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CARTAS A QUEM SE DEDICA A ENSINAR:

EXPERIÊNCIAS DE PROFESSORAS E GESTORAS


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LIGIA DE CARVALHO ABÕES VERCELLI
NÁDIA CONCEIÇÃO LAURITI
(ORGANIZADORAS)

CARTAS A QUEM SE DEDICA A ENSINAR:


EXPERIÊNCIAS DE PROFESSORAS E GESTORAS

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Copyright © Autoras e autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e
dos autores.

Ligia de Carvalho Abões Vercelli; Nádia Conceição Lauriti [Orgs.]

Cartas a quem se dedica a ensinar: experiências de professoras e


gestoras. São Carlos: Pedro & João Editores, 2024. 94p. 14 x 21 cm.

ISBN: 978-65-265-0886-2 [Impresso]


978-65-265-0887-9 [Digital]

1. Cartas. 2. Profissional da educação. 3. Experiência docente. 4. Educação


Infantil. I. Título.

CDD – 370

Capa: Luidi Belga Ignacio


Ficha Catalográfica: Hélio Márcio Pajeú – CRB - 8-8828
Revisão: Zaira Mahmud
Diagramação: Diany Akiko Lee
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil);
Hélio Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil);
Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello
(UFSCar/Brasil); Ana Cláudia Bortolozzi (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela
Lima de Almeida (UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol
Barenco de Mello (UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luís
Fernando Soares Zuin (USP/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 – São Carlos – SP
2024

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APRESENTAÇÃO

A presente obra é fruto de estudos do Grupo de


Pesquisa sobre Educação Infantil e Formação de
Professores (Grupeiforp), coordenado pela Professora
Doutora Ligia de Carvalho Abões Vercelli, vinculado ao
Programa de Pós-Graduação Profissional Gestão e
Práticas Educacionais (Progepe) da Universidade Nove de
Julho (Uninove). Desde o início deste grupo, em 2015, os
participantes publicaram várias obras1, todas voltadas às

1VERCELLI, Ligia de Carvalho Abões; STANGHERLIM, Roberta (org.).


Formação de professores e práticas pedagógicas na Educação Infantil.
Jundiaí: Paco Editorial, 2015.
VERCELLI, Ligia de Carvalho Abões; STANGHERLIM, Roberta (org.).
Gestão e docência: formação continuada para educar crianças de 0 a
10 anos. v. 1, São Paulo: Porto de Ideias, 2016.
VERCELLI, Ligia de Carvalho Abões; STANGHERLIM, Roberta (org.).
Ensinar e aprender na educação de crianças: formação e práticas
docentes. v. 2. São Paulo: Porto de Ideias, 2016.
VERCELLI, Ligia de Carvalho Abões; STANGHERLIM, Roberta (org.).
Educação de crianças: temas de pesquisa e intervenção em debate. v.
3. São Paulo: Porto de Ideias, 2016.
VERCELLI, Ligia de Carvalho Abões; ALCÂNTARA, Cristiano Rogério.
Práticas pedagógicas e a formação continuada na Educação Infantil I.
v. 1. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.
VERCELLI, Ligia de Carvalho Abões; ALCÂNTARA, Cristiano Rogério.
Práticas pedagógicas e a formação continuada na Educação Infantil II.
v. 2. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.
VERCELLI, Ligia de Carvalho Abões; ALCÂNTARA, Cristiano Rogério.
Temas fundamentais na escola da infância. v. 3. Jundiaí: Paco
Editorial, 2017.
VERCELLI, Ligia de Carvalho Abões; ALCÂNTARA, Cristiano Rogério
Fazeres de professores e de gestores da escola da infância.: reflexões
sobre cenas do cotidiano. Jundiaí: Paco Editorial, 2019.
VERCELLI, Ligia de Carvalho Abões; RUSSO, Adriana, S. Limites e
possibilidades de escuta na Educação Infantil. Jundiaí: Paco Editorial,
2021.

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práticas pedagógicas e formação de professores desta
primeira etapa da educação básica.
Na presente publicação, pensamos em conceber um
livro dirigido aos professores e às professoras, relatando
experiências do contexto escolar de docentes e gestoras
que se encontram no “chão da escola” há muitos anos.
Apoiadas nas diversas cartas escritas pelo nosso maior
expoente da educação nacional, Paulo Freire, como
Cartas à Cristina; Professora sim, tia não: cartas a quem
ousa ensinar; Pedagogia da indignação: cartas
pedagógicas e outros escritos; Cartas à Guiné-Bissau;
Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa, entre outros, resolvemos nos atrever a escrever
cartas aos/às educadores/as, relatando nossas experiências
e como elas reverberam no cotidiano escolar apontando
os limites e as possibilidades deste ofício, para que vocês
possam avaliar a difícil, mas gratificante, jornada de quem
se dedica a ensinar.
Desse modo, nasce a presente obra intitulada Cartas
a quem se dedica a ensinar: experiências de professoras e
gestoras, organizada em treze cartas, a saber: A incrível
jornada de ser professor, de Amanda Maria Franco
Liberato; Uma carta de apoio e reconhecimento aos
educadores de crianças pequenas, de Elaine Carla Sartori
Guedes; A contribuição da epistemologia genética na
formação de professores, de Ligia de Carvalho Abões
Vercelli; Em busca de infâncias desemparedadas e
rodeadas de experiências com e na natureza, de Amanda
Loureiro de Oliveira; A educação física na escola da
primeira infância. de Ana Paula Hernandes;
Ressignificando o brincar: desafios e oportunidades na
educação infantil pós pandemia, de Lidiane dos Reis

VERCELLI, Ligia de Carvalho Abões;; LAURITI, Nádia Conceição.


Memórias de escolarização e de profissionalização: da professora que
tive à profissional que me tornei. Jundiaí: Paco Editorial, 2022.

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Santos Amorim; Filosofia para crianças: educação para o
pensar, de Rosemeire Fernandes; Todo cuidado é
educativo, de Valéria Pasetchny; Da docência à
coordenação pedagógica: que caminhos trilhar?, de Aline
da Silva Grenfell; Carta aos futuros coordenadores
pedagógicos, de Vanilda Pereira Nunes de Sousa; A
potência da documentação pedagógica em meio à
narrativa de viagem à escola "Jardín Fabulinus", na
Argentina, de Adriana da Costa Santos; A arte da escrita
de cartas pedagógicas como estratégia inspiradora e eficaz
nos processos formativos, de Nádia Conceição Lauriti;
Construindo memórias por meio da escrita, de Tatiana
Nogueira Alves.

Boa leitura!

Ligia de Carvalho Abões Vercelli


Nádia Conceição Lauriti
Organizadoras

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SUMÁRIO

11 PRIMEIRA CARTA
A INCRÍVEL JORNADA DE SER PROFESSOR
Amanda Maria Franco Liberato

17 SEGUNDA CARTA
UMA CARTA DE APOIO E RECONHECIMENTO
AOS EDUCADORES DE CRIANÇAS PEQUENAS
Elaine Carla

23 TERCEIRA CARTA
A CONTRIBUIÇÃO DA EPISTEMOLOGIA
GENÉTICA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Ligia de Carvalho Abões Vercelli

29 QUARTA CARTA
EM BUSCA DE INFÂNCIAS DESEMPAREDADAS E
RODEADAS DE EXPERIÊNCIAS COM E NA
NATUREZA
Amanda Loureiro de Oliveira

35 QUINTA CARTA
A EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DA PRIMEIRA
INFÂNCIA
Ana Paula Hernandes

39 SEXTA CARTA
RESSIGNIFICANDO O BRINCAR: DESAFIOS E
OPORTUNIDADES NA EDUCAÇÃO INFANTIL PÓS-
PANDEMIA
Lidiane dos Reis Santos Amorim

49 SÉTIMA CARTA
FILOSOFIA PARA CRIANÇAS: EDUCAÇÃO PARA O
PENSAR
Rosemeire Fernandes

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55 OITAVA CARTA
TODO CUIDADO É EDUCATIVO
Valéria Pasetchny

61 NONA CARTA
DA DOCÊNCIA À COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA
– QUE CAMINHOS TRILHAR?
Aline da Silva Grenfell

67 DÉCIMA CARTA
CARTA AOS FUTUROS COORDENADORES
PEDAGÓGICOS
Vanilda Pereira Nunes de Sousa

73 DÉCIMA PRIMEIRA CARTA


A POTÊNCIA DA DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA
EM MEIO À NARRATIVA DE VIAGEM À ESCOLA
"JARDÍN FABULINUS", NA ARGENTINA
Adriana da Costa Santos

81 DÉCIMA SEGUNDA CARTA


A ARTE DA ESCRITA DE CARTAS PEDAGÓGICAS
COMO ESTRATÉGIA INSPIRADORA E EFICAZ NOS
PROCESSOS FORMATIVOS
Nádia Conceição Lauriti

87 DÉCIMA TERCEIRA CARTA


CONSTRUINDO MEMÓRIAS POR MEIO DA
ESCRITA
Tatiana Nogueira Alves

91 SOBRE AS AUTORAS

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PRIMEIRA CARTA

A INCRÍVEL JORNADA DE SER PROFESSOR

Prezados colegas,

Espero que estejam bem e com saúde. Afinal,


sobrevivemos à pandemia da Covid-19, um grande
privilégio diante de tantas histórias tristes que
vivenciamos nos últimos três anos.
A pandemia foi uma experiência que me fez refletir
sobre diferentes aspectos da vida, inclusive a minha
escolha pela docência. E, revisitando minhas memórias,
percebi o quanto sou feliz em ser professora.
Não posso dizer que escolhi a docência, ela me
escolheu. Inicialmente queria ser médica. Você deve estar
se perguntando: por que então não fez medicina? Seria o
caminho mais fácil, mas eu te respondo. Porque não
queria ser médica e, sim, ministrar aulas para os médicos.
E após três tentativas frustradas no vestibular para
Medicina, entendi que a minha vocação estava voltada
para a docência e, incentivada pela minha mãe pedagoga
e minha avó (grande inspiração), iniciei a graduação de
Pedagogia.
Durante grande parte da minha infância, vi minha
mãe lecionar para crianças em fase de alfabetização e
lembro que me encantou vê-la alfabetizar cada uma
delas. Mas se você me perguntar se foi esse encantamento
que me levou a escolher a Pedagogia, te digo que não
tinha uma resposta naquele momento, só após o terceiro
semestre de graduação, cursando a disciplina
Fundamentos da Alfabetização, compreendi a dimensão

11
de ser professora alfabetizadora somadas às lembranças
de minha mãe lecionando.
Hoje, dezesseis anos depois, tenho o desafio de
escrever esta carta para vocês, estudante de Pedagogia e
docente, pois quero reafirmar que para ser professor não
basta gostar de criança. Claro que é importante, mas é
preciso ir além. É preciso ter brilho nos olhos quando uma
delas aprende algo novo. E, elas aprendem todos os dias,
e nós também. É preciso se colocar no lugar das crianças,
demonstrar empatia para as que ainda têm dificuldade e
acolhê-las em suas necessidades.
Afinal, somos tatuadores que deixamos marcas na
vida de cada criança que passou e passa pelas nossas salas.
E qual tatuagem você quer “desenhar” em cada vida que
passar por você? Tatuagens de memórias felizes ou
marcas que geraram certo tipo de trauma?
É imprescindível ter um compromisso ético-estético-
político-profissional com cada uma delas. Somos
responsáveis por cerca de trinta bebês e crianças a cada
ano, em cada turma que lecionamos. E, isso é um assunto
muito sério. Não podemos negá-los o direito à
aprendizagem e ao desenvolvimento, seja ele em
qualquer etapa da vida escolar.
Acolham, ensinem, demostrem afetividade para os
que normalmente não enxergaríamos. Ali há grandes
escritores, autores, médicos, engenheiros, jornalistas,
advogados, professores, entre tantas potencialidades que
por vezes são esquecidas atrás de um rótulo: “Ah, ele é
difícil, bagunça demais!”; “Não presta atenção, assim não
vai aprender nada!”. Seja aquele que fará a diferença na
vida destes bebês e crianças.
A pandemia revelou seu lado mais cruel ao tornar
explícito um número alarmante de bebês e crianças
vítimas da vulnerabilidade social e da violência doméstica
e, são estes “(in)visibilizados” na sociedade que temos o

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dever de ensinar a brilhar. E brilhar aqui é lhes possibilitar
aprender a ler, a escrever, a desenvolver noções
matemáticas, a ter acesso a livros, filmes e tantas outras
produções artísticas de qualidade, a fim de que tenham
autonomia para serem autores de suas próprias histórias.
Temos em nossas mãos a possibilidade de
empoderar ou destruir toda uma geração. Por isso, é
imprescindível compreender a dimensão de ser professor.
É fundamental estudar, participar de cursos e formações
que contribuam com seu fazer pedagógico, propiciando
a troca de saberes com outros tantos educadores que
dividem com você a tarefa de ensinar e aprender.
Aprendi ao longo dos anos que a frase do filósofo
grego, Sócrates, “Só sei que nada sei” faz muito sentido
no cotidiano escolar, uma vez que é fundamental que
possamos ampliar nosso olhar à medida que conhecemos
cada turma, cada bebê e criança, a fim de oportunizá-los
novas formas de aprendizagem, respeitando suas
especificidades e necessidades.
Não há uma receita (ou atividade) pronta, e sim,
vivências que possibilitamos aos nossos bebês e crianças
de forma a auxiliá-los no processo de ensino e
aprendizagem. Processo esse que abrange a
multiplicidade de experiências e valores que
incorporamos ao longo do tempo, envolvendo os
aspectos socioemocionais, culturais, psíquicos, físicos e
cognitivos.
A Constituição Federal, promulgada em 1988, em
seu artigo 205, afirma que “A educação, direito de todos
e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho.”

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Porém, nos dias de hoje, entendemos que para além
da igualdade de oportunidades, é preciso que os sistemas
educacionais, enxerguem também pelo conceito de
equidade, reconhecendo que vivemos em um país
multicultural.
Desta maneira, à luz do princípio da equidade,
precisamos reduzir as brechas que impedem o
desenvolvimento integral de bebês e crianças, não
permitindo que muitas delas tenham seus direitos
negados por questões socioeconômicas, físicas,
intelectuais, de gênero, étnico-raciais, de idade, religiosas,
ou por terem nascido em um território específico.
É parte inerente do nosso fazer pedagógico
promover uma prática pedagógica de qualidade,
garantindo a igualdade na diversidade e respeitando o
direito de aprendizagem de todos e todas.
Neste momento, convido você a relembrar sua
trajetória escolar. Suas potencialidades e habilidades
foram evidenciadas na escola ou você não foi incentivado
a desenvolvê-las? Qual professor ou professora que fez
parte de sua vida escolar o/a marcou positiva e
negativamente? Faz parte deste processo de reflexão.
Quando olharem para os rostos de cada bebê e
criança na primeira turma da qual for professor regente,
pense o tipo de lembrança que gostaria que eles tivessem
de você.
Planeje suas aulas como se você fosse um deles que
vivenciaria cada uma de suas propostas/experiências/
atividades. Elas são atrativas? Ou você oferece mais do
mesmo? Contribuem para o desenvolvimento integral,
favorecendo todas as suas potencialidades? Ou apenas
reproduz o que está posto, desconsiderando as
especificidades e necessidades de cada um?
Estas perguntas precisam permear nosso cotidiano,
para buscarmos ser melhores a cada dia. Pode parecer

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utópico, e em grande parte é. Mas não podemos
continuar errando após entendermos que há práticas
equivocadas, que não desenvolvem sujeitos críticos e
autônomos como desejamos.
A transição da Educação Infantil para o Ensino
Fundamental I precisa ser olhada com carinho. As crianças
que chegam aos 6 anos nas salas de primeiros anos não
mudam só porque trocou de sala/escola. Aliás, até os
doze anos incompletos (ECA, 1990), continua sendo uma
criança e não podemos nos esquecer disso.
Chamá-los de aluno ou criança não é a questão, o
problema está na concepção da palavra. Aluno é aquele
que nos remete a educação bancária, tão bem definida na
obra de Paulo Freire (aliás, leitura importante para vocês
que estão iniciando na carreira docente) então,
precisamos enxergar para além de uma nomenclatura.
Eles continuam sendo crianças e também precisam de
estímulo, de brincadeira, de socialização, aprender a ler e
a escrever, tudo de forma lúdica para que seja
significativo.
Finalizo esta carta recordando as palavras do autor
Pedro Bandeira em uma palestra na qual afirmou que não
há como ensinar uma criança a ler, sem lhe possibilitar o
acesso aos livros, e principalmente, livros de qualidade.
Nós, educadores, temos o dever de ensiná-los a ler e
escrever, e, mais do que isso, temos o dever de aguçar em
cada uma delas o gosto pela leitura e pela escrita.
Espero um dia conhecer você em alguma escola, em
algum curso ou alguma formação para que possamos
compartilhar as impressões desta leitura!

