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5.1.

3 Identificação e distribuição dos sons

Até agora analisámos realizações fonéticas de fonemas na perspectiva estrutural.


Também dissemos que a relação biunívoca entre fonemas e fones, nessa
perspectiva, não permitia compreender a inserção e a supressão de segmentos.
Para resolver este problema - e outros como, por exemplo, a relação entre
uma determinada realização fonética e o contexto que a determina -
estabeleceu-se, emjinguística generativa, um nível subjacente, que é abstracto
como o da fonologia estrutural mas que se relaciona com o de superfície por
meio de regras. É neste nível que se encontram os segmentos fonológicos de
cada língua organizados em sistema.

Para estabelecer o sistema fonológico de uma língua é necessário começar por


observar os dados fonéticos, determinando a sua identificação e distribuição.
Assim, para o estabelecimento do sistema fonológico do português torna-se
indispensável procurar as realizações fonéticas que correspondem a elementos
do sistema e as que correspondem a variações desses elementos. Utilizamos
para esta identificação o método dos pares mínimos._

Em (5) - (7) estão incluídas palavras que se relacionam por grupos e em que
ocorrem todas as vogais (acentuadas ou tónicas e não acentuadas ou atonas) e
todas as consoantes (em posição inicial, medial e final) do português.

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22 As transcrições fonéticas Vogais e consoantes do português europeu (nível fonético)22
correspondem ao dialecto de
Lisboa, e na quase totalida-
de ao dialecto de Coimbra, (5) Vogais orais
entendidos ambos como
constituindo o dialecto-£a-^ (a) Acentuadas (b) Átonaspré-tónicas
drão do português europeu.
Supõe-se, para estas trans-
crições fonéticas, uma pro- [í] silo [sflu] [i] mirar [mirar]
núncia pausada, mas não es-
pecialmente cuidada. Estão [é] selo [sélu] (N) [i] selar [silár]
incluídas nas transcrições
duas variantes regulares re-
sultantes do contexto foné- [é] selo [sélu] (V) [i] selar [siláf]
tico: a velarização do /!/ em
final de sílaba, representada
por [i], e a palatalização da
fricativa /s/ em final de síla- [e] telha [táfe] (dial. de Lisboa)
ba, representada por [J] ou
por [3] conforme a conso- [á] talha [táÁe] [E] talhar [teÁár]
ante que se segue ([f] se a
consoante não for sonora e
[3] se a consoante for sono-
ra). O acento de palavra nas
transcrições fonéticas está [o] bola [bate] [u] bolada
colocado sobre a vogal". O
alfabeto utilizado é o Alfa-
beto Fonético Internacional [ó] bola [bote]
(AFI). As palavras
exemplificativas das vogais [ú] bula[búte]
e consoantes do português
coincidem, na sua maioria,
com as apresentadas no ca-
pítulo 25 da Gramática da (c) Átonas pós-tónicas não finais23 (d) Átonas em posição final24
Língua Portuguesa.

[i] dívida [divide]

[u] cómoda [komud^] [u] bato [bátu]

[e] idólatra [idátetre] [e] bata [bate]

23 As vogais átonas pós-tó- [i] ómega [omige] [í] bate [bati]


nicas não finais não podem
ser determinadas a partir de
pares mínimos, por não exis-
tirem no português palavras (6) Vogais nasais25
que se distingam apenas por
esse segmento. Assim, os (b) Átonas pré-tónicas
exemplos de (c) servem para
(a) Acentuadas
indicar todas as vogais que
ocorrem nessa posição. [í] cinto [situ] cintar [sitáf]

24 A vogal [i] pode encon- [ê] sento [sêtu] sentar [sêtár]


trar-se em posição final em
algumas palavras importa- [Ê] canto [kftu] cantar [kètáf]
das ou cultas como táxi
[táksi] e júri [3Úri], sendo,
no entanto, excepcional esta [õ] mondo [mõdu] mondar [mõdár]
ocorrência. s
[u] mundo [múdu] mundial [múdiál]

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(7) Consoantes 25 Não existem vogais nasais
átonas pós-tónicas. A única
nasal átona em posição fi-
(a) Iniciais nal, [B], está sempre incluí-
da num ditongo, como em
pagem [pá3Èj], ditongo [èj],
M pala [pare] [b] bala [báre]
ou ór/ão[o'rfífw], ditongo
[B w].
M tom [to] [d] dom [do]

