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Peões, gaúchos, vaqueiros,

cativos campeiros:
estudos sobre a economia pastoril no Brasil
UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

Rui Getúlio Soares


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Sergio Machado Porto
Zacarias M. Chamberlain Pravia
Mário Maestri
(Org.)

Peões, gaúchos, vaqueiros,


cativos campeiros:
estudos sobre a economia pastoril no Brasil

Universidade de Passo Fundo


2009
Copyright © Editora Universitária

Maria Emilse Lucatelli


Editoria de Texto

Sabino Gallon
Revisão de Emendas

Alisson Gampert Spannenberg


Produção da Capa

Sirlete Regina da Silva


Editoração e Composição Eletrônica

Este livro no todo ou em parte, conforme determinação legal, não pode ser reproduzi-
do por qualquer meio sem autorização expressa e por escrito do autor ou da editora.
A exatidão das informações e dos conceitos e opiniões emitidos, bem como as ima-
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Sumário

Sobre o Plata e o RS
A economia agropastoril missioneira ........................................................ 9
Júlio Ricardo Quevedo dos Santos

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul................ 45


Mário Maestri

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense


esclavista en el norte uruguayo (séc. 19) .............................................. 92
Eduardo R. Palermo

No extremo sul, uma elite diferenciada .................................................131


Andréia Oliveira da Silva

Estâncias fortificadas .........................................................................163


Ester J. B. Gutierrez
Sobre o Mato Grosso
Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato GrossoConsiderações sobre
terra e escravidão (1830-1889) ........................................................213
Maria do Carmo Brazil

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) ...... 245


Elaine Cancian
A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal
Sul-Mato-Grossense ........................................................................... 284
Paulo M. Esselin
Sobre o Piauí
Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí ............... 349
Solimar Oliveira Lima
Sobre o Plata
e o RS
A economia agropastoril
missioneira

Júlio Ricardo Quevedo dos Santos*

Introdução
No rigoroso inverno de 1753, grupos de guaranis que vi-
viam nos Sete Povos das Missões (atual Rio Grande do Sul)
organizavam um grande movimento social e popular que
traduzia as tensões e os conflitos emergidos das mudanças
políticas definidas nos meandros das tratativas de aplicação
do Tratado de Madri, assinado entre as Cortes ibéricas em
1750. Aqueles grupos reivindicavam para si o direito de per-
manecerem no espaço onde haviam nascido, viviam e haviam
enterrado os seus ancestrais. Deixavam claro ao governo colo-
nial localizado em Buenos Aires os reais motivos pelos quais
não desejam transmigrar às terras à direita do rio Uruguai,
discutindo questões cruciais para sua sobrevivência, entre
as quais os elementos constitutivos da economia missioneira
(a terra, o gado, as estâncias, os ervais e os povoados). Ao
definirem para aquela autoridade o desejo de ficar, de lutar
e, se necessário, morrer, historiavam e relembravam-lhe as
antigas negociações políticas feitas por seus ancestrais com
os jesuítas e as autoridades coloniais. Esse momento pecu-
liar nos permite compreender alguns aspectos das estruturas

*
Docente do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria
e Doutor em História pela Universidade de São Paulo.

A economia agropastoril missioneira 9


socioeconômicas das Missões, entre os quais as práticas agro-
pastoris, em seus elementos constitutivos.
Essas práticas agropastoris de caráter autossuficiente,
base da vida comunitária nas Missões, foram construídas e
decorreram dos desdobramentos das negociações entre mis-
sioneiros e missionários, nas quais o conjunto da comunidade
interferia cotidianamente na defesa da sobrevivência coletiva
e da economia autossuficiente, na ordem do bem comum. Tais
acordos foram construções cotidianas de todos os indivíduos
na perspectiva de preservar os interesses da comunidade. As-
sim, nos embates dos missioneiros pela defesa dos seus inte-
resses, alcunhados nas correspondências sobre as quais dis-
correremos a seguir, esses assumem o protagonismo de luta
pelos elementos constitutivos da economia missioneira, visto
que o seu desmantelamento comprometeria as alianças cons-
truídas ao longo daquela experiência.
Primeiramente, partimos da ideia de que as primeiras
práticas de colonização ibérica do atual Rio Grande do Sul
foram iniciativas da Corte de Espanha e da Companhia de Je-
sus. O primeiro “ensaio” colonial ocorreu no século 17, quan-
do os jesuítas negociaram com parcialidades guaranis que
habitavam em áreas que compreendiam as bacias dos rios
Uruguai e Jacuí. Trataremos aqui de parcialidades guaranis
com base na análise de Elisa Garcia sobre “as diferenças e as
disputas internas entre os guaranis que estavam caracteriza-
dos, principalmente em momentos de inflexão, pela presença
de desavenças sobre os melhores rumo a seguir.”1 Em meio a
diversos conflitos existentes na região do rio da Prata, jesuí-
tas e guaranis construíram comunidades autônomas denomi-
nadas de “reduções”. Nesses espaços coloniais, parcialidades

1
GARCIA, Elisa F. Em busca de novos vassalos: as estratégias dos portugueses
para a atração dos índios, durante as tentativas de demarcação do Tratado
de Madri, na Região Sul. In: MONTEIRO, Rodrigo Bentes (Org.).Espelhos de-
formantes: fontes, problemas e pesquisas em História Moderna (séculos XVI
– XIX). São Paulo: Alameda, 2008. p. 212.

10 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


guaranis negociaram política e socialmente o seu lugar na
Missão e no Estado espanhol, sendo os atores sociais que efe-
tivaram as práticas reducionais.
Com base nessas premissas, propomo-nos estruturar
uma trajetória de análise que tenha por base as inflexões que
construíram/desconstruíram a economia agropastoril missio-
neira e o quanto ela foi capaz de ratificar os acordos entre os
jesuítas e as parcialidades guaranis que aceitaram se tornar
missioneiras. Para edificar tal proposta, dialogamos com di-
versas fontes e, na medida do possível, procuramos que dia-
logassem entre si.

O guarani negocia ser missioneiro


Sobre o que pretendemos aqui abordar, talvez a fonte a
seguir, produzida pelos guarani-missioneiros do Cabildo de
São João Batista, em 1753, seja a melhor referência da nossa
proposta de análise. Seguem alguns fragmentos da narrativa
guarani: “O nosso santo Rei Felipe V nos avisou no ano de
1716: – Cuidai muito bem da minha terra e cuidai também
de vós mesmos, para que não vos façam mal os vossos inimi-
gos, que são os meus inimigos! Também envio em meu lugar
os meus governadores, encarregando-os de cuidarem de vós.
Certamente eu não vos tirarei de vossa terra e nem ainda hei
de molestar-vos em coisa nenhuma. Disse-nos (ainda) então:
– Cumpri apenas as minhas palavras! O Rei Dom Felipe V. E
mando-vos também os padres da Companhia de Jesus, filhos
de Santo Inácio, com a finalidade de conquistarem para Deus
as vossas pobres almas. É somente o que vos mando. [...] Nós
não fomos conquistados por espanhol algum, pois nos fizeram
vassalos de nosso Rei exclusivamente pelos motivos e pala-
vras dos Padres. É por isso que sempre cumprimos a vontade
de nosso santo Rei. Sempre (que necessário) fomos a Buenos
Aires, para levantarmos o forte. Também fomos a Montevidéu,

A economia agropastoril missioneira 11


para erguer a fortaleza, cumprindo assim e assim venerando
as suas palavras. Depois disso fomos ainda para o Paraguai,
pacificando os paraguaios e tornando-os vassalos fiéis como
nós mesmos. Vês desta forma, o que fizemos por nosso santo
Rei, perdendo nossa fazenda e vida, e o que fizemos pelo nos-
so Deus.”2
Iniciar esta narrativa com esta fonte é uma forma ins-
tigante de recuperar os possíveis significados partilhados da
Missão para o guarani-missioneiro. Primeiro, porque se trata
da fala guarani – de uma parcialidade que vivia na Missão e,
por isso, denominado de “guarani-missioneiro”. Segundo, essa
fala foi produzida em um dos tantos momentos de inflexão
que constituem o tempo missioneiro, na qual se percebe que
os cabildantes tinham consciência histórica das razões que
os haviam levado para a Missão. Expunham os eventos de
um tempo presente para eles, ao citarem um momento deli-
cado de negociação com o monarca espanhol após os conflitos
da guerra civil da sucessão (1701-1715) na Espanha, quando,
após os tratados de Utrecht, a dinastia Bourbon foi confirma-
da na Corte daquele país. Terceiro, a seguir desses conflitos,
novas negociações políticas foram articuladas com os guara-
ni-missioneiros, ratificando-lhes seus direitos de vassalagem
e de usufruto da terra, como narram os cabildantes de São
João e dos outros cinco Povos da margem esquerdo do rio Uru-
guai, com exceção de São Borja.
Mas para o guarani-missioneiro, o que era “ser vassalo”
após a instauração dos Bourbons na Corte espanhola? É um
momento em que, após uma série de conflitos, se retomam as
negociações pela manutenção e defesa do guarani no espaço
missioneiro da região do rio da Prata. Dessa forma, os cabil-

2
Correspondência dos caciques e índios do Povo de São João do Uruguai ao go-
vernador de Buenos Aires, José de Andonaegui, em 16/07/1753. In: RABUSKE,
Arthur. Cartas de Índios Cristãos do Paraguai, Máxime dos Sete Povos, data-
das de 1753. Estudos Leopoldenses, São Leopoldo: Unisinos, v. 14, n. 47, 1978.
p. 70-71.

12 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


dantes dos Sete Povos da margem esquerda do rio Uruguai
não só explicam como recuperam o princípio da Missão, de
um outro momento anterior àquele (início do século 17), por
meio de acordos, de alianças, enfim, de negociações com os
padres jesuítas, parcialidades guaranis que se interessaram
pelas propostas de evangelização dos missionários e aceita-
ram viver na Missão. Para efetivar tal projeto, evidenciam
que não foram “conquistados por espanhol algum, pois nos
fizeram vassalos de nosso Rei exclusivamente pelos motivos
e palavras dos Padres”. Ao se sentirem vassalos da Corte es-
panhola, em todos os momentos, lembram às autoridades his-
pânicas que sempre cumpriram com sua parte no acordo, ex-
pondo as suas ações políticas na defesa dos interesses comuns
das comunidades missioneiras e do Estado espanhol.
Os guarani-missioneiros de São João indicam que não
têm dúvidas sobre a sua inclusão no projeto político do Estado
espanhol e, como artífices da experiência reducional, argu-
mentam ao governador de Buenos Aires a importância sobre
“o que fizemos por nosso santo Rei, perdendo nossa fazenda
e vida, e o que fizemos pelo nosso Deus”. Esse “fazer” revela
vários aspectos, entre os quais a demonstração de estarem
seguindo o que fora estipulado e em conformidade com as di-
retrizes da Corte espanhola. Articula, igualmente, os eventos
do presente com os do passado, anteriores à formação e or-
ganização dos Sete Povos, quando os antepassados guaranis
negociaram com os jesuítas a vida na Missão. Nesse esfor-
ço intelectual de vincular o presente-passado, percebe-se a
consciência histórica presente na narrativa dos guarani-mis-
sioneiros de São João, já que se fazem referências aos acon-
tecimentos ocorridos no século 17, em seus dois momentos
diferenciados da evangelização do guarani: o primeiro, entre
1620-1640, quando foram fundadas as primeiras Reduções,
com a introdução do gado (Vacarias) e das novas tecnologias
desconhecidas pelos guaranis, como o arado puxado a boi; o

A economia agropastoril missioneira 13


segundo, pós-1682, com a fundação dos Sete Povos das Mis-
sões, à margem esquerda do rio Uruguai, fase em que se for-
maram as estâncias missioneiras na antiga Banda Oriental
do rio Uruguai. Efetivamente, a expansão colonial atingiu
quase a totalidade do atual território sul-rio-grandense.
A conquista efetiva da terra esteve articulada à política
colonial hispânica pautada na ocupação da terra e na tentati-
va de restringir, desde o século 16, os direitos das populações
originárias sobre suas terras. Em 1519, o rei espanhol cató-
lico declarara: “Por donación de la Santa Sede Apostolica y
otros justos y legítimos títulos, somos senõres de las Indias
Occidentales, Islas y Tierra firme del mar océano, descubier-
tas o por decubrir y están incorporadas en nuestra Real Co-
rona de Castilla.”3
A ocupação das terras das populações originárias do con-
tinente americano, e, particularizando, das terras habitadas
pelas parcialidades guaranis que viviam nas áreas das bacias
dos rios Uruguai e Jacuí esteve pautada num efetivo aparato
legal conhecido como “Leyes de Índias”, que tratava de pre-
servar os interesses da Coroa de Espanha sobre a América.
Essas leis definiam os espaços geográficos que os colonizado-
res tinham de ocupar, estipulando que fosse saudável, ou seja,
que fosse terra apta para semear e colher.4 Além disso, os co-
lonizadores tinham de observar que o tipo humano que habi-
tava a terra deveria ser conquistado.5 A correspondência dos
guarani-missioneiros de São João referenda o cumprimento
da lei, ao concordar que esta é do Estado espanhol. Entretan-
to, avança na interpretação da mesma, ao julgar que as terras
missioneiras se encontram na origem do acordo entre os re-
manescentes guaranis, os jesuítas e a monarquia espanhola.

3
Compilación de las Leyes de Indias. Ley I, Título I, Libro III. V edición, Madrid,
1841.
4
Op. cit. Leyes I e II - título V - Livro IV.
5
Ib. idem.

14 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


Convém recuperar a questão agrária na América Espa-
nhola a fim de compreender a distribuição das terras e os
seus sucessivos conflitos: “Las tierras fueran divididas en
tierras de españoles y en tierras de los indios, y cada una de
las partes en tierras de la comunidad y en tierras del dominio
privado. Las de los españoles del dominio privado se subdivi-
dieron en solares, peonias y caballarias. Españoles e Indios
fueran a la vez agrupados en partidos y los últimos también
en aldeas, fijándoles los limites territoriales de los partidos y
de las aldeas.”6
Como desdobramento da questão agrária, desde a se-
gunda metade do século 16 as terras reservadas às comu-
nidades indígenas foram sendo ocupadas pelos colonos es-
panhóis. Nesta parte da América, diversos grupos guaranis
foram sendo expulsos de suas terras e viram-se obrigados a
migrar para os núcleos urbanos ou para regiões mais afasta-
das. Em muitos momentos de inflexão, diversas populações
originárias rebelaram-se e resistiram às práticas de domina-
ção do conquistador, não raro pressionando as autoridades
espanholas a negociar com esses grupos.7 Os encomenderos
aproveitaram-se da situação e impuseram trabalho excessivo
aos índios encomendados, efetuando forte extração de sobre-
trabalho. É nesse momento de conflito e tensão que os jesuítas
buscaram alianças com parcialidades guaranis da Província
do Paraguai, conjugando a conquista espiritual à conquista
temporal, denunciando os maus-tratos dos espanhóis em de-
trimento dos possíveis bons tratos e vantagens que os guara-
nis obteriam na Missão.

6
PASTORE, Carlos. La lucha por la tierra en el Paraguay. Montevidéo: Ante-
quera, 1972. p. 18.
7
Conferir Florência Roulet em Resistência de los guarani del Paraguay; Barral,
Rebeliones indígenas en la América Española e, mais recentemente, Rossi e
Carbone, Historia, identidad y culturas originarias de la Argentina. São obras
que analisam algumas faces da resistência das populações ameríndias durante
o processo de conquista da região do Rio da Prata.

A economia agropastoril missioneira 15


Como forma de legitimar o discurso jesuítico, a situação
é narrada da seguinte forma: “Empezaron los encomenderos a
oprimir a los indios y también a sus mujeres y hijos con pesa-
dos trabajos, impidiendo-les adquirir bienes y reduciéndolos
a la miseria. Los transladaron de sus aldeas a las quintas de
los españoles y los dedicaban a varias faenas sin recompensa
alguna. En otras ocasiones los vendian, cubriendo esto con
varios nombres y pretextos.”8
Em meio à violência do conquistador, gradativamente,
setores das classes dominantes coloniais – as autoridades
espanholas – passaram a negociar com alguns grupos gua-
ranis do Paraguai. Nesse processo de negociação, em 1597 fo-
ram promulgadas as Ordenanzas de Juan Velasco, as quais
determinavam que os encomenderos deveriam entregar aos
guarani encomendados lotes de terra, rica o suficiente para
que, em três anos, recuperassem suas perdas agrícolas: “El
servicio personal de los indios, debia ser prestado los dias lu-
nes, martes, miércoles y jueves, reservándose los domingos
para los actos religiosos y los viernes y sábado para que los
guaraníes, sus mujeres y hijos trabajen en sus chacras para
hacer frente a las necesidades de sus propia familias [...] Cua-
tro días de trabajo para los conquistadores, uno para los actos
religiosos e dos para su propio beneficio, completan la jornada
semanal de la población guaraní, reglamentada por las Orde-
nanzas de Velasco, que aliviaban la condición de la esclavi-
tud a que estaba sometida hasta entonces, en que todas sus
energías las empleaban al servicio exclusivo de los hombres
encomenderos.”9
Posteriormente, em 1598, foram promulgadas as Orde-
nanzas de Hernandarias de Saavedra, em que se definia que
os “guaranis encomiendados” fossem agrupados em povoados,
organizados em terras suficientes para o cultivo e que jamais
8
TECHO, Nicolás del. História de la Provincia del Paraguay de la Compañia de
Jesús. (1ª ed. 1673). Madrid: T. II, CXXI. p. 97 e 98.
9
PASTORE. op. cit. p. 32.

16 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


deveriam ser molestados no seu espaço de caça e pesca. Em
cada comunidade indígena de encomendados deviria haver
uma igreja para o nativo receber os sacramentos e aprender a
doutrina católica, sob responsabilidade do sacristão. Por meio
das hernandarias, ficou determinado que as encomendas só
poderiam ser transferidas com a prévia autorização do gover-
nador do Paraguai, que, no caso, era o próprio Hernandarias.
Além disso, novas especificações foram definidas aos enco-
menderos, pois não podiam retirar os trabalhadores nativos
das comunidades nem obrigá-los a beneficiar a erva-mate.
Em 1603, essas ordenanzas foram confirmadas e comple-
tadas, quando se regulamentou o serviço pessoal dos homens
guaranis com mais de quinze anos e das mulheres com mais
de treze anos. Além disso, os caciques e seus descendentes fo-
ram confirmados nas suas hierarquias, liberdade e no direito
de não prestar serviço pessoal.10
Finalmente, em 1611, nessa combinação da “violência”
com a “negociação”, foram promulgadas as Ordenanzas de
Alfaro, que adaptaram definitivamente as Leyes de Indias
às necessidades e à realidade colonial. Essas ordenanzas su-
primiram as encomiendas de serviço pessoal e mantiveram a
encomienda de tributos e a compensação do trabalho do índio
por remuneração, pagamento por jornada de trabalho.11
Em La lucha por la tierra en el Paraguay, de 1972, Pas-
tore apresenta as Ordenações de 1611 como a defesa da liber-
dade do guarani no que se refere à terra e ao trabalho. “Alfaro
defendió la libertad de los nativos como vasallos del Rey y de-
claró que el servicio personal impuesto a los nativos era injus-
to y contrario a derecho, disponiendo en consecuencia que no
podrían ser obligados a prestar servicios a los hombres enco-

10
Cf. Ordenanzas del gobernador Hernandarias de Saavedra. 12/12/1598. Revista
de Derecho, Historia y Letras, Buenos Aires, t. XXIII, p. 370-391, 1908.
11
ALFARO, D. Francisco de (Visitador). Informe sobre el Paraguay. Apud GAN-
DÍA, Enrique de. Francisco de Alfaro y la condición social de los indios. Revista
de la Biblioteca Nacional, Buenos Aires, n. 11, 1939. p. 465.

A economia agropastoril missioneira 17


menderos. Todos los indios fueron declarados libres, hubiesen
o no sido vendidos como esclavos, imponiendo severas penas
a los que traficaran con esclavos nativos. Las encomiendas
otorgadas hasta la fecha por los gobernadores fueran declara-
das nulas [...] Los guaraníes que se encontraran fuera de sus
respectivas encomiendas debían ser devueltos a las mismas,
no pudiendo ser mantenidos contra su voluntad en los luga-
res en que se hallaren [...] Las Ordenanzas de Alfaro estable-
cieran el pago de salario por concepto de justa retribución del
trabajo de los nativos.”12
A disputa pela mão-de-obra indígena entre jesuítas e
encomendeiros também é um fator que proporcionou o surgi-
mento da Redução. Em La conquista espiritual del Paraguay,
publicado em 1639, o padre Montoya comenta o medo e o nível
de exploração do índio encomendado: “[...] los indios sujetos
a encomendados a españoles, ya no se pregunta la causa por
ser tan sabida”.13
Em suma, é perceptível que os guarani-missioneiros de
São João tinham a sabedoria política de que eram vassalos
do monarca espanhol ao inferirem que não haviam sido con-
quistados por “espanhol algum”. A Missão se constituía no
fio condutor da aliança, que combinava os atos de violência
espanhola com a negociação política, social, econômica.
Foi nesse momento histórico de exploração da terra e da
organização do trabalho indígena que se tornou realidade, em
1607, a Província Jesuítica do Paraguai, a partir de várias
articulações e negociações: da Igreja Católica, via Companhia
de Jesus, com as autoridades da América Espanhola e des-
tas com as comunidades guaranis. Nas articulações dessas
negociações políticas encontram-se as Ordenanzas de Alfaro,
que definiam a redução do índio à fé católica e a vassalagem

12
PASTORE. op. cit. p. 40-41.
13
MONTOYA, Antonio Ruiz S. J. La conquista espiritual del Paraguay (1ª ed.
1639) estudo preliminar y notas Ernesto Maeder. Rosário: Equipo Difusor de
Estúdios de Historia, 1989. p. 63.

18 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


à Coroa de Espanha. “Por cuanta la buena doctrina y policia
de los indios, y poder ellos acudir con comodidad à sus obliga-
ciones, y para que no sean agraviados, depende de que estén
reducidos en pueblos y tierras donde con comodidad puedan
sustentarse, respecto de lo cual yo he dado orden con algunos
Cabildos y justicia [...] que la tal reducción sea sujeta à parro-
quia, y no esté apartada de ella; porque sin embargo de esto,
en cada reducción ha de haber iglesia.”14
Se as Reduções se constituíram em concentrações de ín-
dios em pequenos povoados, com igrejas de madeira ou de
taipa, as residências dos guaranis eram, geralmente, cons-
truídas de pau-a-pique. As Reduções significam um momento
inicial da transição de parcialidades guaranis – que assim o
permitiram – da sociedade aldeã doméstica a uma nova for-
ma de produção e de organização social – missioneira – arti-
culada com a sociedade moderna do Estado absoluto, a partir
de uma aliança tática desses grupos com os jesuítas. O sal-
to guarani foi em direção a uma nova forma de organização
social, inserida no Estado espanhol. A formação missioneira
também significou a capacidade de barganha de parcialida-
des guaranis, que construíram em meio aos conflitos coloniais
um espaço de liberdade negociada que lhes permitiu viver e,
melhor, aumentando a esperança média de vida do guarani,
com garantias de proteção contra a encomienda e escravidão.
Ao negociar viver na Missão, os guaranis demonstravam a
capacidade de interferência na realidade empírica.
Dessa forma, organizava-se a vida reducional, onde o
guarani expressasse seus direitos e deveres na configuração
da experiência missioneira. A Redução deveria garantir a li-
berdade do nativo, mesmo que vigiada, tutelada pelo missio-
nário e também pelas autoridades espanholas, que deveriam
vigiar a política administrativa da redução por intermédio do
Cabildo.

14
ALFARO, Op. cit. p. 663.

A economia agropastoril missioneira 19


Gradativamente, o projeto político reducional foi se
constituindo, construído em meio aos conflitos das disputas
pela mão-de-obra indígena, conforme se pode perceber em
correspondência de um missionário do século 17: “[...] es muy
antiguo à esos señores encomendadores y soldados en quejar-
se, pasando muy adelante en esto. Y así levantado grandes
contradicciones contra la Compañía con mucha honra y gloria
de los que las han padecido, por ser por causa tan justa como
volver por los indios, Y por la justicia que tenían y tienen de
ser libres de la dura esclavitud y servidumbre del servicio
personal en que estaban, [...] y estos debates crecieran mas
después que los de la Compañía haciendo en esto su obliga-
ción como fieles ministros de Dios N. S. y básalos de su M.
[...] (na Redução) los indios fueren entendiendo la libertad en
que el Rey N. S. les ponía pagando su tributo, tivieram-se los
encomenderos que por esta causa les habíamos de ser graves
daños.”15
Em 1609, o governador do Paraguai e rio do Prata, Pe-
dro de Anasco, proibiu a entrada de espanhóis na região do
rio Paranapanema no Guairá, bem como o recrutamento de
índios para o serviço pessoal, o que facilitou a expansão jesuí-
tica no Guairá. Finalmente, em 1610, jesuítas e parcialidades
guaranis organizaram efetivamente as primeiras Reduções,
entre os rios Tabagi e Iguaçu.
Nessas circunstâncias históricas aumentava a disputa
dos encomiendeiros espanhóis e dos bandeirantes paulistas,
interessados na mão-de-obra especializada e disponível nas
Reduções. Nesse momento, por volta de 1618 os bandeiran-
tes avançaram sobre o projeto colonial reducional do Guairá
desconstruindo-o e escravizando os guaranis reduzidos. Com
esses fatos é possível perceber que a aliança de parcialida-
des guaranis com os jesuítas gerava profundos conflitos com

15
Cópia da Carta escrita a Francisco Gonzalez de Santa Cruz datada de 13/12/1614.
Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

20 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


a sociedade mercantil colonial espanhola, ficando evidente a
disputa dos interesses divergentes com o projeto colonial em-
preendido pela Companhia de Jesus.
Da ação dos bandeirantes decorreram vários desdobra-
mentos, entre os quais a organização do projeto colonial redu-
cional à margem esquerda do rio Uruguai, nas bacias do rios
Ijuí, Ibicuí e Jacuí e no planalto central do atual Rio Gran-
de do Sul, quando surgiram as Reduções do Tape. Um outro
momento de inflexão ocorreu, pois outras parcialidades gua-
ranis começaram a ser conquistadas: os guaranis tapes. No
entanto, muitas vezes os grupos mostraram-se refratários ao
projeto colonial, conforme se lê num testemunho do século 17:
“Descendo da redução da conceição à dos Reis (Japejú) para
fazer minha segunda viagem ao Ibicuí, recebi carta do Padre
Romero (cura de Japejú), na qual me avisava de que tinha
más notícias dos índios do Ibicuí, de que haviam feito uma
grande junta para vir a dar sobre a redução dos Reis por ha-
verem recebido os padres, e que por isso eu não descesse tão
depressa para aquela redução, a-fim-de ir ao Ibicuí, até que
descobrisse a verdade. [...] Disseram-me que voltasse imedia-
tamente, porque os índios da terra estavam sublevados e que
haviam vindo logo depois da minha partida daquela redução
que principiei, a-fim-de me matarem, e que, não me achando
ali, haviam queimado a igreja e a cruz que eu deixara.”16
Entretanto, à medida que o jesuíta se aproximava dos
guaranis que viviam nas proximidades do rio Ibicuí ou da ser-
ra dos Tapes, esses grupos passaram a dar crédito às propos-
tas e à fala dos missionários, demonstrando a sua capacidade
de barganha, numa estratégia para viver o melhor possível.
Provavelmente, a fala missionária seduzia alguns guaranis,
que passaram a perceber quais poderiam ser as vantagens de
construir e viver em novas formas comunitárias. Essa capa-

16
DURÁN, Pe. Mastrilli S. J. Carta Anua de 1627. Manuscrito da Coleção de
Angelis - I. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951. p. 373-374.

A economia agropastoril missioneira 21


cidade de negociação e de lembrança inesquecível é recupe-
rada pelos próprios protagonistas desse enredo, os guarani-
missioneiros de São Nicolau, que em outra correspondência
à autoridade colonial de Buenos Aires assim se expressaram:
“Pois ele (o rei), conhecendo esta terra, para a qual Deus nos
criou, enviou-nos o nosso Padre Santo Roque Gonzáles, para
que ele nos ensinasse e desse a conhecer a Deus: seu ser e o
ser de cristãos. Também isto nos disse o Rei por intermédio
desse Padre, a saber, que nunca, jamais, entraria nesta terra
espanhol algum, nem um único sequer. Isso mesmo que de
início então nos fez comunicar a nossos avós, ele nô-lo repetiu
muitas vezes em suas cartas, consolando-nos, fortalecendo-
nos e levando-nos para o lugar em que estamos.”17 Na corres-
pondência dos missioneiros de São Nicolau a expressão “avós”
exemplifica os antepassados, os ancestrais, responsáveis no
século 17 pela aliança com os jesuítas e Corte espanhola. Nes-
sa linguagem metafórica, os guaranis demonstram a sua sa-
bedoria em compreender a articulação presente-passado.
Essa aliança foi capaz de corroborar o projeto colonial
missioneiro, quando parcialidades guaranis aceitaram, con-
cordaram, usar o machado de ferro e o arado puxado por bois,
o que representou a passagem da vida comunitária aldeã, de
horticultores e caçadores-coletores, apoiada na tradição fami-
liar e na divisão sexual das tarefas cotidianas, para um novo
padrão de organização tecnológica, de maior e mais comple-
xa divisão do trabalho, liberando-os para outras atividades,
como pastoreio, tecelagem, olaria, carpintaria, curtume de
couro, música, teatro, escultura, arquitetura e dança.
A institucionalização da Missão como projeto político co-
lonial hispânico começou a se efetivar a partir do momento

17
Correspondência do Corregedor, cabildo e caciques do Povo de São Nicolau, ao
governador de Buenos Aires, José de Andonaegui, em 1753. Apud RABUSKE,
Arthur. Cartas de Índios Cristãos do Paraguai, Máxime dos Sete Povos, data-
das de 1753. Estudos Leopoldenses, São Leopoldo: Unisinos, v. 14, n. 47, 1978.
p. 80.

22 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


em que a Coroa de Espanha abarcou as terras dos índios in-
tegrando-as na sociedade colonial platina, transformando-as
em parte do próprio espaço territorial, político e econômico da
região do rio da Prata. A terra foi transformada em território
do Império Colonial Espanhol e os índios, em súditos, agentes
e defensores da causa comum política. O guarani-missioneiro
trabalhou arduamente e com austeridade na Missão da re-
gião do rio da Prata. Foi agricultor, vaqueiro, charqueador,
oleiro, peão de estância, escultor, pintor e cantor, efetivando a
economia agropastoril missioneira. Os missioneiros lutaram
para a manutenção da terra com seus pueblos, criação de ani-
mais e grandes lavouras coletivas.
Mas o que os guaranis barganharam para se tornarem
missioneiros? Entre o que foi barganhado, a própria direção
da vida cotidiana da Missão, incorporando o projeto político
missioneiro, atendendo, em parte, aos interesses da Coroa de
Espanha e, em outra, aos seus próprios interesses. Cardiel,
um missionário do século 18, assim nos apresenta essas ar-
ticulações do poder: “Corregidor, Alcalde y demás oficiales: el
gran merito que tendrán delante Dios en cumplirlas, los bie-
nes espirituales y temporales que se seguirán al pueblo: los
grandes males que acarrea en no cumplirlas, y los grandes
castigos que tendían de Dios en no cumplirlas.”18
Eram os próprios guaranis que discutiam as regras a se-
rem aplicadas na Missão, como, por exemplo, a divisão equi-
tativa do produto social no povoado. No tocante aos bens espi-
rituais, não só era o responsável pela construção dos templos,
da casa dos padres, da escola, mas também pela manutenção
da organização social missioneira. Nesse sentido, outra fun-
ção do Cabildo consistia em normalizar a aplicação da lei: “En
orden a la manutención en particular y en común, se gobier-
nan de este modo: A cada familia se le señala la tierra sufi-
ciente para sembrar. Todos son labradores, hasta los caciques,

18
Ib. idem. p. 524.

A economia agropastoril missioneira 23


el corregidor, los alcaldes y demás cabildantes [...] Todos aran,
siembran y labran la tierra [...] Tienen sementeras en común,
a que acuden todos los lunes y sábados.”19
Enquanto governo civil, o Cabildo era precedido pelo
princípio da comunidade. Era, portanto, executor e juiz da
vontade coletiva dos guarani-missioneiros. Os cabildantes,
considerados os legítimos e legais representantes da comu-
nidade cristã, eram responsáveis pelo “bem comum”. O grupo
dirigente mantinha laços de tradição comunitária guarani
anterior à vida missioneira – eram os antigos taxauás (chefes
guerreiros) –, o que caracteriza a permanência, que convivia
com a ruptura, pois na Missão eles eram os antigos chefes
com uma nova roupagem, a de corregedor ou alcaide, o cabil-
dante. Porém, essa unidade política repousava na economia
pastoril, como abordaremos a seguir.

A economia agropastoril missioneira


Refletir sobre a economia agropastoril missioneira é, a
priori, rever a organização social da Missão enquanto desdo-
bramento das negociações entre parcialidades guaranis e os
jesuítas. As Missões constituíam-se em unidades políticas e
produtivas. Era um todo orgânico que reunia a área urbana
(a igreja, o cabildo e as residências – como estava definido nas
Ordenanzas de Alfaro; as oficinas, a escola, a praça, o cotigua-
çu, o hospital e o cemitério: todos elementos determinados no
modelo urbano das Leyes de Indias) e a área rural (as lavou-
ras, o erval, o curral, as vacarias e as estâncias). As estâncias
e a maior parte das lavouras eram coletivas.
O trabalho do guarani-missioneiro não era executado
como forma de tributo, mas como vassalagem direta ao gover-

19
CARDIEL, Compendio de la historia del Paraguay (1ª ed. 1780). Buenos Aires:
Fecic, 1984. p. 89-90.

24 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


no espanhol, já que ficara estabelecido que os índios reduzi-
dos pagariam o tributo real em forma de moeda.
Na Redução, o missioneiro tinha a garantia da posse da
terra, o que qualificava a organização de economia mista: a
produção particular – o abambaé – e a produção coletiva, co-
munitária – o tupambaé. Mörner, ao definir a questão, assim
o faz: “El Tupambaé – el conjunto de las propiedades comunes
de las reducciones, administradas por el cura con la ayuda de
asistentes indígenas – proveía de carne, yerba, vestimenta y
semilla a los indios según cierto sistema de racionamiento, el
producto de la ganadería, del tráfico de yerba, de las conechas
de determinadas tierras de la comunidad, y de los trabajos
manuales en general, ingresaban en el tupambaé, que asu-
mía, así, la responsabilidad de toda la exportación.”20 Esses
elementos podiam garantir a consolidação da paz evangélica,
ou seja, o acordo de paz entre os conquistadores espanhóis e
os índios conquistados.
Essas unidades produtivas autossuficientes centraliza-
vam-se no tupambaé, a atividade principal. Os missionários
dispensavam mais atenção a esse setor da economia, pois
reservavam os melhores campos para a pastagem e cultivo.
Nele, o guarani-missioneiro cultivou o solo utilizando o arado
puxado por bois; assim, incrementou o crescimento agropas-
toril.
O trabalho do guarani-missioneiro resultou no aumento
da produção das estâncias, dos campos de cultivo, dos ervais
do tupambaé. O êxito da produção missioneira, ou seja, o re-
sultado da aliança comunidade guarani, combinada à prática
jesuítica que efetivou a experiência missioneira, foi pautado
da seguinte forma no século 18: “Para remediar tan grande
desidia, están entabladas sementeras comunes de maíz, le-
gumbres y algodón: y estancias de ganado mayor y menor [...]

20
Tupambaé, segundo Magnus Mörner. Actividades políticas y economicas de los
jesuitas en el rio de la Plata. Buenos Aires: Paidos, 1968. p. 95-96:

A economia agropastoril missioneira 25


Estos bienes comunes sirven para dar que sembrar al que no
tiene, por habérselo comido ó perdido: para el sustento de la
casa de las recogidas [...] para avio y provisión de los viajes en
prol del pueblo, para dar de comer à los muchachos y mucha-
chas cuando van à las sementeras comunes, ú otras faenas
[...] y finalmente se emplear estos bienes en socorrer todo en-
fermo viejo y necesitado [...]. Los algodonales comunes sirven
para vestir à todos los muchachos de uno y otro sexo [...]. Los
otros bienes comunes y más principales son el ganado mayor
y menor. Los indios no tienen en particular vacas, ni bueyes,
ni caballos, ni ovejas, ni mulas.”21
As atividades da economia agropastoril missioneira, ba-
seadas no trabalho comunitário e autossuficiente, permitiram
que os guarani-missioneiros fossem os protagonistas e benefi-
ciados pelo êxito socioeconômico em uma formidável experiên-
cia sem precedentes na América Espanhola. Esse êxito teve
como sustentáculo a produção da erva-mate e as atividades
pastoris. Desde a licença de comercialização da erva missio-
neira com a região do rio da Prata, o produto destacou-se no
mercado interno, suplantando outras lavouras cultivadas na
Província do Paraguai. O comércio da erva gerava os fundos
que mantinham os guarani-missioneiros em paz com o mundo
colonial espanhol. Dela pagavam os tributos à máquina admi-
nistrativa da Coroa Espanhola, bem como adquiriam tudo o
que precisavam à subsistência da população missioneira.
No Reglamento general de las Doctrinas, de 1689, as re-
comendações com a produção de erva-mate apareciam clara-
mente em dois artigos, como por exemplo: “El beneficio de la
yerba se a acabará por todo el mes de abril, por los danos que
ocasionan los fríos à los indios”. Entretanto, essa preocupa-
ção com o trabalho do guarani-missioneiro no beneficiamento
da erva é anterior, já podendo ser observada nas Ordens de
21
CARDIEL, P. José. Breve Relación de las Misiones del Paraguay (1ª ed. 1771),
in HERNANDEZ, Pablo. S.J. Organizacion Social de las doctrinas guaranies de
la Compañía de Jesus. Barcelona: G. Gili, 1913. p. 527-529. v. 2.

26 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


1682 do padre Provincial Baeza: “[...] los indios que vienen
del yerbal no se les registra los sacos, o cestos, que traen, ni
menos se les obligue que lleven a la casa de Padre, sino que
voluntariamente los llevan, cuando quieren comprar algunas
cosas de que necesitan: exceptuándose la yerba tocante al tri-
buto, ó tûpâmbaé, como esta en uso.”22
Na província do Paraguai e Rio Prata, a erva-mate tinha
valor de moeda. A erva caá ivirá (erva de pau, não peneirada)
figurava como moeda. O valor deste gênero se taxava por uma
unidade imaginária conhecida como peso oco, a qual, segundo
as Ordenanzas de Alfaro e as Leyes de Índias, deveria valer
seis reais, ou seja, três quartas partes de um peso forte. Com
o passar do tempo, este valor decaiu para uma quarta parte
de um peso forte.
Assim, o tributo pago pelos povoados missioneiros à Co-
roa de Espanha era, em média, trezentas a quatrocentas ar-
robas anuais de erva-mate. Anualmente, as balsas conduzi-
das por índios reduzidos seguiam pelo rio Uruguai na direção
de Buenos Aires, onde o produto era contabilizado, separado
por povoado e, após, era feita a equivalência da erva à prata,
pagando dessa forma o tributo real. Também é importante
salientar que uma parte do que os índios levavam revertia em
benefício próprio da coletividade. Após a transação realiza-
da, os guarani-missioneiros retornavam aos povoados com as
balsas carregadas dos produtos de que necessitavam: azeite,
calçado, sal, tecido, vinagre, vinho e demais utensílios para o
uso pessoal.
Concomitante às lavouras comunitárias, havia a produ-
ção particular, onde o missioneiro podia cultivar com maior
liberdade o seu produto. Nessa forma de produção predomi-
nava o trabalho familiar, cujo produto revertia para a própria
família.

22
Ordem de 15/4/1682 do Provincial da Província Jesuítica Paraguaya, Padre To-
más de Baeza, Biblioteca Nacional, Madrid, Leg. 6976. p. 117.

A economia agropastoril missioneira 27


Cardiel faz um relato sucinto do abambaé missioneiro:
“De los algodonales particulares, que se les hace labrar para
su familia, hila la india lo que quiere según su mayor ó menor
cuidado, y lo trae à casa del Padre: y por medio del mayordo-
mo y otros tejedores, que además de los del común del pueblo
hay para los particulares.”23 Assim, as atividades particula-
res estavam conectadas às comuns.
As principais lavouras particulares eram o milho, a man-
dioca e legumes. Os jesuítas comentavam sobre a precarieda-
de do plantio do trigo. Para os missioneiros, era dispensável
o trigo por estarem habituados com o milho e diziam que era
muito complicada a tarefa do seu plantio. Ao referir-se a essas
roças particulares, Sepp relata: “As roças são muito férteis,
embora pouco cuidadas e mal adubadas [...]. O principal cere-
al é o milho, que aqui dá aos montes e dele os índios fazem a
farinha secando-a num morteiro de madeira e desta farinha
fazem uma espécie de mingau, ou tortas.”24
Ao lado da atividade agrícola ervateira desenvolveu-se a
atividade pecuarista, as quais foram os sustentáculos socio-
econômicos das Missões. No artigo “O gado da antiga Banda
Oriental do Ururguay”, de 1961, o jesuíta e historiador Bruxel
lembra que no fim do século 17 já havia mais de um milhão
de reses selvagens na Banda Oriental.25 Posteriormente, em
1717, os castelhanos obtiveram a concessão do governador do
rio da Prata para explorar a Vacaria do Mar.
A estância e os ervais compunham o núcleo central da
economia agropastoril missioneira e foram um dos desdobra-

23
CARDIEL. P. José. Breve Relación de las Misiones del Paraguay (1ª ed. 1771),
in HERNANDEZ, Pablo. S.J. Organizacion Social de las doctrinas guaranies de
la Compañía de Jesus. Barcelona: G. Gili, 1913. p. 529. v. 2.
24
SEPP, Antonio SJ. Algumas instruções relativas ao governo temporal das Re-
duções em suas fábricas, sementeiras, estâncias e outras fainas (Missão de São
José, em 13/06/1732). Tradução e apresentação Mansueto Bernardi. Pesquisas,
São Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas, v. 2, 1958. p. 52.
25
BRUXEL, Arnaldo. O gado da antiga Banda Oriental do Ururguay. Pesquisas,
São Leopoldo, v. 5, 1961. p. 166.

28 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


mentos da negociação prévia: foi base do acordo sistêmico en-
tre os guaranis e os jesuítas, sacramentado a partir da exaus-
tão das Vacarias. Os atores sociais missioneiros sabiam da
importância da preservação desse núcleo para o êxito socioe-
conômico. Nesse sentido se pode entender a recomendação do
padre Sepp: “Como as Vacarias do Mar já se acabaram, cum-
pre cuidar bem dos bois, novilhos e touros, para que os poucos
que existem nas Reduções bastem ao menos para fazer as
chácaras do Tupambaé e dos pobres índios. É necessário que
os Padres Curas antes da Missa de forma alguma deixem que
(os missioneiros) os atem ou trabalhem com ele.”26
De uma maneira geral, as vacarias se constituíam em
espaços onde o gado era reproduzido livremente, sem a in-
terferência direta do ser humano. Nesses locais os animais
nasciam, se reproduziam e cresciam selvagens, servindo para
abastecer os povoados missioneiros da região do rio da Pra-
ta. As Vacarias do Mar localizavam-se na área delimitada pe-
los afluentes dos rios Jacuí e Negro, área denominada pelos
colonizadores ibéricos de Banda Oriental do rio Uruguai. O
padre Cardiel, refletindo sobre os acontecimentos do século
17, informa sobre essa área que se constituía nas Vacarias do
Mar: “Las dilatadas campañas que hay desde los pueblos has-
ta el Mar estaban llenas de vacas sin dueño, adonde iban de
cada pueblo tropas de índios, que traían de orden de su Cura
las suficientes para el mantenimiento de todos (comunidade
missioneira). Entraron los Españoles a esta gran Vaquería a
hacer faenas, no de carne, que harto tienen de esto em sus
ciudades, sino de cueros para cargar los navios de Espana.”27

26
SEPP, Antonio SJ. Algumas instruções relativas ao governo temporal das Re-
duções em suas fábricas, sementeiras, estâncias e outras fainas (Missão de São
José, em 13/06/1732). Tradução e apresentação Mansueto Bernardi. Pesquisas.
São Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas, v. 2, 1958. p. 53.
27
CARDIEL, José, SJ Carta y Relacion de las Misiones de La Província del Para-
guay (1ª ed. 1747). Publicada por Guillermo Furlong, SJ. Buenos Aires, Libre-
ria del Plata, 1953. (Escritores Colonialies Riplatenses – II). p. 143.

A economia agropastoril missioneira 29


Esse informe é precioso, visto que nele percebemos a
existência de guarani-missioneiros que se dedicavam ao tro-
peio, portanto, os tropeiros das Missões, bem como às diver-
sas práticas econômicas existentes a partir da Vacaria, como
a preia do gado xucro e a sua utilização, quer para a alimen-
tação e subsistência dos missioneiros, quer para incrementar
o comércio colonial hispânico com a exportação de couros para
a Metrópole espanhola. Esse espaço econômico colonial, que
esteve na origem das atividades pastoris missioneiras, esten-
dia-se, portanto, pelos atuais territórios do Rio Grande do Sul
e República do Uruguai, chegando até o Mar del Plata.
Essa preocupação do missionário se refere a um momen-
to de esgotamento das Vacarias, no período de 1650 a 1680, e
à formação das estâncias. A falta de animais era um desafio
ao projeto colonial missioneiro e à sua devida experiência; daí
a necessidade de preservar o espaço da estância, preocupação
tanto dos missioneiros quanto dos missionários.
No que concerne à pecuária missioneira, convém regis-
trar as constantes disputas de castelhanos, tropeiros, luso-
brasileiros, gaúchos, changadores, outros grupos indígenas,
como os charruas e os minuanos, bem como outras parciali-
dades guaranis, de depredação das vacarias – 1650 a 1680 –,
as quais formataram as expansões na região do rio da Prata
– após 1680. No final do século 17, esses diversos grupos so-
ciais passaram a percorrer os campos de Viamão, adentran-
do nas Vacarias e preando o gado xucro, disputando com os
missioneiros os animais, as terras e os espaços de ocupação.
Esse processo se configurava como um dos tantos desafios e
situações de conflitos experimentadas pelos missioneiros, im-
placáveis na acusação contra os portugueses, considerados
os únicos responsáveis pelo extermínio do gado das Vacarias:
“[...] os portugueses furtaram e exterminaram as vacas que
colocamos nos ‘Pinhares’, que é fazenda dos vassalos do rei da

30 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


Espanha”.28 Em 1695, os colonizadores luso-brasileiros ins-
talaram o registro de Torres (atual cidade sul-rio-grandense),
para cobrar pedágio das tropas de gado que conduziam da
região do rio da Prata para os campos de Curitiba-São Paulo-
Sorocaba.
Ao analisar esse fato, Bruxel destaca: “Os espanhóis e
portugueses começaram a dizimar a Vacaria do Mar para ex-
trair couros e sebo para a exportação. Foi então que os padres
e índios começaram a estabelecer outro sistema de criação
que eram as estâncias, das quais algumas na Banda Oriental
chegaram a ter cada uma, trinta a quarenta mil quilômetros
quadrados com pequenas aldeias de estancieiros, chamados
posteiros.”29
Na formação e organização das estâncias missioneiras,
concorreram várias razões, entre as quais a desorganização
das vacarias; a questão fundiária e a necessidade de solidi-
ficação dos Povos Missioneiros da Região do rio da Prata. À
medida que as atividades agropastoris eram efetivadas, os
missioneiros validavam cada vez mais o que era de seu inte-
resse no projeto político missioneiro e se fixavam no território.
A formação da estância de criação de gado esteve intrinseca-
mente ligada às vicissitudes da experiência missioneira, pos-
to que havia o desafio irremediável que exigia uma resposta –
a dizimação do gado e a sua manutenção no território –, pois,
afinal, junto com a erva-mate, o gado tornava a terra produti-
va e valorizava-a. A resposta encontrada foi distribuir o gado
em grandes estâncias comunitárias que pertenciam à coleti-
vidade missioneira. É interessante salientar que os conflitos
sempre foram presentes entre os guaranis que optavam por
viver na Missão e aqueles que não optavam, os que não qui-

28
Correspondência do Cabildo do povo de São Lourenço do Uruguai ao gover-
nador de Buenos Aires José Andonaegui s/d (1753). Apud RABUSKE, Arthur.
Cartas de Índios Cristãos do Paraguai, Máxime dos Sete Povos, datadas de
1753. Estudos Leopoldenses, São Leopoldo: Unisinos, v. 14, n. 47, 1978. p. 74.
29
BRUXEL, Op. cit. p. 167.

A economia agropastoril missioneira 31


seram negociar a sua inclusão no projeto político missioneiro.
A formação das estâncias ocorreu em áreas ocupadas tanto
por esses guaranis não missionados quanto por outros grupos
sociais, como os charruas e minuanos.
Dessa forma, a organização de estâncias também esteve
circunscrita aos conflitos e às negociações entre os missioná-
rios e os missioneiros, não sendo uma tarefa fácil, como com-
prova Cardiel, em sua “Carta Relação”: “Por eso en las tierras
de cada pueblo se han establecido pastoreo de vacas. Unos
tienen muchos, otros pocas, según la positura, los medios y la
habilidad del Cura en juntarlas. Según la abundancia poca o
mucha, se da carne en cada pueblo algunos días a la semana
[...]. El guardar este ganado cuesta mucha dificultad; porque
los que lo guardan en los Pastoreos, que acá llamamos Es-
tancias, es preciso sean indios, y ellos, como niños, o lo dejan
perder [...] (na administração da estância) toman cuenta al
mayordomo o capataz indio [...] És raro el indio que se en-
cuentra capaz de gobernar una Estancia.”30
Em outro momento e outra fonte documental, o mesmo
missionário narra: “Tiene cada pueblo sus dehesas, pastores
o estancias de todo ganado, vacas, caballos, mulas, burros y
ovejas. Y va el Cura a visitar estas estancias, y dar orden en
su conservación y aumento dos veces al año [...] del buen es-
tado de estas estancias depende el bien o mal del pueblo en lo
temporal y espiritual.”31
Os relatos do missionário nos possibilitam a compreen-
são da importância e vinculação das atividades econômicas
pastoris no projeto político missioneiro, sendo essas impres-
cindíveis na eficácia da aliança guarani-jesuítica. A quantida-
de, diversificação e distribuição de gêneros disponíveis para

30
CARDIEL, José, SJ. Carta y Relacion de las Misiones de La Província del Para-
guay (1ª ed. 1747). Publicada por Guillermo Furlong, SJ. Buenos Aires, Libre-
ria del Plata, 1953. (Escritores Colonialies Riplatenses – II) p. 143.
31
CARDIEL, José SJ. Las Misiones del Paraguay (1ª Ed. 1771) edicción de Héc-
tor Sáinz Ollero. Madrid: DASTIN, 2002. p. 76.

32 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


alimentar os guarani-missioneiros garantiam-lhes a sedenta-
rização e o desejo de viver na Missão, não em outros espaços
coloniais.
As estâncias se estendiam até os arroios, rios, banhados,
matos e encostas das serras. Os trechos abertos, por onde os
gados podiam escapar, estavam vedados por valas com plan-
tação de espinheiros. O posteiro tratava de cuidar para o gado
não fugir nem ser preado pelos “brancos”, fossem lusos ou cas-
telhanos. De todos os postos, alguns se evidenciaram mais,
como o de Santa Tecla.
A primeira estância missioneira foi a de Yapeju, com qua-
renta mil vacas, bois e touros das antigas vacarias. A estância
consistia num espaço de criação de gado onde habitavam os
guarani-missioneiros estancieiros, que realizavam rodeios e o
aparte dos animais. Em Estancias e estancieros del Rio de la
Plata, de 1999, Virginia Carreño expõe: “La dura lección de
los pueblos arrasados y la hacienda perdida hizo que los je-
suitas pensaran en formar estancias separadas de las reduc-
ciones aplicando en ellas formas de producción intensiva que
la experiencia les había enseñado [...] cada estancia jesuítica
contaba con 10, 15 o más puestos y a cada uno correspondían
cinco, diez o más rodeos.”32
Os postos estavam organizados em vários ranchos, nos
quais viviam em média cinco famílias de missioneiros, que
cultivavam as suas plantações de horticulturas, caçavam,
pescavam e, principalmente, cuidavam das cabeças de gado.
Nesses postos havia a casa do posteiro, um missioneiro de
confiança, dois caciques, dois cabildantes e dois missioneiros,
que atuavam como capatazes, cujo trabalho era controlar o
fluxo dos animais. Virginia Carreño infere que “en el puesto
principal había una capella mayor y frente a ella vivía el jefe
superior de la estancia.”33
32
CARREÑO, Virginia. Estâncias e estancieros del Rio de la Plata. Buenos Aires:
Claridad, 1999, p. 96-97.
33
Idem. p. 97.

A economia agropastoril missioneira 33


No que diz respeito aos rodeios realizados sistematica-
mente pelos peães, o padre Cardiel narra: “Van 50 ó 60 indios
con cinco caballos cada uno. Ponen en un alto una pequeña
manada de bueyes y vacas mansas, para ser vistas de las cer-
riles, y a competente distancia las rodean o acorralan treinta
o cuarenta hombres para su guarda. Los demás van a traer
las más cercanas, que vienen corriendo como cerriles; y vien-
do las de su especie, dándoles ancha puerta los del corral, se
entreveran con ellas. Vuelven por otras; y del mismo modo las
van entreverando, hasta que no las hay en aquella cercanía.
Juntanse todos los jinetes: y yendo uno o dos delante por guí-
as, cerrando los demás todo lo que cogieron, van conduciéndo-
lo adonde hay más, teniendo cuidado de no acercarse mucho:
que si se acercan y las estrechan, suelen romper la rueda y
desparramarse.”34
Talvez pudéssemos elencar as características gerais da
estância missioneira:
• a propriedade da terra era coletiva, bem como os pro-
dutos oriundos do gado, que pertenciam à comunida-
de (carne, couro, graxa, chifre e o gado em pé). Em
primeiro lugar, o produto da estância deveria atender
às necessidades básicas dos guarani-missioneiros;
após, o excedente era comercializado nos mercados
da região do Prata e o lucro revertia à comunidade;
• as atividades econômicas na estância eram exercidas
dentro da categoria de trabalho do missioneiro redu-
zido, ou seja, do trabalho livre, porém sob o dirigismo
jesuítico.35 Na estância não havia trabalho escraviza-
do, servil ou encomendado;

34
CARDIEL, José, SJ Carta y Relacion de las Misiones de La Província del Para-
guay (1ª ed. 1747). Publicada por Guillermo Furlong, SJ. Buenos Aires, Libre-
ria del Plata, 1953. f. 26 (Escritores Colonialies Riplatenses – II)
35
KERN, Arno A. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1982. p. 125-148

34 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


•diversas atividades profissionais compunham o coti-
diano da estância, entre as quais cumpre destacar o
guarani-missioneiro peão de estância, o capataz ou o
posteiro. O posteiro vivia num posto dentro da estân-
cia, que era um aglomerado de cinco a oito chácaras,
onde moravam as famílias dos posteiros. São Miguel,
por exemplo, teve dois postos importantes: Santa Te-
cla (na atual cidade de Bagé - RS) e São Gabriel do
Batoví (atual cidade de São Gabriel - RS). Convém sa-
lientar que as pessoas que trabalhavam na estância
podiam, no momento em que desejassem, mudar suas
tarefas de trabalho;
• não havia a figura do estancieiro (proprietário), nem
hierarquia determinada por função social, mas ape-
nas por atividade funcional;
• cada povoado possuía uma patrulha volante que ze-
lava pela estância para que nada atrapalhasse as
atividades pecuaristas. O que mais perturbava o coti-
diano da estância era o roubo do gado efetuado pelos
tropeiros luso-brasileiros, castelhanos e índios inimi-
gos. O papel dessas milícias armadas era coibir tais
roubos;
• as primeiras e incipientes práticas de produção de
carne salgada (o charque), para o consumo interno
da comunidade missioneira foram decorrências dos
desdobramentos da atividade pecuarista na estância.
Em História das Missões do Uruguai, de 1954, Aurélio
Porto propõe que, em 1730-1740, as estâncias possuíam um
número de aproximadamente de um milhão de cabeças de
gado de toda a espécie e que as estâncias de Japeju e São
Miguel possuíam maior extensão de terra.36

36
PORTO, Aurélio. História das Missões do Uruguai. Porto Alegre: Selbach,
1954. v. 2. p. 184.

A economia agropastoril missioneira 35


A localização das estâncias é fornecida por Nusdorffer
em seu Relatório escrito no povoado de São Carlos entre os
anos de 1750-56. Nele encontramos uma autêntica geografia
da região das Missões, não só no seu aspecto descritivo de
hidrografia, relevo, clima, mas também no tocante à geogra-
fia econômica. A preocupação desse missionário do século 18
ao descrever o espaço insere-se dentro de uma visão de uti
possidetis, a título de legítima propriedade. Porém, ele acaba
por destacar o papel das estâncias no espaço socioeconômico
missioneiro, o qual era proeminente.
Sobre os limites de uma estância, tem-se a seguinte nar-
rativa: “Este Guacacay pues tiene dos ramas, uno se llama
Guacacay o Vacacay miri y corre casi por el medio de la estan-
cia de San Luis; el otro se llama Guacacay guazú y termina
de una parte la estancia de San Luis y sierra de otra parte la
estancia del Pueblo de San Juan y del Pueblo de San Lorenzo,
juntándose en la estancia de San Lorenzo con el Guacacay
mini, haziendo ya con este ramo un río bastante caudaloso.”37
Ao longo do espaço estancieiro encontravam-se os demais
produtos conectados, como a erva-mate, ligada à atividade pe-
cuarista: “Vamos ahora a la banda del sur del Guacacay gua-
zú, adonde están las estancias de los Pueblos de San Juan y
San Miguel, desde los cerros y lomerías que están en aquellas
estancias, especialmente en la de S. Juan y San Miguel, sobe
el Rio Piquiri que se junta y entra en el Guacacay en la es-
tancia de San Lorenzo [...] Caminando en el mismo Guacacay
aguas abajo se dexa hazia el sur tierra adentro, una serrania,
que llaman los Indios Caágua y son los yerbales del Pueblo
de San Borja.38

37
NUSDORFFER, P. Bernardo. Relación de todo lo sucedido en estas Doctrinas
en orden a las mudanzas de los siete pueblos del Uruguay. (1750-56). In: TES-
CHAUER, Pe. Carlos. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Selbach
1918-1922. v. 3. p. 334.
38
Ib. idem. p. 334.

36 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


Os conflitos existentes são percebidos nas diversas
frentes de lutas empreendidas pelos guarani-missioneiros,
que guerrearam contra espanhóis, luso-brasileiros, charruas,
minuanos, gês, outras parcialidades guaranis. Todavia, a “voz
corrente”, ou a tese que se sobressaía nos diversos discursos,
principalmente nos dos missioneiros, era de que os portugue-
ses ao se expandirem territorialmente pelas áreas das estân-
cias comprometiam as bases da economia pastoril missionei-
ra. Nicolau Ñenguiru, corregedor do Povo de La Concepción
era enfático em carta ao governador de Buenos Aires de 20 de
julho de 1753: “Dizemos, sim, que os portugueses, inimigos
declarados de nossa felicidade, querem por maldade que nos
mudemos.”39
Gradativamente, a luta pela terra e pelo gado se acentu-
ava, atingindo níveis inimagináveis. Todos os interesses con-
vergiam para a região circundada pelas bacias hidrográficas
dos rios Jacuí e Uruguai, onde se concentravam o gado e os
ervais. Esse momento de disputas pelo espaço e suas riquezas
é obejto de reflexão de Nusdorffer: “[...] los Ssres. Portugueses
tenían intento de adelantar sus conquistas y poblarse a las
orillas del Rio Negro (localizado na República do Uruguai) en
las cabezadas del. Y tiene llo Río Negro sus capesadas pocas
leguas lexos de donde tiene su fuerte y assiento el llo Padre e
imediatos á la Estancia del Pueblo de S. Miguel poblada con el
Ganado de dicho Pueblo y del comun de los demas Pueblos, de
suerte que si llos Sses. Portugueses executasen en efecto este
su intento, no solamente se mederian mas que 100 leguas
en tierras de la Monarquia de Castilla fuera de sus terminos
sino también que se acercarian tanto à las Estancias de todos
estos Pueblos del Uruguay, que con sus correrias ayudados de
vagamundos pudieran destruir totalmente todos los Pueblos

39
Carta de Nicolau Ñenguiru, Corregedor do Povo de La Concepción, ao governa-
dor de Buenos Aires, José Andonaegui, em 20/07/1753, in: RABUSKE, Op. cit.,
p. 92.

A economia agropastoril missioneira 37


del Uruguay por que quitandoles sus ganados, total y unico
medio para su sustento y conservación délos.”40
A narrativa de Nusdorffer foi produzida ao sabor da ex-
pansão e conquista luso-brasileira de espaços coloniais da
região do rio da Prata. Os eventos característicos desse mo-
mento ocorreram no século 18, após a doação da primeira ses-
maria e fundação do forte Jesus-Maria-José, de Rio Grande,
no período compreendido entre 1731-1737. Foram momentos
decisivos na disputa pela posse da terra, do gado e do traba-
lho indígena, ocasionando novas situações de conflito.
Em meados do século 18, os jesuítas e seus aliançados
guarani-missioneiros tinham dificuldades em deter as diver-
sas frentes de invasores nas estâncias e ervais. Esses aconte-
cimentos preocupavam principalmente as populações que vi-
viam nos Sete Povos. O avanço rápido do inimigo teve alguns
desdobramentos que complicaram as antigas negociações
entre os padres e a comunidade. Ao definir que “as constan-
tes arreadas de espanhóis, portugueses e índios contribuíam
para completar essa destruição”, Aurélio Porto confirma que
não eram somente os portugueses os inimigos, como em di-
versas vezes os missioneiros referiram.41 A crise de eficácia
do discurso jesuítico tornava-se visível e percebia-se o quanto
a “paz evangélica” muitas vezes podia ser tênue. Afinal de
contas, os inimigos estavam destruindo “totalmente todos los
Pueblos” – o que era o resultado da ação isolada das tropas
guarani-missioneiras.
As autoridades coloniais espanholas passam a reconhe-
cer que a destruição das estâncias, ervais e ocupação das
terras pelos luso-brasileiros eram danosas à experiência
missioneira. Em correspondência, o governo de Buenos Ai-
res afirmava: “El Padre Superior de esas Misiones me dice
que los Portugueses del Rio Grande, y fuerte de Sn. Miguel

40
Ib. idem. p. 352.
41
PORTO, 1954 p. 185.

38 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


extraen el Ganado de esas Estancias, executen algunas extor-
ciones y intentan poblarse en las CAVEZADAS del Rio Negro
adelantando sus progresos y conquistas y en esta atencion le
tenido por combeniente despachar al thente. de Dragones Dn.
Franco Bruno de Zabala, con un sargento, y tres soldados de
satisfación, para que comunicando con V. R. esté a la obser-
batida de d’hos Portugueses dandome cuenta de las Noticias
que adquiera, y para harcelos los requerimientos nezarios en
caso de intentar formar algun establecimiento en esas partes
ó cometan alguna irrupción.”42
Pairava no ar o medo de que os luso-brasileiros roubas-
sem o gado, procurando arrecadá-lo e confiná-lo nas estân-
cias, o que levaria à destruição da sólida economia agropasto-
ril missioneira. Convém destacar que em diversos momentos
se encontram fontes que comprovam que havia missioneiros
negociando gado com os estanceiros portugueses e tropeiros,
fornecendo-lhe animais das estâncias missioneiras: “[...] apa-
recem também inúmeros tapes, egressos das Reduções, que
mantém largo comércio de tropas não só com a Colônia do
Sacramento como também com os primitivos povoadores do
Rio Grande.”43
Para tal proteção da estância de São Miguel, o governo
de Buenos Aires deveria contar com o apoio dos “corregedo-
res” e índios. Também em outra ordem a Zavala, don Ando-
naegui confirma a situação beligerante e enfatiza: “Le ordeno
y mando pase a la zitada Estancia y frontera del Pueblo de
San Miguel llevando consigo un sargento y tres soldados de
la maior satisfacion comunique con el R. Pe. Cura que recide
en d’ha Estancia, adquiera quantas notícias le sean posibles,
y me las participe por todas las vias mas breves, y seguras,

42
Carta do Governador de Buenos Aires ao Pe. Diogo de Palacios. Buenos Aires,
28/07/1749. In: Manuscritos da Coleção de Angelis - V. Op. cit. p. 356.
43
PORTO, Aurélio. História das Missões orientais do Uruguai. 2. ed. Porto Ale-
gre: Selbach, 1954. p. 186. O autor refere-se à documentação existente no Ar-
quivo Histórico de São Paulo.

A economia agropastoril missioneira 39


permaneziendo en aquel puesto hasta segunda orden con la
partida de su cargo, estando la mira de quanto intentan exe-
cutar por aquellas partes los expresados Portugueses; si es-
tan Poblados pasará con su Partida, y los Indios de Escolta,
que consideran bastantes a su seguro [...] y recaja con toda
su gente a los limites de los Estados de su soverano dejando
desocupado.”44
Na correspondência supramencionada já transparece a
preocupação de “los limites de los Estados” na região do rio
da Prata, ainda incertos em 1749. O governador de Buenos
Aires estava apelando para o limite à expansão fronteiriça
da América Portuguesa como um instrumento legal e eficaz,
para resolver os problemas que a diplomacia espanhola não
conseguira solucionar até então. Nesse momento, as Cortes
ibéricas estavam negociando o Tratado de Madri (1750). O
governo na América Espanhola procurava garantir na práti-
ca – pelas armas – aquilo que estava sendo negociado entre
os diplomatas de Portugal e Espanha.
Enfim, no início de 1750, enquanto as Cortes ibéricas
planejavam um novo projeto político de definição e integração
em seus territórios na América, a aliança entre os guaranis
e os jesuítas enfrentava novos desafios, que prejudicavam o
projeto colonial missioneiro em sua base pastoril. A tabela a
seguir nos permite visualizar a distribuição do gado nos Sete
Povos das Missões, quando os jesuítas foram definitivamente
expulsos em 1768.

44
Carta do Governador de Buenos Aires, D. Joseph de Andonaegui. Buenos Aires,
28/07/1749. in: Manuscritos da Coleção de Angelis - V. Op. cit. p. 359.

40 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


Tabela 1 - Rebanhos missioneiros em 1768
Povos Vacum Cavalar Muar Ovelhum
San Nicolás 20.376 1.031 195 18.471
San Luís 7.579 838 174 1.966
San Lourenzo 4.824 441 67 1.056
San Miguel 20.288 2.095 164 1.691
San Juan 4.235 313 200 713
San Angel 3.685 436 138 408
San Borja 11.922 1.630 166 13.245
Fonte: PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais. Porto Alegre: Selbach, 1954. v IV.
p. 188.

Epílogo
Finalmente, se iniciamos esta exposição narrativa pela
fala guarani-missioneira, também a encerramos pela mesma,
já que foram eles os grandes beneficiados pela construção das
negociações e também os grandes prejudicados pela sua disso-
lução. As correspondências permitem perceber as capacidades
de parcialidades guaranis que desejaram negociar, construir
o processo configurado como a experiência missioneira a par-
tir das atividades agropastoris. Essas capacidades se expres-
sam na interferência direta do missioneiro na sua realidade.
Também é visível a capacidade de análise dos mesmos, suas
abrangências e limitações. Depreende-se das narrativas que,
num dado momento – durante as negociações da aplicação do
Tratado de Madri, a conjuntura mostrava-se desfavorável ao
missioneiro, que teve de interferir e barganhar de outras for-
mas no processo em curso, pautando-se no processo histórico
construído e ressaltando a necessidade de preservação das
atividades pastoris e das práticas políticas nos meandros do
Estado espanhol.
Nas correspondências indígenas percebem-se as infor-
mações em rede, cabendo ao Cabildo esse papel relevante –

A economia agropastoril missioneira 41


construir a informações e difundi-las entre os demais. Nesse
sentido, pautamo-nos na correspondência dos missioneiros de
São João às autoridades espanholas, que personificaram as
raízes da crise nos portugueses ao convencionarem: “Os por-
tugueses sim foram os que nos fizeram (grande) mal no ano
de 1744, pois, em primeiro lugar, mataram a 5 de nossos es-
tancieiros e a 6 levaram-nos vivos. A estes têm-nos ainda ago-
ra por seus escravos, sendo eles, três meninas, dois rapazes e
uma mulher. Depois disso destruíram a estância, levando as
vacas e éguas, três rodeios (ao todo) [...] Além disso estamos
lembrados de que eles lutaram contra os nossos antepassados,
matando a muitos deles, e depois de tudo isso querem tirar-
nos e afastar-nos de nossa terra a nós.45
Seguindo essa mesma lógica de expor os fatos, pro-
curando definir os acontecimentos que ratificassem as anti-
gas negociações entre missioneiros e autoridades espanholas,
que, naquela inflexão momentânea de crise, comprometiam
as atividades pastoris, os cabildantes de São Miguel recor-
davam o fato de que “no ano passado de 1749 tu mesmo (An-
donaegui) enviastes à nossa estância de São Miguel a Dom
Francisco Bruno de Zabala, para desalojar os portugueses
que se tinham sedeado no Rio Piraí (recomendando) Se os
portugueses não quiserem deixar o sítio e terra, os índios de
São Miguel, São João e Santo Ângelo, em má hora vão ajudar-
te na expulsão.”46
Ao narrarem ao governo espanhol as razões que lhes im-
possibilitavam a transmigração, os missioneiros de São Lou-
renço faziam referência aos bens econômicos do povoado, con-
firmando que as atividades pastoris – construídas em outras
45
Correspondência dos caciques e índios do Povo de São João do Uruguai ao
governador de Buenos Aires, José de Andonaegui, em 16/07/1753. Apud RA-
BUSKE, Arthur. Cartas de Índios Cristãos do Paraguai, Máxime dos Sete Po-
vos, datadas de 1753. Estudos Leopoldenses, São Leopoldo: Unisinos, v. 14,
n. 47, 1978. p. 72.
46
Carta do Povo de São Miguel ao governador de Buenos Aires, José Andonaegui,
em 20/07/1753. Op. cit. p. 84.

42 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


circunstâncias – eram vitais para eles: “Não encontramos ne-
nhuma terra boa para fazer igreja, para fundar povoado, nem
para um bom erval, nem ainda para uma boa estância.”47
Analisando os testemunhos produzidos no inverno de
1753, percebem-se as sensibilidades dos guarani-missioneiros
em diferentes momentos de inflexão, na defesa e preservação
de seus ideais, valores, costumes, sensíveis à causa comum
pela manutenção de um mundo construído e que se corroia
perante as nuances do momento. Na subjetividade missionei-
ra de se relacionar com o mundo em que viviam, nas narra-
tivas dos cabildantes, a história e a memória se misturavam,
confundiam-se ao discorrerem sobre as suas histórias de vida.
Nelas, aqueles seres humanos assumiam um protagonismo
espetacular de heroísmo na defesa das práticas agropastoris
em detrimento dos portugueses, apresentados nos discursos
como os principais responsáveis pela tragédia missioneira.
Jamais fazem referência a que, em algum momento, interes-
sou à Corte Espanhola negociar com os guaranis, que prova-
velmente não percebiam as vicissitudes do sistema colonial,
pois parece que não entendiam a realidade empírica que se
impunha em 1750.
Interessante como os missioneiros apontavam para a
autonomia e liberdade da economia pastoril missioneira, em
detrimento do modelo colonial português de base escravista.
Simultaneamente, indicavam que as estâncias e os ervais
eram os sustentáculos das práticas econômicas e a base da
vida cotidiana, confirmando, assim, o que Cardiel dissera:
“[...] del buen estado de estas estancias depende el bien o mal
del pueblo en lo temporal y espiritual”, sendo esse um dos
entendimentos comum na Missão.

47
Correspondência do Cabildo do povo de São Lourenço do Uruguai ao governa-
dor de Buenos Aires José Andonaegui s/d (1753). Op. cit., p. 76.

A economia agropastoril missioneira 43


Fonte: MAEDER, Ernesto J. A.; GUTIERREZ, Ramon. Atlas histórico y urbano del nordeste
argentino. Resistência, Chaco: Instituto de Investigaciones Geohistoricas (CONICET),
FUNDANORD, 1994. p. 63.

Figura 1 – Mapa da localização das estâncias missioneiras, dos er-


vais e dos povoados na região do rio da Prata colonial

44 Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


Práticas corambreras na
Argentina, Uruguai e
Rio Grande do Sul
Mário Maestri*

O Corambre em Buenos Aires nos


séculos 16 e 17
Nos anos 1580 a 1640, o porto de Buenos Aires exporta-
va algum trigo, lã, sebo, carne seca, etc. para a costa do Brasil.
Com o fim da União Ibérica (1580-1640) e a perda do mer-
cado luso-brasileiro, até o final do século 17 as exportações
bonaerenses reduziram-se sobretudo aos couros embarcados
nos “navios de registro”, que ali aportavam espaçadamente –
por vezes, após vários anos. Quando os navios não chegavam,
deprimia-se fortemente a já frágil atividade econômica da re-
gião. Em 1680, a fundação da colônia do Sacramento pelos
portugueses, no outro lado do rio da Prata, diante de Buenos
Aires, contribuiu para a ativação do comércio bonaerense, por
meio da troca clandestina de couros, de prata, etc. por cativos,
manufaturados ingleses, fumo, açúcar, aguardente e outros
produtos do Brasil.1

*
Professor do PPGH da UPF, Doutor em História pela UCL, Bélgica.
1
Cf. MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777.
Porto Alegre: Globo, 1937; PRADO, Fabrício Pereira. Colônia Sacramento: o
extremo sul da América portuguesa no século XVIII. Porto Alegre: 2002; DO-
MINGUES, Moacyr. A Colônia do Sacramento e o Sul do Brasil. Porto Alegre:
Sulina, 1973; DE SÁ, Simão Pereira. História Topográfica e bélica da Nova
Colônia do Sacramento do Rio do Prata. Porto Alegre: Arcano 17, 1993.
Em 1674, ocorreria a maior exportação do porto de Bue-
nos Aires do século 17, quando quarenta mil couros teriam
sido embarcados, em três navios, por 361 “vizinhos”. Os 111
couros exportados em média por vizinho registram o caráter
episódico daquela produção. Apenas em inícios do século 18
as exportações regionais de couros assumiriam caráter siste-
mático, dando um indiscutível impulso à economia seminatu-
ral regional.2
A falta de mão-de-obra foi importante entrave à expan-
são das atividades mercantis do Prata. A população livre es-
panhola e crioula exigia remuneração relativamente elevada
para assalariar-se, em razão da abundância relativa de terras
e de gados, que lhe permitia se estabelecer como produtores
livres, ainda que à margem da sociedade oficial. A exploração
mercantil da força de trabalho dependia fortemente do braço
escravizado e servil. Porém, escasseava população aborígine
passível de ser reduzida à servidão, de forma plena ou parcial.
Os nativos pampas resistiram fortemente à redução, impe-
dindo por longos anos a progressão dos colonos para além do
rio Salado, a pouco mais de quatrocentos quilômetros de Bue-
nos Aires . Os nativos trazidos de Córdoba, de Santiago del
Estero, La Rioja, Mendonza, do Chile, do Paraguai e do Peru
não supriam as necessidades de mão-de-obra.
A União Ibérica facilitou o ingresso de africanos embar-
cados nos portos portugueses da África, ensejando que a vida
em Buenos Aires e nas chácaras e fazendas próximas depen-
desse fortemente do trabalho africano feitorizado, dirigido
por administradores – capataces e mayordomos – espanhóis
e crioulos. Tamanha eram a escassez e carestia do trabalha-
dor livre que africanos e afro-descendentes se ocuparam na
direção de estâncias. A carência de braços constituiu grave

2
MONTOYA, Alfredo Juan. Como evolucionó la ganaderia en la época del Virri-
nado. Buenos Aires: Plus Ultra, 1984. p. 16-19.