Até breve
Amanda Maria Franco Liberato

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SEGUNDA CARTA

UMA CARTA DE APOIO E RECONHECIMENTO AOS


EDUCADORES DE CRIANÇAS PEQUENAS

Caro(a) Futuro(a) Educador(a),

Espero que esta carta o(a) encontre com o


entusiasmo e a dedicação necessários para ingressar em
uma das mais significativas e encantadoras jornadas
profissionais: ser um(a) educador(a) de crianças
pequenas.
Há alguns anos nessa linda jornada educacional,
posso garantir que nada é finito e estanque, nem no
ensino, nem na aprendizagem, principalmente quando
falamos da infância, em que quase tudo é processo de
grandes descobertas. Um desvendar constante, tanto para
a criança quanto para o(a) adulto(a) que a cerca.
Nessa longa caminhada ao lado desses pequeninos,
infinitas experiências puderam ser vivenciadas, sentidas e
observadas por mim. Impossível seria destacar apenas
uma, dentre tantas especiais que permearam o meu
caminho de docente. Contudo, se me permite, gostaria de
compartilhar com você, algumas noções que julgo
importantes; destacadas no meu caderninho de anotações,
com base nas experiências de andanças com as crianças.
Experiências específicas, considerando as singularidades e
fases de desenvolvimento desses seres tão especiais.
Antes de tudo, permita-me expressar minha
admiração por sua escolha de seguir a carreira docente.
Ser educador(a) de crianças pequenas é uma das tarefas
mais gratificantes e desafiadoras que você poderá
assumir; com a certeza de que você possui o potencial

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para fazer a diferença na vida desses pequenos que estão
no início de suas jornadas de aprendizado e descoberta e
é você quem terá a responsabilidade de ajudá-los a
desvendar o mundo ao seu redor.
Lembre-se de que, como educador(a), você poderá
impactar profundamente a vida das crianças que te
cercarem. Isso se chama transformar vidas através da
educação, pois ela não se limita a transmitir
conhecimento, mas também a desenvolver o caráter,
despertar paixões e inspirar sonhos.
Cada criança é única e traz consigo um potencial
imensurável. Cada uma possui características individuais
que influenciam sua forma de aprender e interagir. É
essencial que você se dedique a compreender as
singularidades de cada criança em todos os ambientes da
escola. A Algumas podem ser mais tímidas, enquanto
outras podem ser extrovertidas; algumas podem
aprender melhor através da música, enquanto outras
preferem atividades práticas. Ao abraçar a diversidade
das crianças, você estará construindo um ambiente
acolhedor e inclusivo para que elas se sintam à vontade
para explorar, expressar-se e aprender.
Na escola, desde a primeiríssima infância,
perpassando pela Educação Infantil, adentrando ao
Ensino Fundamental ou até que a criança conclua a etapa
toda que chamamos de infância2, as habilidades
cognitivas, motoras, sociais e emocionais evoluem
rapidamente. Elas passam por diversas fases de
desenvolvimento e é crucial que você esteja ciente disso
para elaborar as propostas pedagógicas que venham ao
encontro das etapas de desenvolvimentos de cada uma.
Em contrapartida, para além das fases de
desenvolvimento das crianças, considerando que o

2Aqui consideramos 12 anos de idade incompletos, segundo o Estatuto


da criança e do adolescente (ECA, 1990).

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cenário educacional está em constante mudança, onde
novas tecnologias e abordagens pedagógicas emergem
rapidamente, mais uma vez esteja preparado(a) para uma
adaptação constante. Esteja preparado(a) para identificar
e atender às necessidades específicas de cada etapa, com
propostas e desafios adequados ao desenvolvimento
individual de cada criança. Mantenha-se aberta a
aprender. O conhecimento evolui e ser um(a)
educador(a) requer a capacidade de se atualizar
constantemente, trazendo inovação e métodos de ensino
diversificado.
Ah! O aprender brincando! Brincar é a essência do
aprendizado na infância. Através de jogos, atividades
lúdicas e exploração, as crianças desenvolvem habilidades
fundamentais, como resolução de problemas,
criatividade e cooperação. Aproveite esse poderoso
recurso no cotidiano escolar, permitindo que as crianças
aprendam de maneira natural e prazerosa.
Os tempos modernos trazem consigo desafios únicos
para as crianças, incluindo questões emocionais e sociais.
Desenvolva empatia e pratique a escuta ativa,
mostrando-se sempre disponível para apoiar e entender
as dificuldades enfrentadas por esses pequenos.
Um ambiente de confiança é fundamental para um
aprendizado significativo. A isso podemos chamar de
ambiente afetivo e seguro. Para que as crianças pequenas
possam se desenvolver plenamente, é essencial que se
sintam seguras e amadas. Crie um ambiente afetivo e
acolhedor em sua sala referência, onde elas se sintam à
vontade para expressar suas emoções e compartilhar suas
descobertas. O vínculo de confiança entre educador(a) e
criança é o alicerce para um aprendizado significativo e
duradouro.
Incentive a curiosidade e a imaginação dos
pequeninos. Permita que eles explorem e descubram o

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mundo ao redor. Estimule a criatividade através de
projetos, debates e atividades práticas. Fomente a
curiosidade e a criatividade em um ambiente que
encoraje a busca pelo conhecimento de forma lúdica e
instigante a fim de que seja transformador para os
pequenos.
A documentação pedagógica pode ser sua grande
aliada, se for visualizada como facilitadora da sua
jornada. Ninguém consegue guardar tudo na memória,
depois de muitos anos, você nem vai querer gravar mais
nada e poderá conferir que a observação e o registro,
quando exercitada dia a dia, te garante as nuances
necessárias para recalcular rotas, se necessário. Esteja
atento(a) à observação constante das crianças. Por meio
dela, você poderá identificar seus interesses, progresso e
desafios individuais. Registre suas observações para
acompanhar o desenvolvimento de cada criança ao
longo do tempo, com isso você conseguirá adaptar sua
prática educacional de forma personalizada.
Não existe educação sem parceria. A primeira delas
diz respeito aos pais e responsáveis. O envolvimento
deles em todo o processo educacional é vital para o
sucesso educacional das crianças pequenas. Mantenha
uma comunicação ativa com as famílias, compartilhando
informações sobre o progresso e as conquistas das
crianças. Ao envolver a família na jornada de
aprendizado de seus/suas filhos(as), você estará criando
uma poderosa rede de apoio e suporte.
Podemos dizer que a segunda parceria diz respeito a
educação como uma jornada coletiva e o trabalho em
equipe é essencial. Converse e troque experiências com
outros(as) educadores(as), participe de grupos de estudo
e eventos educacionais. A colaboração com colegas de
profissão pode enriquecer sua prática e abrir novas
possibilidades.

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Haverão momentos desafiadores e situações que
testarão sua resiliência. Entretanto, nunca se esqueça do
motivo que o(a) levou a abraçar a profissão de
educador(a). O amor pela educação e pela sua
capacidade de impactar vidas deve ser a força motriz que
o(a) impulsiona a superar os obstáculos.
Ser um(a) educador(a) de crianças pequenas é
abraçar a oportunidade de fazer diferença no presente e
no futuro de todas que passarem por você. Seu papel na
construção de bases sólidas para o desenvolvimento
integral delas, na formação de cidadãos e na construção
de um futuro melhor é de valor inestimável.
E lembre-se cuide de si mesmo(a). Nunca se esqueça
que você é um ser humano antes de ser um(a)
educador(a). Cuide da sua saúde física e mental, busque
equilíbrio entre o trabalho e o descanso. Uma mente
saudável é fundamental para proporcionar uma
experiência positiva nos pequenos.
Tenha em mente que, mesmo diante dos desafios, a
carreira de educador(a) é uma das mais importantes e
gratificantes que alguém pode escolher.
Desejo-lhe muito sucesso, sabedoria, paciência,
alegria e realização nesta jornada para enfrentar os
desafios e celebrar as conquistas.
Que você seja um(a) educador(a) inspirador(a) e
apaixonado(a), que deixa um legado positivo na vida de
muitas crianças e que ao se dedicar a esse ofício possa
plantar sementes que floresçam e transformem o mundo.

Cordialmente,
Professora Elaine Carla Sartori G. de Oliveira

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TERCEIRA CARTA

A CONTRIBUIÇÃO DA EPISTEMOLOGIA GENÉTICA


NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Prezados colegas,

Minha motivação para escrever esta carta surgiu em


função de minha discordância com alguns pesquisadores
que insistem em “jogar o bebê com a água do banho” no
que se refere aos aportes da Psicologia do
desenvolvimento para a prática pedagógica cotidiana.
Explico: Tenho lido e ouvido muitos profissionais
afirmando que essa área do conhecimento coloca a
criança “dentro da caixinha”, desconsiderando os
aspectos sociais, culturais e emocionais que as circundam.
Minha indignação a esse respeito é total, pois em
nenhum momento esses aspectos foram menosprezados
pela Psicologia do desenvolvimento. Para que vocês
entendam é necessário ressaltar que o desenvolvimento
engloba os aspectos físico, emocional, social, cognitivo,
motor, linguagem etc, portanto, entende o homem
como um ser biopsicossocial, inserido em uma
determinada cultura.
Como educadora e psicóloga não consigo conceber
educadores que trabalham diretamente com bebês,
crianças e adolescentes e desconheça como ocorre o
desenvolvimento humano, suas características em cada
etapa da vida, uma vez que esse profissional lida
diretamente com o processo de ensino e de
aprendizagem. Como, por quê e o quê ensinar? Como o
bebê, a criança e o adolescente aprendem? Quais são as

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alterações e mudanças internas que o ser humano se
depara?
Vale lembrar que um bebê, uma criança e um
adolescente aprendem quando eles são afetados
positivamente, assim, não podemos menosprezar seus
conhecimentos prévios e muito menos seus recursos
emocionais, pois cognição e emoção formam um par
inseparável, dizia Wallon.
Pensadores como Sigmund Freud, Jean Piaget, Lev
Vygotsky, Henri Wallon, Erik Erikson, cada um à sua
época e com foco em um determinado objeto de estudo,
trouxeram contribuições fundamentais para o fazer
pedagógico cotidiano. Nesta carta abordarei as ideias de
Jean Piaget, por ser ele um autor muito criticado, pois
estabeleceu o desenvolvimento cognitivo em três
diferentes estágios, a saber: sensório-motor (0 a 2 anos);
pré-operatório (2 a 7 anos) e operatório (7 anos em
diante), este último dividido em dois: concreto (7 anos a
12 anos) e formal (12 anos até a morte). Meu objetivo é
explicar de forma genérica as principais características
desses estágios, de apontar a importância de estudá-los
para que, vocês professores, possam entender os bebês,
as crianças e os adolescentes que estão sob sua
reponsabilidade. Também é importante ter em mente
que as idades citadas acima podem variar de indivíduo
para indivíduo em função de seu contexto social e
cultural, assim, não são estáticas.
Antes de iniciar minha explanação gostaria de
enfatizar que um bebê de 4 meses não é igual a um bebê
de 6 meses, como não é igual a um bebê de 1 ano e este
difere de uma criança de 3 anos. Não são iguais, pois
existem singularidades biológicas e aquelas adquiridas no
meio no qual estão inseridas e porque o
desenvolvimento, principalmente o cognitivo não ocorre
de forma linear e sim por sucessão de eventos.

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Dito isto e voltando à Piaget gostaria de deixar claro
que uma professora e um professor que atua na Educação
Infantil está diante de crianças que se encontram no
estágio sensório-motor e início do pré-operatório.
Como o próprio nome diz, no estágio sensório-
motor, os bebês aprendem por meio dos sentidos e das
ações que estabelecem no meio social, a que Piaget
denominou inteligência prática. Portanto, a importância
de organizar os tempos e os espaços de forma que as
crianças possam interagir, pois “A inteligência humana
somente se desenvolve no indivíduo em função de
interações sociais que são, em geral, demasiadamente
negligenciadas” (PIAGET, 1967; In TAILLE, 1992, p. 11).
Diante de tal afirmação como dizer que Piaget entende o
desenvolvimento de forma endógena?
Além disso é necessário saber que uma criança no
estágio sensório-motor ainda não construiu a noção de
objeto permanente, ou seja, aquele objeto que ela não
vê, mas sabe que existe. Para um bebê de até mais ou
menos 9 meses, quando um objeto é retirado do seu
campo visual é como se ele deixasse de existir. Por isso,
eles gostam tanto das brincadeiras de esconder o rosto e
aparecer em seguida.
Outro conceito importante desse estágio é o de
causalidade – entender que os objetos do mundo
interagem entre si e causam efeitos, isto é, os eventos não
ocorrem como se fossem mágica, porém, o bebê de até
10 meses ainda não percebe esse fato. Por fim, a noção
de espaço também vai sendo construída e, aos poucos, o
bebê percebe que um objeto tem três dimensões. Um
exemplo é oferecer a chupeta do lado contrário ao bico
ao bebê; ele levará esse lado à boca.
No período pré-operatório a qualidade da
inteligência se modifica e não se caracteriza apenas pelas
ações no meio, mas pelas ações e representações mentais,

25
ou seja, a criança agora é capaz de apresentar um objeto
por meio de um substituto desse objeto. Pensar o mundo
por meio das imagens. Por exemplo, ela não precisa ver
uma árvore para poder desenhá-la, basta ter a imagem
mental desse objeto do conhecimento. Nesse estágio, em
função da representação mental, a criança realiza
brincadeira de faz-de-conta, pois ela interiorizou o papel
social que busca representar, exemplo, mamãe, papai,
professora, médico etc.
É muito comum, quando a criança desenha, colocar
olhos, boca, nariz nas árvores e no sol. Tal situação está
relacionada ao conceito de animismo, isto é, para a
criança os elementos naturais têm as mesmas
características que os seres humanos. Entenderam o
porquê elas adoram os desenhos animados nos quais o
fogo, a pedra e os bichos falam, cantam e dançam?
A competência discursiva da criança no estágio pré-
operatório dá um grande salto, portanto, a inteligência é
socializada, isso significa que ela consegue expressar seus
sentimentos, desejos e vontades por meio da linguagem
oral. Porém e talvez o mais importante de se saber deste
estágio é que a criança ainda não organiza o mundo de
forma coerente, pois seu pensamento é irreversível. Para
que vocês possam entender, darei um exemplo. Peçam
para uma criança de 4 anos subir uma escada e contar os
degraus. Chegando ao piso superior, peçam que ela desça
para verificar que há a mesma quantidade de degraus. Ela
contará novamente, pois não consegue anular a ação em
pensamento, ou seja, voltar ao ponto inicial.
Outra característica desse estágio é o egocentrismo,
ou seja, a criança é centrada nela mesma, e entende o
mundo sob seu ponto de vista. Exemplo: A criança fica
brava quando perde um brinquedo e pergunta ao
adulto: “Onde está o meu brinquedo?” Como ela sabe

