardo da Vinci. Trata-se de máquinas de paz: pica-
doras de carne/ máquinas de lavar/ quebra-nozes mecânicos e afins.
Mas, nesta altura, ainda teria de esperar algum tempo até poder
transformar o desenho em realidade. Havia encomendas de retratos e
de retábulos e uma reputação de pintor que tinha de ser adquirida.
No Verão de 1478, na sequência de uma escaramuça entre dois
bandos florentinos rivais, a famosa Taberna dos Três Caracóis in-
cendiou-se e ardeu por completo. Leonardo da Vinci, desistindo da
encomenda mais importante que recebera até então, um retábulo para
a capela de São Bernardo, no Palazzo Vecchio, decidiu imediatamente
abrir, de parceria com o seu amigo Botticelli, uma taberna provisó-
ria no mesmo local da antiga, usando para esse efeito velhas telas
da oficina de Verrocchio. Deram-lhe o nome de “A Marca das Três Rãs de Sandro
e Leonardo”. Leonardo da Vinci pintou um dos lados da tabuleta pendurada do
lado de fora da casa, Boticelli pintou o outro. O estabelecimento não foi
propriamente um sucesso. Mais uma vez se provava que a clientela florentina
não morria de amores por quatro rodelas de cenoura e uma anchova, pesasse
embora a forma artística como eram dispostos no prato (aliás, lamentava-se
Boticelli, quem é que conseguia perceber uma ementa escrita da direita para
a esquerda?). As telas de Verrochio foram retiradas das molduras e devolvidas
clandestinamente ao estúdio do Mestre.
Nenhuma taberna empregava Leonardo da Vinci como cozinheiro ou lhe dava
qualquer outra tarefa na cozinha, dados os terríveis efeitos que a sua ex-
cêntrica gastronomia exercia sobre a clientela. Não mostrava inclinação para
voltar aos seus retábulos ou para continuar qualquer outra das suas encomendas.
Sentava-se onde calhava, fazendo rabiscos, tocando alaúde e inventando novos
nós. A coisa mais positiva que fez nesta altura foi enviar alguns desenhos
de arietes e de complexas escadas de cerco a Lorenzo de Médici, o senhor de
Florença, que nessa altura estava envolvido numa pequena guerra com o Papa.
O envio destes desenhos deve ser interpretado como um gesto de boa-vontade
da parte de Leonardo da Vinci, que assim contribuía para o esforço de guer-
ra; mas, apesar de os ter acompanhado de maquetas em maçapão e em massa de
pasteleiro, as intenções de Leonardo da Vinci não foram bem compreendidas
por Lorenzo, que as encarou apenas como bolos excêntricos e as serviu aos
convidados durante a ceia.
Sem reconhecimento, sem salário e sem vontade de regressar à monotonia
dos retábulos, Leonardo da Vinci sentia-se cada vez mais incompreendido. Na
fase de depressão que se seguiu a este segundo grande fracasso culinário,
reuniram-se todas as condições para o levar a fazer as malas e a partir de
Florença. E quando Lorenzo de Médici ouviu dizer que Leonardo da Vinci ia
partir, entregou-lhe uma carta de apresentação para Ludovico Sfarza, Il Moro,
governador de Milão, compensando-o assim, parcialmente, por ter dado a comer
as suas maquetas em maçapão. Só que, quando Leonardo da Vinci abriu a carta,
não encontrou qualquer referência às suas competências de pintor ou de co-
zinheiro; Lorenzo recomendava-o meramente como excelente tocador de alaúde.
Em 1482, Leonardo da Vinci partiu para Milão, acompanhado pelo músico e
amigo Atlante Migliorotti e por uma carta de recomendação dirigida a Il Moro,
desta vez escrita pela sua própria mão, e que assim dizia:

A minha excelência a construir pontes, fortificações e catapultas não admite


comparação, e o mesmo se pode dizer de muitos outros aparelhos secretos, que não
ouso descrever nesta carta. A minha pintura e a minha escultura são superiores
às de qualquer outro artista. Sou superlativo a contar anedotas e a meter-me
em sarilhos. E faço bolos verdadeiramente inigualáveis.