46 Mário Maestri
handicap negativo à ocupação mercantil em ambas margens
do Prata.
Em 1640, com a guerra de independência portuguesa, a
introdução do cativo no Prata sofreu forte golpe. As duras con-
dições de trabalho, as epidemias de varíola, de febre tifóide,
etc. – com destaque para 1651-1653 – dizimavam os cativos,
que os escravizadores substituíam com dificuldade, deprimin-
do relativamente a agricultura e o pastoreio nas chácaras e
estâncias. Como visto, realidade amenizada desde 1680, com
as trocas permitidas por Sacramento, que sempre se orientou
para a venda de cativos.3 Na própria expedição de fundação
da feitoria, com os duzentos homens de armas chegaram ses-
senta cativos para trabalhar nas obras da fortificação e da ci-
dadela e serem comerciados.4 Em 1763, quando a Colônia foi
ocupada pelos espanhóis, 342 africanos foram levados para
Buenos Aires, junto com os prisioneiros portugueses.5

Por alguns couros


Já em fins do século 16 e inícios do 17, nos campos próxi-
mos a Buenos Aires, “mozos perdidos”, vivendo nas franjas da
sociedade ibérica local, subsistiam da caça ao gado selvagem.
Os animais eram laçados ou boleados, executados e carnea-
dos. Tratava-se de prática extrativista realizada por produto-
res independentes detentores dos meios de produção – cavalo,
laço, arreios, boleadeiras, etc., – destinada à satisfação direta
ou indireta das necessidades de subsistência, através do con-
sumo da carne e uso do couro, graxa, sebo, etc. dos animais e

3
Id. ib. p. 41-48.
4
Cf. MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777.
Porto Alegre: Globo, 1937. p. 45. volume 1.
5
Cf. SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e sociedade do Rio Grande do
Sul: século XVII, São Paulo: Companhia Editora Nacional; INL, Fundação Pró-
Memória, 1984. p.30.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 47


da venda ou troca desses produtos nas pulperias, por sal, er-
va-mate, tabaco, bebida, fazenda, ferramentas simples, etc.6
Os couros, sebo e graxa destinavam-se essencialmente
à produção local. Inicialmente, os couros não integraram a
limitada pauta de exportação do porto de Buenos Aires, sob
o duro maniete restritivo da administração colonial. Eles ti-
nham múltiplos e fundamentais usos: confecção de sacos para
o transporte de erva-mate, de fumo, de açúcar, de trigo, de
algodão, etc.; construção de móveis – cadeiras, baús, catres,
etc.; matéria-prima na produção das moradias – portas, jane-
las, tetos, dobradiças, etc. –; confecção de roupas, de arreios,
de cordas; embarcações; etc. A graxa substituía o azeita vege-
tal na cozinha e o sebo era utilizado no fabrico de velas e de
sabão.7 Referindo-se às múltiplas serventias do couro, André
Ribeiro Coutinho explicava, quando da fundação de Rio Gran-
de: “[...] se fizeram muitas casas, oficinas, aparelhos dos car-
ros, cestos para a condução de terra, laços para a contextura
das trincheiras e outras infinitas obre de couro.”8
Nas longas viagens oceânicas, as embarcações consu-
miam tiras finas de carne, salgadas e secadas para mais
longa conservação – cecina. Matéria-prima fundamental do
artesanato, das manufaturas e, mais tarde, das indústrias
europeias, o couro tornou-se, desde fins do século 18, um dos
poucos produtos exportados abundantemente desde o Prata.
Ainda que a produção individual e isolada dessa matéria-
prima jamais tenha cessado, as necessidades do comércio
exterior ensejaram o surgimento das vaquerias, ou seja, de
operações extrativistas de animais e de couros, de maior vo-
lume e produtividade, pelo emprego de trabalhadores dire-
6
CASAL, Juan Manuel. El modo de producción colonial en el Río de la Plata.
Montevideo: Nuevo Mundo, 1987. p. 66; GAIGNARD, Romaní. La pampa ar-
gentina: ocupación, poblamiento, explotación. De la Conquista a la Crise Mun-
dial. (1550-1930). Buenos Aires: Solar, 1989. p. 64-65.
7
MONTOYA, Como evolucionó la ganaderia en la época del Virrinado, p. 41-48.
8
Apud BOXER, C. R. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1963. p. 259.

48 Mário Maestri
tos, conchavados por capitalistas, empregados em atividades
coordenadas.9
As primeiras capturas maciças de gado chimarrão teriam
se realizado em 1602, em Córdoba, e, em 1608, em Buenos Ai-
res. Tratava-se mais de arreadas do que vaquerias, já que os
gados capturados se destinavam principalmente a abastecer
as necessidades de carne das principais povoações locais e ao
povoamento das fazendas.10 Concomitante a essas expedições,
descendentes dos proprietários das primeiras terras distri-
buídas por Juan de Garay, quando da definitiva fundação de
Buenos Aires (1580), reivindicaram à municipalidade o di-
reito aos gados cimarrones, originários dos gados escapados
suas fazendas.

Monopólio patrício
Em 1606, o cabildo de Buenos Aires proibiu e reprimiu
a caça livre ao gado, concedendo licenças (acciones) mono-
pólicas aos proprietários patrícios (accioneros), limitadas à
quantidade do gado declarado como perdido a certas regiões,
em geral colidentes com as propriedades dos requerentes, e
a certas épocas, sobretudo janeiro-julho. Nesses meses, os
mais quentes do ano, os animais agrupavam-se às margens
dos arroios, rios e lagunas; os terneiros haviam desmamado;
os couros secavam com maior facilidade. A primeira licença
teria permitido a captura de pouco mais de 1.400 animais. 11
Os accioneros negociavam, junto com as propriedades, os di-
reitos de captura e apropriavam-se das áreas em que tinham

9
CASAL. El modo de producción colonial [...]. p. 66; GAIGNARD, Romaní. La
pampa argentina. p. 64-65.
10
Cf. DOTTA, Mario; FREIRE, Duaner; RODRIGUEZ, Nelson. El Uruguay
ganadero: de la explotación primitiva a crisis actual. Montevideo: La Banda
Oriental, 1974. p. 23.
11
DOTTA; FREIRE; RODRIGUEZ. El Uruguay ganadero. p. 23; PINTOS, Ani-
bal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967.
p. 30.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 49


permissão para recuperar gado. Originalmente, o objetivo
precípuo dessas expedições foi o gado vivo, para povoar fazen-
das e abastecer a cidade.12
Concedendo os direitos aos requerentes, o cabildo bo-
naerense outorgou-se o poder de legislar sobre os gados chi-
marrões, retirando-os do domínio público e da própria alçada
da administração real. O direito de concessão do Estado da
propriedade plena da terra limitava já fortemente a possibi-
lidade do homem livre pobre de estabelecer-se como produtor.
Ao arrogar-se, em nome do Estado, o direito de legislar sobre
os gados selvagens, o cabildo de Buenos Aires estabeleceu a
forte contradição que o oporia ao homem livre (gaúcho) e aos
nativos dos pampas. O núcleo central do poder econômico e
social bonaerense consolidou-se em torno do comércio portuá-
rio, das exportações de couros, dos latifúndios pastoris.
Em 1607 e 1609, partiram do porto de Buenos Aires
apenas cinquenta e oitenta couros, respectivamente. Entre
1600 e 1625, no total, foram exportados 27 mil couros, ou seja,
pouco mais de mil unidades por ano. Menos animais do que
os abatidos para a subsistência da cidade, chácaras e fazen-
das. Porém, como visto, na segunda metade do século 17 a
produção para a exportação tornar-se-ia a principal atividade
econômica do comércio bonaerense, com expatriação média
anual de vinte mil couros.13 De 1748 a 1753, o porto despacha-
ria, por ano, em torno de 150 mil peças.14 E, como veremos, os
couros da região conheciam outros escoadouros.
Aos couros enviados de Buenos Aires, agregavam-se os
vendidos aos piratas e corsários ingleses, franceses, holande-
ses, etc. que abundavam na costa atlântica e, sobretudo, os
expedidos através de Sacramento para o Rio de Janeiro. Os

12
Loc. cit.
13
CASAL, Juan Manuel. El modo de producción [...]. p. 66; GAIGNARD, Romaní.
La pampa argentina. […]. p. 64-65
14
GIBERTI, Horacio C.E. Historia económica de la ganadería argentina. Act. e
corr. Buenos Aires: Solar, 1976. (1 ed. 1954). p. 39

50 Mário Maestri
couros que partiam legalmente de Buenos Aires eram embar-
cados nos navios de Registro e nos barcos do Asiento inglês de
escravos, de 1718, 1723 e 1724. Eram igualmente abundan-
tes as exportações de couros sobretudo dos Sete Povos missio-
neiros (1682-1801).15 Os couros embarcados eram comumente
trocados por prata e por mercadorias.16 Em 1660, quando era
grande a abundância de gado em Buenos Aires, o preço do
animal era de quatro reais e o do couro, seis a sete; em 1720,
o animal valia doze reais e o couro, de onze a doze. O maior
valor do couro em relação ao animal vivo devia-se ao alto pre-
ço da mão-de-obra para prepará-lo.17

As vaquerías
As vaquerías eram “incursiones por los campos para cazar
el ganado cimarrón que pastoreaba libremente”.18 A operação
buscava a transferência de animais, em geral para repovoar
ou fundar fazendas. Em meados do século 18, o padre José
Cardiel descreveu uma recojida de gado por cavaleiros missio-
neiros na Banda Oriental do Uruguai: “Aquí acostumbraban
acudir los indios a recoger vacas, tarea trabajosísima cuando
están alzadas. Salen a vaquear cincuenta o sesenta indios,
llevando cada uno sus cinco caballos de repuesto. Llevan un
rebaño pequeño de vacas mansas, y lo colocan en un collado,
donde puedan ver las silvestres. A conveniente distancia, cer-
can este rebaño treinta o cuarenta de los indios, y los demás
se dividen para recoger las vacas bravas más cercanas, las
cuales viendo el rebaño, se le acercan, ensanchándose para

15
Cf. MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777.
Porto Alegre: Globo, 1937. 2 v.; DOMINGUES, Moacyr. A Colônia do Sacra-
mento e o Sul do Brasil. Porto Alegre: Sulina, 1973.
16
PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo
Mundo, 1967. p. 97, 105.
17
MILLOT, Julio; BERTINO, Magdalena. Historia económica del Uruguay. Tomo
I e II. Montevideo: Fundación Cultura Universitaria, 1991. p. 53.
18
GIBERTI, Historia económica [...], p. 29.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 51


abrirles paso los guardas. De igual modo proceden a recoger
otras, hasta que ya no quedan más en las cercanías. Entonces
se juntan los vaqueros, y poniéndose delante uno que otro, los
demás corriendo a caballo alrededor, empujan el rebaño hacia
el paraje donde se han de recoger otros del mismo modo y el
mismo orden. [...] Por la noche, lo contienen encendiendo por
todos lados hogueras; pero, si se apagan, huyen los animales
por entre los mismos vaqueros. De esta manera, en espacio
de dos o tres meses, cincuenta indios recogen para su pueblo
cinco o seis mil vacas en un territorio de cien leguas.”19
Segundo ata do cabildo de Buenos Aires, de 31 de janeiro
de 1719, uma grande recolhida de quarenta a cinquenta mil
animais na Banda Oriental, com destino de Santa Fé, duraria
diversos meses. A operação exigia em torno de 150 “práticos”,
uns 1.600 cavalos – dez por cavaleiro –, cachorros, armas,
provisões em sal, açúcar, erva-mate, tabaco, aguardente, etc.,
e dez canoas com trinta peões experientes na travessia dos
rios. Durante uns três meses, os gados eram arrebanhados
pelos cavaleiros e concentrados em um rincão ou região esco-
lhida, onde uma pequena ponta de gado domesticada atraía/
tranquilizava os animais chimarrões, sempre sob a vigilância
de peões. Durante a viagem de retorno, os cavaleiros se des-
dobravam para que os animais não se dispersassem e não
fossem assaltados por feras, perros chimarrões e nativos. À
noite, os gados eram cercados por grandes fogueiras, alimen-
tadas, na falta de lenha, por carcaças de reses. A travessia
dos rios Uruguai e Paraná era difícil e demorada.20
O pagamento dos trabalhadores livres nas vaquerías era
feito com o gado arrebanhado ou em moeda sonante: seis a
dez rezes, para os peões com cavalos próprios; cem a duzentas,

19
CARDIEL, padre José Cardiel. “Costumbres de los Guaraníes”. Historia del
Paraguay desde 1747 hasta 1767. Ob.cit. p. 483. Apud CESAR, Guilhermino.
Origens da economia gaúcha: o boi e o poder. Porto Alegre: IEL: Corag, 2005.
p. 45
20
PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado, p. 96

52 Mário Maestri
para o capataz; oito a dez pesos mensais para o peão, vinte
para o capataz. No primeiro caso, por capataz compreendia-
se possivelmente o responsável geral pela operação; no segun-
do, os chefes de equipe. 21 Segundo a ata do cabildo de Buenos
Aires de 23 de setembro de 1723, os guardas armados – no
mínimo seis – ganhariam quatro reais diários, “jornal” nor-
mal de um peão em Buenos Aires. Os peões ganhariam de
dez a quinze pesos mensais. Nas vaqueiras de corambre, os
vaqueiros que desgarravam os animais ganhavam por pro-
dução: cinquenta pesos por mil animais.22 Em 1694, o padre
Bernardo de la Vega registrava que corambreros portugueses,
em ação na Banda Oriental, abatiam diariamente de oito a
vinte animais.23
A vaquería de corambre, operação para a caça de gados
para a produção de couros, sebo e graxa, era ainda mais com-
plexa e demorada, podendo prolongar-se por mais de um ano.
Portanto, constituíam comumente atividade semipermanen-
te. Como as operações anteriores, elas podiam ser realizadas
por diversos armadores associados, cada um com o direito de
retirada de couros determinado pela municipalidade de Bue-
nos Aires, ou operação clandestina. Esse tipo de vaquería exi-
gia uma dezena ou mais de destros cavaleiros. Apoiados por
cachorros, os faeneros ou corambreros envolviam em campo
aberto o gado vacum e cavalar, muitas vezes sob formação em
forma de V, para cortar o tendão das bestas com lâmina em
meia-lua atada na ponta de lanças de taquara ou madeira de
dois metros.24
O “desjarretadero” que seguia o animal pela direita, cor-
tava a pata esquerda traseira do animal, para que não caísse
diante da montaria, e vice-versa. Após os animais semi-imo-
bilizados serem desnucados com golpes de pequeno punhal

21
MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, p. 54.
22
PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado, p. 102.
23
DOTTA; FREIRE; RODRIGUEZ. El Uruguay ganadero, p. 21.
24
GIBERTI, Historia económica de la ganadería argentina, p. 29.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 53


dado pelos matadores, os desolladores retiravam o couro,
sebo, cabelo, língua, etc. Eventualmente, produzia-se algu-
ma cecina. Animais eram também laçados ou boleados para
serem sacrificados.25 Nos primeiros tempos de Sacramento,
animais foram mortos a tiros, como veremos oportunamen-
te.26 Em História econômica de la ganadería argentina, pu-
blicada pela primeira vez em 1954, Horacio Giberti propõe
a não participação de cativos nessas expedições, com base
numa reflexão sobretudo lógica: “[...] en ellas no participa-
ban los esclavos, cuya escasez elevaba grandemente su valor
mercantil. La pérdida de un esclavo en uno de los probables
accidentes hubiera implicado la desaparición de buena parte
de los beneficios.”27
A documentação questiona essa afirmação geral e pe-
remptória. Em 1785, os espanhóis mataram nas regiões dos
rios Vacacaí e São Sepé, ao resistir à prisão, o coureador Fran-
cisco Lemos, prendendo quatro outros portugueses, “inclusive
um escravo”, além de espanhóis e nativos envolvidos naquele
contrabando.28 Não são raros registros de cativos envolvidos
nessa atividade, sobretudo na Banda Oriental. A maior dispo-
nibilidade de cativos, os altos salários dos homens livres, etc.
contribuiriam para que, nas expedições enviadas da Colônia
do Sacramento, cativos trabalhassem na condução dos carro-
ções e, possivelmente, como peões, como veremos oportuna-
mente. A população escravizada de Sacramento sempre foi
considerável, como já visto.. 29

25
Loc. cit.
26
MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 118-124.
27
GIBERTI, Historia económica de la ganadería argentina, p. 29.
28
AN, RJ, cód. 104, v. 7, fl. 186. Apud OSÓRIO, H. O império português no sul
da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: EdiUFRGS,
2007. p. 64.
29
SANTOS, Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 30.

54 Mário Maestri
Jangadas dos pampas
Em Terra gaúcha, livro póstumo e inacabado, João Si-
mões Lopes Neto (1865-1916) detalha as práticas corambre-
ras: “Os changadores traziam as suas tropilhas de cavalos em
balsas, sobre a costa de Soriano (Banda Oriental) e arrancha-
vam-se de forma a facilitar os seus embarques e precaver-se
contra os ladrões dos seus mantimentos e estaqueadouros.
Em grupos de trinta a quarenta indivíduos conchavados en-
tre a escória (sic) das cercanias de Buenos Aires e obedecendo
a um capataz, que representa, com plenos poderes, o empre-
sário da exploração. Bem armados e bem montados, corriam
os bandos dispersos de índios, coureavam o que podiam e fin-
do o respectivo contrato dissolvia-se a comparsa.”
Segue o regionalista pelotense: “Outras vezes, os chan-
gadores, formando quadrilhas independentes internavam-se
no território, vindo muitas até a coxilha de Cebolati (rio Ce-
bollati, afluente da lagoa Mirim, no Uruguai) e adiante, até a
barra do Rio Grande de São Pedro, onde faziam permutas com
os caravelões de São Vicente que em navegação furtiva apa-
reciam por certas águas. Durante muito tempo foi somente o
couro o produto procurado; para caçar o gado empregavam os
campeiros o sistema de – mangueira – que consistia apenas
em conduzir, a gritos, a boiada, sobre uma volta acentuada
de algum arroio forte; aí ‘desgarronavam’ as reses com uma
espécie cortante de meia-lua, encabada em taquara, como
uma lança; aos que desempenhavam este ofício chamava-se
– cortadores – e eram de uma destreza proverbial. Em segui-
da sangravam o animal, tirando-lhes apenas o couro, o sebo
e a língua, abandonando o resto aos urubus e aos cachorros
chimarrões.”30
Para o historiador Aníbal Bairros Pinto, a designação de
“changador”, ou seja, do “faenero de cueros clandestino”, pro-

30
LOPES NETO, João Simões. Terra gaúcha. Porto Alegre: Sulina, 1998. p. 92.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 55


cederia da palavra “changar”, ou seja “carnear”. Em O gaúcho
na história e a lingüística, de 1966, apoiando-se no filólogo
Joan Carominas, Propício da Silveira Machado propõe que a
palavra derivava do étimo português “jangada”, em virtude
das embarcações nas quais eles chegavam, com seus cava-
los, à Banda Oriental, através dos rios Paraná e Uruguai. A
proximidade entre a pronúncia de “changador” e “jangador”
ou “janguadeiro” é grande. Temos registros escritos daquele
termo desde 1729, para a Banda Oriental, e desde 1748, para
a Argentina.31
Em 1703, em seu “Roteiro” de viagem pelo litoral, des-
de a Colônia do Sacramento, Domingos de Filgueiras narrou,
ao chegar à barra do Rio Grande: “Neste porto é necessário
passar em jangada, que se há de fazer em ocasião de repon-
ta (enchente) de maré. E a jangada se fará de espinho seco
para as estivas que se juntarão, e os três paus para estiva
pouco importa que estejam verdes. Hão de estes ter quinze
até dezoito palmos de comprimento (3.30-3.96 m), far-lhe-ão
duas faces, uma para baixo, outra para cima. Por cima des-
ta estiva se fará outra de madeira com travessas lançadas e
amarradas umas à outras [;] por cima de ambas as estivas se
lançarão dois paus, um por cada lado, que servem de talabar-
dões (ponte que corre junto à borda da embarcação) para se
armarem os remos, cujos paus serão grossos e secos, os remos
serão de boga e de espinho branco, verde, que é mais forte e
não falta; por-lhe-ão quatro remos, dois por banda e a janga-
da que tem quinze ou dezesseis palmos de comprimento, daí
para cima, conforme quantidade de gente que houver passar,
porque esta medida é para seis passageiros.”32
Os couros, estaqueados ao sol, deviam ser repetidamente
limpos de insetos, para serem a seguir transferidos ao acam-

31
PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo
Mundo, 1967. p. 109, 114; MACHADO, Propício da Silveira. O gaúcho na histó-
ria e a lingüística. Porto Alegre: Palotti, 1966. p. 31.
32
Apud AMARAL, Anselmo F. Os campos neutrais. Porto Alegre: 1973. p. 69.

56 Mário Maestri
pamento dos corambreros. Após serem amassados, o sebo e a
graxa eram acondicionados em bolsas de couros para posterior
manipulação. Realizadas no verão, as expedições durariam
meses, como vimos, sobretudo quando os campos mais próxi-
mos já se encontravam despovoados de animais. A exportação
dos couros para os mercados europeus dava-se privilegiada-
mente no inverno, quando, em razão da baixa temperatura,
não eram atacados pela temida polilla – parasitas do couro.
As vaquerías de corambre exigiam capitais ainda superiores
às arreadas, necessários para os salários, as armas, os su-
primentos, as carretas, os instrumentos de trabalho, etc. Em
virtude da baixa qualidade das montarias, a cada cavaleiro
corresponderiam cinco ou mais animais, como assinalado.33

Modo de produção gaúcho


Espanhóis, criollos, portugueses, gaúchos, libertos, char-
ruas, minuanos, guaranis etc. dedicavam-se, de forma isolada
ou em pequenos grupos, como produtores independentes pro-
prietários dos seus meios de produção, à caça de gado para a
obtenção direta e indireta de parte de seus meios de subsis-
tência. Em geral essa produção era clandestina, já que repri-
mida pelas autoridades coloniais, que, em nome do Estado,
monopolizavam as terras e os gados para garantir a extração
de impostos e privilegiar os segmentos sociais dominantes. A
caça ao gado, pelo couro, para a venda, podia constituir ati-
vidade semipermanente de gaudérios/gaúchos. Mesmo nesse
caso, quando muito, tratava-se de produção simples de mer-
cadoria, em esfera não capitalista, subordinada ao mercado
local ou mundial. À medida que os gados escasseavam, au-
mentava a repressão e a sua busca exigia longas, custosas e

33
DOTTA, Mario; FREIRE, Duaner; RODRIGUEZ, Nelson. El Uruguay gana-
dero. Ob.cit. p. 21; CASAL, Juan Manuel. El modo de producción [...]. p. 66.;
MILLOT, Julio; BERTINO, Magdalena.. Historia económica del Uruguay. [...]
p. 55; GIBERTI, Historia económica de la ganadería argentina, p. 38

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 57


difíceis operações; o changador tenderia a alugar seus servi-
ços aos armadores de grandes vaquerias, legais e ilegais.
Em 1785, o vice-rei Luís de Vasconcelos escrevia sobre
os nativos americanos do Rio Grande do Sul: “De não menos
providência necessitam os índios daquele continente, a maio
parte dos quais faz o excessivo número de indivíduos vagos
e dispersos, que vivendo à lei da natureza, sem disciplina e
sem religião, se fazem quando não autores dos delitos mais
atrozes ao menos sócios de todos os crimes a que os convida
uma vil e insignificante recompensa. Na campanha, eles são
os que concorrem para as extorsões, furtos e contrabandos;
nos campos e nos estabelecimento dos moradores, eles dão
todo o auxílio para os furtos de muitos animais [...].”34
No Prata do século 16 a boa parte do 19, a separação do
produtor livre das condições de produção de seus meios de
subsistência dava-se quando muito em grau limitado. Entre
dois conchavos em uma vaquería, changadores e trabalha-
dores livres sobreviviam da exploração de pequenos ranchos,
com suas famílias, em terras próprias ou ocupadas, plantan-
do rústicas roças, criando alguns animais, etc. Essas ativi-
dades podiam se dar em associação com a produção furtiva
de couros e com o contrabando. O fato de produzir parte dos
meios de subsistência tendia, contraditoriamente, a deprimir
e a suster o valor de remuneração da força de trabalho, paga
em espécie ou em moeda.35 Isto porque, por um lado, como
vimos, o trabalhador não era obrigado imperiosamente a alu-
gar seu trabalho e, por outro, não necessitava do salário para
sobreviver. O gaúcho se conchavaria periodicamente, sobre-
tudo para comprar o que não produzia; episodicamente, para
formar um pequeno rancho, etc.
Não podemos definir como camponesa população que
apoiava marginalmente sua subsistência em agricultura

34
SANTOS. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 29.
35
MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. 55

58 Mário Maestri
voltada sobretudo ao consumo familiar. Como lembram Ju-
lio Millot e Magadalena Bertino, em Historia económica del
Uruguai, essa forma de existência e produção não capitalis-
ta, onde a força de trabalho do produtor direto não se trans-
formava ainda plenamente em mercadoria, constituiu parte
integrante do que poderíamos definir de modo ou forma de
produção do gaúcho ou da vaquería.36 A oligarquia portuária
de Buenos Aires conseguiu estabelecer sua hegemonia sobre
a sociedade do interior por meio da repressão-destruição des-
sa forma de produção/existência, processo no qual a Guerra
do Paraguai desempenhou importante papel.37

Pequenos, médios e grandes


capitalistas
Do ponto de vista do armador, a vaqueria constituía
atividade voltada essencialmente à valorização do capital
investido, com rentabilidade dependente da abundância de
animais. A expedição objetivava produzir, ao concluir-se, um
capital superior ao investido, através da realização da mer-
cadoria produzida no mercado – o couro. A subjunção dessa
atividade ao mercado mundial não determinava uma sua es-
sência capitalista. O próprio comércio mundial não é decor-
rência da ordem capitalista dominante, tendo surgido na his-
tória nos primórdios da civilização.38 Não raro, as vaquerías
eram agenciadas ou arrematadas por poderosos capitalistas,
ou seja, detentores de capitais. Em 1º de março de 1702, co-
municava-se à administração real que as “caçadas dos couros
da Nova Colônia do Sacramento e Montevidéu” haviam sido
36
Id. ib. p. 55, 90.
37
Cf. RIVERA, Enrique. José Hernández y la Guerra del Paraguay. Buenos Aires:
Colihue, 2007. 96 p.; ROSA, José Maria. La guerra del Paraguay y las montone-
ras argentinas. Buenos Ayres: Hyspamérica, 1986; PEÑA, Milciades. La era de
Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infamia. 3. ed. Buenos Aires: Fichas,
1975..
38
MANDEL, Ernest. Tratado de economia marxista. México: Era, 1972. p. 70.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 59


arrendadas a Manoel Lopes Faria, por seis anos, por um cus-
to anual de sessenta mil cruzados, pagos em duas parcelas
semestrais. O que excedesse aos valores correspondentes aos
quintos do couro seria aplicado no “sustento dos presídios e
fortificações” do sul lusitano.39
A valorização do capital empregado nas vaquerías não
dependia essencialmente da apropriação pelo faenero do tra-
balho excedente do produtor direto (corambrero, cativo, etc.),
o que permitia relativa abertura nesse relativo. Dependia,
sobretudo, da enorme diferença entre o trabalho socialmen-
te necessário para produzir couros na Europa e nas Améri-
cas. Era produto, portanto, da renda diferencial. O custo de
produção do couro americano, entregue no porto europeu, era
inferior ao valor de venda do produto no Velho Mundo, que
exigia a remuneração da renda da terra, dos gastos de criação,
do custo de extração, etc. Em inícios de 1690, o padre Antô-
nio Sepp extasiava-se com a diferença do preço do couro nas
Américas e na Europa: “Aqui, um couro sai a 15 kreuzers, que
vem a ser o salário para o serviço de tirá-lo. Na Europa, no
entanto, em qualquer parte, vende-se um couro de boi como
este por seis e mais reichstaler.”40
O preço do couro não era determinado apenas pelo cus-
to de produção na Europa. À medida que se sistematizava
e crescia a produção americana, os terrenos e regiões euro-
peus de produtividade inferior seriam deslocados como locais
de produção do produto, um processo minorado em razão do
enorme crescimento das necessidades do couro através dos
séculos 18 e 19, com o desenvolvimento da Revolução Indus-
trial, que tinha no produto matéria-prima fundamental.

39
GOULART, José Alípio. Brasil do boi e do couro. Rio de Janeiro: GRD, 1965.
p. 62,
40
Cf. SEPP S. J., padre Antônio. Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apos-
tólicos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EdUSP, 1980. p. 143; o reichstaler,
moeda padrão de prata, valeria 72 kreuzers, de cobre. O couro custaria em
torno de trinta vezes mais no Império Habsburgo.

60 Mário Maestri
O custo da produção do couro americano reduzia-se aos
gastos com o abate, a extração, a armazenagem e o transporte
até o porto americano de exportação e, deste, até a Europa,
acrescidos das taxas e impostos, quando não eram contraban-
deados. Inicialmente, não havia custos de criação animal, o
que assegurava a enorme rentabilidade dessa extração. Em
1711, falando dos couros produzidos no Brasil, Antonil propu-
nha que o custo do “meio de sola” (couro seco) seria 1$980 réis
– ou seja, 1$500 o couro; 340 réis de direitos e o restante gastos
com o transporte até Lisboa. O couro em cabelo, por sua vez,
custaria 2$100 em Lisboa.41 Em Brasil do boi e do couro, José
Alípio Goulart anota: “Em Lisboa, em fins do século XVIII, os
couros secos valiam: peça na base de 32 quilos, a 65 réis por
libra, 2.080 réis; frete do Brasil, 260 réis; e despesas de de-
sembarque, 140 réis, totalizando 2.480 réis.” “O couro salgado
valia no Brasil de 2.300 a 2.400 réis por peça de 31 a 32 libras;
em Lisboa, valor posto a bordo em porto brasileiro, 2.350 réis;
frete, 260 réis, e despesa de embarque (sic), 160 réis, soman-
do 2.770 réis.”42 Segundo Simonsen, o preço do transporte dos
couros, em 1757, por alvará real, da Bahia, Pernambuco ou
Rio de Janeiro, era de trezentos réis, para couro em cabelo, e
de duzentos réis, para meio de sola.43

O corambre na Banda Oriental nos


séculos 17, 18 e 19
O gado foi introduzido por espanhóis na costa de San
Gabriel (Soriano), na primeira metade do século 17, em mo-
mento em que os charruas dominavam a Banda Oriental do
Uruguai. Então, as atuais costas uruguaias eram visitadas
41
ANTONIL, a. J. Cultura e opulência do Brasil. 2 ed. São Paulo: Melhoramen-
tos; Brasília, INL, 1976. p. 203.
42
Cf. GOULART, O Brasil [...], p. 44.
43
SIMONSEN, R.C. Apud SIMONSEN, R.C. História econômica do Brasil.
Brasília: Companhia Editora Nacional, 1977. p. 169.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 61


esporadicamente por espanhóis, portugueses e europeus para
a extração de madeira, de couro, de graxa e de sebos. Em 1626,
jesuítas cruzaram o rio Uruguai e penetraram no noroeste
do atual Rio Grande, fundando dezesseis missões, sobretudo
com guaranis. Em 1634, 1500 cabeças de gado foram trazidas
para conformar os rebanhos das Missões do Tape. Os animais
foram abandonados quando os missioneiros retiraram-se, a
partir de 1637, por causa dos assaltos dos paulistas.44
Em razão da benignidade da região, os gados se mul-
tiplicaram, atravessando os rios Jacuí-Ibicuí, em direção do
sul, para formar a imensa vaquería do Mar, entre o oceano
e os rios Jacuí e Negro. Com uma estimativa de um procreo
de vinte por cento para os rebanhos chimarões, em inícios do
século 18 haveria em torno de cinco milhões de animais ao
norte e ao sul do rio Negro, inicialmente explorado sobretudo
pelos nativos pampianos – charruas, minuanos, etc. –, que
aprenderam a cavalgar e passaram a apoiar sua subsistência
na caça ao gado, pela carne e pelo couro, em uma quase per-
manente disputa com os guaranis missioneiros.45
Como proposto, em 1680 os portugueses fundaram a
colônia do Sacramento, no extremo sul da Banda Oriental.
Encravada em possessões espanholas segundo o Tratado de
Tordesilhas (1494), a feitoria armada buscava retomar, por
meio do contrabando, os rentáveis laços comerciais que os lu-
so-brasileiros haviam mantido com a região, sobretudo atra-
vés de Buenos Aires, durante a União Ibérica, como já dito.
Os manufaturados ingleses, as mercadorias chegadas
das costas do Brasil e os trabalhadores africanos escraviza-
dos eram pagos com a valiosa prata do Peru. Como também

44
Cf. PORTO, Aurélio. História das missões orientais do Uruguai. 2 ed. Ver. e
melhor. pelo p. L.G. Jaeger. Porto Alegre: Selbach, 1954. I e II; MONTOYA, Pa-
dre Antônio Ruiz de. Conquista espiritual: feita pelos religiosos da Companhia
de Jesus nas Províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape. Porto Alegre:
Martins Livreiro, 1985.
45
MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 55.

62 Mário Maestri
já proposto, na expedição que fundou a feitoria chegaram ses-
senta cativos, 48 pertencentes a dom Manuel Lobo, para se-
rem vendidos aos proprietários da região, sedentos de braços.
Em agosto de 1680, com a queda de Sacramento em mãos es-
panholas, “53 negros, em sua maioria escravos”, terminaram
em Buenos Aires, ao igual do ocorrido com o desventurado co-
mandante da expedição.46 Essas trocas eram feitas por barcos
e lanchões que interligavam as duas margens, em geral sob a
complacência das autoridades de Buenos Aires.

Apoio nativo
As imensas mandas de gado da Banda Oriental foram
inicialmente descuradas pelos portenhos em razão da riqueza
de animais na interlândia de Buenos Aires. A caça dos ani-
mais pelo couro mostrou-se muito logo importante fonte de
renda aos lusitanos recém-chegados, uma operação facilitada
pelo apoio recebido, desde os primeiros momentos, por parte
dos nativos charruas, que abasteceram Sacramento, sobretu-
do em carne, em troca de roupas, ferramentas e outros produ-
tos. Mais tarde, trocariam esses bens por couros.47 Os couros
transformaram-se em importante forma de pagamento das
mercadorias compradas na feitoria. A Colônia transformou-se
em importante porto de exportação da produção corambrera
bonaerense, limitada fortemente pelas restrições e gravada
pelas taxas metropolitanas. Em 1695, o porto do Rio de Janei-
ro enviava para Portugal cinco mil couros chegados da Colô-
nia, obtidos no Prata e no atual Rio Grande do Sul – quanti-
dade talvez média das exportações nesses anos. Segundo C.R.
Boxer, as exportações de couro do Rio de Janeiro para o Reino

46
Cf. MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777.
Porto Alegre: Globo, 1937. v. I. p. 45.
47
Id. ib. p. 73

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 63


teriam variado de quatrocentos a quinhentas mil unidades,
chegadas sobretudo das possessões espanholas.48
Dom Francisco Naper de Lencastre, governador de Sa-
cramento, teria enviado, em fins do século 17, os primeiros
142 couros para o Reino, determinando, por isso, em 1690, a
decisão da administração lusitana de cobrar apenas o dízimo
sobre eles, a ser empregado no pagamento da manutenção
(soldo) daquela conquista. O baixo valor e o destino dos ca-
pitais obtidos pela taxa assinalariam o desconhecimento das
possibilidades da mercadoria. Em 6 de dezembro de 1691, ao
escrever ao rei, destacando as importantes riquezas animais
da região, Lencastre assinalava que uma fragatinha que su-
bira o rio Santa Luzia matara facilmente duzentas rezes para
o abastecimento dos moradores. A maior dificuldade seria a
falta de cavalos. Em janeiro de 1694, em carta ao soberano,
entre as grandes razões para a conservação da Colônia desta-
cava já a produção de couros: “Há mui considerável o grande
interesse que pode ter na courama que se fizer nestas cam-
panhas, onde não será possível nunca extinguir o gado e se
6.000 couros que mandei fazer e vão embarcados neste navio
[...].”49
A carta do governador registrava que a produção de
couro fazia-se ainda de forma não sistemática. Segundo ele,
uns quatorze caçadores penetravam em pequenos barcos na
campanha, servindo-se de rios e arroios, navegáveis por de
18 a 24 km., para abater o gado a tiros de “espingarda”. As
carnes e os couros eram carregados nas costas até as embar-
cações e, destas, para a Colônia. Lencastre lembrava que com
suficientes “cavalos e carros” far-se-iam de vinte a 25 mil
couros por ano, para o proveito da Coroa, dos soldados e do
abastecimento em carne da povoação. Em 1695, o governa-
dor mandara matar mil vacas, distribuindo as carnes entre

48
SANTOS., Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 19.
49
MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 112, 114-15, 117.

64 Mário Maestri
os moradores da cidadela e enviando os couros crus ao Rio de
Janeiro, aos poucos, em razão das dificuldades de transporte.
50
Em documento de 1697, o provedor-mor da Fazenda real da
capitania do Rio de Janeiro assinalava que navio chegara da
Colônia trazendo quase quatro mil couros, 1.399 de touros e
mil de vaca. Não havia, portanto, qualquer preocupação com
o respeito às matrizes.51

Riqueza animal
A caça aos animais se generalizou. Expedições privadas,
com homens livres e escravizados, em embarcações ou carre-
tas, penetravam o interior para caçar gado pela carne e, so-
bretudo, pelo couro, sebo e graxa. Em janeiro de 1698, nativos
missioneiros atacaram alguns espanhóis e mataram “um sar-
gento” da Colônia “com sua comitiva de negros e um mulato”,
que caçava nos campos vizinhos. Esses ataques se repetiriam
nas décadas seguintes. Em inícios dos anos 1720, nativos
missioneiros e espanhóis teriam atacado e tomado “nas pro-
ximidades da Colônia umas carretas pertencentes ao capitão
Cristóvão Pereira de Abreu, que seus escravos traziam com
frutos do país para o interior da Colônia”.52 Registrem-se as
repetidas referências a cativos participando em operações
produtivas nos aforas da cidadela.
Com a sistematização das exportações de couro, a Coroa
portuguesa regulou mais estritamente seus direitos. Carta
régia de 24 de setembro de 1699 determinava que fossem co-
brados 20% (quinto) sobre os couros enviados da Colônia para
o Rio de Janeiro, onde, segundo instrução do mês seguinte,
deveriam ser beneficiados. Em 1º de março de 1702, o con-
trato dos quintos dos couros foi adjudicado, por sessenta mil
cruzados, por seis anos, a Manoel Lopes de Farias. Em 1729,
50
MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 118, 124.
51
Cf. GOULART, O Brasil do boi e do couro, p. 40.
52
MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 127, 182.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 65


o direito coube a João Rodrigues da Costa, por três anos, sob
o pagamento de quinhentos réis por couro exportado. Ao ter-
minar o triênio, a cobrança dos quintos coube a João Álvares
Trique, por 550 réis o couro de touro e 400 o de vaca e novilho,
o que assinalava, mais uma vez, a despreocupação oficial com
a manutenção e expansão dos rebanhos. 53
A Coroa espanhola seguia atenta o ativismo dos lusitanos
na margem oriental do Plata, contrabandeando mercadorias
e dizimando manadas que considerava suas. Em 1721, dom
Bruno Zabala escrevia ao soberano espanhol “comunicando
que, mandando uma forte partida de índios (das missões) per-
correr a costa até Montevidéu”, encontraram em um “rancho
1.500 couros secos”, que haviam sido queimados, sem que se
pudesse apreender um “bergantim” que partira da enseada
para a Colônia. Na viagem de retorno, a partida encontrara
um “outro rancho”, com 2.500 couros. Dois anos mais tarde, o
soberano era informado de que o navio Nossa Senhora Mãe
de Deus e São José partira, em 6 de fevereiro, da Colônia
para o Rio de Janeiro, onde chegara em 6 de fevereiro, para
atracar, finalmente, em 8 de maio em Lisboa, com uma carga
de “onze mil couros secos, trinta mil pesos em dinheiros e dois
mil marcos em prata”. 54
Em fevereiro de 1726, aportara na Colônia um comboio
com dez navios abarrotados de mercadorias, trocados por
400.592 couros secos, além do pagamento em prata e moe-
da. Uma enorme parte desses couros teria sido produzida pe-
los nativos charruas e por moradores de Buenos Aires. Em
inícios do século 18, estimava-se em quatrocentos espanhóis,
com dois mil cavalos, ocupados na caça ao couro na Banda
Oriental, em grande parte a serviço dos portugueses da Colô-
nia.55 Em A colônia do Sacramento, o historiador Rego Mon-
teiro lembra que, em meados dos anos 1720, o couro fresco
53
Id. ib. p. 131, 198.
54
Id. ib. p. 182-184.
55
SANTOS, Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 62.

66 Mário Maestri
das rezes mortas para o consumo valia uma pataca, ou seja,
320 réis. Portanto, o preço da própria vaca. Os couros eram
levados ao Rio de Janeiro em todos os navios que aportavam
na Colônia. Em 1726, uma “sumaquinha” partira da Colônia
com 1.404 couros de touros, para aquela destinação, sob a
apreensão geral, por causa da fragilidade da embarcação. Na
mesma época, uma charrua, com 10.210 couro de touros e 127
de vacas encalhara no banco Inglês, cemitério de diversos na-
vios lusitanos.56
À produção de couros e ao contrabando, os lusitanos de
Sacramento agregavam a exportação de mulas de Santa-Fé e
de outras regiões do Plata para São Paulo, inicialmente atra-
vés do caminho da Praia. Também carnes salgadas eram en-
viadas para a costa do Brasil.57 Em 1741, o inglês John Camp-
bell referia-se ao contrabando entre a Colônia e Buenos Aires:
“[...] há uma terceira classe de comércio ilícito do qual posso
falar perfeitamente. Esse é efetuado com os portugueses, os
quais [...] dominam a margem oposto do Rio da Plata. Dali
eles aproveitam as ocasiões para enviar, de tempos em tem-
pos, pequenas embarcações carregadas não apenas com seus
próprios gêneros, mas com os que recebem da Europa [...].”58
A fundação de Montevidéu e o estabelecimento efetivo
dos espanhóis na Banda Oriental demarcariam o fim dos
anos de opulência da cidadela lusitana. Em A colônia do Sa-
cramento, de 1937, Jonathas da Costa Rego Monteiro lembra:
“Terminou o período áurea da Colônia do Sacramento, jamais
voltaram a ter seus arredores aquela riqueza de produção,
que fazia dela a cobiça espanhola a fiscalização pelo porto
de Montevidéu continuou, escassas se tornaram [...] as suas
transações de courama, grande fonte de sua riqueza.” Em
verdade, a cidadela transformara-se em porto livre no Prata,

56
MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 194-196.
57
Id. ib. p. 197.
58
GOULART, O Brasil do boi e do couro, p. 40.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 67


através do qual se exportavam não menos do que trezentos a
quatrocentos mil couros anuais.59

Os espanhóis na banda oriental


A despreocupação dos espanhóis de Buenos Aires com
a Banda Oriental modificar-se-ia, radicalmente, desde o iní-
cio do século 18, sobretudo em virtude da quase total exaus-
tão dos gados selvagens das regiões acessíveis do interior.60
E, como vimos, as compras de mercadorias inglesas e luso-
brasileiras eram pagas comumente com couros, enviados a
seguir da Colônia para o Rio de Janeiro.61 A produção coram-
brera por castelhanos na Banda Oriental passou a ser feita
por grandes operações ou por espanhóis, crioulos, mestiços,
charruas, negros, guaranis, desgarrados, etc. Informação de
finais do século 18 propunha que talvez mil changadores pro-
duzissem, em partidas, couros clandestinamente para serem
negociados na Colônia.62
O historiador argentino Emílio A. Coni lembra sobre a
aliança entre os portugueses de Sacramento e os vagamundos
da Banda Oriental: “Don Francisco de Alzaybar, empresário
de vaquerías [...]” “[...] servirá de freno a impedir la extrac-
ción de dichas pieles por aquellos hombres que los introducen
a los Portugueses que generalmente llaman changadores los
cuales no tienen pareja segura par su existencia pues unas
veces se hallan en la Colonia donde es su sagrado y asilo y
otras entran en la campaña con buen arréo de caballos y como
ladrones de aquellos campos hacen las faenas para los portu-
gueses.”

59
MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777.
Porto Alegre: Globo, 1937. p. 331, 338
60
DOTTA, Mario; FREIRE, Duaner; RODRIGUEZ, Nelson. El Uruguay ganade-
ro. Ob.cit. p. 23
61
MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 52.
62
PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo
Mundo, 1967. p. 109, 114.

68 Mário Maestri
Em 1738, o alcalde de Santa Hermandad de Montevi-
déu registrava que operação na campanha necessitava de,
no mínimo, quinze vizinhos e igual número de soldados, em
virtude de ameaça posta pelos changadores, que “se han pa-
sado a los portugueses” e que levaram “sus caballadas para
hacer corambre entre los portugueses”.63 Entre os principais
changadores da Banda Oriental, comandantes de partidas de
gaúchos vagos, encontravam-se Pedro Ansotegui, don Pedri-
to; José Jará, Pepe el Ladrón; José de Castro, Pepe el Mellad;
os portugueses Manuel Cabral e Francisco Pintos; os espa-
nhóis Salvador Gomes e Julián Medina; os índios Gregório e
Juan Vera e o negro Canga.64 Destaque-se, mais uma vez, a
presença de afro-descendente na produção de couros, agora
como chefe de changadores.
Como vimos, desde os momentos iniciais da fundação da
colônia do Sacramento, os charruas, inimizados com os gua-
ranis missioneiros, apoiaram os portugueses e realizavam
faenas de couro, em troca de “bayeta, sombreros, espadas,
virretes, tabaco e aguardiente”, como denunciava autoridade
bonaerense enviada à Banda Oriental para controlar a pro-
dução clandestina de couro, em 1721.65 Nessa atividade, com
destaque para as regiões nortes da Banda Oriental, partici-
pavam habitualmente luso-brasileiros chegados em lanchões,
através da Lagoa Mirim, do rio Cebollatí, Tacuarí, Yagua-
rón e, sobretudo, de Rio Pardo, na Depressão Central do Rio
Grande do Sul.66
A descoberta da rica população animal da Banda Orien-
tal, no contexto da expansão da atividade econômica e das
necessidades de couro da Europa desde inícios do século 18,
ensejou a atração de aventureiros de toda a região do Prata.
Como proposto, espanhóis, portugueses, mestiços, africanos

63
Apud AMARAL, Anselmo F. Os campos neutrais. Porto Alegre: 1973. p. 54.
64
PINTOS, De las vaqueiras [...], p. 115.
65
Id. ib. p. 101-112.
66
Id. ib. p. 116

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 69


e negros libertos, etc. empregaram-se na extração de couro,
de forma isolada, como membros assalariados das vaquerí-
as legais e clandestinas. A caça ao gado para a produção de
couros exerceu também poderosa atração nos charruas e nos
missioneiros, ali chegados em grande número após a derro-
ta que sofreram na chamada Guerra Guarani (1753-1756).
Crescentemente integrados ao comércio internacional pelo
capital mercantil, “indios puros aculturados o mestizados”
desempenham-se como “changadores, trabajando como peo-
nes en vaquerías o estancias, o incluso como poseedores o
propietario”.67

Mudando de banda
Na segunda metade do século 17, a intensificação da
retirada de couros ensejou que os gados se internassem nos
pampas da Banda Ocidental do Uruguai, esgotando as reser-
vas nas regiões controladas por Buenos Aires. “Las vaquerías
adquieren el carácter de expediciones armadas, indispensa-
bles para afrontar los peligros del indio al perder contacto con
la zona poblada. En 1688 documentos de la época sostienen
que a 20 leguas (uns 130 km) de la ciudad apenas si hay ga-
nado, y al año siguiente prohíbese las vaquerías por 6 años
argumentando que es necesario recorrer 70 leguas (mais de
460 km) para encontrar vacunos en cuantidad.”68
Desde inícios do século 18, os gados das regiões meri-
dionais da Banda Oriental começaram a ser explorados por
vaquerías organizadas por moradores de Santa Fé e Buenos
Aires, comumente a serviço da Colônia, ao passo que os do
norte eram explorados sobretudo pelos nativos missioneiros,
como veremos. Essas expedições arrebanhavam igualmente
gados para repovoar campos com as reservas animais já esgo-
tadas. Em agosto de 1716, o cabildo de Buenos Aires recebia
67
MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 24.
68
GIBERTI, Historia económica de la ganadería argentina, p. 36.

70 Mário Maestri
a denúncia de mais de quatrocentos santafesinos realizando
vaquerías clandestinamente na Banda Oriental. A partir de
1718, segundo o historiador Emílio A. Coni, ao se extingui-
rem os gados selvagens nas terras entre Buenos Aires e o rio
Salado, todas as vaquerías passaram a ser feitas quase exclu-
sivamente na Banda Oriental, através de licenças onerosas
concedidas a “empresários”, sob fiança, sempre pelo cabildo
de Buenos Aires, que cobrava pelas concessões.69 Os direitos
exigidos aos asienteros e registreros eram de um terço dos cou-
ros produzidos.
Em meados do século 18, o jesuíta José Cardiel descre-
veu, do ponto de vista das Missões, a enorme atividade dos co-
rambreros chegados à Banda Oriental desde a outra margem
do Plata: “Arrojándose a porfía a vaquear multitud de cua-
drilla, mataron enorme cantidad de vacas, cuyas peles, len-
gua y sebo, mientras una larga seria de carretas las transpor-
taba para entregarlas a los marcadores ingleses que residían
en Buenos Aires, quedaban en la vaquería otros trabajadores
preparando carga para nuevo viaje. De este modo, en término
de diez años, se acabaron, no solo miles, sino millones de va-
cas que había.”70 Nesses anos, o jesuíta referia-se, sobretudo,
às terras ao sul do rio Negro.
Entretanto, ao norte do rio Negro, região que pertencia,
em parte às Missões e escapava, em geral, à administração
e ao controle efetivo das autoridades espanholas, a caça ao
gado e ao couro era praticada por gaúchos, changadores e
nativos, isolados ou em grupos, que vendiam os couros aos
portugueses ou aos corsários ingleses, franceses, holandeses.
Essa região seria a grande pátria do gaúcho platino mais tar-

69
Cf. PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nue-
vo Mundo, 1967. p. 95.
70
CARDIEL, padre José Cardiel. “Costumbres de los Guaraníes”. Historia del
Paraguay desde 1747 hasta 1767. Trad. Padre Pablo Hernández. Madrid: Ge-
neral de Victoriano Suárez, 1918. p. 483. Apud CESAR, Guilhermino. Origens
da economia gaúcha: o boi e o poder. Porto Alegre: IEL: Corag, 2005. p. 39.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 71


de, importante reduto das forças artiguistas na luta fracas-
sada pela independência política e social dessas paragens.71
Era habitual que faeneros espanhóis trabalhassem clandes-
tinamente para os portugueses do Sacramento e espanhóis
de Buenos Aires, ocorrendo o mesmo, a seguir, com Santa Fé,
após 1708.
O sentimento dos jesuítas para com o saque dos reba-
nhos das vacarias compreende-se a partir da dependência,
sobretudo inicial, das Missões da carne e dos couros dos ani-
mais. Segundo o padre Antonio Sepp, em 1698 apenas uma
aldeia jesuítica consumiria em alimentação cinquenta mil
animais em um ano, o que era, certamente, um exagero – as
26 reduções consumiriam, se o dado fosse certo, anualmente,
em torno de um milhão e trezentos mil animais! O mesmo je-
suíta assinalava que, naquele ano, os navios da ordem teriam
exportado para a Espanha trezentos mil couros, o que era,
certamente, mais factível!72

Rincones
A sistematização das operações levara a que a produ-
ção corambrera conhecesse verdadeiro salto de qualidade, de
atividade nômade para prática centrada em locais precisos,
dotados de instalações semipermanentes e permanentes. So-
bretudo na Banda Oriental, era habitual que os corambreros
embretassem grandes manadas de gados selvagens em rin-
cões formados por arroios, rios, lagoas, etc., onde mantinham
estabelecimentos de extração de couro, com ranchos, em geral
de couro, barracões, estaqueaderos e currais. Muitas dessas
regiões terminariam sendo identificadas pelo nome dos fae-
neros que as exploraram habitualmente. “Algunos de estos
faeneros dieran sus nombres propios a los parajes donde rea-
71
Cf. MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 51.
72
SEPP S.J., padre Antônio. Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1980. p. 143.

72 Mário Maestri
lizaban sus vaquerias, tales como los de Vera, Jofré (Cufré),
Toledo, Pando, Maldonado, Rocha, Garzón, Narvaez, Polanco,
Navarro, don Carlos, Pavón, etc.”73
Em História de la ganaderia en el Uruguay (1574-1971),
o historiador argentino Anibal Barrios Pinto lembra que os
portugueses “habían levantado hacia 1694 los primeiro esta-
blecimentos corambreros semipermanentes em la banda sep-
tentrional del Río de la Plata. En total, unos 50 ranchos sobre
el Río del Rosario y otra cantidad similar en Santa Lucía, a
los que resguadaban con sus correspondientes estacadas del
posible ataque de los indígenas o de los animales slevajes.”74
Os índios das Missões organizavam igualmente grandes
vaquerias na Banda Oriental, para recolher gados e couros
para as Missões do Alto Uruguai. Os animais eram também
caçados nas importantes vaquerías del Mar, formadas entre
os rios Jacuí, no atual Rio Grande do Sul, e o rio Negro, no
atual Uruguai. Piratas ingleses, franceses e holandeses de-
sembarcavam também na costa atlântica do atual Uruguai
na busca dos mesmos produtos, como assinalado. A Banda
Oriental seguiu desconhecendo ocupação estável, à exceção
sobretudo da Colônia do Sacramento. Essa realidade come-
çou a ser modificada apenas com a fundação de Montevidéu,
em 1724, e a consequente distribuição de terras na sua re-
dondeza, para a organização de chácaras e estâncias. Porém,
até os anos 1760 as regiões realmente controladas pelos mo-
radores daquele do burgo não excediam “una franja menor
de 100 kilómetros que iba desde el arroyo Maldonado en el
Atlántico hasta el río San Salvador en su desembocadura en
el río Negro”.75
73
CASTELLANOS, Alfredo. Breve historia de la ganaderia en el Uruguay. Mon-
tevideo: Banco de Crédito, 1972. p. 143.
74
PINTO, Anibal Barrios. Historia de la ganaderia en el Uruguay (1574-1971).
Montevideo: Talleres Gráficos de la Comunidad del Sur, 1973. p. 31. CESAR,
Guilhermino. Origens da economia gaúcha: o boi e o poder. Porto Alegre: IEL:
Corag, 2005. p. 67.
75
MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 24.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 73


A escassez de gados alçados, no contexto da expansão
do mercado europeu, ensejou as primeiras estâncias de cria-
ção de gado no Prata. Não raro, os accioneros e faeneros es-
tabeleceram-se como criadores, simplesmente ocupando ou
requerendo as terras que visitavam para suas atividades ou
nas quais haviam estabelecido seus acampamentos. “Los em-
plazamientos das vaquerías, frecuentados la mayoría de las
veces por los mismos accioneros, fueran tomando el nombre
de éstos; muchos se radicaron definitivamente y comenzaron
a amansar ganado [...].”76 Com o desenvolvimento da econo-
mia corambrera e, a seguir, criatória, diante da carência e
carestia da mão-de-obra livre, pelas razões acima relatadas,
Montevidéu se transformou em porto escravista e a popula-
ção africana escravizada se desenvolveu nas zonas urbanas e
também no interior. Em 1805, dos 9.359 moradores de Monte-
vidéu, 30% seriam africanos ou afro-descendentes, um perfil
demográfico que sofreria importante transformação a partir
da onda imigratória iniciada em 1830.77
A transição da atividade extrativista para a produtiva,
por mais extensiva que fosse, colocava a questão da proprie-
dade dos gados, delimitada pelas fronteiras dos territórios
ocupados. Isso determinou que as fronteiras das proprieda-
des passassem a ser controladas por posteiros e delimitadas
“mediante zanjas o cercos de pepsinas”. Essa transição teria
ocorrido “alrededor de 1720 para la Banda Oriental y 1728
para la Ocidental, con el repartimiento de ‘suertes de estan-
cias’ por Pedro de Millán, sobre el arroyo Pando [...]”,78 o que
não quer dizer que nas regiões periféricas e mais distantes,
como a Banda Norte do Uruguai, as operações não seguis-
sem sendo realizadas, sob licença ou não, por décadas, além

76
CASAL. El modo de producción colonial en el Río de la Plata, p. 67.
77
Cf. MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 27.
78
CASAL, El modo de producción colonial en el Río de la Plata, p. 67

74 Mário Maestri
desses anos, em terras tidas como públicas ou em imensas
propriedades, verdadeiras reservas de gado chimarrão.79

A faina de couros no Rio Grande do Sul


no século 18
Em 1626, jesuítas cruzaram o rio Uruguai e fundaram
missões a partir do noroeste do atual Rio Grande do Sul, so-
bretudo com populações guaranis. Em 1634, importaram
1.500 bovinos para formar os rebanhos dos dezesseis pueblos
do Tape. Em 1636-38, os animais foram abandonados pelos
missioneiros, que se retiraram da região, assaltados pelos
paulistas. O gado multiplicou-se, atravessou os rios Jacuí-
Ibicuí, formou a enorme vacaria do Mar, entre o oceano e
os rios Jacuí e Negro, como visto. A crise açucareira levou
a Coroa portuguesa a retomar a procura das minas e lançar
novas iniciativas econômicas. Em 1680, fundou a colônia do
Sacramento, para retomar as trocas de cativos, manufatura-
dos e produtos da costa do Brasil pela prata andina, permi-
tidas pela Coroa hispânica até o fim da União Ibérica, como
também já proposto. Os couros trazidos pelos espanhóis de
Buenos Aires ou do interior da banda oriental do Uruguai por
portugueses, espanhóis ou charruas garantiram o sucesso da
cidadela. Atraídos pelos portugueses, nativos charruas con-
duziam animais para a Colônia.
Em 1682, os missioneiros retornaram ao Rio Grande
para barrar o saque das vacarias e o expansionismo lusitano.
Os Sete Povos assentaram-se fortemente na extração animal,
inicialmente, e na sua criação, a seguir. Apenas com a regres-
são do pastoreio fortaleceu-se a agricultura missioneira. Ini-
cialmente, a exploração das vacarias pelos pueblos deu-se sob
licença dos padres superiores, para não esgotar os gados. Os
missioneiros jamais praticaram o abate geral de animais pelo

79
Id. ib. 68.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 75


couro, sebo e graxa, deixando as carcaças nos campos, como
os corambreros e nativos, e trabalhando sobretudo para Sa-
cramento e Buenos Aires, como assinalado.80
Como vimos, nos anos 1690, exagerando enfaticamente,
o padre Sepp escrevia que, após dois meses, os vaqueiros re-
tornavam com “cinqüenta mil vacas”, para a “a alimentação”
anual de sua missão. Contava também que, nos navios da
ordem, partiam trezentos mil couros, de “touros mais cresci-
dos” e não de “vacas”, certamente para manter a “procriação
indispensável”. Preocupados com a perenidade dos rebanhos,
os missioneiros fundaram, em 1700, a vacaria dos Pinhais, no
Planalto, nas margens do rio Pelotas.81
Quando os gados das vacarias do Mar e dos Pinhais fo-
ram esgotados pelos coureadores e tropeiros, fogueados pela
descobertas das minas (1695) e pela fundação da vila de Rio
Grande (1737), os vaqueiros das missões passaram a criar
animais nas estâncias dos diversos pueblos. As grandes es-
tâncias missioneiras, delimitadas por rios, riachos, matas,
etc., subdividiam-se em sedes e postos, com aldeias de dez
a doze famílias, povoados por posteiros, que domesticavam e
tratavam os animais nos rodeios e cuidavam que não fugis-
sem. No Planalto, próximas das missões, estâncias menores
invernavam o gado trazido pela Boca do Monte (atual Santa
Maria) e pelo Boqueirão (atual Santiago).82

80
Cf. PORTO, Aurélio. História das missões orientais do Uruguai. 2 ed. rev. e
melhor. pelo p. L.G. Jaeger. Porto Alegre: Selbach, 1954. I e II.
81
Cf. SEPP S.J., padre Antônio. Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostó-
licos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EdUSP, 1980. p. 143.
82
Cf. BRUXEL, Arnaldo. Os trinta povos guaranis. Caxias do Sul, Universidade
de Caxias do Sul, Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de
Brindes, Sulina, 1978;

76 Mário Maestri
Em busca do Rio Grande
Na segunda metade do século 17, paulistas, lagunenses,
sacramenteneses, etc., entravam em lanchões pela barra do
rio Grande para trocar cativos, couros, etc. com os nativos e
produzir algum charque nas margens da lagoa. Desde os anos
1720, foram estabelecidas estâncias em Viamão e ao longo do
Estreito – Tramandaí, Osório, Torres, etc. – para apoiar o en-
vio, desde a colônia de Sacramento, sobretudo de mulas, ini-
cialmente, para Laguna, em Santa Catarina, e, a seguir, pelo
“Caminho de Viamão”, através do nordeste do Rio Grande do
Sul. A produção de couros, graxa e sebo foi igualmente prati-
cada pelos primeiros estancieiros. A valorização dos gados da
região esteve entre as razões avançadas na defesa do estabele-
cimento de uma colônia nas margens do rio Grande.
Em 1726, o governador de São Paulo, Rodrigo César de
Meneses, lembrava que uma povoação naquela região permi-
tiria a extração de gado capazes de sustentar todo o Brasil e
que pelo rio Grande podiam “entrar embarcações grandes a
carregar courama para o Reino enquanto se não cultivavam
açúcar e fumo por ser a terra a mais fértil’”.83 No ano seguinte,
Davi Marques escrevia sobre o interesse de ocupar aquela pa-
ragem: “As utilidades que a Fazenda Real pode ter neste pos-
to são o domínio da campanha; o negócio com os catelhanos,
índios tapes e minuano; a courama da campanha; os dízimos
dos lavradores e criadores; [...] o gado e cavalgaduras que po-
derão entrar para toda a capitania de São Paulo, abrindo-se o
caminho para os campos de Caraituva [...]..”84
Em fevereiro de 1737, o brigadeiro José da Silva Pais
(1679-1760) chefiou expedição que, após socorrer Sacramento,
sitiada pelos espanhóis, fundou na margem meridional do rio

83
MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 291.
84
PEREIRA, Davi Marques. “Relação das vilas da costa do mar do Rio Grande
até a praça de Santos”. A.H.U. Rio de Janeiro, caixa 4 (1726-1727), apud SAN-
TOS. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 15.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 77


Grande o presídio (sede de presidência) de Jesus-Maria-José,
onde se instituiu a Comandância Militar do Rio Grande de São
Pedro, dependente do Rio de Janeiro, com autoridade apenas
sobre as terras ao sul da barra do rio Grande. Os campos de
Viamão e o Estreito dependiam da capitania de São Paulo. Du-
zentos nativos foram trazidos de São Paulo para trabalhar na
fundação da povoação. Nativos apoiaram igualmente a cons-
trução das fortificações no porto, no Estreito, em São Miguel,
etc.
A remuneração e o tratamento dos nativos seriam tão
abusivos que, já em janeiro de 1738, 34 nativos e quatro nati-
vas fugiam das fortificações, assinalando o status semisservil
que conheciam. O estabelecimento foi apoiado pelas comuni-
dades minuanas que forneciam sobretudo gado. Silva Pais
mandou também trazer da Colônia 150 soldados “adestrados
nas lides campeiras, tais como domações, rodeios, prepara de
charque, etc.”, para introduzir a guarnição nos trabalhos do
campo, muito importantes em virtude da fundação das estân-
cias reais de Bojuru e Capão Comprido.85

Couros & Couros


As operações de corredorias de gado para alimentar as
populações locais e, sobretudo, a faina de couros, segundo pa-
rece, praticadas pelos moradores que possuíam algum capi-
tal, aceleraram-se, constituindo-se importante atividade nos
anos seguintes à fundação de Rio Grande. No geral, a prática
constituía uma extensão das vaquerías realizadas nos pam-
pas de Buenos Aires, de fins do século 17 e, sobretudo, na
Banda Oriental, por portugueses, charruas, etc. a serviço da
colônia do Sacramento, desde 1680, e, a seguir, também por
espanhóis, como assinalado. Como já dito, ela exigia impor-
tantes capitais.

85
SANTOS, Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 12.

78 Mário Maestri
Em 5 de julho de 1738, Manuel Gomes Pereira relatava
ao governador André Ribeiro Coutinho que o sertanista Cris-
tóvão Pereira de Abreu entregara-lhe sessenta vacas, por 240
réis a cabeça, compradas ao “gentio” minuano, pretendendo
receber dos cofres públicos, por outras, 480 réis, já que esse
seria o preço pago “naquele porto”. O oficial notificava que,
apesar de os minuanos “já se acham alguma coisa retirados
pelo rigor do inverno e por serem” tempos em que realizavam
seus “tupambaés” (coisas religiosas), “nunca de todo deixam
de vir alguns”, trazendo “mais éguas do que cavalos” para
trocá-los por mercadorias.86
No livro de registro dos atos dos primeiros comandantes
militares do presídio do Rio Grande de São Pedro de 1737 a
1753, estão assinalados diversos requerimentos e instruções
administrativas relativas às operações de “fainas de couro” e
“corredorias” de gado. A precocidade do primeiro registro, de
fins de 1737, demarca apenas a normalização de uma ativi-
dade anterior à fundação do presídio. Efetivamente, talvez
em fins de novembro ou inícios de dezembro de 1737, José da
Costa pedia licença para mandar “pessoas” fazer “suas fainas
de couros nestas campanhas” e “corredoria de gado vacum”.
Requeria a facilidade de satisfazer aos “quintos reais” (20%)
diante de “oficial” designado, no momento de “carregar (os
couros) em a sua embarcação ou em outra qualquer”, certa-
mente nas margens da lagoa, para serem transportados “por
esta barra fora”, isto é, pelo porto do rio Grande, para o Rio
de Janeiro.
O pedido devia-se à “descomodidade e prejuízo” decor-
rentes da obrigação de “descarregar as embarcações” na cida-
dela, “depois de estarem” já “abarrotadas”, para a contagem
dos couros. Pedia também que, ao “seguir viagem” para seu
destino, lhe fosse passada “certidão” de pagamento dos quin-

86
Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. v.1. Porto Alegre: IEL/SEC/
DAC, 1977. p. 70

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 79


tos reais e das taxas pagas sobre outras mercadorias”. A li-
cença concedida foi lançada em 9 de dezembro de 1737, desde
que os quintos sobre os couros e charques exportados fossem
pagos no porto de Rio Grande e fosse apresentada “certidão”
sobre o gado que entrasse pela “Guarda do Arroio de Taim”.87

Exigências abusivas
Em inícios de 1738, o licenciado Sebastião Gomes de
Carvalho, em associação com o tenente Antônio Gonçalves,
extraiu oitenta “couros de touros” desde as margens da lagoa
Mirim, transportados para Rio Grande pela “falua real”– bar-
cos de “boca aberta, proa e popa afiladas”, de “dois mastros
e velas latinas triangulares”, usados em rios, lagoas, etc. Se-
bastião de Carvalho protestava junto ao governador, porque o
comissário da expedição lhe cobrava 320 réis pelo transporte
de cada couro, preço que dizia pedirem “embarcações particu-
lares” para levá-los do Rio Grande ao Rio de Janeiro.
Sebastião de Carvalho reclamava, igualmente, que
aquele oficial exigia o pagamento do transporte também so-
bre os couros entregues em pagamento aos quintos reais, nas
margens da lagoa. Em resposta ao pedido de esclarecimento
de André Ribeiro Coutinho, o comissário da expedição res-
pondeu que era prática quintar os couros em Rio Grande e
que se cobrava, tradicionalmente, por aquele transporte, 240
réis por couro de touro. Jurava não ter pedido aquela soma ao
licenciado...88
Por sua vez, Francisco Lopes da Silva e o guarda-mor
Antônio Gonçalves oficiavam propondo terem obtido licença
para mandar, em setembro ou outubro de 1738, canoa para
as margens da lagoa Mirim, de onde voltara “carregadas” de
couro, em meados de dezembro – um “faena” de três a qua-
tro meses, portanto. Pretendendo fazer o mesmo, novamente
87
Id. ib. p. 46.
88
Id. ib. p. 58

80 Mário Maestri
sem se servir do “serviço das embarcação” real, requeriam
que lhes fosse dada livre passagem pelo sargento que gover-
nava aquela guarda. O governador Coutinho acedeu ao pe-
dido, em novembro, lembrando que a canoa não deveria “se
apartar jamais da costa que correr pelas partes das nossas
terras, desde o arroio de Thay (Taím) até a entrada do Rio de
São Miguel”.89

Gado e couros escassos


O litoral rio-grandense e as margens das lagoas são ter-
ras pobres, incapazes de sustentar grande número de cabe-
ças de gado, apesar da salinidade de seus pastos, apreciados
pelos animais. Muito logo, os gados da região começaram a
extinguir-se, dificultando a própria alimentação das tropas e
dos moradores de Rio Grande, o que obrigou o governador a
proibir, parcial ou totalmente, as “couramas” na região, per-
mitindo apenas a captura de gado para o corte. Nesse sentido,
em dezembro de 1738, João de Távora afirmava que não ha-
via mais gado, já que há dois meses sua “tropa” e as demais
dedicavam-se a “correr vacas”, em razão de o “bando” do go-
vernador proibir a “faina de couros”. Como João Távora tinha
crédito na praça, que só podia ser pago com “trabalho de cam-
po”, rogava que pudesse “ocupar os peões seus devedores em
fazer alguns couros”. Segundo a informação fornecida pelo
comandante da guarda do Chuí ao governador, que anuiu ao
pedido, havia poucas vacas e touros, que andavam “levanta-
dos”, rendendo, portanto, pouco as “corredorias”.90
Em 22 de dezembro de 1738, procurando garantir re-
serva de um gado que se esgotava, junta sob a presidência
do governador André Ribeiro Coutinho decidia que “desde a
Guarda do Xueu (Chuí) e Forte de São Miguel até os passos
de Tehim (Taím), Albardão e Mangueira pelas margens do
89
Id. ib. p. 75.
90
Id. ib. p. 76.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 81


mar e Lagoa de Merim, se não trabalhe mais na faina dos cou-
ros nem da corredoria das vacas [...], nem haja tropa alguma
no dito campo, nem se consentirá mais demora de peões ou
outra qualquer pessoa que há de pernoitar nas marchas que
se fizerem deste Estreito para os nossos limites e destes para
o Estreito [...].”91
Porém, segundo parece, a produção clandestina de couro
seguiria e a pressão para contornar as proibições legais se-
riam fortes. Em janeiro de 1739, o coronel Cristóvão Pereira
de Abreu lembrava que, “nos campos da parte do Norte” ha-
via gado originado de novecentas cabeças introduzidas havia
alguns anos, de propriedade real. Dizia que o gado não au-
mentara significativamente, em razão de “descaminhos que
tem a falta de arrecadação”, e oferecia-se para “correr” “à sua
custa”, para mais de mil e quinhentas cabeças, levando-o à
estância do Bujuru.

Um bom negócio
Cristóvão Pereira propunha também recolher apenas as
vacas e sugeria que extrairia uma média de um couro de tou-
ro por vaca entregue. Pedia como remuneração o direito de
fazer “courama” dos “touros” que, pela idade, não tivessem
outra serventia do que aquela. Prometia priorizar a retirada
do gado e pagar os quintos correspondentes, respeitando as
vacas e os touros que pudessem ser amansados (como ani-
mais de tração). Caso a proposta fosse aceita, ajustaria os pe-
ões imediatamente, visto ser aquele o tempo “mais próprio”
para a operação, ou seja, o verão, como proposto. Seu pedido
foi deferido sem quaisquer dificuldades, já que, segundo re-
gistrado pelo comandante da povoação, o proposto prestaria
grandes serviços ao rei.92

91
Id. ib. p. 78.
92
Loc. cit.

82 Mário Maestri
Seis meses mais tarde, em 19 de julho de 1739, o coro-
nel oficiava novamente ao comandante Coutinho, afirmando
que os dezesseis “peões castelhanos” conchavados com seus
respectivos cavalos haviam se internado por dezenove dias,
achando apenas “alguns touros”, do gado que afirmara exis-
tir. Requeria, portanto, o direito de courear aqueles animais,
pagando o quinto dos couros e metade do sebo, já que havia
desenbolçado 400 mil-réis em salários com os peões – 25 mil-
réis por cabeça, ou seja, cinquenta vacas, por peão, segundo o
preço exagerado que Coutinho pedira, no ano anterior.
O comandante acedeu ao requerimento, considerando
que “os touros se não” podiam “sujeitar para se domarem” e
estavam “expostos” a serem descaminhados por “passageiros
e estancieiros pelo interesso do couro e sebo”, sem o pagamen-
to do devido ao rei. Os couros deveriam ser quintados em Rio
Grande, carreando o gado e cumprindo a promessa inicial na
medida que pudesse. No frigir dos ovos, toda a operação redu-
ziu-se à concessão excepcional a Cristóvão Pereira do direito
de extrair couros da região em questão, sob o pagamento do
quinto exigido pela lei.93 Em 1817, em sua Corografia brasíli-
ca, o padre Aires de Casal lembrava que os “touros” deveriam
ser mortos para as “coiramas” “de cinco anos para cima”.94

Primeiros lavradores
Um regimento de seiscentos soldados dragões protegia a
nova povoação, seu porto, o litoral. Para povoar os territórios,
chegaram a Rio Grande casais sobretudo de Sacramento e de
Laguna, que se estabeleceram na cidadela e nas terras pró-
ximas distribuídas para os que tinham condição de povoá-las,
sobretudo com cativos africanos. Algumas fazendas e currais

93
Id. ib. p. 105.
94
AIRES de CASAL, padre Manuel. Província do Rio Grande do Sul, ou de São
Pedro. AIRES de CASAL, padre Manuel. Corografia brasílica ou relação histó-
rico-geográfica do Reino do Brasil. São Paulo: Cultura, 1943. Tomo I. p. 95.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 83


organizaram-se nas vizinhanças para apoiar as tropas, pro-
duzir couro, sebo, língua e algum charque. Nas proximidades,
organizaram-se roças e plantações de trigo, centeio, cevada,
milho, feijão, ervilha etc., para o abastecimento da vila e al-
guma exportação. Primeiro, os trigos sulino alimentavam a
população da região e, a seguir, foram vendidos também no
Rio de Janeiro, na Bahia, em Pernambuco e Portugal.
Em 1817, em Corografia Brasílica, o padre Aires de Ca-
sal assinalava os principais gêneros cultivados pelos lavrado-
res: “O terreno é apropriado para diversidade de produções.
Cultiva-se (sic) com grande proveito trigo, centeio, cevada,
milho, arroz, alpiste, legumes; melancia, melões, cebolas, com
quase todas as hortaliças da Espanha; e ainda algum algo-
dão, mandioca e canas de açúcar. O cânhamo e o outro linho
tomam grande crescimento.”95 Essa produção permitiu uma
acumulação de capitais que financiou uma primeira importa-
ção sistemática de trabalhadores escravizados.
Segundo parece, nesses anos, de dois a dez cativos traba-
lhavam em campos de trigo de dez a cem hectares. Essa pro-
dução agrícola e triticultora exigia importante quantidade de
animais de tração, o que explica a reticência dos governado-
res de Rio Grande ao permitirem a morte de touros jovens, ca-
pazes de serem domesticados para a lavra dos campos, para o
transporte, etc. A baixa qualidade genética dos animais exigia
que as plantações tivessem terras suficientes para a criação
de bois de tração e de animais para alimentação. A existência
de algumas centenas de cabeças de animais em propriedades
do século 18 delimita explorações mistas, dedicadas à agricul-
tura e à criação animal, mesmo que algum couro, sebo e graxa
fosse comerciado.

95
AIRES de CASAL, padre Manuel. Província do Rio Grande do Sul, ou de
São Pedro. AIRES de CASAL, padre Manuel. Corografia brasílica ou relação
histórico-geográfica do Reino do Brasil. São Paulo: Cultura, 1943. Tomo I.
p. 76-104.