26
de qual brinquedo se refere, entende que o adulto
também deva saber.
E o realismo nominal? Esse conceito é bem
interessante. Para uma criança que ainda se encontra no
estágio pré-operatório, é difícil entender que um adulto
maior que ela, possa ter um nome com poucas letras
(IVO; ANA), enquanto ela tem um nome com mais letras
(MARIANA; JOAQUIM). Imaginem os animais URSO e
FORMIGA. Caso perguntem às crianças onde elas acham
que está escrita a palavra formiga, provavelmente
apontarão a primeira, pois o nome é menor.
Até o segundo ano escolar, a criança ainda se
encontra no estágio pré-operatório, assim, os educadores
precisam ficar atentos, pois nem sempre as respostas para
determinada proposta pedagógica são as mesmas, uma
vez que há diferenças entre as crianças.
Ao completarem 7/8 anos, a inteligência das crianças
evolui, e agora, no período operatório-concreto, ela é
capaz de anular uma ação, assim, ao contar os degraus
para subir, a criança sabe que ao descer terá a mesma
quantidade, ou seja, o pensamento passa a ser reversível.
Aos 12 anos mais ou menos, o adolescente adentra
ao estágio operatório-formal. O pensamento é reversível,
mas nesse momento ele é capaz de abstrair e entender o
mundo por meio da lógica e das hipóteses. Nenhum ser
humano pula um estágio, mas é possível ver um adulto
com pensamento pré-operatório, pois faltou a ele a
possibilidade de desenvolver a inteligência em função de
várias questões. Isso mostra que a crítica feita à Piaget em
relação à questão endógena é completamente incoerente.
Diante do exposto, pergunto: como um professor
pode entender o processo de aprendizagem de uma
criança ou de um adolescente se ele desconhece conceitos
primordiais cunhados pela teoria piagetiana, sendo ele

27
um teórico que nos oferece explicações plausíveis sobre o
desenvolvimento cognitivo?
Piaget faleceu no ano de 1980, seus estudos foram
realizados em uma época na qual não havia internet,
celulares e computadores, portanto, não podemos ser
ingênuos a ponto de acharmos que a evolução da
inteligência humana permanece como foi cunhada pelo
autor, mas menosprezar uma teoria cujos estudos foram
realizados por mais de 50 anos, para mim é inadmissível.
Já vi situações e ouvi relatos nos quais professores e
professoras chamaram a atenção de crianças, pois elas
davam respostas diferentes às perguntas feitas por eles.
Conhecer o desenvolvimento infantil e ter em mente que
cada criança aprende em função de fatores biológicos,
sociais, emocionais e culturais é tarefa primordial aos
educadores.

Um abraço
Ligia de Carvalho Abões Vercelli

Referências

LA TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Marta Kohl; DANTAS,


Heloysa. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas
em discussão. São Paulo: Summus Editorial, 1992.
WALLON, Henri. A evolução psicológica da criança.
Lisboa, Portugal: Edições 70, 1941/2005.

28
QUARTA CARTA

EM BUSCA DE INFÂNCIAS DESEMPAREDADAS E


RODEADAS DE EXPERIÊNCIAS COM E NA NATUREZA

Caros Colegas, professores da primeira infância,

A primeira infância é fundamental no


desenvolvimento global das crianças, portanto, em
defesa delas, venho por meio desta carta discutir a
necessidade de nos debruçarmos no estudo e
aprofundamento sobre um dos aspectos primordiais no
início da vida: no que se refere, principalmente ao espaço
escolar: o desemparedamento das infâncias, em busca do
direito dos pequenos participarem de experiências ricas e
exitosas tendo contato com e na natureza e se sentindo
pertencentes a esse espaço.
Experiências planejadas e pensadas em áreas externas
para além da sala de referência podem contribuir para o
desenvolvimento infantil, a saber:
1. Repensar espaços educativos mais verdes, com
sombra, boa ventilação e plantas, criando um entorno
que diminuirá o estresse das crianças, oportunizando mais
concentração e aprendizagens.
2. Sair para os pátios escolares proporciona maior
exploração e movimento.
3. Explorar os elementos da natureza, oportuniza às
crianças desenvolverem a imaginação, autonomia, bem
como o modo como veem e interagem com o mundo.
Em função disso, relato, nesta carta, um pouco de
minha experiência de educadora das infâncias e os atuais
impactos da escolha por essa maneira e ou abordagem de
trabalho. Desde 2020, início do período pandêmico, e

29
para além dele, observo o medo crescente de minhas
colegas de trabalho no que se refere à exploração das
áreas externas, mantendo o distanciamento das crianças
da natureza, da exploração dos ambientes externos em
sua rotina, com receio de doença em função de dias frios
e chuvosos, da sujeira quando diz respeito a brincadeira
com terra, barro, água, elementos da natureza, assim
como o possível “risco” de acidentes ao planejarmos
experiências na qual exige das crianças enfrentarem os
desafios com o próprio corpo do lado de fora da sala de
referência.
Famílias também reagem de maneira parecida,
trazendo o agravante da atual urbanização das cidades,
limitando as crianças no interior de suas casas. Observo
ainda que essa realidade tem sido influenciada pelo
consumo exacerbado e pela presença das mídias e
tecnologias nas vidas das crianças submetidas à uma
realidade delimitada por paredes e virtualização das
relações. Surge, assim, meu incômodo, pois noto que, a
cada ano, nossas crianças não têm construindo o
encantamento pelo mundo natural.
Acho interessante ressaltar que meu incômodo
também surge junto de minha maternidade, pois, após o
trilhar de 20 anos na área da educação, nasce, em 2018
Bento, meu filho, com quem partilho e aprendo muito.
Observando seus interesses, desejos, necessidades,
confesso que a realidade entre paredes do condomínio
me assusta, assim como, a realidade das telas, então, o
estímulo a ter contato com a natureza, levando-o aos
parques, praças, assim como, participando ativamente
das propostas realizadas na escola pública em que ele
estuda e das discussões da Associação de Pais e Mestres.
Tais atividades tornam meu fazer mãe e professora
defensora das infâncias, o fio condutor do esperançar, em
que tanto nosso querido Paulo Freire nos impulsiona a

30
pensar, em prol de uma educação humanizadora, que
acolhe as infâncias e promove o desemparedamento,
experiências, curiosidade e estímulos com e na natureza.
Sabemos que as crianças na faixa etária da Educação
Infantil, aprendem por meio de vivências e
experimentações, portanto, entendo que será a escola,
em especial da primeira infância, um local de
oportunidade para elas explorarem o mundo natural
para além das salas de referência.
Em defesa dessas e outras possibilidades de trabalhos,
busco organizar planejamento de ações e de experiências
para além da sala de referência e observo a riqueza de
oportunidades vivenciadas pelas crianças que relatam em
suas falas o gosto e o prazer em participarem das
propostas. Diariamente é possível escutar falas como:

“Professora: Eu adoro brincar com água é divertido e em


casa minha mãe não deixa!”
“Eu gosto de fazer sopa de flores com água, a professora
quer provar?”
“Professora, essa borboleta era aquela lagarta, veja só
como ficou bonita?”

Entendo que a rotina diária somada às experiências


no campo da descoberta e exploração das linguagens se
dá de uma forma muito mais atraente e potente nos
espaços externos, principalmente para as crianças da
primeira infância, que são cerceadas, na maioria das vezes
deste convívio com a natureza e espaços para o brincar
em suas casas, priorizo diariamente o trabalho para além
da sala de referência e é notório o quanto os pequenos
aprendem e se desenvolvem, temos e podemos ofertar o
tempo todo o contato com esses espaços e experiências,
cabe a nós percebermos os benefícios que podemos e
temos para oferecer a elas.

31
Sabemos que existe uma diversidade de realidades
nas escolas das infâncias, muitos espaços, parques e pátios
concretados ou com pisos emborrachados, alguns com
natureza e outros com brinquedos de plástico, alguns
oferecem desafios com estruturas e terrenos íngremes,
outros totalmente planos e pouco desafiadores.
Tais realidades não devem nos desanimar, pelo
contrário, espaços cimentamos e com pouco verdes,
podem ser repensados de modo a oferecer possibilidades
ricas, cultivo do verde, naturalização dos espaços.
Atualmente venho priorizando, dentro dos contextos e
escolas nas quais trabalho, repensar tempos, espaços,
ambientes e possibilidades para as crianças criarem
conexão com a natureza e possibilitar experiências ao ar
livre, nos pátios, parques, bosques do lado de fora da sala
referência.
E você já parou para repensar espaços educativos da
escola em que você trabalha? Que tal naturalizar os
espaços, cultivando plantas, árvores, flores ou quintalizar
sua escola? Serão necessárias transformações sistêmicas
que atravessarão pessoas, projetos político-pedagógicos,
currículos, tempos e relações, mas garanto que tal
movimento trará possibilidade de liberdade e
responsabilidade para você professor comprometido com
as infâncias e o restante do grupo.
Uma reflexão interessante para nós educadores das
infâncias seria rever e observar os interesses de expressão
das infâncias, quando estão em contato com a natureza,
pois ao vivenciar os ritos e ciclos é possível amadurecer
as escolhas de trabalho para além da sala de referência de
maneira que tais transformações e modo de atender as
infâncias sejam acolhidas pela comunidade escolar.
Convido vocês a promoverem o encontro de suas
crianças com e na natureza, entendendo que o educar se
faz no presente e no agora. Entendo que é urgente esse

32
encontro, sendo assim, compromissos precisam ser
assumidos para equilibrar acesso e qualidade, garantia da
criança ser criança, estando livre para experenciar novas
vivências que não se resumem à sala de referência, pelo
contrário, escolhas de uma nova forma de acessar as
infâncias e novas estratégias e atendimento reverberarão
trabalhos mais qualificados a perseguir qualidade em
todas as instituições brasileiras de educação infantil.

Abraços fraternos
Amanda Loureiro de Oliveira

33
34
QUINTA CARTA

A EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DA


PRIMEIRA INFÂNCIA

Caro/a Professor de Educação Física,

Como andam as coisas aí na escola? Já organizou a


sala de materiais este semestre? As turmas estão muito
cheias? Quantas vezes chutaram a bola de vôlei nesta
semana? Espero que esteja vivendo bons dias e, se me
permite, gostaria de papear um pouquinho.
Você sabe como ninguém o que é ser querido e
adorado pelas crianças. Quando passamos pelo corredor
ouvimos expressões de alegria e, todos os dias, somos
abordados com perguntas ansiosas pela diversão: “Prô, o
que vai ter hoje?”, “Hoje minha turma tem aula?”, “Vai
ter futebol?”. O dia de Educação Física é o mais
aguardado pelas crianças. Se a gente precisar se ausentar...
Eles não gostam nem um pouquinho, não é mesmo?
Quando nos inserimos na Educação Infantil essa
deliciosa receptividade ganha gestos distintos. Raramente
recebemos desenhos, adesivos e as famosas perguntas que
não escondem o desejo de ir até a quadra; por outro
lado, ganhamos muitas florezinhas arrancadas do
matinho da calçada da escola, abraços e gritinhos
eufóricos que revelam o contentamento em nos ver por
ali. Cada um desses gestos é genuíno e sincero, as crianças
pequenas são verdadeiras e muito amorosas.
Fora isso, diferente das aulas com as turmas de
crianças mais velhas, em que temos sempre alguns
adolescentes tentando se esquivar, na Educação Infantil

35
eles querem muito é participar, brincar, se divertir, se
movimentar, interagir, extravasar...
Entendo que atuar nessa etapa de ensino pode nem
sempre ser uma zona de conforto. Enfrentamos muitos
desafios, que eu avalio virem de uma organização escolar
em que temos que nos fazer compreender como parte e
não “a parte”, uma formação inicial que pouco nos
prepara para estar com os pequenos, e de expectativas
irreais em relação ao comportamento deles. Claro, como
indivíduos que somos, de fato, nem sempre nossa
afinidade será a faixa etária da primeira infância. Mas
percebo que até quando temos a tal afinidade, nos faltam
recursos e entendimentos, o que nos gera frustração e a
preferência por turmas de crianças maiores. Falo por
experiência própria, eu já quis “fugir” da Educação
Infantil. Eles não me deixavam falar, socorro!
Em determinado momento, me interessei em
aprender sobre crianças pequenas, mais especificamente
sobre neurodesenvolvimento, e não, não foi necessário
me aprofundar para compreender que eu não sabia
trabalhar com a primeira infância. Em sequência,
motivada pela chegada da minha primeira filha, passei a
questionar muitos aspectos da rotina escolar, entre eles os
objetivos das aulas de Educação Física, das minhas aulas
de Educação Física. Ganhei consciência de que as
propostas visavam o que a criança viria a ser e
negligenciavam aquela criança que estava ali no presente.
Eu precisei aprender (sigo aprendendo, principalmente
com eles) e mudei radicalmente minha prática. E é sobre
isso, que, com muito carinho, eu senti o desejo de lhe
escrever.
Resolvi sair do chão da quadra, explorar outros
espaços com as crianças, realizar propostas fora do
comum e permitir muito mais do que dirigir. Sim, fazemos
roda, andamos sobre as linhas, fazemos atividades

36
dirigidas, brincamos com bola, temos rotina... Mas a
gente anda descalça, brinca com água, sobe no muro,
anda por onde “não deveria”, entra em espaços que “não
são para as crianças”, escala alambrado, atira areia, se suja
na terra, pendura na trave e muito mais. Não pense que
isso é natural para mim, um desconforto em não dirigir
vira e mexe me visita, sou fruto de uma educação
adultocêntrica e romper com essa natureza é um
processo. Mas me encanto com nossas vivências, me
policio e sigo aprendendo.
Quando minha prática pedagógica começou a sofrer
as tais mudanças, era visível o contentamento das crianças
diante dos convites e das novidades que lhes eram
permitidas. Certa vez, uma criança ao fundo do grupo,
carregando uma banheira com água por um percurso que
os levaria a um espaço totalmente novo e escolhido por
eles, comentou com sua colega: “a ideia da prô é genial”.
Uma adulta que nos acompanhava nesse dia me contou
do comentário eufórico que havia presenciado.
Destaquei os quatro elementos da natureza como
temas para as aulas, e mexemos, inclusive, com fogo.
Como isso gera estranhamento, não apenas o fogo, mas
o simples fato de às vezes nem pisarmos na quadra.
Repercutiu em indisposições com a equipe gestora,
reclamações acerca de sujeira e riscos. Mas antes de iniciar
tudo isso, eu compartilhei as intenções com as famílias, e
isso reduziu a quase zero insatisfações pelo menos por
essa parte (informar às famílias e se colocar aberto a
posições divergentes foi uma estratégia que eu considero
preciosa).
Penso que nosso componente curricular está na
Educação Infantil independente de nossa presença (claro,
se enriquece com a presença do especialista), e permite
um universo de contribuições para o ser criança e
desenvolver-se, portanto, deveria fazer parte da rotina

37
escolar, até mesmo nos dias em que a grade horária não
prevê a Educação Física. Uma vez que sabemos disso e
temos ciência de que não dá para querer salvar o mundo
sozinhos, nos cabe fazer o melhor que podemos com o
que temos.
Sendo assim, convido, você professor, a sair da
forma e ousar na forma de atuar. Busque a empatia por
aquela criança empolgada e entusiasmada que tanto quer
e precisa falar utilizando seu corpinho. Gostaria de lhe
inspirar confiança para permitir mais liberdade aos
pequenos da primeira infância. Eu não descobri a roda,
nem perto disso. Certamente, se não for você, alguém
bem próximo já faz um trabalho semelhante a isso.
Chegue junto desse colega, ofereça parceria, demonstre
interesse e mude também. Deixe que olhem, falem e
julguem.
Importe-se com as crianças, apenas com elas! A
primeira infância é encantadora e tem tanto a nos ensinar!
Maravilhe-se juntamente com eles. Façamo-nos presentes
na Educação Infantil, isso é tão importante.