Ao ler a “modesta” carta de auto-recomendação de Leonardo da Vinci, Ludovico


Sforza ficou intrigado. Concedeu-lhe uma audiência, e foi tal a impressão pro-
vocada, que Leonardo da Vinci saiu da sala com os títulos de “Conselheiro de
Il Moro para as fortificações” e de “Mestre de festas e banquetes” da corte dos
Sforza. Finalmente, era alguém: não um mero artista excêntrico.
Foram-lhe entregues criados para o seu serviço, foi-lhe cedida uma oficina,
encontrando-se à sua volta a grande corte de Milão: cortesãos, conselheiros, 20/21
mercenários, representantes de potências estrangeiras, homens de grande eru-
dição. Por causa de uma simples carta, toda a sua vida mudou. Foi então que
deu início aos apontamentos inscritos nos cadernos de apontamentos que hoje
constituem o Codex Romanoff.
É um facto que Leonardo da Vinci conseguia ocupa-se de assuntos mais ade-
quados ao seu intelecto. Mas era com relutância que se dedicava a trabalhar
nalguns retratos de damas da corte. Começava muitos, mas eram poucos os que
acabava. Insistiu fortemente na edificação de uma estátua do pai de Ludovico,
uma escultura de grandes dimensões quatro vezes superiores às reais. E quan-
do surgiu um banquete especial para celebrar as bodas de uma sobrinha dos
Sforza, aproveitou para, de novo, fazer publicidade à sua arte culinária, que
tantos problemas lhe trouxera em Florença. Levou Ludovico a sua proposta para
a ementa da ocasião. À frente de cada convidado, explicou Leonardo da Vinci a
um Ludovico reticente, seria posto um prato com o seguinte repasto:

/Uma anchova enrolada sobre uma rodela de nabo, esculpida na forma de uma rã.
/Outraanchova, disposta em espiral à volta de uma erva. /Uma cenoura finalmente
trabalhada. /Um coração de alcachofra. /Duas metade de pepino de conserva por
cima de uma folha de alface. /Um peito de pequena ave canora. /Um ovo de pavão.
/Um testículo de carneiro envolto em natas (frio). /Uma perna de rã sobre uma
folha de dente-de-leão. /Um pé de carneiro cozido e desossado.

Como se pode calcular, Ludovico respondeu a Leonardo da Vinci que aquilo não era
propriamente uma refeição que estava nos seus planos. Explicou laboriosamente a
Leonardo da Vinci que aquele não era o tipo de banquete que os Sforza costumavam
servir aos seus convidados, nem era banquete que se apresentasse a convidados
que teriam de fazer uma cansativa viagem para vir à festa. Graças aos livros
de contas dos Sforza, temos hoje conhecimento de que, em vez daquilo que fora
proposto por Leonardo da Vinci, Ludovico Sforza deu ordens para encomendar:

/600 salsichões com miolos de porco de Bolonho. /300 Zampone (pernas de porco
recheadas) de Modena. /1200 empadas de Ferrara. /200 vitelas, galinhas e pa-
tos. /60 pavões, cisnes e garças. /Maçapão de Siena. /Queijo Gorgonzola com o
selo da Guilda dos Queijeiros. /Carne picada de Monza. /2000 ostras de Veneza.
/Macarrão de Génova. /Esturjão. /Trufas. /Puré de nabo.