84 Mário Maestri
Em 1718, os “particulares” da Colônia do Sacramento, à
exceção dos casais, apenas chegados, plantaram 46 alqueires
de trigo (635 litros) e colheram 548 (7562 litros) com uma
produtividade média de um para 11.9. Segundo parece, em
1780, a produtividade do grão seria de um para 8,6. Ao menos,
o governador Sebastião Xavier da Câmara afirmava, naquele
ano teriam sido semeados no Rio Grande em torno de sete mil
alqueires de trigo e colhidos uns sessenta mil. Nesse então, o
primeiro centro produtor seria Rio Grande, seguido de Porto
Alegre, do Estreito e de Mostarda. No ano seguinte, teriam
sido plantados 8.982 e colhidos 53.897 alqueires. 96 ou seja,
seis por um, o que daria uma média de uns nove alqueires por
um, se aproximamos os três dados. Porém, em 1694 Francisco
Naper, governador da colônia do Sacramento, propunha que,
naquele ano, o trigo rendera entre quarenta e cinquenta, por
alqueire plantado.97

Terras boas, Terras Cansadas


Escrevendo momentos antes da independência, o char-
queador Antônio Gonçalves Chaves afirmava, num momento
em que já declinava a produção, que o trigo dava-se “maravi-
lhosamente” na província e que não era “raro em anos abun-
dantes dar 70 para um”.98 Na mesma época, o naturalista Au-
guste de Saint-Hilaire propunha que no litoral norte do Rio
Grande do Sul o trigo cultivado dava na “relação de 10 a 30
por um”. Na sua nota final sobre a agricultura em Rio Par-
do, grande centro triticultor sulino, assinalou que o trigo se

96
Cf. PIMENTEL, Fortunato. Agricultura e pecuária. Aspectos gerais de Porto
Alegre. Porto Alegre: s.ed., 1945. p. 273. v. 1; SANTOS, Economia e sociedade
do Rio Grande do Sul, p. 93 et seq.
97
MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 122.
98
CHAVES, José Antônio Gonçalves. Memórias Ecônomo-políticas sobre a admi-
nistração pública do Brasil. 4. ed. São Leopoldo: EdiUnisinos, 2004. p. 235.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 85


reproduzisse de “dez a cinqüenta por um, cinqüenta nas boas
terras, cerca de dez nas terras já fatigadas”.99
Em Notas estatísticas sobre a produção agrícola e cares-
tia dos gêneros alimentícios no Império do Brasil, Sebastião
Ferreira Soares era ainda mais loquaz sobre a fertilidade das
terras rio-grandenses: “A fertilidade das terras era tal que,
sem auxílio de estrumes, cada alqueire de trigo semeado pro-
duzia, nas regulares colheitas, na razão de 80 por 1; e quando
se dizia colheita superior era efetuada ela na de 100 e mais
por 1, e assim continuou a ser por muitos anos; de sorte que
a província do Rio Grande foi denominada o seleiro do Bra-
sil”. Para ele, antes de se abater a ferrugem sobre os trigais
sulinos, de 1803 a 1810, a capitania exportava em torno de
460 mil alqueires, e nos anos anteriores, ainda mais. Com a
enfermidade e a queda da produção para “55 e 40 alqueires
por 1”, os agricultores abandonaram o trigo, “visto estarem
habituados” aos resultados anteriores, apesar de que nos Es-
tados Unidos, “a produção do trigo” ser “estimada na razão de
20 alqueires por 1”.100
Com as novas roças e plantações, apoiadas no trabalho
familiar e escravizado, punha-se fim a uma economia assen-
tada quase exclusivamente na caça predatória dos gados pelo
couro, sebo graxa e na exportação de animais vivos. Não exi-
gindo os volumosos capitais necessários para as tropas, sobre-
tudo as plantações de trigo permitiam a fixação de um maior
número de luso-brasileiros, que passaram a comprar cativos
para a constituição de pequenos plantéis de trabalhadores es-
cravizados. Inicialmente, essa ocupação ficou no geral restri-
ta ao litoral e às proximidades do porto de Rio Grande.

99
Cf. SAINT-HILAIRE, Auguste de. (1779-1853). Viagem ao Rio Grande do
Sul: 1820-21. Porto Alegre: Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdiUSP, 1974.
p. 23 e 207
100
SOARES, Sebastião Ferreira. Notas estatísticas sobre a produção agrícola e
carestia dos gêneros alimentícios no Império do Brasil. Rio de Janeiro: IPEA/
INPES, 1977. p. 175.

86 Mário Maestri
Fazenda chimarrã
O declínio do gado chimarrão levou a que missioneiros,
portugueses e espanhóis organizassem fazendas de criação
animal, destinadas à produção de animais pela carne e, so-
bretudo, pelo couro, graxa e sebo. Em geral, a historiografia
platina denomina essas explorações de fazendas chimarrãs.
No contexto da ampla disponibilidade de terra, restrita quase
apenas pela ameaça nativa e pela defesa dos missioneiros de
suas possessões, o estabelecimento de uma estância dependia
sobretudo da obtenção legal ou de fato de terreno suficiente
para a exploração, de gados para povoá-las e, sobretudo, da
capacidade de contratação ou, principalmente, da compra de
mão-de-obra escravizada.101
Como proposto, o uso necessário da mão-de-obra escra-
vizada devia-se à possibilidade de o trabalhador livre migrar
para a produção independente, em razão da abundância de
terra a ser ocupada, mesmo no contexto do monopólio real
das terras americanas após a expulsão das populações na-
tivas. Essa autonomia relativa, que impedia a formação de
um mercado de trabalho livre dominante, valorizava a força
de trabalho assalariada. Os gados necessários para o início
de uma exploração pastoril provinham dos animais alçados
das próprias terras e da região, caso existissem; de animais
roubados nas vaquerías das Missões; de animais comprados,
etc. Portanto, os principais gastos davam-se com a obtenção,
treinamento e controle da mão-de-obra escravizada, segun-
do parece, nos primeiros tempos, constituída sobretudo por
africanos recém-importados, eventualmente ainda jovens e
muito jovens, realidade sobre a qual possuímos ainda pouca
informação.

101
MAESTRI, Mário. O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazen-
da pastoril rio-grandense. (1680-1964). MAESTRI Mário. (Org.) O negro e o
gaúcho: Estância e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo
Fundo: EdiUPF, 2008. pp. 169-271.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 87


Desde os primeiros tempos, as terras, com registros ou
não de propriedade, foram comerciadas, em ambos os lados
do Plata. É abusiva a proposta de que, no Brasil, elas passa-
ram a constituir “mercadoria” apenas com a Lei de Terras. “A
partir da Lei de Terras de 1850, a terra no Brasil foi elevada
à condição de mercadoria, institucionalizando-se a proprie-
dade privada do solo, através da compra.”102 Na Colônia e o
Império, as sesmarias e as próprias posses foram objeto de
compra e venda, não alcançando preço apenas nas terras que
não produziam renda fundiária, pela distância, qualidade, etc.
Porém, a enorme abundância inicial de terras ensejava que
seu preço fosse diminuto em relação ao gado e, sobretudo, aos
trabalhadores escravizados. No Rio Grande, até a entrada do
século 19, um cativo na força de seus anos valia uma pequena
propriedade e muitas cabeças de gado, o que transformava
os criadores mais em senhores de cativos do que senhores de
terras.103

Charqueadas
A produção pastoril sulina acelerou-se a partir de 1780,
após o estabelecimento de grandes charqueadas voltadas
para a produção e exportação de couros e carnes secas, o que
valorizou fortemente os gados e ensejou rápida ocupação da
Campanha, da Fronteira, das Missões, dos Campos Neutrais,
do norte da Banda Oriental. Em 1817, na já referida Coro-
grafia brasílica, o padre Aires de Casal registra o domínio in-
conteste da produção charqueadora sobre a economia pastoril
sulina: “Tirada duas porções menores, uma consumida pela
população do país (da província), outra sobre pela província

102
PESAVENTO, S. J. RS: A economia & o poder nos anos 30. Porto Alegre: Mer-
cado Aberto, 1980. p. 17.
103
DAL BOSCO, Setembrino. A Fazenda Pastoril no Rio Grande do Sul - 1780-
1889. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de Passo Fundo,
2008.

88 Mário Maestri
de São Paulo para os açougues da Metrópole (tropas), o mais
é charqueado (isto é, salgado e seco sem ossos ao sul), e trans-
portado aos principais portos do continente.”104
A singular capacidade de expansão das fazendas sul-
rio-grandenses em relação às propriedades do Prata parece
dever-se à facilidade portuguesa de acesso à mão-de-obra es-
cravizada. Em fins do século 18, inícios do 19, Felix de Azara
e José Artigas tentaram contornar essa dificuldade propon-
do distribuição de terras, na Banda Norte do Uruguai, entre
gaúchos pobres, negros livres, nativos aculturados. No novo
contexto, as práticas da produção pastoril evoluíram relati-
vamente, com a difusão crescente dos rodeios para o amansa-
mento dos rebanhos, marcação e castração dos animais, etc.
Manteve-se o caráter original fortemente extensivo da produ-
ção, com a lotação animal dependendo sobretudo da capacida-
de de sustentação dos campos nativos e das aguadas naturais
das fazendas.
O caráter extensivo da economia pastoril determinava
que a reprodução animal dependesse, como assinalado, das
condições dos campos e climáticas. Era relativamente escassa
a intervenção humana na criação, constituindo-se as proprie-
dades com um número relativamente reduzido de trabalhado-
res, em geral um para de seiscentos a novecentos animais.105
Em 1808, quando a produção saladeira já se estabilizara, o
contratador transmontano Manoel Antônio de Magalhães
registrou que boa parte dos fazendeiros não realizava ainda
rodeios, sistematicamente, em razão das “grandes despesas”
necessárias “em piões (sic) e cavalos”: “[...] há muitas fazen-
das, todas alçadas, e a maior parte dos fazendeiros, ainda os
104
AIRES de CASAL, padre Manuel. Província do Rio Grande do Sul, ou de São
Pedro. AIRES de CASAL, padre Manuel. Corografia brasílica ou relação histó-
rico-geográfica do Reino do Brasil. São Paulo: Cultura, 1943. Tomo I. p. 96.
105
Cf. MAESTRI, Mário. O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazen-
da pastoril rio-grandense. (1680-1964). MAESTRI, (Org.) O negro e o gaúcho:
Estância e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo:
EdiUPF, 2008. p. 169-271.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 89


mais ricos, apenas têm a quarta parte do gado manso [...] todo
o mais é tão bravo como os touros de Portugal que vêm aos
curros [...].”106
Em geral, no Rio Grande, para sustentar uma família,
uma fazenda dominantemente pastoril necessitaria de, no
mínimo, um pouco menos de dois mil hectares. No Prata, a
unidade pastoril mínima era uma “suerte de estancia”, com
1.875ha, o que sustentava uns novecentos animais e permi-
tia uma produção entre 45 e noventa animais por ano. Uma
propriedade pastoril desta extensão sustentar-se-ia com o
trabalho da unidade familiar, dificilmente podendo contratar
um peão ou comprar um cativo. Podia ser definida como uma
fazenda pastoril de subsistência.107
A fazenda pastoril latifundiária luso-brasileira do Rio
Grande do Sul e da Banda Norte do Uruguai funcionou com
alguns peões livres, mensalistas e temporários e um núcleo
permanente de cativos campeiros. No Rio Grande do Sul, até
possivelmente os anos 1880, ela constituiu em geral produção
escravista mercantil, ensejando o caráter fortemente escra-
vista do bloco social pastoril dominante regionalmente, que
conformou o “partido brasileiro”, quando da independência,
o “partido farroupilha”, quando da deposição do período re-
gencial, e o Partido Liberal rio-grandense, a partir dos anos
1860.
Bloco social dominante regional do qual participavam,
de forma não hegemônica, os charqueadores, em razão do
peso numérico diminuto, em relação aos criadores, apesar da
maior capacidade unitária de inversão-acumulação de capi-
tais. Em geral, a charqueada funcionava com uma média de

106
MAGALHÃES, Manoel Antônio. Almanak da vila de Porto Alegre, com refle-
xões sobre o estado da capitania do Rio Grande do Sul;. FREITAS, Décio. O
capitalismo pastoril. Porto Alegre: EST, 1980. p. 79.
107
WILLIMAH, J. C.; PONS, C. P. Historia uruguaya: de la Banda Oriental em la
lucha de los impérios: 1503-1810. Montevideo: Ediciones de La Banda Oriental,
1977. p. 140

90 Mário Maestri
sessenta a oitenta trabalhadores escravizados, ou seja, a força
de trabalho necessária para propriedade de mais de quarenta
mil hectares. Entretanto, as charqueadas contavam-se às de-
zenas, ao passo que os grandes criadores, aos milhares.108

108
EUZÉBIO.

Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 91


“Como continuación del Río
Grande del Sur” La hacienda
sul-rio-grandense esclavista en
el norte uruguayo (séc. 19)

Eduardo R. Palermo*

[...] ao cruzar o outro lado do Jaguarão, o traje, o


idioma, os costumes, a moeda, os pesos e medidas,
tudo, até o outro lado do Rio Negro, tudo senhores,
até a terra, é brasileiro.
Diputado paulista Silva Ferraz, 1845

El naturalista francés Auguste Saint-Hilaire recorrió


parte de los territorios del Estado Oriental, en 1821, y mani-
festaba: “Un grupo de oficiales portugueses, como el Coronel
Galvão, se han hecho propietarios de estancias en esta pro-
vincia y las han poblado de animales. El gobierno debió ver,
con placer, formarse estos establecimientos, por que los pro-
pietarios tendrán actualmente un interés personal en que la
provincia siga perteneciendo a su soberano.”1 Esta era la cons-
tatación del proceso de repoblación de los campos uruguayos
con posterioridad a la derrota militar de Artigas en 1820. Los

*
Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo, em 2008. Diretor da
revista digital Estudios Históricos. Professor no Centro Regional de Profesores
del Norte.Uruguai.(palermohistoria@gmail.com)
1
SAINT HILAIRE, Auguste. Voyage o Rio Grande do Sul. In: Anales históricos.
Montevideo: Intendencia Municipal de Montevideo,1961, p. 486. Tomo 4.

92 Eduardo R. Palermo
territorios al norte del río Negro y en la frontera con Brasil,
pasaron a ser ocupados por estancieros luso-brasileños en for-
ma rápida y permanente hasta principios del siglo 20. Esos
nuevos estancieros se hicieron de la propiedad de las tierras
por medio de compras legales, de ocupación forzosa y despla-
zamiento de los ocupantes existentes, varios de ellos donata-
rios del reglamento de tierras de 1815, impulsado por Artigas
desde Purificación, capital política de la Provincia Oriental,
hasta 1819, cuando fue abandonada. El gobierno Cisplatino
al mando de Lecor, veía con agrado la brasilerización de los
territorios norteños, espacio poblado por grandes manadas
de ganado cimarrón y pocos propietarios. Una motivación
adicional lo configuraba el tratado de La Farola, firmado en
1817 entre el Cabildo de Montevideo y Lecor, por el cuál las
autoridades orientales cambiaron los territorios al norte del
Arapey por la construcción de un faro en la isla de Flores, el
cuál mejoraría el acceso al puerto capitalino. La apropiación
del territorio Oriental fue rápida y concebida con carácter de
definitiva. Los historiadores uruguayos Sala, De la Torre y
Rodríguez sostienen: “[...] los portugueses [sic] venían a que-
darse. Venían a finalizar el viejo proyecto de expansión hasta
las aguas del Plata […] fines económicos que atendía sobre
todo a absorber la producción ganadera y saladeril en benefi-
cio de los consumos de su esclavatura y de la expansión de los
grandes ganaderos y saladeristas riograndenses.”2 En 1822
y 1823, se verifica en los campos del actual departamento de
Artigas, la donación de 35 sesmarías a soldados y oficiales de
las tropas portuguesas al mando de José de Abreu, incluido
el propio oficial.3

2
SALA DE TOURON, DE LA TORRE y RODRÍGUEZ. Después de Artigas.
(1820-1836). Montevideo. EPU. 1972.
3
PEDRON, Olga. Departamento de Artigas, esbozo histórico. Artigas, Ed. Del
autor. 1990. Figura la lista completa de los donatarios.

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 93
La población esclavizada según
el censo cisplatino
Un nuevo instrumento de control fue ideado para de-
terminar la presencia de propietarios e intrusos en todo el
país: el censo de población en cada jurisdicción. Las circula-
res ordenando su realización se publicaron en septiembre de
1821. Lamentablemente en pocos lugares fueron realizados
y la información de la que disponemos en la actualidad es
fragmentaria.
Los datos censales fueron relevados entre 1822 y 1824.
Al norte del río Negro se conocen los censos de Cerro Largo,
fragmentos del de Paysandú y los correspondientes a Tacua-
rembó. De su análisis se desprende una importante presencia
de africanos y afrodescendientes esclavizados que, en térmi-
nos porcentuales y con respecto a la totalidad de la población
del país, marcan una nítida diferencia en relación a Montevi-
deo, aunque en números absolutos, esa tuviese una población
de esclavizados muy superior.
Si bien los censos adolecen de defectos en la recolección
de datos, debido a las imprecisión de recolección y al oculta-
miento de información por parte de los encuestados – existía
el temor de revelar la verdad debido a posibles cargas impo-
sitivas o contribuciones para sustentar el ejército –, ellos per-
miten aproximarnos a una realidad bastante diferente de la
que se ha proyectado al presente. Es interesante anotar que
en 1840, por ejemplo, se realizó un censo de población en el
distrito de Cuñapirú – Corrales, departamento de Tacuarem-
bó – fue uno de los tantos en los cuales el Juez de Paz debió
realizar dos veces el registro pues en la primera instancia se
ocultaron el número de agregados y peones. La segunda vez,
el número total de pobladores se duplicó, por lo cuál el Juez
adoptó como criterio aumentar en un 30 % todos los núme-
ros. Es posible pensar que en los datos relevados entre 1822 y
1824 hayan ocurrido situaciones similares.4

4
AGN. Fondo Ministerio de Gobierno. Caja 927. Año 1840. Cf. BARRIOS PIN-
TOS, Aníbal. Rivera, una historia diferente. Montevideo: MEC, 1985. p. 48-49.

94 Eduardo R. Palermo
Paysandú en 1824
Hasta 1837, todo el territorio al norte del río Negro cor-
respondía al departamento de Paysandú. En diciembre de
1823, los vecinos de Paysandú remitieron a Lecor una nota
donde hacían constar los progresos en el área económica y so-
cial del departamento. Para ello, enviaban los resultados del
censo y solicitaban que se creara un Cabildo y se elevara la
población a la categoría de villa.5 Interesa destacar que sien-
do Paysandú el principal puerto y centro poblado sobre el río
Uruguay medio, el distrito de “entre río Negro y Tacuarem-
bó” fuese el más poblado, ya que allí no existían pueblos. Por
otro lado, el número de habitantes registrados a diciembre
de 1823 es prácticamente el mismo censado en 1824, cuyos
números exponemos a continuación.

Cuadro 1 – Población del departamento de Paysandú con sus distri-


tos censales en 1823
Distrito Población Hogares
Paysandú (villa) 1264 194
San Francisco 373 74
Arroyo Negro 572 86
Las Flores 152 31
Salsipuedes 251 38
Arroyo Malo 149 36
Tacuarembó 387 50
Río Negro – Tacuarembó 1336 164
Salto (villa) 708 113
Arroyo Grande 151 22
Totales 5343 808
Fuente: Archivo General de la Nación. Libro 277 – Paysandú.

5
BARRIOS PINTOS, Aníbal. Paysandú en escorzo histórico. Paysandú: Inten-
dencia Municipal de Paysandú, 1979, p. 105.

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 95
Paysandú es descripta por José Brito del Pino, en 1826,
como poseyendo de cinco a seis cuadras de ancho y unas nue-
va a diez de largo [cincuenta hectáreas] situadas en el declive
de una cuchilla que cae hacia el Río Uruguay. Podemos su-
poner que sus casas fuesen de madera, barro y techo de paja,
algunas con paredes de piedra, especialmente las pulperías,
que eran muy numerosas, 39 hacia 1821 y 20, en 1825.6 Junto
a Salto y Belén, eran las únicas poblaciones estables al norte
del río Negro, todas sobre el río Uruguay, por lo cual el resto
del territorio era un enorme espacio que se prolongaba hasta
la región misionera.
En un censo, probablemente de 1823, en la villa de Pay-
sandú exclusivamente, se registraba un 9 % de trabajadores
esclavizados, mientras que, en uno de los distritos de cam-
paña, el “partido de Salsipuedes, arroyo Malo - Cardozo y Ta-
cuarembó chico”, el porcentaje era de 22,4%.7 En otro censo
de la villa, ahora de 1827, el porcentaje de cautivos había
descendido al 4 %. Los trabajadores esclavizados y morenos
libres eran en su mayoría originarios de Guinea y Angola, así
como del territorio oriental y brasileños, muchos denomina-
dos como pardos figuran como oriundos del Paraguay.8
Disponemos de un censo de 1822, del partido de “Cua-
dras”, departamento de Paysandú – correspondería al distri-
to de Arroyo Malo –Tacuarembó del cuadro Nº 1, realizado por
Hilario Pintos, ex-teniente de las tropas artiguistas y nom-
brado Alcalde territorial por Lecor. Del censo de los distritos
1 y 2 se desprende el siguiente resumen:9

6
BARRIOS PINTOS, Aníbal. Paysandú en escorzo histórico. Ob. cit. p.103-110.
7
AGN. AGA. Padrones de Paysandú. Libro 277.
8
Ibíd. Libro 277.
9
Padrón del Partido de Quadras levantado por Hilario Pintos al 16 de abril de
1822. AGN. Montevideo. Libro de Padrones Nº 273.

96 Eduardo R. Palermo
Cuadro 2 – Resumen general de los datos estadísticos del partido de
Cuadras. 1822
Niños Niños
peones esclavos esclavas caballos ganados Poblaciones
varones mujeres
99 108 127 90 42 2624 9993 145
Fuente: Padrón del Partido de Quadras -16 de abril de 1822. AGN.Libro de Padrones Nº 273.

Despejada la información de las hojas censales, que se


contradicen con el resumen, que figura en el original y que re-
producimos arriba, obtenemos que de las sesenta familias re-
gistradas (las 145 figuran solo en el resumen que se expone en
el cuadro Nº 2), 31 efectivamente contaban con cautivos, cons-
tituyendo un promedio de cuatro esclavizados por cada una.
De esas 31 familias, doce figuran como portugueses, a modo
de ejemplo: Salvador Paes, con diez esclavizados y cuatro pe-
ones, Antonio de Barros, 11 esclavizados y 2 peones, Juan
Quirino, 7 esclavizados y 4 peones, Salvador Valiente 4 escla-
vizados y 3 peones. El resumen general del censo de Cuadras,
contabilizando las dos hojas de registro, arroja las siguientes
cifras: trabajadores esclavizados, 126; peones, 76; ganado va-
cuno, 6477; caballos, 1984. La proporción entre mano de obra
libre y varones esclavizados, con relación al ganado vacuno,
es de un trabajador para cada 40 animales. Es posible que la
cantidad de ganado declarado sea apenas una pequeña parte
del rodeo manso, las estancias recién estaban estableciéndo-
se, y los verdaderos números eran ocultados para evitar cobro
de impuestos. En “O cativo, o gaúcho e o peão: considerações
sobre a fazenda pastoril rio-grandense”, para esos años y
para Rio Grande do Sul, el historiador rio-grandense Mário
Maestri manifiesta, según el informe del inglés Luccock, de
1818, que para cuidar de 834 a 667 animales se necesitaba
en promedio un peón cautivo, y la dotación de los campos se
calculaba, a lo largo del siglo 19, en unas 2,5 hectáreas para
cada animal. En el mismo trabajo, el autor cita a Domingos
José de Almeida, ministro del gobierno republicano en 1840,

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 97
con una estancia de 39 mil hectáreas, veinte peones y 18 mil
reses, lo que daría un promedio de novecientos animales por
trabajador.10 El número elevado de esclavizados varones pue-
de indicar su empleo en otras actividades, especialmente si
las estancias estaban organizándose, construyendo corrales,
cercos de piedra, plantaciones y otros.

Los distritos de Tacuarembó en 1824


Los datos censales correspondientes a los actuales depar-
tamentos de Tacuarembó y Rivera fueron recogidos en enero
y marzo de 1824.11 Su análisis interesa dado que es el registro
más completo que hemos ubicado y nos permite constatar la
fuerte presencia de población luso-brasileña y la dotación de
esclavizados existente.
El territorio se dividió en tres distritos: uno, entre Tacu-
arembó y Corrales; otro, entre los ríos Yaguarí y Corrales y un
tercero, entre río Negro y Yaguarí. El resumen con los datos
y las planillas están redactados en portugués y los cuadros
censales, pasados a limpio, en español. De acuerdo al levanta-
miento la población total alcanzaba a 1.348 habitantes.12
El primer distrito, “vecindario del partido de Tacuarem-
bó y Corrales”, fue relevado por el Juez Dionisio Porto, de
origen luso-riograndense.

10
MAESTRI, Mário. O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda
pastoril rio-grandense (1680-1964). En: MAESTRI, Mário (Org.) O negro e o
gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguay e Brasil. Passo
Fundo: UPF Editora, 2008, p. 205-208.
11
Cf. BARRIOS PINTOS, Aníbal. Rivera en el ayer: de la crónica a la historia.
Minas: Gráfica Berchessi, 1963, p. 73-80.
12
Archivo General de la Nación – Ex Archivo General Administrativo. Caja 603.
Carpeta 8. 1824.

98 Eduardo R. Palermo
Cuadro 3 – Padrón distrito 1- Entre río Tacuarembó y Corrales
Unidades Hombres Mujeres Hijos Dependientes- Esclavos Total
censales (propietarios) Agregados
43 40 38 179 14 128 399
Fuente: Hojas censales del Padrón de entre ríos Taquarimbo y Corrales. AGN. AGA. Caja 603.
Carpeta 8. Datos elaborados por el autor.

Los datos permiten afirmar que el 74,5 % de las uni-


dades censales poseían esclavizados, discriminándose de la
siguiente forma: 53 % entre uno y tres esclavizados; 22 % en-
tre cuatro y seis; 18,7 % entre siete y nueve; y 3% más de
diez esclavizados. Como en todo el censo, hay una marcada
presencia de apellidos de origen luso-brasileño, figurando en-
tre otros el Teniente de milicias de Rio Pardo, Antonio Pinto,
quién adquirió, en Montevideo, el rincón de Batoví Dorado,
en febrero de 1822.13
La figura del agregado, mencionada en todos los censos,
podría ser definida como una persona que vivía en forma tem-
poral o permanente en la estancia, sin ser reconocido como
hijo, aunque probablemente podría tener lazos de familia o de
amistad con el propietario. Sus tareas consistían en colaborar
en las distintas tareas rurales sin percibir remuneración mas
que el alojamiento y el alimento.
El segundo padrón, “mapa del distrito de entre los ríos
Yaguarí y Corrales”, fue ordenado por el Juez Valentín Sáenz,
en enero de 1824. Valentín y Félix Sáenz eran antiguos pro-
pietarios de origen hispano-criollo, con grandes estancias en
la zona desde el período colonial, habiendo recuperado sus
campos durante el régimen cisplatino. El censo fue realizado
por Francisco Antunes Maciel, juez comisionado. El mismo
pertenecía a una familia luso-brasileña, radicada en Pelotas,
con extensas estancias en territorio oriental, cercanas a la
frontera.

13
BARRIOS PINTOS, Aníbal. Ob. cit. p. 25.

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 99
Cuadro 4 – Padrón distrito 2- Entre ríos Yaguarí y Corrales
Unidades Hombres Dependientes-
Mujeres Hijos Esclavos Total
censales (propietarios) Agregados
30 30 26 107 149 123 435
Fuente: Hojas censales del Padrón de entre ríos Yaguarí y Corrales. AGN. AGA. Caja 603.
Carpeta 8. Datos elaborados por el autor.

Al igual que en el distrito 1, el 86,7 % de las unidades


censales poseían trabajadores esclavizados, discriminándose
así, entre um y tres esclavizados: 43,3 %, entre cuatro y seis:
36,7%, entre siete y nueve: 10 % y más de diez esclavizados el
10%. Entre los pobladores figuran oficiales portugueses, como
el Alférez Antonio José de Melo, con cuatro esclavizados y
diez dependientes; Luciano José de Vargas, con tres esclavi-
zados y treinta dependientes, sumando su unidad censal, en
total, cuarenta personas, una de las dos mayores del censo; el
Alférez Ignacio Rodrigues das Chagas, con nueve esclaviza-
dos y cinco dependientes; el Alférez Joaquín Manuel de Ma-
cedo, con cinco esclavizados y nueve dependientes; el Capitán
Antonio Pinto Barreto, con seis esclavizados y once depen-
dientes. También figura el sacerdote portugués Gervasio An-
tonio Pereira Carneiro, con seis esclavizados y un dependien-
te, cuyas actividades como religioso en las zonas rurales se
extenderían hasta finales de la década de 1830. Los registros
que realizaba en los cuadernos de campaña, eran trasladados
a los libros oficiales de la iglesia, así lo hizo durante 1838 en
la iglesia de San Fructuoso de Tacuarembó. Antes de esa fe-
cha, suponemos realizaba los registros probablemente en las
iglesias de Livramento, Bagé o Pelotas. En ese año, registró
más de una veintena de bautismos de hijos de trabajadoras
esclavizadas, nacidos entre 1835 y 1838, en las estancias del
norte uruguayo.14 El padre Gervasio disponía de una capilla
14
Libro de Bautismos Nº 1 de la Parroquia de San Fructuoso de Tacuarembó.
Año 1838. Actas 15, 57, 60, 72, 98, 126, 131, 132, 163, 165, 172, 174, 185, 186,
190, 216 a 224, cuyos registros contienen la firma de cura Gervasio Antonio
Pereira Carneiro.

100 Eduardo R. Palermo


de la estancia de Francisco Antunes Maciel, en arroyo Hos-
pital, actual departamento de Rivera. En la zona de Hospital,
Caraguatá y Arroyo Blanco, se habían establecido con estan-
cias la familia Antunes Maciel, según datos que aporta la his-
toriadora e arquitecta pelotense Ester Gutierrez. Esa fami-
lia estaba vinculada al estanciero Annibal Antunes Maciel,
quién, a su muerte, dejó “104 trabalhadores escravizados em
diversas propriedades, sendo duas no Estado Oriental, uma
fazenda denominada Hospital situada no Estado Oriental,
departamento de Taquarembó, contendo três e meia sortes de
campo (medida daquele país) com as confrontações da medi-
ção ultimamente feitas – setenta e sete contos de réis. Uma
fazenda denominada de Arroio Grande, situado no Estado
Oriental, departamento de Paysandu, contendo sete sortes
de campo, com as confrontações das escrituras, por cento e
setenta e quatro contos de reis”.15
En ese distrito se registraron unidades censales muy nu-
merosas, como las de Luciano José de Vargas, ya citada, la de
Florisbelo dos Santos Pereyra, con onze esclavizados y diecio-
cho dependientes, sumando 38 personas en su registro; Ig-
nacio José Duarte, con diez esclavizados y veinte dependien-
tes, sumando cuarenta personas y Juan Silveira Gularte con
seis esclavizados y catorce dependientes, sumando en total
28 personas. Desconocemos otras actividades, además de las
agropecuarias, que desarrollaran, pero llama la atención el
elevado número de cautivos y de dependientes. Sabemos que
la estancia de Ignacio José Duarte, “Marexal Comandante de
la Nación de Portugal”, fue reconocida en 1824 por Lecor, con
siete mil novecientas hectáreas.16
Al tercero distrito corresponde el censo “del partido de
entre Río Negro y Yaguarí”. El mismo está datado en la es-

15
Datos aportados por la historiadora Dra. Ester Gutierres. Pelotas. 2006.
16
BARRIOS PINTOS, Aníbal. Rivera en el ayer. Ob.cit. p. 40.

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 101
tancia de Buena Vista, Caraguatá el 3 de marzo de 1824 y lo
firma Valentín Sáenz.

Cuadro 5 – Padrón distrito 3- Entre ríos Negro y Yaguarí


Unidades Hombres Mujeres Hijos Dependientes Esclavos Total
censales (propietarios) Agregados
64 60 52 171 65 166 514
Fuente: Hojas censales del Padrón de entre ríos Negro y Yaguarí. AGN. AGA. Caja 603.Carpe-
ta 8. Datos elaborados por el autor

En base a esos datos, el 70 % de las unidades censales


poseían trabajadores esclavizados, discriminándose de la si-
guiente forma: entre uno y tres esclavizados: 57,7%, entre
cuatro y seis: 26,6 % y entre siete y nueve: 15,7 %. Entre los
censados figura el hacendado José Suárez, poseedor de seis
trabajadores esclavizados, cuya permanencia en la región se
extenderá hasta su muerte a finales del siglo 19. En 1880,
es señalado en un documento redactado por antiguos vecinos
de la comarca, como el primero en establecer un “garimpo”
de oro en 1822, utilizando trabajadores esclavizados traídos
de la provincia de Minas Gerais, en el Brasil. Durante las
décadas de 1830 y 1840, bautizó a varios hijos de sus esclavi-
zados en Tacuarembó y, en 1857, intentó someter a esclavitud
a Vicente Suárez, hijo de uno de sus cautivos, pero nacido
libre por las leyes abolicionistas uruguayas, lo que provocará
que se le inicie juicio, dictaminándose que el moreno Vicente
no podía ser esclavizado por haber nacido libre.17 También
figuran censados en este distrito: Manuel Rollano; Alcalde de
Melo, vinculado al régimen cisplatino, con extensos campos;
Rita Margarita, viuda, con ocho hijos y nuevos trabajadores
esclavizados; Ignacio Pereira da Silva, luso-brasileño, Alférez
del 2do. Regimiento de caballería de Rio Grande, con dos es-
clavizados y nueve dependientes.

17
MICHOELSSON, Omar. Los tiempos de la esclavitud. En: Semanario Batoví,
Tacuarembó, 29 de octubre de 1999, p. 3.

102 Eduardo R. Palermo


A los efectos de una mejor comprensión de los datos ge-
nerales de los tres distritos analizados, hemos resumido las
cifras en el Cuadro Nº 6.

Cuadro 6 – Resumen de los datos censales de todos los distritos de


Tacuarembó
Unidades Hombres Mujeres Hijos Depen- Cautivos Total
censales (propie- (esposas) (de las dientes- Población
tarios) familias) Agregados
137 130 116 457 228 417 1348
Fuente: Datos elaborados por el autor en base los registros censales de AGN. AGA. Caja 603.
Carpeta 8.

De las cifras resalta como significativo el alto porcen-


taje de esclavizados – 31 % del total de la población: el 75
% de las familias poseían esclavizados con un promedio de
tres trabajadores esclavizados para cada unidad censal. Si
tenemos en cuenta que, por un lado, esa población estaba
dispersa, dada la no existencia de centros poblados dentro
de los distritos censados y la aparente ausencia de saladeros
en la zona, el número de esclavizados era importante y su
porcentaje en términos de población de la Cisplatina es alto.
Entre los pobladores censados figuran algunos con pulpería,
como Manuel Lopes Machado, con seis esclavizados; Vicente
Ilha, con siete esclavizados; Antonio Machado, con cinco es-
clavizados; Francisco Machado Alves, con once esclavizados;
Sebastián Lemos con cuatro esclavizados y Luis de los Santos
Fagundes, con dos esclavizados. Finalmente es resaltable el
número absolutamente mayoritario de población de proce-
dencia luso-brasileña que poblaba los campos, datos que se
ven refrendados por los bautismos y matrimonios registrados
en las parroquias de Melo y Tacuarembó.18

18
Cf. GANELLO, Humberto. Historia de Cerro Largo, 1791-1801. Montevideo:
Instituto de Estudios Genealógicos, 2002.

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 103
Censo de Cerro Largo en 1824
A pesar de la derrota artiguista y de los problemas sus-
citados por las disputas territoriales durante la administra-
ción de Lecor, la dominación portuguesa fue un período de
relativa tranquilidad, que permitió cierto progreso económico.
Manuel Rollano, hispano-criollo, consustanciado con el nuevo
régimen, fue nombrado Alcalde de Melo en 1822. En julio de
1824, redactó un informe al gobierno detallando la población
del departamento por distritos, siendo la población total de
3.773 personas, distribuída en 395 hogares, con 2436 “blan-
cos” y 1336 “negros”. Evidencian esos números un porcentaje
elevado de esclavizados, 35 %, similar al que se observa en
los distritos de Tacuarembó. Desde el punto de vista de la dis-
tribución por zonas, el censo discrimina siete distritos, agru-
pando los datos por “fuegos” (hogares), el número de personas
blancas y negras, distinguidas por sexo y los totales de cada
uno. Hemos ordenado los distritos de acuerdo al número de
trabajadores esclavizados.19
El distrito 4, entre los ríos Tacuarí, Yaguarón y Chuy, es
donde se registra el mayor número de esclavizados, en una po-
blación total de 1106 personas con 104 unidades censales, los
esclavizados son 430 lo que representa el 39 %, de los cuáles
303 eran hombres y 127 mujeres, representando un promedio
de mas de cuatro “esclavos” por familia. Le sigue el distrito
3, entre los ríos Yaguarón, Negro y cañada de Aceguá, con
una población de 871 personas distribuidos en 85 unidades
censales, siendo 323 los esclavizados, representando un 37%
de la población, de los cuales 217 eran hombres y 106 mujeres,
siendo el promedio de esclavizados por familia de cuatro.

19
Archivo General de la Nación, A.G.A. Libro Nº 273: padrones de Tacuarembó y
Cerro Largo: 1822-1836.; AGN. AGA. Documentos de Cerro Largo-1822-1824.
Cf. GIL, Germán. Ensayo para una historia de Cerro Largo. Montevideo: Im-
prenta del Palacio Legislativo, 1982, p. 91-92.

104 Eduardo R. Palermo


En el distrito 1, entre los arroyos Carpintería, Chuy,
Fraile Muerto y Zapallar, el número de esclavizados ascendía
a 194, en un total de 472 pobladores, divididos en 60 familias,
representando un 41 % los esclavizados, con un promedio de
más de tres esclavos por unidad censal. En el distrito 2, en-
tre los arroyos Zapallar, Chuy, Sarandí y el camino Real, se
registraban 156 esclavizados, en un total de 446 personas,
divididas en 58 unidades censales, lo que significa un por-
centaje de 35 % de la población total, con un promedio de 2,7
trabajadores por familia. En el distrito 6, correspondiente a
los territorios entre los ríos Carpintería, Tacuarí y Olimar, la
población total era de 432 personas, agrupadas en cincuen-
ta hogares, y el número de trabajadores esclavizados era de
118, siendo 77 hombres y 41 mujeres, en total 27 % de la po-
blación, con un promedio de 2,36 esclavos por familias. En
los dos distritos restantes, el 5 y el 7, correspondientes a los
territorios entre los arroyos Cordobés, Fraile Muerto, río Ne-
gro y cuchilla Grande y a los ríos Olimar, Cebollatí y Godoy,
el número de cautivos disminuye sensiblemente en compa-
ración con los anteriores distritos, siendo en total 115 que
representaban el 26 % de la población. Los datos generales
agrupados, para todos los distritos, indicaban la existencia de
1.336 esclavizados, divididos en 926 hombres (69,31%) y 410
mujeres (30,69 %), demostrando un índice de masculinidad
muy elevado, 2,25 hombres por cada mujer.
Las cifras antes expresadas permiten señalar que la po-
blación de la Banda Norte (territorios al Norte del río Negro
mas el actual departamento de Cerro Largo) se componía, en
1824, de aproximadamente 6.650 habitantes – la Asamblea
Constituyente de 1829 atribuía al departamento de Paysan-
dú, unos siete mil pobladores, lo cual cierra perfectamente
con las cifras generales que hemos expuesto – con una fuerte
presencia de trabajadores esclavizados sobre la zona de fron-
tera que representaba, en términos de porcentaje sobre la po-

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 105
blación total, el principal agrupamiento del territorio Cispla-
tino. Si nos atenemos a las cifras desprendidas de los censos
de Paysandú y Tacuarembó, se declararon la existencia de
más de quinientos esclavizados, que sumados a la cifra de
Cerro Largo, llegaría a casi dos mil, número que representa
casi un tercio de la población regional.
La población real debió ser bastante más numerosa, en
función del aporte permanente de nuevos propietarios bra-
sileños con sus esclavizados y del número indeterminado de
ocupantes de los campos, denominados intrusos, entre quie-
nes se encontraban numerosas familias de guaraníes-misio-
neros, instaladas en los campos de las antiguas estancias
jesuitas y que, en muchos casos, eran la mano de obra libre
utilizada en las diversas tareas agropecuarias. La parroquia
de San Benito de Palermo en Paysandú y la de San Fructuoso
de Tacuarembó, registran numerosos matrimonios y bautis-
mos de guaraníes-misioneros y de Charrúas cristianizados.20
El número de cautivos, alrededor de dos mil, es importante si
lo comparamos con lo citado por el historiador riograndense
Mario Maestri, en O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho,
resistencia, sociedade”, para las estancias de Alegrete, donde
afirma, que en 1859, “de 391 estâncias de Alegrete, aponta-
vam 124 capatazes, 159 peões livres e 527 cativos. Números
significativos, mesmo considerando que os proprietários e fa-
miliares não se encontram arrolado no cômputo.”21 A este res-
pecto el historiador riograndense Farinatti, sostiene que “os
grandes estancieiros tinham plantéis onde os escravos cam-
peiros eram os mais numerosos. Ainda que a pecuária a cam-
po aberto exigisse muito menos braços do que, por exemplo,
as atividades da grande lavoura, esses ‘poucos’ trabalhadores

20
Cf.GONZALEZ RISSOTO, Rodolfo- RODRIGUEZ VARESSE, Susana. Contri-
bución al estudio de la influencia guaraní en la formación de la sociedad uru-
guaya. Montevideo: Imp.Nacional, 1982, Revista Histórica, Nº 54 (160-162).
21
MAESTRI, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul, trabalho, resistência e so-
ciedade. 3era.Ed. Porto Alegre:Ed.UFRGS, 2006, p. 69.

106 Eduardo R. Palermo


eram essenciais. A maioria dos estancieiros que foram estabe-
lecer-se na fronteira, na primeira metade do século XIX, bus-
cou contar com escravos para propiciar um núcleo básico, que
lhes garantisse ao menos parte dessa mão-de-obra.”22

La población esclavizada sobre la


frontera y en Montevideo.
Interesa destacar algunas cifras estadísticas de Rio Gran-
de do Sul, dadas las vinculaciones directas con la frontera
oriental y las relaciones socio-comerciales allí desarrolladas.
Los datos han sido extraídos básicamente de la publicación
Censos do RS: 1803-1950, publicado en 1986. La informaci-
ón disponible, aun incompleta, es ilustrativa en términos de
visualizar donde se concentraba la población esclavizada en
la zona de frontera con Uruguay, en la medida que avanza el
siglo 19.
Los primeros datos censales de la Provincia de San Pe-
dro datan de 1814: sobre un total de 70.656 pobladores, el
29 %, 20.611 eran trabajadores esclavizados. El 20 % de los
mismos se concentraban en región de charqueadas. En Pe-
lotas, los esclavizados eran el 51 % de la población; en Río
Grande, el 31 %; en Piratini, el 42 %. Salvo el caso de Pelotas,
los porcentajes no son sustancialmente distintos de los cita-
dos para la frontera oriental. En 1819, se censaron 28.253
esclavizados en Rio Grande do Sul, representando 30,6 % de
la población.23
En el caso de Montevideo, principal ciudad-puerto orien-
tal, punto de concentración de cautivos para el Atlántico Sur,

22
FARINATTI, Luis. Escravidão e Pecuária na Fronteira Sul do Brasil: primeiras
notas de pesquisa – Alegrete, 1831-1850. En: II Encontro de Pós-Graduação
em História Econômica, promovido pela ABPHEN, Niterói (RJ), de 05 a 07 de
setembro de 2004. Edición en CD-ROM.
23
“Censos do RS: 1803 – 1950”. Secretaria de Coordenação e Planejamento.Porto
Alegre:1986.

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 107
Chile y Perú, desde 1791, los números, aún siendo parciales,
pueden resumirse de la forma presentada en el Cuadro Nº 7.

Cuadro 7 – Censos de población esclavizada de Montevideo


Año Habitantes Esclavizados Porcentaje
18051 9359 2786 29,76%
18102 11430 2823 24,69%
18193 7116 1747 24,55%
18294 16262 2489 15,30%
Fuentes: ACEVEDO DÍAZ, Eduardo. Anales históricos del Uruguay. Montevideo: Barreiro y Ra-
mos, 1933, p.349, Volumen 1. MONTAÑO, Oscar. Yeninyanya. Montevideo: Mundo
Afro, 2001, p.97.

El historiador uruguayo Demasi anota que en el Censo


de 1803, en las afueras de Montevideo, vivían 3186 “blancos”,
141 “pardos”, 716 “esclavos” y 183 “esclavas”, estos números
de esclavizados eran nueve veces mayor que los números cen-
sales de 1769, sin embargo destaca la “persistente paridad
en la distribución por sexos: en 1769 había 1,1 esclavos va-
rones por cada esclava, mientras que en 1805 era de 1,2 por
cada esclava” y agrega que a la “inversa de otras economías
esclavistas americanas, en Montevideo no parece plantearse
ningún tipo de selección de los esclavos según su sexo”.24 Este
es un dato interesante por cuanto en la frontera y para zonas
rurales la tasa de masculinidad era de 2,2 o mayor, eviden-
ciando una “selección” específica para el trabajo en las estan-
cias. Para el caso de estancias en Bagé, Vacaria y Rio Pardo,
en Rio Grande del Sur, el historiador Setembrino Dal Bosco
determina que la relación entre esclavizados es de 1,6 hom-
bres para cada mujer, pero esa cifra aumenta en función de
las medidas etáreas, así hasta los 15 años, hay paridad; de
16 a 40 años, hay un relación de 1,5 y en la franja de 41 a 60
años, la relación es de 3,3 hombres por cada mujer. Con res-

24
DEMASI, Carlos. Familia y esclavitud en el Montevideo del siglo XVIII. En:
BEHARES, Luis, CURES, O. (Org.) Sociedad y cultura en el Montevideo colo-
nial. Montevideo: UDELAR-FHCE, 1997, p. 55-70.

108 Eduardo R. Palermo


pecto al número de cautivos por familia, este autor determina
para el período 1819/1889, una relación de 2,2 esclavizados
por miembro de la familia.25
Es visible que la población esclavizada en Montevideo
debió ser superior, habida cuenta de que era el puerto de lle-
gada del tráfico esclavista rioplatense, de tal forma, si estos
números son altos para Montevideo, resultan mucho más im-
portantes los de la campaña oriental fronteriza con el Brasil,
dado que son trabajadores radicados en las estancias.
De las cifras expuestas, resalta como significativo el alto
porcentaje de esclavizados en la zona fronteriza del norte
uruguayo: un promedio de 31 % del total de población para
los años 1822-1824, siendo que el 75 % de los hogares pose-
ían esclavizados y la relación “esclavo” – unidad censal era
de tres esclavizados por cada familia. En la década de 1820,
los propietarios de la tierra y la población esclavizada en el
norte uruguayo nos permiten afirmar que esa región era una
verdadera prolongación socio-económica de los territorios rio-
grandenses.

Trabajadores esclavizados en la
campaña oriental
La sociedad mercantil oriental necesitaba de la mano de
obra esclavizada para sostener la estructura productiva. Las
historiadoras uruguayas Sala y Alonso afirman que: “Escla-
vos y libertos constituyeron una muy elevada proporción de
la fuerza de trabajo […] En las estancias coexistían el trabajo
de los esclavos que realizaban tareas pesadas, pero no riesgo-
sas, con el de peones, agregados, puesteros, etc.”, y también,
coexistía con el trabajo de los propietarios de las estancias, en
25
DAL BOSCO, Setembrino. Estancias das regioes de Rio Pardo, Bege e Vacaria
(1819-1889).En: MAESTRI, Mario, ORTIZ, Helen. (Org.) Grilhão negro: En-
saios sobre escravidão colonial no Brasil. Passo Fundo: EdiPUF, 2009. p. 323.
Coleção Malungo.16.

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 109
especial los pequeños y medianos.26 En las zonas rurales, la
coerción extraeconómica aplicada a la fuerza de trabajo su-
pondría, en pocos casos, la generación de trabajo asalariado,
siendo más común que la retribución se diera “en la cuenta”
de la pulpería de la estancia, que pertenecía al patrón o a un
asociado a tales efectos. De tal forma, los peones cambiaban
su trabajo por mercaderías, ropa, aguardiente o tabaco. Todos
los residentes dentro de la propiedad generaban renta en tra-
bajo – capataces, peones, agregados, ocupantes autorizados,
puesteros, esclavizados.
En “Trabajo y vida cotidiana de los africanos de Buenos
Aires, 1750-1850”, las historiadoras argentinas Goldberg y
Mallo concluyen que el trabajo de los africanos esclavizados
en las estancias y zonas rurales fue mucho mas importan-
te que lo asignado por la historiografía rioplatense. Afirman:
“[...] la cuestión de la mano de obra en la estancia bonaerense
[…] poniendo énfasis en la mano de obra obtenida principal-
mente a través de la coacción extraeconómica (que) giraba
(entorno) de la papeleta de conchabo o la calificación de vago
y malentretenido […] tenía el objeto de disciplinar a la escasa
mano de obra.”27 Las autoras sostienen que las necesidades
mínimas de consumo del hombre de campo estaban en gene-
ral satisfechas en la propia campaña, por tanto la coacción
económica no era un factor relevante para que trabajara, so-
bretodo a bajo precio. Obligarlo a trabajar ante la posibilidad
de ser incluido en el ejército en forma compulsiva, tampoco
era un factor convincente pues bastaba adentrarse en los ter-
ritorios de la frontera o “de indios” para mantenerse a salvo
de la leva. En O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre
26
SALA, Lucía; ALONSO, Rosa. El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco.
Sociedad, política e ideología. Montevideo: Banda Oriental, 1991, p. 58, Tomo
II.
27
GOLBERG, Marta; MALLO, Silvia. Trabajo y vida cotidiana de los africanos
de Buenos Aires-1750-1850. p. 34. En: PALERMO, Eduardo (Org.) Diplomado
en Historia regional de los afrodescendientes. Instituto Superior de Formación
Afro-Rivera. Edición en CD. Abril de 2006- Rivera, Uruguay.

110 Eduardo R. Palermo


a fazenda pastoril rio-grandense (1680-1964)”, el historiador
Mário Maestri propone la misma realidad para la campaña
riograndense.28
La mano de obra esclavizada era necesaria para desar-
rollar todas las tareas propias de la estancia en forma perma-
nente durante todo el año. Por su vez, el trabajo zafral, por
ejemplo la yerra, exigía un componente adicional de trabajo,
cubierto con mano de obra ocasional. Según las autoras argen-
tinas citadas, la “utilización de la mano de obra esclava en las
tareas permanentes de las estancias (resultaba conveniente)
en función de su menor costo en el largo plazo”.29 Esas tareas
incluyen el mantenimiento del establecimiento; construcción
de corrales, de mangueras, de cercos de piedra; cuidado de
animales, especialmente ovejas, vacas lecheras y caballos de
trabajo; plantación y cuidado de la chacra, para producción
de cereales y granos (trigo y maíz); fabricación de harina; con-
fección del pan; actividades de cocina; lavado, fabricación de
velas; trabajos de carpintería, herrería y guasquería; fabrica-
ción de tejas – la teja muslera – y ladrillos, en fin todo lo que
podríamos imaginar necesario para la vida cotidiana.
La guerra de los “farrapos”, en 1835-45, favoreció la ex-
pansión comercial oriental, ya que activó las ventas de char-
que y el abastecimiento de ganados a las fuerzas combatientes
en Rio Grande do Sul. La demanda de productos ganaderos y
la dinamización del comercio aumentaron también la deman-
da de mano de obra, situación compleja de cubrir dado los
extensos períodos de guerra, la migración hacia los territorios
vecinos y el bajo número de población de la campaña uru-
guaya, en general, y en particular en la frontera. El problema
se agravó con la desintegración del pueblo misionero de Bella
Unión, a finales de 1832, y el traslado de las familias pobla-

28
Cf. MAESTRI, Mário. “O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fa-
zenda pastoril rio-grandense (1680-1964)”. MAESTRI, Mário (Org.). O negro e
o gaúcho [...]. p. 169-271.
29
Ibíd. p. 35

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 111
doras, hacia el río Yí, en el actual departamento de Duraz-
no, donde se fundaba, en marzo de 1833, la población de San
Borja del Yí. Ese traslado de población disminuyó aún más
el número de trabajadores libres y de mujeres disponibles en
la zona. La escasez de mano de obra provocaba un aumento
considerable del salario y en muchos casos no fue posible ob-
tener trabajadores. En territorios tan vastos y poco poblados,
las medidas coercitivas y policiales contra vagos y gauchos
tenían alcances limitados y puntuales.
Desde el Estado uruguayo se promovió el ingreso de in-
migrantes durante el restante del siglo 19 con diferentes me-
didas, entre ellas, el impulso a los planes de ingreso de colo-
nos favorecidos por el gobierno y empresarios privados desde
1830. Esto incluyó el transporte de esclavizados africanos y
del Brasil en forma legal e ilegal hasta mediados de siglo. La
realidad fue diferente en el norte del territorio y en la zona de
frontera con Brasil, ya que los planes de colonización agrícola
fracasaron. Las poblaciones urbanas de Tacuarembó (1832)
y Melo (1792) crecieron demográficamente manteniendo un
neto predominio de la migración brasileña. Son ilustrativos
los libros de matrimonios y bautismos de las parroquias de
dichas poblaciones en el período 1830-1870, donde la mayoría
de los matrimonios relacionan a luso-brasileños con mujeres
nativas de la zona o el bautismo de hijos de matrimonios entre
brasileños provenientes de diferentes lugares y registrados
como “vecinos afincados”. Un número muy significativo de di-
chos matrimonios registra a lo largo de los años el nacimien-
to de hijos de sus “esclavas” o aún el bautismo de “esclavos”
adultos “traídos recientemente” de las costas de África como
en 1847 en Tacuarembó. La investigadora uruguaya Raquel
Pollero, estudiando los matrimonios y la composición demo-
gráfica de Tacuarembó, determina que, en el período 1838-
1870, hay un neto predominio demográfico brasileño, que va
desde un 87,8% a un 59,7% al final de dicho período, por otro

112 Eduardo R. Palermo


lado desde la variable étnica un cuarto de la población eran
aborígenes o “negros”.30 Para el caso de Cerro Largo, podemos
afirmar los mismos porcentajes y posteriormente, a partir de
1853, lo mismo para los registros parroquiales de Artigas.
Cabe recordar que desde 1823, Santa Ana do Livramento fue
una población avanzada sobre de frontera de los futuros ter-
ritorios orientales, aún después de la demarcación de límites
de 1851-1853, los habitantes de dicha población compraban y
vendían “esclavos” y campos en territorio uruguayo de Tacua-
rembó – Rivera, registrando los negocios en el “cartorio” de
Livramento.

La población esclavizada en la frontera


1835-1850
En un censo de 1835, en el departamento de Cerro Largo,
con datos parciales para algunos distritos, podemos consta-
tar la persistencia del elevado número de esclavizados: “[...]
relação das pessoas livres e escravos e dos fogos ao distrito
de Olimar - Ervaes e Cuchilha grande”, siendo los trabaja-
dores esclavizados el 25,54 %; para el distrito de Cordobés y
Tupambaé, el porcentaje era elevado, 43 %.31 Para el mismo
departamento, en censo 1836, la población asciende a 4.640
habitantes de los cuáles, en forma genérica, un 25 % son tra-
bajadores esclavizados, siendo que 54 % de las familias pose-
ían esclavizados.32
El 10 de octubre de 1835, Oribe había decretado nulas
todas las patentes de navegación otorgadas a buques negre-
ros de bandera nacional o extranjera, ordenándose a la Adua-
na del puerto montevideano no autorizar el ingreso de buques
30
POLLERO, Raquel. Estudio de la población de Tacuarembó en base a datos
histórico-demográficos. En: Anales del VII Encuentro Nacional de Historia.
Junta Regional de Historia y estudios conexos. Montevideo: 1990 pp219-221.
31
AGN. Libro 273.Cerro Largo.
32
GIL, Germán. Ensayo para una historia de Cerro Largo. Ob.cit. p.108.

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 113
negreros. Esta medida se hace extensiva a todos los puntos
del territorio oriental, prohibiéndose el ingreso de cautivos
ya sea bajo la forma de esclavos o de colonos africanos.33 La
iniciativa confrontaba con los intereses de los esclavistas y
particularmente con los estancieros riograndenses instalados
en la frontera que sintieron amenazados sus derechos como
“propietarios”. Aunque la ley prescribía claramente el tráfi-
co, en los archivos parroquiales de Cerro Largo, se siguieron
bautizando trabajadores esclavizados provenientes de África
y Brasil. En mayo de 1837, el presidente Oribe promulgaba
una ley abolicionista que si bien era incompleta en su alcance,
configuraba un antecedente legislativo directo a las leyes que
se aprobaran en la década siguiente. La ley establecía que los
“negros que sean introducidos en la República desde la pro-
mulgación de esta Ley […] son libres de hecho y de derecho.” 34
Una abolición completa, como sería promovida en 1846, sería
rechazada por los sectores dominantes, empresarios, comer-
ciantes y estancieros que utilizaban intensivamente la mano
de obra esclavizada para realizar sus actividades.

El censo de Cerro Largo de 1836 y los


archivos parroquiales.
A principio de 1836, el gobierno ordenó la realización de
un censo de población en todas las jurisdicciones del territo-
rio nacional. Con ello, se procuraba conocer la cantidad de
habitantes para fijar una nueva asignación de Diputados a
cada uno de los nueve departamentos en que estaba dividido
el país.
El estudio de los padrones censales de las jurisdiccio-
nes del departamento de Cerro Largo, que en la actualidad

33
PELFORT, Jorge. A 150 años de la abolición de la esclavitud [...]. Ob. cit.,
p. 31
34
Ibíd. p. 34.

114 Eduardo R. Palermo


correspondería a Cerro Largo, Treinta y Tres y el norte de
Lavalleja, nos permite tener de una idea aproximada de los
numerosos brasileños, propietarios de la tierra y del elevado
número de esclavizados. El padrón general del departamento
determinaba la existencia de 4.640 pobladores, repartidos en
cinco jurisdicciones.
En la jurisdicción de la villa de Melo y su distrito, el cen-
so fue levantado el 1º de mayo de 1836. No se contabilizaron
los cautivos ni sirvientes o peones. Los hombres que figuran
son los titulares de unidades censales.

Cuadro 8 – Censo de la población libre de la villa de Melo y su distrito


Pobladores Hombres Mujeres Niños Niñas
881 202 149 263 267
Fuente: Archivo General de la Nación. Libro de Padrones de Tacuarembó y Cerro Largo. Nº
273.

En el segundo distrito, el censo fue levantado en mayo


de 1836, sumando en total 1021 pobladores. El tercero distri-
to, correspondiente a Aceguá, dice: “Relação dos cabeças de
casal do distrito de Asseguá do departamento de Serro Largo”.
El censo fue levantado por Jose Augusto Gomes, brasileño,
que escribe en portugués fonético, como “Juis de Pais”, (en
portugués literario, “Juiz de Paz”), el día 21 de abril de 1836,
siendo 314 pobladores, 77 cabezas de familias, 161 hijos y 76
agregados.
El quinto distrito corresponde el padrón de “Molles, Pi-
rarajá y Cebollatí”, y está constituido por los datos de cada
unidad censal estableciéndose el nombre del jefe de familia,
agregados o peones y esclavizados.

Cuadro 9 – “Jurisdicción 5ta de Cerro Largo, distrito de Pirarajá”


Pobladores Cabezas de familia Pobladores libres Esclavizados
228 24 179 49
Fuente: Archivo General de la Nación. Libro de Padrones de Tacuarembó y Cerro Largo. Nº
273.

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 115
En este distrito, el 58 % de las familias poseían trabaja-
dores esclavizados, en promedio: 3,5 cautivos por unidad cen-
sal. Los esclavizados representaban el 29,4 % de la población
del distrito. Como ejemplo, podemos citar el caso de Manuel
Grillo, que poseía una estancia con un mayordomo, dos peo-
nes, dos agregados y cuatro esclavizados; una chacra con un
capataz, un agregado y un cautivo, una estancia nueva con
un capataz y dos cautivos y un puesto de estancia con un ca-
pataz y un cautivo. Esta unidad censal nos permite constatar
como la propiedad de la tierra se sustentaba ubicando en ella
un mínimo de personal fijo para registrar su presencia y la
importancia de los trabajadores esclavizados. Este mismo ha-
cendado bautizó en junio de ese año cuatro africanos adultos
en San Servando, hoy ciudad de Río Branco.35
El padrón del partido de Olimar fue levantado por el
brasileño Simão de Brum e Silva, el 15 de mayo de 1836, re-
sultando que el 49 % de las familias poseían esclavizados, con
un promedio de 4,5 trabajadores por cada una y los cautivos
eran el 26,64 % del total de la población.

Cuadro 10 – “Lista de todos os vizinhos do partido de Olimar”


Pobladores Familias Agregados y peones Esclavizados
304 37 25 81
Fuente: Archivo General de la Nación. Libro de Padrones de Tacuarembó y Cerro Largo. Nº
273.

El siguiente padrón corresponde al distrito de Yerbal y


Cuchilla Grande – “Relação das pessoas livres e escravos e
dos fogos pertencentes ao distrito de Olimar, Ervaes e Cuchi-
lha Grande”, levantado por el Teniente de Alcalde, Emilio
Pereira Viana, brasileño, en mayo de 1836. Una vez más el
predomino de la población brasileña es casi absoluto, al punto

35
Libro de Bautismo anexo. Año 1836- San Servando- Cerro Largo. Actas del 7 y
8 de junio de 1836.

116 Eduardo R. Palermo


del Alcalde ser de ese origen, situación que se repite en toda
la zona de frontera.

Cuadro 11 – “Relação das pessoas livres e escravos e dos fogos per-


tencentes ao distrito de Olimar, Ervaes e Cuchilha Gran-
de”
Pobladores Familias- “fogos” Agregados y peones Esclavizados
323 42 23 82
Fuente: Archivo General de la Nación. Libro de Padrones de Tacuarembó y Cerro Largo. Nº.
273.

El número de familias con esclavizados era del 51 %,


correspondiendo un promedio de 3,72 esclavizado por cada
unidad censal, y los trabajadores esclavizados representaban
el 25,4 % de la población. Entre los principales esclavistas
se destacaban Manuel Lago, con ocho peones y trece esclavi-
zados; Roque Blanco, con doce hijos y sete esclavizados y la
viuda Candelaria Nunes Viana, con doce esclavizados.
El padrón del distrito de Corrales, indicado como juris-
dicción de la villa de Melo, fue realizado en mayo de 1836,
y es uno de los registros más completos, en cuanto a infor-
mación de los trabajadores esclavizados. Está ordenado por
grupos familiares y se indican los miembros de la familia, con
los nombres, y los trabajadores esclavizados precedidos por
la palabra “esclavo”. El registro consta de 487 pobladores en
64 unidades censales con un total de 136 esclavizados, que
representan el 38,75 % de la población del distrito, siendo 89
varones – 65,4 % - y 47 mujeres – 34,6 %, siendo la tasa de
masculinidad de 1,8. El grueso de la población esclavizada
está concentrada entre los 10 y los 49 años, 76,5 % del total.
Las trabajadoras esclavizadas son mayoritariamente jóvenes,
entre 10 y 29 años, representando el 51 % del total de ese
sector. Entre los varones, el 66,3 % se ubican entre los 14 y
los 49 años, edades en las que ya disponían de aptitud física y
destreza para la lides camperas, sobresaliendo los grupos de
18 a 24 años y de 30 a 49 años.

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 117
Entre los estancieros con cautivos sobresalen Eduardo
Pires, con siete esclavizados varones, donde se incluyen tres
niños de 10, 11 y 12 años, esto confirmaría la temprana in-
clusión en las tareas de la estancia; Buena Ventura Senteno,
figura con ocho esclavizados, todos varones, con un promedio
de edad de 23 años y Antonio Bentes, con cinco esclavizados
varones con un promedio de 20 años, cabe resaltar la baja
presencia de trabajadoras esclavizadas.
El siguiente padrón es el de Cordobés y Tupambaé, tam-
bién allí, el redactor escribe en portuñol. Los datos censales
determinan la existencia 592 pobladores en 39 unidades cen-
sales con 138 esclavizados. Los trabajadores esclavizados se
discriminaban en 97 varones – 70,3 % − y 41 mujeres 29,7 %
del total, con una relación de 2,36 varones por cada esclaviza-
da. El 72 % de las familias poseían cautivos, con un promedio
de cinco esclavizados por unidad censal. Algunos estancieros
poseían elevado número de trabajadores esclavizados, como
Marco José de Leiva, con quince, José Cardoso de Brum con
catorce, Marco Aleman con diez y Faustino Dias de Oliveira
con ocho cautivos. Todos ellos hacendados de origen brasileño
y nuevamente con bajo número de trabajadoras esclavizadas.
Finalmente, el padrón del distrito de Molles, realizado
por Gregorio Cardozo y datado el 10 de mayo de 1836, con
483 pobladores, 57 unidades censales y 81 cautivos. El 49,2 %
de las familias poseían esclavizados, con un promedio de 2,9
esclavizados por unidad censal. También figuraban 28 agre-
gados y cinco peones.
El censo de población de Cerro Largo de 1836 arrojó un
total de 4.631 pobladores, entre los cuáles se registraron 567
trabajadores esclavizados, ya que algunos padrones como
citamos no estaban completos. Restando los padrones sin
información sobre los esclavizados, obtenemos que ellos re-
presentan el 23,5 % de la población, cifra que seguramente
aumentaría si los padrones de la villa de Melo y del distri-

118 Eduardo R. Palermo


to 2 y 3 estuvieran completas. Como ejercicio estadístico y
comparativo, que permite visualizar mejor la situación de lo
territorios fronterizos, sumamos al Censo de 1836, los datos
del censo de 1824, ya analizado anteriormente. Para aquellos
distritos en que carecemos de datos, nos basamos en la supo-
sición que no hubo entre ambas fechas, decisiones jurídicas o
situaciones político-militares que hicieran disminuir abrup-
tamente el número de esclavizados. En todo caso, la población
esclavizada podría haber aumentado como consecuencia de
la Guerra Farroupilha, ya que muchos propietarios rio-gran-
denses trasladaron sus haciendas y trabajadores a territorio
oriental.
Realizando la correspondencia entre los distritos de 1824
y 1836, obtendríamos que la villa de Melo y primer distrito
tenía, en 1824, 194 esclavizados; el segundo distrito, 156, y
el tercer distrito, 323 esclavizados; si adjudicamos la misma
cifra de esclavizados al último censo de 1836, obtendríamos
un total para todo el departamento de 1240 cautivos, lo que
correspondería a un 26,77 % del total de población, un por-
centaje bastante similar al calculado para ese año con los da-
tos parciales.
Otro dato significativo es el escaso número de peones
y agregados, también con datos parciales para tres distritos,
significando un tercio con respecto a los esclavizados. Eso es-
taría confirmando la importancia de la mano de obra escla-
vizada para sustentar a lo largo del año las tareas de una
estancia.

El estado oriental 1830-1860


El advenimiento de los gobiernos republicanos del Estado
Oriental en 1830 no alteró la situación de los nuevos propie-
tarios de las tierras adquiridas durante el período cisplatino.
Fructuoso Rivera, primer presidente uruguayo, asume con el

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 119
apoyo de la sociedad oriental participe de la dominación luso-
brasileña. La Constitución del nuevo país reconoció el dere-
cho al voto electivo a una minoría de la población, ilustrada y
con poder económico, negándoselo a mujeres, soldados, anal-
fabetos, asalariados, jornaleros y esclavizados. Del grupo oli-
gárquico que había participado en la dominación Cisplatina
surgieron los Ministros del nuevo gobierno y la mayoría de
los Diputados y Senadores electos.36
Durante el gobierno de Rivera (1830-1834) se multipli-
caron las donaciones de estancias en campos fiscales del Nor-
te del país, a familias brasileñas. La historiadora artiguense
Olga Pedrón traza un cuadro de las donaciones de tierras au-
torizadas por Rivera, entre 1831 y 1834, siendo 36 los bene-
ficiarios y en todos los casos a riograndenses, entre quienes
figuran: los Coroneles Jose Rodrigues Barbosa, Jose Antonio
Martines, Bonifacio Isas, el Mayor Custodio Mendes y tambi-
én Manuel Luis Osorio, Fernando Camargo, Manuel Chara y
sigue la lista.37
Fue evidente la alianza entre los estancieros al Norte del
Río Negro y el gobierno, para aniquilar a las tribus Charrúas
que permanecían en esos campos, cuyo episodio final será la
campaña militar de 1831 emprendida contra ellos. Algunos
de los estancieros brasileños, como Rodrigues Barbosa y Da-
vid Silva, apoyarán esas acciones con milicias y aún entrando
en combate directo con los Charrúas.38
Manuel Oribe – uno de los líderes de la rebelión armada
contra la Cisplatina – asume como nuevo presidente en 1835,
no promoviendo sustanciales cambios en los temas territoria-
les, pero si en la gestión del Estado, en la administración de
36
CASTELLANOS, Alfredo. La Cisplatina, la independencia y la república
caudillesca.1820-1838. Montevideo. E.B.O. 1982.
37
Cf. PEDRÓN, Olga: Departamento de Artigas, esbozo histórico. Artigas, Ed. Del
autor. 1990.
38
PALERMO, Eduardo. La masacre de Salsipuedes y los conflictos por la posesión
de la tierra. En: Diario Jornada, junio de 2009, Rivera-Uruguay. Cf: ACOSTA
Y LARA, Eduardo. El país Charrúa. Montevideo. El País.2002.

120 Eduardo R. Palermo


los fondos públicos y en la condena al tráfico esclavista, que
culminará con la abolición de la esclavitud en 1846, situación
que derivará en una prolongada guerra civil entre “blancos” y
“colorados” al mando de Rivera, entre 1838 y 1851.

La guerra grande – 1838-1851


El largo enfrentamiento denominado Guerra Grande
conoció dos etapas: el enfrentamiento del gobierno de Rive-
ra – quien había desalojado a Oribe del poder por medio de
un golpe de Estado con el apoyo de la escuadra francesa en
el Río de la Plata, y previo acuerdo con los “Farrapos” en el
pacto de Cangüe, en 1838 – con el poderoso Juan Manuel de
Rosas – presidente y dictador de las Provincias Unidas del
Río de la Plata, quién reconocía a Oribe como legítimo presi-
dente (1838-1842); y el período denominado de (1843-1851),
período en que Uruguay se encuentra divido en dos gobiernos,
el de Montevideo, dirigido por partidarios colorados, con la
figura preponderante de Joaquín Suárez, y el del Cerrito, al
mando de Manuel Oribe y los partidarios blancos. Durante el
Sitio Grande se determinó la abolición de la esclavitud, orde-
nada, en 1842, por el gobierno de Montevideo y, en 1846, por
el gobierno de Oribe. Esta medida que alcanzaría a toda la
campaña oriental, con medidas fiscalizadoras de su cumpli-
miento, afectaron los intereses de los hacendados esclavistas,
principalmente brasileños.
La guerra Farroupilha culminó sin otorgar la libertad
siquiera a los esclavizados que participaron en las milicias.39
La ley de Abolición de la esclavitud de 1846, afectó los inte-
reses de los estancieros brasileños en el país, por la libera-
ción obligatoria de mano de obra servil, cuya fiscalización fue
encargada a los Jefes Políticos de los departamentos. Esto

39
Cf. FLORES, Moacyr. Negros na Revolução Farroupilha: traição em Porongos
e farsa em Ponche Verde. Porto Alegre: EST, 2004.

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 121
provocaría adicionalmente, del otro lado de la frontera, un
mayor número fugas de esclavizados hacia territorio oriental,
la mayoría de los cuáles serían enrolados en el ejército de
línea y reclamados por sus “propietarios” desde Brasil. Tal
situación se agravaría con la prohibición del tráfico negrero
internacional en 185040 y provocaría, a partir de 1851, en ter-
ritorio oriental, una verdadera “cacería” de afrodescendientes
para ser vendidos en Brasil.41 A las medidas abolicionistas
se sumó la prohibición del comercio de ganado en pie y las
reiteradas denuncias de persecuciones a personas y capitales
brasileños, realizadas ante el gobierno imperial por los ha-
cendados fronterizos, que motivaron finalmente, la interven-
ción del Imperio del Brasil, en la guerra, a favor del gobier-
no de Montevideo. Algunos estancieros como Souza Netto y
Pedro de Abreu, Barão de Jacuí (“Moringue”), decidieron en-
frentar las medidas del gobierno, iniciando acciones políticas,
frente al gobierno de Río de Janeiro, y militares, las famosas
“californias” que contaba con el apoyo y la protección de los
comandantes fronterizos, como David Canabarro. Abreu con-
vocaba a sus coterráneos “para desta arte salvarmos a Honra
Nacional, e as nossas propriedades extorquidas, e creio que
não sereis indiferentes a esse sagrado dever.”42
La intervención brasileña puso fin al largo conflicto fa-
voreciendo los intereses del grupo oligárquico montevideano.
La crisis económica, la falta de fondos en el erario público y
la predominancia demográfica y política de los extranjeros
en la ciudad favorecieron la firma de los Tratados de 1851,

40
Cf.CONRAD, Robert E. Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil. São Pau-
lo: Brasiliense, 1985; CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no
Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975.
41
PALERMO, Eduardo. Secuestro y tráfico de esclavos en la frontera uruguaya.
En: Revista digital Tema Livre. Nº 13. Mayo de 2009. Río de Janeiro. http://
www.revistatemalivre.com
42
BARCELLOS, César Augusto. O Rio Grande de São Pedro e o prata na primei-
ra metade do século XIX (1811-1851). Rio de Janeiro. Tesis de Doutoramento.
UFRJ (mimeo), 1998.

122 Eduardo R. Palermo


negociados por Andrés Lamas, representante montevideano
ante la corte en Janeiro. Montevideo se transformó en una
ciudad “europeizada” y la campaña poco representaba para
su clase política.

Tratados de 1851: el sometimiento


oriental a los intereses brasileños
Los Tratados de 1851 representaron a lo largo de la se-
gunda mitad del siglo 19 la dependencia diplomática y eco-
nómica de Uruguay frente a los intereses brasileños. Fueron
cinco los tratados firmados: alianza, límites, navegación y
comercio, extradición y prestación de socorros. Los tres úl-
timos comprometieron la economía Oriental, condenando la
industria saladeril, aumentando el endeudamiento externo y
condicionaron las relaciones diplomáticas, promoviendo has-
ta finales de ese siglo la devolución de trabajadores esclaviza-
dos fugados de territorio brasileño. A partir de la firma de los
Tratados, los propietarios brasileños recuperaron el derecho
de reclamar la devolución de los esclavizados fugados.
Estos tratados hicieron renacer la economía riogranden-
se y promovieron la reocupación de las tierras fronterizas, los
nuevos propietarios se instalaron con sus familias y sus “es-
clavos”, sin dejar de considerarse súbditos del Imperio e igno-
rando la legislación uruguaya abolicionista.43 Así se crearon
las condiciones legales para que los estancieros brasileños
continuaran utilizando el espacio fronterizo como invernada
del ganado para las charqueadas riograndenses. En 1845, el
diputado paulista Silva Ferraz, describía la situación de la
frontera con estas palabras: “[...] ao cruzar o outro lado do Ja-
guarão, o traje, o idioma, os costumes, a moeda, os pesos e me-

43
BLEIL, S. & PEREIRA PRADO, F. Brasileiros na fronteira uruguaia:economia
e política no século XIX. In: Simposio fronteras en el espacio platino. Segundas
Jornadas de Historia Económica. Montevideo.CD. 1999

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 123
didas, tudo, até o outro lado do Rio Negro, tudo senhores, até
a terra, é brasileiro”.44 Un censo de propietarios brasileños
realizado en 1850 por los Comandante de Frontera brasileños,
confirma lo expresado por el diputado Silva Ferraz: en fron-
tera del Chuy – 35 hacendados con 342 leguas cuadradas;
154 propietarios en Cerro Largo y Treinta y Tres; en Arapey
Grande y Chico, cuchilla de Haedo y Cuareim, 281 propieta-
rios, en Cerro Blancos, distrito de Tacuarembo, 87 propieta-
rios con 331 leguas.45 La lista general reveló la existencia de
1181 propietarios que sumaba 3.403 leguas de campo – es de-
cir más de 9 millones de hectáreas pobladas que alimentaban
los saladeros riograndenses.