Abraços
Professora Ana Paula Hernandes

38
SEXTA CARTA

RESSIGNIFICANDO O BRINCAR:
DESAFIOS E OPORTUNIDADES NA
EDUCAÇÃO INFANTIL PÓS-PANDEMIA

Queridos professores,

Espero que todos estejam com saúde e ânimo para


seguir cultivando sonhos e fomentando mudanças por
meio da educação. A jornada da educação é repleta de
descobertas, aprendizados e transformações. Entre os
diversos caminhos que trilhamos juntos, o brincar na
Educação Infantil é, sem dúvida, um dos mais essenciais e
impactantes. Escrevo para compartilhar algumas reflexões
sobre a importância dessa prática e convidar você, caro
colega, a mergulhar comigo nesse universo.
Desde os primeiros momentos de vida, as crianças
demonstram uma inclinação natural para o brincar. Seus
primeiros sorrisos, seus gestos iniciais de exploração e sua
curiosidade insaciável são manifestações da sua vontade
intrínseca de interagir e descobrir o mundo. O brincar não
é apenas uma atividade lúdica para as crianças; é, acima
de tudo, uma linguagem pela qual elas se comunicam,
aprendem e crescem.
O brincar, nesse sentido, transcende a ideia de mero
entretenimento. É por meio dele que as crianças
experimentam emoções, desenvolvem habilidades
sociais, exercitam sua criatividade e ampliam sua
compreensão sobre o mundo ao redor. Cada jogo, cada
riso, cada nova descoberta contribui para a construção de
sua identidade e de seu conhecimento.

39
No contexto educacional, o brincar adquire ainda
mais relevância. Ele não é apenas um complemento ao
currículo da Educação Infantil, mas sim um pilar
fundamental da pedagogia voltada para essa faixa etária.
Ao planejar propostas lúdicas, estamos proporcionando
às crianças oportunidades de aprendizado que respeitam
seu ritmo, suas preferências e suas necessidades. Por meio
da brincadeira, podemos abordar diversos conteúdos de
maneira leve e envolvente. Conceitos matemáticos
podem ser explorados por meio de jogos; habilidades
linguísticas podem ser desenvolvidas utilizando as
cantigas e as histórias; e valores sociais podem ser
internalizados por meio de brincadeiras coletivas.
Apesar de sua importância inegável, muitas vezes o
brincar é relegado a um segundo plano na Educação
Infantil. Pressionados por demandas curriculares e
avaliativas, alguns educadores podem ver a brincadeira
como uma distração ou uma perda de tempo. No
entanto, os benefícios do brincar são vastos e profundos.
Além de promover o desenvolvimento cognitivo,
emocional e social das crianças, o brincar também
fortalece os laços entre elas e os educadores. É um
momento de conexão, de empatia e de construção de
confiança mútua. Ao valorizar o brincar, estamos
também valorizando a individualidade e a autonomia de
cada criança, reconhecendo sua capacidade de ser agente
de seu próprio aprendizado.
No começo de 2020, a Organização Mundial da
Saúde (OMS) anunciou um estado de emergência global
em resposta ao aparecimento do novo coronavírus,
denominado SARS-COV-2, responsável pela COVID-19,
uma doença respiratória que, em casos graves, foi fatal.
Dada a incerteza em torno do vírus, medidas preventivas
como o uso de máscaras, limpeza frequente das mãos e

40
distanciamento social foram amplamente adotadas
globalmente.
A recente fase de isolamento social, imposta pela
pandemia, trouxe inúmeras mudanças ao nosso cotidiano
e, de forma particular, afetou profundamente a dinâmica
das crianças. O brincar, que sempre foi um direito e uma
necessidade inerente à infância, encontrou barreiras
inéditas neste período. Espaços de convivência, como
parques, escolas e áreas comuns, foram temporariamente
fechados, e a liberdade da criança de explorar o mundo
ao seu redor foi drasticamente limitada.
Muitas crianças passaram a viver o dilema de querer
brincar e não ter com quem ou como fazê-lo da forma
como estavam acostumadas. O convívio com amigos da
mesma idade, tão essencial para o desenvolvimento
social e afetivo, foi reduzido. A espontaneidade das
brincadeiras coletivas, os jogos ao ar livre e as descobertas
conjuntas foram substituídos por encontros virtuais,
vídeos e jogos eletrônicos.
Em tempos pós-pandemia, a citação de Paulo Freire
“O espaço pedagógico é um texto para ser constantemente
lido, interpretado, escrito e reescrito." (1996, p. 97),
adquire uma nova dimensão. O cenário desafiador em que
nos encontramos fez com que educadores e pais buscassem
abordagens pedagógicas que respeitassem as limitações do
momento, mas que também possibilitassem o aprendizado
autêntico e significativo das crianças.
Diante deste panorama, é essencial que, como
educadores, reconheçamos a importância do brincar para
o desenvolvimento da criança. Reintroduzir a cultura do
brincar nas escolas significa proporcionar um espaço
seguro para que as crianças possam expressar suas
emoções, compartilhar suas experiências durante o
isolamento e reconectar-se com seus pares.

41
Segundo Chateau (1954), no que se refere à
Educação Infantil, oferecer à criança apenas os
aprendizados rotineiros sem dar importância ao ato de
brincar é desconsiderar a essência da infância. A infância
é marcada por um período de descoberta e curiosidade,
e quando privamos os pequenos do brincar em ambientes
de aprendizado, estamos descartando uma de suas
habilidades mais intrínsecas: a capacidade de imaginar e
se maravilhar com o mundo ao seu redor.
O ato de brincar não deve ser visto apenas como um
complemento ou um "extra" nas atividades pedagógicas.
Ele é fundamental e inseparável de um processo de ensino
eficaz. Martins; Vieira e Faraco (2006) apontam que uma
das barreiras para a integração efetiva do brincar em
ambientes educacionais é a escassez de recursos, materiais
adequados e a falta de diretrizes claras para implementar
tais práticas. No entanto, é importante entender que criar
um espaço onde o brincar é valorizado e integrado à
aprendizagem demanda uma abordagem pedagógica bem
informada e planejada, muito mais do que simplesmente
seguir um modelo rígido e pré-estabelecido.
O papel do educador é fundamental neste processo.
Ele deve ser o facilitador, aquele que oferece as
ferramentas, mas também dá espaço para que as crianças
tomem a iniciativa. É crucial estar aberto ao diálogo,
ouvir as inquietações dos pequenos, compreender seus
medos e anseios e responder de forma empática e
construtiva. O educador, armado com a sensibilidade e o
conhecimento pedagógico, será o guia nessa jornada de
reintegração, ajudando as crianças a redescobrirem a
alegria e os benefícios do brincar.
Ao planejar, o docente pode se perguntar: "Será que
minhas crianças irão realmente prosperar nesse
ambiente?" ou "Quais recursos devo oferecer para que
possam explorar e aprender?". Essas indagações orientam

42
o planejamento, e sem uma observação perspicaz das
necessidades da turma, torna-se um desafio respondê-las
adequadamente. Para estar à altura desses desafios, o
professor precisa se manter atualizado, buscando
constantemente abordagens e metodologias pedagógicas
que almejam o crescimento integral das crianças. Essa
perspectiva, apontada no Referencial Curricular Nacional
para a Educação Infantil (Brasil, 1998) reforça a
centralidade do educador como um elo vital no processo
educacional. Em um mundo em constante mudança, cabe
a nós, educadores, reavaliar, repensar e reestruturar
nossas práticas, assegurando que cada criança possa
explorar, descobrir e crescer em um ambiente que
valorize sua individualidade e potencial.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil e a Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2018,
p. 38) também reconhecem a importância do brincar no
desenvolvimento infantil. Segundo esses documentos,
brincar deve ser uma atividade diária, variada e presente
em diferentes ambientes, e não apenas isso, mas também
acompanhada por diferentes interlocutores, sejam eles
adultos ou outras crianças. Essa perspectiva, apresentada
nos documentos, destaca o valor da diversidade cultural,
da imaginação e do conhecimento, da criatividade e das
diversas experiências que o brincar pode oferecer às
crianças. O brincar proporciona à criança uma rica
tapeçaria de experiências, abrangendo aspectos
emocionais, corporais, sociais e cognitivos.
Ao lado do brincar, os documentos destacam o
direito da criança de "explorar". Essa exploração envolve
um vasto leque de atividades, desde movimentos e
gestos até emoções e transformações. O "explorar",
conforme descrito, incentiva a criança a ser curiosa, a
interagir com o mundo ao seu redor e a desenvolver

43
uma compreensão mais profunda de sua relação com o
ambiente e com os outros.
Diante desse contexto desafiador, gostaria de
compartilhar uma experiência inspiradora que tive no
retorno ao atendimento presencial pós-pandemia com as
crianças da Educação Infantil. O brincar heurístico
emergiu como uma abordagem fundamental. A natureza
exploratória desse tipo de brincadeira, que prioriza a
descoberta autônoma por meio da interação com objetos
cotidianos, tornou-se ainda mais relevante. Em um
período em que muitas crianças estavam restritas aos
ambientes de suas casas, a oportunidade de explorar,
experimentar e redefinir usos para os objetos ao seu redor
proporcionou uma rica experiência de aprendizado.
Além de ser uma fonte de distração e diversão, o
brincar heurístico ofereceu um escape da rigidez e da
monotonia do isolamento. Ele permitiu que as crianças
reinterpretassem seus ambientes domésticos, tornando o
familiar em algo novo e emocionante. Mais do que isso,
essa abordagem pedagógica proporcionou uma maneira
para que elas processassem as mudanças em suas vidas,
dando-lhes ferramentas para entender, adaptar-se e
crescer diante dos desafios apresentados pela pandemia.
Tendo em mente a sabedoria de Freire (1996),
podemos concluir que o brincar heurístico permitiu que o
espaço pedagógico fosse revisitado por inúmeras crianças
em todo o mundo, adaptando-se e evoluindo em
resposta às circunstâncias sem precedentes da pandemia.
Nesse sentido, ele se mostrou não apenas uma prática
pedagógica valiosa, mas uma ferramenta vital para a
resiliência e o bem-estar das crianças durante um período
de incerteza e desafio.
Ao retomar as atividades presenciais, percebi a
necessidade de proporcionar às crianças um ambiente
acolhedor, estimulante e conectado com a natureza.

44
Focando no brincar heurístico, decidi então explorar
brincadeiras que envolvessem materiais naturais,
convidando as crianças a descobrirem e experimentarem
a beleza e as possibilidades desses elementos e pude
testemunhar o poder transformador dessas atividades e o
impacto positivo que elas tiveram no desenvolvimento
das crianças.
Foi fascinante observar como as crianças se
envolveram com entusiasmo e encanto nessas
brincadeiras. Ao manipularem a madeira, sentindo sua
textura e forma, elas exploraram habilidades motoras e
sensoriais, desenvolvendo a coordenação motora fina e a
percepção tátil. Por meio das pedras, descobriram
diferentes tamanhos, cores e pesos, exercitando a
classificação, a contagem e a noção espacial. As folhas,
por sua vez, despertaram a criatividade das crianças, que
as utilizaram para criar cenários imaginários, confeccionar
colagens e explorar suas cores e formatos únicos. Essas
atividades estimularam a expressão artística, o
pensamento criativo e a imaginação das crianças,
promovendo o desenvolvimento emocional e cognitivo.
Além dos benefícios individuais, as brincadeiras com
materiais da natureza também proporcionaram
momentos de interação e colaboração entre as crianças.
Ao construírem juntas estruturas com gravetos e folhas,
elas exercitaram habilidades sociais, como a
comunicação, a negociação e o trabalho em equipe. Essas
experiências contribuíram para o fortalecimento dos
vínculos afetivos e o desenvolvimento das habilidades
sociais e emocionais.
Por meio das brincadeiras com materiais naturais, as
crianças puderam vivenciar a natureza, compreendendo
sua importância e valorizando-a como um recurso
precioso. Elas aprenderam sobre sustentabilidade,

45
respeito ao meio ambiente e a importância de preservar
a natureza para as gerações futuras.
Essa experiência me mostrou que as brincadeiras com
materiais da natureza são uma ferramenta poderosa para
promover o aprendizado integral das crianças. Elas
proporcionam uma abordagem que envolve não apenas
o desenvolvimento cognitivo, mas também o físico,
emocional e social.
Diante dos desafios da educação pós-pandemia,
convido todos vocês a explorarem essas possibilidades e
integrarem as brincadeiras com materiais da natureza em
suas práticas pedagógicas. Ofereçam às crianças a
oportunidade de se conectarem com o meio ambiente,
de explorarem sua criatividade e de desenvolverem
habilidades fundamentais para um melhor
desenvolvimento.
Que possamos juntos construir um futuro de
aprendizado significativo e inspirador para nossos
pequenos. Estou confiante de que, com dedicação e
inovação, superaremos os desafios e alcançaremos
excelentes resultados. Lembremo-nos sempre de que a
Educação Infantil é uma fase única e preciosa na vida de
nossas crianças. É um momento de construção de bases
sólidas, de formação de caráter e de descoberta de
potencialidades. E o brincar, como a linguagem universal
das crianças, é a ferramenta mais poderosa que temos
para fazer a diferença em suas vidas.

Com carinho e esperança,


Lidiane dos Reis Santos Amorim

46
Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum


Curricular. Brasília, 2018. Disponível em: http://
basenacionalcomum.mec.gov.br/ . Acesso em: Jul. 2023.
BRASIL. Ministério da Educação. Referencial Curricular
Nacional Para a Educação Infantil. http://portal.mec.gov.
br/seb/arquivos/pdf/rcnei_vol1.pdf. Acesso em Ago. 2023.
CHATEAU, Jean. O jogo e a criança. 2. ed. São Paulo:
Summus, 1954.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes
necessários à prática educativa. 4 ed. São Paulo: Paz e
Terra, 1996.
MACEDO, Lino de. Faz de conta na escola e a
importância do brincar. Revista Pátio – Educação Infantil.
Ano I, nº 3, dez. 2003.
MARTINS, Gabriela Dal Forno; VIEIRA, Mauro Luiz;
OLIVEIRA, Ana Maria Farraco de. Concepções de
professores sobre brincadeira e sua relação com o
desenvolvimento na educação infantil. Interação em
Psicologia, Curitiba, 2006, v. 10, n. 2, p. 273-285.
Disponível em https://revistas.ufpr.br/psicologia/
article/view/7686. Acesso em Ago. 2023.