Outras iguarias semelhantes deveriam ser encomendadas diariamente enquanto


durassem os festejos que Leonardo tinha de organizar para Ludovico. No entan-
to, pelo menos, Ludovico reconhecera o vivo interesse (ainda que excêntrico)
de Leonardo da Vinci pelas artes da cozinha. Pouco tempo depois, encarregou-o
de fazer um projecto de alteração das cozinhas do grande palácio dos Sforza,
no centro de Milão.
A partir dessa altura, e durante os seis meses seguintes, Ludovico e
as várias centenas de pessoas que faziam parte da corte e que habi-
tavam no palácio viveram provavelmente o maior caos das suas vidas.
Leonardo da Vinci fez imediatamente uma lista do que lhe pareciam ser
os requisitos básicos de uma cozinha:
Em primeiro lugar (é preciso) um lume permanente. Depois, um forne-
cimento constante de água a ferver. Depois, que o chão esteja sempre
limpo. Depois, ainda, dispositivos para limpar, esmagar, cortar, moer
e pelar. E ainda um dispositivo para manter a cozinha livre de cheiros
e pestilências, dotando-a de uma atmosfera limpa e sem fumos. E música,
pois os homens trabalham melhor e com mais alegria quando há música.
Por fim, um engenho para eliminar as rãs dos barris de água potável.
Leonardo da Vinci recolhe-se então nas gigantescas oficinas do Corte
Vecchio (hoje, Palácio Real), onde normalmente se fabricavam os cená-
rios e palcos para os divertimentos do palácio, e dedica-se aos seus
inventos (sabe-se isto devido a Matteo Bandelli, que detinha o cargo
de cronista da corte). Começa pelas coisas absolutamente básicas.
Pergunta a si mesmo se um pedaço de lenha de forma e comprimento
particulares arderá melhor e fornecerá mais calor do que o outro. Dia
após dia, estuda fornos onde ardem achas diferentes, medindo quanto
tempo cada uma demora a arder, avaliando a quantidade de calor pro-
duzida. Por fim, acaba por chegar à conclusão de que é a quantidade e
não o formato da lenha que importa; inventa então um tapete rolante
em que a lenha, cortada por uma serra circular colocada no exterior
da cozinha, é levada directamente para perto dos fornos, declarando
que assim eliminava a necessidade de um rachador de lenha dentro da
cozinha (embora esquecesse os outros quatro homens e oito cavalos
necessários para accionar e alimentar a serra circular e o tapete, no
exterior). Projecta igualmente um assador automático, com a intenção
de libertar um moço de cozinha da tarefa de passar o dia inteiro a
voltar o espeto por cima do lume. Instalado dentro da chaminé, por
cima do lume, um hélice é movimentado pela corrente de ar quente que
sobe e está ligado a uma engrenagem que faz girar o espeto. “O assado
girará no espeto de uma forma mais lenta ou mais rápida conforme o
fogo for mais brando ou mais forte”, escreveu Leonardo da Vinci sob o
desenho que fez para este projecto (que está no Codex Atlanticus, e de
que existe um modelo em funcionamento no Museu de Ciência e Técnica,
em Milão). Entretanto, Leonardo da Vinci não especifica em que é que
o criado libertado na cozinha irá ocupar o seu tempo.
Projecto de Leonardo da Vinci para um assador automático: as pás da
hélice ou o propulsor, na chaminé, são movimentados pelo ar quente que
vem do fogo, accionando o espeto colocado em baixo. [Cod. Atl. fol. 5v.]
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Sopa de
folhas de nabo

Há quem afirme que as folhas de nabo e repolho, em qualquer de suas


formas, são comida apropriada apenas para aqueles de forte com-
pleição (lavradores, carregadores de pedras, açougueiros) e que os
inválidos, bibliotecários, pessoas pequenas ou de digestão delicada
deveriam manter-se afastados deles. Eu, por outro lado, afirmo que
as folhas de nabo e os repolhos tornam forte uma digestão fraca,
por causa da propriedade de suas folhas, as quais já vi reviver
uma vaca moribunda e alegrar uma vaca doente. Aqueles que crêem na
primeira dessas teorias devem provar a sopa. Deve-se fazer molhos
com as folhas de nabo e os repolhos e amarrá-los com crina de cavalo.
Em seguida, mergulhe-os em água fervente e sal e deixe-os ali por
uma hora. O líquido obtido pode ser um prato leve para a Quaresma.

Pudim de
mosquito branco

Moa amêndoas descascadas e sem pele junto com um pouco de flores de


sabugueiro e passe tudo pela peneira. Cozinhe lentamente por meia
hora, junte peito de capão cozido com um pouco de mel e moa tudo.
Regue a mistura com água de rosas e sirva de imediato. Este prato
é de digestão muito lenta e não aconselhável para aqueles que têm
a Peste e para aqueles que querem saber por que tem este nome,
questão à qual não posso responder.
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Um pudim (Esta receita foi-me dada pelo meu

de Natal amigo Atalante Miglioitti, o músico).