Continúa la esclavización de
trabajadores en la frontera oriental –
1850-1880
Las leyes uruguayas continuaron prohibiendo la intro-
ducción de esclavos en el territorio, pero autorizaron el sis-
tema de “contratos de peonaje”, como forma de “compensar”
las pérdidas sufridas por los estancieros brasileños durante
el período oribista. Esos contratos se realizaban con una du-
ración promedio de 15 a 20 años, fijándose un salario anual
que representaba menos de la mitad de lo que se pagaba a los
peones libres, situación que provocó protestas de los hacenda-
dos al Sur del río Negro.
En 1857, en Río de Janeiro, Andrés Lamas se dirigía
a Silva Paranhos, afirmando que los hacendados brasileños
introducían “esclavos” en territorio uruguayo por medio de
contratos de peonaje, que se extendían hasta por 30 años,
44
GOBBI SETTI, Ana Luiza. A diplomacia marginal: Vinculações politícas entre
o Rio Grande do Sul e Uruguai (1893-1904). Passo Fundo: Editora UPF,1999.
p. 83.
45
COSTA FRANCO, Sergio da. Gentes e coisas da fronteira sul. Ensaios históri-
cos. Porto Alegre, Sulina, 2001.p.13-14.

124 Eduardo R. Palermo


convirtiendo al “esclavo” en un colono, no obstante cuando el
“peón contratado” retornaba a territorio brasileño volvía a su
condición de esclavizado. Sostenía en la nota: “[...] varios bra-
sileros de los que ocupan la mejor parte del territorio oriental
fronterizo han introducido notable número de personas de co-
lor para el servicio y manejo de sus establecimientos. Estas
desgraciadas personas de color entran en la calidad […] de
personas libres, ligadas al servicio del introductor por con-
tratos de locación de servicios. En el momento en que […] le
conviene al poseedor de la persona de color, le hace trasponer
la frontera y […] cae el mentiroso y audaz disfraz con que se
ha burlado las leyes de la República y la […] víctima vuelve
a asumir su pública condición de esclavo.” Seguía Andrés La-
mas: “Las infelices personas de color que se introducen en la
República, […] no solo son tratados como esclavos […] sino
que sufren allí, […] la última y peor desgracia de la escla-
vitud, […] los hijos de las personas de color son traídos al
Río Grande y allí bautizados como nacidos de vientre esclavo.
[…] De esta manera en algunos establecimientos del Esta-
do Oriental no solo existe de hecho la esclavitud sino que al
lado del criadero de vacas se establece un pequeño criadero
de esclavos”.46 Pese a la prohibición de introducir esclavos en
el Estado Oriental, las autoridades reconocían la existencia
de los mismos. El Jefe Político de Cerro Largo, informaba al
Ministro de Gobierno: “[...] según noticias que tengo, existen
en algunas estancias de Brasileros porción de esclavos intro-
ducidos furtivamente en el territorio de la República”.47
Un numero elevado de los trabajadores rurales de las
estancias de frontera eran esclavizados, otros habían sido in-
troducidos legalmente por medio de contratos de peonaje, ya
mencionados, el análisis de los mismos permite comprender
sus condición de esclavización encubierta. En 1861, el presi-
46
AGN. Ex. AGA. Ministerio de Relaciones Exteriores. Caja 102.Carpeta 124 A.
p. 1-5. 1857.
47
AGN. Ex. AGA. Caja 1004- hoja 2. el subrayado es nuestro.

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 125
dente Berro solicitó al Jefe Político de Cerro Largo, un informe
al respecto. Hemos estudiado ese documento que se compone
de 183 contratos realizados entre 1850 y 1860. El 65 % de los
mismos se concentran entre 1853 y 1856. La edad promedio
de los contratados es de 25 años; los extremos etáreos son 66
años y 2 años. Se constata una marcada masculinización: 72
%; la mayoría de los contratados están en la faja de los 18 a
49 años, siendo el 64.5%, mientras que los adolescentes repre-
sentan el 13 %.48 Entre los contratados, figuran niños de 2, 3,
4 y 6 años, con plazos de 20 a 22 años de extensión, valorados
en mil patacones, es decir nueve contos y 600 mil-réis. La fi-
nalización de los contratos, en los casos extremos, se situaban
entre 1895 y 1900! Otro informe similar al citado es redacta-
do por el Jefe Político de Tacuarembó en 1861.
Este sistema de contratos fue discutido y condenado en
el parlamento uruguayo, pero no fue abolido. En 1862, el Pre-
sidente Berro prohibió la celebración de contratos de trabajo
por más de seis años, sin embargo los sucesos políticos de
1863 – invasión de Venancio Flores para derrocar el gobierno
Berro, con el apoyo de los hacendados riograndenses – y las
vinculaciones del nuevo gobierno uruguayo con Flores a la
cabeza, con los países vecinos, que culminará en la guerra
contra Paraguay, hicieron que la medida restrictiva quedara
en suspenso. El historiador brasileño Sergio da Costa Franco
afirma que “entre as queixas dos fazendeiros brasileiros, de
que foi Antonio de Souza Netto o principal porta-voz, contra o
governo blanco, en 1863/64, o favorecimento a fuga de escra-
vos era uma das principais”.49

48
MHN. Archivo del Cnel. José Gabriel Palomeque. Jefatura Política del departa-
mento de Cerro Largo. Tomo III. 1860-1861. T.353.- Ver: BORUCKI, A., Chagas,
K., Stalla, N. Esclavitud y trabajo entre la guerra y la paz. Una aproximación al
estudio de los morenos y pardos en la frontera del Estado oriental (1835-1855).
Montevideo: Ed. Pulmón, 2004.
49
COSTA FRANCO, Sergio da. Ob. Cit. p.16

126 Eduardo R. Palermo


En 1860 el diputado uruguayo Vázquez Sagastume
expresaba con absoluta claridad el predominio brasileño al
Norte de ese país, afirmaba que dichos territorios eran “como
continuación del Río Grande del Sur”, colocando dicha situa-
ción como una grave afrenta a la nacionalidad oriental, “[…]
puede decirse que (en los territorios norteños y fronterizos) ya
no hay Estado Oriental: los usos, las costumbres, el idioma, el
modo de ser, todo es brasilero”.50
En 1866, Andrés Lamas realizaba una nueva denuncia
sobre la tenencia de trabajadores esclavizados encubiertos:
“[…] por medio de contratos registrados en los vice consulados
de la República y que en consecuencia, desde que los dichos
hombres de color vuelven a ser traídos a la provincia de Río
Grande del Sur, vuelven a su anterior condición de esclavos
y siendo tratados como tal se venden, se compran e incluyen
como cosa en los inventarios y particiones de herencias”.
Lamas citaba como ejemplo de esa situación el testamen-
to de Antonio de Souza Netto, cuyos campos en Tacuarembó
incluían algunos trabajadores esclavizados y estaban siendo
disputados por sus familiares, protestando por esa situación:
“[...] los hombres de color que tenía en sus establecimientos
del Estado Oriental han sido incluidos en el inventario de sus
bienes, a pesar de que todos aquellos hombres son libres por
el solo hecho de residir en el territorio oriental y respecto a
nueve de ellos existen nueve contratos registrados en el vice
consulado de la República en Bagé”.51
En las décadas siguientes, la presencia económica brasi-
leña irá en aumento y consecuentemente la presencia de tra-
bajadores esclavizados. Veamos algunas cifras ilustrativas.
En 1860, Uruguay esta poblado por 221 mil personas, de las
cuales aproximadamente 40 mil eran brasileños. En depar-
tamentos fronterizos como Tacuarembó (más Rivera) y Salto
50
BARRAN, Jose Pedro, NAHUM, Benjamín. Historia rural del Uruguay
moderno.1851-1885. Montevideo: Banda Oriental, 1967. p. 86-87.
51
AGN. Relaciones Exteriores. Caja 107, carpeta 315-1866

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 127
(más Artigas) el 60 % de la población era brasileña, mientras
que en Cerro Largo (más Treinta y Tres) eran el 40 %.52 En
el período 1852-1885 la tendencia del valor de la hectárea de
campo en los departamentos fronterizos del Norte uruguayo
siempre fue inferior al promedio nacional y notoriamente in-
ferior con respecto a las tierras del litoral del río Uruguay y el
Sur de ese país.53 En 1861 el valor de un vacuno era de 4,40
pesos, y la hectárea de campo promedio en los departamentos
de frontera era de 2,66 pesos, una estancia ovejera con cons-
trucciones y demás valoraba la hectárea de campo en seis pe-
sos. En 1885 un vacuno se cotizaba a cinco pesos y la hectárea
de tierra en la frontera valía en promedio 4,98 pesos.54 En la
década de 1860, el salario de un peón se situaba entre diez y
doce pesos en el Sur de Uruguay, en la región Norte denuncia-
ban el pago de salarios inferiores a seis pesos, explicitándose
que esos sueldos eran producto de la esclavización de los tra-
bajadores.55 Si tomamos los contratos de peonaje menciona-
dos anteriormente, obtenemos que los valores medios fueron
de 17 años de duración y 687 patacones, lo que representa,
apenas como referencia, un salario mensual de 3,36 pesos por
mes. En los contratos cuyo texto completo hemos ubicado, el
valor medio era de cincuenta patacones anuales, es decir, 4,16
pesos por mes de salario.
El análisis de los datos estadísticos de 1880, para los
departamentos de Salto (incluye Artigas), Tacuarembó (Ri-
vera) y Cerro Largo (Treinta y Tres) permite afirmar que los
propietarios brasileños superan en número y valor económico

52
PETRISSANS, Ricardo, FREIRIA, Gonzalo. Extranjerización de las tierras na-
cionales. Montevideo: Proyección, 1987. p. 30.
53
BARRAN, Jose Pedro, NAHUM, Benjamín. Historia rural del Uruguay
moderno.1851-1885. Montevideo: Banda Oriental, 1967. p. 319. Cuadro 1. To-
mo 2
54
Datos a partir de Ibid. Tomo 1. p. 51 y Tomo 2. Cuadro 1.
55
Informe del diputado Vázquez Sagastume en el parlamento uruguayo. Diario
de Sesiones de la Cámara de Representantes. Montevideo: Año 1860. Tomo 8,
p. 111-112.

128 Eduardo R. Palermo


a los nacionales. Los brasileños poseen propiedades con valo-
res muy cercanos a los 26 millones de pesos. En esos depar-
tamentos hay una alta concentración de capitales norteños
– el 70,15 % del total de los capitales brasileños en el país
en el año – y de pobladores, el 77 % de los propietarios de
esa nacionalidad. En el caso de Tacuarembó, los propietarios
brasileños representaban el 73 % y sus propiedades, casi diez
millones de pesos, el 76 % del valor total de la propiedades.56
La frontera Norte, “abrasilerada” y comprometida por
sinnúmero de problemas, en la visión de los gobernantes
uruguayos, entre los cuáles se destacan: el contrabando; la
extranjerización de la tierra; la persistencia de formas semi
serviles y aún serviles de trabajo; un alto índice de delincuen-
cia y la permanente fricción entre las autoridades a resultas
de los permanentes reclamos de los hacendados brasileros,
dueños de la tierra, a lo que debemos sumar las profundas
vinculaciones y alianzas políticas entre caudillos y partidos
a ambos lados de la frontera, representaba uno de los princi-
pales obstáculos para crear la “unidad nacional” o más bien
para consolidar el poder centralista del grupo agro exporta-
dor montevideano.
A partir de políticas de “desbrasilerización” adoptadas
en la década de 1860, con Bernardo Berro, y particularmente
con el desarrollo del centralismo político, en la década de 1870,
con las dictaduras militares de Latorre y Santos, la frontera
intentó ser “disciplinada”, llevando una mayor presencia del
Estado Oriental en los departamentos fronterizos. Medidas
como el Código Rural, el alambramiento de los campos, la po-
licía rural armada con Remington y la cárcel para los que
no pudieran demostrar que tenían trabajo fijo, presionaron

56
Boletín de Estadística. Cuaderno XII-1883. p. 4. Montevideo: Biblioteca Nacio-
nal. Cf. PALERMO, Eduardo. Cautivos en las estancias de la frontera uruguaya.
Tráfico de esclavos en la frontera oriental en la segunda mitad del siglo XIX.
En: Revista digital Mundo Agrario. Nº 17. Segundo semestre de 2008. Univer-
sidad Nacional de La Plata. Buenos Aires. Argentina.

“Como continuación del Río Grande del Sur” La hacienda sul-rio-grandense esclavista en... 129
fuertemente para establecer la mano de obra asalariada. El
cercamiento de los campos promovió la expulsión de los ocu-
pantes de la tierra sin título y de los pequeños propietarios
que se transformaron en asalariados rurales en competencia
por acceder a un empleo, esto presionó a la baja a los salarios
altos de otrora y la pérdida de las ventajas comparativas del
trabajador esclavizado. Este proceso en la frontera fue lento
y no implicó la desaparición de los contratos de peonajes en
forma inmediata, pero si promovió el trabajo asalariado. Sin
embargo la presencia importante de población y capitales de
origen brasileño no desapareció, más bien cumplió a lo largo
del siglo 20, ciclos de contracción y avance que han llevado
a discutir reiteradas veces en el parlamento uruguayo leyes
que limiten la compra de tierras en la zona de frontera.

130 Eduardo R. Palermo


No extremo sul, uma elite
diferenciada

Andréia Oliveira da Silva*

Introdução
Em acordo com a temática central proposta pelo conjun-
to desta obra, as questões aqui levantadas transitam por pro-
cessos transcorridos ao longo do século XIX, compreendendo
neste período a marcante presença das elites pastoris sul-rio-
grandenses estabelecidas nas áreas fronteiriças (com a Re-
pública Oriental do Uruguai), bem como as suas formas de
expressão e ação políticas.
Contudo, antes de se dar o prosseguimento a essas ques-
tões, convém alertar em relação ao título que apresenta este
artigo que sugere questões ambíguas: pode tanto referir-se a
uma elite (rural) que se diferenciava no plano social (em rela-
ção comparativa com outras elites) como dar a entender que
esta mesma elite se destaca por uma diferenciação política
(de atitudes, condutas e comportamentos).
Respondendo a esta questão, embora não se deixe de con-
cordar que as elites pastoris brasileiras se diferenciavam, de
fato, de outros tipos de elites rurais, notadamente em relação
às grandes elites agroexportadoras brasileiras, o texto busca
refletir a respeito da diferenciação política da elite pastoril

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No extremo sul, uma elite diferenciada 131


brasileira do extremo sul. As demarcações de diferenciação
das elites rurais do extremo sul, conforme se quer demons-
trar, não se davam apenas em relação aos grupos rurais agro-
exportadores; constituindo-se, também, como uma particula-
rização em relação a outros grupos pastoris.

Um perfil dissidente
Ao longo das regiões de fronteira, a insatisfação aguda
com a “intervenção” estatal conduziu para um sentimento
marcadamente “oposicionista”, que alimentou as fileiras po-
líticas identificadas com as elites pastoris. E isso desde que
se organizaram as primeiras estruturas partidárias, herdei-
ras do longo e belicoso processo de disputa territorial que,
em virtude das condições em que transcorreu, assumiu cada
vez mais a marca particular daqueles que o empreenderam –
“numa verdadeira privatização do poder armado”.1
A própria necessidade de alianças visando è comum pro-
teção dos envolvidos no processo de expansão territorial foi
responsável pela apropriação de funções que deveriam caber
ao Estado, cuja ausência permitiu o arraigamento dos pro-
cessos de particularização, nos quais sentimentos de descon-
fiança, bairrismo, divergência e autonomia foram predomi-
nantes.
Não custa lembrar também que, ao longo do século XIX,
as elites rurais sul-rio-grandense assumiram o controle de
vastas regiões além da fronteira, estabelecendo um verdadei-
ro “Estado dentro do Estado” em pleno território uruguaio.
Nas primeiras décadas do século XIX, elites pastoris sul-rio-
grandenses exerciam o controle sobre cerca de quarenta mil
pessoas no outro lado da fronteira, entre agregados, escravos
e aliados de origem ibero-americana, uma força tão expressi-
1
CARNEIRO, N. L. G. As relações de fronteiriças Rio Grande do Sul-Uruguai na
segunda metade do século XIX: o impacto platino. História: Debates e Tendên-
cias, Passo Fundo: UPF, v. 6, n. 2, jul./dez. 2006, p. 219.

132 Andréia Oliveira da Silva


va que, por mais de uma ocasião, mostrava-se uma poderosa
base para operações armadas de grande porte, mobilizadas
contra os governos brasileiros.
E a presença de milhares e milhares de escravos (de pro-
priedade destas mesmas elites) num Estado onde a escravi-
dão não mais existia foi o foco de inúmeros conflitos locais,
os quais resultaram, por fim, na década de 1860, na invasão
do país vizinho por um exército irregular de mais de cinco
mil homens – comandados por nomes como Antônio Netto ou
Canabarro –, sob a proteção de Osório (então no comando das
armas do Rio Grande do Sul) e das lideranças identificadas
com o liberalismo.
No que dizia respeito aos interesses brasileiros, contudo,
a derrubada de um governo legítimo, aliado do Rio de Janeiro,
golpe promovido por aquela força de sul-rio-grandenses em
aliança com um punhado de membros do Partido Colorado
(que a “legitimavam” como uma “revolução nacional”), foi o
estopim de uma longa série de fatos indesejáveis que levaram
à guerra entre o Brasil e o Paraguai, a qual a diplomacia bra-
sileira cuidadosamente evitara por mais de uma década.
Dificuldades geradas na região de fronteira, em razão
da ingerência das elites pastoris do extremo sul, levaram o
governo do Império e o de Rosas (da Confederação Argenti-
na) a cogitarem seriamente, um ao outro, uma aliança que
desse cabo a um só tempo dos rebeldes farroupilhas, no Rio
Grande do Sul, e do exército montonero, de Rivera, no Estado
Oriental, os quais por toda uma década deram e encontraram
mútua sustentação às guerras civis que os dois grupos enca-
beçavam em cada Estado.
Mas também se podem enumerar muitos outros exem-
plos, como nos acordos secretos levados a cabo entre o Rio de
Janeiro, os colorados de Montevidéu e as forças paramilitares
de Urquiza (Corrientes e Entre Ríos) ao longo da década de
1850, que previam operações conjuntas contra dissidências

No extremo sul, uma elite diferenciada 133


armadas que pudessem ocorrer no Rio Grande do Sul, para
se ficar apenas com os casos mais conhecidos.
O Império acautelava-se, assim, com razão, com as con-
dições muitos peculiares que envolviam as elites pastoris
no extremo Sul, vendo em tais ações um risco permanente
à integridade territorial e à autoridade de Estado. E o espa-
ço sobre o qual essas elites se deslocavam era percebido, de
igual modo, como um ambiente inseguro e turvo, um atoleiro
de problemas políticos que constrangiam as iniciativas e a
cautela com que o Rio de Janeiro conduzia seus interesses
internacionais em relação ao espaço platino.

A fronteira seca, uma zona “lodosa”


e insegura
Embora as observações que se faz em relação ao com-
portamento dissidente apresentado pelas elites pastoris fron-
teiriças seja uma marca permanente tanto da sua atuação
como daquela praticada pelos grupos políticos que vieram a
representá-la, é importante historiar os processos aos quais
aquele comportamento se acha vinculado. Até mesmo porque
esta marca dissente é geralmente, e de forma contraditória,
apresentada como sendo uma característica do período em
que se deu a Guerra dos Farrapos (1835-1845) e, muitas ve-
zes, de forma errônea, associada a esta e a um discurso de
“injustiças” praticadas contra a província do Rio Grande do
Sul, situação que teria lançado parte da província à guerra
contra o governo do Rio de Janeiro.
Como é sabido, os principais líderes ou figuras dessa
revolta eram todos importantes membros e representantes
das elites pastoris sul-rio-grandenses, como Bento Gonçalves,
Antônio Netto ou Bento Manuel Ribeiro. E sendo essas elites
grupos que se militarizaram e assumiram o controle do poder
armado nas fronteiras do extremo Sul, seus principais repre-

134 Andréia Oliveira da Silva


sentantes, na época da Guerra dos Farrapos, eram ao mesmo
tempo estancieiros e militares. Formavam, assim, a famosa
camada de proprietários rurais sul-rio-grandenses militari-
zados, grupo social que, no Prata, seria tachado com o emble-
mático título de “caudilhos”.
No entanto, dez anos antes de eclodir a guerra no Rio
Grande do Sul, as elites pastoris fronteiriças lançavam-se em
uma aventura além da fronteira, a qual comprometeu deci-
sivamente a sorte luso-brasileira na Guerra da Cisplatina
(1825-1828) e, ao mesmo tempo, questiona todo um discurso
que se constrói ao redor da Revolução Farroupilha – discur-
so que sustenta a “brasilidade” desta revolta e a defende ob-
servando que o levante visava eliminar práticas desiguais e
injustas que se faziam contra a sociedade (leia-se os grupos
pastoris) sul-rio-grandense. Já naquela ocasião deparava-se
com a firme liderança dos mesmos membros e representantes
das elites pastoris que, anos depois, seriam os comandantes
da guerra contra o governo do Império: Bento Gonçalves, Net-
to, Bento Manuel, e outros.
Contudo, apagado de nossos registros historiográficos,
este episódio, ao assegurar a independência da Província Cis-
platina e colocar no poder uruguaio os principais adversários
do Império, também por uma surpreendente “coincidência”,
colocava no poder da República vizinha os principais aliados
dos futuros líderes da Revolta Farroupilha. A começar pelo
general Lavalleja, íntimo de Bento Gonçalves, a ponto de ter
com este uma relação de compadrio (isto é, ambos eram com-
padres e padrinhos, um dos filhos dos outros, assumindo a
responsabilidade pelas respectivas famílias no caso da morte
de um dos dois).
Anos depois, Lavalleja e dezenas de outros líderes insur-
gentes durante a Guerra da Cisplatina seriam os principais
instrumentos de proteção dos farrapos no outro lado da fron-
teira.

No extremo sul, uma elite diferenciada 135


Para o Brasil, o Prata desfrutava, no século XIX, de um
status de estratégia e segurança continentais que não se faz
necessário recapitular aqui. É importante rememorar, contu-
do, que um dos principais projetos do governo luso-brasileiro
e, a seguir, brasileiro era assegurar o controle de parte das
águas interiores platinas, com o que o Rio de Janeiro teria
direito de ingerência sobre as decisões e acordos que afetam
a navegação e acesso ao rio da Prata e seus afluentes. Nesse
sentido, a invasão, ocupação e anexação do território da Ban-
da Oriental (atual Uruguai) seriam, em termos continentais,
a maior de todas as ambições relacionadas à razão de Estado
luso-brasileira e brasileira para a América.
A efetiva realização desta empreitada foi vista como um
grande prêmio após a chegada da corte ao Rio de Janeiro e
por ocasião das guerras napoleônicas na Europa, que desar-
ticularam o antigo sistema colonial. Mas para as elites pas-
toris sul-rio-grandenses, que já se estendiam para além da
fronteira, foi a oportunidade para um novo e intenso fluxo
de conquista e anexação de territórios orientais, conduzidos
pelas mesmas elites guerreiras que controlavam o extremo
sul brasileiro.
Apesar de bem-sucedida e de contar com o apoio de in-
fluentes setores orientais em Montevidéu, a ocupação brasi-
leira jamais foi completamente consolidada nas áreas rurais
do país vizinho, onde as guerrilhas e escaramuças manti-
nham alguma atividade, mesmo que irregular. Em abril de
1825, essa situação se modificaria de forma radical: ao de-
sembarcar no litoral uruguaio, Lavalleja iniciou sua famosa
campanha contra o governo brasileiro, mudando os rumos da
guerra.
Os custos da sua guerra foram cobertos, inicialmen-
te, com a expropriação e venda de gado para os comercian-
tes portenhos, este oriundo de regiões onde predominavam
propriedades de sul-rio-grandenses. Assim, o prejuízo recaía

136 Andréia Oliveira da Silva


também sobre os proprietários brasileiros residentes na Ban-
da Oriental – o que os colocava em posição de buscar algum
tipo de acordo com os revoltosos, mesmo que isso implicasse
renunciar à defesa dos interesses do Brasil na região.
Ainda durante o ano de 1825, na mesma medida em que
cessavam os ataques às propriedades das elites rurais rio-
grandenses, boatos davam conta de que as ações de Lavalle-
ja contavam com a proteção de dois importantes oficiais das
fronteiras, vinculados aos grupos pastoris: os coronéis Netto
e Bento Conçalves.
Na outra margem do Prata, uma receosa e dividida elite
portenha, que alimentava apreensões quanto às intenções dos
planos brasileiros para a região, decidiu preparar o enfren-
tamento armado contra o Brasil e, ao mesmo tempo, assu-
mir para si o controle das duas margens do Prata. O Império,
diante dessa reação, declarou guerra às Províncias Unidas
(Argentina), em princípios de 1826.
Se Lavalleja recebeu tal iniciativa com desconfiança, ou-
tra liderança uruguaia, Frutuoso Rivera, a aceitou quase que
imediatamente, incorporando-se ao exército portenho, sob as
ordens do general Carlos de Alvear. E enquanto a Inglaterra,
por razões políticas e econômicas, preparava o terreno onde
iria propor a negociação diplomática, Rivera organizava um
audacioso plano: o de ocupar a província do Rio Grande do
Sul, arrastando, assim, o conflito para dentro das fronteiras
brasileiras.
A ideia de incendiar a fronteira sul-rio-grandense para,
assim, forçar o Brasil a desocupar a Banda Oriental era uma
tática capaz de obter êxito. Assim, antes mesmo dos planos de
Rivera, um aliado de Lavalleja em Buenos Aires, identifican-
do-se como “El vecino de la plaza de la Concepción”, escrevia-
lhe, em novembro de 1825, sustentando a ideia de “que Mon-

*
Mestra em História pelo PPGH da UFMS e professora da Universidade Federal
do Mato Grosso do Sul.

No extremo sul, uma elite diferenciada 137


tevidéu se gana em Puerto Alegre, pues revolucionando la
Provincia de Río Grande, quita Ud. el corazón al Brasil...”.2
Aqui nos afastamos dos relatos relacionados à condução
da guerra para destacar aquilo que de fato diz respeito ao
comportamento dos grupos pastoris sul-rio-grandenses, os
quais, pressentindo as dificuldades do Brasil em assegurar
por muito mais tempo a ocupação da Cisplatina, inclinam-se
à aliança com os setores da elite oriental que lideravam a
campanha contra o Rio de Janeiro.
Em 1827, as forças de Lavalleja e de Alvear (que coman-
dava tropas argentinas) obtiveram estrondosa vitória sobre
as divisões imperiais em Ituzaingó (Passo do Rosário), dese-
quilibrando de vez o conflito.
Em meio a essa batalha, fatos questionam a atuação e os
vínculos das lideranças militares ligadas às elites pastoris do
extremo sul, fazendo ver que aquela aliança pretendida pe-
los sul-rio-grandenses já se manifestava: “A propósito de esta
importantísima ocurrencia militar, vale la pena saber cuánta
ingerencia tuvo en esa derrota de los imperiales el abandono
de la lucha que, en momentos decisivos de la batalla, hicieron
algunos cuerpos de ejército dirigidos, al parecer por oficiales
riograndenses adeptos a la francmasonería y partidarios de
la independencia de su Estado natal.”3
Moniz Bandeira, concordando inteiramente com as ob-
servações de Cabrelli, destaca que, quando da derrota de
Ituzaingó, “inúmeros soldados e alguns regimentos inteiros,
inspirados nas idéias republicanas, desertavam, aderindo
às forças insurgentes de Lavalleja e Manuel Oribe.”4 A isso
se acrescentam os comentários do visconde de São Leopoldo,

2
Citado por CABRELLI, Alfonso Fernandez. Presencia masonica en la Cisplati-
na. Montevidéu: Imprenta Alvarez, 1986. p. 192.
3
Iden., p. 194.
4
BANDEIRA, Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na
Bacia do Prata: da descolonização à guerra da Tríplice Aliança. São Paulo: En-
saio; Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasília, 1995, p. 78.

138 Andréia Oliveira da Silva


destacando que a paz de 1828 se fazia necessária não só pelo
esforço militar e econômico exigidos até então, mas também
“para se atalharem os planos subversivos e as maquinações
para agitar o país, e sobretudo o Rio Grande”.5
Segundo outro autor, a batalha de Ituzaingó não só lan-
çou fortes suspeitas sobre o comportamento das nossas elites
pastoris e de seus representantes como também apresentou
bandos de sul-rio-grandenses combatendo ao lado das tropas
uruguaias e argentinas.6 Em suas memórias a respeito des-
sa campanha, o marechal Gustavo Henrique Brown, um dos
principais comandantes militares envolvidos nas operações
de guerra contra Alvear e Lavalleja, levantou fundamenta-
das acusações contra oficiais que comandavam os regimentos
compostos por sul-rio-grandenses: o general Lecor (visconde
de Laguna) e os coronéis Sebastião Barreto Pereira Pinto,
Bento Gonçalves, Antônio Netto e Bento Manuel.
Entre outras acusações, Brown sustentava que eles se
esforçaram o quanto possível para que as operações inimigas
em território sul-rio-grandense não encontrassem resistên-
cia militar, quando a sorte das armas ainda apontava para o
favoritismo do Brasil, principalmente porque, na véspera da
batalha de Ituzaingó, Lavalleja fora descoberto e encurralado
em uma região de gritante inferioridade estratégica.
Nessa oportunidade, o principal comandante do levante
oriental também estava muito afastado das forças argentinas,
não tendo condições de oferecer resistência. Contudo, Lecor,
Bento Manuel e Bento Gonçalves recusaram-se a marchar
contra ele, alegando a necessidade de agrupar mais forças.
Com isso, por mais de um dia e uma noite permitiram o tem-
5
MELLO, Francisco Inácio Marcondes Homem de (Comp.). Memórias do Vis-
conde de São Leopoldo José Feliciano Fernandes Pinheiro. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro, tomo XXXVIII, 2ª parte, 3.
trim. 1874, p. 20.
6
Ver PORTO, Aurélio. A influência do caudilhismo uruguaio no Rio Grande do
Sul. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, ano IX,
v. XXXV, IV trim. 1929, p. 380.

No extremo sul, uma elite diferenciada 139


po necessário para Lavalleja fugir. Dois dias depois, uma jun-
ção de forças orientais e argentinas, tendo à frente o próprio
Lavalleja, destroçou as tropas brasileiras no Passo do Rosário
(Itaizaingó): “Isto é, ou estar de inteligência com o inimigo, ou
ter incapacidade mental para dirigir tropas”.7
Justamente quando as forças inimigas se achavam desa-
visadas, isoladas e sem provisões e quando todos os prepara-
tivos de Brown para empreender-lhes uma batalha decisiva
foram mobilizados, e sem outras explicações, Lecor ordenou
que se suspendessem quaisquer iniciativas nesse sentido e,
com uma “ordem desagradável”, cancelou de imediato o esta-
do de prontidão em que se encontravam as forças brasileiras.
De acordo com a descrição de seu relatório de campo,
quando souberam dos preparativos conduzidos por Brown, os
oficiais sul-rio-grandenses insurgiram-se contra sua lideran-
ça, declarando que não moveriam suas tropas a não ser sob
ordens expressas de Lecor. Brown ainda teria tentado invia-
bilizar o motim, mas Sebastião Barreto, Bento Gonçalves e
Bento Manoel Ribeiro, antecipando-se a tais movimentos, en-
viaram emissários ao acampamento de Lecor. A decisão deste
foi incondicionalmente favorável aos insurgentes, obrigando
Brown a pedir sua demissão (o que não foi aceito de imedia-
to, visto que Lecor certamente não desejava ver sua posição
questionada junto à Corte, o que poderia ocorrer se Brown
desembarcasse no Rio de Janeiro portando o maço de ordens
e outros documentos que vinha juntando contra Lecor).
Reforçando as observações de Brown, o visconde de São
Leopoldo também se mostrou perplexo diante da “inconcebí-
vel inércia do general Visconde de Laguna”.8

7
BROWN, Gustavo Henrique. Defesa e relatório do marechal de campo Gustavo
Henrique Brown perante o Conselho de Guerra. Revista do Instituto Histórico
e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Tipografia do Centro, ano VI,
I/II trim.1926, p. 237. Ver também as páginas 227, 233 e 236 da mesma obra,
que condensam as afirmações emitidas por Brown.
8
Ver MELLO, op. cit., p. 67.

140 Andréia Oliveira da Silva


A descrição dos fatos que marcaram a Campanha da Cis-
platina ganha um caráter surpreendente com a minuciosa re-
memoração de Brown, que não poupa esforços nem acusações
ao declarar que a maior parte dos comandantes em operação
foi incapaz ou, mesmo, facilitou a ação inimiga quando, vista
a correlação de força, víveres e armamentos, tudo favorecia
ao Brasil. Na sua opinião, o resultado da guerra veio a ser in-
teiramente desfavorável ao Império, em razão das evidentes
manobras para que tal ocorresse, fatos aos quais denomina
como “páginas negras da história daquela campanha.”9
Outro oficial a serviço do Brasil durante a Campanha da
Cisplatina, Carlos Seidler, enfatiza que a corrupção generali-
zada das altas patentes militares sul-rio-grandenses acabou
por comprometer toda a ação brasileira na região, dotando as
armas das Repúblicas platinas de uma poderosa vantagem,
que, nas condições em que se apresentavam os contendores,
jamais haveriam de possuir por outra forma.10
Seidler, igualmente, levanta suspeitas em relação aos
procedimentos de Lecor, quando Rivera se decidiu por ocupar
as Missões Ocidentais. Também informa que Rivera recebera
recursos daquele, os quais seriam provenientes do soldo das
tropas, que havia muito não eram pagas em virtude da cor-
rupção e dos desvios praticados pelos altos comandos, entre
os quais se achava o próprio Lecor: “[...] o governo brasileiro
mandava frequentemente importantes somas destinadas a
paga dos soldos; eram, porém, pelo general Lecor manda-
dos ao famigerado general Frutuoso Rivera, que a este tempo
[março de 1828] se achava com uns dois mil homens nas Mis-
sões em Santa Maria”.11

9
BROWN, op. cit., p. 245.
10
SEIDLER, Carlos. Dez anos no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográ-
fico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Tipografia do Centro, ano X, I trim.
1930, p. 41-42.
11
SEIDLER, p. 66-67. Grifos no original.

No extremo sul, uma elite diferenciada 141


Se Brown e Seidler destacam a incompetência de Lecor,
Barbacena concentra-se na retirada “inexplicável” dos sul-
rio-grandenses quando da Batalha de Ituzaingó. Em relação
a esta questão, diz que “a inexplicável ausência do coronel
Bento Manoel Ribeiro foi prejudicial a causa brasileira. Pe-
rante o exame imparcial da história o coronel Bento Manoel
tem uma grande responsabilidade.” Salienta ainda que, con-
sumada a estrondosa derrota de Ituzaingó, Bento Manoel foi
encontrado “completamente estranho e indiferente aos acon-
tecimentos [...] Todas as circunstâncias estabelecem a irrecu-
sável prova de que Bento Manoel faltou intencionalmente a
ação ferida em 20 de fevereiro em Ituzaingó.” Dessa “traição”
decorreria, segundo o autor, a sorte das armas em favor de
Lavalleja e Alvear.12 “Aquele coronel, tendo a sua gente mon-
tada em cavalos magníficos, nem veio ao campo de batalha,
nem se deu ao incomodo de procurar o exército, que o veio a
encontrar ao terceiro dia [após consumada a derrota], tran-
qüilamente acampado na estância do coronel Carneiro, a dez
léguas do campo da batalha.”13
O visconde de São Leopoldo também responsabiliza
Bento Manoel como um dos principais responsável pela der-
rota no Passo do Rosário, acusando-o de não acudir as forças
imperiais no momento do combate, apesar de se encontrar à
frente de uma força de 1.500 homens “da melhor cavalaria”
descansados e bem equipados, os quais não se envolveram na
luta mesmo estando a pequena distância do local onde se deu
o confronto.14
Da mesma forma, Netto retirou-se do conflito antes da
batalha decisiva. Achava-se, nesta ocasião, comandando uma
brigada de quase dois mil homens montados. E Bento Gon-

12
BARBACENA, Felisberto Caldeira; BRANT, Visconde de. História da Campa-
nha do Sul em 1827 - Batalha de Ituzaingó. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro, tomo XLIX, 2 trim.1886, p. 379 e 413. Os
grifos são nossos.
13
Idem, p. 509.
14
MELLO, op. cit., p. 11 e 13. Ver ainda BARBACENA, op. cit., p. 354.

142 Andréia Oliveira da Silva


çalves simplesmente destroçou as forças de infantaria do Im-
pério, atropelando-as com sua cavalaria. Alegaria depois, em
sua defesa, que estavam fugindo do fogo inimigo (fugindo em
formação de ataque!) e não conseguiram distinguir a infanta-
ria brasileira no meio do tumulto.
Depois deste último fato, as forças do Império não mais
responderam ao inimigo, entregando-se a uma fuga desespe-
rada e desorganizada. Sewelch deixa-nos um duro relato do
tamanho da perda sofrida no Passo do Rosário pelas forças do
Império: “[...] perdemos toda a bagagem, boiadas, cavaladas,
carros, hospital, caixa militar, tudo enfim; mas o que tornava
todas as perdas mais sensíveis, era que nos tinham sido to-
madas as munições; a infantaria não tinha mais um cartucho;
uma carreta com munições que salvamos perto do campo da
batalha, podia fornecer alguma munição para a infantaria,
mas em vez dos cartuchos só encontramos pólvora; não se po-
dia pensar em resistência; nossa situação era bem triste.”15
Essas questões, comprometendo a atuação dos oficiais
ligados à fronteira, não nos surgem, porém, como fatos sur-
preendentes, visto que desde cedo a elite pastoril regional
compreendera que a preservação de seus interesses na Ban-
da Oriental (Uruguai) era tarefa sua, antes que do Estado
brasileiro.
Conforme comentado anteriormente, nem mesmo se en-
cerrara a repercussão do ocorrido em Ituzaingó, Rivera lan-
çava-se sobre as áreas missioneiras sul-rio-grandenses, ob-
tendo vitória tão espetacular quanto aquela, ocasião em que
novamente recaem acusações de colaboração da elite pastoril
sul-rio-grandense com os caudilhos orientais.16

15
SEWELCH, A. A. J. Reminiscências da Campanha de 1827 contra Buenos Ai-
res” (tradução de NOGUEIRA, Manoel Tomáz Alves). Revista do Instituto His-
tórico e Geográfico do Brasil, tomo XXXVII, 1ª parte, 2. trim. 1874, p. 438.
16
Sobre as suspeitas e acusações que pesaram contra os sul-rio-grandenses ver
GARCÍA, Flavio, La província de San Pedro ante la recuperación de Misiones
Orientales por Frutuoso Rivera. Boletín Histórico, Montevidéu, n 54/55, 1952,
p. XLV, LV e LVII.

No extremo sul, uma elite diferenciada 143


O êxito total da ação militar traçada por Rivera jogou
uma pá de cal sobre as últimas tentativas efetivas do Brasil
de assegurar o controle da Banda Oriental.
Finalmente, em agosto de 1828, Brasil e Províncias
Unidas assinaram a paz, sob patrocínio direto da Inglaterra,
comprometendo-se, ambos, a garantir, doravante, a indepen-
dência e soberania do agora intitulado Estado Oriental do
Uruguai.
A forma altamente suspeita como os grupos pastoris
sul-rio-grandenses se conduziram durante a guerra repercu-
tiu junto aos círculos de decisão no Rio de Janeiro, influindo
fortemente para que o governo de dom Pedro I se decidisse
pelo término da mesma. Assim, entre as razões apresenta-
das ao Conselho de Estado quando da decisão de se acordar
a paz com as Províncias Unidas (Argentina), uma referia-se
diretamente à insegurança do governo em relação aos sul-rio-
grandenses: “[...] a deserção em nosso Exército de operações
o que mais impossibilitava de acudir, e fazer face a todos os
pontos invadidos da nossa fronteira, a exposição aterradora
que em seus ofícios faziam, tanto o General-em-Chefe do Exér-
cito, como o presidente e Conselho da Província de São Pedro,
relativamente ao estado perigoso dela, já pelo desalento ge-
ral, já pelos partidos e opiniões, que grassavam; acresciam
as maquinações e escritos revolucionários, que conseguiram
introduzir.”17
Naquilo que se refere à economia pastoril uruguaia, al-
guns autores chegam a calcular que durante a ocupação do
país por tropas luso-brasileiras, isto é, entre os anos de 1816 e
1828, os sul-rio-grandenses apropriaram-se de algo em torno
de quatorze milhões de cabeças de gado.18 Um número des-
conhecido simplesmente se dispersou ou retornou ao estado

17
Ver reunião do Conselho de Estado em de 27 de agosto de 1828. In: RODRI-
GUES, José Honório (Org.). Atas do Conselho de Estado. Brasília/DF: Senado
Federal, 1973/1978 (13 v.). v. 2, 1973, p. 33-34. Todos os grifos são nossos.
18
Ver, particularmente, a BANDEIRA, op. cit., p. 81.

144 Andréia Oliveira da Silva


selvagem. Para qualquer um dos casos, a recuperação plena
da economia uruguaia dependia agora de paz e estabilidade
política, necessidades que não se fizeram conhecer, em razão
das guerras civis que se avizinharam tão logo se encerrou o
processo de desocupação por parte do Brasil.
Em virtude dessas guerras civis se conheceu, daí por
diante, um quadro ininterrupto de internacionalização. Dado
o processo de irmanação entre os partidos políticos argentinos
e uruguaios, também se passou a conviver com outro elemen-
to permanente: a forte presença de proprietários sul-rio-gran-
denses em largos territórios do país, os quais se envolveram,
a partir de então, em todas as guerras internas desenroladas
no Uruguai ao longo do século XIX.19

A economia política pastoril da fronteira


O peso da precária integração e do isolamento em rela-
ção ao nacional foi um elemento de grande importância na
constituição das relações entre o Prata e a região fronteiriça.
Além da “consciência” regional que a condição de isolamento e
de periferização imposta despertaram, também influía sobre
as elites rurais sul-rio-grandenses a presença dos centros por-
tuários platinos, tidos como polos de inovação e de referência
cultural para as elites rurais situadas na região de fronteira.
Fortalecendo os laços regionais com o Prata estavam as
facilidades de trânsito, através dos rios e de uma fronteira
seca, e as dificuldades impostas à fiscalização – imensidão e
desolação da área a ser controlada; riscos próprios da ativi-
dade do fisco e o corriqueiro corrompimento das autoridades
alfandegárias e de fronteira.

19
Sobre a presença da elite pastoril sul-rio-grandense em território uruguaio, ver
CARNEIRO, Newton Luis Garcia. De volta à fronteira - uma incursão aos fun-
damentos da cultura política sul-rio-grandense referente ao século XIX: a in-
filtração rio-grandense no Estado Oriental e a formação da identidade política
regional. Tese (Doutorado) _ PUCRS, Porto Alegre, 2003.

No extremo sul, uma elite diferenciada 145


Em decorrência de tais laços oriundos da situação de
fronteira, assiste-se ao crescimento das praças comerciais
fronteiriças ao Uruguai, o que ocorre basicamente em razão
dos seus vínculos econômicos com Montevidéu e, em menor
escala, com Buenos Aires: “Na órbita de Montevidéu e Buenos
Aires, desenvolveram-se, na fronteira gaúcha, importantes
praças comerciais, como Uruguaiana, Jaguarão e Livramento,
que rivalizaram os mercados do interior com as tradicionais
praças do litoral (Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre)”.20
O fluxo político, ganadeiro, comercial e contrabandista
com o Estado Oriental foi tão intenso que, aos poucos, a fron-
teira com este adquiria mais importância em termos de con-
tato que com o centro do país, levando com isso ao isolamento
e à situação extrema denunciada pelo conservador Francisco
da Silva Tavares: “A república do Uruguai está construindo
três grandes vias férreas que se dirigem para a fronteira: Ja-
guarão, Bagé e Santa Rosa que vai ao Quaraím. “São estra-
das que caem como um polvo, absorvendo a seiva comercial
da província. [...] o comércio não tem pátria, é cosmopolita,
vai procurar os seus interesses onde acha mais facilidades [...]
com as transações comerciais vão-se relações políticas com
grande perigo para a integridade do Império, principalmente
em uma província onde as idéias separatistas caminham.” 21
É preciso, ainda, em relação aos interesses econômicos
dos grupos envolvidos com a economia pastoril, observar duas
questões que são de grande importância.
Em primeiro lugar, os fatos nos sugerem que os estan-
cieiros sul-rio-grandenses se achavam menos preocupados
com os destinos da indústria de charque sul-rio-grandense do
20
DIAS, Marcelo Henrique. Geografia comercial e influência platina no Rio Gran-
de do Sul dos séculos XIX e XX. Biblos, Rio Grande: Furg, n. 10, 1998, p. 97.
21
Discurso pronunciado na Câmara dos Deputados em 15.09.1887. Transcrito no
jornal O Conservador, órgão oficial do Partido Conservador do Rio Grande do
Sul, Ed. l9.10.l887. Acervo do Centro de Pesquisa e Documentação da Histó-
ria Política do Rio Grande do Sul (CPDHPRS)/Assembléia Legislativa do Rio
Grande do Sul. Todos os grifos são nossos.

146 Andréia Oliveira da Silva


que comumente costuma se sugerir (visto que aquela elite ru-
ral e esta manufatureira têm sido apresentadas sempre como
uma classe semi-homogênea, ou, no mínimo, integralmente
interessada no destino da produção de transformação local).
Em segundo lugar, pelo comportamento político das eli-
tes pastoris fronteiriças podemos inferir uma aproximação
muito mais estreita com setores políticos e econômicos pla-
tinos do que com brasileiros (Pelotas e Rio Grande, de um
modo geral), visto que, em se tratando do primeiro caso, as
propaladas “dificuldades” econômicas estabelecidas pela con-
corrência saladeiril foram sempre colocadas de lado quando
surgia aos estancieiros sul-rio-grandenses a necessidade ou
oportunidade de se envolverem nas querelas e guerras polí-
ticas uruguaias. Ou, no mínimo, essas “dificuldades” não se
constituíram em empecilhos ao atrelamento político das eli-
tes pastoris fronteiriças com os grupos portuários do Prata
– isso para não se avançar sobre um terreno mais provável,
de que, para os estancieiros sul-rio-grandenses, era mesmo
mais conveniente associar-se com os saladeiros platinos do
que com os charqueadores do Rio Grande do Sul.
Ao contrário do que possa se supor à primeira vista, a
destinação do gado de engorda das propriedades de sul-rio-
grandenses no Uruguai não obedecia a qualquer valor nacio-
nalista, nem a compromissos com os charqueadores locais.
Vendia-se o gado onde o preço ofertado fosse o melhor, o que
também contribuía para a permanente crise de produção da
economia charqueadora sul-rio-grandense, fato que, ao con-
trário da historiografia sul-rio-grandense, os pesquisadores
uruguaios não desconhecem. Selva Chirico destaca que, his-
toricamente, “y asta hoy, la ganadería será una actividad que
se mantendrá ligada al lado del límite que prometa comercia-
lización más interesante”. 22

22
Ver CHIRICO, op. cit., , p. 8.

No extremo sul, uma elite diferenciada 147


Por outro lado, os dois principais centros econômicos li-
gados à produção de charque no Rio Grande do Sul, Pelotas
e Rio Grande não aderiram ao levante dos farrapos, eviden-
ciando a falta de interesses econômicos e políticos entre os co-
merciantes e grupo de proprietários ligados às charqueadas
em relação aos estancieiros da fronteira.
Assim, em sentido contrário ao que indicaria uma iden-
tificação comum entre os dois principais grupos vinculados
à economia pastoril sul-rio-grandense, vale lembrar que os
estancieiros sul-rio-grandenses encontravam também razões
de forte motivação econômica para se envolverem naqueles
conflitos. Isso se devia muito à forma como esses se manifes-
tavam, alastrando-se pelas regiões de criação e envolvendo
diretamente os proprietários aí residentes, os quais podiam
se arruinar em meio a esses, mas também muitos podiam
engordar suas fortunas com a pilhagem e lapidação do patri-
mônio dos adversários. A guerra era não apenas um modo de
fazer a política, mas também de reacomodar as riquezas e o
padrão de poder econômico pastoril, situação à qual os sul-
rio-grandenses não apenas estavam adaptados, mas em que
também eram ativos agentes.
Como se pode perceber, o fator econômico é de ordem a
vincular-se estreitamente ao tipo de comportamento político
próprio da região platina e a um ramo de produção específi-
co, como era a indústria de transformação do charque. Assim,
a economia política platina, desenvolvida, ou, melhor dito,
adaptada à cultura da guerra civil, levou a que o compor-
tamento dos sul-rio-grandenses se manifestasse por escalas
econômicas e políticas distintas, as quais ofereciam diferen-
tes combinações, quer se tratasse de assuntos referentes ao
Prata, quer ao Rio de Janeiro, ou que envolvessem a ambos.
Cabe destacar que esse aspecto de preponderância da
militarização e violência política atingia toda a região platina,
prejudicando e paralisando as principais atividades econômi-

148 Andréia Oliveira da Silva


cas de todos os grupos promotores dos conflitos e de guerras
políticas. Contudo, tais colapsos, assim como as sucessivas
crises econômicas que os acompanhavam, não chegaram a
ganhar um espaço capaz de desmotivar ou de refrear as con-
tendas incendiárias. Esse passado regional nos surge, assim,
com uma espessura difícil de ser ignorada. E a luta política
ganha, nesse contexto, um contorno e papel de influência su-
perior a qualquer outro fator de diferenciação.

A militarização da política e a cultura da


guerra civil
No Estado Oriental (Uruguai), independentemente do
partido que se achasse no poder, todas as grandes revoltas e
quarteladas tiveram forte repercussão ou foram acionadas a
partir da região fronteiriça, sempre envolvendo ou tendo como
protagonistas diretos os sul-rio-grandenses. Pode-se dizer, as-
sim, com segurança, que, se para o Brasil a fronteira era um
problema delicado, para a Campanha oriental, não apenas
para Montevidéu, a região de fronteira era, juntamente com
as guerras partidárias, a problemática política mais significa-
tiva de todo o século XIX.
A rivalidade entre sul-rio-grandenses e blancos (o se-
tor pastoril oriental mais autonomista e radical) nessa zona
fronteiriça, somada à rivalidade ainda maior entre blancos
da Campanha e colorados de Montevidéu (aliados dos sul-rio-
grandenses durante a Guerra dos Farrapos), determinou o rol
de alianças que se estabeleceram e se fortaleceram ao longo
do século XIX, sem que isso implicasse um compartilhamen-
to estreito de ideias entre sul-rio-grandenses e colorados no
campo político e econômico.
Questões referentes à distribuição do poder no interior
da Campanha oriental, e não à identidade política, predomi-
navam, fazendo com que blancos e sul-rio-grandenses dispu-

No extremo sul, uma elite diferenciada 149


tassem o controle da região fronteiriça, embora, no campo da
estrutura social, as afinidades entre si fossem maiores que
entre sul-rio-grandenses e colorados.
Durante a Guerra dos Farrapos, os setores pastoris re-
volucionários encontraram proteção, apoio logístico e militar
junto aos colorados. As operações de farrapos em território
brasileiro eram reforçadas por tropas riveristas coloradas,
bem como as ações de Rivera no Estado Oriental contavam
com ampla participação de forças dos dissidentes sul-rio-
grandenses.
No final da guerra civil no Rio Grande do Sul, ao impor
a paz aos farrapos, Caxias encontrou no acampamento destes
a todo o Estado-Maior riverista. Rivera e seus aliados foram
desarmados e embarcados para o Rio de Janeiro, mas isso
não impediu que os farrapos, após deporem as armas contra
o Brasil, imigrassem em massa para o Estado Oriental, onde
foram engrossar as forças dos colorados e disputar o poder na
Campanha oriental com os blancos, comandados por Oribe.
Nesse período, os grupos pastoris sul-rio-grandenses se
reunificaram, apagando feridas deixadas pela longa revolta.
Farrapos e caramurus marcharam juntos, sob o comando do
Moringue (barão de Jacuí), que por mais de cinco anos co-
mandaria a frente da guerra contra os blancos nas fronteiras
do Uruguai. Esse quadro iria perdurar por toda a década de
1850.
Nas três últimas décadas do século XIX, contudo, a
consolidação dos colorados no poder passou a representar
um fator de conflito entre esses e os setores pastoris sul-rio-
grandenses, porque a iminente situação de falência do Estado
uruguaio pós-guerra do Paraguai obrigou seus governos, su-
cessivamente, a aplicarem e ampliarem a política de impos-
tos sobre as propriedades dos sul-rio-grandenses, bem como
sobre o fluxo de gado que transitava sobre a fronteira.

150 Andréia Oliveira da Silva


Desde então, assistiu-se, cada vez mais, a uma gravita-
ção das alianças entre sul-rio-grandenses e blancos, situação
que teria seu ponto de conclusão com a aproximação entre os
liberais de Silveira Martins (gasparistas) e os setores do blan-
quismo comandados pelos irmãos Saravia. Juntos, blancos e
gasparistas protagonizariam as últimas grandes revoluções
do setor pastoril (as quais deixariam seus ecos nos dois lados
da fronteira ainda pelas primeiras décadas do século XX).
Essas revoluções, contudo, foram antecedidas por uma
das longuíssimas guerras políticas supranacionais (como
também podem ser entendidas as ininterruptas guerras e co-
moções civis que atravessaram a bacia platina), levando as
gerações políticas do setor pastoril sul-rio-grandense a serem
socializadas por uma matriz política de formação social dissi-
dente e radical, a qual se materializou e se incrustou no com-
portamento das elites políticas locais (formando o histórico
perfil dissidente que veio a marcar o Partido Liberal no Rio
Grande do Sul).23
Esse longo período de conflitos, envolvendo as elites pas-
toris do extremo Sul, iniciou-se ainda na época da Cisplatina
[1825-1828]; estendeu-se pela Guerra Grande (Oribe versus
Rivera) e pela Guerra dos Farrapos [1835-1845]; acompanhou
as califórnias comandadas pelo barão de Jacuí; manteve-se
durante a guerra entre o Brasil e Rosas; ecoou ao longo da
Guerra contra o Paraguai [1864-1870], quando o Império foi
surpreendido por ameaças abertas de sedição no Rio Grande
do Sul, comandadas de dentro da Assembleia Legislativa Pro-
vincial, obrigando o governo do Rio de Janeiro a decretar lei
marcial no Rio Grande do Sul, e manteve-se por outras duas
décadas após concluída a guerra com o Paraguai, levando o
governo brasileiro a iniciar uma dura política de retirada da

23
Sobre o perfil dissidente do Partido Liberal sul-rio-grandense e sua profunda
vinculação com os setores pastoris fronteiriços, ver CARNEIRO, A identidade
inacabada: o regionalismo político no Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Edipu-
crs, 2000.

No extremo sul, uma elite diferenciada 151


cidadania brasileira aos membros da elite pastoril que fossem
surpreendidos envolvendo-se em conflitos e operações contra
as autoridades legais do país vizinho. Em uma segunda me-
dida, passou-se também a retirar a cidadania daqueles que
lutavam ao lado do governo uruguaio.24
Observando o processo pelas pontas, pelas extremidades,
pode-se ver sua longa permanência por praticamente um sé-
culo inteiro, revelando-se um fenômeno político cuja condição
de duração é considerável. Assim, comparativamente ao iní-
cio do século XIX, vê-se, nas décadas que antecedem a queda
do Império, que a guinada dos setores pastoris sul-rio-gran-
denses em favor do Partido Blanco já representa uma expres-
siva maioria entre as frações das nossas elites fronteiriças, as
mesmas que, no Rio Grande do Sul, fazem do Partido Liberal
seu único e inflexível porta-voz.
Por trás das alianças reconstituídas, um fato inquestio-
nável: a manutenção da ingerência das elites pastoris do ex-
tremo sul em assuntos que constituíam matéria de exclusiva
competência das pastas de estrangeiros dos dois países, e a
crise permanente que essa condição representava em termos
do controle que as autoridades nacionais tentavam impor so-
bre seus próprios territórios.
Os setores gasparistas (liberais radicais) representa-
vam, agora, o principal porta-voz da fração pró-blancos no
Rio Grande do Sul.25 Como o setor gasparista dominava qua-
se que inteiramente a região fronteiriça, à exceção de Bagé,
onde o Partido Conservador era forte, reunindo-se ao redor do
poderoso clã dos Silva Tavares, os blancos absorveram junto
àqueles o papel que até meados de 1860 fora quase que exclu-
sivamente representado pelos colorados.

24
Essa longa história de conflitos ininterruptos que ocorriam por sobre a frontei-
ra pode ser acompanhada em CARNEIRO, 2003.
25
Sobre as questões relacionadas à fronteira, no que envolvesse às diversas fac-
ções políticas sul-rio-grandenses durante o Império, consultar CARNEIRO,
2000.

152 Andréia Oliveira da Silva


Agora um governo em que os blancos não se viam repre-
sentados desde 1865 exigia do Brasil que estancasse as incur-
sões e invasões que desde seu território se faziam contra o Es-
tado Oriental, nas quais se achavam envolvidos milhares de
militantes blancos e ruralistas sul-rio-grandenses (liberais).
Nesse sentido, os registros do Ministério de Estrangei-
ros feitos em 1880 davam conta de que numerosas forças a
serviço dos chefes blancos Simão Martinez, Manoel Caraballo
e Carlos Manfredini reuniam-se nas nossas fronteiras, próxi-
mas a Uruguaiana e a Quaraí, onde, sob proteção das autori-
dades locais, armavam-se e preparavam uma agressão contra
o governo uruguaio.26 Em maio, o presidente da província res-
pondia que conseguira deter Caraballo, que se acharia preso
e afastado das áreas fronteiriças.27
Mas como em todas as outras ocasiões, esta medida teve
pouco impacto sobre as perturbações fronteiriças. A elite po-
lítica (liberal) que as sustentava se achava, neste momento,
forte como nunca outra força política fora até então no Rio
Grande do Sul e explicitava essa força não apenas em relação
à ativa integração que mantinha com o Partido Blanco, mas
também através da forma inquestionável com que se revestia
na primeira força política do Rio Grande do Sul.28 Essa rotina
se seguia imutável e, nos momentos em que os blancos se sen-
tiam suficientemente fortes ou encorajados para desafiar a
máquina militar montada por Montevidéu, invariavelmente
tendia a recrudescer.
Foi esse o caso verificado no ano de 1882, quando o gover-
no oriental dirigiu nota ao ministro de estrangeiros do Brasil
acusando as autoridades da fronteira sul-rio-grandense de

26
AVISOS do Ministério dos Negócios Estrangeiros (1831-1889). Correspondên-
cia Recebida pelos Governantes do Rio Grande do Sul de Ministros e outras
Autoridades do Governo Central (1744-1889). Acervo do Arquivo Histórico do
Rio Grande do Sul, MNE, B-1.033, Moreira de Barros, em 25.02.1880.
27
MNE, B-1.033, Pedro Luis Pereira de Souza, em 25.05.1880.
28
Ver CARNEIRO, 2000, p.123 e seguintes.

No extremo sul, uma elite diferenciada 153


protegerem a invasão que Máximo Perez – líder ruralista e
militar sul-rio-grandense pró-blanco – preparara desde o ter-
ritório do Rio Grande do Sul.29
Em 1885, em meio a outra crise política no Estado
Oriental, levantavam-se acusações de que a guarda nacional
da fronteira, em Santana do Livramento, estava acobertando
o contrabando de armas e as partidas blancas que atuavam
na região de Rivera.30 Meses depois explodia uma das mais
significativas revoltas blancas ao longo da década de 1880, e
novamente surgiam acusações de que as autoridades de fron-
teira, no Rio Grande do Sul haviam constituído uma rede de
comércio subterrânea, cujo objetivo era atender às forças re-
beldes de Nico Coronel, Luiz Arroyo e de Jarza, as quais se
encontrariam estacionadas em Santana do Livramento.31
O crescimento das ações, aliás, demonstrando uma ace-
leração dos fatos políticos e militares na região fronteiriça,
reflete bem as dificuldades postas ao Rio de Janeiro sempre
que se tratava de impor sua autoridade sobre aquela região.
Já às vésperas de se encerrar a Era imperial, o governo
central via-se ainda na incômoda condição de manter-se em
alerta para não se ver surpreendido pelos problemas e con-
flitos que assolavam os territórios que integravam o espaço
fronteiriço. As informações davam conta de uma grande força
de orientais (blancos) que, a partir de Jaguarão, invadiram
o Estado Oriental, onde se achariam “já entre os revoltosos
orientais”.32
Ao longo do mesmo mês de março, o governo central viu-
se às voltas com inúmeros episódios denunciando que a con-
vulsão política pela qual atravessava o Estado Oriental era
de grandes proporções e, como tal, repercutia fortemente ao

29
MNE, B-1.033, Francisco de Sá, 20.06.1882.
30
MNE, B-1.033, Visconde de Paranaguá, em 19.05.1885.
31
MNE, B-1.033, Barão de Cotegipe, em 22.02.1886.
32
AVISOS do Ministério dos Negócios da Guerra (1831-1889), MNG, B-1.088, J. J.
O. Junqueira, em 18.03.1886. e em 24.03.1886.

154 Andréia Oliveira da Silva


longo de toda a faixa de fronteira sul-rio-grandense. Em um
único oficio, Cotegipe denunciava a invasão ao Estado Orien-
tal que os partidários de Nico Coronel haviam preparado des-
de Santana do Livramento, da qual participaram os chefes
blancos Arroyo, Jarza e Escudero (o que demonstra que as or-
dens autorizando suas prisões e internamento não foram ou
não conseguiram ser aplicadas). Também denunciava que, de
Uruguaiana e Entre Ríos partiam forças de López Jordan por-
tando “armamento para 15.000 homens”. Denunciava ainda
a presença de outro conhecido chefe blanco, Galeano, que se
acharia em Bagé, à frente de uma coluna de revolucionários.
E, por último, mandava o presidente da província desbaratar
uma rede de fabricação e distribuição de “folhas de lança”,
sediada em Dom Pedrito, que estaria alimentando com esses
apetrechos de guerra forças ligadas a Arroyo, Torrecito e Bas-
tarico, as quais se achavam escondidas em Ponche Verde.33
Na expectativa de refrear essa situação, Cotegipe entre-
gou o comando da fronteira ao marechal Deodoro da Fonse-
ca, pró-homem do Partido Conservador – que logo também
assumiria à presidência da província –, militar formado in-
telectualmente pelos pressupostos filosóficos e políticos que
ganhavam corpo dentro do Exército nacional – entre os quais
se destacavam o positivismo, com sua pregação à ordem, e a
visão profissional e disciplinar que tomou conta do Exército
ao longo da segunda metade do século XIX. Pelas duas razões,
parte importante do alto oficialato brasileiro – e aí se incluía
Deodoro da Fonseca – não poderia aceitar a cultura política da
elite pastoril fronteiriça, marcada pela internacionalização e
balcanização presente em todo o Prata, pela insubordinação
à autoridade de Estado e pela mais completa indisciplina pe-
rante os valores prezados por aquele corpo de oficiais – que
almejava um exército profissional, nacionalista e nacional.

33
MNE, B-1.033, Barão de Cotegipe, em 24.03.1886.

No extremo sul, uma elite diferenciada 155


Ora, a atuação das elites pastoris sul-rio-grandenses
junto à fronteira pouco ou mesmo nada tinha a ver com es-
sas idealizações, de modo que o setor não sul-rio-grandense
do exército passou a repelir as suas práticas e as alianças
que aquelas elites realizavam além da linha fronteiriça e à
revelia das determinações dos poderes constituídos e orga-
nizados em torno do Estado. E à medida que o Exército se
institucionalizava como atividade profissional, aumentava a
tensão entre seu Estado-Maior e as elites fronteiriças sul-rio-
grandenses, dado que aquele entendia, corretamente, dentro
daquilo que era da acepção das Forças Armadas, ser sua fun-
ção o monopólio das armas e do controle sobre os territórios
limítrofes do Brasil.
Essa preocupação com a fronteira do Rio Grande do Sul
continha uma dupla orientação, dado o receio que o corpo de
oficiais tinha em relação às classes política e militar sul-rio-
grandenses: por um lado, era necessário assegurar-se contra
os “perigos” vindos do Prata; por outro, temia-se o histórico
descontrole do Estado em relação às interferências dos seto-
res pastoris sul-rio-grandenses em assuntos que teoricamen-
te escapavam à alçada das autoridade civis e militares locais,
assim como dos proprietários rurais.
Desse modo, a politização e insubordinação próprias da
classe de armas sul-rio-grandense resultaram na desaprova-
ção ou aversão dos demais oficiais do Exército e da Marinha
à sua postura, à medida que se avançava no interior destas
rumo à profissionalização definitiva, visto que aqueles, ao
priorizarem seus interesses políticos, confrontavam-se com
as exigências de disciplina e hierarquia próprios da estrutura
militar.
Escolhendo oficiais estreitamente identificados com essa
posição e postura, Deodoro logrou capturar e afastar da fron-
teira uma parcela importante dos comandantes blancos, com
o que também passou a se ver duramente hostilizado pela

156 Andréia Oliveira da Silva


elite política liberal, que se constituía na mais legítima repre-
sentante das camadas de proprietários estabelecidos junto à
região fronteiriça.34
Entretanto, mesmo as mais cuidadosas ações de Deo-
doro da Fonseca mostraram-se insuficientes e muito aquém
daquilo que se exigiria para colocar as elites pastoris frontei-
riças sob controle do Estado. Ainda em 1886, aquele marechal
veria se frustrarem suas expectativas, provavelmente com-
preendendo que a condição histórica da região fronteiriça exi-
giria mais empenho e dureza do que poderia empregar, nesse
momento, o governo central.
As agressões ao Estado Oriental prosseguiram, a despei-
to da vontade de Deodoro da Fonseca, que mal controlava um
ponto da fronteira e via aquelas vazarem por diversos outros,
como quando Galeano e Pampilon desfilaram ao longo da li-
nha de fronteira, sendo ocultados e municiados por forças de
linha da província, as quais, teoricamente, deveriam proce-
der de forma totalmente inversa;35 ou como da oportunidade
de nova invasão ao Estado Oriental, preparada na cidade de
Jaguarão;36 ou, ainda, através das invasões praticadas por
Nico Coronel na área que margeava a linha Rivera-Santana
do Livramento, que se realizaram ao longo do ano de 1887.37
No final dos anos 1880, as informações davam conta de
que também os irmãos Saraiva – ou Saravía, como eram co-
nhecidos no Estado Oriental – se achavam operando nos dois
lados da linha divisória.38

34
Em MNE, B-1.033, Barão de Cotegipe, em 06.04.1886, segue longa lista de ofi-
ciais blancos desarmados e em seguida detidos por Deodoro da Fonseca. Essas
ações, segundo o mesmo informe, realizaram-se principalmente junto a Santa-
na do Livramento. Quanto à postura política dos sul-rio-grandenses em relação
a Deodoro da Fonseca, ver CARNEIRO, 2000, p. 254 e seguintes.
35
MNE, B-1.033, Barão de Cotegipe, em 16.10.1886.
36
MNE, B-1.033, Barão de Cotegipe, em 19.10.1886.
37
MNE, B-1.033, Barão de Cotegipe, em 01.02.1887 e em 29.08.1887.
38
MNE, B-1.033, Rodrigo S. Silva, em 07.03.1889.

No extremo sul, uma elite diferenciada 157


Nesse momento, a aproximação entre os setores pastoris
blancos e sul-rio-grandenses chegava ao ápice e amadurecera
de tal forma que os dois grupos se achavam convencidos de
que, apoiando-se mutuamente, seriam capazes de desencade-
ar uma dupla revolução, capitaneada contra Montevidéu e, ao
mesmo tempo, contra o eixo Porto Alegre-Rio de Janeiro, se
as condições assim o exigissem.
Posta à prova, como é de conhecimento dos pesquisado-
res interessados em nossa história política, aquela aliança se
mostrou tremendamente forte e dura de debelar. Também re-
velou até que ponto a cultura política da guerra civil (platina)
se havia arraigado entre os rio-grandenses – e mesmo entre
aqueles que, no Rio Grande do Sul, se mostraram os maiores
adversários do setor pastoril fronteiriço, como no caso do clã
Silva Tavares.39
Como se percebe, portanto, no que diz respeito aos se-
tores pastoris fronteiriços, o quadro manteve-se praticamen-
te constante ao longo dos últimos anos da Era Imperial – e
em nada seria negado após a quartelada republicana (desve-
lando, a longo prazo, as razões que permitiram a eclosão da
Revolução Federalista [1893-95]). Também aí se encontram
as explicações para o respaldo efetivo que o Rio de Janeiro
ofereceu a Júlio de Castilhos, quando este se colocou na con-
dição de desbaratar as relações e interações que, durante um
século inteiro, caracterizaram a ação das elites pastoris no
extremo Sul.
Um modo de vida, um ato do ser e do fazer político e
cultural, suspirava seus momentos finais. No entanto, isso
não significou a supressão completa das condições histórico-
culturais que levaram esses grupos a se identificarem com
uma determinada forma de identidade regional. Esta, como

39
Especificamente em relação à internacionalização da Revolução de 93 ver RE-
CKZIELGEL, Ana Luiza Setti. A diplomacia marginal: vinculações políticas
entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai - 1893-1904. Tese (Doutorado em Histó-
ria) _ PUCRS, Porto Alegre, 1997.

158 Andréia Oliveira da Silva


ocorre com os elementos da cultura e do simbólico, logrou so-
breviver à crise das elites fronteiriças e continuar influindo
sobre as formas de interpretação, representação e agir dos
sul-rio-grandenses.
Mesmo a destruição de grande parte da base material
de resistência fronteiriça, levada a cabo por Castilhos, não foi
capaz de produzir alterações profundas na esfera da cultura
política, que só a muito longo prazo adaptou-se à nova reali-
dade regional.

A modo de conclusão
Duas formas de solidariedade desenvolveram-se entre
os grupos pastoris sul-rio-grandenses nesse período como
respostas às condições em que se deram a ocupação e fixa-
ção da sociedade local. Irmanadas e complementares, foram
essas o militarismo (às vezes chamado de “tradição” ou “vo-
cação militar”) e a rigidez da associação política (altamente
coesa e extremamente avessa a dissidências), cuja eficiência
e garantia proporcionadas pela área fronteiriça lhes deram
condições para amadurecer e perpetuar-se, fornecendo não só
às estruturas políticas locais, mas a toda a sociedade sul-rio-
grandense traços distintos e recorrentes em relação a outras
regiões do país e ao próprio correr do tempo.
De necessidades práticas, aquelas acabaram por transfi-
gurar-se, assim, em características distintas e demarcatórias
da cultura política regional.
No Prata, a guerra civil ininterrupta favoreceu a forma-
ção de montoneras e o surgimento de seus líderes militares.
Nesse sentido, os “caudilhos” são o produto político mais ela-
borado e sólido nesse processo. Pela intensa infiltração e per-
manente presença de nossas elites pastoris para muito além
das fronteiras brasileiras, fica óbvio que esse processo influiu
sobre a política regional no extremo sul.

No extremo sul, uma elite diferenciada 159


As migrações armadas em direção ao Rio Grande do Sul
(de aliados dos sul-rio-grandenses e mesmo dos próprios), que
acompanhavam a evolução das guerras civis orientais, não
podem, assim, ser vistas como um fenômeno isolado e loca-
lizado, mas, sim, como um fato generalizado e verificado em
toda a bacia platina, dada a internacionalização absoluta “da-
quela solidariedade revolucionária sem fronteiras”.40
A movimentação constante e a presença desses emi-
grados no Rio Grande do Sul, antes de atestar uma parti-
cularidade (a qual existiria, se pensada unicamente de uma
perspectiva brasileira), serve para explicar a inserção dos sul-
rio-grandenses naquele processo de internacionalização, cha-
mando, assim, outra vez a atenção para o papel de influência
e amálgama da cultura política platina junto aos setores pas-
toris locais. Logo, a permeabilidade das guerras civis plati-
nas também junto à fronteira sul-rio-grandense não é uma
exceção, mas a confirmação da regra (e das formas de fazer e
compreender a política que a embalava). Política que estipu-
lava a internacionalização das guerras civis platinas e da sua
cultura política ao longo de um espaço onde as soberanias e a
consolidação das autoridades nacionais eram ainda bastante
imprecisas e, em muitos casos, por demais instáveis.
Sendo a fronteira, como diz Roncayolo, uma forma de
“censura simbólica” 41 – que enquanto linha de autoridade e
de soberania deveria conter fora dos limites territoriais do
Império aquilo que não pertencia ao mundo cultural luso-bra-
sileiro (como forma de preservar sua integridade territorial
e sua autoridade efetiva e simbólica) – e dada a forma de
conduta da elite pastoril fronteiriça, não é de se estranhar os

40
ORNELLAS, Manoelito de. A gênese do gaúcho brasileiro. Cadernos de Cultu-
ra, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955, p. 12. Grifado por
nós.
41
Conforme RONCAYOLO, Marcel. “Região”. In: Enciclopédia Einaudi. Portu-
gal: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, v. 8, 1986, p. 278.

160 Andréia Oliveira da Silva


receios que o centro político do país alimentava em relação a
seus limites com o Prata.
O militarismo político, com sua gênese autoritária, so-
mando-se ao desprendimento político e ao bandoleirismo dos
homens que “faziam” a fronteira, com seu desapego e sua in-
ternacionalização, veio a ter grande peso para a constituição
de uma cultura política que, ao mesmo tempo em que se sus-
tentava num autoritarismo sofisticado, prezava aos extremos
por sua autonomia de decisão e iniciativa.
A soma desses fatores – uma cultura de conquista (mili-
tarista) e outra de fronteira (marcada pela indisciplina, des-
prendimento político e pelo bandoleirismo) – dá-se, pois, nos
mesmos momentos em que a infiltração fronteiriça dos seto-
res pastoris sul-rio-grandenses finca suas raízes em território
oriental. São partes de um mesmo processo.
Dessa forma, a estrutura social e política da região fron-
teiriça gerou um tipo muito particular de elite dominante,
cujo estereótipo clássico do caudilho, construção externa e
depreciadora, acaba por ocultar. Constituía-se, tanto no Rio
Grande do Sul como na Campanha uruguaia, uma espécie de
empresariado rural militarizado que, mesmo envolvido ple-
namente no seu meio social, era, em geral, profundamente
preparado no plano político (sendo, muitas vezes, bastante
versado nas obras clássicas da literatura jurídica e política do
período). Nem era ainda um capitalista (e em muitos casos,
posteriormente, não chegaria a ser), nem um “senhor feudal”,
como o conceito de caudilhismo erroneamente pode deixar
transparecer.
A dissidência política dos setores pastoris sul-rio-gran-
denses será percebida – e também se afirmará – como uma
fratura profunda no interior da sociedade brasileira. Essa
“territorialização” da identidade e da cultura política sobre-
viveria às mudanças e deslocamentos políticos transcorridos
ao longo dos séculos XIX e XX como uma “ruga”, não acom-

No extremo sul, uma elite diferenciada 161


panhando – nem se submetendo por completo – os processos
de centralização e racionalização administrativa promovidos
pelo Rio de Janeiro.
O perfil diferenciado assumido pelas elites pastoris no
extremo sul ajuda a explicar, assim, condições políticas, so-
ciais e culturais que ainda hoje se fazem presentes e que re-
sistiram ao desaparecimento ou à obliteração daquelas elites.
Essa observação vale tanto para as relações de insatisfação
que historicamente marcam a presença dos sul-rio-granden-
ses na comunidade brasileira como, em sentido oposto, para
as vibrantes denúncias e questionamentos que, ao longo do
tempo, foram lançados quanto ao caráter político autoritário
e platino que marcaria essa presença.

162 Andréia Oliveira da Silva


???
CONFERIR LOCAIS DAS FIGURAS.
E TAMBÉM FALTAM FIGURAS A
1
Estâncias
PARTIR DA N. 15 fortificadas

Ester J. B. Gutierrez*

O avanço da fronteira portuguesa


Em 1777, o Tratado de Santo Idelfonso, firmado entre
as Coroas ibéricas, determinava o seguinte limite para o sul
do continente americano: “[...] pela parte do Continente irá a
linha desde as margens da dita lagoa Mirim, tomando a dire-
ção pelo primeiro arroio meridional que entra no sangradouro
ou desaguadouro [canal São Gonçalo] dela e que corre mais
imediato ao Forte Português de São Gonçalo; desde o qual,
sem exceder o limite do dito Arroio, continuará o domínio de
Portugal pelas cabeceiras dos rios que correm até o mencio-
nado Rio Grande e Jacuí[...]”.2 Lusitanos e castelhanos não
chegavam a um acordo sobre o primeiro arroio meridional.
Compreendido entre os rios Piratini e Jaguarão, o território
foi alvo de muita disputa. Por fim, prevaleceu o avanço por-
tuguês. (Fig. 1).