47
48
SÉTIMA CARTA

FILOSOFIA PARA CRIANÇAS:


EDUCAÇÃO PARA O PENSAR

Caros professores,

A infância é uma fase de suma importância para a


formação física, mental, emocional e social das crianças e
quando regada de muitas intervenções criativas,
acolhedoras e que estimulem o desenvolvimento das
habilidades emocionais, cognitivas e sociais o processo
ocorre naturalmente.
As crianças na sua ingenuidade e curiosidade
deveriam ser instigadas diariamente a explorar todo o seu
universo e fazer muitas indagações, contudo nem sempre
os adultos proporcionam momentos reflexivos e acabam
perdendo a oportunidade de formar indivíduos críticos.
E isso me faz recordar da minha infância da qual
tinha uma infinidade de indagações sobre os enigmas da
vida e que não foram sanadas por estar inserida numa
sociedade que entendia as crianças como seres submissos
e condicionados a não pensar, apenas cumprir ordens e
repetir conteúdos apresentados.
Diante desta vivência, quando ingressei na
educação desejei propiciar a escuta, promover
conhecimento e pesquisa científica por meio da
ludicidade para encantamento das crianças, e por
manter este meu lado curioso, que não me permitia
sossegar diante dos meus questionamentos e, com a
certeza de que “não há ensino sem pesquisa e pesquisa
sem ensino” (Freire, 2019, p. 30), compreendo que
ensinar exige coragem, respeito, crítica, ética, estudo,

49
aceitação, conhecimento e, principalmente, humildade
de entender que, embora não detenha o saber absoluto,
poderia, sim, ser canal de crescimento para muitos.
Ao longo da minha carreira tive experiências
magníficas com as crianças, jovens e adultos, contudo irei
compartilhar a que fez a diferença na minha prática como
educadora e que vem ao encontro com o meu lado
investigativo e curioso. O fato em questão ocorreu em
1996, quando lecionava em uma escola particular, que
proporcionou para os educadores a capacitação e
formação do Programa de Filosofia para Crianças que
seria instituída na unidade naquele ano.
O Programa surgiu na década de 1960 pelo norte
americano Professor Doutor Matthew Lipman que visava
desenvolver as habilidades cognitivas por meio do
diálogo investigativo. No Brasil, foi trazido em 1985 pela
Professora Catherine Young Silva, fundadora do Centro
Brasileiro de Filosofia para Crianças (CBFC) sem fins
lucrativos em São Paulo.1 Os materiais didáticos foram
adaptados à cultura brasileira com os livros: Rebeca; Issao
e Guga; Pimpa; A descoberta de Ari dos Telles e Luísa que
abrangia a Educação Infantil, o Ensino fundamental e o
Ensino médio.2
Logo após a finalização do curso, os professores
recebiam o livro contendo a novela a ser trabalhada e o
manual de instruções, iniciando assim com as suas turmas
as aulas de Filosofia com a consultoria da equipe do
CBFC. E neste ano tive o privilégio de estar com uma
turma da Educação Infantil com idades entre cinco e seis

1 Informação do material específico disponibilizado no curso de


Educação para o pensar – Centro Brasileiro para Crianças em 1996.
2 O CBFC encerrou as suas atividades em 2010, contudo o Instituto de

Filosofia e Educação para o Pensar – IFEP em Curitiba assumiu o


compromisso de continuidade considerando a relevância do
programa educativo.

50
anos, nesta época ainda o Ensino Fundamental não era
de nove anos.
Desta forma, iniciei o livro “Rebeca3” que contêm 37
episódios com temas diversos e o manual apresentava
sugestões de exercícios e atividades para trabalhar os
diversos temas e habilidades, contudo não devia ser
seguido à risca, mas sim continha sugestões de temas
diversos, que muitas vezes não eram explorados pelos
professores.
O Programa teve a duração de seis meses, sendo
iniciado em junho daquele ano, e este período foram os
mais intensos e enriquecedores da minha carreira, pois eu
nunca mais fui a mesma professora e as crianças tiveram
a oportunidade da educação para o pensar,
desenvolvendo as habilidades cognitivas por meio do
diálogo investigativo.
Nas primeiras semanas foram realizadas algumas
dinâmicas apresentadas pelo CBFC, envolvendo as
crianças com o objetivo de facilitar o processo de
formação da comunidade investigativa privilegiando
algumas atitudes imprescindíveis como: sentar em círculo,
falar em voz alta, falar um de cada vez, responder
quando solicitado, aguardar a sua vez de falar, dar razões
e pedir razões.
As dinâmicas tinham como objetivo proporcionar
maior fluidez nos diálogos, visualização dos falantes e
ouvintes, promovendo o respeito pela fala do outro,
onde pudessem fazer as suas escolhas com autonomia e
tornando-se assim o protagonista. A educação para o
pensar tem como atitude primordial dar e pedir razões
que propõe questionamentos, para que possam não
aceitar o que é oferecido, mas a busca pela verdade com
o levantamento de hipóteses.

3 Reed, Ronald. Rebeca; tradução Equipe do Centro Brasileiro de


Filosofia para Crianças. São Paulo: Difusão de Educação e Cultura, 1996.

51
Alguns combinados foram discutidos e estabelecidos
juntamente com as crianças, para que pudéssemos iniciar
as aulas de Filosofia e alguns deles foram levantados
como: respeitar a vez de falar de cada amigo, respeitar a
opinião de cada um e sempre sinalizar quando desejava
falar levantando a mão. Este processo foi riquíssimo, pois
cada criança pode colocar o seu ponto de vista e somente
após muito diálogo chegamos a colocá-los em prática.
Estes combinados foram retomados diariamente e
sabíamos que a meta do desenvolvimento investigativo
aconteceria a longo prazo e deveríamos ter como
objetivo principal a escuta e aperfeiçoamento da
qualidade de ideias expostas.
Diante da organização da turma iniciamos com uma
caixa surpresa com os livros consumíveis, da qual cada
criança recebeu, para que pudessem realizar as atividades
conforme a leitura fora realizada. As crianças tinham uma
curiosidade imensa de folhear as páginas, mas o
combinado seria que somente iríamos explorar os
episódios lidos realizando as atividades dele.
A leitura dos episódios foi realizada com as crianças
organizadas em círculo, para que pudessem ter maior
interação com todos e as sessões tinham a duração de 15
a 20 minutos, sendo que muitas vezes o assunto era tão
mágico que ultrapassamos o limite do tempo.
A cada episódio lido uma nova aventura era
descoberta, que provocava nas crianças muitos
questionamentos, principalmente pela identificação delas
com a personagem Rebeca. A leitura despertava o
imaginário das crianças e diversos temas relevantes foram
elencados pelas próprias crianças, outros desenvolvidos
por meio de projetos que envolveram as demais turmas
da Educação Infantil.
Um deles foi no episódio 7 do livro no qual a
personagem relata que andava de bicicleta e seu pé ficou

52
preso no pedal, fato que a fez cair e ralar o joelho e, ao
chorar, sentir o gosto da lágrima com sabor doce,
enquanto que seu amigo Beto disse que a dele era
salgada, causando grande discussão, a fim de refletirem
quem estaria certo, Rebeca ou Beto? A lágrima seria doce
ou salgada? Este foi um momento muito interessante e as
crianças fizeram pesquisa com os familiares e criamos uma
votação, alguns acharam que deveríamos comprovar e
todos deveriam chorar e provar o gosto, para que assim
pudessem votar. Um tema tão simples que acabou se
transformando em projeto de alimentação, priorizando
o paladar dos alimentos. E, por fim, chegaram à
conclusão após muita pesquisa e testes com as próprias
lágrimas e até dos amigos que o gosto da lágrima é
salgado como a água do mar.
Mas a questão em pauta é como proceder nestes
momentos, o professor deve incentivar momentos nos
quais as crianças tenham a sua fala e possam confrontar e
buscar razões para os seus questionamentos, para que
possam assim fazer suas escolhas? O pensamento filosófico
consiste na argumentação, contestação de ideias e reflexão
e que abrange todas as formas de conhecimento,
estimulando ao pensamento bem estruturado.
Do primeiro até o último capítulo do livro foram
realizados diversos registros com filmagens, fotografias,
ilustração, experiências científicas e outras atividades
complementares. Todos estes registros foram organizados
em um portfólio que continha as falas relevantes de cada
criança.
O último episódio do livro foi revelador para as
crianças, pois descobriram que a personagem Rebeca era
cega e este fato explicaria diversas questões discutidas
durante os 37 episódios da obra, um momento
maravilhoso de discussão e reflexão sobre as condições
humanas e a diversidade.

53
Finalizo ressaltando a certeza de que plantei muitas
sementinhas nas crianças que participaram deste projeto,
para que fossem cidadãos críticos e que pudessem fazer
as suas escolhas de forma consciente. E eu descobri minha
vocação e minha busca incessante pela justiça, respeito
pela diversidade e direito à fala de cada cidadão.

Abraços
Rosemeire Fernandes

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários


à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2019.
REED, Ronald. Rebeca; tradução Equipe do Centro
Brasileiro de Filosofia para Crianças. São Paulo: Difusão
de Educação e Cultura, 1996.

54
OITAVA CARTA

TODO CUIDADO É EDUCATIVO

A você, querida professora de bebês, como vai?

Escrevo essa carta com o coração cheio de


lembranças e com a cabeça fervilhando de pensamentos,
pois essa, talvez, fosse a carta que eu queria ter lido
quando comecei a minha carreira como professora de
bebês.
Sim, assim como você, eu também fui (ou seria
“sou”?) professora de bebês. E já quero deixar claro aqui
que, quando escrevo bebês, estou me referindo às
pessoas de 0 a 3 anos. E é por essa palavrinha (ou seria
“palavrona”?), pessoa, que começo o meu diálogo com
você.
Sabe, eu queria ter tido clareza, de que bebês são
pessoas, desde o início da minha carreira, lá com os meus
18 anos de idade. Porque na verdade, naquela época, os
bebês para mim, eram seres bonitinhos, fofinhos e
engraçadinhos com os quais eu me divertia durante as
tardes na Creche Central da Universidade de São Paulo
(USP), meu primeiro emprego. Eu não tinha a menor
noção de que eram pessoas, no sentido mais profundo
desse conceito, isto é, um indivíduo que deve ser
considerado por si mesmo, com suas singularidades e
particularidades.
E, talvez para você, isso também não esteja claro.
Ou, talvez esteja, mas só no discurso, na “teoria” e não,
na prática. Porque, na prática, ou seja, na relação que
estabelecemos com os bebês, a nossa concepção sobre

55
eles se revela. O que é um bebê para você? Já se
questionou sobre isso?
É muito comum vermos os bebês como seres frágeis
e dependentes. E, de certa forma, eles são. São
dependentes de nós, adultos, pois se não os
alimentarmos, cuidarmos deles, o bebê humano não
sobrevive. Então, há sim, uma relação de dependência.
Porém, o que eu demorei a descobrir é que essa relação
não significa passividade. Os bebês não são passivos, mas
sim, autônomos desde que nascem.
Olhar para os bebês sob essa perspectiva, a da
autonomia muda, completamente a forma como nos
relacionamos com eles. Quando vemos um bebê e
validamos a sua potência como indivíduo e a sua
capacidade de se expressar, se comunicar, agir sobre o
mundo e interagir com as demais pessoas passamos a
estabelecer uma relação mais qualificada com eles.
Por relação qualificada, refiro-me à uma relação que
os considera como sujeitos. Sujeitos de direitos, de
desejos, de vontades e de ação. E é aí que entra a escuta,
a empatia, o respeito e a compreensão de que os bebês
aprendem com o que fazemos com eles e com o que eles
podem fazer nas relações que estabelecem conosco.
Vou me explicar melhor. Talvez, esteja confuso para
você. Para isso, te convido a imaginar uma cena de troca
de fraldas de um bebê de 7 meses. Como você começaria
esse momento de troca de fralda? Talvez, ao perceber,
que o bebê fez cocô, você o pegasse no colo e o levasse
ao trocador para trocá-lo bem rapidamente para que ele
voltasse a brincar com os coleguinhas.
Nesse movimento, você não o comunicou o que
faria, não permitiu que ele participasse e, talvez, tenha
tocado em seu corpo de forma rápida e apressada para
que a troca de fralda não demorasse muito e ele pudesse
voltar a brincar ou a participar de alguma atividade.

56
Agora, imagine essa cena descrita por Janet Gonzalez-
Mena e Dianne Eyer no livro “O cuidado com bebês e
crianças na creche”. O que você vê?

Uma bebê de cinco meses está deitada no chão com


muitos brinquedos ao seu alcance. Ela está contente e
observando os outros cinco bebês e crianças que estão
na sala com ela. Pegando alguma coisa aqui e outra ali,
ela acaricia um brinquedo primeiro com os olhos, depois
com as mãos. Se olharmos mais de perto, podemos
perceber certa umidade na região das nádegas, sob sua
roupa. A criança ouve um passo e seus olhos se movem
em direção ao som. Então vemos um par de pernas e pés
se movendo na direção da criança. Uma voz diz "Caitlin,
estou vendo como você está conseguindo se virar". As
pernas se movem para perto do cobertor, e Caitlin olha
para os joelhos em sua frente. Os olhos dela brilham à
medida que o resto da pessoa aparece no seu campo
visual. Um rosto gentil se aproxima. Caitlin sorri e
balbucia algo. A cuidadora responde e depois repara na
umidade da roupa. "Oh, Caitlin, você precisa ser
trocada", ela diz. Caitlin reponde sorrindo e
balbuciando. Abrindo os braços, a cuidadora diz "vou
pegar você agora". Caitlin responde aos gestos e às
palavras com um movimento corporal leve. Ela continua
sorrindo e balbuciando. A cuidadora a retira do chão e
caminha em direção ao trocador. (GONZALEZ-MENA,
J.; EYER, D. W., p. 3, 2014)

Percebeu a diferença? Viu como foi possível


visualizar cada movimento, a intenção da professora, as
relações estabelecidas entre ela e a bebê, o que essa bebê
sabe e consegue realizar, e como a professora reforça
positivamente as conquistas dessa bebê? Um exemplo de
como a atitude adulta contempla e acolhe o bebê
enquanto sujeito, respeitando o movimento livre e a sua
interação com os objetos.

57
Algo que eu demorei muito a internalizar, enquanto
professora de bebês, é que todo cuidado é educativo. Isso
significa que a relação estabelecida com a professora é de
fundamental importância para que a partir da
comunicação que existe entre o bebê e sua educadora se
possa haver cooperação e participação. Assim, quando
antecipamos nossas ações ao bebê, dando-lhes tempo
para responder e esperamos paciente e afetuosamente
sua resposta, o bebê pode, gradativamente, construir sua
autonomia a partir daquilo que tem competência para
realizar em cada etapa de seu desenvolvimento.
Bebês e crianças pequenas precisam se vincular a
adultos em quem confiam para se sentirem seguros.
Precisam sentir que a professora sabe sobre eles,
compreende e atende suas necessidades. E esse vínculo se
fortalece, especialmente, nos momentos dos cuidados
corporais quando, na relação um para um, o bebê pode
experimentar o sentimento de importância de ser especial
para alguém. A confiança e a segurança surgem porque o
bebê entende que, além de cuidado, ele é considerado
como um indivíduo pelo adulto que cuida dele. Do
vínculo surgem os sentimentos de segurança e confiança,
e o desenvolvimento, o aprendizado e o apego estão
relacionados. Por isso, são as atitudes e os aprendizados
adquiridos nas experiências sensoriais das atividades de
cuidado que darão ao bebê oportunidades para aprender
habilidades físicas e sociais, formando a base do intelecto
Portanto, o caráter pedagógico dessa ação começa
pela maneira como nós nos aproximamos do bebê e da
criança, pois nosso olhar, o tom da nossa voz, a
intensidade dos nossos toques e gestos serão recebidos,
sentidos e interpretados pelos bebês provocando-lhe
sensações agradáveis ou desagradáveis. Quando, nos
momentos dos cuidados, nossa atenção está inteiramente
voltada para o bebê, podemos observar pelo seu

58
comportamento se está relaxado ou não, se está
gostando, se lhe é agradável ser cuidado, como está
reagindo e, assim, podemos interagir e "escutá-lo".
Tudo isso que te escrevo ressoa em mim como um
grande propósito. Propósito que se ancora no
compromisso de, cada vez mais, poder contribuir para
que entendamos o quão profissional deve ser o cuidado
que oferecemos aos bebês em nossas instituições. Que,
antes de ficarmos preocupadas com as propostas
pedagógicas do dia ou com os projetos a serem
desenvolvidos com os bebês, que possamos cuidar da
qualidade da relação que estabelecemos com eles. O
pedagógico na idade de 0 a 3 é a vida cotidiana que no
espaço coletivo, é feita de relações.