M calo [kálu] [g] galo [gálu]

[f] fala [fáre] [v] vala [vare]

[s] selo [sélu] [z] zelo [zélu]

[j] chá [Já] [3] já [3á]


[m] mata [mate] [n] nata [náte]

[1] lato [látu] [R] rato [Rátu]

(b) Mediais

[p] ripa NP*] [b] riba [RÍbB]

W lato [látu] [d] lado [ládu]

[k] rasca [Rájke] [g] rasga [Rá3gB

[f] estafa [jtáfe] [v] estava UtávB]

[s] caça [kásia] [z] casa DcázB]

[I] acha MM [3] haja [á3"e]

[1] mala [málB] M malha [máÁB]


[m] gama [goras] [n] gana [graiB]

[P] sanha [sifn*] [n] sana TÇTÍTII?!


|_í>tílloj

[f] caro [káru] N carro [káRu]

(c) Finais

[*] mal [mal]

[f] mar [mar]

[J] más [máj]

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26 Outras normas e dialectos Os grupos (5)-(7) incluem todas as vogais e consoantes do português europeu
do português possuem algu-
mas vogais e consoantes que que ocorrem no nível fonético do dialecto-padrão26.
não se encontram incluídas
nos grupos (5)-(7). De en-
tre elas devem destacar-se:
(a) [tf] e [ds] no português Semivogais (ou glides)
do Brasil (cf. 5.1.2);
(b) [tf], [13], [s], e [z], nos As semivogais ou glides que se encontram no nível fonético do português
dialectos setentrionais de
Portugal (ver a referência a (representadas por [j] e [w], [j] e [w]) constituem, com as vogais que as
estas consoantes como vari- antecedem, 'ditongoT^clrêscêlítes\Aslêrnivogais fonéticas têm características
antes dialectais em 5.1.1);
(c) a vibrante [r] que se pro- idênticas às das vogais [i] e [u], [t\ [ú], mas distinguem-se delas por terem,
nuncia com a coroa da lín- uma pronúncia mais breve, não poderem receber o acento de palavra nem
gua tocando várias vezes , ,, m-m— — u JJl-mJ-- .•up.ji.il. _^^..ii.-i.. ...

nos alvéolos e que se en- constituírem núcleo de sílaba. A existência de semivogais fonológicas tem
contra nos dialectos do Nor- sido muito discutida27. Em 5.1.4. propõe-se que apenas as semivogais que
te de Portugal e em alguns
sociolectos (esta consoante ocorrem em ditongos decrescentes correspondam a semivogais no nível
está em variação livre com fonológico, dado que somente nestes ditongos elas nunca podem ser
[R], ou seja, nos dialectos
em que ocorre uma, não pronunciadas como vogais mesmo numa fala pausada. A ocorrência de vogal
ocorre a outra); (d) [ú], e e semivogal no nível fonético está apresentada nos exemplos seguintes em
[ò], no dialecto de S.
Miguel, Açores. que se incluem todos os ditongos decrescentes do português europeu. Em
ditongos nasais, as semivogais são necessariamente nasalizadas.

27 Sobre a natureza das


semivogais, ver também a (8)
interpretação estruturalista
em Morais Barbosa (1994),
6.18. (a) Semivogais orais

G] [w]

[íw] viu

[éw] teu

[EJ] hotéis [éw] véu

rei [BW] saudade

[áj] vai [áw] vau

[áj] dói

[oj] coitado

[uj] cuidado

Como se pode verificar, as semivogais constituem ditongos orais com todas as


vogais, excepto nos seguintes casos: *[ij], *[ow], *[uw]. Os ditongos [ej] e
[ow] existem em dialectos do português europeu diferentes do dialecto-padrão,
e em dialectos brasileiros.

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(b) Semivogais nasais

01 [W]

[vj] mãe, bem [ifw] mão

[qj] propõe

[líj] muito

vogais e consoantes (fonotáctica do português)

No que respeita à distribuição fonética dos segmentos, observa-se que:

(a) Todas as vogais orais podem ser acentuadas, excepto a vogal [i].