FALTA CURR4ÍCULO DA
AUTORA ?????
*

1
???? ??
Texto elaborado por Ester J. B. Gutierrez, arquiteta e urbanista, mestre e
doutora em história, professora da graduação e do mestrado em arquitetura e
urbanismo, UFPel; Cláudia Daiane Garcia Molet, historiadora, mestranda em
Ciências Sociais, UFPel; Daniele Luckow, arquiteta e urbanista, mestranda em
arquitetura e urbanismo, UFPel e Simone Neutzling, arquiteta e urbanista.
2
MACEDO SOARES, cit. por FRANCO, Sérgio da Costa. Origens de Jaguarão
(1790-1833). Caxias do Sul: Ed. UCS, 1980. p. 9 (grifo nosso).

Estâncias fortificadas 163


Fonte: Elaborado por Guilherme Almeida, 2009, com base no “Mapa Político do Rio Grande do
Sul” - SCP/DEPLAN – RS, Maio de 2004.
Figura 1 – Mapa de situação de Jaguarão no RS

164 Ester J. B. Gutierrez


Usando da tática do uti possidetis, os lusos concederam
sesmarias com a intenção de forçar o aumento da linha de-
marcatória.3 Entre 1790 e 1792, as autoridades lusitanas
doaram várias sesmarias ao sul do Piratini. Em Origens de
Jaguarão, Sérgio da Costa Franco arrolou dezenove doações.
Entre os concessionários, cinco eram militares e dois, comer-
ciantes. A documentação existente no Arquivo Histórico do
Rio Grande do Sul – como o Cadastro de sesmarias, o Registro
de terras e terrenos concedidos nos diferentes distritos e municí-
pios do RS, o Livro de datas de terras, 1755-1831, e o Livro de
registro de sesmarias de terras, Rio Grande 1813-1814 – forneceu
uma listagem maior.4 Quando foram mapeadas essas proprieda-
des, foi verificado que as primeiras doações, ocorridas entre 1790
e 1792, localizavam-se _ muitas delas _ nas nascentes do rio Ja-
guarão, fora do atual município, ao passo que a maioria das con-
cessões que iniciaram na segunda década do século 19 situava-se
estrategicamente protegendo as casas e a guarda mais perto do
encontro da foz do Jaguarão com a lagoa Mirim. Instalaram-se a
oeste do povoado e da guarda do Serrito, ocupando as duas mar-
gens do arroio do Telho, e também a leste, acompanhando a orla
da lagoa Mirim até alcançar o arroio Grande. A partir de 1814,
igualmente, ocorreram doações de chácaras e de terrenos urba-
nos. As chácaras, mais próximas à área povoada, reforçaram a
ocupação no entorno da freguesia do Espírito Santo do Serrito
de Jaguarão e das instalações militares. (Fig. 2).

3
REICHEL. Heloísa Jochims. Fronteiras no espaço platino. In: BOEIRA, Nel-
son; Golin, Tau (Coord.). História geral do Rio Grande do Sul. Colônia. Passo
Fundo: Méritos, v. 1, 2006. p. 50.
4
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Cadastro de Sesmarias (Relação de
moradores que tem campo e animais nesse Continente) Livros nº 1198 A a D, o
Registro de terras e terrenos concedidos nos diferentes distritos e municípios
do RS - Livro de datas de terras 1755-1831, M. 45, Lª. 291 e o Livro de registro
de sesmarias de terras, Rio Grande 1813-1814, Nº 41.

Estâncias fortificadas 165


Fonte: Elaborado por Guilherme Almeida, 2009, com base em “Mapa do Município de Jaguarão”
de Autoria de Anry Prates Piuma, 1955 - Prefeitura Municipal de Jaguarão.

Figura 2 – Mapa do Município de Jaguarão com a localização das


sesmarias
Entre os primeiros sesmeiros se encontrava, por exemplo,
o guarda-mor André Pereira Maciel, natural de Braga, Portu-
gal. A sesmaria que ele ganhou atualmente está localizada no
município de Herval. Além de oficial, Maciel era negociante. Em

166 Ester J. B. Gutierrez


seu testamento, escreveu: “[...] vivo do giro de negócios [...] e
especialmente das fazendas e outros gêneros, que tenho bus-
cado no Rio de Janeiro e mandado vir por minha conta e risco
para revender neste continente, no qual tenho administra-
do várias cobranças de dívidas alheias.” Em Comerciantes do
Rio Grande de São Pedro: formação, recrutamento e negócios
de um grupo mercantil da América Portuguesa, Helen Osó-
rio comprovou que as vinculações comerciais e sociais entre
as praças do Sul e do Rio de Janeiro foram múltiplas. Ela
verificou que os capitais para o estabelecimento das primei-
ras charqueadas se originaram nas atividades desenvolvidas
pelo grupo mercantil local.5

O fortim fundacional
As disputas entre espanhóis e portugueses para defini-
ção da linha da fronteira foram recorrentes entre os séculos
18 e 19. Foi nesse contexto que se inseriu o estabelecimento e
o desenvolvimento do atual município de Jaguarão, localiza-
do na margem esquerda do rio Jaguarão, junto à fronteira do
Uruguai. A instalação do povoado estava vinculada à neces-
sidade da Coroa portuguesa de, sobretudo, avançar a frontei-
ra do Império luso-brasileiro. Desse modo, a área urbana da
atual cidade de Jaguarão teve origem em uma guarda espa-
nhola, fundada em 1792, na margem norte do rio Jaguarão,
chamada de “Fortin de la Laguna”. Também conhecido como
“Fortin del Cerrito”, foi projetada pelo alferes de fragata e car-
tógrafo espanhol Joaquim Gudim. Tomado pelos portugueses

5
OSÓRIO, Helen. Comerciantes do Rio Grande de São Pedro: formação, recruta-
mento e negócios de um grupo mercantil da América Portuguesa. Revista Brasi-
leira de História, São Paulo, v. 20, n. 39, 2000 São Paulo, v. 20, n. 39, 2000. Dis-
ponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php? pid= S0102-01882000000100005
&script=sci_arttext#back25>. Acesso em: 1 maio 2009.

Estâncias fortificadas 167


em 1802, o “Fortin de la Laguna” passou a chamar-se Guarda
da Lagoa e do Cerrito.6

A estância real do serrito


Em 1803, inclusive com o gado reunido que nela encon-
traram – e que pertencia à Coroa Espanhola antes da con-
quista –, a Estância do Serrito foi colocada em arrematação
pela junta da Real Fazenda. Foi arrematante o português
José Pereira da Fonseca, personagem que, pelo menos até
1813, foi das figuras mais importantes do povoado.7 José Pe-
reira da Fonseca arrematou uma área cujo limite leste era a
lagoa Mirim; oeste, o arroio Telho; sul, o rio Jaguarão; e norte,
o arroio Juncal. Fonseca lutou para apossar-se de toda a área,
o que não conseguiu por inteiro, pois houve resistência e os
ocupantes jamais se retiraram em definitivo.8
Até 1810, o Comando da Fronteira não queria a forma-
ção de qualquer povoado, porém permitia os fornecedores de
víveres às tropas, os chamados “viandeiros”. Os negociantes
aumentavam em função dos criadores e dos lavradores da vi-
zinhança e também dos moradores da Banda Oriental. São de
1811 as primeiras concessões de terrenos urbanos na guarda
do Serrito. Nas descrições das doações foi possível observar a
presença de casas de pedra e cal e de olarias. Essas conces-
sões coincidiram com a campanha do “Exército de Pacifica-
ção”, ocorrida entre 1811 e 1812.
Idealizada por dom Diogo de Souza, então governador da
Capitania do Sul, com o propósito de defender os espanhóis
contra as lutas de independência das províncias do Rio da
Prata, a campanha “pacificadora” entrou no território locali-

6
ALEJO, Jorge Aicard. Rio Branco (1972-1992). Montevideo: Imprenta del Ejér-
cito, 1992. p. 22.
7
FRANCO, ob. cit., p. 31.
8
Ibid., p. 32.

168 Ester J. B. Gutierrez


zado na margem direita do rio Jaguarão.9 Depois de algumas
concessões do governador naquele mesmo ano de 1811, as
doações cessaram. O motivo para essa decisão foi que desde
1809 toda a Estância Real do Serrito (ver Fig. 2) fora objeto de
presente do príncipe regente à baronesa, depois viscondessa
de Magé, esposa de Matias Lobato. Em 1811, abriram-se dili-
gências no sentido de tomar posse da terra arrendada a José
Pereira da Fonseca.10
O solicitador do nobre casal, José Antônio da Silveira
Casado, no primeiro semestre de 1811 fez um relato de Ja-
guarão: “[...] conhecer a inutilidade daquela Fazenda, por se
achar quase circundada por dezessete moradores intrusos, en-
trando nesse número a chácara do Quartel-Mestre [...] além
duma povoação que contém trinta e duas casas é um aquarte-
lamento [...] três se acham estabelecidos com consentimento
do arrendatário [...] moradores do pequeno arraial não têm al-
guns deles outro título mais que a venda que alguns soldados
dos destacamentos lhes fizeram, e outros de sua autoridade
própria, a consentimento dos mesmos comandantes daquela
Guarda.” O arrendatário, José Pereira da Fonseca, solicitava
um ano de prazo e o pagamento das benfeitorias que tinha fei-
to no lugar, “[...] pois é uma charqueada que está preparada
(sic) de tudo que se precisa.” Dos dezessete ocupantes listados,
nove eram soldados ou ex-soldados; seis, paisanos; um, caste-
lhano, e outro era o padre Antônio José Pereira.11
A provisão de março de 1813 foi decisiva para separar o
território destinado à povoação da Guarda do Serrito. A pro-
visão de junho do mesmo ano deliberou sobre a doação feita
à viscondessa de Magé, do Rincão do Serrito: “[...] compreen-
9
MARTINS, Roberto Duarte. A ocupação do espaço na fronteira Brasil-Uru-
guai: a construção da cidade de Jaguarão. Tese. (Doutorado em Histórias
Especializadas) _ Universidade Politécnica da Catalunha. 2002. p. 59. Dis-
ponível em: <http://www.tdr.cesca.es/TESIS_UPC/AVAILABLE/TDX-1107102
-174643//02CONTRAPORTADA.pdf>. Acesso em: 1 maio 2009.
10
Id.
11
FRANCO, ob. cit., p. 43-45.

Estâncias fortificadas 169


de todo o terreno que se denomina ‘Estância ou Postos Espa-
nhóis de Serrito e Rincão da Cavalhada’, excluída a estância
do tenente Francisco Antônio D’Ávila e o território denomi-
nado ‘Guarda do Serrito’, em que estão os quartéis da mesma
Guarda, a Capela e mais moradores [...]”. No estudo do piloto
Maurício Inácio da Silveira para Jaguarão “[...] definiram-se
os limites da área reservada para a povoação da guarda do
Serrito meia légua de fundo a contar das margens do Mestre
do Jaguarão, desde o arroio ‘denominado da charqueada de
José Pereira’, que é o mesmo dos Lagoões, em cuja foz se situ-
ava a charqueada de José Pereira da Fonseca, até no extremo
leste, o arroio do quartel.”12
Junto com a Corte de dom João VI retirou-se para Por-
tugal a viscondessa de Magé, abandonando de vez a terra que
lhe fora concedida. Dessa renúncia se aproveitaram numero-
sos criadores e lavradores para ali se fixar e radicar, criando
condições para a futura legitimação de domínios.

A fazenda São João


Os campos da fazenda São João do Rincão de Jaguarão
e Juncal faziam parte das terras ocupadas a partir de 1824
pelo comendador Francisco José Gonçalves da Silva. Inicial-
mente, o comerciante português comprou algumas chácaras
com frente para o rio Jaguarão, próximas ao arroio Quartel-
Mestre, exatamente na divisa dos terrenos reservados para
a povoação, com as terras doadas à viscondessa de Magé. A
maioria dessas propriedades media cerca de 150 x 300 braças
[330 x 660 metros] e foi comprada dos irmãos Joaquim Car-
doso Brum (primeiro pároco de Jaguarão) e Manoel Cardoso
Brum, uns dos mais antigos moradores a receber terrenos
nos subúrbios. Segundo Apontamentos para uma monogra-
fia de Jaguarão, o padre também era arrendatário de parte

12
Ibid. p. 48-49.

170 Ester J. B. Gutierrez


das terras pertencentes à viscondessa de Magé.13 Em 1825, o
comendador Francisco achava-se na posse de terras adquiri-
das parte por compra, parte por posse, e queria demarcá-las.
Em 1835, o rico e importante comerciante conseguiu medir a
grande fazenda.14
Em 1848, o presidente da província do Sul pretendeu
recuperar para o patrimônio nacional a área que outrora per-
tencera à viscondessa de Magé. Em levantamento realizado
pela Câmara Municipal foram encontrados como ocupantes
efetivos do suposto “Rincão Nacional” 66 lavradores e fazen-
deiros, com suas famílias e escravarias, desde um modesto
Santiago Macedo, com 100 braças [220 metros], um cercado
e duas casas cobertas de capim, até o comendador Francisco
Gonçalves da Silva, com quatro léguas [26.400 metros], duas
casas cobertas de telhas, cinco cercados, charqueada, doze ca-
tivos, criação de gado e lavouras.15
Francisco José Gonçalves da Silva (Fig. 3) nasceu em
Braga, Portugal, no ano de 1786. Casou-se com Maria Joana
Barbosa Vieira Braga, natural de Rio Grande, irmã de João
Francisco Vieira Braga, conde de Piratini. Francisco era ho-
mem de fortuna, comerciante, fazendeiro e charqueador. Por
indicação da Câmara, foi o primeiro juiz municipal e de Ór-
fãos da vila de Jaguarão, em 1833.16

13
Intendência Municipal de Jaguarão. Apontamentos para uma monografia de
Jaguarão. 2ª Exposição Agropecuária. Porto Alegre, 1912, p. 310.
14
Acervo Estância São João. Estância de São João na barra do arroio Juncal.
Documento datilografado, s. a., s.d. Jaguarão. RS
15
FRANCO, ob. cit., p. 84
16
Ibid., p. 53

Estâncias fortificadas 171


Fonte: Intendencia Municipal de Jaguarão. Apontamento para uma monografia de Jaguarão.
1912. 2ª Exposição Agropecuária. Porto Alegre.

Figura 3 – Foto do Comendador Francisco José Gonçalves da Silva

A descrição feita em 1827 pelo mercenário alemão Carl


Seidler mostrou que os arredores da povoação lhe pareceram
muito aprazíveis. Sobre o entorno escreveu: “[...] os arredores,
como é freqüente no Brasil, são pitorescos e em alto grau de
um romantismo barroco. Inúmeras colinas de suave declive,
cortadas de regatos bordados de mato e folhagem verde pri-
maveril, circundam a pequena cidade, situada junto à mar-
gem do belo rio Jaguarão, e assim tem-se aqui tudo quanto
torna atraente e interessante uma paisagem: mato e água,
monte e vales, e um céu azul escuro”.17

17
SEIDLER, Carl. Dez anos de Brasil. 3. ed. São Paulo: Martins, 1976. P. 143

172 Ester J. B. Gutierrez


A seguir, contou como conhecera o comendador Francis-
co José Gonçalves da Silva e a sua propriedade: “Numa das
excursões que freqüentemente fazíamos de Serrito chegamos
a uma fazenda, onde resolvemos parar alguns momentos e
pedir ao proprietário, mediante pagamento, alguns copos de
leite. Assim fomos convidados pelo dono da casa a entrar na
sala de estar e fartamente servidos do que pedíramos. Dom
Francisco (assim se chamava o dono) em seguida nos condu-
ziu ao seu jardim, onde com surpresa deparei com um po-
mar plantado inteiramente à européia. Notando ele minha
estupefação, voltou-se para mim sorridente e disse: ‘Senhor,
eu sou filho do reino’. E com galante gentileza nos levou a
um canteiro de morangos e nos convidou a que colhêssemos
à vontade, pois sabia que os alemães os apreciavam muito,
ao passo que de sua família ninguém gostava deles. Eram
os primeiros morangos que víamos no Brasil e naturalmente
acedemos com prazer ao convite. Em seguida Dom Francisco,
que não se cansava em obsequiar-nos, mostrou-nos um trigal
enorme, diversas aléias de castanheiros, nogueiras, laranjei-
ras, figueiras, – tudo raridade naquela terra incivilizada e
inculta [...].”18
Dom Francisco, ao que tudo indica, trata-se de Francisco
José Gonçalves da Silva, um dos homens mais prósperos da
comunidade.19
Em 1865, após o falecimento do comendador, em 30 de
maio, e de sua esposa, em 30 de janeiro, foi realizado o inven-
tário.20 Entre os bens de raiz estava listada a fazenda da es-
tância São João do Rincão de Jaguarão e Juncal, tendo como
fundos a lagoa Mirim, no primeiro distrito do município de

18
Id.
19
FRANCO, ob. cit., p. 85.
20
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Inventário de Francisco José
Gonçalves da Silva e s/m Maria Joana Gonçalves Braga. Inventariante João
Francisco Gonçalves e outros. Número 72, Estante 98, maço 2. Cartório Civil.
Jaguarão. 1865.

Estâncias fortificadas 173


Jaguarão, com quatro léguas e meia de campo e três ilhas do
rio Jaguarão. Nesses campos estavam localizadas as casas
de material, cobertas de telhas, onde residiam os falecidos,
galpão, casas cobertas de palha, arvoredo da quinta e mais as
casas de tapera. Havia também uma charqueada com duas
grandes mangueiras e casa de moradia de material coberta
de telha, forrada e assoalhada, com contrafeitos nos fundos.
No posto da Palma havia uma morada da casas de material
coberta de telha e uma dita “pequena” também coberta de te-
lha. No posto da Luz havia uma casa pequena, em mau esta-
do; no posto Santana, uma casa de paredes de adobe, coberta
de telhas em mau estado. Foi escasso o uso de tijolos secos ao
sol nas vivendas principais (Fig. 4).
O historiador rio-grandense Setembrino Dal Bosco, ao
analisar a estância da Música, no Rio Grande do Sul, afirmou
que havia pelo menos quatro posteiros e uma sede. Nesses
locais, deveria haver uma manada de éguas mansas para o
serviço, vacas de leite e, ainda, cativos que trabalhavam au-
xiliando os posteiros. Possivelmente, existissem hortas e cria-
ções. A função dos cativos e dos posteiros era de repontar o
gado diariamente para evitar que saísse do campo. Cada pos-
teiro era responsável por quatro mil hectares de terras e pela
vigilância de 1.200 a 1.600 cabeças de gado – ou seja, uns 2,9
hectares por animal. Os cativos nessa estância eram a maio-
ria dos trabalhadores, cuidavam das crias e, possivelmente,
dos pomares, hortas, construções de currais e mangueiras de
pedras. O autor conclui que os trabalhadores escravizados
eram importantes para o funcionamento “organizativo/pro-
dutivo” da fazenda pastoril.21

21
BOSCO, Setembrino Dal. Capatazes, peões e cativos na estância da Música.
História: Debates e tendências, Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, v.
1, n. 1, p. 72-75, jun. 1999.

174 Ester J. B. Gutierrez


Fonte: Elaborado por Guilherme Almeida, 2009, com base na Planta da Fazenda de São João
do Rincão de Jaguarão e Juncal, pertencente aos herdeiros do falecido Comendador
Francisco José da Silva, medida e dividida em novembro de 1865 pelo agrimensor Fran-
cisco Estácio Belmondy e copiado pelo agrimensor Philippe Somer em 1866. Acervo
Estância São João.

Figura 4 – Mapa das Medições das terras do Comendador Francisco


José Gonçalves da Silva e seus herdeiros

Estâncias fortificadas 175


Entre filhos, genros e netos, o inventário listava onze
herdeiros – os nove filhos que viveram até a morte do casal,
os dois netos e uma neta da filha que haviam perdido. O fi-
lho mais velho, João Francisco Gonçalves, nasceu em 1818. A
segunda, Ana Joaquina, nascida no ano seguinte, foi a que
faleceu antes dos pais; do seu casamento com Antônio José
Afonso Guimarães, deixou três filhos: Antônio José Afonso
Guimarães Junior, Francisco José Afonso Guimarães e uma
filha, também chamada de Ana Joaquina, casada com João
Rodrigues Barbosa. A terceira filha dos inventariados, igual-
mente, nasceu um ano depois, em 1820. Maria Cecília era
casada com Manoel Bernardino Soares. O quarto filho veio
três anos após, em 1823, o capitão Francisco José Gonçalves
da Silva. O quinto, Joaquim Gonçalves Braga, chegou dois
anos a seguir, em 1825; era casado com Eulina Gonçalves da
Silva, sobrinha de Bento Gonçalves, filha de Manuel Gonçal-
ves da Silva. Em 1827, nasceu Leonídia Angélica, casada com
José Antônio Moreira, conhecido como o poderoso barão de
Butuí. A sétima foi Maria Francisca Gonçalves Guimarães,
que contratou matrimônio com João Antunes Guimarães. Em
1829, veio ao mundo a oitava herdeira, Joaquina Elísia Gon-
çalves da Silva, que em 1856 assinou contrato de casamento
com Gabriel Gonçalves da Silva, filho de Manuel Gonçalves
da Silva, irmão de Bento Gonçalves. Por fim, em 1830 nasceu
o último, Domingos Augusto Gonçalves da Silva.
No mapa denominado “Planta da Fazenda de São João
do Rincão de Jaguarão e Juncal, pertencente aos herdeiros do
falecido Comendador Francisco José da Silva”, medido e divi-
dido em novembro de 1865 pelo agrimensor Francisco Estácio
Belmondy e copiado pelo agrimensor Philippe Somer em 1866,
foi possível ver a forma como o campo original foi repartido e
as propriedades dos onze herdeiros. Situada na margem di-

176 Ester J. B. Gutierrez


reita do banhado (atual arroio) do Quartel-Mestre, está locali-
zada a charqueada descrita no inventário.22 (Fig. 5).

Fonte: Acervo Estância São João. Foto: Rodrigo Osorio, 2009.

Figura 5 – Foto da Planta da Fazenda de São João do Rincão de Ja-


guarão e Juncal

Conforme o representado na “Planta da Fazenda de São


João do Rincão de Jaguarão e Juncal” os campos de proprie-
dade do comendador Francisco estendiam-se por uma área
de aproximadamente quatro léguas e meia [29.700 metros],
tendo com limites, ao norte, o arroio Juncal; ao sul, o rio Ja-
guarão; a leste, o banhado do Quartel-Mestre e, a oeste, a la-
goa Mirim. Várias estâncias jaguarenses tiveram origem nos
campos do comendador Francisco José Gonçalves da Silva,
como os campos que agora pertencem às estâncias São João,
dos Bonitos e da Glória (Fig. 6).
22
Acervo da Fazenda São João. Planta da Fazenda de São João do Rincão de Ja-
guarão e Juncal, pertencente aos herdeiros do falecido Comendador Francisco
José Gonçalves da Silva. Jaguarão. RS.

Estâncias fortificadas 177


Fonte: Acervo Estância de Gabriel Gonçalves da Silva. Foto: Rodrigo Osorio, 2009.

Figura 6 – Foto parcial do mapa das terras de Joaquim Gonçalves Bra-


ga e de José Antônio Moreira, de 1865, mostrando a sede
da Estância dos Bonitos

A estância São João


Dentro das terras que couberam a João Antunes Gui-
marães, marido de uma das filhas do comendador Francisco
José, Maria Francisca, próxima à interseção com as terras de
Domingos Augusto Gonçalves, Francisco José Gonçalves da
Silva e João Francisco Gonçalves, estava localizada a atual
estância São João, que antigamente fazia parte da estância
primitiva, como posto denominado São João.23 (Fig. 7) Prova-
velmente, esse local recebeu ampliações e melhorias. Serviu
23
Intendência Municipal de Jaguarão, ob. cit., p. 310.

178 Ester J. B. Gutierrez


de residência, primeiramente, a João Antunes Guimarães;
depois, a seu genro o coronel Antônio Olegário de Mattos, que
era o proprietário em 1912. Atualmente, pertence aos descen-
dentes do coronel. (Fig. 8)

Fonte: Rodrigo Osório, 2009.


Figura 7 – Foto atual da Fazenda do Juncal

Fonte: Intendencia Municipal de Jaguarão. Apontamento para uma monografia de Jaguarão.


1912. 2ª Exposição Agropecuária. Porto Alegre.

Figura 8 – Estância dos Bonitos em 1912

Estâncias fortificadas 179


A estância dos Bonitos
Próxima às margens do rio Jaguarão, no encontro das
águas deste rio com o banhado do Quartel-Mestre, estava lo-
calizada a vivenda que foi sede da fazenda de São João do
Rincão de Jaguarão e Juncal, onde residia o comendador
Francisco José Gonçalves da Silva. (Fig. 9) Atualmente, essa
área é conhecida como estância dos Bonitos (Fig. 10), de pro-
priedade de Gabriel Gonçalves da Silva, bisneto de Francisco.
Segundo a descrição do inventário, a sede da estância do co-
mendador Francisco era composta de casas de material co-
bertas de telhas, galpão, casas cobertas de palha, arvoredo
da quinta e mais as casas de tapera. Provavelmente, o pomar
plantado inteiramente à europeia, o canteiro de morango, o
trigal enorme, as diversas aléias de castanheiros, nogueiras,
laranjeiras e figueiras relatadas por Carl Seidler fossem nes-
te lugar. Diferentemente da imagem apresentada no mapa de
1865, no qual se podem observar três janelas de cada lado da
porta de acesso, em 1912 a casa principal apresentava acesso
central e duas janelas de cada lado. (Fig. 11) Nessa época, a
estância destacava-se por uma excelente horta, onde se colhia
de tudo, um bom pomar, com mais de quatrocentos pesseguei-
ros, macieiras, figueiras e laranjeiras, além de mais seis mil
reses. A estância dos Bonitos, apesar de ter sofrido modifica-
ções que prejudicam a leitura do período de construção, hoje,
através do neocolonial, reforça a linguagem luso-brasileira.24

24
Intendência Municipal De Jaguarão, ob. cit., p. 316.

180 Ester J. B. Gutierrez


Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 9 – Foto atual da Estância dos Bonitos

Fonte: Intendencia Municipal de Jaguarão. Apontamento para uma monografia de Jaguarão.


1912. 2ª Exposição Agropecuária. Porto Alegre. Foto atual: Rodrigo Osorio, 2009

Figura 10 – Foto antiga e atual da Estância São João (1912 e 2009)

Estâncias fortificadas 181


Fonte: Rodrigo Osório, 2009.
Figura 11 – Foto atual da Estância São João

A estância da Glória
Nas terras herdadas por João Rodrigues de Barbosa, ma-
rido de Ana Joaquina, neta do comendador Francisco, estava
localizado o posto da Luz. Nesta área foi edificada a fazenda

182 Ester J. B. Gutierrez


da Glória, antiga residência de João Rodrigues de Barbosa,
também comendador. Atualmente pertence aos herdeiros de
Vasco Pinto Bandeira (Fig. 12).

Fonte: Intendencia Municipal de Jaguarão. Apontamento para uma monografia de Jaguarão.


1912. 2ª Exposição Agropecuária. Porto Alegre.

Figura 12 – Foto Antiga (1912) do Posto Sant'Anna

As estâncias e os fortins
As estâncias no Rio Grande do Sul
Segundo a dissertação Estâncias e fazendas: a arquite-
tura da pecuária no Rio Grande do Sul, de Luís Henrique
Haas Luccas, de 1999, as propriedades constituíram um con-
junto heterogêneo nos aspectos construtivos, plásticos e fun-
cionais.25 Sobre as propriedades localizadas mais ao norte do
estado, em Velhas fazendas sulinas: no caminho das tropas

25
LUCCAS, Luís Henrique Haas. Estâncias e fazendas: a arquitetura da pecuária
no Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) – Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 1999.

Estâncias fortificadas 183


do Planalto Médio, do arquiteto e urbanista Nery Luís Al-
ves da Silva, de 2003, foram verificadas as rusticidades e as
precariedades das sedes e das demais benfeitorias. No norte,
ligado aos tropeiros paulistas, as primeiras moradas eram
simples.26
O sul enriqueceu, sobretudo, fornecendo gado para a
produção de charque, concentrada inicialmente em Pelotas e
Jaguarão e também em parte do rio Jacuí. Por um lado, foram
anotados, por viajantes da época, os ranchos e choças cober-
tas de palha, com paredes de pau-a-pique, na maioria, e sem
portas e janelas – ou, quando muito, de couro.27 Por outro, fo-
ram referenciadas, por estudos contemporâneos, as moradas
que representavam mais fortalezas que “villas”. Estas sedes
tinham bases militares, geométricas, despojadas.28 A partir
da segunda metade do século 19, algumas vivendas começa-
ram a receber ornamentação eclética de características mais
clássicas. Apesar dessas influências – advindas, em especial,
dos países da fronteira –, as sedes permaneceram modestas
em comparação às moradas das grandes propriedades cafei-
cultoras e açucareiras do Centro-Sul e do Nordeste.
Além da “casa senhorial”, as propriedades rurais eram
compostas por um conjunto de construções. Os galpões, cons-
truções típicas desses estabelecimentos, tinham função tanto
doméstica (cozinha suja, despensa, etc.) como produtiva (es-
trebarias, depósito de ferramentas, etc). Depois, vinham os
diferentes tipos de encerras para animais, os potreiros, as
mangueiras e os currais. Geralmente, muito afastada da sede,
encontrava-se a vivenda do posteiro. A presença de pomares
e caponetes foi outra constante, visando proteger as sedes do
26
SILVA, Nery Luís Alves. Velhas fazendas sulinas: no caminho das tropas do
planalto médio. Século XIX. Porto Alegre: Evangraf, 2003.
27
AZARA, Félix de. Memória rural do Rio da Prata. In: FREITAS, Décio. Capita-
lismo pastoril. Porto Alegre: Escola Superior de São Lourenço d Brindes, 1980.
p. 57.
28
GUTIERREZ, Ester Judite Bendjouya. Escravidão em estâncias e charqueadas.
História: Debates e Tendências, UPF, p. 11-35, 2009.

184 Ester J. B. Gutierrez


vento frio proveniente de sul e sudoeste (pampeiro e minuano).
Talvez pela precariedade das edificações das senzalas, têm-se
poucos registros quanto à sua localização e existência. 29
Os estudos recentes sobre os cativos nas fazendas pas-
toris do Rio Grande do Sul e norte do Uruguai, com destaque
para o século 19, indicam de três a quatro trabalhadores (ca-
tivos ou livres) por unidade produtiva pastoril, de uma légua
(4.300 ha), e uns dez a doze, para légua de sesmaria (13 mil
ha). Os trabalhadores escravizados possivelmente se abriga-
vam no galpão, ao passo que os que tinham ocupações domés-
ticas ficavam junto à vivenda principal, dormindo na cozinha,
nos corredores, em pequenos quartos ou ao pé da cama de se-
nhores e senhoras. Deitavam-se no chão, em alguma esteira
ou cobertor,30 no melhor dos casos, talvez, em algum pelego.
Ao analisar as fazendas sulinas do Planalto Médio, Nery
Silva anotou que eram raras as senzalas. Afirmou que, o me-
lhor dos galpões, sem forro, de chão batido ou de piso de pe-
dras irregulares, acolhia as despensas; bem como as casas
de carne, de embutidos e de charque, os quartos de dormir
dos peões, de criadas e de escravas. Outro, mais rústico que
o anterior, tinha o calor do fogo de chão, a casa dos arreios,
os depósitos de sal, o quarto de hóspedes, às vezes com piso
e forro de madeira, e mais quartos de peões. O mais precário
deles, possivelmente o terceiro galpão, contava com estreba-
rias, currais, galinheiros, pocilgas, paióis, depósitos de fer-
ramentas e senzalas para os homens. O mesmo ocorria nas
estâncias da Campanha do Rio Grande do Sul – as mulhe-
res (sempre em menor número) e os homens escravizados
não compartilhavam os mesmos espaços. Duro golpe nos que
tentam provar a frequente presença de famílias escravas nos

29
Id.
30
MAESTRI, Mário. O sobrado e o cativo. A arquitetura urbana erudita no Brasil
escravista. O caso gaúcho. Passo Fundo: Ed. UPF, 2001. p. 154.

Estâncias fortificadas 185


estabelecimentos rurais.31 Faltam-nos ainda estudos mais de-
tidos sobre essa realidade.
Usualmente, tanto no norte como no sul do estado do Rio
Grande as sedes estavam situadas nos altos das coxilhas, de
onde se vigiavam todos os lados da propriedade rural. Era
comum orientar as fachadas frontais de leste a norte, privi-
legiando a entrada de sol nos melhores cômodos. As áreas
de serviço voltadas para o sul ficavam protegidas dos ventos
pela vegetação. Frequentemente, a cozinha suja situava-se
em um apêndice fora da construção, enquanto a cozinha lim-
pa, que servia a casa dos proprietários, localizava-se junto à
moradia. As capelas foram raras, sendo comum dispor de um
oratório num dos compartimentos da morada.32
Quanto à altura, as casas térreas foram mais frequen-
tes que os sobrados. Geralmente, a planta da vivenda tinha
forma de “U”. Quase sempre possuíam um pátio central ou
lateral – recinto descoberto no interior da construção. Tanto
no norte quanto no sul da província do Rio Grande, indepen-
dentemente das formas de organização dos ambientes, nas
sedes se sobressaíam plantas tendendo ao quadrado. A maio-
ria das moradas foi erguida em alvenaria de tijolos cozidos;
depois, em menor número, de pedras. Em ambas as locali-
zações construiu-se com pau-a-pique e, no Planalto, também
com madeira. Nenhum registro existe sobre a taipa de pilão.
Portanto, a técnica, utilizada em São Paulo, não teve influên-
cia no Planalto Médio nem alcançou a área da fronteira meri-
dional. Raro foi o uso desta técnica construtiva no Sul.33
Em relação à distribuição interior, a vivenda estancieira
pode ser classificada em três grupos. O primeiro apresenta
um arranjo semelhante à casa urbana de morada inteira, em
que uma circulação central organiza a distribuição, condu-
zindo desde a entrada, ao longo dos compartimentos até uma

31
GUTIERREZ, Ester Judite Bendjouya. Arquitetura rural do planalto médio.
Apud SILVA, Velhas fazendas sulinas... p. 19-20.
32
Id.
33
Id.

186 Ester J. B. Gutierrez


sala posterior geralmente ampla. O segundo, sem circulações
especializadas, pode ser subdividido em dois grupos: os pavi-
lhonares, com os compartimentos dispostos sequencialmen-
te e a circulação através dos mesmos, às vezes enfilade, ou
seja, formalmente alinhados; ou ainda com planta tendendo
ao quadrado, no qual o corpo central distribuidor é composto
por uma ou mais salas contíguas, ou por duas salas interme-
diadas por compartimentos e circulação. Um terceiro grupo,
mais híbrido, pode ser definido como formado por casas em
que coexistem as duas situações anteriores.34
As sedes das propriedades que se localizavam no ambien-
te das guerras da fronteira constituíam uma espécie de refúgio
do caos ocasionado pelas constantes disputas e revoluções e,
eventualmente, contra os trabalhadores escravizados. Foram
erguidos volumes densos, fortes, de paredes grossas, de pou-
cos traços e de muito corpo, onde o cheio predominava sobre o
vazio; a massa, sobre o espaço. Dentro desse universo diverso
de construções, na região próxima à fronteira sulina destaca-
se um tipo de edificação original, a “estância fortificada”.

As estâncias fortificadas: Jaguarão - RS


Na fronteira meridional do Rio Grande do Sul, junto ao
Uruguai, o município de Jaguarão possui considerável núme-
ro de estâncias distribuídas ao longo do seu território, algu-
mas originárias de sesmarias e/ou posses; outras, de guardas
e/ou acampamentos militares. As fazendas deste município
conservam, predominantemente, a linguagem luso-brasilei-
ra; muitas das intervenções atuais e não tão recentes tendem
a reforçar a linguagem do período colonial, expressa por meio
do estilo neocolonial. Uma diferença de algumas das proprie-
dades neste município é a sua implantação, não no alto da
coxilha, como seria o usual desses estabelecimentos, mas pró-

34
LUCCAS, Luís Henrique Haas. Estâncias e fazendas: uma contribuição ao estudo
da arquitetura tradicional riograndense. Disponível em: <http://www.vitruvius.
com.br/arquitextos/arq000/esp363.asp.> mar. 2006. Acesso em: 10 jun. 2009

Estâncias fortificadas 187


ximo à água. Esse fato fica bastante evidente, sobretudo, na
estância dos Bonitos: na beira do rio Jaguarão, estava a sede
da área pastoril e também de uma charqueada. (Fig. 13).
Em meio a essas propriedades, foram identificados ele-
mentos da arquitetura militar em duas moradas; por isso, es-
sas propriedades foram chamadas de “estâncias fortificadas”.
Para a arquiteta e urbanista Glenda Pereira da Cruz, essas
fazendas se constituem em um dos espaços característicos da
região da campanha e, segundo alguns historiadores, assumi-
riam formas tão sólidas e impenetráveis como uma maneira
de compensar o precário sistema de fortificações do Rio Gran-
de do Sul.35 Os prédios serviam e representavam o avanço
territorial português.
Em geral, esta arquitetura tem características que incor-
poram ao seu conjunto elementos que podem ser os mirantes,
os fortins com seteiras e os muros de proteção. Os mirantes
permitiam a proteção e controle da propriedade; os fortins
seriam como as torres, podendo ter mirante e seteiras, rasgos
verticais para a colocação de armas de fogo para defesa.

Fonte: Intendencia Municipal de Jaguarão. Apontamento para uma monografia de Jaguarão.


1912. 2ª Exposição Agropecuária. Porto Alegre.

Figura 13 – Foto da Fazenda da Glória em 1912

35
PEREIRA DA CRUZ, Glenda. Processo de urbanização do Rio Grande do Sul.
Cadernos de Arquitetura da FAU , Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1994. p. 112

188 Ester J. B. Gutierrez


A sede da estância do Juncal: Jaguarão - RS
A estância do Juncal, localizada próxima à lagoa Mirim e
ao arroio Juncal, constitui uma estância fortificada (Fig. 14).
Tem feição de pequeno forte, pesado e compacto; é um prédio
murado com pontos de guarda nas duas partes opostas do
frontispício principal. Parte da edificação apresenta um se-
gundo pavimento, que poderia funcionar como uma espécie
de mirante. Em razão do terreno extremamente plano, o com-
partimento assobradado possibilita uma visão de 360 graus
da área.

Fonte: Rodrigo Osório, 2009.


Figura 14 – Vistas externas da Fazenda do Juncal

O lado que dá frente à lagoa Mirim originalmente pos-


suía apenas uma única abertura – possivelmente o acesso
principal. (Fig. 15) A vista geral possibilitada pelo segundo
pavimento e a parede quase cega de frente para a água po-
diam permitir que se avistasse a chegada dos castelhanos por
via lacustre, enquanto as janelas, voltadas para as faces opos-
tas, permitiriam uma visualização parcial da propriedade pe-
los moradores da vivenda, de forma mais protegida.

Estâncias fortificadas 189


??????

Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 15 – Vistas do pátio interno da Fazenda do Juncal

A casa foi construída com uma planta em forma de “U”,


coberta com telhas de barro tipo colonial. No mirante, o te-
lhado tem quatro águas; na parte térrea, três. Anexas, pos-
sui duas construções cobertas por um único lance, com uma
espécie de beiral falso voltado para a parte externa. É uma
construção fechada e maciça.
Em razão dafalta de resquícios aparentes de outros pré-
dios do conjunto, como galpões, casa de hóspedes, cozinha
suja, é viável supor que algumas dessas funções se encontra-
vam anexas ou se valiam das construções de uma água que
compõe a fortificação. O prédio principal teve acréscimo pela
parte interna do muro. A estrutura aparente do telhado, tan-
to no alpendre existente no anexo lateral como na parte dos
fundos do edifício principal, dá indícios de que esta última
tenha sido também um alpendre. Isso é reforçado pelo algibe
existente no pátio interno, que recolhia as águas dos telhados.
(Fig. 16)

190 Ester J. B. Gutierrez


??????

Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 16 – Vistas externas da Estância São João

A fachada se mostra simplificada, apresentando uma ci-


malha sob o beiral e molduras nas esquadrias. Os vãos são
relativamente grandes; as vergas, retas. As janelas de guilho-
tina com caixilhos de vidros pequenos têm postigos. Há uma
mureta de balaústres acrescentada posteriormente. Recente-
mente, foram colocadas mais aberturas, tanto portas como
janelas, bem como modificadas as existentes.
Internamente, em virtude de algumas alterações e acrés-
cimos, sem um levantamento físico-espacial e um estudo mais
detalhado, não é possível identificar a destinação dos compar-
timentos. A organização interna leva a crer que existia uma
sala central ladeada por dois quartos. Em um deles existe a
escada, bastante precária, de difícil acesso, que leva ao pavi-
mento que servia de mirante.
Quanto às técnicas construtivas, as paredes são de alve-
naria de tijolos cozidos assentados com barro; o telhado tem
estrutura de madeira com telhas de barro capa e canal. O
forro é em madeira simples com tábuas assentadas. O gal-
pão existente atualmente não parece pertencer ao conjunto
inicial, principalmente pela sua localização, obstruindo uma
parte da visão das guardas nas seteiras localizadas nas qui-
nas opostas. De maneira geral, pode-se se perceber que se tra-

Estâncias fortificadas 191


ta da construção original, concentrando quase todas as suas
partes dentro do espaço intramuros.

A sede da estância São João: Jaguarão - RS


Em entorno semelhante ao da morada principal da es-
tância do Juncal, a São João também está situada em terreno
extremamente plano próximo ao rio Jaguarão. (Fig. 17) A pro-
priedade pertencia a outra maior, de mesmo nome – fazenda
São João do Rincão de Jaguarão e Juncal –, cuja sede seria a
atual estância dos Bonitos, sendo a São João um dos postos
avançados desta.

??????

Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 17 – Vistas internas da Estância São João

A casa que existia primitivamente foi refeita e aumenta-


da. É possível que a atual tenha sido construída aproveitando
a estrutura dos tempos coloniais. Não tão modificada, a torre
permaneceu com o mirante. A sede em si possui caracterís-
ticas posteriores, do final do século 19, como porões altos e
elementos decorativos.
A torre com o mirante confere à construção uma volume-
tria diferenciada das demais fazendas, uma construção sólida

192 Ester J. B. Gutierrez


com um elemento agregado a sua forma: a planta da sede é
retangular, e a do mirante, hexagonal. Parece não haver rela-
ção volumétrica ou princípio organizador entre um e outro, o
que reforça a hipótese da construção em períodos diferentes.
A última alteração foi por volta do ano 2000.
Próximo à sede, um antigo galpão existia nos fundos.
(Fig. 10). O anexo existente é de um período mais recente e
abriga, atualmente, a cozinha, a despensa e algumas salas.
Possui uma planta retangular, cuja visualização foi altera-
da pelos acréscimos. O mirante encontra-se na parte frontal,
num extremo da construção. A cobertura do corpo principal
em telha colonial possui quatro águas. Hoje, as fachadas têm
decorações, como pilastras e molduras com cimalhas simpli-
ficadas nas janelas. As esquadrias foram modificadas, outros
vãos foram abertos, inclusive no mirante, e os novos anexos
construídos receberam aberturas de configuração semelhan-
te à da construção principal.
A planta da vivenda apresenta indícios de que a sua
configuração primitiva tenha sido de morada inteira, com
os compartimentos organizados por um corredor central. A
distribuição interna seria uma sala frontal, com o corredor
organizando os compartimentos, estes provavelmente quar-
tos. A organização foi bastante transformada: paredes foram
retiradas, um banheiro foi colocado; recebeu uma lareira e
os porões foram, em parte, fechados. O mobiliário atual é ex-
tremamente rico. No inventário do antigo proprietário foram
listadas diversas mobílias, mas, como corresponderia a uma
propriedade maior, não é possível identificar o que perma-
nece nesta sede. (Fig. 18) Quanto às técnicas construtivas,
apresenta paredes espessas de tijolo maciço, assentado pro-
vavelmente com barro; tem forro em madeira trabalhado e
piso de madeira na parte da frente e cerâmico nos fundos da
vivenda.

Estâncias fortificadas 193


??????

Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 18 – Vistas externas dos fortins da Fazenda do Juncal

Os fortins das estâncias do Juncal e São João


Os fortins são bastante representativos das estâncias
fortificadas. A fim de permitir uma visualização ampla do
terreno à sua volta, com formas circulares ou seccionadas, os
fortins ou torres se constituem em corpos que se sobressaem
aos demais. Um elemento bastante marcante são as seteiras.
Na estância do Juncal, o fortim faz parte do conjunto, da orga-
nização da sede; na Estância São João, aparece como um ele-
mento agregado. Ambos estão ligados à moradia por muros.
O fortim da estância do Juncal tem configuração que
lembra uma caverna; a construção, fornos de rua. Tem forma-
to arredondado e ovalado na parte superior, é simplificado e
rústico. Encontra-se em mau estado de conservação, com raí-
zes de plantas crescendo entre as paredes e a cobertura. (Fig.
19). A falta de reboco revelou a técnica construtiva utilizada
na edificação: tijolos assentados com barro. Um beiral arre-
matado por uma cimalha acompanha o perímetro da torre,
solução idêntica ao restante da residência. (Fig. 20)

194 Ester J. B. Gutierrez


??????

Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 19 – Vistas internas de fortim na Fazenda do Juncal, mostran-


do a técnica construtiva

??????

Fonte: Rodrigo Osório, 2009.

Figura 20 – Vistas do fortim da Estância São João

Estâncias fortificadas 195


O fortim da estância São João apresenta uma estrutura
mais complexa, com uma técnica construtiva mais elaborada.
Tem a forma próxima à hexagonal; na parte inferior se locali-
zam as seteiras, algumas das quais atualmente se encontram
fechadas, e na parte superior, o mirante, com janelas. (Fig.
21) As aberturas eram em menor número; atualmente exis-
tem vãos em todas as faces, aumentando a proporção entre os
vazios e os cheios. Internamente, uma escada metálica subs-
tituiu a de madeira. Possui telhado com as águas caindo para
todas as faces; recebeu ornamentação em sua fachada, por
meio de uma cimalha e pilastras marcando as arestas.

A escravidão nos campos de Jaguarão


O olhar mais de perto
Com base na apreciação de seis inventários em que fo-
ram arroladas terras em Jaguarão, neste texto pretende-se
refletir sobre o trabalho escravizado de homens e mulheres
nas estâncias.36 Para isso, foi utilizado o arrolamento dos bens
inventariados, buscando relacionar e identificar as condições
do trabalho cativo. Com os dados coletados foi elaborada a
Tabela 1.

36
Sobre escravidão em Jaguarão ver: CARATTI, Jônatas. Experiências de escra-
vidão e liberdade na fronteira Oeste do Rio Grande do Sul (1842-1860). In:
Anais da VI Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre: Corag, 2008; Apreensão, venda e extradição: experiências
de uma crioula oriental em terras sul-rio-grandenses (1842-1854) In:Anais da
V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: Corag, 2007.

196 Ester J. B. Gutierrez


Estâncias fortificadas

Tabela 1 – Quadro de bens inventariados de seis estancieiros em Jaguarão. RS (1816-1865)

Vacas leiteiras
Proprietário

Novilhos

Ovelhas
Cavalos

Capões

Imóveis
Cativos

Potros
Éguas
Reses
Inventariados

Bois

Ano
Manoel Amaro da Silveira 54 17400 - 20 - - 400 30 - 300 06 1824
Francisco de Faria Santos 07 145 - 14 - 14 40 - - - 01 1816
Ignácio José de Leivas 10 400 50 50 - 40 40 - - 202 01 1818
Joaquim Manoel Porciúncula 13 1135 - 45 03 - 267 - 03 200 03 1832
Ignácio Felix Feijó 08 1800 - 18 - 20 300 - - 300 03 1823
Francisco José Gonçalves da Silva 32 461 - 09 - 30 321 - - 200 15 1865
Fonte: Apers. Jaguarão. Cartório Órfãos e Ausentes. Seis inventários.
197
Na Tabela 1 a relação dos proprietários seguiu a ordem
de distribuição físico-espacial dos imóveis rurais. As terras
que foram de Manoel Amaro da Silveira hoje pertencem ao
município do Herval; as demais continuam em Jaguarão.
As propriedades de Francisco Faria Santos, Ignácio José de
Leivas e de Joaquim Porciúncula eram contíguas e estavam
implantadas a oeste da área urbana. A de Faria Santos lo-
calizava-se no encontro dos arroios Telho Chico e Quilombo,
exatamente na bifurcação onde estes dois cursos de água
engrossam e contribuem para o arroio do Telho. Os campos
da família Leivas situavam-se entre os arroios do Meio e do
Telho; os de Joaquim, entre o arroio do Meio e o rio Jaguarão.
As duas últimas propriedades, a de Ignácio Félix Feijó e a
de Francisco José Gonçalves da Silva, instaladas a leste da
área urbana, eram banhadas pela lagoa Mirim e chamadas
de estâncias do Juncal e São João, onde permanecem os dois
fortins apresentados anteriormente. (Fig. 2).
Entre os proprietários rurais do Rio Grande do Sul, Ma-
noel Amaro da Silveira foi considerado a maior fortuna inven-
tariada.37 Seus pais eram açorianos, talvez tenham chegado
com a segunda leva de emigrantes, por volta de 1746, à atual
Porto Alegre, antigo Porto dos Casais. Manoel casou com Ma-
ria Antônia Muniz, natural de São Carlos de Maldonado, na
Banda Oriental do Uruguai, filha de Jerônimo Muniz, fidalgo
português.38 Primeiro, em 1816, Maria Antônia teve conces-
são de sesmarias; depois, no ano seguinte, foi a vez de Manoel
recebê-las.
No final da vida era proprietário de 54 escravos e dono de
muitas terras. Foram inventariadas sete propriedades rurais.
A primeira da lista era uma sesmaria de campo situada na
serra de Santa Maria, distrito da freguesia de Piratini, com

37
OSÓRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros lavrado-
res e comerciantes. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2007, p. 273.
38
MEDEIROS, Manoel da Costa. História do Herval: descrição física e histórica.
Porto Alegre: Escola Superior de São Lourença de Brindes, 1980, p. 295.

198 Ester J. B. Gutierrez


uma légua de frente (6.600m) por duas de fundo (13.200 m).
Aí foi construída uma casa de paredes de pedras, coberta de
capim e plantada uma quinta com arvoredo. A segunda, situ-
ada no serro do Baú, no distrito da mesma freguesia, possuía
meia légua de frente (3.300 m) e cinco quadras de fundo (660
m). Este foi o lugar que Maria Antônia escolheu para viver
com Manoel, provavelmente por ter recebido como herança
paterna.39 A “morada de casas de vivenda” do casal era de
paredes de alvenaria de pedras e coberta de telhas de barro.
Nessa propriedade, para despejo, havia outra casa menor er-
guida com iguais técnicas e materiais.
A terceira, igualmente, localizava-se no mesmo distrito.
Manoel, junto com seu irmão Francisco, comprou um pedaço
de campo. Sua parte media uma légua de frente (6.600 m) e
uma e meia de fundo (9.900 m). A quarta propriedade ficava
na Forqueta de Jaguarão, no Rincão dos Órfãos, possuindo
uma légua de frente (6.600 m) e três de fundo (19.800 m). A
quinta propriedade ficava nas cercanias do antigo estabele-
cimento do pai de Maria Antônia; localizada no serro de São
Jerônimo, tinha duas léguas de frente (13.200 m) e uma de
fundo (6.600 m). A casa de morada era coberta de capim; sua
cozinha, de madeira, e o curral, de pau. A sexta propriedade
arrolada, com uma légua de frente (6.600 m) e duas de fundo
(13.200 m), situava-se no Passo do Melo, na freguesia de Pira-
tini. A última, em São José, também em Piratini, media uma
légua de frente (6.600) e duas de fundo (13.200) e continha
três mangueiras de madeira e um rancho de palha.
Das casas de Manoel e Maria Antônia apenas as duas
localizadas nas terras que viviam tinham telhas de barro; as
outras três eram cobertas com palha. Os quinze herdeiros
herdaram poucas moradias e muitíssimas terras, um total de
546.678.000m2, ou seja, os quase 55.000 ha que o casal deti-
nha.

39
Id.

Estâncias fortificadas 199


No rol dos trabalhadores escravizados por Manoel da
Silveira, 26 eram campeiros; quatro, lavradores; três, sapa-
teiros; um, carpinteiro; um, aprendiz de carpinteiro; um, al-
faiate. Dez cativos não tiveram sua ocupação designada, as-
sim como as que eram do sexo feminino. Eram oito mulheres,
duas mais velhas, com 50 e 48 anos, respectivamente, Gertu-
dres, crioula, e Joana, Benguela; depois vinham Tomázia, mu-
lata, com 27, e Joana da Costa, com 22 anos. As demais ainda
não tinham alcançado a idade adulta. Chamavam-se Brígida,
crioula, de 15; Clemência, crioula, de 12, Feliciana, de nove,
e Laurinda, de sete. Neste plantel havia mais uma criança,
Bernardo, de 12 anos.40 No total, as crianças não chegavam
a 10%; as mulheres não alcançavam 5%. As tarefas pastoris
eram tradicionalmente desempenhadas por homens. Esses
dados captam a eventual despreocupação do proprietário com
a reprodução vegetativa de seus cativos e a constituição de
famílias, num momento em que a exploração encontrava-se
estabilizada. Quando ao rebanho, contaram-se 17.400 reses
de rodeio, quatrocentas reses mansas, quatrocentos cavalos
mansos, trinta potros inteiros, vinte bois mansos, duzentas
éguas de rodeio, duzentas éguas alçadas e trezentas ovelhas.
Se apenas os 26 cativos campeiros se ocupavam do gado, sem
a ajuda permanente de peões, não arrolados nos inventários,
teríamos em torno de 710 animais por trabalhador pastoril.
Não restam dúvidas de que os números da riqueza desse pro-
prietário são significativos em relação ao Rio Grande do Sul.

As estâncias junto ao arroio Telho


Em 1815, Francisco de Faria Santos recebeu terras. Um
ano depois, abriram seu inventário,41 no qual foi arrolado um
40
APERS. Jaguarão. Cartório de Órfãos e Ausentes. Manoel Amaro da Silveira,
1824. Inventariante: Vasco Amaro da Silveira. Estante 97, Maço 4, Nº 76.
41
APERS. Jaguarão. Cartório de Órfãos e Ausentes. Inventário de Francisco
de Faria Santos, 1816. Inventariante: Maria S. da Silva. Estante 97, Maço 2,
Nº 37.

200 Ester J. B. Gutierrez


rincão de campos que tinha mais ou menos um quarto de lé-
gua (1.650 m) na freguesia do Serrito, com suas benfeitorias.
O rebanho era composto por 145 reses mansas, oito bois man-
sos, seis bois carreiros e duas manadas de éguas com quaren-
ta animais. Como mão-de-obra havia sete cativos, dos quais
cinco eram adultos, com idades entre vinte e quarenta anos:
Antônio da Costa, Miguel Benguela, João Congo, Rita (de na-
ção) e Maria Quisana. Não se anotaram as suas ocupações.
Considerando a presença de gado vacum, esses trabalhado-
res, especialmente os do sexo masculino, deveriam tratar dos
animais. Quanto a lavouras ou roças, não havia registro no
inventário de meios de produção para tal finalidade, embo-
ra conste a existência de bois mansos, que geralmente eram
utilizados para arar. As outras duas cativas arroladas eram
crianças: Elena Mulata, que tinha quatro anos de idade, e Sil-
vina Mulata, de apenas um ano. Pode-se verificar que nessa
estância havia uma reprodução do plantel cativo, visto que
duas crianças foram arroladas entre os escravizados, possi-
velmente filhas de Rita e/ou Maria, que tinham idades de
trinta e quarenta anos, respectivamente.
Dos cinco cativos em idade de trabalho – uma escrava-
ria acima da média –, todos eram africanos – três homens
e duas mulheres. Se a fazenda fora organizada havia pouco,
não é certo que conhecessem o trato com os animais. Confor-
me o historiador Mário Maestri, o trabalhador africano novo
conhecia a criação bovina, mas ignorava o pastoreio extensivo
realizado por homens montados a cavalo, pois em algumas
regiões da África o cavalo era monopólio das elites guerreiras.
O processo de aprendizagem das lides campeiras é complexo
e longo; assim, um africano que chegasse com 14 de anos de
idade ao Sul dificilmente se tornaria um peão antes dos vinte
anos. Além dessa dificuldade, havia outros empecilhos, como
os problemas da língua e a adaptação à nova condição de es-
cravo. Por isso, nas fazendas pastoris possivelmente havia

Estâncias fortificadas 201


um privilégio no uso de escravos crioulos nascidos em zonas
rurais, já que as tarefas de um peão eram ensinadas às crian-
ças a partir de oito anos de idade.
Os escravizados africanos também estavam envolvidos
nessas práticas, mas naquelas regiões de ocupação e de cons-
tituição recente da produção pastoril em que os criadores en-
frentavam uma escassa mão-de-obra livre, sendo necessário
adquirir cativos como força de trabalho nas tarefas pastoris.
Assim, é provável que na estância de Francisco de Faria dos
Santos, que era uma ocupação recente, do início do século XIX,
as atividades possivelmente estivessem relacionadas com a
exploração agrícola. O quase-equilíbrio sexual do plantel ca-
tivo também indica tal situação, além de que havia pouco re-
banho, cerca de 160 animais, que deveriam ser usados para a
alimentação da família, dos cativos e dos eventuais peões.42
Ignácio José de Leivas recebeu a sesmaria em 1815.
Após três anos, em 1818, realizou-se seu inventário.43 Tinha
uma sesmaria de légua e meia de campo na costa do arroio
do Telho. O rebanho estava constituído de quatrocentas re-
ses de criar, cinquenta vacas leiteiras, 24 bois lavradores, 26
bois carreiros, quarenta cavalos mansos, quarenta éguas em
duas manadas, 202 ovelhas. Nesta estância, diferentemente
da anterior, havia quatro ferros de arado, duas pedras para
moinho, que deveriam ser utilizadas para moer farinha, mi-
lho e mandioca, plantas possivelmente cultivadas na estân-
cia. Acrescido do registro de 24 bois lavradores, reforçou-se
a presença de plantações, como atividade talvez dominante,
como sugere o importante número de cativos, em relação aos
animais vacuns. Somaram-se, ainda, as vacas leiteiras, que
forneciam produtos para consumo de subsistência e comercia-

42
MAESTRI, Mário. O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do
Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: Ed. UPF, 2008, p. 228-231.
43
APERS. Jaguarão. Cartório de Órfãos e Ausentes. Inventário de Inácio José de
Leivas, 1818. Inventariante: M S. Assunção. Estante 97, Maço 2, Nº 44.

202 Ester J. B. Gutierrez


lização. Também pode ser feita a vinculação entre a presença
de ovelhas e um tear velho em seus pertences.
Nesta estância, havia dez trabalhadores escravizados,
dos quais quatro eram homens e adultos, com idades entre
16 e 35 anos: Domingues Benguela, João Congo, Antonio Ca-
binda e Fortunato Crioulo. Esses cativos trabalhariam como
lavradores, utilizando os bois, os arados e outros equipa-
mentos para a lavoura, e desempenhariam, talvez o crioulo,
atividades criatórias – como campeiro e amansador, já que
existiam bois carreiros, que estavam em processo de domes-
ticação. Ainda havia uma cativa adulta, Joaquina Maquimbé,
e crianças de idades entre um e sete anos, quatro meninos
e uma menina. Joaquina poderia trabalhar na lavoura, re-
alizando alguma colheita e, quiçá, no tear. Apesar do forte
desequilíbrio sexual da escravaria, como nas propriedades
anteriores, o plantel conhecia também importante reprodu-
ção natural, com cinco crianças. Nesta estância a presença de
escravos africanos está relacionada à atividade agrícola que
foi evidenciada a partir dos bens arrolados no inventário.
Joaquim Manoel Porciúncula recebeu a sesmaria em
1815, e seu inventário foi aberto em 1832.44 Na área urbana,
possuía uma morada de casas na rua Direita e um terreno
“pegado”. Tinha um campo com um terreno de três léguas
(19.800 m), com pomar com árvores frutíferas, entre as quais
laranjeiras, uma casa velha de tijolo, uma casa pequena tam-
bém de tijolo, coberta de telhas. Alguns animais e cativos es-
tavam com os herdeiros, sendo somados aos bens do inventa-
riado. Possuía 1135 reses de criar, três novilhos, três capões,
45 bois, 267 éguas xucras e 200 ovelhas. Os trabalhadores
escravizados exerciam ocupações nesses imóveis, porém não
foi possível analisar quais especificadamente. Dos 14 cativos
arrolados, cinco estavam com os herdeiros; dentre os últimos
44
APERS. Jaguarão. Cartório de Órfãos e Ausentes. Inventário Joaquim Manoel
Porciúncula, 1832. Inventariante: Perpétua Felícia Gomes. Estante 97, Maço 6,
Nº 119.

Estâncias fortificadas 203


estava uma única mulher: Tereza, trinta anos, que servia à
herdeira Luciana. De cinco não foi registrada a ocupação e
igual número foi anotado como campeiro, dois como pedreiros
e um como sapateiro. Do total havia dois crioulos, dois afri-
canos, e sobre oito não havia informações. Os africanos eram
Joaquim Congo, de 26 anos, sem ocupação designada, e José
Mina, que tinha 70 anos e era campeiro. Observou-se que es-
tava quebrado. Pela idade avançada, José Mina deveria ter
experiência nas atividades pastoris, quiçá havia trabalhado
em outras fazendas antes de chegar à estância de Joaquim
Manoel Porciúncula. Neste caso, tratava-se, é crível, de em-
preendimento com clara vocação pastoril, realidade igual-
mente sugerida pela muito alta taxa de masculinidade.

As estâncias, com os seus fortins, junto


à Lagoa Mirim
As terras de Inácio Felix Feijó foram concedidas em
1814. Inácio Felix Feijó tinha nascido na Colônia do Sacra-
mento, em 1763. Trinta anos depois, casara-se com Ana Ma-
ria Joaquina dos Santos em Rio Grande. Em 1823, foi aberto
seu inventário,45 onde se arrolaram três bens de raiz: uma
sesmaria de campo, provavelmente medindo 13.068 ha, em
Jaguarão, com casa de vivenda coberta de capim com galpão;
uma casa com cozinha coberta de capim na área urbana por-
tuária e um terreno na mesma localidade. Quanto ao rebanho,
tinha 1800 reses de criar, dezoito bois mansos, vinte cavalos
mansos, trezentas éguas e trezentas ovelhas, que possivel-
mente estavam na sesmaria onde trabalhavam oito cativos
– sete homens e uma mulher. João Rebolo, M.Vicente Congo,
José Rebolo, Joaquim Rebolo, Antonio Costa, Lazaro Mulato
e a cativa Maria dos Santos tinham idades entre 16 e 50 anos.

45
APERS. Jaguarão. Cartório de Órfãos e Ausentes. Inventário de Inácio Felix
Feijó, 1823. Inventariante: Anna dos Santos Feijó. Estante 97, Maço 4, Nº 71.

204 Ester J. B. Gutierrez


O mais valorizado foi Lazaro Mulato, trinta anos, anotado
como carpinteiro; em segundo lugar estava Joaquim Rebo-
lo, trinta anos, registrado como campeiro. Portanto, entre as
estâncias aqui apresentadas, nesta se destacam um grande
número de reses e uma quantidade significativa de ovelhas
e éguas. Todavia, o número de cativos não difere. Tratava-se
possivelmente de estância com vocação pastoril – dois cativos
campeiros, alta taxa de masculinidade –, à qual se associava
eventualmente a agricultura ou outra atividade.
Francisco José Gonçalves da Silva46 teve seu inventário
aberto em 1865, onde foram arrolados 32 cativos e listadas
15 propriedades. Além do campo e da charqueada que pos-
suía na área rural de Jaguarão, estavam anotadas moradas
de casas, armazéns e terrenos, sobretudo na área portuária
de Jaguarão, mas também no porto de Pelotas. Seu rebanho
era composto de 461 reses, 9 bois, 30 cavalos, 321 éguas e
200 ovelhas. O número maior de trabalhadores escravizados
deve-se à existência da salga de carnes. A análise da popula-
ção escravizada deste estancieiro será realizada de maneira
mais detalhada a seguir neste trabalho.

A escravidão na estância e
charqueada São João
Com os cativos arrolados no inventário Francisco José
Gonçalves da Silva foi realizada a Tabela 2.

46
APERS. Jaguarão. Cartório de Órfãos e Ausentes. Inventário de Francisco José
Gonçalves da Silva e sua mulher Maria Joana Gonçalves Braga. 1865. Inventa-
riante: João Francisco Gonçalves e outros. Estante 98, Maço 2, Nº 72.

Estâncias fortificadas 205


Tabela 2 – Quadro dos cativos arrolados no inventário de Francisco
Gonçalves da Silva e de sua mulher Maria Joana Gonçal-
ves Braga (1865). Jaguarão - RS
Nome Ocupação Valor
1. Raimundo (pardo) Alfaiate 1500
2. Felipe (crioulo) - 1500
3. Baltazar Carpinteiro e campeiro 1500
4. Clementino (pardo) - 1500
5. Venância (parda) Cozinheira 1500
6. Raquel (parda) - 1500
7. Caetano (crioulo) - 1400
8. Clara (crioula) - 1400
9. Gabriel Salgador 1400
10. José (crioulo) - 1000
11. Virginia (crioula) - 1000
12. Moisés (crioulo) - 800
13. Ambrósio (crioulo) Campeiro 800
14. Florisbela e seu filho de três anos - 800
(ambos)
15. Joaquim Luiz (crioulo) - 600
16. Isabela (crioula) - 400
17. Sebastiana (crioula) - 600
18. Antonio (crioulo) - 400
19. Gregório (crioulo) - 300
20. Julia (crioula) - 400
21. Vicente (da Costa) - 650
22. Patrício (crioulo) - 700
23. Leandro (crioulo) - 800
24. Quitéria (crioula) - 400
25. Regina (crioula) - 700
26. Aníbal (crioulo) - 700
27. Olímpia (crioulo) - 600
28. Balbina (mulatinha) - 400
29. Frederico (crioulo) - 400
30. Madalena (crioula) - 700
31. Agueda - 800
Fonte: Apers. Jaguarão. Cartório de Órfãos e Ausentes. Inventário de Francisco José Gon-
çalves da Silva e sua mulher Maria Joana Gonçalves Braga. 1865. Inventariante: João
Francisco Gonçalves e outros. Estante 98, Maço 2, Nº 72.

206 Ester J. B. Gutierrez


O inventário anotou um total de 37 trabalhadores escra-
vizados. Seis foram libertos; 19 estavam com o casal; 13, dis-
tribuídos entre os herdeiros. Do total, 62,5% eram homens e
37,5%, mulheres. Apesar de não terem especificado as idades,
considerando a presença feminina, é factível a presença de
crianças. Não há no inventário uma divisão dos trabalhado-
res por unidades produtivas. Apenas a parda Venância teve
sua ocupação designada: era cozinheira e estava junto com
o casal; é possível, então, que realizasse suas atividades na
casa rural, onde residiam os inventariados. Seu preço equiva-
lia ao dos homens mais valorizados.

Áreas portuárias
Além das terras rurais situadas a leste da cidade, no en-
contro da foz do rio Jaguarão com a lagoa Mirim, Francisco
José era dono de três moradas de casas, dois armazéns e três
terrenos na área urbana de Jaguarão. Todos esses imóveis
estavam localizados nas proximidades da praça da Marinha,
área portuária de Jaguarão. Era um local estratégico, pois
desde cedo a localidade teve grande parte de seu desenvol-
vimento a partir do comércio, realizado pelas embarcações.
Os dois armazéns que Francisco possuía remetem à possibi-
lidade de ser comerciante, já que a praça da Marinha era um
local propício ao comércio. Em Pelotas, tinha quatro terrenos
e uma morada de casas localizadas na zona do porto. Nesses
locais, os cativos talvez carregassem mercadorias. Possivel-
mente, alguns dos trabalhadores escravizados que estavam
junto aos herdeiros fizessem esse serviço. Ressalta-se a prefe-
rência por terrenos junto aos portos, por onde chegavam sal,
novos cativos e produtos manufaturados, e saíam o charque e
seus subprodutos.
Os cativos de Francisco José Gonçalves da Silva pode-
riam trabalhar na área portuária de Jaguarão e de Pelotas,
nas moradias urbanas, na charqueada, na estância, nos pos-

Estâncias fortificadas 207


tos. É factível imaginar que na época da manufatura das car-
nes Francisco José reunisse a maioria dos homens para tra-
balhar na matança. Por ocasião do inventário foram libertos
Joaquim Moçambique, Pedro Congo, Agostinho Africano, Ri-
cardo Pardo, Leonor Parda e Juliana Africana. Outro fato que
merece ser destacado foi o caso de Florisbela e de seu filho,
que foram avaliados juntos no inventário, situação que não
se repete com os demais analisados, entre os quais as crian-
ças foram avaliadas separadamente. Segundo a historiadora
Beatriz Eifert, geralmente nos inventários as crianças eram
partilhadas sem a companhia das mães e, às vezes, eram doa-
das como dotes de casamentos às filhas dos fazendeiros.47
Com base nos inventários analisados, pode-se perceber
que as principais atividades desenvolvidas nas estâncias
eram a pecuária e a agricultura, variando os rebanhos entre
145 e 17.400 reses de criar, como no caso de Manoel Ama-
ro da Silveira. Além disso, foi possível encontrar indícios da
existência de lavouras e roças, especialmente na estância de
Ignácio José de Leivas. A maioria dos cativos não teve sua
ocupação descrita nos inventários. Entretanto, a partir dos
bens inventariados, é possível relacioná-los às atividades que
poderiam exercer. Desse modo, a ocupação dos cativos esteve
principalmente relacionada com as atividades de campeiro e
lavrador, embora se encontrem cativos como carpinteiros e
pedreiros e, em razão da existência de uma charqueada, há
um salgador. Neste estabelecimento havia outros cativos, que
deveriam executar atividades relacionadas ao charque, mas
no inventário não foram descritos como mão-de-obra especia-
lizada. Talvez realizassem diversas tarefas, não uma especí-
fica.

47
EIFERT, Maria Beatriz Chini. Marcas da escravidão nas fazendas pastoris de
Soledade (1867-1883). Passo Fundo: Ed. UPF, 2007, p. 90-91.

208 Ester J. B. Gutierrez


Dos seis inventários analisados neste trabalho foram ar-
rolados 124 trabalhadores escravizados, porém não é possível
analisar se todos trabalhavam nas estâncias, já que em al-
guns casos, como o dos escravos de Francisco José Gonçalves
da Silva, poderiam desempenhar suas funções tanto na estân-
cia São João quanto na área urbana e portuária de Jaguarão,
como também na sua charqueada. Entretanto, dos 29 bens de
raiz, 44%, aproximadamente, eram localizados na área rural.
Dos imóveis urbanos, havia moradas de casas, possivelmente,
algumas destinadas à locação, além de terrenos sem constru-
ções, o que pode indicar que nestes dois últimos casos não
tinha cativos trabalhando.
Outra característica das estâncias analisadas foi a alta
taxa de masculinidade nos plantéis. Dos seis inventários, em
quatro há uma superioridade masculina e, em dois, um certo
equilíbrio. Analisando as fazendas pastoris do Rio Grande do
Sul, Setembrino Dal Bosco afirma que havia um desequilíbrio
quantitativo na composição sexual da escravaria, visto que
os homens representavam aproximadamente 73% do plantel,
ou seja, uma taxa de masculinidade muito elevada, parti-
cularmente naquelas fazendas que também se dedicavam à
produção charqueadora. Essa situação pode ser compreendi-
da, segundo o autor, em parte pelo forte caráter africano dos
plantéis analisados, que refletiriam o desequilíbrio tradicio-
nal em favor do sexo masculino na importação de cativos da
África. No que se refere aos cativos pardos, mulatos e cabras,
havia uma proporção entre homens e mulheres de 1,3 cativos
para cada cativa, ao passo que entre os africanos a média era
de 7,8 homens para cada mulher.48
Maria Beatriz Eifert, ao analisar as fazendas pastoris em
Soledade, afirmou que das 21 estâncias pesquisadas, em nove
o percentual de cativos de sexo masculino foi maior que o de
48
BOSCO, Setembrino Dal. Fazendas pastoris no Rio Grande do Sul (1780-1889):
capatazes, peões e cativos. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal de Passo Fundo. Passo Fundo, 2008, p. 107-108.

Estâncias fortificadas 209


mulheres escravizadas; em outras nove, o número de cativas
superou a presença masculina e nas outras três ocorreu um
equilíbrio sexual. A taxa de masculinidade quase equiparada
à das cativas deve-se ao período analisado (1863-1883), pois
após 1850, com o fim do tráfico, tendeu-se para um equilíbrio
sexual nos plantéis cativos. A autora conclui que a popula-
ção escravizada nas fazendas foi de 113 cativos, distribuídos
em 21 propriedades, uma média de seis escravos. Desses, 27
eram menores de idade (zero a quatorze anos), representan-
do quase 24% dos escravizados. A mão-de-obra nas fazendas
analisadas, portanto, era fundamentada no trabalho de cati-
vos adultos.49
Nas estâncias de Jaguarão, a presença marcante de
africanos pode indicar que a alta taxa de masculinidade na
escravaria estava relacionada com sua origem no tráfico tran-
satlântico, como sugere Setembrino Dal Bosco, pois a maioria
dos inventários analisados tem data anterior ao fim do tráfi-
co.
Mais uma vez, verificou-se nos campos do extremo sul
do Brasil o trabalho escravizado nas diferentes tarefas. Igual-
mente, nas charqueadas, foi reafirmada a alta frequência de
homens dedicados à matança. Novamente foi sentida a falta
de cativos tropeiros, levando e buscando animais pelos pam-
pas no sul do Rio Grande.
O território situado no encontro da foz do rio Jaguarão
com a lagoa Mirim tem muito a ser investigado. Marcados
pelas guerras de fronteira, os avanços lusitanos deixaram as
suas marcas nesse cenário lacustre, de terra extremamente
plana. Na imensidão do horizonte do limite meridional do
Brasil, os fortins permanecem se sobressaindo na paisagem,
falando sobre o domínio das terras, do gado e dos escraviza-
dos.

49
EIFERT, ob. cit., p. 82.

210 Ester J. B. Gutierrez


Sobre o
Mato Grosso
Sobre os campos de Vacaria do
Sul de Mato Grosso
Considerações sobre terra e
escravidão (1830-1889)1

Maria do Carmo Brazil*

Limites historiográficos
Apesar de a produção pastoril ter sido praticamente a
base econômica de toda a história brasileira, paradoxalmente
é pequeno o fluxo de estudos historiográficos dedicados espe-
cificamente a essa atividade, mesmo naquelas regiões em que
desempenhou papel essencial, como no caso de Mato Grosso.
A historiografia brasileira sobre o tema não deixa dúvi-
da a respeito da importância da produção pastoril em nosso
passado.2 Apesar desse reconhecimento, em âmbito nacional,
e de vários autores terem abordado desde cedo tangencial-

* Docente do PPGH da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).