Com carinho,
Valéria Pasetchny

59
60
NONA CARTA
DA DOCÊNCIA À COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA –
QUE CAMINHOS TRILHAR?

Caros colegas,

Para você professor, que busca se tornar um


coordenador pedagógico, os convido a refletirem comigo
sobre algumas especificidades desse cargo. Não tomo
para mim a responsabilidade de julgar ser boa ou ruim a
escolha, até porque, muitas variáveis influenciam na
decisão por uma profissão. Apenas compartilho com
vocês, os caminhos por mim percorridos e tudo que
venho aprendendo no desempenho desse cargo.
Tornar-me professora foi um acaso. Apesar de
brincar de escolinha durante a infância e fazer o Ensino
Médio em Nível Normal (Magistério), meu desejo era ser
médica pediatra, mas para conseguir pagar o curso,
comecei a lecionar e me identifiquei com a profissão.
Hoje são mais de 18 anos na área da educação,
caminhei por diversos lugares e cargos. Fui coordenadora
de cursos profissionalizantes, professora de Educação
Infantil, professora de Ensino Fundamental I, professora
de EJA, professora na graduação e na especialização lato
sensu. Lecionei em instituições públicas e privadas, de
maneira presencial e a distância.
Enquanto professora, nunca consegui me distanciar
dos demais afazeres da escola. Por todas as unidades pelas
quais passei, minha curiosidade e vontade em contribuir,
me faziam aproximar-me das funções da secretaria, da
direção, da coordenação, da equipe de limpeza, da
equipe de cozinha, dos auxiliares e equipe de apoio.

61
Interessava-me saber como todos os profissionais
trabalhavam, o que cada um fazia, aprender sobre os
demais seguimentos e isso me ajudava a compreender
como eles eram determinantes no desempenho da minha
função docente.
Fui percebendo que tudo precisava acontecer de
maneira integrada, afinal, quando a equipe de limpeza
não funcionava, afetava o ambiente da sala onde eu
trabalhava. Se as crianças não comiam bem, isso
influenciava no comportamento e nas emoções delas ao
retornarem do intervalo. Sem acesso a bons materiais e
equipamentos, muitas vezes precisei investir recursos
próprios para conseguir desenvolver práticas
diferenciadas com a turma.
Por isso, quando eu conseguia me aproximar,
estreitando laços, conhecendo os procedimentos e as
rotinas de cada seguimento, eu acabava aprendendo mais
sobre eles e também ensinava sobre minha função
docente, mostrando como o fazer de cada um me
ajudava nas práticas pedagógicas cotidianas, conseguindo
também, mais espaço para refletir com os profissionais
que ali atuavam.
Esse olhar para a amplitude do cotidiano escolar
sempre foi presente durante minha jornada docente e foi
ele quem me motivou a ser coordenadora pedagógica.
Muito mais que opinar, criticar ou sugerir, eu desejava
estar envolvida no “olho do furacão”, agindo sobre os
acontecimentos, sobre as decisões e sobre os desafios
encontrados no cotidiano.
Sempre gostei muito de compartilhar meu
conhecimento. Na verdade, eu conseguia saber mais
quando falava sobre o que aprendia, ia reelaborando,
reestruturando o pensamento, aprendendo com as
trocas. Falar em público não era problema e quando via
interesse do grupo pelo assunto que eu tratava, eu

62
realmente ficava animada por buscar mais informações
sobre ele.
Com essa experiência, senti-me autorizada a
experimentar a função de coordenadora pedagógica,
primeiro de maneira designada (quando existe uma
eleição para um cargo temporário). Foi nessa experiência
que descobri que o cargo ia muito além de conhecer
sobre os procedimentos que regem o fazer diário na
escola, precisava criar laços, até com aquelas pessoas com
quem mais tinha distanciamento.
São os laços e as interações que definem o trabalho
coletivo na escola. É saber ouvir até a pessoa que não
gosta de falar, é entender que ideias contrárias não
devem ser levadas para o lado pessoal, é aceitar que o
outro é como é e não somos responsáveis por mudá-lo.
Como coordenadores precisamos manter o diálogo
aberto, ajudar no fluxo de comunicação entre todos os
seguimentos, nos tornarmos próximos para que os
professores nos queiram por perto do trabalho que
desenvolvem, não esperar somente convites, mas
trabalhar para que a porta da sala de aula esteja sempre
aberta para nós.
Como coordenadora tomei ciências das “mais de
cem funções” de um CP dentro da escola. Descobri que
não deixaria de “dar aulas”, de entrar em sala e tão pouco
de ser aluna. Ser coordenadora é estudar sempre, é
pesquisar mais.
Após um concurso de acesso, consegui me efetivar
como CP em 2021 e desde então, venho aprendendo e
descobrindo mais sobre minha função. Ser coordenadora
não é uma tarefa fácil, e está bem longe de ser algo
tranquilo.
Para mim, coordenar é “estar” em todas as salas,
conhecer o máximo possível sobre cada criança, seus
familiares e suas expectativas. É alinhar o trabalho dos

63
diversos setores para um bem comum: o melhor
atendimento dos pequenos!
Não é gostar de fazer formação, gostar de organizar
ambientes, gostar de produzir documentos, gostar de
organizar eventos, gostar de comprar materiais. A meu
ver, para coordenar é preciso vestir várias camadas de
roupas todos os dias, mesmo que elas nos apertem.
Vestir a roupa da equipe docente, a roupa da equipe
de apoio, a roupa da equipe de limpeza, a roupa da
equipe de cozinha, a roupa da direção, a roupa de cada
familiar e a roupa de cada criança.
É ter jogo de cintura para olhar o todo e conseguir
mediar as diversas necessidades, acolher as diversas
frustrações, ser vista como referência de confiança e ser
vista como apoio. É saber que será vista como alguém
que está cobrando o tempo todo, poque já não olha o
seu fazer, mas o fazer de muitos e isso requer disciplina,
organização, tempo e vontade de até realizar o que não
gostamos, na maioria das vezes, então, é preciso cobrar
união, prazos, posturas, ética, respeito, responsabilidade,
atenção e é tentar ser e ter tudo isso também, sendo
cobrada por todos, nas mesmas ou em maiores
proporções.
Coordenar é estar sempre atenta às atualizações
documentais, às novas legislações e aos modismos
pedagógicos, é tentar fugir do burocrático pra estar junto
do pedagógico, aprendendo às duras penas, que o
burocrático é mais pedagógico do que se imaginava.
É perder uma linda vivência na escola, porque um e-
mail de última hora precisa ser respondido. É prever o
clima ao planejar um passeio, é pensar em todas as
possíveis coisas difíceis, ruins e trágicas que podem
acontecer, para fazer um planejamento preventivo e se
esforçar para não ser a mais amedrontada da escola por
isso. E, apesar dos riscos, passar confiança. É trabalhar

64
exaustivamente para que cada família se sinta acolhida,
respeitada e ouvida. É fazer dos discursos de angústias,
desafetos e desagrados, inspirações para mudanças
positivas de todo o grupo.
É montar todos os dias a vitrine do trabalho
pedagógico da escola, apresentando-o para quem quiser
e precisar conhecê-lo, divulgando-o por meio das mais
diversas maneiras (redes sociais, conversas, reuniões,
documentos, discursos), o trabalho realizado por todo o
grupo, dando visibilidade e credibilidade para cada
profissional.
E mesmo parecendo ser tudo bem complicado, é não
desistir, por saber que coordenar, no meu caso, não foi
um acaso. Eu escolhi e continuo escolhendo a cada dia,
essa profissão. Coordenar é saber sobre um pouco de
tudo que acontece na escola, mas é principalmente saber
que não se faz nada sozinha.
É saber o valor de cada profissional, é ser ouvinte
(parte mais difícil), é ser aprendiz, é se esforçar para
manter as parcerias ativas, é ser a chata e a legal todos os
dias e lutar para encontrar o ponto de equilíbrio disso.
Coordenar é querer não mais o reconhecimento
individual, mas de toda a equipe. É festejar com todos
quando algo dá certo e se culpar a todo tempo, quando
alguma coisa dá errado.
Por isso, minha contribuição para quem é docente e
quer muito atuar na coordenação pedagógica, é
inicialmente se perguntar, “para quê?”. É saber o que te
move, pesquisar mais sobre o cargo, sobre as tarefas
diárias e se olhando, buscar compreender qual motivação
te fará diariamente não esmorecer diante os desafios que
surgem no caminho.
É saber sobre o que não se gosta do cargo, olhar para
essas coisas e buscar melhorar nelas, porque serão essas
coisas que te deixarão insegura ao longo da caminhada.

65
É não esquecer o que te faltou de amparo como
docente, para que isso não seja a falta de outro colega de
trabalho quando você chegar lá, sem julgamentos a quem
já passou por sua vida, mas aprendendo com essas
pessoas sem precisar cometer as mesmas falhas.
Por fim, além de estudar, converse muito. Abra as
portas das relações pessoais, pois será com as pessoas que
você atuará, e mais do que saber a teoria do trabalho que
desenvolvem, é o saber sobre cada pessoa que te ajudará
na função de coordenar. Esse tem sido meu desafio diário,
meu objetivo constante e meu maior projeto profissional!

Um abraço
Aline da Silva Grenfell

66
DÉCIMA CARTA
CARTA AOS FUTUROS COORDENADORES
PEDAGÓGICOS

Prezados futuros coordenadores,

Olá, como vocês estão? Espero encontrá-los bem.


Dedico esta carta a vocês professores que passaram no
concurso da Prefeitura de São Paulo para o cargo de
coordenador pedagógico (CP)o, ocorrido no ano de 2019.
Imagino que os professores que ainda não acessaram
ao cargo estão ansiosos por saber como é sair da sala de
aula e assumir um compromisso tão importante: gerir
pedagogicamente uma escola. Para ajudá-lo, resolvi
compartilhar minha trajetória como CP.
Iniciei a carreira na Prefeitura de São Paulo em julho de
2011, como módulo1, fui professora de apoio pedagógico
para as docentes regentes atuando na sala de recursos por
cinco anos. No ano de 2019, surgiu a oportunidade de
realizar o concurso para coordenação pedagógica;
aprovada assumi o cargo no ano de 2021. Até então só
havia trabalhado em Escolas Municipais de Ensino
Fundamental (EMEFs), mas quando assumi a coordenação
escolhi uma Escola Municipal de Educação Infantil (Emei).
Eu tinha a ideia de que seria mais tranquilo, principalmente,
por já ter vivenciado a experiência de ser Assistente
Pedagógica na Prefeitura de Santo André, onde também
trabalho como professora até hoje.
Minha escolha por uma Unidade de Educação
Infantil, inicialmente se deu por querer conhecer a

1 Os professores que não possuem turmas/aulas atribuídas ficarão


sujeitos às vagas de módulo e desempenharão suas funções para suprir
a ausência do professor titular.

67
dinâmica da própria Prefeitura de São Paulo, pois até o
momento só havia lecionado para o Ensino Fundamental.
Tinha em mente que elaborar propostas e ações do
cotidiano no coletivo seria mais tranquilo nessa etapa de
ensino. Porém, ao me deparar com as demandas de uma
Emei percebi que o meu trabalho seria bastante
complexo.
Primeiro eu precisava me adaptar com aquele
espaço, visto que eu era a mais nova da escola, meu
primeiro desafio: estabelecer parceria. Gosto muito de
trabalhar em grupos, pois entendo que as trocas de
experiências pedagógicas também auxiliam em minha
formação.
Para quem pretende assumir o cargo em escolas de
Educação Infantil, lembro que há apenas um CP,
diferentemente das EMEFs em que as funções podem ser
compartilhadas com outro profissional. Por essa razão,
quando percebi que a maioria das ações da unidade era
organizada pelo CP, fiquei muito preocupada,
imaginando se realmente daria conta de todas as
demandas que diretamente eram designadas ao CP, desde
acompanhar e organizar as ações institucionais junto com
as professoras; dar devolutivas das propostas e
intencionalidades delas; acompanhar o desenvolvimento
das crianças; fazer reunião com as famílias e organizar
momentos de formação com temas específicos. Os
momentos de formação do Plano Especial de Ação (PEA),
Jornada Especial Integral de Formação (JEIF), das
Reuniões Pedagógicas, Jornadas Pedagógicas, Dia da
Família, Reposição de aulas, também fazem parte do
cotidiano do CP.
Após cinco meses de experiência no cargo de CP,
experimentei um sentimento de arrependimento, diante
dos inúmeros desafios, acreditando que não daria conta.
Naquela época, eu ainda estava em processo de

68
construção de minha verdadeira identidade profissional.
Na transição da função de professora para coordenadora
pedagógica, enfrentei uma mudança significativa quanto
às responsabilidades, pois gerenciar ações pedagógicas
gerais da escola exigia habilidades diferentes em
comparação com a gestão de uma sala de aula.
Percebi que estava passando por uma fase de
transição, ainda lutando para entender minha própria
identidade como coordenadora pedagógica. Essa
constatação me levou a me aprofundar na reflexão sobre
o meu papel, examinando como percebia os obstáculos e
dilemas cotidianos. Cheguei à conclusão de que meu
papel como coordenadora pedagógica não era muito
diferente do papel de um professor em sala de aula.
Ser CP, exigiu que eu criasse vínculos com as
professoras e com a comunidade escolar. Aprendi a ouvir
suas necessidades, a observar suas ações e a estudar vários
teóricos que auxiliam a dar respostas às demandas de
cada situação. Isso foi necessário para que eu
efetivamente orientasse, coordenasse, interviesse e
oferecesse uma direção alinhada com as necessidades da
Educação Infantil e do Currículo da Cidade. Ao longo
desse processo, aprendi a importância da escuta atenta e
de ser paciente e assertiva.
Comecei a questionar o que eu precisava alcançar
para ser uma presença parceira tanto em minhas falas
quanto em minhas ações. Busquei me ancorar na
pesquisa, afastando-me de uma mentalidade de queixas,
para mergulhar na prática da pesquisa. Essa busca me
permitiu determinar o modelo profissional que eu
aspirava ser. Por meio de leituras de pesquisas e
experiências práticas, descobri que esse papel exige fortes
habilidades de comunicação, habilidades organizacionais
hábeis e a capacidade de promover um ambiente
colaborativo.

69
Devo admitir que os seis meses iniciais se revelaram
bastante desafiadores. A colaboração dos profissionais da
Unidade foi um desafio, pois estavam habituados com
dinâmicas diferentes. Eu e a equipe enfrentamos
dificuldades recíprocas durante esse período de transição,
pois foi necessário estabelecer vínculos de confiança
bilaterais. Por isso, procurei adaptar-me e buscar
inspirações teóricas que me orientassem como as ideias
freirianas, por exemplo. Ao “tomar distância2”, busquei
desenvolver uma perspectiva mais enriquecedora sobre as
várias demandas que emergem na vida cotidiana escolar,
para, posteriormente, abordá-las da maneira mais
democrática.
Ser um coordenador empático envolve introspecção
e contemplação das próprias ações em conjunto com os
outros. Assim, esforço-me persistentemente para
descobrir a minha própria identidade como
coordenadora pedagógica, pois tem sido uma
competência fundamental para a minha jornada.
Como professora, uma parte significativa do meu
trabalho havia sido garantir o envolvimento das crianças
e a adesão a uma abordagem colaborativa, a fim de
estabelecer um forte relacionamento também com as
famílias. Esta colaboração provou ser vital para alcançar
meus objetivos no ambiente escolar. Por isso, desde
então, minhas responsabilidades se expandiram como CP
dentro da instituição de ensino. Meu foco principal agora
foi atender a todas as demandas e exigências da escola.
Por essas razões, espelho-me na professora que fui e que
2 Segundo Paulo Freire - A construção ou a produção do conhecimento
do objeto implica o exercício da curiosidade, sua capacidade crítica de
“tomar distância” do objeto, de observá-lo, de delimitá-lo, de cindi-
lo, de "cercar” o objeto ou fazer sua aproximação metódica, sua
capacidade de comparar, de perguntar. Freire, Paulo. Pedagogia da
Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 22 ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2002.