Remover a pele e as espinhas a sete peixes brancos grandes,


reduzir a carne a uma pasta que se mistura com o miolo de
sete pães não muito tostados e uma trufa branca ralada.
Ligar tudo com as claras de sete ovos de galinhas e cozer
ao vapor, num saco de pano rijo, durante um dia e uma
noite. Na hora de o comer, tomar cuidado para não haver
engasgadelas com uma qualquer Santa relíquia que tenha sido
escondida no seu interior. Leonardo da Vinci nunca tivesse
inventado a máquina a vapor. Todos os factores necessários
estavam ao seu alcance, incluindo o pistão, mas, por uma
razão ou por outra, nunca os pôs a funcionar em conjunto.

Pavão assado

Cozinhar pavões envolve muito tempo e desapontamento. Para


matar um pavão, adopta-se o mesmo procedimento usado para
matar uma cabra – corta-se a garganta e leva-se a ponta de
uma faca até ao cérebro para fazer sair o sangue. Pendura-
-se depois o animal numa figueira, durante uma noite, para
lhe amaciar as carnes, depois de lhe ter enchido o corpo
vazio com urtigas e atado pesos a ambas as pernas.16 Agora
é a vez de cortar a pele à superfície, desde o pescoço até
à cauda e removê-la juntamente com as penas e as pernas
que ainda estão ligadas ao resto do corpo. Conservá-lo
cuidadosamente à parte. Colocar no fogão a carcaça do
animal, tendo recheado o interior com sementes de cravo,
salpicado a sua superfície com ervas aromáticas e – aquilo
que é mais importante – envolvido o pescoço e a cabeça
em pano branco, mantido sempre húmido durante o tempo de
cozedura, para que não se deformem com o calor. Quando a
ave estiver cozida – o que irá demorar duas a três vezes
mais do que no caso de um capão, porque a sua carne é mui-
to mais rija – tira-se do espeto, envolvendo-a depois na
16.Esta passagem encontra-se praticamente sua própria pele, que se conservou. Para fazer com que o
palavra por palavra na edição original de pássaro pareça estar de pé, é conveniente montar pernas de
Valturio, De Re Mangiare, publicada em 1472 ferro sobre o tampo da mesa, colocando sobre elas o pavão:
por Johannes Nicolai de Verona (e da qual há o ferro deve atravessá-lo da cabeça à cauda, permanecendo,
uma incompleta na Biblioteca do Vaticano). É contudo, invisível. Neste comenos, pode-se introduzir lã e
omitida na tradução de Ramusio para a edição cânfora no bico da ave e pegar-lhe lume. (Gallio não gosta
milanesa de 1483, pelo que Leonardo da Vinci de o fazer porque tem realmente medo do fogo). É altura de
a deve ter copiado da edição original poste- fingir que se está a trinchar o pavão para os convidados,
riormente a 1497, quando autodidacticamente mas o que na realidade vós lhes ireis servir é carne de
se propôs aprender latim - a menos que, é pavoas, cozinhadas em segredo e ao mesmo tempo que o macho,
claro, um amigo se tenha prestado a traduzi-la cuja carne é, porém, mais macia e por isso mais aceitável
antes dessa data. para os nossos convidados. Não é aconselhável o consumo de
pavões a quem sofra do fígado ou do baço. A carne é pesada
e não muito nutritiva.
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/Uma para depenar patos /Uma para cortar um porco em cubos /Uma
para fazer puré /Uma para triturar um porco /Uma para extrair os
sucos a um carneiro. Como devo, porém, accioná-las? A vento ou a
água? Rodas dentadas e manivelas? Bois ou camponeses?
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Os apontamentos de cozinha redigidos por Leonardo da Vinci e compilados de modo