Doutora em História Social pela FFLCH/Universidade de São Paulo (USP).
1
Agradecimentos a Isabel Camilo de Camargo, mestranda do Programa de Pós-
Graduação em História/UFGD/MS. E-mail: mc.2708@hotmail.com.
2
C GÂNDAVO, Pero de Magalhães de. Tratado da província do Brasil. Rio de
Janeiro: INL/ Ministério da Educação e Cultura, 1965; SOUSA, Gabriel Soares
de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. 4. ed. São Paulo: CEN; Edusp, 1971;
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. 2. ed. Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000; SAL-
VADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Edusp, 1982; BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas
do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1977.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 213


mente essa questão, como apenas assinalado, a carência de
estudos sobre o tema é indiscutível.3
Essa lacuna historiográfica se reflete em Mato Grosso,
que não dispõe de uma produção mais refinada sobre o pro-
cesso de formação do latifúndio a partir da introdução, conso-
lidação e desenvolvimento da produção pastoril. Mais comu-
mente, a historiografia regional abordou a produção pastoril
mato-grossense nos seus aspectos gerais, compreendidos como
escassamente dinâmicos. Esse é caso dos estudos realizados
por Virgílio Correa Filho, dominantemente voltados para a
planície pantaneira, atrelados aos poderes constituídos e ex-
pressos nas obras Pantanais mato-grossenses (1946), Fazen-
das de gado no pantanal mato-grossense (1955), A propósito
do boi pantaneiro. Monografias cuiabanas (1926).4
Além de Correa Filho, temos alguns estudos isolados vol-
tados para áreas específicas do Pantanal, como os de Carlos
Vandoni de Barros e José de Barros Maciel. 5 São escritos rea-
lizados por descendentes de José de Barros, um dos fundado-
res da “dinastia de pioneiros”6 (nos dizeres de Pedro Calmon)
da região pantaneira e que contribuíram para nutrir o gênero
da biografia romanceada e as memórias por ordem crescente

3
Consultar por exemplo: GOULART, José Alípio. Transporte nos engenhos de
açúcar (1959); Meios e instrumentos de transporte no interior do Brasil (1959);
Tropas e tropeiros na formação do Brasil (1961); O cavalo na formação do Bra-
sil (1964); Brasil do boi e de couro (1965); O ciclo do couro no Nordeste (1965).
4
CORREA FILHO, Virgílio. Pantanais mato-grossenses – Devassamento e ocu-
pação. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/CNG,
1946. Biblioteca Geográfica Brasileira. Fazendas de gado no pantanal mato-
grossense- Documentário da vida rural n° l0 - Rio de Janeiro: Ministério da
Agricultura - Serviço de Informação Agrícola, l955. A propósito do boi panta-
neiro. Monografias cuiabanas, Rio de Janeiro: Pongetti, 1926.
5
BARROS, Carlos Vandoni de. Nhecolândia – Opúsculo escrito em comemora-
ção à Primeira Feira Agropecuária realizada na Fazenda Santa Rita, município
de Corumbá – atestado eloqüente da luta pelo progresso na riquíssima região
nhecolandense. Mato Grosso: [s.e.] 1934; MACIEL, Jose de Barros. A pecuária
nos pantanais de Mato Grosso: Tese apresentada ao 3º Congresso de Agricultu-
ra e Pecuária. São Paulo: Imprensa Metodista, 1922.
6
CALMON, Pedro - História da Casa da Torre - Uma dinastia de pioneiros. Li-
vraria José Olympio Editora,1958; BRAZIL, Maria do Carmo. (Revista)

214 Maria do Carmo Brazil


de interesses. Sobre a região de rio Brilhante e Sant’Ana de
Paranaíba, surpreendentemente arrolamos apenas o traba-
lho de cunho memorialístico de Hildebrando Campestrini e
Acyr Vaz Guimarães.7
A obra intitulada História de Mato Grosso do Sul, ao de-
dicar algumas páginas ao processo de ocupação dos Campos
de Vacaria e cercanias, serviu de base para estudos técnicos
da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embra-
pa). 8 A partir de sua obra germinal, Campestrini produziu
Sant’Ana do Paranaíba: dos caiapós à atualidade (1999),
com o objetivo de contribuir para a construção da história do
município, tendo como fundamento a trajetória das “famílias
pioneiras”.9 Vemos este trabalho como mais uma reprodução
do tradicional culto às classes proprietárias do passado, ain-
da tão comum na região, mas que não deixa de ser um ponto
de partida para análises científicas.
No rol de pesquisas acadêmicas dispomos de apenas dois
trabalhos dedicados à pecuária em Mato Grosso: um de auto-
ria de Luiz Miguel do Nascimento e outro de Paulo Marcos
Esselin.10 O primeiro trata-se do trabalho defendido em 1992
como dissertação de mestrado, sob o título As charqueadas
em Mato Grosso: subsídio para um estudo de história econô-
mica, cujo recorte temporal envolve o período entre 1873 e
1960. Observamos que Nascimento não discutiu o processo de

7
CAMPESTRINI, Hildebrado; GUIMARÃES, Acyr Vaz. História de Mato Gros-
so do Sul. Campo Grande: Academia sul Mato-Grossense de Letras e Instituto
Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 1991.
8
MAZZA, Maria Cristina Medeiros et al. Etnobiologia e conservação do bovino
pantaneiro. Corumbá: Embrapa, 1994, p. 14-15.
9
CAMPESTRINI, Hildebrado. Sant’Ana do Paranaíba: dos caiapós à atualidade.
Paranaíba: Prefeitura de Paranaíba, 1999.
10
NASCIMENTO, Luiz Miguel. As charqueadas em Mato Grosso. Subsídio para
um estudo de história econômica. Dissertação (Mestrado em História) – Uni-
versidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Assis, 1992; ESSELIN,
Paulo Marcos. A pecuária no processo de ocupação e desenvolvimento econômi-
co do Pantanal sul mato-grossense (1830-1910. Tese (Doutorado em História)
– Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 215


desenvolvimento da economia criatória no sul de Mato Gros-
so como um todo, pois seu enfoque restringiu-se à expansão
da ordem capitalista na região pantaneira, com base na in-
dústria da carne.
O segundo trabalho é o brilhante trabalho de pesquisa A
pecuária no processo de ocupação e desenvolvimento econômi-
co do Pantanal sul mato-grossense (1830-1910), apresentado
por Paulo Marcos Esselin em 2003 como tese de doutoramen-
to no Departamento de História da Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul. O autor discute o papel desempenhado
pela pecuária no processo de ocupação e desenvolvimento
econômico do Mato Grosso e investiga a origem dos primei-
ros bovinos introduzidos na planície fluvial do pantanal sul,
bem como as características do meio físico que permitiram
excepcionais condições para operar a reprodução do rebanho.
Algumas páginas da obra são dedicadas à região leste do an-
tigo Mato Grosso, espaço onde se assentavam os Campos de
Vacaria e os Sertões dos Garcia (Sant’Anna de Paranaíba).
É certo, portanto, que Mato Grosso dispõe de grandes
lacunas historiográficas sobre o tema, em detrimento de ser
uma região de raízes essencialmente pastoris. Mesmo sobre o
pantanal ainda é irrisória a produção acadêmica em torno do
processo evolutivo da produção pecuária. Além disso, poucos
historiadores procuraram dialogar dialeticamente com os ele-
mentos da realidade, presentes nos relatos memorialísticos
ou em peças informativas similares, como forma de construir
a história regional. Assim, a reflexão sobre a ocupação deste
espaço singular traduz a certeza de que a pesquisa histórica
sobre as correntes de povoamento e os aspectos da vida ma-
terial da parte sulina de Mato Grosso permanece ainda como
uma floresta primitiva, à espera de seus “desbravadores”.11
11
BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro. Uma con-
tribuição para o estudo dos caminhos fluviais. Tese (Doutorado em História)
_Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999, p. 262.

216 Maria do Carmo Brazil


A exemplo da historiografia sul-rio-grandense são escas-
sos os trabalhos gerais de historiadores sobre a evolução das
fazendas pastoris do meridião mato-grossense. Daí a impor-
tância de se centrar esforços na definição do perfil da proprie-
dade pastoril, unidade produtiva que alavancou o desenvolvi-
mento do atual estado de Mato Grosso do Sul.
Nesse sentido, procuramos refletir sobre o processo de
formação do latifúndio a partir da introdução, consolidação
e desenvolvimento da produção pastoril em áreas do sul de
Mato Grosso, especificamente o Sertão dos Garcia, porta de
entrada para os Campos de Vacaria, no século 19, consideran-
do as formas jurídicas de formação da propriedade (sesmeira,
compra, posse, ocupação livre, etc.), a evolução das técnicas
produtivas (marcação, castração, rodeios, etc.) e as relações
de trabalho (livre e escravizada).

Espaço pastoril
Cabe enfatizar, inicialmente, que os trabalhos existen-
tes sobre esse espaço brasileiro, sobretudo no que se refere à
gênese da economia pastoril, restringem-se à história recente
da região, ou seja, à análise do processo de colonização do sul
de Mato Grosso a partir da década de 1940, quando o governo
Vargas (1930-1945) implantou a política de interiorização do
Brasil, conhecida como Marcha para Oeste, cujo objetivo era
povoar os “espaços vazios” das regiões do Oeste e da Amazô-
nia brasileira e expandir a abrangência da produção capita-
lista-mercantil do Brasil.12
O ponto fulcral de nossas inquietações, e que redundou
nesta reflexão, refere-se, mais especificamente, ao passado

12 SCHWARTAMAN, Simon (Org.). Estado Novo, um auto-retrato. Brasília: Ed.


UnB, l982, p. 21. (Arquivo Gustavo Capanema). Ver também FIGUEIREDO,
José Lima. O rio Paraná no roteiro da Marcha para o Oeste. Revista Brasileira
de Geografia, Rio de Janeiro: CNG, jan./mar. 1942, p.143; VARGAS, Getúlio- A
nova política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, l938-l944, l0 v.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 217


histórico-pastoril da região de Sant’Ana de Paranaíba, co-
nhecida por “Sertão dos Garcia”, e de Rio Brilhante, deno-
minada “Campos de Vacaria”. Espaço rendilhado pelos rios
Paraná, Paranaíba, Sucuriú, Verde, Pardo, Anhanduí Vaca-
ria e Brilhante, constituiu-se, em diversos pontos, em pouso
obrigatório para os viandantes que perscrutavam os sertões
mais internos de Mato Grosso por variados motivos, entre os
quais se destacavam a busca de fama, riqueza e poder. Nesses
pontos de descanso os caminheiros roçavam o mato, prepa-
ravam o acampamento, arranchavam-se, ceavam, armavam
redes. Alguns sertanistas permaneciam por mais tempo nos
pousos, pois desenvolviam lavoura de milho, feijão e mandio-
ca, e só depois de se colher seus frutos prosseguiam viagem.13
Não raro, os pousos e varadouros mato-grossenses transfor-
mavam-se em importantes arraiais ou em áreas difusoras de
populações oriundas do centro-sul brasileiro.
A existência de inúmeros documentos existentes nos ar-
quivos regionais, envolvendo sobretudo grandes pecuaristas
e trabalhadores escravizados e livres pobres, também desper-
tou nosso interesse em estudar o passado dos núcleos pastoris
de povoamento do sul de Mato Grosso (Fig. 1 e 2). Com esse
enfoque, é possível contribuir para que se retirem os trabalha-
dores escravizados e camponeses pobres do anonimato pree-
xistente no discurso historiográfico regional.14 Despojados de
merecida cientificidade, os raros escritos sobre o segmento
social subalternizado encontram-se restritos a depoimentos
isolados, memórias das ditas elites regional e local, dados
dispersos nos inventários, documentos cartoriais ou detalhes

13
AMORIM, Marcos Lourenço. O Segundo Eldorado brasileiro. Navegação flu-
vial e sociedade no território do ouro. De araraitaguaba a Cuiabá – 1719-1838.
Dissertação (Mestrado em História) UFGD, Dourados, 2004, p. 33.
14
CAMARGO, Isabel Camilo de; BRAZIL, M.B. Sant’Ana de Paranaíba no século
XIX: aportes para o debate sobre latifúndio e escravidão. XXV In: SIMPÓSIO
NACIONAL DA ANPUH, XXV. 12 a 17 de julho de 2009. Anais... Fortaleza, CE,
2009, p. 281.

218 Maria do Carmo Brazil


quase imperceptíveis ou ligeiramente registrados nas narra-
tivas dos viajantes que passaram pela região no século 19.15

Figura 1 – Localização dos campos de Vacaria de Mato Grosso de-


lineado em mapa com divisão político-administrativa con-
temporânea e editado por Omar Daniel/FCA/UFGD

A existência de um passado escravista regional ainda


causa estranhamento a muitos moradores locais, por acha-
rem impensável que a escravidão tenha alcançado os mais re-
motos recantos do Brasil, como é o caso do dos Campos de Va-
caria e do Sertão dos Garcia.16 Empenhar esforços sobre esse
espaço constituído por anseios, necessidades e contradições
sociais significa lançar luz sobre a problemática do latifúndio,
dos campos, das barrancas dos rios, das fazendas, como ma-
terialização de ricas e complexas relações sociais, envolvendo
dominação e resistência.17

15
Ibidem.
16
Ibidem.
17
Ibidem

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 219


O passado missioneiro das
fazendas pastoris
Na década de 1570 Domingos Martinez de Irala, como
governador de Assunção e representante dos colonizadores
espanhóis, despachou para a conquista de terras sul-ameri-
canas dois de seus capitães, munidos de apreciáveis expedi-
ções: Nuflo Chavez e Rui Diaz Melgarejo. Cabia a este último
explorar as ribanceiras do rio Paraná e a Nuflo Chávez, a
tarefa de colonizar a planície de Xarayés (região do Panta-
nal), sobretudo a região da Gaíva, onde deveria ser fundado
um forte.18 Rui Diaz Melgarejo remontou o Paraná e fundou
Ciudad Real na confluência do Piquiri e, em 1579, recebeu
ordem para explorar o território dos nuarás, famoso por seus
verdejantes campos. Escolheu a margem direita do M’botetey
(rio Miranda), tributário do Paraguai, onde fundou a cidade
de Santiago de Xerez. Teve pouca duração a cidade fundada
por Melgarejo, em virtude das reações dos nativos. Invadida
pelos guatós em 1579, a cidade teve uma segunda fundação
em 1593, à margem direita do Miranda, por iniciativa de Ruy
Diaz de Guzmán.19
Os primeiros religiosos espanhóis chegaram ao Novo
Mundo no início do século 17 com a missão de cristianizar os
nativos americanos. Fundaram dez reduções na província do
Guairá, hoje estado do Paraná. Entre 1610 e 1634, as mis-
sões ergueram na região do Prata mais duas reduções: a do
Itatim20 (sul do antigo Mato Grosso) e a do Tape (atual estado

18
Relato de Ruy Diaz de Guzman, citado por Pedro Moura em Bacia do Alto Para-
guai – Revista do Conselho Nacional de Geografia, Rio de Janeiro: CNG, 1943,
p. 27.
19
BRAZIL, Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro..., p. 114.
20
GADELHA, R. M. A. F. As Missões Jesuíticas do Itatim: um modelo das es-
truturas sócio-econômicas coloniais do Paraguai (séculos XVI e XVII). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1980. Ver também SOUSA, N. M. A redução de Nuestra
Señora de la fe no Itatim: entre a cruz e a espada (1631-1654). Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Doura-
dos, 2002; COSTA, M. F. História de um país inexistente: o Pantanal entre os
séculos XVI e XVIII. São Paulo: Kosmos, 1999.

220 Maria do Carmo Brazil


do Rio Grande do Sul), na bacia do rio Uruguai. A partir daí
os religiosos foram pontuando de reduções grande parte da
região platina, destacando-se entre as mais famosas os Sete
Povos das Missões, na margem esquerda do rio Uruguai.
Logo os missionários promoveram a introdução do gado
vacum, cavalar, muar e ovino, cientes de sua importância à
sobrevivência das reduções. O gado adquirido desenvolveu-se
e propagou-se pelos currais e fazendas às margens dos rios
Paraná, Uruguai e Paraguai. Surgiram, assim, os primeiros
núcleos criatórios de gado. A ideia era promover a fixação dos
nativos, sobretudo guaranis, e, depois, acumular riqueza para
região missioneira baseada nos referidos rebanhos.
É preciso destacar que o surgimento do povoado caste-
lhano de Xerez representou o gênesis do criatório bovino em
espaço mato-grossense.21 Os espanhóis seguiam em carava-
nas, carretas puxadas por juntas de bois; levavam sementes
para o cultivo, utensílios para o início de suas atividades e
também pequenos rebanhos de bovinos e equinos.22 Este gado,
criado à solta, não recebia maiores cuidados.
Entretanto, as incursões bandeirantes, ao explorar o in-
terior da América do Sul, alcançaram essas reduções jesu-
íticas e seus “campos de cria”. A partir daí, as penetrações
interioranas, propulsionadas por fatores geopolíticos, eco-
nômicos e sociais, atingiram Guairá em 1628. Sem saída, os
missionários abrigaram os nativos sobreviventes nas redu-
ções de Santo Inácio e Loreto e, em seguida refugiaram-se
nas missões estabelecidas entre os rios Paraná e Uruguai. Os
paulistas aproveitaram-se da retirada para destruir as povo-
ações de Vila Rica e Ciudad Real, situadas, respectivamente,
na margem esquerda do rio Ivaí e junto à foz do rio Piquiri.
Alguns habitantes conseguiram se dirigir para o Paraguai,

21
ESSELIN, Paulo Marcos; OLIVEIRA, Tito Carlos Machado. Terra onde o gado
criou o homem e definiu o latifúndio. História – Debates e Tendências, Passo
Fundo: UPF, v. 7, n. 2, p. 101-117, jul./dez. 2007.
22
Ibidem.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 221


onde fundaram nova povoação às margens do rio Jejuí. Signo
da posse espanhola, a região foi invadida e destruída pelos
bandeirantes luso-paulistas em 1632, assinalando o domínio
português.
Depois do esfacelamento de Xerez (1633), os padres je-
suítas foram obrigados a abandonar a redução e a refluir com
muitos nativos para a margem direita do Uruguai, por ab-
soluta incapacidade de enfrentar os invasores em condições
iguais, no referente, sobretudo, ao armamento necessário.
Segundo o Informe da Companhia de Jesus, esboçado pelo
historiador português Jaime Cortesão, os jesuítas acabaram
deixando cerca setecentas cabeças de gado vacum aos neófi-
tos.23
Outras centenas de animais ficaram na antiga povoação
juntamente com aqueles utilizados como tração: bois, éguas,
cavalos e mulas, que haviam se desgarrado do rebanho e se
criado sem trato algum.24 Sem dispor do costeio dos nativos,
as manadas se espalharam pelo território e retornaram ao
estado selvagem.25 Mesmo abandonado e sem manejo, o gado
multiplicou-se na condição de “bagual”. Criado naturalmente
por mais de meio século, o gado selvático proliferou, consti-
tuindo-se no casco inicial da pecuária sul mato–grossense, de-
pois de sobreviverem silvestremente em ambiente favorável,
propício à criação.26
A derrota dos polos de colonização espanhola e o completo
despovoamento de Itatim levaram os luso-brasileiros a pers-
crutar novos territórios sementeiros de cativos, necessários
às atividades primário-exportadoras do Nordeste brasileiro.
Historicamente, o cativeiro foi a organização econômica que

23
CORTESÃO, Jaime (Org.). Manuscritos da Coleção de Angelis (jesuítas e ban-
deirantes...). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional/ Divisão de Obras Raras e
Publicações. 1951, v. 2, p. 19.
24
Ibidem.
25
ESSELIN; OLIVEIRA, Terra onde ...
26
Ibidem..

222 Maria do Carmo Brazil


melhor se adaptou à valorização das terras americanas, em
razão da impossibilidade histórica da conformação de merca-
do de trabalho livre. Não há dúvida de que o próprio desen-
volvimento capitalista europeu floresceu, também graças à
feitorização do homem americano e, depois, africano.27
Além da preagem dos nativos para escravização, as ra-
zões oficiais luso-brasileiras em avançar a linha raiana de
Tordesilhas eram revestidas pela ideia de encontrar metais
preciosos, que, segundo as lendas, estariam nos montes re-
fulgentes do Peru.28 Nessa trajetória, os paulistas destruíram
missões jesuíticas espanholas, estabeleceram rotas, descobri-
ram minas e criaram circunstâncias para a ocupação e o po-
voamento de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás.
Com a descoberta das minas de ouro em Cuiabá (1718),
a parte sul de Mato Grosso deixou de ser objeto de interesse
por parte dos mamelucos paulistas. Em O Brasil do boi e do
couro29, obra publicada em 1965, José Alípio Goulart lembra
que a introdução do gado em áreas mato-grossense foi quase
concomitante com a do garimpeiro e a do faiscador. O gover-
nador de São Paulo, Rodrigues Cezar de Meneses, ciente da
necessidade de rebanho na região das minas, emitiu “regi-
mento” (1725) incentivando os criadores a estabelecer currais
naquelas paragens.30 Cavalcante Proença informa que algu-
mas reses penetraram na região pelas mãos da “gente de Pi-
ratininga”. Luiz D’Alincourt arrisca dizer que as primeiras
cabeças procederam de Camapuã.31 Esse gado tangido, seja
por luso-brasileiros, seja por colonos castelhanos, paulistas

27
MAESTRI, Mario. História da África Negra Pré Colonial. Porto Alegre: Merca-
do Aberto, 1988, p. 42-43.
28
HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda. Visões do paraíso – Os motivos edê-
nicos no descobrimento e colonização do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1969, p. 99.
29
GOULART, José Alípio. O Brasil do boi e do couro. Rio de Janeiro: Edições
GRD, 1965. (Coleção Ensaios brasileiros – Homens e Fatos, n. 3).
30
Ibidem, p. 41.
31
Ibidem, p. 61.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 223


ou criadores de Goiás, acabou misturado ao gado dos campos
da Vacaria.32
Nos primórdios da ocupação de Mato Grosso, priorizava-
se o ouro em detrimento dos rebanhos selvagens formados
depois da destruição da missão de Itatim. Tanto desinteresse
por parte de espanhóis e portugueses permitiu que os reba-
nhos bovinos e equinos se multiplicassem ao longo dos anos.
Para se ter uma ideia, em 1682, alguns anos antes da
descoberta do ouro cuiabano, uma das mais importantes ban-
deiras, organizada na cidade de Sorocaba, partiu para o sul
de Mato Grosso, tendo como capitão-mor Pedro Leme da Sil-
va. Maravilhado com os rebanhos bovinos e equinos sem dono,
Pedro Leme optou pela formação de um arraial nas vacarias
sulinas de Mato Grosso.33
Em suas constantes incursões pela região, os portugue-
ses nominaram essas áreas de “vacaria”, dada a presença dos
rebanhos silvestres. Delimitava-a Pedro Taques, em meados
do século 18, depois de afirmar que, nos campos assim cha-
mados, existiam enormes rebanhos, sem haver algum senhor
possuidor de tanta grandeza, não só de gados vacuns, mas
também dos animais cavalares.34

A reconquista dos campos


No início do século 19, os campos da Vacaria do sul de
Mato Grosso (Fig. 1), “esquecidos” desde o funesto aniquila-
mento das Missões, agregavam enormes rebanhos de gado.
Os relatos conhecidos, tanto de espanhóis radicados em As-
sunção como os de luso-brasileiros de São Paulo, são unâni-

32
Ibidem, p. 42.
33
TAUNAY, Affonso. História geral das bandeiras paulistas. São Paulo: TYP. Ide-
al, 1930.v.1 e 6.
34
Ibidem. Ver também PASTELLS, Pe. Pablo. Historia de la Compañia de Jesús
en la Província del Paraguay. Madrid: Librería general del Victoriano Suárez,
1912, p. 142..

224 Maria do Carmo Brazil


mes em afirmar a presença desses rebanhos na parte sulina
de Mato Grosso. Este gado silvestre, criado extensivamente,
veio mais tarde a se transformar na fonte de atração àqueles
que desejavam ocupar a região, a partir da pecuária.
Na planície pantaneira, por exemplo, havia extensos
campos de pastagens nativas providos de salinas naturais,
que, influenciados por marcantes períodos de seca e de água
abundante, determinaram os modos de adaptação do homem
pantaneiro à região. Destaque-se nessa fisiografia contras-
tante dos pantanais a abundância dos “barreiros” em áreas
que vão desde a barra do rio Jauru até os campos alagados
do Taquari e o Apa. Os “barreiros” são terrenos salgados, ca-
racterizados como eflorescência salino-salitrosa, presentes da
área baixa do vale do rio Paraguai e muito procurados pelo
gado, por inúmeros animais silvestres, como antas, veados
que escavam, lambem e refocilam a terra por causa do sal.
Os depósitos de sal encontram-se em toda a depressão
paraguaiana, sobretudo além dos limites nacionais, na região
do Chaco.35 Todavia, a eflorescência das salinas participa da
vasta paisagem dos pantanais e se dispõe de forma latente
nas lagoas ou baias de água salgada. Na região do rio Negro,
nos baixios para onde correm os cursos dos rios Miranda, Ne-
gro e Taquari, os barreiros se multiplicam. Próximo ao porto
da Manga, no rio Paraguai, Candido Mariano da Silva Ron-
don arrolou, no inicio do século 20, 170 lagoas, das quais 93 se
constituíam em salinas.36
A presença das baias salgadas promove a excelência
dessa região, transformando o complexo do Pantanal numa
referência mundial como expressão de beleza e de campo na-
tural de pastagem. Nos espaços mais elevados da planície, os
rebanhos alçados podiam ser perfeitamente recolhidos. Além
disso, no século 19 as terras ainda eram tidas como devolutas
35
BRAZIL, Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro..., p. 97-98.
36
Cf. Rondon, Cândido Mariano da Silva. - Relatório das Linhas Telegráficas de
Mato Grosso. Rio de Janeiro: Comissão Rondon, 1907.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 225


e os grupos nativos que as ocupavam, menos resistentes do
que no início da conquista.
A região conhecida como Campos de Vacaria (mais ao sul
do pantanal), inserida no bioma cerrado, também foi propícia
às atividades agropecuárias, embora também sofresse inter-
ferências ambientais, sobretudo quanto ao regime das águas,
estiagens e geadas. A bióloga Roseli Senna Ganem37 explica
que o bioma Cerrado é o segundo maior do Brasil, depois da
Amazônia. Originalmente, o Cerrado ocupava dois milhões de
quilômetros quadrados, o que equivale a 24% do território
nacional. Localizado no Planalto Central, apresenta interfa-
ce com todos os principais biomas da América do Sul (Ama-
zônia, Mata Atlântica, Caatinga, Chaco e Pantanal), sendo
um grande corredor de biodiversidade.38 Para Ganem o bioma
constitui um mosaico de fisionomias vegetais que variam das
formas campestres aos ecossistemas florestais, com alta ri-
queza de espécies e grande número de endemismos (ocorrên-
cia de uma dada espécie em área restrita).
Diferentemente dos campos sulinos brasileiros, caracte-
rizados por vastas áreas de vegetação graminóide-herbácea,
as vacarias de Mato Grosso não eram contínuas. Distinguia-
se por se constituir num tablado mesclado por vegetação ar-
bóreo-arbustivo, ora de cerrado, ora de matas de galerias.
Até as três primeiras décadas do século 19, os “gentios”
bilreiros ainda eram senhores daquelas paragens, quando
ocorreu sua ocupação pelos “entrantes mineiros”,39 atraídos

37
GANEM, Roseli Senna et al. Ocupação humana e impactos ambientais no bio-
ma cerrado: dos bandeirantes à política de biocombustíveis. ENCONTRO DA
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM AM-
BIENTE E SOCIEDADE, IV. Brasília, 4, 5 e 6 jun. 2008.
38
Ibidem, p. 3.
39
Sobre a migração mineira, especificamente sobre as fazendas de criar do Nor-
deste paulista, consultar BACELLAR, Carlos de Almeida Prado; BRIOSCHI,
Lucila Reis (Org.). Na estrada do Anhanguera: uma visão regional da história
paulista. São Paulo: FFLCH/USP, 1999. Ver também LARA, Mario. Nos confins
do Sertão da Farinha Podre. Povoamento, conquistas e confrontos no Oeste de
Minas. Belo Horizonte: s.ed., 2009. (Fomentado pela Lei Rouanet)

226 Maria do Carmo Brazil


pelas grandes extensões de vegetação rala, principalmen-
te campos, com pastagens naturais e pela forte presença de
gado alçado. Famílias inteiras de colonos, oriundas de Minas
Gerais, migraram, para ocupar parte dos sertões “devolutos”
das vacarias mato-grossenses.
No período regencial (1831-1840), problemas políticos
decorrentes do processo emancipatório e de questões de or-
dem econômica, atinentes, sobretudo, à crise da economia
escravista exportadora, resultaram na escassez de recursos
e no clima de insatisfação entre as províncias e o governo cen-
tral, constituídas por revoltas populares que se estenderam,
igualmente, por todo o Império.
Em Mato Grosso, a rebelião decorrente da crise ficou
conhecida como Rusga. Deflagrada na noite de 30 de maio
de 1834, a Rusga durou alguns meses e marcou o triunfo do
movimento liberal e federativo nativo local e a completa de-
sarticulação das forças tradicionais, representadas pelos co-
merciantes lusos portugueses.
A derrota da Rusga trouxe significativos desdobramen-
tos para a província. Expressivo número de revoltosos rumou
para o sul de Mato Grosso, foragidos da justiça por crimes
praticados contra portugueses em várias cidades da província
e arredores de Cuiabá. Alguns se internaram pela região ao
longo do rio Paraguai, povoando as margens dos rios Taboco
e Nioaque, avançando para os vales dos rios Miranda, Aqui-
dauana e Negro, chegando até as proximidades do rio Apa
(fronteira com o Paraguai).
Portanto, diante das questões políticas, do declínio da
mineração, do fracasso das tentativas agrícolas e de proble-
mas políticos internos do Império, acentuaram-se as corren-
tes de penetração constituídas por criadores de gado.
Na obra Etnobiologia e conservação do bovino pantanei-
ro, organizada por Maria Cristina Medeiros Mazza e outros,
em 1994, consta que algumas frentes migratórias oriundas

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 227


do Triângulo Mineiro, do Nordeste brasileiro e do interior de
São Paulo, voltadas para a criação de gado, já realizavam,
conforme referimos, significativas incursões pelos sertões de
Mato Grosso.40
A corrente proveniente do Nordeste entrava por Goiás
para instalar-se na região de Cuiabá e Vila Bela; a proceden-
te de Minas Gerais e São Paulo penetrava pelo sul de Mato
Grosso, atingindo, sobretudo, a região de Coxim.41 Depois, os
criadores de Vila Bela e Cuiabá, seguindo o curso fluvial do
São Lourenço e seus afluentes, avançaram no Pantanal ten-
tando alcançar o sul de Mato Grosso.

Famílias pioneiras
Interessa-nos particularmente analisar como o espaço
pastoril, envolvendo a região de Sant’Ana de Paranaíba e Rio
Brilhante – Sertão dos Garcia e Campos de Vacaria, respecti-
vamente – convertida em objeto historiográfico, veio se tornar
importante marco do discurso patriarcal e da expansão terri-
torial, a partir da vocação pastoril, desempenhando significa-
tivo papel na legitimação dessa ideologia, mantida ainda hoje
na historiografia brasileira.

40
MAZZA, et al., p. 14-15.
41
CORRÊA FILHO, V. Fazendas de Gado no Pantanal mato-grossense- Documen-
tário da vida rural n° l0- Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura - Serviço de
informação agrícola, l955.

228 Maria do Carmo Brazil


Figura 2 – Ocupação da Região de Sant’Ana de Paranaíba - Sertão
dos Garcia, delineado em mapa com divisão político-ad-
ministrativa contemporânea e editado por Omar Daniel/
FCA/UFGD

De acordo com as reflexões de Peter Burke a tradição


histórica tinha como preocupação temas nacionais ou inter-
nacionais, cortando obliquamente as proposições regionais.
Isso significa dizer que a abordagem tradicional colocou à
margem da história muitos aspectos das atividades humanas,
considerando que estas devem ser entendidas na perspectiva
da “história total”.42
Segundo o historiador Ângelo Emílio da Silva Pessoa,43
desde autores como Oliveira Vianna, Nestor Duarte, Gilber-
to Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Costa

42
BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda
Lopes. São Paulo: Unesp, 1992.
43
PESSOA, Angelo Emílio da Silva Pessoa. As ruínas da tradição: a casa da torre
de Garcia D'ávila. Família e propriedade no nordeste coloquial. Tese (Doutora-
do em História Social) – USP, São Paulo, 2003.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 229


Pinto até a produção historiográfica mais recente, a família,
sob os mais variados matizes, tem sido estudada segundo dis-
tintas abordagens e tendências, ensejando reflexões e deba-
tes sobre questões decisivas na formação histórica brasilei-
ra44 Distintos em suas análises e em suas finalidades, esses
autores45 não deixaram de destacar o papel fundamental da
família na conformação social e política do Brasil.46
Nesse sentido, a análise envolvendo os Campos de Vaca-
ria implica discutir o papel das famílias no processo de ocupa-
ção e, também, impõe a utilização de categorias teóricas para
definir o instituto da “família”, “família oligárquica”, “família
patriarcal”, etc. Importante contribuição sobre o tema expres-
sa-se na tese de doutoramento As ruínas da tradição: a casa
da torre de Garcia D’ávila. Família e propriedade no nordeste
coloquial, defendida em 2003 pelo historiador Angelo Emílio
da Silva Pessoa, já referido.47 Em denso estudo sobre família
e propriedade no Nordeste colonial e imperial, o autor discu-
te a irradiação do discurso patriarcal traduzido no “culto aos
pioneiros” e as variadas estratégias utilizadas por grandes
proprietários e pecuaristas na aquisição, ampliação e manu-
tenção de poder, como formas distintas de obtenção de cargos,
favores, ligações de casamento e tramitações de heranças.48

44
Ibidem, p. 12.
45
Cf. VIANNA. Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil:
história organização – psycologia. 4. ed. São Paulo: Nacional.1938; DUARTE,
Nestor. A ordem privada e a organização política nacional: contribuição à so-
ciologia política brasileira. São Paulo: Nacional, 1939; FREYRE. Gilberto. Casa
grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia pa-
triarcal. 30. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. FREYRE, Gilberto. Sobrados e
mucambos: decadência do Patriarcado Rural e desenvolvimento urbano. 2. ed
3 v. Rio de Janeiro: José Olympio 1951; HOLANDA. Sérgio Buarque de. Raí-
zes do Brasil. 17. ed. Rio de Janeiro: José Olympio. 1984. PRADO JUNIOR,
Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 20. ed. São Paulo: Brasiliense. 1987.
p. 286. PINTO, Luiz de Aguiar da Costa. Lutas de famílias no Brasil (Introdu-
ção ao seu estudo). 2. ed. São Paulo: Nacional; Brasília: INL, 1980.
46
PESSOA, As ruínas da tradição..., p. 12.
47
Ibidem.
48
Ibidem, p. 4.

230 Maria do Carmo Brazil


Os “pioneiros” das famílias Garcia Leal, Barbosa e Lopes
atravessaram os campos da região de Sant’Ana de Paranaíba
e, depois, Rio Brilhante, iniciando a história do povoamento
do sul do estado. Parece extemporâneo propor estudos sobre
essas famílias, integrantes do patriciado rural do sul de Mato
Grosso, em detrimento de abordagens mais recentes, que pro-
põem explicar o processo histórico a partir da visão que inte-
gre os segmentos trabalhadores socialmente subalternizados.
Um ponto levantado por Peter Burke refere-se à escri-
ta tradicional a partir dos segmentos dominantes, ou seja, a
partir da valorização das figuras ilustres, como generais, es-
tadistas, etc. A crítica do historiador inglês vai para os histo-
riadores que desconsideram a história dos sujeitos comuns,
desconsiderando que estes constroem também a história – e
diríamos, com destaque.
A partir das orientações da nova história, é preciso con-
siderar tanto a história de vista de cima como a vista de bai-
xo, aproveitando a participação dos diferentes atores sociais
nesse processo.49 Entretanto, entendemos também que não é
anulando o segmento dominante do “horizonte historiográfico
que estaremos produzindo uma história da perspectiva dos
vencidos [...]”,50 considerando que dominação e resistência são
expressões inseparáveis de uma mesma equação. Daí a neces-
sidade de desenvolver estudos que apreendam a questão num
sentido diacrônico e, assim, capturar os aspectos mais rele-
vantes para a compreensão da formação histórica do Brasil.
A corrente migratória originária de Minas Gerais, mais
especificamente do Triângulo Mineiro, e do interior de São
Paulo penetrou na província através de Sant’Ana de Parana-
íba (sertão dos Garcia). Minas tornou-se uma das principais
regiões provedoras de bovino destinado ao melhoramento da-
quele gado remanescente do passado missioneiro.
49
BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Mag-
da Lopes. São Paulo: Unesp, 1992.
50
PESSOA, As ruínas da tradição ..., p. 242.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 231


A historiografia regional dá conta de que a região de
Sant’Ana de Paranaíba, via de penetração para os Campos
de Vacaria, era primordialmente habitada por ameríndios
do grupo linguístico Jê – os caiapós. Entre os anos de 1739-
1755, o espaço tornou-se bastante frequentado pelas expedi-
ções paulistas, que tinham como objetivo a captura de nativos
para escravização. 51 Entretanto, apenas na década de 1830
ocorreu a chegada de ocupantes “não nativos”, oriundos de
Minas Gerais, como as famílias Garcia Leal, Rodrigues da
Costa, Correia Neves, Barbosa e Lopes.
José Garcia e Januário Garcia Leal tornaram-se líderes
dessa frente de ocupação. Desse ponto, a corrente se expandiu
em direção ao interior da parte sul da província, abrangendo
a conhecida com Campos de Vacaria (Fig. 1) e, mais tarde, a
região de Campo Grande, hoje capital de Mato Grosso do Sul,
cuja toponímia revela seu passado pastoril.
As terras integrantes do patrimônio das famílias ocupan-
tes do sul de Mato Grosso basearam-se no sistema sesmeiro,
que se estendeu pelos atuais municípios da região. Imensas
propriedades pastoris formaram-se sob domínio desses mi-
grantes oriundos de Minas Gerais. Arraiais, vilas e cidades
desenvolveram-se a partir da construção de inúmeros ranchos,
erguidos rusticamente nas barrancas de rios inexplorados ou
nas vizinhanças de vendas, tabernas ou pousos construídos
em curvas de estradas.
Desde o período colonial, o caráter do sistema de ses-
marias, ligando terra e posse de cabedais, gerava canais ex-
clusivos, diretos e indiretos, de acesso à terra por grandes
produtores. 52 Além disso, o instituto sesmarial por muito
51
AYALA, S. Cardoso; SIMON, F. O Municipio de Sant’Anna de Paranayba. In:
Album graphico do Estado de Matto Grosso (EEUU do Brazil) Corumbá, Ham-
burgo: 1914, p. 419; CAMPESTRINI, H. Sant’Ana de Paranaíba. De 1700 a
2002. 3 ed. Campo Grande, MS: IHGMS, 1997, p. 36-41.
52
Sobre o sistema sesmarial consultar LIMA. Ruy Cirne. Pequena história terri-
torial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. São Paulo: Secretaria de Estado
da Cultura. 199() (Edição Fac-similar).

232 Maria do Carmo Brazil


tempo garantiu poderes políticos aos sesmeiros-latifundiá-
rios, responsáveis por processos de sujeição e dependência
de segmentos subalternizados, fossem eles escravizados ou
livres (lavradores, posseiros, pequenos proprietários e demais
moradores). O processo de subalternização desdobrava-se na
relação clientelista e traduzia-se na troca de apoio e nos la-
ços de submissão pessoal, geradores da violência privada de
grandes proprietários. A violência, portanto, era parte arti-
culada das relações sociais contidas na organização agrária
colonial.53
Em âmbito nacional, sobretudo no Nordeste, os diversos
relatos oficiais destacam o papel de algumas famílias que se
aventuraram pelos sertões, garantiram o domínio das terras
a partir da expansão dos currais54 à custa de estratégias polí-
ticas de aquisição, manutenção e ampliação do patrimônio, re-
correndo, não raro, a procedimentos fraudulentos.55 Algumas
fontes referentes às questões de terras56 destacam principal-
mente a importância das “famílias pioneiras” na conquista e
a incorporação de vastas extensões de terra ao corpo da nação
brasileira. Mas a dificuldade de calcular o tamanho dos lati-
fúndios, dada a imprecisão e a falta de clareza da fiscalização,
deu origem a inúmeras demandas judiciais que alcançam os
dias atuais.57

53
Sobre a dimensão da violência privada, o código do sertão, formas de domina-
ção, hábitos costumeiros e da miséria conferir, entre outros, FRANCO. Mª Sil-
via de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ática, 1974,
p. 26-27.
54
PESSOA, As ruínas da tradição..., p. 34.
55
SANTOS F. Lycurgo. Uma comunidade rural no Brasil Antigo (aspectos da
Vida Patriarcal no Sertão da Bahia nos Séculos XVIII e XIX). São Paulo: Nacio-
nal. 1956. p. 55.
56
CORREA FILHO, Virgílio Questões de terras. Secção de Obras d’O Estado de
São Paulo, 1923, p. 3.
57
Sobre o tema consultar PORTO. José da Costa. O sistema sesmarial no Brasil.
2. ed. Brasilia. Ed. da UnB, 1979.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 233


Família e Igreja
Em 1836, erigiu-se a primeira igreja, graças à iniciativa
da família Garcia e do padre Francisco Sales de Souza Fleury.
Este último, investido no cargo de capelão, era encarregado
da assistência espiritual aos ocupantes dos sertões “devolutos”
de Sant’Ana de Paranaíba, como assinalado, porta de entrada
para os Campos de Vacaria.
Observe-se que a região do antigo sul mato-grossense
era uma “fronteira flutuante”,58 disputada por redes internas
e externas de povoamento. Na região em questão, uma vez
realizada a ocupação, foram implantadas as estruturas polí-
ticas e eclesiásticas, movidas por funcionários, proprietários,
padres que agiam com chefes políticos, os quais disputavam
poder com fazendeiros ou se inseriam no seio desse segmento,
concorrendo ao mando local. Este parece ter sido o caso de
Francisco de Sales Souza Fleury, oriundo da cidade de Franca,
interior de São Paulo. Segundo documentos reunidos no livro
Como se de ventre livre nascido fosse, publicado em 1994 pela
Fundação de Cultura,59 o referido pároco exercia poder senho-
rial que envolvia terras, cativos, agregados e homens livres
de poucas posses.
Por mais de trinta anos, Fleury desempenhou papel so-
cial de suma importância para o segmento proprietário, sobre-
tudo considerando que ele era o responsável pela realização
de casamentos, batizados, rezas e missas, cerimônias religio-
sas que ensejavam relações intersenhoriais, manifestações de
poder e autoridade sobre os segmentos subalternizados.

58
BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro... Op. cit.
p. 110-215.
59
PENTEADO, Yara (Org.). “Como se de ventre livre nascido fosse....”: cartas
de liberdade, revogações, hipotecas e escrituras de compra e venda de escravos.
1838-1888. Campo Grande, MS: SEJT, MS; SEEEB, MS; Ministério da Cultura/
Fundação Cultural Palmares, DF, 1993. Arquivo Público Estadual, MS.

234 Maria do Carmo Brazil


A força política do padre Fleury tornou-se mais visível
com o processo de superação do escravismo. Entretanto, para
explicar o aumento do potencial político de Fleury é preciso
discutir o contexto histórico brasileiro a partir da segunda
metade do século 19.
A extinção do tráfico (1850) e os desdobramentos dele
decorrentes levaram a classe dirigente do Império a conceder
novos poderes ao governo para solucionar a questão do “ele-
mento servil”. Sob a batuta dos grandes proprietários, foram
assim criadas as leis emancipadoras, prevendo a extinção da
escravatura de forma lenta, gradual e indenizada.
A extinção legal do tráfico internacional de africanos
também alterou o monopólio de poder no que tangia à polí-
tica de terras. O governo imperial acionou os dispositivos da
Lei de Terras, criados em 1850 com o objetivo de preservar o
monopólio de poder (a terra) sob controle da classe hegemô-
nica (os latifundários escravistas). Sob a direção política des-
sa classe, utilizando-se de um mecanismo jurídico, surgiram
determinadas dificuldades ao trabalhador livre de acesso à
terra, enquanto se facilitava a apropriação da mesma pelos
grandes proprietários, pelo instituto do reconhecimento das
posses.
À medida que o grupo dirigente via seus monopólios
ameaçados – terra e trabalhado escravizado –, passou a pro-
por medidas para assegurar tais monopólios, ou seja, já que
a escravidão ficara tendencialmente condenada com a extin-
ção do tráfico internacional, o grupo tratou de deslocar o peso
da dominação do cativo para a posse da terra.60 No período
colonial, o sistema tradicional de aquisição de terra era as-
segurado por dois instrumentos da Coroa portuguesa: carta
de doação e foral. Ligada aos princípios das capitanias here-
ditárias, a propriedade territorial originou-se nas concessões
de sesmarias ou por meio de simples posses com o objetivo

60
BRAZIL.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 235


de promover a ocupação, o desenvolvimento e o povoamento
territorial.
Efetivamente, com a aprovação da Lei Imperial de Eusé-
bio de Queirós (1850), extinguindo o tráfico internacional de
trabalhadores africanos, criou-se a necessidade da reorgani-
zação do trabalho. A transição do trabalho escravizado para
o trabalho livre, somada à redefinição de um novo estatuto
que passou a orientar a estrutura fundiária, decorreu das no-
vas estruturas econômicas e sociais organizadas a partir do
século 19: “A expansão dos mercados e o desenvolvimento do
Capitalismo motivaram uma reavaliação das políticas tradi-
cionais da terra e do trabalho”.61 Assim, até 1822, o sistema
tradicional de aquisição de terra permitia o fácil acesso à ter-
ra por meio de doações de sesmarias e, de 1822 a 1850, do
sistema de “posse livre”.
Com a extinção do tráfico internacional, proibiu-se, pela
lei de n. 601, 18.09.1850 (Lei de Terras), que as terras pú-
blicas fosem entregues sem ônus. “Ficam proibidas as aqui-
sições de terras devolutas, por outro título que não sejam o
da compra”. Porém, como assinalado, o caminho para a apro-
priação da terra, sem pagamento, aos grandes proprietários
seguia viabilizado pela possibilidade de reconhecimento das
“posses”. Tratava-se, nos fatos, de proibir ou dificultar a posse
da terra pelo homem livre, nacional ou emigrado para obrigá-
lo a vender sua força de trabalho em mercado de trabalho
livre.62 Tanto a Lei de Terras como a lei da extinção do tráfi-
co funcionaram como verdadeiros dispositivos utilizados, em
momentos de crise, pela classe proprietária para assegurar
o monopólio de poder sob seu controle no momento em que o

61
COSTA, Emília Viotti da. Políticas de terras no Brasil e nos Estados Unidos. In.
Da monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Brasiliense, 1987,
p. 244-247.
62
BRAZIL, Maria do Carmo. Fronteira negra. Dominação, violência e resistência
escrava em Mato Grosso -1718-1888. Passo Fundo: Editora da Universidade de
Passo Fundo (Editora da UPF), 2002, p. 153-158. (Coleção Malungo).

236 Maria do Carmo Brazil


Brasil foi sendo integrado no mercado mundial. Daí a aplica-
ção dessa lei, sobretudo com a supressão do escravismo.63
A primeira lei emancipacionista (Lei Rio Branco –
n. 2.040 de 28.09.1871) criava um fundo emancipador para
compra de alforrias seletivas. Para cumprir os dispositivos
da lei, o então presidente da província de Mato Grosso, Fran-
cisco José Cardoso Júnior, libertou 62 escravos em 25 de mar-
ço de 1872, com juramento à Carta constitucional. Durante
1872-1873, os escravizadores deviam registrar seus cativos
(Matrícula Especial) nas coletorias dos municípios, pois cabia
ao presidente da província a distribuição dos recursos do fun-
do de emancipação. A lei priorizava as famílias escravizadas;
depois os indivíduos, por ordem de preferência.
Em um livro aberto para Matrícula Especial, os escravi-
zadores tinham de indicar o nome e uma série de outras infor-
mações para cada escravizado que possuíam. Registravam-
nos nas mesmas coletorias e também de forma nominativa e
informavam as mudanças demográficas e sociais de escravi-
zados adultos e menores. As coletorias eram compostas pelo
promotor público, pelo coletor e pelo presidente da Câmara.
Por outro lado, os párocos deveriam fornecer informações so-
bre os nascimentos e óbitos de cativos.64
Portanto, as leis e medidas imperiais não podem ser vis-
tas como planos de liquidação da escravidão, mas, sim, como
estratégias consensuais visando atenuar às pressões exter-
nas e internas e, ao mesmo tempo, manter a escravidão até
seu último fôlego. Essas medidas foram variadas: tráfico
interprovincial; as alforrias seletivas pelo fundo de emanci-
pação; as manumissões concedidas para assinalar batizados,
casamentos, etc.; facilidades de alforrias a partir do pecúlio
escravo; deslocamento dos escravos urbanos para a empresa
agrícola, etc.
63
COSTA, Políticas...
64
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-188. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 237


Nessa nova empreitada, em âmbito regional, particular-
mente na região Sant’Anna de Paranaíba, ganhou realce
uma figura emblemática daquele tempo: o padre Francisco
Sales de Souza Fleury. Para garantir o monopólio de terras
e de mão-de-obra no momento de superação do escravismo
colonial, Fleury mediou inúmeros processos de manumissões
incluídos em heranças de famílias escravizadoras regionais,
como a de José Garcia Leal e a de Maria Garcia Tosta.
Esse papel de intermediador de alforrias concedidas
para assinalar batizados e casamentos levou alguns analistas
a vê-lo, equivocadamente, como militante abolicionista, con-
forme afirmações a seguir: “O sul de Mato Grosso foi pioneiro
na luta abolicionista. Sem discursos, sem alarde, os líderes
daqui foram conseguindo a alforria dos escravos. Em Santana
do Paranaíba, o Padre Francisco de Sales Sousa Fleury conse-
guiu a liberdade de inúmeros deles, iniciando com o exemplo
de casa, alforriando os seus. Acrescente-se que padre Fleury
teve de sua escrava (Joaquina) quatro filhos”.65
O discurso de Hildelbrando Campestrini revela que, além
de agenciador do segmento dominante, o padre soube muito
bem defender seus próprios interesses. Quando viu seus mo-
nopólios ameaçados, lançou mão de mecanismos capazes de
prolongar ao máximo seus poderes, conforme evidenciam os
documentos contidos no Livro de Notas do Cartório de San-
tana do Paranaíba de 1865. Consta num desses documentos
que o padre Francisco de Sales Souza Fleury alforriou Angelo,
de 20 anos, Belmiro, de 25 anos, e Romana, de 18 anos, to-
dos filhos dele próprio com a liberta Joaquina. Porém, eram
alforrias condicionadas, pois os escravizados teriam de conti-
nuar servindo-o até “perfazer cada um a idade de trinta anos,
findo os quais entrarão no gozo pleno de sua liberdade, como
se nascessem de ventre livre. [...] rogando-lhes, todavia não
65
CAMPESTRINI, Hildebrando. Os escravos no sul de Mato Grosso. Instituto
Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul. Disponível em: http://www.ihg-
ms.com.br desde 19/ 12/2007.

238 Maria do Carmo Brazil


desampararem a sua mãe, e aos seus irmãos até que se case
ou fique emancipada a última irmã.”66

A rota dos pioneiros


Na década de 1830 entraram pela costa leste de Mato
Grosso os colonizadores interessados em suas potencialida-
des pastoris. Tratava-se das famílias Garcia Leal, Rodrigues
da Costa, Correia Neves, Barbosa e Lopes. Na companhia de
parentes, agregados e trabalhadores escravizados, estabele-
ceram-se a três léguas de Sant’Anna Paranaíba, próximo do
ribeirão Ariranha, com o objetivo de desenvolver plantagem,
engenho e, sobretudo, cultura pastoril. Genros e filhos de Ja-
nuário Garcia Leal Sobrinho permaneceram por muito tempo
nesse lugar antes de partir para a região que deu origem à
cidade de Três Lagoas. Luís Correa Neves fincou raízes ao sul
da vila de Sant’Anna, em águas do rio Quitéria.
Indispensável nessa verdadeira rede de dominação era
a montagem da estrutura administrativa, como igreja, para
estabelecimento da autoridade eclesiástica, e repartições ca-
pazes de abrigar tabelionatos, os ofícios de notas, registros
públicos, escrituras e outros documentos. Em 1836, foi erigi-
da a paróquia Sant’Ana do Paranaíba, pela junção de esforços
da família Garcia e do padre Francisco Sales de Souza Fleury,
já referidos. Dois anos depois foi instalado o distrito adminis-
trativo subordinado à comarca de Mato Grosso, sediado em
Cuiabá.
Antonio Gonçalves Barbosa, por sua vez, saiu de
Sant’Anna de Paranaíba e penetrou no espaço sulino mato-
grossense, atraído pelas narrativas sobre a preciosidade dos
Campos de Vacaria, os quais se constituíam de terrenos pla-
nos e úberes, águas excelentes e muito gado alçado. Defen-

66
Livro de nota 03, documento n. 2, p. 119-120. Cartório do 1º. Ofício de Sant’Anna
de Paranaíba, 1865.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 239


dido por nativos e cobiçado por colonizadores castelhanos e
luso-brasileiros, esse espaço se caracteriza por dispor domi-
nantemente da vegetação do cerrado, o segundo maior bioma
brasileiro, ainda hoje muito utilizado para a criação do gado.
Nos relatos monçoeiros, reunidos na obra História das
bandeiras paulistas (1951) de Afonso d’ Escragnolle Taunay,
constam a presença de gado selvagem, constituído em ma-
nadas deixadas pelos jesuítas das missões.67 Segundo o iti-
nerário traçado pelo sertanista Joaquim Francisco Lopes, os
Barbozas teriam capturado cerca duzentas cabeças de gado
vacum bravio para começarem o criatório.68 Essa família ge-
ralista de Minas chegou à região trazendo algumas cabeças
para mesclar com o gado selvático da região, conforme tam-
bém mencionamos.69 Convencidos de que o sul de Mato Grosso
dispunha de bons pastos e de que era um lugar promissor, os
Barbosa rumaram para o interior da região levando cativos e
provisões necessárias. Dos latifúndios formados as famílias
pioneiras lograram prestígio, riqueza e poder. Instalaram fa-
zendas, estenderam mais e mais suas posses, alcançando no-
vas terras, transpondo rios. E toda a parte sul do antigo Mato
Grosso foi sendo ocupada por colonizadores interessados na
aquisição de terras e no potencial bovino.
Segundo a crônica organizada por Campestrini e Gui-
maraes, acompanhava Antonio Gonçalves Barbosa seu genro
Gabriel Francisco Lopes, que em 1839 se fixou num local a
que denominou Boa Vista, entre os rios Vacaria e Brilhante,

67
TAUNAY, Afonso d’ Escragnolle. História das bandeiras paulistas. São Paulo:
Melhoramentos/INL/MEC, 1975. T. III, p. 139. (Relatos Monçoeiros).
68
Itinerário das viagens exploradoras empreendidas pelo Sr. Barão de An-
tonina para descobrir uma via de comunicação entre o porto da vila de
Antonina e o baixo Paraguai na Província de Mato Grosso; feitas nos anos
de 1844 e 187 pelo sertanista Joaquim Francisco Lopes, e descritas pelo
Mapista inglês João Henrique Elliot.. O Documento foi doado ao IHGB
pelo Barão de Antonina e em seguida foi feita a transcrição do manuscrito
inédito para efeito de publicação. Cf. Revista do Instituto Histórico e Geo-
gráfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1848, v. 10, p. 153-262.
69
GOULART, Alípio. Op. cit., p. 61.

240 Maria do Carmo Brazil


sendo um dos primeiros ocupantes, depois da retirada das
Missões castelhanas.70
Logo chegou ao sertão dos Lopes grande leva de sul-rio-
grandenses com suas famílias, os quais, dispondo de seus
pequenos rebanhos de bovinos, equinos e ovinos, passaram
também a se instalar na região. Os descendentes dos Lopes
buscaram as margens dos rios Brilhante, Vacaria e Doura-
dos.71 Mas ainda havia muita terra devoluta para atender à
avidez dos especuladores.

Legitimando o latifúndio
Um exemplo de procedimentos ilícitos de usurpação de
terras refere-se a João da Silva Machado, barão de Antonina,
vulto proeminente da região do Paraná, que na segunda me-
tade do século 19 procurou garantir a posse do território que
abrangia a região de Sant’Ana de Paranaíba, Rio Brilhante,
Miranda, Nioaque, Aquidauana, Ponta Porã, Porto Murtinho
e Bela Vista. Somadas a essas terras, o barão buscou a legiti-
mação de extensas áreas do norte do Paraná. Em 1848, João
da Silva Machado já era dono de vasto patrimônio fundiário,
com propriedades em São Paulo e estados circunvizinhos. Às
vésperas da promulgação da Lei de 1850, o barão imediata-
mente procurou se apropriar de forma privada do amplo terri-
tório que hoje abrange eminentes municípios de Mato Grosso
do Sul.
Hildebrando Campestrini e Acyr Vaz Guimarães lem-
bram: “Sabia o barão de Antonina que seria promulgada uma
lei [Lei de terras de 1850] facultando a todos os posseiros o
direito de requerer, como propriedade, a terra de domínio pú-
blico, sob ocupação, qualquer que fosse sua extensão; ambi-
cionando terras do sul de Mato Grosso, contratou os serviços
70
Itinerário das viagens exploradoras empreendidas pelo Sr. Barão... Op. cit,
p. 260.
71
Ibidem.

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 241


do sertanista Joaquim Francisco Lopes, que além de conhece-
dor da região, tinha nelas os irmãos Gabriel e José Francisco,
de quem saberia, naturalmente, tudo o que viesse a servir aos
interesses do barão.”72 (Fig. 1).
Foi assim que o barão de Antonina contratou os serviços
do Joaquim Francisco Lopes, experiente conhecedor daquelas
paragens, e do mapista inglês João Henrique Elliot. Além dis-
so, este sertanista encarregado contava com a ajuda de seus
irmãos Gabriel e José Francisco Lopes, alguns dos primeiros
ocupantes do vale dos rios Vacaria e Brilhante. A intenção do
barão era, com verbas públicas, abrir uma via de comunicação
fluvial do Paraná até o baixo Paraguai, beneficiando as terras
que pretendia legitimar como patrimônio privado. Consta, se-
gundo a crônica de Hildebrando Campestrini, que “em 1847
Lopes e comitiva entraram pelo rio Ivinhema e chegaram a
Albuquerque, anotando o percurso, com detalhes riquíssimos,
principalmente os referentes aos primeiros povoadores e aos
índios”.73
Cabe lembrar que a Lei de 1850 propunha, entre outras
medidas, que o Estado passasse a exercer um rigoroso contro-
le sobre o espaço agrário. Impunha também as condições para
converter sesmarias em documento negociável, na forma de
propriedade privada, quanto à recognição e à titulação efetiva
das posses obtidas anteriormente à promulgação da referida
lei. Mas, conforme observou o cientista social Luiz A.C Norder,
o tênue limite entre o público e o privado, entre a legislação
e os jogos políticos permitiu a continuidade e a ampliação do

72
CAMPESTRINI, Hildebrando; GUIMARÃES, Acyr Vaz. História de Mato Gros-
so do Sul. Campo Grande: Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, 1991,
p. 41.
73
CAMPESTRINI, Hildebrando . As derrotas do sertanejo. Instituto Histórico e
Geográfico de Mato Grosso do Sul. Disponível no site http://www.ihgms.com.br
, desde 19/ 12/2007.

242 Maria do Carmo Brazil


processo de concentração fundiária.74 Emergia, nesse contex-
to, o grileiro, figura indispensável no processo de expansão da
ocupação de terras. Graças à habilidade de “legalizar” terras
junto ao poder estatal, o grileiro dispunha de dois dispositivos
essenciais: a falsificação de títulos de sesmarias ou a monta-
gem dos processos de regularização de posses supostamente
anteriores a 1850.75
O processo dos Embargos de Mato Grosso, publicado em
1924 pelo advogado Astolpho Rezende, na obra O Estado de
Mato Grosso e a supostas terras do Barão de Antonina, com-
prova a falsificação de posse do barão e acusa seu agente Jo-
aquim Francisco Lopes de “arranjar algumas escrituras de
terras em Mato Grosso, para fim de converter-se em grande
proprietário de latifúndios naquela província [...] de posse
dessas escrituras que eram na sua quase totalidade escritura
de mão, o referido barão fez delas um simulacro de registro,
perante o vigário da freguesia de Miranda”.76
Fatores como imprecisão referente ao tamanho das
propriedades, carência de demarcação e suspeitas quanto à
fiscalização determinaram demandas judiciais que se prolon-

74
NORDER, Luiz A.C. Políticas de assentamento e localidade: os desafios da re-
constituição do trabalho rural no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia Rural)
– Universidade de Wageningen, 2004, p.6. Sobre as raízes do sistema público na-
cional arraigado no patriarcalismo e nas relações indistintas entre o público e
o privado consultar FRANCO, Mª Silvia de Carvalho. Homens livres na ordem
escravocrata. São Paulo: Ática, 1974.
75
NORDER, Políticas de Assentamento..., p. 6.
76
REZENDE, Astolpho. O Estado de Mato Grosso e as supostas terras do Barão
de Antonina. Rio de Janeiro: Papelaria Sta Helena – S. Monteiro & Cia Ltda,
1924, p. 35. Sobre Política de terras e de mão de obra ver: BRAZIL, Maria do
Carmo e SABOYA, Vilma Eliza T. de. Política de terras e a política de mão-de-
obra no Brasil e seus reflexos na Província de Mato Grosso. Campo Grande:
PROPP/UFMS, 1994. (Pesquisa financiada pela UFMS). Ver também SABOYA,
Vilma. A Lei de Terras (1850) e a política Imperial – seus reflexos na Província
de Mato Grosso. Revista Brasileira de História. São Paulo, 1995, v.15, n.30,
p. 130-132. (Dossiê Historiografia – Propostas e Práticas).

Sobre os campos de Vacaria do Sul de Mato Grosso 243


garam por longos anos, algumas alcançando as primeiras dé-
cadas do século 20.77
Na porção sul de Mato Grosso, a apropriação territorial,
na forma de propriedade privada, realizada pelo barão de An-
tonina foi judicialmente contestada pelo Estado, consideran-
do sua notável dimensão, cuja extensão alcançava milhares
de hectares contíguos. Entretanto, inúmeros latifundiários
lograram alcançar a regulamentação das sesmarias doadas,
sobretudo durante o Império, e mesmo terras obtidas por
meios fraudulentos foram legitimadas e convertidas em títu-
los de propriedade privada.78
A formação das classes dominantes locais e regionais foi
marcada pela instauração de eficazes procedimentos de apro-
priação privada da terra no Brasil e fez ampliar a exclusão
social.79 As reações das forças sociais submetidas ao poder
latifundiário-escravista ensejaram a montagem de um apa-
rato político repressivo e autoritário como fatores inerentes
aos diferentes momentos da história brasileira, justificando
análises mais detidas sobre o tema na região.80

77
Cf. PORTO. José da Costa. O sistema sesmarial no Brasil. 2. ed. Brasilia. Ed. da
UnB, 1979.
78
NORDER, Políticas de Assentamento..., p. 7.
79
Ibidem.
80
Ibidem.

244 Maria do Carmo Brazil


Propriedades pastoris e
escravidão no Pantanal de
Miranda (séc. 19)

Elaine Cancian*

Os espaços ainda vazios do sul de Mato Grosso começa-


ram a ser ocupados por criadores de gado no final do século
18, pois a atividade pecuária já demonstrava poder contribuir
com o desenvolvimento econômico da capitania. A imensidão
dos terrenos de pastagens era convidativa aos criadores e vis-
ta pelas autoridades como potencial à expansão pastoril. Por
isso, o século 19 foi marcado pela fundação de grandes pro-
priedades rurais dedicadas à lida com o gado.
No início do século 19, existiam poucos povoados nas ter-
ras que hoje formam o Mato Grosso do Sul. Havia moradores
nas cercanias do presídio de Miranda, do Forte de Coimbra,
no destacamento do Piquiri, no sertão dos Garcia (Freguesia
de Santana de Paranaiba) e nos povoados de Albuquerque,
Ladário e Nossa Senhora de Albuquerque (atual Corumbá).

*
Docente do Curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul/CPAN. Este trabalho é parte dos projetos “A produção pastoril no Piauí,
no Mato Grosso do Sul e no Rio Grande do Sul, de 1780 a 1930: um estudo
comparado”, coordenado pelo Dr. Mário Maestri, financiado pelo CNPq, e “A
produção pastoril no sul de Mato Grosso: economia e sociedade (1780-1930),
coordenado pela autora.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 245


Miranda, o forte de estaca
Na busca pela manutenção das posses portuguesas, o
governador da capitania de Mato Grosso, Caetano Pinto de
Miranda Montenegro, determinou a fundação do presídio de
Miranda na margem direita do rio Mondego. A ocupação pelos
portugueses, do território onde se assentaria a cidade de Mi-
randa teve início em 1797. Os fundamentos de um forte foram
lançados estrategicamente para apoiar o projeto português de
conter os espanhóis e as investidas dos nativos e, sobretudo,
proteger a população do sul da capitania de Mato Grosso, sob
a vigia portuguesa. A essa época, já existiam os povoados de
Albuquerque, Ládário e Nossa Senhora de Albuquerque (atu-
al Corumbá) em processo de crescimento.
Após a inundação do rio Mondego e a destruição do pe-
queno forte por uma enchente, o povoado, assentado nas suas
vizinhanças, foi reconstruído distante das margens do rio e,
segundo o viajante francês Francis Castelnou, que passou
por essas regiões em 1845, “reconstruíra-no no lugar em que
está; a um tiro de canhão das margens do rio”.1 Castelnou
presenciou a realidade local. Das suas impressões de viajan-
te, percebe-se seu aprazimento ao ser acolhido no lugarejo.
Relatou ter sido recebido em Miranda com tiros de canhão e
conduzido pelo comandante a uma “casinha bastante limpa”,
onde foi bem tratado pelas pessoas.2
O forte de Miranda era um cercado edificado de pau-a-
pique. Madeiras pontiagudas medindo mais de três metros
eram cravadas no chão formando altas paredes. Internamen-
te, a paliçada era protegida por um anteparo de terra e, exter-
namente, por um fosso. O objetivo era proteger o povoado dos
nativos guerreiros e demais invasores. Já na primeira meta-
de do século 19, a estacada encontrava-se fragilizada e pouco
1
CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Belo
Horizonte-Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000.p. 394.
2
Idem

246 Elaine Cancian


protegeria os alojamentos da guarnição e dos oficiais, a capela
e as moradias localizadas ao longo do rio Mondego.
Conforme Castelnau, à época de sua passagem, o forte
não “aguentaria a investida de qualquer inimigo”,3 pois ob-
servara grande parte da estacada caída, o fosso obstruído e o
anteparo interno de terra quase arruinado. Era frágil a cons-
trução e ínfima a quantidade de soldados ocupados na defesa
local e nas patrulhas mensais nas fronteiras com o Paraguai.
Condenados a galés eram mantidos presos no local.
Os armamentos do forte compunham-se de armas de ca-
libre três e seis, fuzis e sabres. Em um espaço alpendrado,
algumas armas ficavam à disposição dos soldados; as demais
eram guardadas no armazém geral.4 Nas terras mato-gros-
senses, o alpendre serviu ao homem diversamente de outras
regiões. O alpendre era o espaço escolhido para guardar gente
e objetos, para a acolhida dos viajantes, para as festas e rezas
costumeiras, para a observação dos trabalhadores escraviza-
dos, para a proteção da moradia em razão do calor excessivo.
Estabelecida a guarnição militar com comandante, te-
nentes, subtenentes, cadetes e soldados, o governador da ca-
pitania de Mato Grosso buscava garantir a posse e utilização
das terras dos pantanais. Apaziguada a resistência dos na-
turais à ocupação de suas terras, foi possível a fundação de
estabelecimentos agropastoris na região guarnecida por re-
presentantes administrativos da Coroa portuguesa.

Casas de barro e palha


Em 1845, Miranda possuía duzentos habitantes, entre
brancos, caburés, nativos, mulatos e negros. Castelnau rela-
tou: “Os habitantes de Miranda são na sua maioria mulatos
ou caburés; os restantes são negros, com exceção talvez de

3
Idem. p. 394.
4
Idem. p. 394-395.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 247


uns dois ou três brancos muito duvidosos. O que constitui po-
rém o grosso da população são os índios, que em número de
quatro ou cinco mil vivem espalhados pela redondeza.”5
Os moradores locais viviam seus dias em casas cober-
tas de palha cercadas por estacas de taquaruçu. Afastadas
uma das outras por extensos quintais, as moradias exibiam
seus pomares com laranjeiras e demais arvoredos frutíferos.
A paisagem entusiasmou Castelnou ao observar a impossi-
bilidade de avistar todas as habitações locais em razão dos
“verdejantes pomares” que fixavam os limites espaciais da vi-
zinhança.6
A historiografia registra a simplicidade da maioria das
moradias mato-grossenses do século 19. Viajantes estrangei-
ros referiram-se às casas edificadas de barro e cobertas com
palha desprovidas de conforto e objetos de luxo. Nos povoados,
vilas ou fazendas, essas edificações imprimiam à paisagem
um certo bucolismo. Algumas habitações mato-grossenses
edificadas com paredes de adobe revestidas de barro, com a
técnica do sopapo, recebiam caiação. Mesmo as que possuíam
cobertura de telhas em duas águas eram úmidas internamen-
te, sobretudo porque, de chão batido, não escapavam das chu-
vas que embebiam o solo.

Gado alçado nas cercanias de Miranda


Dotadas de pastagens naturais, as terras pantaneiras
oferecem condições propícias à criação bovina. Por isso, desde
os tempos das disputas e tentativas de ocupação das terras do
Novo Mundo entre Espanha e Portugal, esse espaço foi alvo
da presença de espanhóis e de portugueses, bem como dos
rebanhos bovinos e equinos essenciais à prática de atividades
e à própria sobrevivência do homem. Desde o final do século
5
CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Belo
Horizonte-Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000. p. 398.
6
Idem. p. 394.

248 Elaine Cancian


16, quando os espanhóis rumaram para o Pantanal, com o fim
de estabelecer um povoado para servir de apoio aos viajan-
tes, bois, cavalos e vacas foram trazidos à região carregando
alimentos e objetos dos colonizadores. Em 1600, os espanhóis
fundaram o arraial de Santiago de Xerez, introduzindo bovi-
nos e equinos nas terras pantaneiras. Além do rebanho intro-
duzido pelos espanhóis, o Pantanal recebeu animais trazidos
por jesuítas.
De acordo com os historiadores Paulo Esselin e Tito Oli-
veira, no artigo “Terra onde o gado criou o homem e definiu
o latifúndio”, de 2007, os jesuítas alcançaram o Pantanal a
partir de 1828, em fuga das invasões dos paulistas no Guai-
rá, atual estado do Paraná, instalando-se entre o rio Miran-
da e o rio Apa, região do Mato Grosso do Sul conhecida na
época como Itatim e habitada por nativos. Os autores sul-
mato-grossenses explicam: “O jesuíta, ao lançar mão do gado
bovino e cavalar para desenvolver suas reduções entre os ín-
dios itatins, estava lançando, sem o saber, as bases da pecuá-
ria mato-grossense e sul-mato-grossense, como fizera no Rio
Grande do Sul e Uruguai”.7
Invadidas entre 1632 a 1649 pelos bandeirantes à pro-
cura de mão-de-obra nativa para ser escravizada, as reduções
Santiago de Xerez e Itatim foram abandonadas e os rebanhos
de gado bovino e equino, deixados na região pelos espanhóis
e jesuítas. Esselin e Oliveira registram que o gado vacum e
cavalar espalhou-se pelo Pantanal sul-mato-grossense e que,
no início do século 19, eram milhares os animais na planície
pantaneira “vivendo silvestremente e sem trato algum […]”.8
O gado alçado disperso pelas terras pantaneiras teria
encontrado na região de Miranda as extensas pastagens, ocu-

7
ESSELIN, Paulo M.; OLIVEIRA, Tito C. M. Terra onde o gado criou o homem e
definiu o latifúndio. Dossiê: A fazenda pastoril e a escravidão. História: Debates
e Tendências, Passo Fundo: UPF,, v. 7, n. 2, jul./dez. 2007, publ. n. 2º sem. 2008.
p. 104.
8
Idem p. 106.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 249


padas posteriormente por criadores de gado vindos de outras
regiões. Desde o início do século 18 há referências à existência
de criadores de gado estabelecidos nas imediações do povoado
de Miranda. Em 1818, à época de passagem do português e
oficial de engenheiros Luiz D’ Alincourt, existiam alguns sí-
tios a pouca distância do presídio, cujos proprietários criavam
gado. Os pequenos criadores da região adquiriam os animais
bovinos e cavalares dos nativos e vendiam-nos em Cuiabá. A
facilidade para a aquisição dos animais e a abundância de
pastos foram grandes incentivos à população interessada na
posse da terra e à fazenda pública.
Conforme D’ Alincourt, o poder público mantinha uma
fazenda de gado vacum: “As campanhas de Miranda, que em
grande parte são inundadas no tempo próprio, abundam em
pastagens excelentes, o que faz produzir exuberantemente o
gado vacum e cavalar. A Fazenda Pública possui em Miranda
uma Fazenda de gado vacum, que monta já 9500 cabeças, não
contando o gado bravo, que por ter faltado a gente necessária
para lidar com ele, anda disperso pela campanha; o cavalar
chega a 750 cabeças, devendo-se notar que o estabelecimento
desta fazenda é moderno, pois não chega a ter 16 anos.” 9 O
próprio viajante observou o gado pastando livremente dentro
do presídio, porque parte da trincheira se encontrava arrui-
nada.
As extensas terras devolutas nas cercanias de Miranda
e a existência de manadas de gado alçado ofereciam grandes
expectativas e oportunidades de enriquecimento. Mesmo as-
sim, como observou Luiz D’ Alincourt, no início do século 19
ainda eram poucos os sítios de criação de gado.

9
D’ ALINCOURT, Luiz. Memória sobre a Viagem do porto de Santos à cidade de
Cuiabá. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Ed. da Universidade de São Paulo,
1975. p. 175.

250 Elaine Cancian


Impulso à pecuária sul-mato-grossense
Em Mobilidade populacional na fronteira Oeste de colo-
nização, de 2005, o historiador mato-grossense Jovam Vilela
da Silva propõe que fazendas foram sendo formadas no atual
Mato Grosso do Sul, a partir de 1829, época da fundação de
Santana de Paranaíba e consequente penetração na Vacaria
mato-grossense por criadores de gado oriundos de Minas Ge-
rais. Nessa obra, o autor registra a inserção do gado em Mato
Grosso do Sul, trazido do triângulo mineiro: “Pontas de gado
tangido do triângulo mineiro transpuseram o rio Paranaíba
e se fixaram no sul do Estado. Essas primeiras levas busca-
ram o Coxim fugindo do Pantanal. Outras ultrapassaram os
afluentes da margem direita do rio Paraná e se estabeleceram
entre a Serra de Maracajú […] buscando sempre as margens
do riachos, córregos e rios das terras altas.”10
Vilela da Silva registra sobre a penetração do gado em
Miranda: “Mais tarde galgaram a serra e se estenderam pela
planície de terras férteis do rio Miranda e da baixada inundá-
vel do rio Paraguai. Esses campeiros de Minas Gerais afazen-
daram-se nos vales do rios Pardo, do Sucuruí, do Ivinhema, à
beira do rio Miranda e de seus afluentes como o Feio, o Santo
Antônio da Cava, do rio Prata, do Desbarrancado, humani-
zando a agreste paisagem do sul mato-grossense.”11
A fundação de novas fazendas agro-pastoris e a expan-
são da criação de gado na região teve novo impulso após o
movimento de 1834, conhecido por Rusga. Para Rubens de
Mendonça, em História de Mato Grosso, de 1967, a Rusga foi
“o movimento nacionalista contra os adotivos habituados ao
mando dos tempos coloniais, duro e áspero, sobretudo nas Ca-
pitanias mais distantes. A ‘Rusga’ foi o movimento de reação
10
SILVA, Jovam Vilela da. Mobilidade populacional na fronteira Oeste de colo-
nização.História do Brasil variável regional:Mato Grosso. Cuiabá, KCM, 2005.
p. 135.
11
Id.ib. p. 135.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 251


a essa prepotência […]”.12 Na noite de 26 de maio de 1834, os
nativistas, com machados e alavancas à mão, violaram casas
comerciais e assassinaram vários portugueses. A repressão
do governo contra os líderes e participantes do movimento e a
existência de terrenos distantes de Cuiabá colaboraram para
que voltassem as atenções para o sul da província de Mato
Grosso.
Em sua tese de doutorado, “A pecuária no processo de
ocupação e desenvolvimento econômico do Pantanal sul-ma-
to-grossense (1830–1910)”, de 2003, empenhado no estudo so-
bre a ocupação do pantanal sul mato-grossense e utilizando
informações de cronistas regionais, o historiador Paulo Esse-
lim registrou que, em 1836, Salvador Luiz dos Santos, um dos
participantes da Rusga, encontrava-se estabelecido próximo
ao forte de Miranda, empenhando-se na criação de bovinos e
equinos, plantação de lavouras e extração de sal. Nas proxi-
midades, estabeleceram-se Benedito Pedro Duarte, fundador
da fazenda Curral da Taquara, em 1846, e José Alves de Ar-
ruda, fundador da propriedade São José Jatobá, 1847.13 Foi
assim, também, que os Alves Ribeiro fundadores de algumas
fazendas, estabeleceram-se próximos a Miranda e fundaram
a conhecida fazenda Taboco.
Paulo Esselin assinalou estabelecimento dos Alves Ri-
beiro na parte sul de Mato Grosso: “[…] José Alves Ribeiro,
Presidente da Câmara Municipal de Cuiabá em 1833 e um
dos líderes do movimento ‘Rusga’, em função da repressão
governamental, embrenhou-se pelo Pantanal com parentes e
amigos, estabelecendo-se à margem direita do rio Negro, aci-
ma do Anhumas, e fundando a fazenda Potreiro, onde ficou

12
MENDONÇA, Rubens de. História de Mato Grosso.Através dos seus governa-
dores. [s.l.]: [s.n.], 1967, p. 39.
13
ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária no processo de ocupação e desenvolvimen-
to econômico do Pantanal sul-mato-grossense (1830–1910). Tese (Doutorado
em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2003.p. 165-166.