70
sou e me dedico-me integralmente a cultivar um
ambiente inclusivo e convidativo que estimule
constantemente o desenvolvimento profissional de toda
a comunidade escolar.
Por isso, encorajo vocês a assumirem o cargo e
abraçar essa função, aproveitando todas as
oportunidades que ele apresenta. Claro que essa nova
jornada profissional me transformou significativamente.
Hoje, trago uma riqueza de experiência e conhecimento
que alimenta continuamente minha sede de crescimento
e aprendizado contínuo.
A todos os futuros coordenadores, dou as minhas
calorosas boas-vindas e espero sinceramente que
reconheçam o valor da sua posição e a assumam com a
máxima intencionalidade.

Grande abraço.
Vanilda Pereira Nunes de Sousa

71
72
DÉCIMA PRIMEIRA CARTA

A POTÊNCIA DA DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA


EM MEIO À NARRATIVA DE VIAGEM À ESCOLA
"JARDÍN FABULINUS", NA ARGENTINA

Queridos educadores,

Escrevo esta carta no intuito de salientar a


importância da documentação pedagógica como forma
de dar notícias sobre os saberes e experiências das crianças
nas instituições de Educação Infantil. Para tal, narro uma
experiência pessoal derivada de uma viagem pedagógica
realizada em abril de 2023 à escola "Jardín Fabulinus" na
Argentina. Antes de abordar o tema e a visita à escola,
penso ser importante contextualizar a viagem, falar sobre
a exploração da cidade e as vivências que tive.
Fazer uma viagem pedagógica sempre foi um desejo
pessoal. Para mim, esta é uma modalidade que além de
propiciar uma experiência, também pode oportunizar a
busca de novas referências pessoais e acadêmicas.
Sou servidora pública concursada desde 1993 e atuo
no cargo de coordenadora pedagógica no município de
São Bernardo do Campo desde 2010. Trabalho em uma
creche que atende crianças de 0 a 3 anos de idade.
Entendo que a escola da primeira infância deve primar
pela excelência e ao longo de minha carreira me dediquei
a estudar este tópico, sendo privilegiada com diversas
parceiras com as quais pude trocar saberes, referências
teórico-culturais e práticas, além de cursos, palestras,
publicações, buscando a ressignificação da prática
pedagógica em minha Unidade Escolar.

73
Em paralelo, desde 1997, ano em que me casei com
Orlando Mateus, venho realizando, junto com ele,
diversas viagens pelo Brasil e lugares do mundo, tendo
acesso a diferentes culturas que contribuíram para o
desenvolvimento de minhas habilidades soft skills ou o
desenvolvimento de minhas habilidades subjetivas, sociais
e inteligência emocional, me tornando uma pessoa e
profissional melhor, colaborando para ser mais criativa e
adaptável no contexto escolar.
Diante do exposto, me senti empolgada quando
surgiu a oportunidade da viagem pedagógica com colegas
de profissão para a Escola de Educação Infantil “Jardín
Fabulinus”, na Argentina, por ser referência de nossos
estudos, uma vez que essa instituição realiza um trabalho
inspirado nas ideias italianas de Reggio Emília e outras
fontes, tal qual me dispus a pesquisar no tocante à escuta
infantil, documentação pedagógica e outros tópicos.
Outra educadora e eu resolvemos ir dias antes da data
do curso imersivo, saindo de São Paulo com destino à
Buenos Aires para conhecer a cidade, nos adaptar à cultura,
à língua espanhola e conhecermos alguns pontos turísticos.
Chegamos em Buenos Aires na segunda-feira, dia 17 de abril
e lá permanecemos até quinta-feira, dia 20 no período da
manhã; sendo que a visita/curso só aconteceria na sexta-
feira, dia 21 de abril na cidade de Tigre.
Como Buenos Aires é conhecida por ser uma grande
cidade metropolitana que conserva suas memórias
europeias, não só na arquitetura, mas também em seus
costumes e por termos um tempo reduzido para explorar
tantos pontos turísticos e interessantes, optamos por
utilizar aqueles ônibus de dois andares e visão
privilegiada. Ver a cidade por cima e poder entrar e sair
do ônibus a qualquer momento para conhecer mais de
perto alguns pontos foi bem interessante. Essa estratégia
turística, juntamente com um mapa entregue quando

74
embarcamos, nos deu a oportunidade de nos localizar de
forma mais ampla da cidade. Isto nos fez pensar que para
compreender a escuta infantil realizada e traduzida em
determinada documentação pedagógica é preciso ter
uma visão geral do contexto em que tal escuta aconteceu,
oportunizando o olhar/leitura mais ampliado do leitor.
Várias reflexões pedagógicas, sobre formação docente
e o trabalho da educação infantil, fluíam naturalmente em
conversas espontâneas durante nossas caminhadas pela
cidade, enquanto apreciávamos os costumes, as falas, a
arquitetura dos prédios e ruas em estilo europeu, com forte
influência francesa. Algo que nos chamou atenção, por
exemplo, foi o cuidado estético na organização das vitrines
de doces, de pães e de frutas. As apresentações eram
harmoniosas, convidativas e com a combinação de cores
muito evidente. Esse cuidado estético nos remeteu à
preocupação que as docentes devem ter sempre que
prepararem as propostas às crianças.
Quando falamos sobre escuta infantil, os pontos de
interesses e necessidades dos bebês e crianças devem ser
considerados e refletidos nos planejamentos e nas
materialidades. A apresentação desses materiais nas
diferentes propostas deve considerar o cuidado estético,
a fim de ser um verdadeiro convite à manipulação criativa
dos bebês e crianças, tornando a escuta infantil
igualmente mais potente.
Ficamos também maravilhadas com os sabores da
culinária local tais como: a carne de bife tipo chorizo, o
doce de leite apresentado de diferentes formas, as
medialunas e os alfajores. Além do show de tango que
nos mostrou marcos da tradição portenha. Cada
experiência vivida foi registrada com fotos e vídeos e nos
reportou às múltiplas experiências sensoriais que as
crianças devem viver na escola para que possam impactar
de forma significativa ao longo de cada dia na instituição

75
escolar. Os registros dessas vivências únicas devem ser
agrupados e organizados, a fim de narrar a potência do
vivido pelos bebês e crianças.
Enfim, no dia 20 de abril saímos de Buenos Aires e
chegamos à cidade de Tigre, utilizando transporte
público-trem, o que nos rendeu uma vivência interessante
no contato com os nativos. Esta experiência nos
proporcionou momentos de imersão cultural,
observamos paisagens, comportamentos, ouvimos falas
em espanhol e toda essa escuta nos ajudou a construir
muitos saberes e tornou a viagem mais atraente.
A linda estação de trem de Tigre fica ao lado do rio.
Ficamos encantadas em ver como o rio pulsa vida. Dentro
da água, muitos barcos de diferentes portes, pessoas
praticando remo como esporte, e em seu entorno muita
natureza, pessoas passeiam, fazem piquenique, se
exercitam, caminham com seus pets e brincam.
Logo que chegamos, vimos uma placa grande
próxima a um playground muito bem cuidado ao lado
do rio Tigre. Nela estava escrito os 10 direitos
fundamentais dos meninos, das meninas e dos
adolescentes. Isto me fez refletir sobre o respeito
necessário pela infância. Quando falamos de dar voz aos
bebês e crianças pequenas é preciso considerá-los como
sujeitos de direitos e como a escola deve estar conectada
com as famílias e comunidade para que em conjunto
possam potencializar as vivências infantis para garantir
um desenvolvimento pleno a partir de seus interesses e
necessidades, mediados pelos objetos culturais.
No dia seguinte, em “Fabulinus”, fomos conduzidas
à biblioteca, contudo o grupo que participava do
encontro caminhava a passos lentos, pois os corredores
da escola traziam muitas documentações pedagógicas
com tanto a nos contar. Foi difícil caminhar sem ler e

76
absorver cada registro, além de querer fazer fotos e
vídeos de todo o percurso para considerar mais depois.
Acomodadas em nosso assento, fomos acolhidas
pelas professoras e pesquisadoras Alejandra Dubovik e
Alejandra Cippitelli, dupla diretiva da escola e autoras
conhecidas pelas publicações sobre o trabalho
pedagógico desenvolvido na escola, tais como:
“Construção e construtividade — materiais naturais e
artificiais nos jogos de construção” e “A linha como
linguagem — o repertório do visível”.
Enquanto uma conduzia mais as falas sobre história
e concepções da escola, a outra apresentava os slides,
evidenciando oralmente seus saberes sobre a captura de
imagens e vídeos cotidianos da escola e o tratamento
destes materiais, os transformando em documentação.
As professoras Alejandras explanaram sobre muitos
tópicos, também circulamos pelos espaços da escola
livremente enquanto observamos as crianças,
trabalhando em pequenos grupos, no período da manhã
e da tarde em propostas nos espaços internos e externos.
Cada canto da escola e cada uma das ações didáticas
mereceriam uma narrativa e reflexão aprofundada, mas
seguirei com o propósito desta carta que é falar/narrar
sobre a documentação pedagógica de Fabulinus de
forma resumida.
Falando em espanhol, Alejandra Dubovik definiu a
documentação pedagógica como toda produção de
rastro dos saberes das crianças, tal como: anotações, rede
de observações, diários, fotografias, imagens, ideias,
produções etc. em que os adultos interpretam os
materiais e os organizam para passar uma mensagem aos
leitores.
São necessários três conceitos inseparáveis para que
ocorra a apresentação da documentação pedagógica: a
observação, a escuta ativa e a interpretação. Estes são atos

77
subjetivos, desde o momento da observação até a
interpretação, pois acontece de acordo com a nossa
construção interpretativa. Assim, um professor iniciante
terá uma visão diferente de um professor experiente. Por
isso é que incentivam a valorização da análise coletiva do
cotidiano da escola.
A observação e a escuta, interpretadas na
documentação pedagógica, são ações ativas, requer um
ser humano que vê outro ser humano. Um olhar
aprofundado em que ocorra a acolhida e entrega ao
outro.
Ao planejar e preparar o contexto de aprendizagem
é preciso se preocupar de antemão também com o que
se quer observar para ter foco durante o registro, para
isso é importante fazer boas perguntas a si mesmos sobre
possíveis ações e saberes das crianças. O foco é
importante, pois sem ele, os docentes olharão para o
todo e dificilmente conseguirão interpretar com mais
profundidade, pois haverá muitos elementos a
considerar. Também suas fotos e outros registros serão
guiados por suas perguntas, facilitando a organização e
interpretação dos materiais.
Em nossas observações da escola “Jardín Fabulinis”,
notamos que todas as paredes da escola, incluindo o
banheiro adulto carregam imagens e marcas das crianças,
mas não de forma aleatórias, todas são organizadas e
contextualizadas, como que contando um processo
vivido, carregado de aprendizagens, conversando com o
ambiente em que estão fixados e com uma preocupação
estética. Dentro do banheiro adulto, por exemplo,
tinham diferentes desenhos de cadeiras feitos por crianças
feitos com canetinhas pretas em papel claro. Eram 2
conjuntos de desenhos organizados com cerca de 8
desenhos cada, colocados de 2 em 2 em um fundo preto,

78
abaixo de cada desenho de cadeira, uma pequena
etiqueta com o nome do autor.
Outro exemplo que podemos compartilhar é o local
com torneiras que provavelmente as crianças escovam os
dentes. Acima das torneiras havia um grande painel com
escrita e fotos das crianças. Uma sequência de fotos e
escritas com a técnica de lavar as mãos e outra sequência
de fotos e escritas com a técnica para escovar os dentes.
Mais um exemplo seria, o caderno de desenho ao
lado de cada porta, dentro de um suporte de acrílico
transparente. Nele o grupo vai montando um álbum em
que a cada duas páginas abertas, compondo uma só,
documentam as vivências mais significativas do grupo,
com escritas, fotos, desenhos e colagens. Este ganha um
formato digital para ser compartilhado nas mídias da
escola e é também compartilhado na reunião com os pais.
Chego ao final da narrativa de minha viagem
pedagógica, desejando que esta carta tenha colaborado
para a reflexão sobre a potência de uma viagem para a
ampliação cultural, possibilitando diversas relações
subjetivas e a importância da documentação pedagógica
como rastro dos saberes a partir das experiências das
crianças na instituição de Educação Infantil “Jardín
Fabulinus”.

Abraços,
Adriana da Costa Santos

79
80
DÉCIMA SEGUNDA CARTA

A ARTE DA ESCRITA DE CARTAS PEDAGÓGICAS


COMO ESTRATÉGIA INSPIRADORA E EFICAZ NOS
PROCESSOS FORMATIVOS

Caros companheiros de jornada,

Vocês são responsáveis por organizar itinerários


formativos, espero que esta carta encontre todos e todas
vocês bem e com muita energia para continuar
transformando vidas e potencializando sonhos por meio
da educação. Nos tempos atuais, em que predomina a
volátil forma de comunicação por e-mails, coloco-me ao
lado daqueles que preferem a energia ritual das cartas
escritas em papel, que são encarnadas por olhos, mãos e
pensamentos que se revelam por meio delas.
Valorizar esses discursos que nos atravessam por
meio das cartas pedagógicas é sempre um exercício muito
poderoso de reflexão e também de mobilização de novas
percepções sobre nossa prática.
Escrever cartas pode, à primeira vista, parecer uma
atividade antiquada para muitos, entretanto pretendo
encorajá-los a utilizá-las como uma importante estratégia
formativa, que podem tornar-se uma referência para a
localização das nossas trajetórias pessoais e profissionais,
graças à plasticidade que carregam, abrindo janelas para
novas percepções sobre aspectos que já experimentamos
na vida e na profissão.
Pensem, meus caros e caras colegas, em quantas
dessas percepções podem ser alteradas sobre nós e sobre
nossas ações no contexto profissional em que atuamos?
Quantas frestas podem ser abertas para tornarem possível

81
que nossos sonhos possam respirar e nossa atuação ser
aprimorada?
Eu vejo as cartas pedagógicas como um hiper gênero
textual por ser democrático, afetuoso, flexível e,
sobretudo, formativo, já que elas favorecem um
movimento tríplice de (in) (trans) formação, além de
preservar memórias, aproximar pessoas, aconselhar e
construir vínculos.
Quando enviadas e respondidas o conteúdo dessas
cartas enriquecem nossas experiências dando a elas novas
sonoridades e novas tonalidades, que introduzem
também novos significados às nossas antigas percepções.
Talvez sejam esses os motivos pelos quais o gênero
epistolar sempre me atraiu, porque de certa forma, as
cartas são sempre autobiográficas, permitindo acessar
mundos possíveis. Elas carregam uma energia textual que
materializa saberes, dúvidas e convicções de forma
compartilhada, fazendo com que o verbo ganhe corpo e
se torne carne.
Na esteira do patrimônio que nos foi legado por
Paulo Freire, lembro que o saudoso educador utilizou de
forma recorrente as cartas pedagógicas como instrumento
de formação, materializando o que poderíamos entender
como uma verdadeira “epistemologia da escrita”, a partir
do interior de uma ação educativa coletiva e dialógica,
nos mais diversificados itinerários formativos.
Estou chamando de cartas pedagógicas as cartas de
intenção e todas aquelas com objetivos formativos que
emergem de um processo de comunicação em ação,
ligando sujeitos com a intenção de compartilhar um
propósito educativo, sejam eles formadores, gestores,
professores ou alunos. Essas cartas que, às vezes, podem
se manifestar como textos institucionais “não precisam ser
prescritivos, áridos, artificiais ou desprovidos de
personalização. Penso que é perfeitamente possível

82
alterar essa lógica, subvertendo-se a lógica das relações
assimétricas que elas espelham fazendo emergir cartas
pautadas na argumentação respeitosa e na emoção
dialogante.
Claro está que não se trata apenas de utilizar esse
formato textual, mas de assumir uma predisposição
interior para a escrita que traz um jeito específico de sentir
e interpretar nossas práticas e construir relações
profissionais e humanas.
Sem dúvidas, meus caros e caras, julgo que a relação
interpessoal direta é importantíssima nos processos
formativos, entretanto a utilização das cartas pedagógicas
com a perspectiva de formação em rede, não pode ser
menosprezada, porque é um eficaz dispositivo de
formação que se baseia na troca de experiências e na
reversibilidade de papéis dos profissionais que interagem
nos ambientes educativos.
Encorajo-os(as) a superar os preconceitos que as cartas
carregam e a utilizá-las como uma estratégia potente.
Como nos lembra Larrosa, penso que elas promovem a
expansão do tempo kairótico da escrita e da reflexão. Elas
suspendem o automatismo das ações irrefletidas e se
voltam para as experiências que nos afetam, celebrando
um verdadeiro momento de encontro em que o outro se
torna presente por meio da escrita.
O papel que vocês desempenham como formadores
de outros educadores é um pilar fundamental para
construção da profissionalidade docente que dá
sustentação à qualidade de educação.
Por esses motivos gostaria de incentivá-los a usarem
as cartas pedagógicas que oferecem feedback
personalizado, para os destinatários facilitando o
crescimento dos educadores em formação e permitindo
que reflitam sobre suas práticas cotidianas pedagógicas.