(b) A vogal [i] ocorre entre consoantes (C-C) e em fim de palavra depois de
consoante (C—#), mas nunca no início de palavra. Em fala coloquial, esta
vogal é habitualmente suprimida.

(c) Em posição final não acentuada apenas se encontram três vogais, [B], [i]
e [u].

(d) As vogais nasais são em menor número do que as orais e não ocorrem
em sílaba pós-tónica, excepto nos ditongos de palavras como viagem
28 O limite de sílaba indica-
[viá3Bj], ditongo [BJ], ou órgão [dfgtw], ditongo [£w] ou, ainda, nas se aqui com um traço (-) mas
terceiras pessoas do plural dos verbos, como falem [fárèj] Q falam [fárêw]. pode indicar-se com o sím-
bolo ($) ou com um ponto
(e) O maior número de consoantes ocorre em posição medial.
29Ou vozeada, ver vozea-
(f) As consoantes que se encontram em fim de palavra são apenas [f], [i] e mento em 5.2.2.
[j]. No que respeita a estas consoantes, verifica-se que:

- [r], além de terminar palavra ou sílaba, também pode iniciar sílaba 30 Se a sequência tiver uma
(p.&x.par [par] l paro [pá-ru]); ordem contrária, ou seja,
semivogal e vogal, consti-
tui-se um ditongo crescente
- [i] apenas se encontra em final de palavra ou de sílaba (p.ex. cal [kál] próprio de um registo colo-
e caldo [kái-du]). quial rápido. Neste caso, a
semivogal é pronunciada
como vogal na fala pausa-
- [j] encontra-se em final de palavra, mas em fim de sílaba28 alterna da, resultando daí uma se-
com [3] conforme a sonoridade da consoante que se lhe segue (p.ex. quência de duas vogais e,
portanto, a ocorrência de
[J], não-sonora29, ocorre em rasca [RáJ-kç] ou em suspiro [suj-píru] duas sílabas (exs: miúdo
porque as consoantes seguintes, [k] e [p] são não-sonoras; [3], sonora, [miúdu] / [mjúdu], piar
[piar / pjár]). A sequência
ocorre em rasga [Rá3-gB] ou em Lisboa [li3-bÓB] porque [g] e [b] são de duas vogais que não se-
sonoras). jam pronunciadas como di-
tongo crescente na fala co-
loquial é pouco frequente
(g) No grupo (8) encontram-se ditongos decrescentes formados por vogal e em português e denomina-
semivogal30 se hiato (ex. boa [bóe]).

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(h) Nas sequências de consoantes de vem distinguir-se: ; -c '•

- as consoantes que terminam sílaba [f ,i,j*] e que, por isso, são seguidas
de outras sem constituírem, no entanto, um grupo (exs. carta, [f-t];
remorso, [r-s]; marcha [f-J], pulso, [i-s], paira, [Í-R]; testa [J-t];
molusco [[-k]);

- duas consoantes sucessivas que pertencem à mesma sílaba e que formam


um grupo próprio constituído, como se disse atrás, por uma consoante
oclusiva e uma líquida (exs. encontro, [tf], sobre, [bf], claro, [kl], plural,
.,: .': [Pl]). - , , r ; ; . - ^ - ~ : ^ . . : - . v , - U - V r / , , :,— ^ ^ < • "

Finalmente, se estabelecermos uma comparação entre as vogais acentuadas


(tónicas) e as vogais não-acentuadas em três posições (pré-tónicas, pós-tónicas
e finais átonas), classificando-as como altas, médias e baixas, verificamos que
as vogais em posição acentuada são em maior número e distribuem-se pelas
três alturas, enquanto as vogais finais são as menos numerosas.

Quadro l

Tónicas Pré- e Pós-tónicas não finais Finais

altas i u i i u i u

médias e o

baixas e a o u E

5.1.4 Como estabelecer os segmentos fonológicos

O nível fonológico, ou seja, o nível subjacente das realizações fonéticas, é um


nível abstracto", construído a partir (i) da análise dos dados fonéticos e da
formulação de hipóteses para estabelecimento dos segmentos que correspondem
a esses dados e (ii) da análise e interpretação dos processos a que estes
segmentos estão sujeitos.

A formulação de hipóteses para o estabelecimento dos elementos do sistema


fonológico baseia-se em princípios metodológicos e na observação das
realizações fonéticas.

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