252 Elaine Cancian


Antônio Alves Ribeiro. Após andanças exploratórias, o grupo
desceu até a margem do rio Taboco, onde o major João Al-
ves Ribeiro e o doutor Generoso Alves Ribeiro fundaram a
fazenda Taboco.”14 Todavia, José Alves Ribeiro, o Juca Costa,
comprou a fazenda Forquilha, às margens do rio Miranda e
Nioaque, em continuidade ao empreendimento agropastoril
iniciado em 1834 pelo major João José Gomes, comandante
do forte de Miranda.
A historiografia regional menciona com certa insistência
alguns dos grandes proprietários de terras estabelecidos no
sul da Província de Mato Grosso, sobretudo aqueles cuja des-
cendência se preocupou em deixar registros sobre as lutas dos
“desbravadores” dos inóspitos sertões mato-grossenses. Obras
memorialistas ressaltam o pioneirismo de certas famílias
desbravadoras das terras sul mato-grossenses. É assim que
teremos vivos na memória regional os citados Alves Ribeiro
(Miranda); os Gomes da Silva (Corumbá); os Pereira Leite
(Cáceres). Todavia, nos arquivos regionais vão surgindo dos
inventários post-mortem e testamentos de outros proprietá-
rios de terras, donos de gado, colaboradores no empreendi-
mento da ocupação e na exploração da pecuária. Uma pesqui-
sa atenta na documentação primária produzida no século 19
em Miranda revelou detalhes preciosos para a história regio-
nal, sobretudo no tocante à presença dos trabalhadores escra-
vizados nos sítios e nas fazendas do sul de Mato Grosso.
A informação sobre proprietários de cativos, de gado, de
fazendas, de instrumentos usados no campo e de vários ou-
tros objetos, observada na documentação, ajuda a entender a
região e o modo de viver das famílias pantaneiras no final do
século 19.
Os inventários arrolados e analisados são registros
produzidos nos anos que se seguiram à Guerra do Paraguai
(1865-1870), período em que a região foi invadida e saque-

14
Loc.cit.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 253


ada pelas tropas paraguaias. Os documentos de anos ante-
riores, mantidos na vila, provavelmente foram destruídos
por ocasião da guerra, assim como as habitações e os objetos
sagrados existentes na igreja. Conforme, Lenine Póvoas, em
História Geral de Mato Grosso, 1995, os paraguaios depreda-
ram a igreja de Miranda, “[…] destruindo altares, carregando
adornos de imagens e instalando naquele templo a sede do
seu comando […]”.15
Na época da guerra, os fazendeiros e os moradores da
vila de Miranda refugiaram-se nas encontas da serra de Ma-
racajú, deixando suas propriedades, animais e moradias à
mercê dos invasores. “Nos seus relatórios os comandantes
paraguaios mencionaram que haviam apreendido na região
2.435 bovinos, 12 cavalares e 7 muares.”16O ocorrido nos faz
pensar que, provavelmente, durante a guerra grande quan-
tidade de animais foi retirada das fazendas para atender às
necessidades das tropas paraguaias; por isso, observamos
na documentação dos anos subsequentes à invasão uma pe-
quena quantidade de animais nas extensas propriedades da
região. Além da diminuição dos rebanhos, do saque das pro-
priedades e privações causadas pela guerra, os fazendeiros
enfrentaram a perda de braços escravizados enviados como
soldados para o teatro de guerra. A documentação consulta-
da registra uma pequena população escravizada colocada nos
trabalhos domésticos e da lavoura. Além disso, a primeira lei
emancipadora (Lei Rio Branco-n. 2.040 de 28.09.1871) criou
a possibilidade da compra de alforrias seletivas e obtenção da
liberdade por um número significativo de escravizados, cola-
borando também para a involução da escravidão na região.

15
PÓVOAS, Lenine C. História geral de Mato Grosso. (Dos primórdios à queda do
Império).Cuiabá/MT: [s. ed.], 1995. p. 278.
16
Id. ib. p. 274.

254 Elaine Cancian


Sítio, fazendas e fazendeiros do pantanal
Nos inventários da vila de Miranda observamos o regis-
tro de sesmarias, fazendas e sítios. Em Pantanais matogros-
senses, de 1946, Virgílio Corrêa Filho lembra que, no antigo
Mato Grosso, eram conhecidas por “fazenda” as terras rurais
destinadas à criação bovina. “Generalizou-se como unidade
territorial nessas paragens a sesmaria de uma légua de frente
por três de fundo, ou equivalente a 13 068 hectares.”17 A par-
tir da sesmaria adquirida, o proprietário requeria as terras
contíguas, formando uma extensa propriedade, usada para
prática da pecuária extensiva. Paulo Esselin explica: “A justi-
ficativa para incorporar grandes áreas no Pantanal era a de
que durante as cheias, como parte das terras ficava alagada,
necessitava-se de outro terreno correspondente, inacessível
às enchentes, para onde o gado pudesse refugiar-se. Além do
que, a pecuária extensiva praticada no Pantanal tem carac-
terísticas próprias, é realizada em extensas áreas, exigência
do pequeno suporte dos campos, que comporta em cada 3,3 ha,
apenas uma cabeça.”18
Na prática, a extensão das propriedades registradas nos
documentos produzidos na vila de Miranda no século 19 foi
bem maior. Entre a documentação analisada aparecem fazen-
das medindo até seis léguas de frente e sete de fundos, [205,8
mil ha] no valor de (4:000$000); sesmarias com três léguas de
fundo e dois de testada (29,4 mil ha) a (2:000$000) e “posse de
terra de campos de criar e matas de cultura” abrangendo três
léguas de testada e três de fundos (44,1 mil ha) a (500$000).

17
CORRÊA FILHO, Virgílio. Pantanais matogrossenses. Devassamento e ocupa-
ção. IBGE, Rio de Janeiro, 1946. p. 67.
18
ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária no processo de ocupação e desenvolvimen-
to econômico do Pantanal sul-mato-grossense (1830–1910). Tese (Doutorado
em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2003.p. 169.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 255


Fazenda Piquy
Joaquim de Souza Moreira e sua esposa Anna Gertrudes
Moreira, moradores da fazenda Piquy, na margem esquerda
do rio Aquidauana, eram grandes proprietários de terras na
região. A fazenda possuía “três léguas de testada e três de
fundos confinando ao Norte com a posse do finada dona Maria
Domingas servindo de limite uma baia grande; ao poente com
a posse do tenente coronel Leopoldino Lima de Faria tendo
para limite um carandazal grande; ao sul, com a posse do
finado Felisardo Gomes, servindo de limite a baia conhecida
por Maria do Carmo; ao norte, com a posse do finado capitão
Joaquim Paes da Viega, tendo por limite o rio Aquidauana”.19
Essa imensidão de terra, avaliada em 500$000, valia a meta-
de do preço de um trabalhador escravizado da época.
Em 1883, por ocasião do falecimento do alferes Joaquim
Moreira, foram arrolados, entre outros bens, “[…] uma pos-
se de terreno de criação e cultura denominado Ponadigo com
meia légua de testada [3.500 m] e duas e meia de fundos
[17.500 m] confrontando ao sul com o córrego Ponadigo ao
nascente com a posse de Simplicio Xavier Tavares da Silva e
ao poente com o posseiro originário-vendedor da mesma Hen-
rique Augusto Pereira de Andrade”. “[...] uma posse de terras
de campos de criação e matos de cultura à margem do mesmo
córrego Ponadigo que confina ao sul com o lugar conhecido
por Laranjal grande; ao nascente com o Pirizal grande; ao
norte com o córrego Ponadigo que termina no dito laranjal; ao
poente como o morro das Canoas com duas léguas de fundos
e uma e meia de frente”. Igualmente, a família tinha “uma
posse de terra de lavoura e criação de gado no lugar denomi-
nado Boritysal à margem direita do rio Aquidauana com uma
légua de testada e duas e meia e mais ou menos de fundos
confinando ao sul com a fazenda denominada Aninane; ao

19
Inventário de Joaquim de Souza Moreira. n. 157/09. Vila de Miranda, 1879.

256 Elaine Cancian


norte com terra devoluta; ao nascente com a posse de João
Dias da Crus Cordeiro”. Finalmente, “uma posse de campos
de criar e matas de cultura no lugar denominado Cabriúva
com três léguas de testada e três de fundos confinando ao sul
com a posse de Joaquim da Motta Coelho; ao nascente com a
posse de dona Filomena Anna Florisbella Machado; ao norte
com a fazenda de Camapoam e a posse de Henrique Augusto
Ferreira d’ Andrade”.20
Instrumentos de trabalho necessários à lida no campo,
como um enxó, um formão, seis machados, uma serra e um
serrote braçal eram usados nas posses de Joaquim de Souza
Moreira. As propriedades destinavam-se à criação de gado
e ao cultivo da lavoura. A existência de um alambique, de
engenho e de tachos indica a prática da moagem da cana-
de-açúcar e a preparação de seus subprodutos. Com fuso de
quatro arrobas, o alambique poderia ser usado na preparação
de aguardente e os tachos, para cozimento do caldo da cana
na obtenção da rapadura.
Nos campos de criação de Joaquim de Souza Moreira
encontravam-se 687 cabeças de gado e 51 animais cavalares.
Na Tabela 1 relacionamos a quantidade de animais e seus
respectivos valores.

20
Idem.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 257


Tabela 1 – Quantidade e valor de gado vacum e cavalar
Espécie Gado Quantidade Valor
Bois de corte 50 1:000$000
Bois mansos de carro 20 600$000
Gado bravo alto e baixo 400 2:800$000
Garrotes de 2 a 3 anos 37 555$000
Garrotes de ano 20 200$000
Novilhos de 2 a 3 anos 40 600$000
Novilhos de ano 30 300$000
Vaca mansa com cria 60 1:500$000
Vaca solteira mansa 30 600$000
Burros novos 2 1:60$000
Cavalos de serviço 9 54$000
Éguas bravas 24 720$000
Pastores 2 120$000
Poldros de ano 13 260$000
Fonte: Inventário de Joaquim de Souza Moreira. Miranda. Província de Mato Grosso. 157/09,
1879. Arquivo Tribunal de Justiça de Campo Grande/MS.

O fazendeiro tinha à sua disposição dois carros ferrados


puxados pelos “bois mansos de carro” para locomoção e traba-
lhos pesados da fazenda. Para deslocamento através dos rios
contava com uma chalana pesando seiscentas arrobas (9.000
kg). Distante do núcleo urbano e das posses localizadas às
margens de rios é possível o uso constante da chalana, em-
barcação de pequeno ou médio porte com proa e a popa de
formato quadrado e fundo chato, usada para navegação nos
rios pantaneiros. Era comum nas terras mato-grossenses o
deslocamento dos proprietários das fazendas até o povoado ou
vila mais próxima em chalanas, em carros de boi, no lombo de
animais ou em rede conduzida por cativos.
Em Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829,
o francês Hercules Florence, segundo desenhista da expedi-
ção científica organizada pelo cônsul geral da Rússia, o ba-
rão George Heinrich von Langsdorff, registrou o costume do
mato-grossense de viajar em rede: “Em caminho fomos visitar

258 Elaine Cancian


a fazenda do Buriti, de cana-de-açúcar e pertencente a uma
velha chamada D. Antônia, a qual chegou ao mesmo tempo
que nós, vindo de Cuiabá. Viajava de um modo novo para nós,
carregada por dois negros numa rede suspensa a uma grossa
taquara de Guativoca. De muda iam outros dois pretos aos la-
dos. Acocorada nessa rede e a fumar num comprido cachimbo,
vinha ela seguida de negras e mulatas, todas vestidas limpa-
mente e carregando à cabeça cestos, trouxas e roupas, vasi-
lhas de barro e outros objetos comprados há pouco.”21
Identificamos, para 1872, cinco trabalhadores escra-
vizados sob a posse de Joaquim de Souza Moreira. 22 O cativo
Sisenando de Souza, 22 anos, crioulo, administrava a fazenda
Piquy; Rumão de Souza, 20, crioulo, era responsável pelo ser-
viço de pedreiro; Venância de Souza, 16, crioula, preparava as
refeições, e Angélica, 12, crioula, era pajem da casa. A função
de administrador da fazenda Piquy era entregue a um cativo,
fenômeno pouco comum.

Sítio Guavi
Maria Alves da Conceição Faria mantinha no sítio Guavi,
distante 12 km da vila de Miranda, criação e lavoura. Além do
sítio, onde residia, era proprietária de “uma sesmaria de criar
e lavoura no lugar denominado Rio Negro”.23 Os instrumentos
de trabalho usados nas propriedades eram quatro enxadas,
um enxó, um escaroçador de algodão, dois formões, uma serra
e um serrote. Havia também um engenho de moer cana, dois
tachos de cobre pesando duas arrobas e uma caldeira de três
arrobas, provavelmente usados na preparação dos subpro-
21
FLORENCE, Hercules. Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829.
São Paulo: Cultrix, 1977. p. 161.
22
Relação dos escravos para serem matriculados pertencentes a Alferes Joaquim
de Souza Moreira residente em sua Fazenda denominada Piquy nas margens
do rio Aquidauana. Arquivo do Tribunal de Justiça de Campo Grande/MS.
157/09. p. 10.
23
Inventário Maria Alves da Conceição Faria. N. 157/26. Vila de Miranda.1882.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 259


dutos da cana-de-açúcar. As plantações limitavam-se a três
alqueires (7,26 ha) de feijão rasteiro e quatro alqueires (9,68
ha) de milho, cuidados pelos trabalhadores escravizados.
Antônio Joaquim, Claudino, Faustino, Fillipe e João,
cativos registrados como lavradores, destinavam-se aos tra-
balhos do plantio, com quase certo envolvimento nas ativida-
des esporádicas do engenho, já que os esforços da família se
voltavam à lavoura e à criação de animais. Além dos cativos
lavradores, Maria Alves era servida pela escravizada Prudên-
cia, registrada como cozinheira da casa. A Tabela 2 mostra os
bens semoventes da inventariada.

260 Elaine Cancian


Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19)

Tabela 2 – Cativos pertencentes a Maria Alves da Conceição Faria residente em seu sítio denominado Guavi na
Província de Mato Grosso - 1978
Nome Cor Idade Estado Civil Filiação Naturalidade Profissão

Antônio Joaquim preta 26 solteiro Rita Mato Grosso lavrador


Claudino cabra 46 viúvo não conhecido Mato Grosso lavrador
Faustino preta 44 solteiro Juliana Mato Grosso lavrador
Filippe preta 45 solteiro Juliana Mato Grosso lavrador
João preta 27 solteiro Mariana Mato Grosso lavrador
Prudência mulata 30 solteiro não conhecido Minas Gerais cozinheira
Fonte: Inventário post-mortem. Miranda. Província de Mato Grosso. 157/26, 1882. Arquivo Tribunal de Justiça de Campo Grande/MS. (Relação nº 11 dos
escravos matriculados a 1º de agosto de 1878 pertencentes a D. Maria Alves da Conceição residente em seu sítio denominado Guavi na província
de Mato Grosso)
261
Entre os bens da inventariada Maria Alves, 1883, en-
contramos arroladas 346 cabeças de gado, sendo 150 reses
bravias, nos campos de Santa Avoga; 94 reses mansas de toda
idade e sexo; 29 vacas mansas solteiras; 28 novilhos de seis
meses a dois anos; quinze bois de um a três anos; treze touros,
também com seis meses a dois anos; oito juntas de boi de car-
ro; seis vacas mansas com cria e três bois de carro e sela.

Fazenda da Esperança
Propriedade do casal Joaquim Ferreira de Mello e Anna
Conceição Almeida, a fazenda Esperança, com suas benfeito-
rias, foi avaliada em 10:000$000 em 1884, quando ocorreu a
partilha dos bens que ficaram por falecimento de Joaquim. No
documento não foram arrolados bens móveis, mas constam
animais e cativos, como pode ser observado nas Tabelas 3 e 4.

Tabela 3 – Animais do proprietário Joaquim Ferreira de Mello


Espécie de gado Quantidade Valor
Éguas mansas (a 50$) 2 100$000
Vacas 4 50$000
Vacas 5 75$000
Vacas com crias ( a 23$) 6 240$000
Vacas com crias ( a 30$) 18 540$000
Fonte: Inventário de Joaquim Ferreira de Mello. 158/20. Vila de Miranda. 1884.

Tabela 4 – Cativos do proprietário Joaquim Ferreira de Mello


Nome do cativo Valor
Cypriana 1:500$000
Eva (libertada) 600$000
Jacintho 200$000
João 1:000$000
Laurinda 1:000$000
Lucinda 1:000$000
Maria 700$000
Victoriana 900$000
Fonte: Inventário de Joaquim Ferreira de Mello. 158/20. Vila de Miranda. 1884.

262 Elaine Cancian


Não foram acrescentadas informações sobre a cor, idade,
naturalidade e profissão dos escravizados da relação dos se-
moventes. Porém, na relação de cativos matriculados perten-
centes a Joaquim Ferreira aparecem dados completos sobre
os trabalhadores da fazenda da Esperança. Em 1872, oito es-
cravizados foram registrados como propriedade do fazendei-
ro. O documento, copiado na íntegra, mostra a existência da
profissão de lenheira, não encontrada em outros documentos
produzidos na região.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 263


Tabela 5 – Relação nº 45 dos escravos matriculados em 25 de setembro de 1872 pertencentes a herança de
264

Joaquim Ferreira de Mello, residente na Fazenda da Esperança (Província de Mato Grosso)

Nome Idade Cor Estado Naturalidade Filiação Profissão Aptidão para o serviço Observação
Não
Isia 63 preta - desconhecida cozinheira bom serviço -
conhecida
Laurinda 41 preta viúva desconhecida Isia pajem bom serviço -
Eva 51 cabra solteira Mato Grosso Maria cozinheira bom serviço -
Jacintha 53 preta viúva desconhecida ignora-se lenheira bom serviço -
Cypriana 16 cabra solteira desconhecida Maria cozinheira bom serviço -
João 9 cabra solteira desconhecida Maria menor menor -
Maria 9 cabra solteira desconhecida Maria menor menor -
Catharina 58 preta solteira Africana ignora-se lenheira bom serviço -
Fonte: Vila de Miranda, 14 de Outubro de 1880.
Elaine Cancian
Fazenda Boa Vista
O inventário de Maria Pires da Veiga, de 1882, registra
a fazenda de criar Boa Vista, localizada à margem direita do
rio Aquidauana. A fazenda possuía casas de morada com co-
bertura de telha, medindo sessenta palmos de frente (12 m)
por quarenta de fundos (8 m), avaliada em 5:000$000; 24 um
engenho de madeira para moer cana, um tacho grande e um
pequeno, ambos de cobre, pesando 99 kg, usados na proprie-
dade. Inexistem animais entre os bens semoventes, apesar de
fazenda em posse familiar.
As duas trabalhadoras escravizadas em posse da família
eram colocadas a todo serviço. A cativa Mariana, 22, cozinhei-
ra, parda e natural de Santana de Paranaíba, foi comprada
de Elesiano Loureiro de Moraes e avaliada no inventário a
1:200$000; a cativa Ricarda Pires, 18, pagem, cabra, com
o mesmo valor. No inventário de Maria Pires aparece uma
pequena embarcação conhecida por “prancha”, avaliada em
500$000. Característica da região, a prancha de proa lançada,
bordos largos e salientes, com uma cobertura chata de tábuas,
impulsionada a vara, era usada como meio de transporte de
carga em alguns rios da bacia do Paraguai.

Vacaria e Ariranha
As fazendas Vacaria, com quatro léguas de largura e cin-
co de comprimento (98 mil há), e Ariranha, com três léguas
de comprimento e um de largura (14,7 mil há), inventariadas
em 1872, eram propriedades de Manoel Ferreira de Mello e
Maria Ignacia do Nascimento. O casal possuía ainda uma fa-
zenda de criar com duas léguas de comprimento e treze de
largura (197,4 mil ha). Em bens, no inventário de Maria Ig-
nacia aparecem 125 animais entre vacuns e cavalares, oito
trabalhadores escravizados e um carro pequeno. Nas tabelas
6 e 7 são apresentados os bens semoventes.
24
Inventário de Maria Pires da Veiga. N. 158/01. Vila de Miranda.1882.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 265


Tabela 6 – Relação de cativos
Nome do Cativo Idade
Floriana 13
Justina 20
Margarida 9
Sebastião 17
Silvestra (surda) 20
Claudina 18
Theodora (doentia) 46
Venceslao 13

Tabela 7 – Relação de animais


Espécie de gado Quantidade
Bois de carro 7
Cavalos 6
Mula 1
Poldro 1
Reses brancas 50
Reses mansas 60
Fonte: Inventário de Maria Ignácia de Nascimento. N. 156/08. Vila de Miranda, 1877.

Com gado e cativos, mas sem terras?


No inventário de Firmo Martins Homine Borges, de
1884, morador no lugar Campo Grande, 2º distrito da vila de
Miranda, não aparece propriedade fundiária arrolada entre
os bens. Entretanto, pela quantidade de animais relaciona-
dos no documento, presume-se a posse de alguma extensão de
terra. Oitenta e seis animais vacum e cavalar aparecem entre
os demais bens. 25
O inventariado apresenta em móveis um armário, uma
bacia de cobre, um enxó, uma espingarda de dois canos, um
rosário de ouro e um tacho de cobre. Em semoventes, vinte
vacas paridas, dezessete vacas solteiras, doze bois carreiros,
onze novilhos de dois anos, dez carneiros, nove novilhos de
ano, dois jumentos, um cavalo baio, um cavalo castanho, um
cavalo velho, um égua parida e um poldro de dois anos.

25
Inventário de Firmo Martins Homine Borges. N. 158/18. Vila de Miranda.
1884.

266 Elaine Cancian


Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19)

Tabela 8 – Cativos de Firmo Martins Homine Borges


Nome Idade Cor Estado Naturalidade Filiação Profissão Aptidão
Ildefonso 28 preta solteiro crioulo desconhecida carreiro Boa
Inocência 23 preta solteira crioula desconhecida cozinheira Boa
Eva 19 preta solteira crioula desconhecida roceiro Boa
José 17 preta solteiro Crioulo desconhecida lavadeira Boa
nascido a -
Galdino 17/10/1871 parda solteiro Rio Verde/ Goiás Prudência ingênuo
nascido a
Joana 20/10/1878 parda solteira Rio Verde/ Goiás Eva ingênuo -
nascido a
Sebastiana 04/10/1880 preta solteira Rio Verde/ Goiás Eva ingênuo -
Fonte: Inventário de Firmo Martins Homine Borges. N. 158/18. Vila de Miranda. 1884.
267
Francisca Bernarda de Jesus e seu esposo, José Joa-
quim Alves Terra, também não possuíam grandes extensões
de terra. Francisca, quando inventariada, em 1884, tinha em
posse um par de canastras, um rancho coberto de capim e
alguns bens semoventes. O inventário registrou trinta porcos
de criar, sete vacas paridas, seis garrotes de três anos, cinco
novilhas de dois anos, duas vacas sem crias, um boi manso e
uma égua mansa.26
A quantidade de bens relacionados no documento mos-
tra a vida simples do casal referido. Apenas uma moradia
de capim e duas canastras para guardar os objetos. Embora
destituídos de objetos de valor e propriedades, contavam com
três trabalhadores escravizados: Jeronima, 37, cozinheira, e
os cativos João, 15, e Paulo, 14. Todos foram registrados como
pretos, solteiros, de boa aptidão para o trabalho e oriundos da
província de Minas Gerais.

Sesmarias, fazendas e fazendinha…


Entre os bens do inventariado Henrique Augusto Ferrei-
ra de Andrade, de 1873, descobrimos sesmarias, fazendas e
fazendinhas. A fazenda Correntes, localizada na margem es-
querda do rio Aquidauana, media seis léguas de frente e sete
de fundos (205,8 mil há). Confinava, ao sul, com a serra conhe-
cida por João Dias; ao poente, com Canuto e nascente com a
cachoeira Grande – avaliada em 4:000$000. Possuía também
um terreno, em frente a Correntes, com três léguas de frente e
uma de fundo (14,7 mil ha), avaliado em 500$000. As terras da
“fazendinha” Catêpa [500$000] estavam localizadas na mar-
gem direita do rio Miranda e destinavam-se à lavoura e criação.
No inventário constava, igualmente, a posse “de uma sesmaria
que serve para lavoura e criação denominada Lagiado, acima
da Serra, avaliado em 200$000”, e “uma sesmaria para criação,
no lugar denominado Agachy, avaliado em 100$000”.27 Em ani-
mais, contavam oitocentas cabeças de gado vacum (8:000$000)

26
Francisca Bernarda de Jesus. N. 158/23. Vila de Miranda. 1884.
27
Inventário de Henrique Augusto Ferreira de Ondrade. N. 156/01. Vila de Mi-
randa. 1873.

268 Elaine Cancian


Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19)

e doze cavalos (1:200$000) e quatro escravizados matriculados em nome da viúva Gertrudes Nunes
Augusta.
Tabela 9 – Relação dos escravos para serem matriculados pertencentes à dona Gertrudes Nunes Augusta resi-
dente no Município de Miranda Província de Mato Grosso-1872

Número Nome Idade Moradia Estado Cor Naturalidade Profissão

1 Reginaldo Ferreira 40 vila Miranda solteiro preto Cuiabá ourives


2 Gaudencio 36 vila Miranda solteiro preto Costa d' África cozinheiro
3 Hylario Ferreira 12 vila Miranda solteiro caburé Miranda Pajem
4 Félix Ferreira 10 vila Miranda solteiro caburé Miranda Pajem
Fonte: Inventário de Henrique Augusto Ferreira de Ondrade. N. 156/01. Vila de Miranda. 1873. p. 11.
269
Dividindo terras
Casos presentes na documentação estudada evidenciam
a existência de uma prática na região do Pantanal. Algumas
pessoas tinham a posse de “partes de terras” nas grandes fa-
zendas. Em vida, Ignes Elvira de Albuquerque era proprie-
tária de “uma parte de terras na fazenda denominada Santa
Gertrudes no valor de 200$000 e uma parte na fazenda Bu-
rity comprada por 100$000, tendo benfeitoria de um monjolo
de rego da água, existindo ranchos de capim que serve de
morada”.28 Além das “partes de terra”, possuía uma casa com
duas salas de frente na freguesia de Santa Rita de Lervergi-
nia, medindo doze braças (26,4 m) de terreno ao sul e três (6,6
m) ao norte. Os objetos resumiam-se a dez cadeiras, duas me-
sas, dois tachos de cobre, um armário grande e ainda, um car-
ro velho. Em semoventes, dezessete bois de carro, duas bestas
mansas, um cavalo e uma cativa chamada Marcelina, preta,
30, cozinheira e com aptidão para todo serviço. Da mesma
forma, em 1880, Maria Ignacia Zeferino29 possuía “terrenos
da fazenda do Monte Alegre […] e três cativos”, sendo Adão,
preto, 24, cozinheiro, Luiza, crioula, 18 e Sezario, crioulo, 13.
O inventariado Manoel Ribeiro de Souza (1876) era pro-
prietário de uma parte nos campos da fazenda Água Fria,
avaliada em 71$600, e possuía poucos animais: 130 reses de
criar (910$000) e uma sorte de gado alçado na fazenda Taqua-
ruçu, vendidas ao capitão José Francisco Fialho, além de um
carro velho ferrado e um serrote. Apenas o cativo Adão, 18,
(1:500$000) foi arrolado no inventário. 30
Em 1876 foi constado que Francisco José de Souza pos-
suía uma parte na fazenda Córregos (50$000); uma parte na
fazenda Água Fria (50$000) e uma sesmaria medindo três lé-
guas de fundos e duas de testada (29,4 mil há) na região cha-
28
Inventário de Ignês Elvira de Albuquerque. N. 158/13. Vila de Miranda.1883.
29
Inventário de Maria Ignacia Zeferino. N. 157/18. Vila de Miranda. 1880.
30
Inventário de Manoel Ribeiro de Souza. N. 156/04. Vila de Miranda, 1876.

270 Elaine Cancian


mada Dominguino, avaliada em 2:000$000.Tinha em bens
móveis cem cabeças de gado alçado espalhado na sesmaria
citada, nove bois de carro, um cavalo e, em semoventes, os
cativos Manoel, 17, Rita, 20 e Felisberto, 60. Do último cativo
não obtinha posse completa, mas meia ação.31
Em 1868, durante a Guerra do Paraguai, os escraviza-
dos de Francisco e sua esposa, Ritta Maria Barboza, recebe-
ram “liberdade condicional”, registrada em Camapuã. No do-
cumento registrou-se que os cativos Manoel e Rita serviriam
ao casal por 25 anos e, em caso de morte, continuariam traba-
lhando para os herdeiros até completarem o tempo necessário
– ou seja, seriam livres em 1893, se ainda vivessem. O escra-
vizado Felisberto deveria servir ao casal por seis anos, até os
66 anos; findo esse período, ficaria à disposição do herdeiro, o
qual possuía a outra parte do cativo.

O fazendeiro Joaquim Alves Correa


Entre os proprietários com maior quantidade de ani-
mais observados nos inventários encontramos o tenente-co-
ronel Joaquim Alves Corrêa, possuidor, em 1878, de duas mil
cabeças de gado vacum na Fazenda do Taboco, no valor de
14:000$000, e de quatrocentas reses na Fazenda Curral de
Taquaras, avaliadas em sete mil reis cada uma, totalizando
2:800$000. Como bens de raiz constavam sesmaria de criação
e cultura denominada Taboco, localizada entre o rio Taboco e
o Negro, e uma sesmaria de criação e cultura, Curral das Ta-
quaras, com benfeitorias, no lugar entre os ribeirões Poeira e
Córrego Fundo. Alves Correa possuía também um terreno de
doze braças (26,4 m) de terras na vila de Miranda, localizado
no largo da Matriz. Sob seu poder, havia dois trabalhadores
escravizados: Theodora, preta, 28, cozinheira, e Feliciano,
preto de oito anos de idade e colocado a todo serviço.

31
Inventário de Francisco José de Souza. N. 156/06. Vila de Miranda, 1876.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 271


Jóias, cativos e engenho
Dos documentos analisados, o inventário de Eulália
d’Arruda Pinto, de 1878, desperta a atenção pela quantidade
de jóias relacionadas. Eulália era proprietária de uma sesma-
ria de terras e campos de criar, distante 42 km da vila de Mi-
randa. Na sesmaria, mantinha um alambique, um engenho
de madeira para moer cana, uma fornalha protegida em uma
varanda coberta de capim e dois tachos de cobre. A casa da
inventariada era simples: “de madeira lavrada contendo duas
salas, corredor e varanda coberta de telhas em parte e outra
de capim por não estar concluída”.32 Os únicos bens de utili-
dade doméstica eram “três pares de canastras encouradas de
sela preta com pregos dourados e duas mesas regulares uma
com gaveta e outra sem, de madeira de cedro.”33 Também fo-
ram arrolados dois carros velhos em mau estado, avaliados
em 150$000.
Em ouro, registraram-se seis anéis com pedras de dia-
mante (275$000); dois relicários, sendo um coberto com vidro
(35$000); um alfinete de peito (1:200$000); uma cruz (6$000);
um Divino Espírito Santo (4$000); um menino Jesus (5$000);
um trancelim (25$000); um cordão de um metro e trinta e
quatro (25$000); um cordão pequeno de 53 cm (15$000); dois
pares de brincos (15$000 e 5$000). Constam, igualmente, no
inventário como bens semoventes 33 reses mansas de criar;
dez bois de carro, dois cavalos. Além de dois trabalhadores
escravizados, Antônia, 77 anos (300$000), e Maria, 30 anos
(1:000$000).

32
Eulália d’ Arruda Pinto. N.157/05. Vila de Miranda. 1878.
33
Idem.

272 Elaine Cancian


Porcos, cavalos e cativos…
No inventário produzido após falecimento do casal Ma-
noel Dias Baptista Oreste e Thereza Joaquina do Espírito
Santo, 1874, encontramos registrados onze escravizados, sen-
do a maior quantidade de mão-de-obra cativa encontrada nos
inventários arrolados na vila de Miranda. Entretanto, cinco
entre eles não se encontravam ainda em idade produtiva,
sendo, eventualmente, filhos ou netos das cinco cativas em
idade fértil do casal.

Tabela 10 – Escravizados do inventariado Manoel Dias Baptista Oreste


Nome do cativo Cor Idade
Bonifácia não informado 40
Florentina cabra 25
Benedicta cabra 23
João crioulo 22
Maria crioula 18
Innocencia cabra 16
Honorata mulata 7
Conceição crioula 5
Joaquina cabra 5
Antônio cabra 18 meses
Cicílio mulato recém-nascido
Fonte: Inventário de Manoel Dias Baptista Oreste e Thereza Joaquina do Espírito Santo. Nº
156/02, 1874.

Encontra-se registrada uma propriedade, no local deno-


minado Carandá, onde se localizava a fazenda com benfei-
torias. Na mesma, havia três lances de curral; dois retiros,
um com dois lances de curral e outro com um lance, e um
cercado grande com todas as plantações necessárias. Havia,
igualmente, um terreno no local denominado Dois Amigos. É
interessante notar a existência na fazenda de uma parte de
terras cercada para plantações, provavelmente usadas para
alimentação da família e alguma venda. O cultivo de peque-

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 273


nas roças por cativos roceiros era comum para atender às ne-
cessidades alimentares na época.
Os bens e instrumentos de trabalho da fazenda Caran-
dá eram poucos: um chinelo de prata de silhão; um rabicho
aparelhado de prata; uma sela campeira; duas foices; três en-
xadas; três machados. Para proteção da família ou para caça
era usada uma espingarda de dois canos. Além desses objetos
foi arrolada uma porção de louça da serventia da casa, não
discriminada no inventário. Em posse da família havia 411
animais: duas bestas; dois cavalos; 112 porcos, entre grandes
e pequenos; trezentas reses marcadas e divisadas.

O que faziam os escravizados nas


fazendas do Pantanal?
A historiografia tradicional ocultou quase completamen-
te os trabalhadores escravizados do sul de Mato Grosso, so-
bretudo quando se tratava das discussões sobre o trabalho no
campo. Os cativos foram ocultados do cenário historiográfico
regional para dar espaço pleno aos nativos habitantes da re-
gião. Considerados únicos responsáveis pela lida nas diversas
atividades do meio rural, os nativos são lembrados como o
braço sustentador dos desbravadores do pantanal. Em Pan-
tanais matogrossenses, de 1946, Corrêa Filho, autor citado
por grande parte dos estudiosos, propõe: “Nos pantanais do
Miranda, a escassez de pessoal, conjugada com a boa vontade
[sic] dos naturais, ensejou a colaboração dos selvícolas, tere-
nos especialmente, que se revelaram auxiliares prestimosos
dos pioneiros”.34
Apesar da grande contribuição da historiografia tradi-
cional, a história tem sido revista e a resistência dos memo-
rialistas e alguns pesquisadores sul mato-grossenses, supe-
rada por novas pesquisas, apoiadas em documentos até então
34
CORRÊA Filho, Virgílio. Pantanais matogrossenses (Devassamento e ocupa-
ção).Rio de Janeiro, IBGE, 1946. p. 116.

274 Elaine Cancian


conservados nos arquivos e de pouco interesse para muitos.
A historiadora sul mato-grossense Maria do Carmo Brazil35,
pioneira no estudo sobre as revoltas cativas, na obra Frontei-
ra negra, de 2002, mostrou a participação dos trabalhadores
escravizados em assassinatos de escravizadores proprietários
de fazendas próximas à cidade de Corumbá, região fronteira
com a Bolívia.
Em Cativos nas terras dos Pantanais. Escravidão e resis-
tência no sul de Mato Grosso – séculos 18 e 19, de 2008, Zilda
Moura36 registrou a existência de inúmeros negros escraviza-
dos exercendo função de campeiros, lavradores, peões, rocei-
ros e vaqueiros. Com base nas fontes primárias, verificamos
a participação dos cativos em muitas atividades na região de
Miranda – aliás, em parte já apresentada no artigo “Cativos
nas fazendas pastoris do sul de Mato Grosso (1825-1888).
Considerações de pesquisa”, de 2007, no qual mostramos a
presença de trabalhadores escravizados nas cercanias de Co-
rumbá/MS e nas fazendas próximas ao rio Taquari: cativos
cozinheiros; lavradores; roceiros e com outras funções espe-
cializadas.37
Os documentos estudados revelaram a presença do tra-
balhador escravizado no campo. Trabalhadores negros vindos
da África ou nascidos na província de Mato Grosso e Minas
Gerais trabalhavam nos sítios, nas fazendas e sesmarias mais
longínquas da povoação de Miranda. Cozinhar, cuidar dos
afazeres domésticos, fabricar artefatos, lavar, lavrar e roçar
a terra eram algumas das atividades desempenhadas pelos
escravizados no sul de Mato Grosso, como pode ser observado
na Tabela 11, construída com informações retiradas dos in-
35
BRAZIL, Maria do Carmo. Fronteira negra. Dominação, violência e resistência
escrava em Mato Grosso -1718-1888. Passo Fundo: EdUPF, 2002. (Coleção Ma-
lungo).
36
MOURA, Zilda. Cativos nas terras dos pantanais. Escravidão e resistência no
sul de Mato Grosso – séculos 18 e 19. Passo Fundo: EdUPF, 2008. (Coleção
Malungo).
37
CANCIAN, Elaine. Cativos nas fazendas pastoris do sul de Mato Grosso (1825-
1888). Considerações de pesquisa. História: Debates e Tendências, Passo Fun-
do: UPF, v. 7, n.2, p. 119-137, jul./dez. 2007, publ. no 2º sem. de 2008.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 275


ventários. Porém, é preciso ressaltar a ausência de informa-
ções completas sobre os escravizados registrados em alguns
documentos. Todavia, observando o relatório produzido pela
Junta Classificadora de Escravos da Comarca de Miranda,
produzida no ano de 1885, é possível afirmar que, além das
profissões abaixo relacionadas, as cativas desempenharam
também a função de lavradora e costureira. 38

Tabela 11 – Profissão da população cativa da vila de Miranda/1873-


1884
Nome do cativo Cor Idade Profissão
Angelica crioulo 12 pajem
Antônio Joaquim preta 26 lavrador
Gaudencio preto 36 cozinheiro
Ildefonso preta 28 carreiro
Inocência preta 23 lavadeira
José preta 17 roceiro
Rumão de Souza crioulo 20 pedreiro
Sisemão de Souza crioulo 22 administrador
Venância crioulo 16 cozinheira
Jacintha preta 53 lenheira
Fonte: Baseado nos inventários post-mortem da vila de Miranda. Arquivo do Tribunal de Justiça
de Campo Grande/MS.

Casas rurais pantaneiras


Em Pantanais matogrossenses, de 1946, Virgílio Corrêa
Filho considerou rude a vida nas fazendas sul-mato-grossen-
ses: “Era-lhes, ao contrário, assaz penosa a labuta e inteira-
mente desprovida de conforto, de que não cogitavam as suas
habitações.” Registrou sobre as moradias: “As paredes de ado-
bes, quando não barreadas apenas a sopapo na maioria das
casas, alvejavam-se habitualmente pela caiação. A cobertura

38
Relatório da Junta de Classificação de Escravos de Miranda, 16 de Julho de
1885. Arquivo Público de Mato Grosso. Lata 1985-E.

276 Elaine Cancian


de telhas, em duas águas, não evitava o umedecimento inter-
no, durante a época das chuvas, quando o chão, de terra bati-
da, fartamente embebido de água do subsolo, ressumbrava-a
na superfície.” O autor registra somente uma das peças da
casa, a sala de frente: “amplamente rasgada, salvo em uma
das extremidades, fechada para acolher as mercadorias des-
tinadas às transações mercantis, de limitado giro, estendia-
se comprida mesa de tábuas sobre cavaletes, flanqueada de
bancos igualmente de madeira tôsca.”39
As famílias proprietárias de grandes extensões de terras
e cativos moravam em casas com cobertura de telhas – mes-
mo as moradias de madeira recebiam telhado diferenciado.
Alguns donos de pequena extensão de terra, possuidores na
região de um ou dois escravizados, moravam em ranchos co-
bertos de palha.
Ainda que tradicionalmente os viajantes tenham pro-
curado imortalizar a imagem do explorador da região, rela-
cionando-a ao homem rude, vivendo duramente em região
inóspita, as pesquisas têm evidenciado casos de fazendeiros
donos de objetos em prata e ouro e moradores de casas am-
plas, cobertas com telhas, servidos por importante número
de trabalhadores escravizados. A habitação poderia ser mais
modesta se comparada às casas-grandes dos engenhos nor-
destinos, mas suas coberturas feitas com telhas de barros dis-
tinguiam seus moradores daqueles que habitavam os velhos
ranchos pantaneiros.
Distante 42 km da vila de Miranda, a sesmeira Eulália
d’Arruda Pinto vivia em uma morada edificada de madeira
lavrada. A casa possuía duas salas, corredor e varanda co-
berta de telhas em parte e outra de capim.40 Uma casa com
cobertura de telhas demonstrava certo status na época, prin-
cipalmente se localizada no campo. A literatura dos viajantes

39
CORRÊA FIlHO, Virgílio. Pantanais matogrossenses. Devassamento e Ocupa-
ção. IBGE, Rio de Janeiro, 1946. p. 113.
40
Eulália d’ Arruda Pinto. N.157/05. Vila de Miranda. 1878.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 277


registra a existência de moradias muito simples para o Mato
Grosso do século 19.41
As principais moradias rurais pantaneiras, os chamados
“ranchos”, eram feitos de pau-a-pique, com paredes revesti-
das com barro e cobertos com folhas de palmeiras da região.
Essas edificações mais simples eram usadas também pelos
proprietários das terras destinadas às pequenas lavouras de
subsistência e criação de animais. Mas, além do rancho rústi-
co, as casas de madeira, alpendradas, também estiveram pre-
sentes no cenário pantaneiro. As figuras 1 e 2 mostram como
eram elevadas as moradias dos ocupantes do pantanal.

Fonte: Corrêa Filho, Virgílio. Pantanais matogrossenses (Devassamento e upação).Rio de Ja-


neiro, IBGE, 1946. p. 124.
Figura 1 – Construção rural. Tipo de rancho com paredes de pau-a-
pique, barreada e cobertura feita com palmas de uacuri

41
Ver entre outros: CASTELNOU, Francis. Expedição às regiões centrais da Amé-
rica do Sul. São Paulo: Nacional, 1987; FONSECA, João Severiano da. Viagem
ao redor do Brasil 1875-1878. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro & Cia,
1880; FLORENCE, Hercules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a
1829. São Paulo: Cultrix, 1977; MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Noticia sobre a
Província de Matto Grosso seguida D’um roterio da Viagem de sua Capital a São
Paulo. São Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869; SMITH, Herbert
Huntington. Do Rio de Janeiro a Cuyabá. São Paulo: Melhoramentos, (s/d)

278 Elaine Cancian


Fonte: Corrêa Filho, Virgílio. Pantanais Matogrossenses (Devassamento e Ocupação).Rio de
Janeiro, IBGE, 1946. p. 125.
Figura 2 – Construção típica das fazendas pioneiras do Pantanal. Cons-
trução com alpendre na frente

O interior das casas e seus objetos


A escravizadora Anna Gertrudes Moreira, moradora na
fazenda Piquy, margens do rio Aquidauana, também se abri-
gava em “casa coberta de telhas”. Na morada havia cozinha,
corredor, despensa, varanda e três salas de frente. A pequena
descrição feita no inventário de 1879, quando do arrolamento
de bens de seu esposo, o alferes Joaquim de Souza Moreira,
sugere uma casa ampla, porém com um interior desprovido
de objetos de luxo. 42 Não consta no documento relação de uti-
litários domésticos; o arrolamento volta-se à posse de cativos,
instrumentos de uso no campo e terras.
O interior de grande parte das casas dos possuidores
de cativos e terras era desprovido de mobiliário e objetos re-
quintados. Ao analisar os bens arrolados nos inventários das
famílias mato-grossenses, percebe-se a simplicidade da vida
rural. Dentre os inventários analisados encontra-se excepcio-

42
Inventário de Joaquim de Souza Moreira. N. 157/09. Vila de Miranda. 1879.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 279


nalmente mobília refinada, como a usada na moradia de Ma-
ria Alves da Conceição Faria, moradora nas adjacências da
vila de Miranda. Dentre os bens arrolados em sua residência
estavam cama, espelho, mesas feitas de jacarandá e cedro e
sofá de jacarandá – portanto, na época, uma mobília rara e
representativa de status. A cama era objeto pouco usual do
mato-grossense. Em Pão e pano ou prato e trato: em ensaio
sobre a casa mato-grossense, de 2004, a historiadora Nanci
Leonzo explica que a rede de dormir esteve presente na vida
doméstica rural e urbana dos moradores mato-grossenses. 43
Também foram relacionados como objetos da casa dois
castiçais e um almofariz. Contudo, o que chama a atenção
no inventário são os bens de raiz, semoventes e demais bens
móveis, pois, apesar da quantidade diminuta de utilitários
da casa, é possível verificar que a família de Maria Alves per-
tencia a um grupo privilegiado da sociedade. As posses rurais
compreendiam sesmaria de criar e lavoura no Rio Negro, pas-
to de criar e lavoura no lugar denominado, Guavi distante
“uma e meia légua” de Miranda. Na vila, possuía um terreno
de oito braças (17,6 m) na travessa das Palmeiras e uma mo-
rada de casas na rua do Carmo.
Objetos mais requintados usados na casa mato-grossen-
se foram registrados no inventário de Maria Pires da Veiga,
de 1882. Na moradia, com cobertura de telhas, havia armá-
rio, baú encourado, cadeiras de palhinha, canastra coberta
de sola, castiças de prata, mesa de jantar, mesas encouradas,
paliteiro de prata, relógio de mesa com redoma de vidro e sal-
va de prata. Interessante notar, além da posse dos objetos
de prata, as 47 oitavas de ouro lavado. O castiçal de prata
pesando 67 oitavas foi o objeto mais valorizado. Na Tabela 12
registram-se os bens móveis observados no inventário.

43
LEONZO, Nanci. Pão e pano ou prato e trato: em ensaio sobre a casa mato-
grossense. Territórios e Fronteiras, UFMT. v.5, n. 1, jan.- jun. 2004. p. 259.

280 Elaine Cancian


Tabela 12 – Bens móveis da inventariada Maria Pires da Veiga
Quantidade Objeto Valor
1 Armário 10$000
1 baú grande encourado 18$000
6 cadeiras de palhinha 18$000
1 canastra coberta de sola 20$000
1 mesa de jantar 20$000
2 mesas de jantar pequenas 20$000
6 mesas encouradas 12$000
1 paliteiro de prata 6$400
1 par de castiçal de prata 47$400
1 relógio de mesa com redoma de vidro 20$000
1 salva de prata 13$400
Fonte: Inventário post-mortem. Miranda. Província de Mato Grosso. 158/01, 1882. Arquivo Tri-
bunal de Justiça de Campo Grande/MS.

A maioria dos moradores das fazendas incrustados no


pantanal vivia mais adaptada aos objetos fabricados pelos
nativos, assim como os exploradores nos primeiros tempos da
colonização. No século 19, em terras inóspitas e distantes dos
centros de poder, os habitantes permaneciam ainda utilizan-
do utensílios de barro na cozinha, rede para sentar e dormir e
canastra para guardar roupas ou qualquer outro pertence. O
uso de talheres parece ter sido raro na região. Nos documen-
tos consultados não aparece vestígio da utilização de colheres,
facas ou garfos nas casas rurais pantaneiras. A familia panta-
neira vivia igual aos primeiros tempos da Colônia.
Em Famílias e vida doméstica, de 2004, a historiadora
Leila Mezan Algranti lembra que o mobiliário e os utensílios
eram escassos no interior da casa colonial, sobretudo os ta-
lheres. Nessa época, a posse de objetos não sugeria status ao
possuidor.44 As principais evidências de elevada posição social
eram a quantidade de escravizados e dos alimentos servidos à

44
ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In: SOUZA, Laura de
Mello e. (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na
América portuguesa. São Paulo: Companhia da Letras, 2004.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 281


mesa e a qualidade das roupas usadas, das jóias e dos cargos
ocupados.
A chegada da família real ao Brasil em 1808 colaborou
para a modificação do interior das moradias, principalmente
nos maiores núcleos urbanos. Novos objetos, mais requinta-
dos, foram inseridos nas casas dos proprietários mais abasta-
dos. Porém, nas terras mato-grossenses, ainda em pleno sécu-
lo 19, permanecia a simplicidade no interior de grande parte
das casas. O reconhecimento social do fazendeiro pantaneiro
estava atrelado às extensões das propriedades, à quantidade
de gado e à posse de cativos.
O mobiliário das casas pantaneiras reduzia-se a adre-
des, canastras, bancos, baús, mesas, mochos e tamboretes de
madeira. Na cozinha, potes e vasilhas simples de barro eram
usados para resfriar a água e preparar as refeições. Os mo-
chos e os tamboretes – bancos sem encosto de formato qua-
drado ou redondo – serviam de móveis de assento. Apesar das
mudanças em outras regiões brasileiras, os pantaneiros con-
viviam com os antigos objetos usados no século 17 e 18.
Certos objetos do interior da casa foram usuais dos mo-
radores rurais do sul da província de Mato Grosso, a exemplo
da canastra feita de madeira, usada para guardar roupas, e
da rede, destinada ao descanso diário. Algumas canastras
mais finas eram revestidas com couro. Na casa de Eulália
d’ Arruda Pinto, proprietária de sesmaria e de várias jóias,
havia “três pares de canastras encouradas de sela preta com
pregos dourados”, avaliadas em 150$000.45
Encontramos excepcionalmente a cama – rara no pe-
ríodo colonial – na morada do tenente Gentil Augusto de Ar-
ruda Fialho. Na relação dos bens móveis arrolados em 1882,
em razão do falecimento de sua esposa, aparecem uma cama
e um sofá de sala feito com madeira jacarandá. Provavelmen-

45
Inventário de Eulália d’ Arruda Pinto. N. 157/05. Vila de Miranda, 1878.

282 Elaine Cancian


te, o sofá deveria ser bem rústico, desguarnedido de estofo,
semelhante à preguiceira usada no século anterior. 46
Posse de extensas terras, uso do escravizado, cultivo de
pequenas plantações, lida com o gado, convivência com a rus-
ticidade, eis os dias dos fazendeiros pantaneiros moradores
nas circunjacências da vila de Miranda nos anos de 1873 a
1884.

46
Inventário de Maria Alves da Conceição Faria. N. 157/26. Vila de Miranda,
1882.

Propriedades pastoris e escravidão no Pantanal de Miranda (séc. 19) 283


A pecuária bovina e o processo
de ocupação do Pantanal
Sul-Mato-Grossense

Paulo M. Esselin*

O quadro natural do Pantanal


Sul-Mato-Grossense
O estado de Mato Grosso do Sul, localizado no Centro-
Oeste brasileiro, tem uma área de cerca de 357,4 mil km2,
sendo seu território delimitado pelos rios Paraná, a leste, e
Paraguai, a oeste. Politicamente, tem suas fronteiras demar-
cadas a leste com São Paulo, Minas Gerais e Paraná; ao norte,
com os estados de Mato Grosso e Goiás; a oeste, com Bolívia e
Paraguai e, ao sul, com o Paraguai. (Fig. 1).

284 Paulo M. Esselin


Fonte: Campestrini, Hildebrando; Guimarães, Acyr Vaz.
Figura 1 – História de Mato Grosso do Sul. 4. ed. Campo Grande:
Academia Sul Mato-grossense de Letras e Instituto Histó-
rico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 1995. Capa

No final do século 16, pioneiramente, os espanhóis radi-


cados no Paraguai iniciaram processo ocupação de uma ex-
tensa área que faz parte do atual estado de Mato Grosso do
Sul.
A região escolhida como definitiva pelos espanhóis para
se instalar fazia parte do Pantanal, hoje pertencente ao su-
doeste estadual, na fronteira com a Bolívia e o Paraguai. “La
tierra llamada Ytatyn” aparece pela primeira vez na relação

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 285


que fez Domingo Martinez de Irala, nobre espanhol que par-
ticipou da conquista e colonização da região do Prata, sendo
o segundo governador do Paraguai colonial, ao descrever, no
final de 1542, sua primeira entrada em terras pantaneiras.
Desde aquela época, a região do Itatim é descrita como um
lugar plano, ameno e habitado por numerosas e diferentes
etnias nativas.
Desde o início do século 16, os conquistadores espanhóis
penetraram nessa região através do rio Paraguai em busca do
Eldorado peruano. Foram eles os primeiros a registrar o fluxo
das águas, como também as lendas que cercavam a região.
Ulrico Schmidl, soldado alemão vindo para a América na ex-
pedição de Pedro de Mendonza – nobre espanhol que, seduzi-
do pelas riquezas americanas, empregou sua fortuna pessoal
para promover o descobrimento, conquista e colonização da
região do Prata, sendo o primeiro governador do Paraguai – e
que esteve, em busca da serra de Prata, na Companhia de
Alvar Nunez Cabeza de Vaca –, nobre espanhol que governou
o Paraguai por um curto espaço de tempo e, com recursos
próprios, montou uma grande expedição para conquistar ri-
quezas na América Meridional – revela: “Entonces marcha-
mos hacia las sobredichas amazonas; esas son mujeres con un
[solo] pecho y vienen a sus maridos tres o cuatro veces en el
año y si ella si embaraza por el hombre y es [nace] un varon-
cito, lo manda ella a casa del marido, pero si es una niñita, la
guardan con ellas y le queman el pecho derecho para que éste
no pueda crecer; el porqué le queman el pecho es para que
puedan usar sus armas [...].”1 E, em seguida, aponta dificul-
dades para se locomover no Pantanal naquele período: “[...]
nosotros caminamos durante siete días entre el agua hasta la
cinta y la rodilla. Pero la tal agua era tan caliente como una
agua caliente que ha estado sobre el fuego.”2
1
SCHMIDL Ulrico. Derrotero y viaje a España y las Indias. Buenos Aires. Espa-
sa Calpe. 1947.p. 86-87.
2
Idem. p. 88.

286 Paulo M. Esselin


Naturalmente, os espanhóis que escolheram o período
das águas para promover a sua entrada em busca do Eldora-
do foram obrigados a retornar em razão das cheias anuais do
Pantanal.
Alvar Nuñez Cabeza de Vaca deixou também registrado
o fenômeno das inundações por ele testemunhado: “Por vol-
ta de janeiro as águas começam a subir, e chegam a subir
até seis braças [em torno de dois metros e meio] por cima
das barrancas e se estendem por toda a planície terra aden-
tro, parecendo um mar. Isso acontece religiosamente todos os
anos, cobrindo todas as árvores e vegetações da região. Assim
passam quatro meses, que é o período em que dura a cheia,
de janeiro a abril.”3
No entanto, as cheias podem se estender até junho.
Mas somente no século 18 o fenômeno do Pantanal e do
mar de Xaraés foi esclarecido. A denominação de Pantanal,
dada à grande planície do sudoeste sul-mato-grossense, é ex-
tremamente imprópria. “O termo Pantanal significa pântano,
paludoso, brejo, região encharcada, grande pântano, terra
alagadiça, região inundada por águas estagnadas.”4
Os conceitos acima não correspondem à realidade geo-
gráfica. A região do Pantanal, sob as enchentes anuais, não
fica totalmente submersa ou se transforma em um atoleiro.
Esse fenômeno acontece nas várzeas dos rios. A faixa sujeita
à inundação é relativamente estreita: sua largura média é
calculada em 25 km. Nos rios menores, como Miranda, Ta-
quari e Cuiabá, as faixas alagáveis são mais estreitas.
O Pantanal constitui-se na maior planície sedimentar
inundável contínua de água doce do mundo, tendo 140 mil km2,
que se estendem na direção norte e sul de Cáceres (Mato Gros-

3
CABEZA DE VACA. Naufrágios e comentários. Trad. de Jurandir Soares dos
Santos (texto) Bettina Becker (Introdução).Porto Alegre, LEPM Editores, 1987.
(Coleção Os Conquistadores). p. 193-194.
4
FERREIRA, Aurelio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio básico da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 478.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 287


so) a Porto Murtinho (Mato Grosso do Sul). Tem duas estações
bem marcadas: a seca e a chuvosa. É o ciclo das águas que re-
gula a vida de sua fauna e flora. Com uma variação mínima de
altitude, a grande planície é inundada a cada ano com maior
ou menor intensidade e durante até seis meses.5 (Fig. 2).

Fonte: Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Mato Grosso do Sul. Cenários até o
ano de 2005.

Figura 2 – Secretaria de Estado de Planejamento, de Ciência e de


Tecnologia. Governo do Estado de Mato Grosso do Sul,
p. 56

5
NOGUEIRA, Albana Xavier. O que é pantanal. São Paulo, Brasiliense, 1990.

288 Paulo M. Esselin


A vida da região é ordinariamente marcada pelo fluxo e
refluxo das águas do rio Paraguai. Quando elas sobem – oca-
sionadas pelas chuvas que acontecem nas regiões mais baixas
ou em virtude das grandes precipitações nos planaltos vizi-
nhos e nas cabeceiras dos rios – inundam os campos, obri-
gando os animais silvestres a se deslocar para as áreas mais
altas, que são elevações discretas e alongadas, arenosas, ca-
racterizando diques lacustres ou fluviais, ultrapassando em
menos de dez metros a superfície vizinha normalmente inun-
dada. Geralmente cobertas por capões de mato, transformam-
se em pequenas ilhas durante as cheias de maior amplitude
e nelas se refugia o gado no rigor das enchentes. São também
chamadas de “cordilheiras” pelos naturais.6
Quando as águas baixam, os animais descem, porque a
terra, antes inundada, se revigora e os campos se cobrem do
verde igual das pastagens riquíssimas. Surgem as baías e os
corixos, como são chamados os canais pelos nativos.
As baías são lagoas de forma circular, elíptica ou irre-
gular, dispersas na região; quando sazonais, passam a se de-
nominar “barreiros”. Em alguns casos, as lagoas têm água
salgada e, ao baixar o nível hidrostático, deixam uma coroa
de evaporitos precipitados ao seu redor; chamam-se, nesta hi-
pótese, “salinas”, graças sobretudo ao elevado teor de cloreto
de sódio, sendo procuradas pelo gado que necessita do sal.7
O relevo da região é bastante homogêneo e uniforme, com
uma paisagem plana e linear; há, porém, algumas exceções,
entre as quais o maciço, do Urucum, a 25 km de Corumbá.
Orientado no sentido nordeste-sudoeste, que inclui numero-
sas elevações – Serra de Santa Cruz, Rabicho, Piraputangas
e Tromba dos Macacos –, prolonga-se para o sul pela serra de
Albuquerque, que é mais rebaixada e fica próxima à sede do

6
SOUZA, Lécio Gomes. História de uma região: Pantanal e Corumbá. São
Paulo: Resenha Tributária Ltda, 1973.
7
VALVERDE, Orlando. Fundamentos geográficos do planejamento rural do mu-
nicípio de Corumbá. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, 1972.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 289


distrito desse nome, com altitude de até 1665 m no seu ponto
culminante, na serra de Santa Cruz. Erguendo-se sobre uma
planície que fica oitenta metros sobre o nível do mar (Valverde,
1972), o maciço é composto, sobretudo, por arcósios, protegi-
dos em seus altos por camadas de jaspilito que intercalam ou-
tras de hematita compacta e criptomelana, estas constituindo
a mais importante jazida de manganês do hemisfério.8
A respeito do maciço, descreveu Alvar Nuñez Cabeza de
Vaca em 1542: “Estas sierras están peladas, y no crían yerba
ni árbol ninguno, y son bermejas; creemos que tienen mucho
metal, porque la outra tierra que está fuera del rio, en la co-
marca y parajes de la tierra, es muy montuosa, de grandes
árboles y de mucha yerba; y porque las sierras que están en
el río no tienen nada de esto, parece señal que tienen mucho
metal, y ansí, donde lo hay, no cría árbol ni yerba; y los indios
no decían que en otros tiempos pasados sacaban de allí el me-
tal blanco [...].”9
Os indígenas, como forma de alimentar os sonhos dos
espanhóis em relação ao metal, induziam-nos a acreditar na
possibilidade de encontrarem no Urucum a prata tão procu-
rada por eles; no entanto, aquelas montanhas guardavam
apenas – e tão-somente – o manganês e o ferro, muito pouco
valorizados na época.
A serra do Urucum forma ao seu longo um elo de eleva-
ções outrora contínuas, que, desde o maciço Chiquitano, na
Bolívia, se prolongam para sudeste pelas serras do Jacadigo
e Urucum até a Bodoquena e chegam a cerca de seiscentos
metros de altura. Puderam essas serras se manter elevadas
graças às espessas camadas de jaspilito que as recobrem. A
parte inferior de tais elevações é formada por calcários e dolo-
mitas da série Bodoquena.10

8
SOUZA, op. cit.
9
CABEZA DE VACA.Alvar Nuñez. Naufragios y comentarios. Madrid:Edicion
de Roberto Ferrando, 1985, p244.
10
VALVERDE,op. cit.

290 Paulo M. Esselin


A leste, o Itatim limita-se com a serra de Santa Bárbara
na região de Aquidauana, composta de silbes, arenitos e tili-
tos, pertencentes ao planalto dos Alcantilados e integrantes
do Planalto Central brasileiro. Ao sul, tem o conjunto forma-
do pela serra de Maracaju-Amambai, constituída por derra-
mes balsáticos.11
Na verdade, essas serras são prolongamentos da serra
de Maracaju e formam uma cadeia contínua que rasga todo o
território sul-mato-grossense, desde o extremo sul até a serra
do Roncador, em Mato Grosso, separando as bacias do rio Pa-
raná e Paraguai e, ao mesmo tempo, a Planície Pantaneira do
Planalto Central brasileiro. Essas áreas separadas pela serra,
do ponto de vista da cobertura vegetal, pela diversidade do
clima, topografia e constituição geológica, são completamente
diferentes.
No Planalto, na bacia do rio Paraná, predominam rele-
vos aplanados, domínio de vegetação rasteira, onde os arbus-
tos são raros e as árvores, praticamente ausentes. (Fig.3).

11
ALMEIDA; LIMA, apud GADELHA, Regina Maria A. F. As missões jesuíticas
do Itatim: um estudo das estruturas sócio econômicas coloniais do Paraguai
(sec. XVI e XVII) Rio de Janeiro: Paz e Terra 1980.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 291


Fonte: Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Mato Grosso do Sul. Cenários até o
ano de 2005.

Figura 3 – Secretaria de Estado de Planejamento, de Ciência e de


Tecnologia. Governo do Estado de Mato Grosso do Sul,
p. 56.

A vegetação florestal está reduzida à mata de anteparo.


Existem aí duas áreas distintas: campos limpos e naturais e
a zona dos campos serrados, que abrange as bacias dos rios
Pardo, Verde e Sucuri.
Do outro lado da serra de Maracaju está o Pantanal, a
sudoeste do atual estado de Mato Grosso do Sul. A enorme
depressão paraguaia, com seus 140 mil km2, constitui uma
região extremamente rica e plenamente apta ao desenvolvi-

292 Paulo M. Esselin


mento da pecuária, da criação do gado bovino, sem o emprego
de qualquer tecnologia.
Para os sertanistas e monçoeiros que palmilharam todo
o sul de Mato Grosso nos séculos 17 e 18, Vacaria era a região
que os espanhóis chamavam de Província Jesuítica do Ita-
tim ou Campos de Xerez, onde encontravam o gado disperso
das Missões. Há entre os historiadores um consenso quanto
às fronteiras dessa localidade, sobretudo dentro das fontes
primárias, que seriam: ao norte, os rios Taquari e Mbotetei;
a oeste, o rio Paraguai; ao sul, o Apa, e, a leste, a serra de Ma-
racaju.12 A vacaria acima descrita corresponde hoje à planície
sedimentar do Pantanal.
Ao se referir aos campos de Vacaria no fim do século 17,
um sertanista descreve a rota para se chegar aos campos de
gado: “Sobindo o rio Pardo tomando a barra do Anhandohy e
Anhangohy que são dous rios nascidos de huma madre, nave-
gandoo estes asima thé as vertentes que caem [...] adonde se
acha por memoria algum gado vaccum, chamado hoje as va-
carias, [...]. Correndo os tempos e continuando aqueles aven-
tureiros as suas conquistas chegarão a navegar o rio Paragoai
descendo huns pelo Coxiim outros pello Matetéu outros pelo
Cahy que todos saem das mesmas vacarias e intrando pelas
grandes bahias que acompanhão as margems deste grande
rio [...].”13
Pelo relato, não há nenhuma dúvida de que os rios men-
cionados são o Miranda e o Aquidauana, onde anos antes
haviam se desenvolvido os núcleos de ocupação espanhola,
Santiago de Xerez e as Missões jesuíticas do Itatim, onde os
sertanistas encontraram o rebanho bovino e, por isso, nomea-
ram a região de Vacaria.

12
CORTESÃO, Jaime (Org.). Manuscritos da Coleção de Angeles. Jesuítas e Ban-
deirantes no Itatim (1596-1760). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Divisão
de Obras e Raras Publicações, v. II, 1951, p. 4.
13
TAUNAY, Affonso. História geral das bandeiras paulistas. São Paulo: Typ. Ideal,
1930. v. 1 e 6, v. 1, p. 3-4.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 293


O sistema ecológico do Pantanal, as enchentes e inunda-
ções têm seus aspectos benéficos: transportam material ero-
dido das regiões tributárias, refertilizando o solo, mantendo
a umidade da superfície, limpando os campos e eliminando
as pragas. Durante a vazante, quando as águas descobrem
os campos, o Pantanal se transforma em um tapete verde; as
pastagens se renovam e brotam as gramíneas e outras forra-
geiras de alto valor nutritivo.
“A pastagem nativa é o principal recurso florístico da re-
gião, abrangendo desde a vegetação aquática à arbórea com re-
gistro de 240 forrageiras não gramíneas e 200 gramíneas.”14
O Pantanal, com seus campos nativos, oferecia alimen-
tação aos rebanhos bovinos e equinos que adentravam em
suas terras, alimentação rica em cálcio e em fósforo, este so-
bretudo nas áreas alagáveis, o que lhes assegurou uma gran-
de eficiência reprodutiva, ou seja, as condições locais eram
extremamente favoráveis ao desenvolvimento da pecuária.
As paisagens características do Pantanal são as aglome-
rações de árvores da mesma espécie, como o carandazal, bu-
ritizal, peuval, paratudal e o acurizal, termos locais para de-
signar os mais variados cenários típicos da região. O carandá
(Copernicia Cerifera, Mart. ou Copernicia australis) predomi-
na nessas formações, de Corumbá para o sul, às vezes associa-
do ao Paratudo (Tecomo caraiba, Mart), sobretudo bordejando
as baías. Os buritis são generalizados, mas formam grandes
associações puras no alto Paraguai e, notadamente, no alto
Guaporé, ocupando os pantanais em largas extensões.15

14
MAZZA, Maria Cristina Medeiros et al. Etnobiologia e conservação do bovino
pantaneiro. Corumbá: Embrapa, 1994. p. 30.
15
ALMEIDA, Fernando F. M. de; LIMA, Miguel Alves de. Planalto centro – oci-
dental e pantanal matogrossense. Rio de Janeiro: Editora Conselho Nacional de
Geografia, 1959.

294 Paulo M. Esselin


O acurizal, o peuval, o pirizal são, na verdade, um brejo
ou paludal, com vegetação especial de gramíneas e ciperáceas,
e constituem vegetação das corixas.16
As matas hidrófilas cobrem as margens dos rios e agua-
das, dentre as quais se sobressaem a figueira, a imbaúba (Ce-
cropia palmata), o cajá-mirim (Spondias lutea), gameleiras
(Ficus sp), cedros, peuras, cambarás, guanandis, que passam
a compor a floresta. Salientam-se os quebrachos (Schinopsis
balam sal e Schinopisis lorentzii, Eng.) e o quebracho branco
(Aspidosperma Chaquensis), esta última de importância eco-
nômica considerável como tanífera empregada no preparo do
couro.17
Nas áreas não sujeitas às inundações ou menos alagá-
veis, avulta, em solo arenoso, o cerrado, constituído de árvo-
res esparsadas, entre as quais se estende capim, apenas uti-
lizado pelos animais quando não podem pastar nas baixadas.
Nessas áreas aparece o pequizeiro (Caryocar brasiliensis, a
lixeira Curatela americana), o paú-terra, o angico, a aroeira,
a peúva, a taiuva, o cedro, o gonçalo-alves, o guatambu, o ja-
carandá, o carvão branco, a peroba e o guanandi. Deste últi-
mo se utilizam os canoeiros para obter o breu e madeira.18
Nos terrenos periodicamente alagáveis da planície pan-
taneira emergem pequenos morros calcários cobertos por for-
mação florestal em que se destaca a barriguda (Charisia ven-
tricosa, nees 8 Mart). São numerosos os cipós nessa mata, em
que algumas plantas são providas de espinhos. Esses morros
são geralmente limitados por uma coroa de carandazais. 19
Quanto aos rios, são vários os que cortam a região, des-
tacando-se entre os tributários do Paraguai os seguintes: Ta-
16
LISBOA, Miguel Ribeiro Arrojado. Oeste de São Paulo, sul de Mato Grosso.
Geologia, industrial, mineral, clima, vegetação, solo agrícola, indústria pastoril.
Rio de Janeiro: Typografia do Jornal do Commercio, 1909.
17
ALMEIDA, Fernando F. M. de.& LIMA, Miguel Alves de. Op. cit.
18
CORRÊA FILHO, Virgilio. Fazendas de gado no Pantanal Mato-Grossense. Rio
de Janeiro: Ministério da Agricultura/SIA, 1955.
19
VALVERDE, op. cit.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 295


quari, Miranda, Negro, Aquidauana, Apa, Coxim, Cuiabá e
Verde. (Fig. 4).

Fonte: - MAZZA, Maria Cristina Medeiros. et al.

Figura 4 – Etnobiologia e Conservação do Bovino Pantaneiro. Em-


presa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Centro de
Pesquisa Agropecuária do Pantanal. Corumbá: 1994,
p. 12

296 Paulo M. Esselin


A maior parte da planície é constituída por solos hidro-
mórficos, geralmente de baixa fertilidade. Ao norte, predomi-
nam solos com horizonte subsuperficial argiloso, cuja porção
central é formada por sedimentos arenosos transportados
pelo rio Taquari e, ao sul, por sedimentos argilosos deposita-
dos principalmente pelos rios Miranda, Negro e Paraguai.20
Quanto ao clima, a classificação de Koppen enquadra
o clima do Pantanal na mesma categoria do Planalto Cen-
tral: Aw, ou clima das savanas.21 As precipitações, no total
de 1164,6 mm no período chuvoso, restringem-se ao mínimo
de 60 mL mensalmente nas secas, entre junho e começo de
setembro. As temperaturas máximas chegam a 40,6 e 40,8
ºC, em Corumbá e Aquidauana, respectivamente, e a mínima,
apenas em alguns dias do ano, próxima de zero. As tempe-
raturas médias, no entanto, indicam 30,8-30,9 ºC e 19,7-18,1
ºC.22
As bruscas quedas de temperatura no Pantanal entre os
meses de junho a setembro, com a ocorrência de geadas, têm
consequências práticas importantes. “Embora pouco estuda-
das, constituem uma das causas da ausência de bernes no
gado da região, que escapa, assim, a um parasito comum nos
trópicos que reduz o peso e estraga o seu couro”.23
Graças às condições ecológicas da região, os rebanhos
bovino e equino desenvolveram-se muito bem, encontrando
as melhores condições de pastagens nativas e terra extrema-
mente salitrosa, graças sobretudo ao elevado teor de cloreto
de sódio; são os chamados “barreiros”,24 essenciais ao rebanho.
Chamam-se barreiros algumas baixadas salino-salitrosas de
cor acinzentada puxando para o branco. Todos os animais

20
MAZZA, et al, 1994.
21
VALVERDE, op. cit
22
CORRÊA FILHO, Virgilio. História de Mato Grosso. Instituto Nacional do Li-
vro. Rio de Janeiro: 1969.
23
VALVERDE, op. cit.
24
(TAUNAY, 1923, p. 65 e seg).