83
Penso também (e esse aspecto me seduz) que as
cartas pedagógicas podem funcionar muito bem como
processo de autoavaliação que estimula a autorreflexão,
permitindo-nos estabelecer metas realistas e claras para
diminuir as áreas de nossas fragilidades e assumir o
desenho de novas estratégias educacionais.
Quando se envia ou se recebe uma carta pedagógica
que nos dá um feedback claro, objetivo, honesto e,
sobretudo respeitoso, torna-se possível estabelecer um
canal educomunicativo aberto que revela o nosso
interesse pelo desenvolvimento do destinatário ou as
motivações do emissor.
Vejo que essa estratégia conduz necessariamente a
uma reflexão crítica e ao desenvolvimento de uma
mentalidade aberta e adaptável aos desafios de uma
educação que se encontra em constante evolução.
Caros companheiros e companheiras de jornada, por
fim, mas não menos importante, apesar de todos os
avanços tecnológicos que experimentamos hoje, entendo
que essas interações escritas por cartas que são
personalizadas e autênticas são fundamentais para
construção de vínculos significativos e para promoção de
um ambiente de confiança entre os pares nos espaços
educativos.
Assim, espero que ao ler esta carta, vocês não
desistam de continuar sonhando com uma sociedade mais
justa em que educadores e educadoras possam crescer
coletivamente em uma rede colaborativa de formação e
que troquem entre si suportes mútuos por meio de cartas
pedagógicas que permitam-nos resgatar a nossa condição
de sujeitos reflexivos.
Despeço-me com um fraterno e respeitoso abraço
para todos e todas.

Nádia Conceição Lauriti

84
PS: Antes de concluir, peço licença para sugerir textos de
referência que me atravessaram amorosamente enquanto
escrevia esta carta que penso que serão inspiradores para
que vocês possam assumir as cartas pedagógicas como um
importante recurso de formação.

Referências

LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber de


experiência. Rev. Bras. Educ. [online]. n.19, 2002.
LARROSA. Pedagogia profana: danças, piruetas e
mascaradas. Tradução Alfredo Veiga-Neto. Porto Alegre:
Contrabando, 1998.
FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem
ousa ensinar. São Paulo: Olho d'agua, 1997.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas
pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.

85
86
DÉCIMA TERCEIRA CARTA

CONSTRUINDO MEMÓRIAS POR MEIO DA ESCRITA

Olá professor, como vai? Espero que esteja bem.

Começo esta carta contando um pouco sobre quem


eu sou. Meu nome é Tatiana Alves, professora de
Educação Infantil na Rede Municipal de São Paulo, desde
2014. Mas minha relação com a educação iniciou
enquanto cursava o Centro Específico de Formação e
Aperfeiçoamento do Magistério (Cefam), nos anos 2000.
Lá estudei por quatro anos, tive a primeira experiência
sobre o ofício de professora, fiz amizades que carrego até
hoje. Depois disso cursei Pedagogia, pós-graduações lato
sensu, cursos livres, até chegar no mestrado, para mim um
sonho, por vezes distante, mas que se concretizou no
momento certo. Nem tudo acontece na hora que
desejamos, seja por amadurecimento pessoal, profissional
ou simplesmente porque não era para ser naquele
momento. Há tempo para tudo.
Pensei em inúmeras situações para compartilhar com
você sobre a minha trajetória como professora, afinal, são
quase vinte anos no chão da escola, portanto, o que não
faltam são experiências. Algumas engraçadas, outras nem
tanto. Fiquei refletindo sobre como escrever alguma
experiência significativa de forma a te ajudar a refletir sobre
o ofício do professor. E por que falar sobre isso? Porque
entendo que a mudança contínua do nosso fazer
pedagógico parte primeiro da reflexão que nasce na escrita.
A primeira vez que li algo a respeito sobre essa
reflexão da própria prática foi no livro Pedagogia da
Autonomia, de Paulo Freire. Lembro-me de ler esse livro

87
no trem em algumas das viagens que fazia para lecionar
numa escola em outro município. As palavras de Freire
me atravessavam como flechas. Em um desses trechos ele
dizia: “Gosto de ser gente, porque inacabado, sei que sou
um ser condicionado, mas, consciente do inacabamento,
sei que posso ir além dele” (Freire, 1996, p. 53).
Confesso que já li esse livro outras vezes e cada vez
que o leio novas palavras saltam diante dos meus olhos e
me encontram. Paulo Freire tinha o dom da palavra,
entendia o professor e a realidade docente como
ninguém. Falava com propriedade. Simplicidade. Talvez
por isso ele seja um dos meus autores favoritos.
Gosto de textos que me encontram, me abraçam, me
confrontam e sempre que leio algum texto assim, penso
sobre quem está por trás daquela escrita. Como escrever
textos que alcançam o leitor de forma genuína? Isso me fez
e me faz pensar sobre as nossas escritas pedagógicas. O
quanto aproximamos ou afastamos quem lê um registro
feito por nós? O quanto somos verdadeiros quando
relatamos uma situação cotidiana vivenciada com as
crianças? Quais as memórias estamos construindo por meio
da escrita? São perguntas que latejam constantemente em
minha mente. Por isso, queria saber mais, estudar sobre a
escrita como uma ferramenta indispensável para nosso
processo reflexivo e como ela nos auxilia diariamente
sobre nosso trabalho junto às crianças.
E por que estou compartilhando isso com você?
Porque eu já tive medo de escrever. Medo de ser julgada,
ridicularizada ou simplesmente não achar que o que eu
escrevia tinha importância, afinal ninguém lia. Às vezes
somos tomados por sentimentos assim. E esse sentimento
nos faz cair num engano ainda maior que é escrever
mecanicamente. Produzir textos sem vida, sem liberdade.
Consequentemente isso nos leva para um caminho
ainda mais triste que é reproduzir textos que não são de

88
nossa autoria. Sabe professor, sempre que vejo isso fico
pensando o quanto esse docente e principalmente as
crianças estão perdendo por não terem as suas histórias
narradas, contadas fielmente. O quanto de memória está
sendo perdida.
Por isso resolvi te escrever, para te encorajar. Dizer
que é possível escrever sobre esse cotidiano na escola de
forma autêntica. Escrever sobre as minúcias da vida.
Escrever sobre a chegada, as brincadeiras, as surpresas, o
parque. Escrever sobre que deu certo, mas também o que
deu errado. Escrever sobre o inesperado. Escrever com
sentimento, com emoção, com detalhes. Sem medo de
não ser compreendido. Afinal, não podemos controlar o
que o outro vai pensar sobre o que escrevemos. E quando
entendemos isso, é libertador.
Escrever é exercício. Não dominamos da noite para o
dia. Precisamos nos dedicar, separar um tempo por menor
que seja na nossa rotina. Sei que você deve estar pensando:
Que horas vou escrever? Tenho turmas numerosas. Não
tenho tempo na escola e tantos outros questionamentos
que devem passar na sua cabeça. Mas calma. Acredite, eu
falo do mesmo lugar que você. Pensamentos assim já
rondaram minha cabeça. Mas entendi nesse processo da
escrita que separar um tempo por menor que seja é
fundamental, afinal nossa memória não guarda tudo. Seria
maravilhoso ter um período para nos dedicar a essa escrita,
não seria? Por outro lado, sei qual é a nossa realidade
como docentes, e é aí que pego emprestada as palavras de
Maria Alice Proença1 que diz sobre o real, o ideal e o
possível. Qual o seu possível hoje?

1Doutora em educação e currículo pela PUC-SP, mestre em didática e


metodologia pela Faculdade de Educação da USP e graduada em
história.

89
Cinco, dez, quinze minutos? Ótimo! Vá aumentando
a frequência desse tempo e aos poucos você verá a sua
forma de escrever desabrochar.
Minha intenção com essa carta não é romantizar
algo que ainda é uma dor para muitos professores, mas
compartilhar que a escrita é minha melhor amiga para me
ver, me enxergar como professora. E assim como escrever
é um processo de reflexão da minha prática pedagógica
acredito que ela poderá te ajudar também nesse processo
de identidade e autoria nos registros.
Escrever me transforma diariamente como mulher,
mãe, esposa, professora. Deixar isso guardado só para
mim seria um tanto egoísta. Acredito que a docência se
constrói no coletivo.
Me despeço por aqui, espero que minhas palavras
tenham tocado você de alguma forma. Tenho esperança
que você seja transformado pela escrita, que passe a
enxergar esse cotidiano mais colorido e menos
anestesiado, que se encontre, se enxergue, se reconheça.
A sua escrita tem valor, nunca esqueça disso.
Finalizo esta carta, professor, com um pedido:
Continue escrevendo.

Abraços afetuosos
Tatiana Nogueira Alves

Referência

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes


necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
1996.

90
SOBRE AS AUTORAS

Aline da Silva Grenfell


Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação Profissional
Gestão e Práticas Educacionais, da Universidade Nove de
Julho (Progepe/Uninove). Graduada em Pedagogia e
Artes Visuais, com especialização em Psicopedagogia.
Atua como coordenadora pedagógica em um Centro de
Educação Infantil da Rede Municipal de São Paulo.
E-mail: litllelik@gmail.com

Adriana da Costa Santos


Mestra pelo Programa de Pós-Graduação Profissional
Gestão e Práticas Educacionais, da Universidade Nove de
Julho (Progepe/Uninove). Graduada em Pedagogia, com
especialização em Educação Infantil, Didática e Supervisão
Escolar. Atua como coordenadora pedagógica em uma
creche na Rede Municipal de São Bernardo do Campo.
E-mail: adriana27sp@gmail.com

Amanda Loureiro de Oliveira


Mestra pelo Programa de Pós-Graduação Profissional
Gestão e Práticas Educacionais da Universidade Nove de
Julho (Progepe/Uninove). Graduada em Pedagogia, com
especialização em Educação Infantil e Docência no Ensino
Superior. Atua como professora de Educação Infantil na
Prefeitura Municipal de São Paulo e na Prefeitura
Municipal de Santo André.
E-mail: loureiroamanda666@gmail.com

Amanda Maria Franco Liberato


Mestra pelo Programa de Pós-Graduação Profissional
Gestão e Práticas Educacionais da Universidade Nove de

91
Julho (Progepe/Uninove). Graduada em Pedagogia, com
especialização em Alfabetização Escrita e Numérica. Atua
como docente da Educação Infantil na Rede Municipal de
São Paulo.
E-mail: amandaliberato10@yahoo.com.br

Ana Paula Hernandes


Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação Profissional
Gestão e Práticas Educacionais, da Universidade Nove de
Julho (Progepe/Uninove). Graduada em Educação Física,
com especialização em Educação Física Escolar e
Fisiologia. Atua como professora de Educação Física da
Educação Infantil na Rede Municipal de Santo André.
E-mail: paulinhakk@gmail.com

Elaine Carla Sartori Guedes de Oliveira


Doutoranda e Mestra em pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho
(PPGE/Uninove). Graduada em Pedagogia, com
especialização em Educação Infantil e Alfabetização e
Letramento. Atua como professora de Ensino
Fundamental na Rede Municipal de Santo André.
E-mail: elaine.carla@uni9.edu.br

Lidiane dos Reis Santos Amorim


Mestra pelo Programa de Pós-Graduação Profissional
Gestão e Práticas Educacionais da Universidade Nove de
Julho (Progepe/Uninove). Graduada em Pedagogia, com
especialização em Psicopedagogia Clínica e Institucional e
em Neuropsicopedagogia. Atua como Diretora em Escola
na Rede Municipal de Santo André.
E-mail: lidiane.amorim.2022@gmail.com

92
Ligia de Carvalho Abões Vercelli
Doutora e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Nove de Julho (PPGE/Uninove).
Graduada em Psicologia e em Pedagogia, com
especialização em Psicopedagogia e em Psicanálise. Atua
como docente no Programa de Pós-Graduação Profissional
Gestão e Práticas Educacionais (Progepe) e no curso lato
sensu em Psicopedagogia, da Uninove.
E-mail: vercelli.ligia@gmail.com

Nádia Conceição Lauriti


Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Nove de Julho (PPGE/Uninove). Mestra em
Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC/SP). Graduada em Pedagogia e em Letras
com especialização em Avaliação Institucional, em
Linguística/Semântica e Filologia e em Língua Francesa e
Literatura Portuguesa. Docente do Programa de Pós-
Graduação Profissional Gestão e Práticas Educacionais
(Progepe) e do curso de Pedagogia, da Uninove.
E-mail: nadia@uni9.pro.br

Rosemeire Fernandes
Mestra pelo Programa de Pós-Graduação Profissional
Gestão e Práticas Educacionais da Universidade Nove de
Julho (Progepe/Uninove). Graduada em Letras e
Pedagogia, com especialização em Psicopedagogia e em
Educação Especial. Atuou como docente e Assistente
Pedagógica no Polo Bilíngue dos Surdos na Rede
Municipal de Santo André.
E-mail: rofernnandes11@gmail.com

Tatiana Nogueira Alves


Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação Profissional
Gestão e Práticas Educacionais, da Universidade Nove de

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Julho (Progepe/Uninove). Graduada em Pedagogia e
História, com especialização em Gestão Educacional,
Registro e Documentação Pedagógica. Atua como
professora de Educação Infantil na Rede Municipal de São
Paulo.
E-mail: tatynalves@gmail.com

Vanilda Pereira Nunes de Sousa


Mestra pelo Programa de Pós-Graduação Profissional
Gestão e Práticas Educacionais, da Universidade Nove de
Julho (Progepe/Uninove). Graduada em Pedagogia, em
Letras Português e Inglês, com especialização em
Neuropsicopedagogia. Atua como coordenadora
pedagógica na Rede Municipal de São Paulo.
E-mail: dudaoliveirawsb@gmail.com

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