a constituírem o Codex Romanoff estão longe de abordar todos os alimentos e
pratos disponíveis no seu tempo. Tudo leva a crer que apenas apontava, arbi-
trariamente, aquilo que despertava o seu interesse. As “suas” receitas são de
outros, não foram inventadas por ele – excepto no que toca à causa, totalmente
perdida, da Nouvelle Cuisine. A maior criatividade é revelada pelas suas ob-
servações sobre cozinhar e o comer e, sobretudo, pelos projectos de alterações
às cozinhas. A comida em Milão e, na verdade em toda a Itália, durante os em
que Leonardo da Vinci registou estes apontamentos nos seus cadernos (e cuja
maioria se situa entre 1481 e 1500), só pode ser descrita como absolutamente
execrável. Os dias das “línguas de rouxinol”, dos “ovos de avestruz mexidos”,
dos “porcos recheados com chouriço de sangue e tordos vivos”, os dias de gusa
do Império Romano, há muito que pertenciam ao passado. A alimentação era “gó-
tica” (querendo isto dizer que fora introduzida em Itália pelos Godos). Os
ricos comiam uma profusão de carnes e de aves, os pobres alimentavam-se de
Polenta, ou nalguns casos, de sopas espessas e de papas de trigo. Quase tudo
salpicado por grandes quantidades de especiarias (ou melhor, de ervas aro-
máticas) incluindo a polenta. A maior parte dos legumes e tubérculos já era
conhecida – embora ainda não a batata, o tomate, qualquer das outras plantas
e frutos descobertos no Novo Mundo, e que só se tornariam, populares na Euro-
pa no século XVII. Havia sal, pimenta e especiarias, queijos e pão (embora o
pão branco fosse uma verdadeira raridade), o adoçante era o mel, como sempre,
e não o açúcar (embora houvesse cana de açúcar na Sícilia). Quase sempre, o
vinho era misturado com água ou com mel, ou até com ambos. Era vulgar a água
potável ser um bem raro, apenas acessível a partir de aquedutos ou
aguadeiros. A aguardente, destilada e vendida nas boticas, servia
com medicamento para os que apanhavam a peste. O chá, o café e o
chocolate não eram ainda conhecidos. Os utensílios de cozinha mais
vulgares eram o pilão e o almofariz: praticamente toda a carne,
peixe e criação eram esmagados até atingirem a consistência de
uma pasta fina, que depois era passada por uma peneira e, por fim,
misturada com mel e arroz (para render mais). Os alimentos eram
dispostos sobre uma base de pão ázimo que, no fim, também era comido
ou, como acontecia em algumas das casas mais abastadas, dado aos
cães ou aos pobres. Os pobres só comiam uma vez, a meio do dia.
Os ricos tomavam uma refeição leve entre as nove e as dez da manhã
e deixavam o repasto principal para o fim da tarde. Entretanto, se
quisermos ver as coisas pelo lado positivo, o esturjão era, nessa
época, o peixe mais vulgar no Mediterrâneo e, assim sendo, nunca
faltava caviar aos pobres.
Considerando as funções desempenhadas por Leonardo da Vinci
quando redigiu estes apontamentos (“Mestre de Festas e Banquetes”
na corte dos Sforza) é perfeitamente compreensível que tenham um
tom de superioridade, que lhe era conferido por uma casa imensa-
mente rica. Assim, não é de espantar que, sendo caviar um alimento
tão “vulgar”, não apareça mencionado nas suas receitas. A consi-
deração que Leonardo da Vinci demonstra pelo caviar é ainda menor
do que pela polenta.
As principais pessoas que Leonardo da Vinci refere nos seus apon-
tamentos são:

O Meu Senhor Ludovico: Ludovico Sforza, Il Moro, governador de Mi-


lão, patrono de Leonardo da Vinci de 1481 a 1499 e, após a morte do
inepto irmão mais novo, Giancarlo, em 1495, tambÈm Duque de Milão.
/A Minha Senhora Beatrice: Beatrice D’Este, que casou com Ludovico
Sforza em 1493. /Salai: Discípulo-criado de Leonardo da Vinci a
partir de 1490 (cujo verdadeiro nome era Gian Giacomo Caprotti di
Oreno). /Battista: Cozinheira de Leonardo da Vinci.
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Notas de cozinha de Leonardo Da Vinci
1º Idição Abril 2012

titulo original
Codex Romanoff
autor
Leonardo Da Vinci
editora
Máquinas do Tempo
Avenida Calouste Gulbenkian
4460-268 Senhora da Hora
Matosinhos, Portugal

direcção de arte/ilustração
Pedro Mota
Revisão
Margarida Azevedo
impressão
Colorshow
copyright© 2012
All rights reserved.

Depósito Legal: 187 845/02


ISBN 8501062790

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