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 297


buscam com verdadeira sofreguidão esses lugares, não só
os mamíferos, como aves e répteis. O gado lambe o chão e,
atolando-se nas poças, bebe com delícia aquela água e come
o barro. Quando às vezes voltam à noite desse pascigo, vêm
com o ventre empanzinado e as vacas como se estivessem pre-
nhas.
“Embora, no Pantanal, os efeitos da baixa disponibilida-
de de forragens sobre os animais é maior do que em outras
regiões tropicais, porque um período de inundação antecede
a estação seca. No período de cheias, por expansão dos corpos
d’água, as áreas de pastejo ficam parcial ou completamente
submersas. No período de seca, as pastagens, já sofridas por
permanecerem 2 a 3 meses sob a água, têm seu valor nutriti-
vo reduzido pela seca e frio. Essa alternância entre excesso e
falta tem sérias conseqüências no desenvolvimento da vege-
tação e animais.”25
Essa reduzida disponibilidade de pastagem no baixo
Pantanal, em virtude das inundações cíclicas, não afetou pro-
fundamente os primeiros rebanhos introduzidos pelos colo-
nizadores, uma vez que eles permaneceram, a princípio, na
região alta. Além disso, o hábito de cercar as terras é entre os
pantaneiros uma prática recente, pois a cerca começou a ser
utilizada por volta de 1920. Isso permitiu por longo período a
movimentação dos rebanhos para o cerrado, ao longo do qual
se estende o capim, só utilizado pelos animais quando não
podem ir pastar nas baixadas, então alagadas, ou seja, em
razão das cheias ou das secas, quando o gado não encontrava
condições de vida numa área, procurava outra que lhe asse-
gurasse tal condição. Além disso, os rebanhos introduzidos no
Pantanal, a partir do final do século 16 e começo do 17, tive-
ram um longo período para lentamente irem se adequando às
condições do ambiente, até porque “é uma dessas regiões em

25
MAZZA,et al.30, op. cit

298 Paulo M. Esselin


que homens, animais e plantas tiveram que se condicionar
aos fortes imperativos do meio geográfico para sobreviver”.26
Desde a primeira tentativa de fixação por parte dos es-
panhóis na região onde foi fundada a cidade de Santiago de
Xerez, ficaram registros da insalubridade da região. “El sitio
era poco sano y dio en breve sepultura a los principales po-
bladores, escapando los que, por mas viles, hubieran hecho
menos falta”. 27
Os que escaparam eram certamente os naturais ou mes-
tiços bem adaptados às condições locais. Nos terrenos perio-
dicamente alagáveis da planície e com o calor abrasador, são
criadas as melhores condições para a reprodução de mosqui-
tos que infestam toda a região. “Noites houve em que nuvens
de mosquitos nos atormentavam de modo mais cruel [...] pi-
cada de borrachudos e o assalto dos insuportáveis micuins.
“Peores do que estes flagelos é o dos mosquitos pólvora, ani-
malejos quase microscópicos. A impressão que eles deixam é
exatamente a que causa a súbita explosão, sobre um ponto
da epiderme, de um grão de substância de que tem o nome.
Terrível cevandija!”28
Corrêa Filho acrescenta: “Ainda na atualidade, quem
pernoite a margem do Paraguai, ou de qualquer dos seus
afluentes, não tarda em convencer-se da supremacia sinistra
do assaltante alado, que pousa aos bandos na pele do pacien-
te, perfura-a com seu órgão apropriado, para chupar gulosa-
mente o sangue. Entra-lhe pelos ouvidos, pelas narinas e até
pela boca, à hora das refeições, quando aberta para receber
a comida, com a qual se mistura, à maneira de condimento
inesperado.” 29

26
GADELHA, op. cit, p. 53.
27
LOSANO, P. Pedro. Historia de la conquista del Paraguay, rio de la Plata y Tu-
cuman. Buenos Aires: Casa Editora Imprenta Popular, 1873. v. I, p. 97.
28
TAUNAY, Visconde de. Cartas da campanha de Matto Grosso 1865 a 1866. Rio
de Janeiro: Biblioteca Militar, s/d. p. 155156.
29
(CORRÊA FILHO, 1955, op, cit, p. 14

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 299


O 2º tenente de artilharia Affonso d’Escragnalle Taunay,
que participou da Força Expedicionária durante a Guerra
do Paraguai (1865-1970), organizada para expulsar os para-
guaios do solo sul-mato-grossense, deixou registrado: “A força
após haver descrito enorme circuito de 2.200 km perdera um
terço dos quadros graças a fadiga da marcha e a insalubrida-
de do clima nos pantanaes de Mato Grosso, onde a dysente-
ria, a malaria e o beriberi dizimaram os infelizes soldados e
oficiais”.30
As limitações ambientais da região ficam mais eluci-
dativas ainda nos registros de Cândido Xavier de Almeida
e Souza, em fins do século 19, que bem deu a dimensão das
dificuldades enfrentadas por aqueles que se decidiram ali se
estabelecer. “Não havia terras para marchar e nem agoas
para navegar [...] nesta região mais do que em outra alguma
he inflexivel o rancor dos irracionais contra o homem, desde
a desobediencia de Adão: em terra as feras, as serpentes, as
furmigas, e as mesmas arvores pella maior parte armadas
de espinhos denegão a sua comunicação: nos Rios, os jacarés,
os Sucuris, as Giboias e os mesmos peixes conspirão contra
a Humanidade. A preciza privação do S. S. nome do Snr., o
ardente calor proprio da zona torrida, a transpiração dos suo-
res, a vexação dos insetos; o halito insofrível do almiscar dos
jacarés, seus horrorozos bramidos, e a horrível figura destes
monstros, represetnam a vista e a imaginação huma verda-
deira effige do lado terrível do Infernal Archeronte.”31
Embora com todas essas evidentes dificuldades para a
fixação, o Pantanal sul-mato-grossense foi escolhido pelos
primeiros colonizadores espanhóis para se estabelecerem;

30
TAUNAY, Visconde de. A. A retirada da Laguna. São Paulo, s/d. p. 252.
31
SOUZA, Candido Xavier de Almeida e. Discripção diária Cap. Mia de S. m Pau-
lo. P. a ás fronteiras do Paraguay, em 9 de outubro de 1800, dedicada ao Illm. E
Exm. O S.or Dom Rodrigo de Souza Coutinho. In: Revista do Instituto Histori-
co e Geográfico Brasieliro, Rio de Janeiro: 1949, p. 115.

300 Paulo M. Esselin


possivelmente, a paisagem exuberante compensasse tanto
sacrifício.

O processo de ocupação do Pantanal


Sul-Mato- Grossense pelos espanhóis
O Pantanal sul constituiu-se em território em que preco-
cemente penetraram conquistadores espanhóis e portugueses,
sendo detidos em suas andanças pela agressividade do seu
meio ambiente, enchentes anuais, milhões de insetos, felinos,
répteis e outros, somados ao calor de mais de 40 oC, que fazia
a vida insuportável.
Constituiu-se apenas uma coincidência o fato de que os
campos do Pantanal são extremamente promissores para o
criatório, em razão da boa qualidade das pastagens, da salini-
dade do solo e da aptidão para o desenvolvimento da pecuária.
Na verdade, os espanhóis queriam apenas ocupar um terri-
tório extremamente estratégico para ligar seus destinos aos
dos peruanos detentores das ricas minas de prata. Essa era
também uma ocupação geopolítica para evitar a entrada dos
portugueses em territórios espanhóis, rota viável vindo de
São Paulo para se atingir o Peru rico em metais.
Na verdade, o que estimulava a ocupação era a proximi-
dade com o Peru e as possibilidades que o local abria para o
comércio, apesar de, segundo Aguirre, as primeiras corres-
pondências estabelecidas entre os pioneiros representantes
da Coroa enaltecerem as propriedades da terra, que eram
boas para apascentar todo tipo de gado e muito férteis.
O trajeto Lima-Santa Cruz-Assunção passou a ser utili-
zado com certa frequência por colonos que se dirigiam ao sul
conduzindo ovinos, bovinos e equinos. Durante as jornadas,
muitos animais eram apreendidos pelos nativos e conduzidos
para a região da bacia do rio Paraguai. O próprio Núfrio de
Cháves, por sua vez, no século 16, espalhou pelo banhado do

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 301


Xaraés – Pantanal de Mato Grosso do Sul – e pelos lhanos
grande quantidade de touros e vacas.32
Embora essa tenha sido uma prática dos espanhóis a de
lançar gado vacum em determinadas regiões para mais tarde
estimular a sua ocupação, como fez o governador do Paraguai,
Hernandarias em 1628 na ilha de São Gabriel, atual Uruguai,
não parece que o mesmo tenha ocorrido no Pantanal por ini-
ciativa do governador de Santa Cruz de la Sierra.
Segundo Araújo, a suposta origem do gado do Pantanal
sul-mato-grossense seria: por um lado, os indígenas inves-
tiam contra as caravanas, apossavam-se dos rebanhos e os
conduziam aos campos de pastagem nativas, onde, abando-
nados, multiplicavam-se livremente, como ocorreu com a ca-
ravana de Ortiz Zarate; por outro, o citado Núfrio de Cháves
teria introduzido outros rebanhos na região.
Possivelmente, o gado a que alude Araújo não tenha che-
gado ao Pantanal. Todos aqueles – padres, jesuítas, francis-
canos e bandeirantes aventureiros _ que palmilharam essas
terras no século 16 e deixaram registro não deram notícia
a respeito de bovinos e equinos. No entanto, havia por essa
época um grande movimento de paulistas e assuncenhos nes-
sas áreas, em busca de nativos para suas lavouras, e havia
também trocas comerciais entre aqueles e estes – e assim, os
rebanhos não teriam passado despercebidos.
No início do século 17, os espanhóis estabeleceram-se
no atual Estado de Mato Grosso do Sul, onde fundaram, às
margens do rio Aquidauana, cerca de trinta léguas (uns 200
km) acima da confluência deste último com o rio Miranda, um
pequeno núcleo urbano denominado Santiago de Xerez. Essa
região, no entanto, já era conhecida tanto pelos portugueses
como pelos espanhóis, porque possibilitava as comunicações
com o Peru e entre o vale do Paraguai e o Amazonas. Tratava-
se de uma região estratégica. Ao se estabelecerem na região,

32
ARAUJO, Rubens Vidal. Jesuítas dos 7 povos. Porto Alegre: 1986.

302 Paulo M. Esselin


os primeiros colonos assuncenhos buscavam, além de romper
o isolamento a que estavam submetidos, criar uma infraes-
trutura que permitisse desenvolver suas atividades econômi-
cas e de produção. Desde o século 16, fazia parte do projeto
assuncenho manter um caminho estruturado até o Peru para
que se pudesse estabelecer relações comerciais mais frequen-
tes e romper com o isolamento a que estavam submetidos os
espanhóis de Assunção.
Logo, foram organizadas frentes de colonização. Colonos
e jesuítas espanhóis instalaram-se no Pantanal, na região do
Itatim, aproveitando-se da abundante mão-de-obra guarani.
Assentados, os espanhóis desenvolveram uma economia
de subsistência, ao lado de uma pequena produção de algodão,
milho, feijão, mandioca e de atividades criatórias. Por vezes,
exportavam seus produtos para o mercado de Assunção, Tu-
cuman e principalmente para as reduções jesuíticas do Guai-
rá, Ciudad Real e Vila Rica do Espírito Santo.
Embora fosse um povoado extremamente pobre, sem um
produto que despertasse interesse nas demais colônias espa-
nholas, o rebanho bovino e equino desenvolveu-se muito bem.
“Possuía vultosa gadaria, além de fartas lavouras.”33 A ajuda
vinda de Assunção parece que era frequente, não só em arma-
mentos, mas também em gado bovino, o que permitiu rápida
estruturação desse rebanho em Santiago de Xerez.
Desde o início da sua fundação, a cidade de Xerez en-
controu imensas dificuldades para subsistir, não prosperan-
do. Contando com poucos recursos, os moradores passaram
a viver precariamente, enfrentando constantes ameaças dos
nativos índios locais. No ano de 1600, quando Xerez havia
acabado de ser edificada pelos seus fundadores, os mbayas
promoveram portentoso ataque e quase destruíram o peque-
no núcleo. “Después de la destruicion de la ciudad espanõla

33
TAUNAY, Affonso. História das bandeiras paulistas. 2º São Paulo: Melhora-
mentos, 1961, T.1. p. 62.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 303


de Xerez, la mayor parte de los Mbaya volvio a sus antiguos
asientos al oeste del gran rio, mientras uma pequenã parte
quedaba en la region conquistada.”34
Ao atacarem a cidade espanhola, os indígenas contribu-
íram para o início da dispersão de equinos e bovinos por toda
a planície do Pantanal. A princípio, a intenção dos nativos
não era o roubo do rebanho, pois o uso de animais de cela e
o consumo de carne bovina, sobretudo entre os guaicurus, só
teve início nos meados do século 17, após quase cem anos do
primeiro contato destes com os espanhóis introdutores de bo-
vinos e equinos no Pantanal sul-mato-grossense.
Impulso maior para o desenvolvimento da pecuária no
Pantanal Sul Mato Grossense foi dado pelos padres jesuítas
que ali se instalaram a partir de 1628. Fugindo das invasões
dos bandeirantes paulistas na região do Guairá, atual estado
do Paraná, os padres entraram no Pantanal Sul Mato Gros-
sense para desencadear o processo de redução dos índios lo-
cais. Essa região era muito conhecida dos espanhóis, sendo
habitada, entre o rio Miranda e o rio Apa, pelos índios itatins
– embora esse nome englobasse outras parcialidades diversas,
como os ñuaras, ñiguaras, guaxarapós e outros.35
A catequese dos guaranis assentados no âmbito dos
Campos de Xerez resultou na constituição da Província do
Itatim. No entanto, as relações entre jesuítas, nativos e colo-
nos xereanos, desde o início, não se deu de forma harmoniosa.
Ao contrário, os jesuítas impuseram resistentes obstáculos à
apropriação compulsória da mão-de-obra indígena catequiza-
da, o que era, portanto, contraditório e incompatível com o

34
KERSTEN, Ludwing. Las tribus indígenas del Gran Chaco, hasta fines del siglo
XVIII: Resistencia (Chaco): Universidad Nacional del Noroeste, Departamento
de História, 1968, p. 67.
35
GADELHA,Regina Maria A. F. op. cit.

304 Paulo M. Esselin


modelo da economia colonial ibérica, baseada no sistema das
encomiendas.36
Com o início da catequese nos Campos de Xerez, o bovi-
no e o equino tornaram-se bens de valor inestimável. Todo o
transporte da produção do campo para os armazéns, da ma-
deira para as mais diversas construções, etc. só era possível
com o auxílio dos animais de tração. No cultivo, no preparo
do solo, nos tratos culturais, o bovino estava sempre presente,
além de suprirem com sua carne, o leite e os seus derivados a
insuficiência de outros gêneros alimentícios.
Ao adentrarem em uma nova comunidade e decidirem
pela redução e exclusão do modelo de aldeamento tradicional,
os padres foram colocando o nativo sob o jugo da Igreja, e o
seu sucesso dependia, antes de tudo, do rápido desenvolvi-
mento da agricultura tradicional indígena. Além do trabalho
de catequese e conversão dos indígenas nas Reduções, o al-
deamento organizado pelos padres da Companhia de Jesus
tinha como objetivo impedir o acesso direto dos colonizadores
à apropriação compulsória do trabalho indígena, método que
levava à escravização e, consequentemente, ao extermínio
das populações autóctones de toda a América.37
As reduções que se formaram no Itatim organizaram-se
no mesmo formato que as demais reduções de guaranis no
Paraná. Os povoados eram formados por palhoças rústicas,
reunidas no meio da aldeia, e cada agrupamento tinha áreas
cercadas para criação de aves domésticas para o abate. Os
campos estavam reservados para o cultivo de cereais e algo-
dão e os pastos nativos serviam às manadas de ovelhas, ca-
bras, mulas, além do gado vacum e cavalar.38

36
SILVA NOVAIS, Sandra Nara.Ruínas de Xerez: marco histórico do colapso do
Projeto colonial castelhanoem Mato Grosso (1593-1632) Dissertação de mes-
trado, UFMS, 2004, p. 174.
37
SILVA NOVAIS, Sandra Nara.op.cit.
38
Documentos para a História da Argentina. Iglesia, Buenos Airies: 192 T.20,
p. 725-726.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 305


“É verdade, porém, que o esforço mais árduo, nos primei-
ros tempos, terá sido aplicado não na criação de uma agricul-
tura, mas para formar agricultores, como os caçadores guer-
reiros das antigas tribos nômades. Era-se mesmo coagido, nos
primeiros tempos, a não deixar ao cuidado deles os bois de
que se serviam para a lavoura, com receio de que, por pregui-
ça não se dessem o trabalho de os desatrelar, quando o serviço
acabava, ou os fizessem em pedaços para comê-los.”39
“Assim, antes da pregação do evangelho e de fazer dos in-
dígenas, cristãos, era necessário transformar toda a sua tra-
dicional base material, era necessário lavrar a terra e, além
disso, de ensinar as novas práticas de cultivo e de trabalho. A
fixação do indígena, por si só, criava novas necessidades, e a
principal delas era a produção de alimentos em grande esca-
la para suprir as necessidades dos membros da coletividade.
Cobrir a nudez dos índios implicava na produção do algodão
e era isso o que de certa forma mais preocupava os jesuítas.
Para eles, seria o primeiro sinal de transformação do ‘bárba-
ro’. Tem – se aqui a veste e o traje que, ao nascer, conceda a
natureza ao ser humano, sendo necessário da parte dos pa-
dres um cuidado solicito de fazer cobrir o que possa ofender a
olhos castos.”40
Dentro de um aldeamento, o gado bovino e o equino tor-
naram-se bens de valor inestimável, pois era com eles que
se preparava o solo para o cultivo, que se faziam a aração,
gradagem, tratos culturais e colheita. Assim eles foram sendo
introduzidos, aproveitando-se dos privilégios em pastagens
naturais que a terra oferecia.
As missões do Itatim experimentaram rápido crescimen-
to: os padres jesuítas conseguiram aldear uma grande quan-
tidade de nativos num curto espaço de tempo, o que rapida-

39
LUGON, C. A. A republica comunista cristã dos guaranis (1610-1768). 2. ed.
Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1976. p. 124.
40
MONTOYA, Antonio Ruiz. (S.J). Conquista espiritual. Porto Alegre: Martins
Livreiro Editor, 1985.

306 Paulo M. Esselin


mente atraiu a atenção dos mamelucos paulistas. As Missões
foram invadidas em duas ocasiões, 1632 e 1648. Na primeira,
os bandeirantes paulistas ameaçaram a cidade de Santiago
de Xerez, mas a população, formada por descendestes de es-
panhóis, não ofereceu resistência e uniu-se aos invasores. O
tenente dom Diogo de Orrego e outros cidadãos guiaram-nos
até as reduções do Itatim, recentemente organizadas, levan-
do grande parte cativa dos índios aldeados.41
Após a invasão, muitos desses descendentes de espa-
nhóis passaram para a capitania de São Paulo com suas fa-
mílias e, de posse de muitas “peças indígenas”, mas na pres-
sa de deixar a cidade, temendo represálias das autoridades
paraguaias e da própria Companhia de Jesus, deixaram na
campanha chamada Vacaria grande número de bovinos que
não conseguiram reunir.42
Na segunda vez, em 1648, os padres jesuítas foram obri-
gados a abandonar a redução, incapazes de enfrentar os in-
vasores em condições tão desiguais, já que não tinham armas
para se defender de ataques tão portentosos. Em 1649, ao
abandonarem o Itatim, os padres jesuítas viram-se obrigados
a deixar o pequeno rebanho que haviam conseguido estru-
turar. “[...] dexando como 700 Cabezas de ganado, dedicadas
de Lismona al sustento de aquello pobre Índios que dexavam
fuera de otras muchas que quedaran eb la antigua poblacion
desamparada, donde tambien quedaron muchos alajuelos
de estima que nos le permitieron recoger: y después de esta
perdida todos los bueyes, ieguas, mulas, cabalos y demas
bienes.”43

41
ESSELIN, Paulo Marcos. A gênese de Corumbá: Confluência das frentes espa-
nhola e portuguesa em Mato Grosso 1536-1778. Campo Grande: UFMS, 2000.
p. 61.
42
LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia paulistana histórica e ge-
nealógica. São Paulo: U niversidade de São Paulo,1914, VI.
43
CORTESÃO, Jaime. (org). Manuscritos da Coleção de Angeles. Jesuítas e Ban-
deirantes no Itatim (1596-1760). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Divisão
de Obras e Raras Publicações, v. II, 1951, p. 19.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 307


Nas duas vezes em que as Missões foram invadidas, co-
lonos e jesuítas deixaram na campanha da Vacaria uma gran-
de quantidade de bovinos e equinos, que foram se juntar a
muitos outros que haviam se desgarrado do rebanho e se cria-
vam soltos sem trato algum. Esses animais, que constituíram
o casco inicial da pecuária sul-mato-grossense, sobreviveram
silvestremente num ambiente favorável, propício à ativida-
de pecuária. Além das condições ambientais favoráveis que
o gado encontrou para o seu desenvolvimento, outros fatores
foram determinantes para o progresso do rebanho, dentre os
quais as epidemias e enfermidades, que contribuíram para
o decréscimo da população nativa no Itatim. Um grande nú-
mero de doenças que eram praticamente inofensivas ao orga-
nismo imunizado dos europeus provocou efeitos calamitosos
nas populações nativas. Desde os primeiros contatos entre os
nativos dessa região com os padres da Companhia de Jesus,
ou mesmo com os colonos espanhóis e portugueses, há cons-
tantes registros de epidemias que levaram à morte muitos
dos primitivos habitantes.44
A tanto chegou o despovoamento do Itatim que um padre
jesuíta que correu esse território por volta de 1657 deixou re-
gistrado que só achou “algunos monumentos que manifestan
el senorio que los itatines tuvieron de todo el terreno e não
passavan de um lúgubre legado: grandes vasos de barro com
ossadas humanas, dos que usam os guarani a fim de neles
meterem os seus defuntos.”45
Os nativos que já haviam incorporado a carne bovina à
sua dieta foram transladados para muito longe pelos padres
que evangelizavam no Itatim, condição importante para a rá-
pida proliferação do rebanho bovino e equino.

44
ESSELIN, Paulo M.& OLIVEIRA,Tito C. M. O.Historia debates e tendências.
Dossiê: A fazenda pastoril e a escravidão.Universidade de Passo Fundo, Insti-
tuto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós - Graduação em Histó-
ria. v. 1, n. 1. Passo Fundo: 2007, p. 105-106.
45
LABRADOR op. cit. 1910, p. 62.

308 Paulo M. Esselin


Esse processo da procriação do bovino e equino em condi-
ções naturais não é uma exclusividade do Pantanal sul-mato-
grossense e se repetiu em diversas regiões na América. As
invasões promovidas pelos bandeirantes paulistas no Sul, so-
bretudo no noroeste do atual Rio Grande do Sul, contribuíram
para a propagação de modo assombroso do gado em toda a
margem oriental do Uruguai até a costa do mar (as chamadas
“vacarias do Mar”). Vencidos pelos bandeirantes em sucessi-
vos combates que culminaram com o de São Nicolau em 1638,
os jesuítas e guaranis que puderam escapar cruzaram o rio
Uruguai e estabeleceram novas Missões entre esse rio e o Pa-
raná, deixando deste lado muito bovino abandonado. Depois
do ano de 1682, convencidos da tranquilidade que então pai-
rava sobre a região das antigas reduções da margem oriental,
e em resposta à fundação da Colônia do Sacramento, em 1680,
no extremo-sul do atual Uruguai, os jesuítas se animaram a
transpor de novo o Uruguai e iniciaram a fundação dos famo-
sos Sete Povos (São Nicolau, São Miguel, São Luis, São Borja,
São Lourenço, São João e Santo Ângelo). O rebanho bovino
que ficou inteiramente abandonado, procriando livremente
e multiplicando-se sem cuidado algum, após cinquenta anos
somava centenas de milhares de cabeças apascentadas em
campos rio-grandenses.46
Segundo Rui Diaz de Gusman, em agosto de 1541, ao ser
despovoada Buenos Aires, os conquistadores foram obrigados
a abandonar cinco éguas e sete cavalos.47
Em 1580, quando Garay fundou Buenos Aires pela se-
gunda vez, calcula-se que tenha encontrado em estado sel-
vagem oitenta mil equinos, cujos ancestrais eram aquele
46
ABREU, Florêncio de. O gado bovino e sua influência sobre a antropogeografia
do Rio Grande do Sul. In: Anais do III Congresso Sul – Riograndense de Histó-
ria e Geografia. Porto Alegre: 1940. v. 4.
47
GUZMAN, apud: MENDOZA, P. de La C. La ganaderia colonial en el siglo XVIII.
Acion de los Adelantados en pro de la riqueza pastoril durante la conquista y
colonización del Rio de la Plata. In: Revista de Derecho Historia y Letras. Bue-
nos Aires: 1922.T. 73, p. 626.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 309


pequeno lote abandonado em 1541.48 Segundo a tradicional
historiografia portenha, foram abandonados cinco éguas e
sete cavalos. No entanto, essa pequena quantidade de ani-
mais, ainda que em condições ótimas, não justificaria a enor-
me procriação que houve na campanha de Bueno Aires.
Encontrando uma grande área com condições ambien-
tais extremamente favoráveis ao seu desenvolvimento, o re-
banho bovino das Missões jesuíticas do Itatim expandiu-se
pelos campos da planície do Pantanal, em cujo território ficou
confinado.
Quando findou o século 18, a Vacaria abrigava milhares
de cabeças de gado vacum e cavalar. Os relatos conhecidos,
tanto de espanhóis como de sertanistas portugueses, são con-
cordes em afirmar a presença de rebanhos em todo o panta-
nal sul-mato-grossense, vivendo silvestremente e sem trato
algum.

A ocupação portuguesa do
Pantanal sul-mato-grossense
No início do século 19, a planície pantaneira já oferecia
alguns atrativos aos pecuaristas que desejassem se fixar na
região. Havia extensos campos de pastagens providos de sa-
linas naturais, água abundante; os rebanhos alçados eram
facilmente encontrados; as terras eram tidas como devolutas
e os grupos nativos não ofereciam mais os riscos aos coloniza-
dores do passado.
Nessa época, o Brasil conquistou a sua independência
política ao se libertar de Portugal. Além das dificuldades po-
líticas enfrentadas com o processo emancipatório, o país se
viu envolvido com problemas de ordem econômica. A crise da
agricultura tradicional do Brasil, que se estendeu de 1821 até
1840, foi marcada pela redução dos preços dos produtos ex-
48
MENDONZA, P. de La C. op. cit.,1922,T.73.

310 Paulo M. Esselin


portáveis, com a consequente queda das receitas e contínuos
deficits orçamentários. Essa escassez de recursos econômicos
nos primeiros anos após a conquista da independência criou
um clima de insatisfação entre as províncias e o governo cen-
tral, com revoltas liberais que se estenderam por todo o Im-
pério.49
A chamada Rusga, de 1833, foi um movimento das cama-
das proprietárias liberais e federalistas regionais e assumiu
um caráter de violência contra os comerciantes portugueses
radicados em Cuiabá e na província de Mato Grosso. Uma
onda de saques, perseguições e mortes estendeu-se por dias
seguidos, alcançando diversas regiões da província. Com o
fim do movimento um expressivo número de fazendeiros, fug-
indo da Justiça por crimes praticados em várias cidades de
Mato Grosso, internou-se pela região ao longo do rio Para-
guai; povoando as margens dos rios Taboco e Nioaque, avan-
çando para os vales dos rios Miranda, Aquidauana e Negro.
Há de se perguntar: Por que os fugitivos se estabeleceram
numa região tão inóspita como é o Pantanal? Por que não se
assentaram no Planalto, área mais próxima das províncias
de São Paulo, Minas e Goiás, onde poderiam realizar intensa
atividade comercial com as regiões mais ricas do império e as
oportunidades seriam muito maiores?
Ora, embora mais bem localizadas e muito menos insa-
lubres que o Pantanal, além de disporem de uma rede de vias
de comunicação e transporte, lá não havia um grande rebanho
bovino e equino alçado, campos extensos de pastagens nativas,
terras devolutas, barreiros e baiás de água salobra esperando
pelos colonizadores, como era o caso do Pantanal. Essa, sim,
foi a grande diferença, pois com esses animais foi possível or-
ganizar as primeiras propriedades: o gado foi sendo amansado,
o couro era a principal mercadoria de troca e a carne seca tam-
bém oferecia alguns recursos para os pioneiros.

49
ESSELIN & OLIVEIRA, op. cit. p. 108.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 311


As notícias do gado alçado nas regiões do Pantanal eram
de domínio geral. As transações que os criadores que se afaz-
endaram em torno do forte de Miranda realizavam na cidade
de Cuiabá eram frequentes, como também aquelas atribuí-
das aos guaicurus com a intermediação dos fortes: “Como era
comum estes notáveis cavaleiros venderem animais de sela
desde 1820 em Cuiabá.”50
Os primeiros colonos não fizeram qualquer referência
à entrada de bovinos. É possível que eles tenham sido tão
poucos que não mereceram menção; ademais, que razão jus-
tificaria levar gado bovino e equino para uma região onde
existiam aos milhares? No entanto, é certo que os colonos
trouxeram alguns animais de sela, como também aqueles que
optaram pela via terrestre se utilizaram das carretas puxa-
das por juntas de bois para transportar suas famílias e seus
poucos pertences. Certamente, vieram também os animais
de tiro para a labuta diária, indispensáveis no início do pro-
cesso de fixação, algumas vacas leiteiras, animais de pequeno
porte, o suíno, o caprino lanígero e aves domésticas, em escala
suficiente para garantir a subsistência nos primeiros meses e
para a reprodução.51
Essa empresa de migração foi feita pela iniciativa par-
ticular de alguns colonos, sem que houvesse o envolvimento
do Estado. Os pioneiros foram atraídos pela facilidade em se
obter terra abundante e devoluta e cuja pastagem natural,
em grande quantidade, abrigava milhares de cabeças de bo-
vinos e equinos selvagens e domesticados na posse dos grupos
indígenas. Geralmente, as comitivas que deixaram o norte de
Mato Grosso eram muito numerosas, com famílias inteiras,
parentes, amigos, compadres, agregados e alguns cativos; en-
fim, os que vinham tomar posses das terras não eram pes-

50
BERTELLI, A. de P. O paraíso das espécies vivas: Pantanal de Mato Grosso.
São Paulo: Cerifa, 1984, p. 41-42.
51
ESSELIN &OLIVEIRA, op. cit., p. 110.

312 Paulo M. Esselin


soas miseráveis, mas reuniam condições que lhes permitiam
a fundação de fazendas.
Muitas vezes, esses grupos de colonos embarcavam em
pequenas embarcações em Cuiabá e vinham pelo Paraguai
abaixo até Corumbá, onde se dispersavam com suas comiti-
vas para um local que melhor lhes aprouvesse. Nesse primeiro
momento de ocupação, era possível escolher as terras que se
queria para tomar posse, geralmente nas proximidades dos
fortes, onde se poderia encontrar auxílio em caso de necessi-
dade e proteção contra os naturais.
Os colonizadores que chegaram à região antes da meta-
de do século 19 reproduziram os mesmos processos políticos
a que estavam afeiçoados no norte e trataram logo de tomar
posse de grandes áreas, passando a explorá-las e gozando, por
essa condição, de muito prestígio social. “Como a apelação de
‘senhor de engenho’ ou de ‘fazendeiro’, desde remotos tempos
coloniais, fora quase um título de nobreza, pois traz consigo o
ser servido, obedecido e respeitado de muitos.”52
Havia a clara possibilidade de os pioneiros se apossarem
de grandes áreas, achando-se no direito a elas, além do que
o fator que determinou o tipo de propriedade fundiária foi a
criação extensiva do gado bovino, que por si só exigia grandes
áreas e impelia os colonos a se assenhorearem delas.
No Pantanal, como no resto do país, sobretudo no período
colonial, generalizou-se como unidade territorial a sesmaria
de uma légua de frente por três de fundo, o que equivaleria
a 13.068 hectares. “Raramente, porém, cada proprietário ru-
ral contentar-se-ia com uma única, indicativa de comedidas
aspirações. Adquirida, mediante concessão do Governador, a
primeira sesmaria que servisse de núcleo, em torno dela se-
riam requeridas as terras contíguas, até que perfizessem con-
junto grandioso, [...]. De mais a mais, os limites mencionados

52
ANTONIL, apud:QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. O mandonismo local na
vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa Omega, 1976.p 52.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 313


vagamente abrangiam, não raro, área muitas vezes maior que
a devida, quando não se processasse a medição de acordo com
as exigências legais. A facilidade na aquisição, por título gra-
tuito, de glebas imensas, cujas divisas os vizinhos longínquos
respeitavam, por não lhes minguar terreno bruto, [...].”53
A justificativa para incorporar grandes áreas no Panta-
nal era que durante as cheias, como parte das terras ficava
alagada, necessitava-se de outro terreno correspondente, in-
acessível às enchentes, para onde o gado pudesse se refugiar.54
Além disso, a pecuária extensiva praticada no Pantanal tem
características próprias, sendo realizada em extensas áreas,
exigência do pequeno suporte dos campos, que comportava
em cada 3,3 ha apenas uma cabeça. Os bovinos eram cria-
dos à solta até as primeiras décadas do século 20, pois não
havia cerca para deter o seu avanço e, à medida que instinti-
vamente procuravam melhores pastagens, fugindo das áreas
macegosas, iam descobrindo novas pastagens, cujas terras
os homens que acompanhavam os seus deslocamentos iam
incorporando ao seu patrimônio e requerendo junto às autori-
dades provinciais e, a seguir, estaduais.
Com isso, foram surgindo megalatifúndios no Pantanal
mato-grossense:
• Faz. Palmeiras, com 106.025 hectares - (legalizada) -
03/12/1894;
• Faz. Rio Negro, com 118.905 hectares - (legalizada) -
03/09/1893;
• Faz. Firme, com 176.853 hectares - (legalizada) -
27/08/1899;
• Faz. Taboco, com 344.923 hectares - (legalizada) -
24/04/1899;
• Faz. Rio Branco, com 384.292 hectares - (legali-
zada).55
53
CORRÊA FILHO, Virgilio. op. cit. 1955. p. 20.
54
ESSELIN& OLIVEIRA. Op. cit., p. 111.
55
CORRÊA FILHO, Virgilio.op. cit,1955. p. 23.

314 Paulo M. Esselin


Isso aconteceu a despeito da edição da Lei de Terras de
nº 601, de setembro de 1850, que estabeleceu no seu artigo 2º
que, daquela data em diante: “Os que se apossarem de terras
devolutas ou de alheias, e nellas derribarem matos, ou lhes
puzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de be-
mfeitorias, e demais soffrerão a pena de dous a seis mezes de
prisão, e multa de cem mil réis, alêm da satisfação do damno
causado.”56 E no seu artigo 5º, parágrafo 1º: “Cada posse em
terras de cultura, ou em campos de criação, comprehenderá,
além do terreno aproveitado, ou do necessário para pastagens
dos animaes que tiver o posseiro, outrotanto mais de terre-
no devoluto que houver contíguo, com tanto que em nenhum
caso a extensão total da posse exceda a de huma sesmaria
para cultura ou criação, igual às últimas concedidas na mes-
ma Comarca ou na mais visinha.”57
A lei de 1850 procurou limitar o tamanho das proprie-
dades, evitando a concentração fundiária, e estabeleceu que
a única forma de se obter terra era comprando-a do Estado, o
qual atuava como mediador entre o pretendente e o domínio
público. A terra, até então em grande quantidade e que podia
ser obtida por meio de ocupação e doação real, desde que no
primeiro caso fosse mais tarde legitimada por concessão, da-
quela data em diante poderia ser obtida por qualquer pessoa,
desde que pudesse pagar por ela. A lei expressou os interesses
dos proprietários rurais. Enquanto no plano internacional o
avanço tecnológico no setor de transportes, conhecido como
Segunda Revolução Industrial, abriu novas perspectivas para
a agricultura brasileira, com o desenvolvimento da lavoura
cafeeira em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro dois

56
Collecção das Leis do Império do Brasil, 1850, apud: PENÇO, Célia de Carvalho
Ferreira. Uma legalização de terras devolutas em Mato Grosso. Tese apresenta-
da para defesa do título de livre docente à disciplina de Antropologia ao Depar-
tamento de História do Instituto de Letras, História e Psicologia do Campus de
Assis da Universidade Estadual Paulista, 1987.
57
Idem, p. 2.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 315


problemas avultaram, exigindo solução: o da mão-de-obra e
o da terra.58
Com o fim do tráfico transatlântico de trabalhadores es-
cravizados e com os amplos setores do interior do país que se
mobilizavam para obter terra, a oligarquia dominante, preo-
cupada com a facilidade que ex-cativos e imigrantes teriam
de se apossar de terras, lançou mão da lei de 1850 para “criar
obstáculos a propriedade rural, de modo que o trabalhador
livre, incapaz de adquirir terras, fosse forçado a trabalhar
nas fazendas. Portanto, os tradicionais meios de acesso à
terra, ocupação, formas de arrendamento, meação, - seriam
proscritas”.59
Em Mato Grosso, por um lado, a lei cumpriu em parte
o seu papel de negar acesso de trabalhadores rurais à terra
e, por outro, constituiu fator de concentração fundiária. Os
governantes reconheceram os direitos de todos aqueles que
exibissem escritos particulares de compra e venda ou provas-
sem posse mansa e pacífica decorrente da ocupação primária.
A própria realidade levou a esse processo de concentração das
terras, uma vez que não era possível a prática da pecuária
em outros moldes que não fosse a extensiva. Aproveitando o
capital natural (a terra e o gado selvagem), a lucratividade do
empreendimento seria garantida com custos baixíssimos. Os
investimentos necessários a uma prática intensiva, ou seja,
construção de cercas, plantio de pastagens artificiais e outros,
eram, naquele momento, impraticáveis. (Esselin; Oliveira,
2007, p. 112).60
Não foi difícil aos novos colonos legalizar as suas terras,
pois tinham a mesma origem: se não parentes próximos, eram
amigos e compadres. Os documentos foram produzidos com a
mesma facilidade com que se ocupou a terra. “[...] eu conside-

58
ESSELIN; OLIVEIRA. Op. cit., p. 112.
59
COSTA, Emilia Viotti. Da monarquia à república: momentos decisivos. São
Paulo: Ciências Humanas. 1979. p. 133.
60
ESSELIN; OLIVEIRA. Op. cit., p. 112.

316 Paulo M. Esselin


ro o Pantanal a única área de Mato Grosso que foi colonizada
exclusivamente pelo mato-grossense, ou melhor, pelos cuia-
banos, poconeanos, livramentanos e cacerenses [...].” (Ribeiro,
1984, p. 23). Essa foi uma empreitada de amigos e parentes
em que a solidariedade constituía a marca do empreendimen-
to. As áreas atingiam um tamanho tal que eram demarcadas
vagamente em função de acidentes geográficos, posição das
montanhas, curso dos rios, corixos e vazantes.
À frente desses imensos latifúndios emergiu um grupo
de proprietários que foi se enriquecendo ao longo dos anos e
se aproveitando da ausência dos equipamentos estatais para
ganhar poderes sobre as pessoas e as coisas.
Ao tomar posse de uma área, a primeira tarefa do novo
proprietário era reunir o gado alçado espalhado por todo o
Pantanal Sul. Era a chamada “bagualeação”, ocasião em que
eram organizadas comitivas que permaneciam por mais de
quinze dias internadas na região, distantes do núcleo da
fazenda.61 Saíam sobre o lombo de cavalos para recolher os
animais descendentes dos rebanhos introduzidos séculos an-
tes por jesuítas e colonos espanhóis, como também aqueles
que os guaicurus, em razão dos seus rápidos deslocamentos,
abandonaram Pantanal afora.
Geralmente, os vaqueiros saíam em noite de luar para
melhor visualizar os animais, que tinham o hábito de pastar
apenas à noite, os quais eram laçados e amarrados em árvo-
res, onde passavam horas nessa condição, para que fossem
quebradas as suas resistências. Mais tarde, o peão voltava
ao local para conduzi-los. Não era raro encontrar alguns ani-
mais mortos. Aqueles que sobreviviam eram recolhidos e le-
vados para as proximidades das sedes da fazenda.62 Eram as
vaquejadas: “[...] vai-se escondido, pelos matos, e sai-se em

61
BARROS, Abílio Leite de. Gente pantaneira: Crônicas da sua história. Rio de
Janeiro: Lacerda Editores. 1998.
62
PROENÇA, M. Cavalcanti. No termo de Cuiabá. Ministério da Educação e Cul-
tura. INL. Rio de Janeiro: 1958. p. 72-73.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 317


cima do gado, de repente... Pior, porém, era caçar a rês feroz,
em ermas regiões, perante a lua. A pega do gado bagual, de
noite, é trabalho terrível”.63
Para manter esse gado nas proximidades do núcleo da
fazenda, sob os olhos dos criadores, usava-se o seguinte es-
tratagema: cortava-se a ponta do casco, para que a dor da
pisada o impedisse de fazer longas caminhadas; com relação
às fêmeas, aproveitava-se seu instinto materno: prendiam-se
as crias para que as mães não se alongassem.
Foi assim que os bovinos foram sendo reunidos em torno
dos ranchos dos pioneiros, e dessa forma começavam a se es-
truturar os primeiros rebanhos e, com eles, as fazendas. Esses
fazendeiros muito cedo se deslocaram para a região meridio-
nal sul da planície fluvial do pantanal, estabeleceram-se em
áreas e juntaram em torno de trezentos a quinhentos animais
cada. Por volta de 1850 já haviam em torno de seis grandes
propriedades, todas legalmente registradas. Dentro de déca-
das eles tinham milhares de cabeças de bovinos e criaram
manada de cavalos. Muitos deles se tornariam importantes
figuras de economia e da política de Mato Grosso em décadas
subsequentes.64
À medida que esse rebanho encontrado pelos campos ia
sendo recolhido, recebia imediatamente a marcação a ferro,
o que determinava que, daquela data em diante, estava na
posse de um fazendeiro, passando à condição de mercadoria;
consequentemente, não poderia ser abatido por outrem.

63
ROSA, João Guimarães. Entremeio com o vaqueiro Mariano. In: Estas estórias.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 117.
64
WILCOX, Robert. Cattle ranching on the Brazilian frontier: Tradition and in-
novation in the Mato Grosso (1870-1940). New York University, 1992. p.20.
“These early settlers moved into the central and sourthern regions of the Pan-
tanal fluvial plain, setting up ranches with as many as 300 to 500 animals each.
By the 1850s, there were at lest six substantial ranches registered under law.
Within, decades these establishments had thousands of head of cattle and rai-
sed local horses as well, and many of the settler came to be important figures
in the economy and polítics of Mato Grosso in subsequent decades, [...].”

318 Paulo M. Esselin


No final do século 19, quando muito gado selvagem ainda
estava espalhado pelo Pantanal, essa lógica do homem “bran-
co” já havia sido absorvida pelos guaicurus, entre os quais já
reinava a compreensão de que o gado orelhano não dividido
– não marcado, portanto – era gado de ninguém, era de todos,
era gado bravio, era como bicho.65
O fato de o pioneiro reunir em torno de trezentas a qui-
nhentas cabeças para o seu criatório inicial não significava
que na área onde ele instalara sua fazenda não houvesse um
número muito superior, tanto que as caçadas eram comuns
para a posterior retirada do couro.
Os rebanhos dos primeiros que se afazendaram no Pan-
tanal e multiplicaram-se consideravelmente, mesmo sem re-
ceber os cuidados regulares. O fazendeiro não tinha recursos
para marcar todos os nascidos, e aqueles sem trato manifes-
tavam tendência a se afastar, tornando-se ariscos e repelindo
a presença do homem. “E, neste caso, ha um facto que se deu,
facto perfeitamente reconhecido: os touros que se tornaram
bravios – e são elles os mais promptos e propensos a esta mu-
dança – buscam e aproveitam todas as occasiões para arreba-
nhar o gado ainda manso. Assim, as manadas de gado bravio
vão-se engrossando sempre em detrimento dos criadores.”66
A pecuária tornou-se a principal atividade do Pantanal.
O regime das cheias e a distância das regiões mais ricas im-
pediram o desenvolvimento de outras atividades. A posse do
gado, que podia ser conduzido para outras regiões, significou
que a sobrevivência dependia quase que exclusivamente des-
se recurso.67 O trabalho em uma fazenda era extremamen-
te rudimentar, a ponto de dizer um produtor que “lá não se

65
RIVASSEAU, Emílio. A vida dos índios guaicurus. 2. ed. Rio de Janeiro: 1941.
66
RIVASSEAU, Emilio op. cit. p. 67.
67
ESSELIN, Paulo; OLIVEIRA, T. C. M. Op. cit., 2007, p. 114.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 319


criava gado, mas colhe-se gado”.68 “Aqui é o gado que cria a
gente”.69
Todas as tarefas começavam em princípios de setembro,
com as primeiras parições, e se estendiam até o fim de janeiro,
às vezes até março, conforme fossem uniformes ou tardias.70
Durante esses meses, os vaqueiros saíam a campo, localiza-
vam as manadas e as conduziam para um curral; laçavam
rês a rês, derrubavam-nas uma por uma e, no caso das crias,
sinalizavam-lhes as orelhas para identificar a propriedade;
sistema de marcação esse é ainda largamente utilizado no
Pantanal. Pari e passu, fazia-se a marcação em brasa dos ani-
mais adultos, o que nada mais era do que a confirmação da
posse. Concomitantemente à marcação, os touros eram cas-
trados, enquanto eram separadas as vacas que estivessem em
período de lactação.71
De março a agosto, as atividades da fazenda se resu-
miam ao cultivo de alguma cultura ou simplesmente ao ócio.
Como se pode depreender, a intervenção dos fazendeiros e dos
peões na pecuária era mínima: apenas a de assegurar a pro-
priedade dos animais, já que a criação se fazia às custas da
generosidade da natureza.
O fogo era utilizado como uma prática de manejo bas-
tante comum no Pantanal. Ao final da estação da seca (agos-
to e setembro) queimavam-se indiscriminadamente áreas de
vegetação herbácea, arbustiva e arbórea, procurando, assim,
eliminar ou conter a expansão de espécies indesejáveis e pro-
mover o rebrote das forragens que melhor aproveitavam os
bovinos e equinos.

68
MACIEL, Jose de Barros. A pecuária nos pantanaes de Mato Grosso: These
apresentada ao 3º Congresso de Agricultura e Pecuária. São Paulo: Imprensa
Methodista, 1922. p. 18-19.
69
ROSA, João Guimarães. op.cit. 1985. p. 118.
70
MACIEL, Jose de Barros. Op. cit.
71
Idem.

320 Paulo M. Esselin


No Pantanal, no momento em que se encerravam as ati-
vidades anuais de marcação, castração, etc., o proprietário
costumava, a título de gratificação, oferecer alguns novilhos
ou novilhas aos seus empregados, considerando para isso o
desempenho de cada um – “as vezes tinha capataz que conse-
guia até dez novilhas em um ano”.72 Simonsen, que estudou a
implantação da pecuária no Brasil, afirmou: “Depois de qua-
tro a cinco annos de serviço começava o vaqueiro a ser pago;
de quatro crias cabia-lhe uma; podia assim fundar fazendas
por sua conta”.73 “À semelhança do sistema de povoamento
que se desenvolveu nas colônias inglesas e francesas, o ho-
mem que trabalhava na fazenda de criação durante um certo
número de anos (quatro ou cinco) tinha direito a uma parti-
cipação (uma cria em quatro) no rebanho em formação. Tudo
indica que essa atividade era muito atrativa para os colonos
sem capital.”74
No caso específico do Pantanal, não foi muito diferente:
muitos daqueles que acompanharam os pioneiros sem dispor
de recursos para iniciar a atividade por conta própria acaba-
ram por efetuar a acumulação inicial trabalhando em uma
fazenda pantaneira. “Era comum termos na fazenda Tabo-
co pequenos criadores, quase que em regime de patriarcado,
ou melhor, de comunidade, que iam crescendo, aumentan-
do a sua criação, e depois o próprio patrão legalizava para
eles ou os auxiliava na compra de glebas para se tornarem
fazendeiros.”75 E ainda: “Quase todos os antigos capatazes
dessas fazendas [Pantanal da Nhecolândia] são, hoje, pro-

72
RIBEIRO, Renato Alves. Entrevista em 1999.
73
SIMONSEN, Roberto. História econômica do Brasil, 1500-1820. São Paulo: Na-
cional, 1937, T. I e II. T1. p. 234.
74
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil 24ª ed., São Paulo: Nacional,
1991. p. 59.
75
RIBEIRO, Renato Alves. Tabaco 150 anos: balaio de recordações. Campo Gran-
de: 1984. p. 33.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 321


prietários de terras. Os vaqueiros possuem gado, que criam
nos campos dos patrões, sem despesa alguma”.76
“Eu ainda alcancei parte dos processos de ocupação do
pantanal, meu pai requereu muitas terras para ex funcio-
nários, que são hoje grandes fazendeiros, ele tinha grande
prestígio político e levava para Cuiabá lotes de requerimen-
tos para a legalização de terras para aquela gente, pelo fato
de ser deputado ele encontrava muitas facilidades, em troca
recebia bezerros, tourinhos, vacas velhas, de alguns nunca re-
cebeu nada. Não é por ser meu pai mas era um homem muito
bom, um mecena.”77
As terras públicas foram, assim, sendo distribuídas aos
amigos, compadres e parentes, justamente aqueles que esta-
vam próximos do poder e que tinham os meios para legalizá-
las, ao passo que os nativos foram sendo expulsos e mortos
ou se tornando peões de fazenda. Os que lançavam mão de
grandes quantidades de terra pública, vendendo ou doando a
particulares, eram ainda considerados mecenas.
Ao lado da atividade criatória, o pioneiro teve de desen-
volver a agricultura para garantir a sua subsistência e a de
sua família, no mesmo modelo do norte de Mato Grosso. En-
quanto lá ela se desenvolveu para atender à atividade minei-
ra, no sul deu suporte para o desenvolvimento da pecuária.
Cada latifúndio tinha o seu cultivo próprio de gêneros alimen-
tícios para o sustento daqueles que viviam e trabalhavam no
núcleo rural. Praticamente, produzia todo o necessário, não
havendo a necessidade de recorrer para além dos limites da
propriedade, a não ser para a aquisição de ferro, louça, vinhos
e outros produtos, cuja produção interna não era possível. A
maioria dos produtos elaborados nas fazendas era fabricada
por processos manuais ou com instrumentos rudimentares de
baixíssimo rendimento.

76
BARROS, Carlos Vandoni. Nhecolandia. MATTO GROSSO. 1934. p. 23.
77
RIBEIRO, Renato Alves. Entrevista, 1999.

322 Paulo M. Esselin


“As moendas de cana, torneadas de jatobá, ou análoga
madeira de lei, pelos seus carapinas, completavam-se com a
maquinaria simples, em que se enformava a rapadura, o açú-
car de barro, ou alambicava a aguardente [...]. As peças metá-
licas só foram introduzidas quando ia em meio o século.”78
Cultivava-se muita mandioca, que constituía, ao lado da
carne, a base da alimentação do sulino e era um produto tão
valorizado como é hoje o arroz. Da mandioca, antes da farinha,
extraía-se o polvilho para fazer o bolo e o pão de queijo. Cul-
tivava-se também o feijão, já que os solos eram propícios ao
desenvolvimento dessa cultura, que tem ainda o conveniente
de não ser muito exigente em água e de fácil armazenamento,
podendo ser utilizado muito tempo depois de colhido. O milho
era cultura obrigatória, pois, além da canjica e da farinha,
obtinha-se dele o curau, a pamonha e muitos outros quitu-
tes ainda hoje apreciados pelos sul-mato-grossenses, mas que
preferencialmente eram armazenados em paiol para alimen-
tar o porco, que, além da carne, fornecia a banha.
Toda grande propriedade cultivava a cana-de-açúcar, da
qual se extraía o melado, a rapadura, a aguardente e o açúcar.
Os processos eram extremamente rudimentares: a cana colhi-
da passava por uma moenda, geralmente feita de madeira – o
jatobá – e tocada por uma junta de bois ou de cavalos, onde
era espremida, e o caldo, levado a grandes tachos sobre fogões
de lenha, que forneciam o calor necessário para a purificação.
Após esse processo, o melado era colocado em um cocho em
forma de fenda e, assim que se solidificava, o recipiente era
completado com terra, que, com o tempo, absorvia a umida-
de do melado, um princípio de osmose utilizado pelo caipira
naquelas regiões sem muitos recursos. A operação terminava
quando se retirava com cuidado a terra que estava seca e em
pedaços. Obtinha-se, assim, o açúcar de barro: quanto mais

78
CORRÊA FILHO, Virgilio. Pantanais Mato-grossenses: Devassamento e ocupa-
ção. Rio de Janeiro: IBGE-CNG, 1946. p. 68.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 323


seco, mais alvo e mais limpo. Para o preparo da rapadura
encaixava-se o melado em grades desmontáveis de madeira;
assim que secava, o produto estava pronto para ser consumi-
do.
Cultivavam-se, ainda, arroz, abóbora, moranga. O arroz
encontrava muitas dificuldades ambientais para o seu desen-
volvimento, sobretudo na planície. Raros eram os fazendeiros
que conseguiam colhê-lo.
A alimentação básica era mandioca, carne, leite, muita
farinha de milho e de mandioca, abóbora, batata-doce, moran-
ga, feijão, açúcar. Sobressaía-se o consumo avultado da carne
como elemento preponderante no regime de alimentação,79
servida em pelo menos três refeições: ao raiar do dia – o
desjejum, o chamado “quebra-torto” –, no almoço e no jantar.
Também contribuía na alimentação do mato-grossense, tanto
do norte como do sul, o peixe dos rios e baías. Era comum,
igualmente, o cultivo de árvores frutíferas, como a laranja,
o limão, a manga, a jabuticaba, o mamão. Dessas frutas se
faziam doces e, de algumas delas, licores, que eram servidos
o ano todo.
Instalou-se no Pantanal sul-mato-grossense a grande
propriedade rural voltada basicamente para o criatório bovi-
no e adotou-se o indígena como mão-de-obra principal numa
relação de semiescravidão. O vaqueiro originou-se do nativo,
do guató, do guaná, dos chamacocos e guaicurus, os primiti-
vos donos da terra; também do negro escravizado. Ele veio
para as minas de ouro e, depois, para as plantações de cana
no norte de Mato Grosso; acompanhou o desbravador por ca-
minhos vários e, já no sul, recebeu a influência do sangue
paraguaio, absorvendo-lhes os costumes e traços fisionômicos,
formando um tipo diferente do vaqueiro do norte.80

79
CORRÊA FILHO, Virgilio. Op. cit. 1955.
80
PROENÇA, Augusto César. Pantanal, gente, tradição e história. 3. ed. Campo
Grande – UFMS, 1997.

324 Paulo M. Esselin


Na verdade, a origem do vaqueiro sul-mato-grossense
não ocorreu dentro de um processo idílico campestre de amor
e ternura; pelo contrário, pautou-se pela violência e expro-
priação. O recrutamento da mão-de-obra para a pecuária teve
por base o elemento indígena, com consequências dramáticas
para este, na medida em que determinou o seu engajamento
em uma economia de caráter semiescravista, não obstante a
oposição que ele fez ao se ver expropriado de suas terras, seu
gado, seus bens e de sua gente.
Nas primeiras décadas do século 19, os nativos, sobretu-
do os terenas e guanás, tradicionais agricultores, eram livres
e economicamente autônomos. Em contato com os religiosos
que promoviam a catequese, e com os soldados dos fortes ins-
talados na fronteira, transformaram toda a sua tradicional
base material incorporando novas práticas de cultivo e tra-
balho, como também instrumentos mais produtivos, a ponto
de se tornarem os responsáveis pela produção de hortifruti-
grangeiros de alguns núcleos populacionais do Pantanal sul
de Mato Grosso, como Miranda e Corumbá.
Com o processo de colonização do Pantanal sul, os pio-
neiros foram expropriando os indígenas de suas terras e de
todo o seu gado e submetendo-os violentamente. Aqueles que
não foram mortos internaram-se pelo interior em busca de se-
gurança; os que ficaram, foram submetidos e transformados
em força de trabalho. Nesse processo de expropriação, foram
surgindo imensos latifúndios que concentravam milhares de
cabeças de gado. Por volta de 1860, já havia algumas subs-
tanciais propriedades e, à frente delas, os primeiros coloni-
zadores que se tornaram importantes figuras na economia e
política de Mato Grosso.
Naturalmente, os conflitos foram se sucedendo e, embo-
ra a população nativa fosse a maioria, não tinha possibilidade
de lutar, em razão da inferioridade bélica e também porque os

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 325


pioneiros contavam com o respaldo legal de autoridades dos
fortes e do distante governo provincial.
Em muito pouco tempo, os indígenas guanás e terenas,
de proprietários de rebanhos bovinos e cavalares, transfor-
maram-se em peões de fazenda. “Os [terenas são muito] pro-
curados pelos fazendeiros, contentavam-se com pequena re-
muneração, sendo, em geral, por eles explorados. Raramente
se encontrava um camarada terena que não devesse os cabe-
los da cabeça ao fazendeiro – seus serviços não eram pagos
pelo que valiam e, nas fazendas efetuadas pelo patrão, eram
tristemente roubados. Daí uma escravidão de nova espécie,
porque nenhum camarada de conta poderia deixar o patrão
antigo sem que o novo se responsabilizasse pela dívida. E se
tivesse a ousadia de fugir, correria os maiores riscos de ve-
xame e até de morte, porque nos povoados e vilas, estava a
polícia sempre em mãos dos fazendeiros.”81
Via de regra, os trabalhadores eram muito mal remu-
nerados e dependiam inteiramente do patrão para o forneci-
mento de gêneros como roupas, calçados, aguardente, enfim,
aquilo que a propriedade não produzia. Esses artigos eram
fornecidos a preços majorados, de forma que sempre havia
saldo prendendo o peão ao patrão.
A população nativa foi sendo aos poucos expropriada
de suas terras e de seu gado e sistematicamente reduzida à
condição de servidão. Empobrecida, à medida que ia sendo
desapropriada de seus bens, juntava-se em bandos, perambu-
lando pelas fazendas, mendigando por um local onde pudesse
se fixar, desenvolver lavouras de subsistência e caçar.
No fim do século 19, alguns desses grupos eram vistos
nas cabeceiras do rio Taboco, no alto Pantanal, em conflito
com fazendeiros: “Esses índios, sempre mansos, com o passar
dos tempos foram criando certos problemas, chegando a pro-

81
VIVEIROS, Esther de. Rondon conta sua vida. Rio de Janeiro: Livraria São
Jose, 1958. p. 179-180.

326 Paulo M. Esselin


vocar um caso entre meu avô e Rondon [Gen. Rondon]. Nes-
sas visitas que faziam à fazenda eles ganhavam pedaços de
arame que, por não serem de aço naquele tempo, eles lamina-
vam e colocavam na ponta de suas setas, dando às mesmas
um maior poder de penetração. Apesar do meu avô pedir-lhes
que viessem em casa que ele daria até rolos completos para
eles, os índios por comodidade, ingenuidade e não avaliando
o prejuízo que causavam, iam tirando o arame das cercas. .../
Às vezes estávamos prendendo boiadas para serem negocia-
das e, na véspera do dia combinado para o aparte, os índios
vinham e tiravam uma a duas quadras de arame das cercas,
soltando toda a boiada que havia sido presa em 20 ou 30 dias.
.../ Outro prejuízo grande que davam é que eles gostavam de
comer ‘nonatos’ (bezerros de barriga, às vésperas de nascer).
Eles, muitas vezes, matavam as vacas e só tiravam o bezerro
contido no útero.”82
Na sua obra Taboco 150 anos: balaio de recordações, Re-
nato Alves Ribeiro afirma que a fazenda Taboco só começou
a ser cercada depois da década de 1920, quando o general
Rondon já havia registrado os conflitos entre os nativos e o
seu avô, que aconteceram entre 1900 e 1910.
Desde a saída dos colonos e jesuítas espanhóis do Panta-
nal, aos poucos, os nativos foram incorporando a carne bovina
à sua dieta. O gado era numeroso e sem proprietário e passou
a representar para alguns grupos uma nova caça, mas, à me-
dida que os pioneiros foram chegando, ocupando a terra e se
apropriando do rebanho, a situação entre eles foi se deterio-
rando. Os fazendeiros se queixavam de que os índios causa-
vam grandes prejuízos ao furtar “suas reses” para abaterem
e se organizavam para pôr cobro àquela situação. Como as
autoridades em geral estavam nas mãos deles, logo se desen-
cadeavam repressões brutais, muitas vezes estimuladas den-
tro do próprio governo da província de Mato Grosso.

82
RIBEIRO, Renato Alves. op. cit. 1984. p. 77.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 327


Em um documento do Império, de 1874, Joaquim Bar-
bosa Marques foi autorizado a “arredar os índios de qualquer
modo e tomar conta de suas posses e garantir a família”,83
ou seja, os fazendeiros estavam respaldados pelo Império a
tomar posse das terras de qualquer maneira, até, se fosse ne-
cessário, exterminando o elemento nativo. A situação chegou
ao ponto de ver-se, no final do século 19, o general Rondon
obrigado a intervir nas relações pouco amistosas entre um
produtor da região e os índios ofaiés.
“A custa de intermináveis esforços para proteger a segu-
rança pessoal e a vida dos silvícolas, consegui salvar os rema-
nescentes da tribo dos ofaiés, das cabeceiras dos rios Taboco
e Negro. Estavam sendo caçados e exterminados por um ‘co-
ronel’, porque matavam, para comer, reses da fazenda. Só a
custa de energia, pertinácia e paciência foi possível obter do
Governo que reprimisse tais caçadas e mais difícil ainda foi
convencer o fazendeiro de que eram essas proezas assassínios
execráveis.”84
Os confrontos se estenderam violentamente por todo o
século 19, com desfecho favorável aos fazendeiros; de certa
forma, já havia uma acomodação entre os proprietários de
terra e os nativos. Joaquim Ferreira Murtinho, que esteve em
viagem por toda a província de Mato Grosso, deixou relatos
importantes a respeito do trabalho do indígena. No princípio
dos anos 1860, portanto, antes do início da Guerra do Para-
guai (1865-1870), ele esteve na vila de Miranda e foi hóspe-
de do barão de Vila Maria, no engenho de Piraputangas, nas
proximidades da cidade de Corumbá. Segundo ele: “Os terena
e laianas [estavam] aldeados sob a direcção de frei Marianno
de Bagnaia, em uma bella planicie, perto da Villa de Miranda,
prestavão já relevantes serviços, visto como não só os homens
se davão ao trabalho de camaradas, como ainda cultivavão
83
BARBOSA, Emílio. Os Barbosas em Mato Grosso. Campo Grande: Editôra Em-
presa Correio do Estado Ltda, 1961. p. 6.
84
VIVEIROS, Esther de. Op. cit. p. 225-226.

328 Paulo M. Esselin


roças que abastecião a villa de generos alimenticios”.85 No en-
genho, os “índios aprendião varios officios e trabalhavão em
olarias. Perfeito remeiros e pilotos, empregavão se e presta-
vão auxílio não só ao commercio, como camaradas das canoas
que transportavão generos de Corumbá a Cuybá; como ainda
nas fazendas de cultura e criação, onde seus serviços erão
apreciados.”86
Pelo relato do viajante, os índios eram os responsáveis
por todo o trabalho que se desenvolvia nas cidades e nos seus
entornos, além de cultivarem a terra. Toda atividade produti-
va estava sobre os ombros dos naturais. O viajante revela que
no aldeamento de Albuquerque dos Capuchinhos “notamos a
regularidade da educação dada por frei Angelo, que não os
poupava do trabalho, mas tratava-os com amor paternal [...]
na aldêa havia abundância de víveres plantados pelos índios
que se mostravão todos muito satisfeitos [...]. Os velhos ainda
seguiam seus costumes selvagens”.87
As mulheres índias também mereceram atenção do via-
jante: “As índias, entre as quaes se contavão 20 a 24, de 14
a 16 annos, erão na maior parte afilhadas da bondosa e ca-
ritativa sra. baroneza de Villa Maria, que lhes tributava ex-
trema affeição, e as protegia muito. Vinhão regularmente ao
seu sitio onde passavão dias, e ella as recebia sempre em sua
casa, infiltrando-lhes bons princípios, que seguião pela indole
naturalmente boa. [...] os indios ouvião missa e resavão todos
os dias no oratorio do missionario. .../ Havião escholas de pri-
meiras lettras e musica, onde estudavão com muito aprovei-
tamento. As índias empregavão-se nos arranjos de suas casas
e em costuras.”88

85
MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícia sobre a província de Matto Grosso,
seguida d’um roteiro de viagem de sua capital a São Paulo. São Paulo: Typ
Henrique Schroeder, 1869. p. 135.
86
Idem, p. 137.
87
Idem, p. 137.
88
Idem, p. 137.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 329


As jovens índias iam recebendo os “bons” princípios da
formação ocidental cristã para se tornarem “prendadas” em-
pregadas domésticas, cozinheiras, enfim, para realizarem
todos aqueles serviços que, por uma razão ou por outra, tor-
navam-se pouco dignos de serem exercidos pelas famílias oli-
gárquicas que começavam a se formar no Pantanal sul.
Era muito comum os fazendeiros da região de Mato
Grosso retirarem indiazinhas dos seios de suas famílias ain-
da em tenra idade sob a alegação de oferecer-lhes uma melhor
educação. Na verdade, desde os primeiros dias de chegada à
casa dos patrões, elas eram colocadas na lida diária, primeiro
divertindo os filhos e netos dos coronéis e seus apaniguados,
na condição de babás, e, mais tarde, introduzidas nos demais
afazeres domésticos, geralmente sem ganho nenhum, mere-
cendo por esses serviços a honrosa condição de participarem
do ciclo mais íntimo da família, obterem um casamento ar-
ranjado pela condição de protegidas do coronel ou alguns cui-
dados especiais em sua velhice.
“Nas fazendas 80% da peonada era de índios, sendo os
serviços da casa exercídos por moças índias que eram criadas
pelos brancos. Até hoje em Aquidauana e Miranda é muito
comum as índias servirem de cozinheiras, arrumadeiras e
babás. Os meus filhos tiveram algumas babás índias. Era tão
íntimo o contato com eles que muitos fazendeiros aprendiam
a falar a sua lingua. [...] Vovó [criou] uma mestiça, Laura, e
para quem desejava coisa melhor. Vovó fez a Laura se casar
no Rio de Janeiro com um almofadinha da época [...].”89
Moutinho identifica entre os grupos indígenas que já
prestavam serviços em fazendas da região de Albuquerque e
Corumbá os quiniquinaus. Faz referência aos guanás, mas, ao
contrário de Castelnau, registra que estes estavam em frente
ao porto geral de Cuiabá, na margem direita do rio. Nas pro-

89
RIBEIRO, Renato Alves. op. cit p. 35, 73-74.

330 Paulo M. Esselin


ximidades de Miranda destacou os laianas e terenas, todos já
vivendo em completa harmonia com nossos costumes.90
A presença do trabalhador paraguaio em Mato Grosso é
visualizada somente no final do século 19 e começo do século
20. Quanto ao negro, eram muito poucos. No processo de co-
lonização sul-mato-grossense o principal elemento de traba-
lho é o indígena. Sendo a colonização é tardia e os pioneiros,
completamente descapitalizados, o recurso foi lançar mão do
nativo, já que não havia alternativa. Além do mais, o escravo,
em razão do pleno desenvolvimento da lavoura cafeeira no
sudeste na terceira década do século XIX, passou a ser recru-
tado com mais intensidade para as práticas laborais naquela
lavoura; assim, ficou muito cara, praticamente impraticável,
a sua compra por parte dos produtores sul-mato-grossenses
que começavam a se estabelecer nessas plagas longínquas.
No começo da década de 1850, tal era o volume do reba-
nho bovino que foram se estreitando os laços comerciais entre
os produtores do Pantanal sul e os tropeiros que vinham de
Minas Gerais. Com o início do processo de urbanização que
o Brasil viveu a partir do início do século 19, com a generali-
zação do cultivo do café no Sudeste brasileiro, os tradicionais
fornecedores do gado bovino, como Goiás, São Paulo e Minas
Gerais, já não conseguiam atender à demanda interna, sendo
necessário recorrer ao rebanho sul-mato-grossense.
Em 1856 a assinatura do Tratado de Amizade, Comér-
cio e Navegação entre o Brasil e o Paraguai, que abriu o rio
homônimo à livre navegação, constituiu, entre outros fatores,
um estímulo para os produtores ampliarem as exportações de
couro e de carne seca, o que possibilitou o aumento da renda
interna. Com isso, algumas fazendas prosperaram e a provín-
cia vagarosamente foi se integrando à economia nacional.
Esse pequeno progresso foi interrompido com o início da
guerra com o Paraguai, em 1865. Durante quase cinco anos,

90
MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Op. cit.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 331


boa parte da província esteve ocupada por tropas inimigas,
sendo território devastado e saqueado. Uma das razões que
levou Solano Lopes a determinar a invasão de parte da pro-
víncia de Mato Grosso, sobretudo da região do Pantanal sul,
foi a existência dos estoques de gado bovino e equino que po-
voavam toda a planície.
O rebanho local abasteceu as tropas invasoras, a popu-
lação assuncenha e também os prisioneiros de guerra. Há
entre os historiadores e memorialistas mato-grossenses certo
consenso de que os paraguaios teriam exterminado o reba-
nho bovino pantaneiro. No entanto, transportada da Bolívia
em 1857, a “peste das cadeiras” ou trypanosomiase equina,
doença fatal que atingiu a cavalhada, acabou por imobilizar
os guaranis, não permitindo que reunissem condições para
realizar o manejo do gado.
Embora os soldados paraguaios invasores tenham captu-
rado muito gado bovino e equino para manter seus exércitos
e enviá-los para Assunção, a maior parte desse gado perma-
neceu no território sul-mato-grossense. “Aquela enfermidade
começou a grassar entre os cavallos, com todos os caracteres
de epidêmica, como assinalado, em 1857. Hoje tornou – se
endêmica. A zona, em que actua esse mal, estende-se do sul
do distrito de Miranda até Cuyaba, exactamente em todos os
pontos, onde se dão as inundações periódicas e o alagamento
dos campos.”91
Tal fator limitante contribuiu para que o gado fosse se
alongando, juntando-se ao rebanho selvagem e colocando-se
fora do alcance do homem. Documentos e relatos dos contem-
porâneos, testemunhas oculares dos acontecimentos, colhidos
em crônicas, relatórios e cartas – dentre eles, destacando-se
Visconde Taunay, Joaquim Ferreira Moutinho e os presiden-
tes de província –, não deixaram dúvida: havia um rebanho

91
TAUNAY, Visconde de Campanha de Matto Grosso. scenas de viagem. São Pau-
lo: Livraria do Globo, 1923. p. 70.

332 Paulo M. Esselin


significativo que nem as tropas do Império brasileiro nem as
da República do Paraguai conseguiam manejar, em razão da
peste equina.
Essa doença, apesar dos seus malefícios do ponto de
vista econômico, acabou por contribuir decisivamente para a
preservação do rebanho bovino do Pantanal sul. O fenômeno,
ocorrido em meados do século 17 com o gado das reduções
jesuíticas, repetia-se em pleno século 19. Desta vez, a guerra
e a falta de equinos para o manejo do gado contribuíram para
a sua dispersão. Por isso, quando a guerra terminou, havia
grandes estoques por toda a planície.
Preservado, o bovino alçado exerceu forte atração sobre
os soldados do Exército brasileiro, que, desmobilizados, re-
solveram permanecer em território sul-mato-grossense. Além
disso, as vastas áreas cobertas de pastagem nativas e devolu-
tas, o fato de a pecuária não exigir grande quantidade de bra-
ços para o seu desenvolvimento, ao contrário da agricultura,
bem como a possibilidade de deslocamento do rebanho para
os centros consumidores com poucos gastos, tornaram-se es-
tímulos para a fixação no Pantanal.
Ao lado das iniciativas particulares, temeroso de novas
agressões na distante província, o Império decidiu adotar
providências que visavam à integridade territorial e à uni-
dade do país. A reabertura do rio Paraguai à navegação e as
medidas de apoio ao desenvolvimento comercial, como a isen-
ção de tributos aos produtos de importação e exportação co-
mercializados nos principais portos de Mato Grosso, abriram
perspectivas para o desenvolvimento local, como também pos-
sibilitaram a entrada de capitais estrangeiros, decisivos para
o crescimento econômico da região, beneficiando sobretudo
os comerciantes. Embora houvesse relativo desenvolvimento
econômico e populacional, a província continuou enfrentan-
do muitas dificuldades, sobretudo no campo. A “peste das ca-
deiras” continuou por todo o século 19, dizimando rebanhos

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 333


equinos inteiros, o que dificultava a venda do gado para as
regiões onde se processava a engorda. O contrabando de gado
tornou-se endêmico, sendo praticado de forma sistemática
para a Bolívia e, principalmente, para o Paraguai. O governo
local não dispunha de recursos humanos e financeiros para
coibir prática tão danosa ao Erário público.
Mesmo com todas essas dificuldades, o rebanho crescia
muito acima da capacidade do consumo da população, porque
não se conseguia vender todo o excedente produzido nas fa-
zendas. Em 1885, o rebanho mato-grossense era estimado em
oitocentas mil cabeças. Desde a década de 1870, Mato Grosso
detinha grandes e baratos excedentes bovinos, subutilizados,
e uma posição estratégica em relação a Minas Gerais, centro
onde se processava a engorda. Por outro lado, havia um mer-
cado de charque em franca expansão para os produtores bra-
sileiros. Esse período coincidiu com a substituição do criatório
bovino pelo do ovino na Argentina e Uruguai, países que op-
taram pela exportação de lã para o mercado europeu, muito
mais rendosa que a criação bovina. Logo, alguns empresários
argentinos e uruguaios, ligados à produção de charque e sua
exportação, sobretudo ao Brasil, resolveram se instalar em
Mato Grosso.
Em 1873, foi instalada a primeira charqueada no Panta-
nal norte, ao sul de Cáceres, com abate de cinco mil cabeças
anuais. Essa iniciativa estimulou a instalação de algumas
outras de menor porte na região, como a do Pindaibal, Triun-
fo, São João, e na região do Pantanal sul, onde, na primeira
década do século 20, três grandes indústrias foram instala-
das. Haviam-se passado menos de quarenta anos do fim da
guerra com o Paraguai. Nesse período, apesar do abate in-
discriminado durante parte do período de hostilidade pelas
tropas invasoras; do intenso contrabando interno e externo
no pós-guerra; do abate para o consumo local e para a pro-
dução de carne seca para a exportação; da subutilização do

334 Paulo M. Esselin


rebanho, criou-se um excedente expressivo que garantiu um
fornecimento seguro de matéria-prima para o funcionamento
das charqueadas, com oferta tão significativa que o preço da
rês atingiu $ 40,00 no Pantanal sul, ao passo que no Sudeste
era de $ 100,00.
Tal fato demonstra claramente que no fim da guerra ha-
via ainda grandes estoques de bovinos na planície e que no
período do pós-guerra houve intenso crescimento do rebanho,
sendo essa a principal justificativa para a instalação das em-
presas de industrialização da carne na região.
Outros fatores também contribuíram para a instalação
dessas charqueadas, tais como a entrada de grandes frigorí-
ficos no Uruguai e Argentina com emprego de métodos mais
eficientes no aproveitamento da matéria-prima, permitindo a
oferta de melhores preços aos pecuaristas e, assim, dificultan-
do a sobrevivência das charqueadas locais. Não conseguindo
concorrer com essas modernas empresas, alguns empresários
platinos transferiram suas atividades para o Pantanal sul.
Outro estímulo para a vinda de capitais platinos para o
Pantanal sul e a instalação de indústrias para a exploração
da carne foi a cobrança de impostos nas aduanas brasileiras
sobre a importação do charque oriundo da Argentina e Uru-
guai.
A indústria de charque do Rio Grande do Sul enfrentou
forte concorrência uruguaia e argentina durante longo pe-
ríodo. Como ambas haviam alcançado uma base técnica mais
poderosa, com produtividade superior à dos seus concorren-
tes, o governo imperial resolveu adotar tarifas protecionis-
tas para dar competitividade à indústria rio-grandense. Para
fugir a essas restrições, uruguaios e argentinos se instala-
ram em território nacional exclusivamente para abastecer os
mercados do Rio de Janeiro e Nordeste, onde o consumo era
significativo. Por outro lado, a reabertura da navegação do rio

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 335


Paraguai desde 1870 garantia com eficiência o escoamento da
produção a preços relativamente baixos.
Esse conjunto harmonioso de fatores contribuiu para
acelerar o processo de desenvolvimento da pecuária pan-
taneira, que atingiu o seu ápice na primeira década do
século 20.
O mercado nacional da carne vinha crescendo vertigi-
nosamente. À medida que as potências industrializadas se
preparavam para a Primeira Guerra Mundial, o encareci-
mento dos produtos de importação constituía um estímulo à
industrialização interna, desencadeando intenso processo de
urbanização no país com o surgimento de grandes cidades de
características metropolitanas, como São Paulo e Rio de Ja-
neiro. Em 1889, havia em todo o país novecentas fábricas com
54.200 operários, tendo em 1914 evoluído para 7.430 fábricas
e 275.500 operários.92 Como as tradicionais regiões produto-
ras de gado bovino não conseguiam atender a esse mercado,
os invernistas passaram a buscar matéria-prima com maior
regularidade em Mato Grosso, a ponto de em 1909 o Estado
exportar 59.401 cabeças em pé para as invernadas paulistas
e mineiras, 718.920 quilos de charque e 39.203 quilos de cal-
do de carne.93
A efetiva incorporação de Mato Grosso ao mercado nacio-
nal e as rendas auferidas com a comercialização plena tiveram
impacto positivo sobre os produtores rurais locais. Com mais
recursos, estes últimos passaram a modernizar a atividade
com a incorporação de novas técnicas de manejo, de experi-
ências de regiões mais desenvolvidas do país, e introduziram
reprodutores selecionados, iniciando a melhoria do padrão
racial do rebanho e atendendo também às exigências do novo
mercado consumidor. Aumentou-se, assim, a produtividade

92
CARONE, Edgard. A República Velha, instituições e classes sociais: São Paulo,
1970.
93
AYALA, S. Cardoso e SIMON, F. Album graphico do Estado de Matto Grosso
(EEUU do Brazil) Corumbá, Hamburgo: 1914. p. 120-121.

336 Paulo M. Esselin


pecuária; as fazendas foram sendo cercadas e subdivididas
em retiros, simplificando e melhorando a sua infraestrutura.
No começo do século 20, as bases da pecuária pantaneira
estavam solidamente estabelecidas; ao lado da erva-mate, já
constituíam a principal atividade econômica do Estado, onde
se iniciava a especialização na produção do gado de corte, na
sua fase de cria e recria. A venda do gado em pé para inver-
nistas do Sudeste se justificava pela distância do Pantanal
dos grandes centros de industrialização da carne.
A industrialização interna através das charqueadas, em-
bora significativa, não tinha capacidade para absorver toda a
produção pantaneira, que só se completava com a venda do
gado em pé para outros estados. No conjunto da produção pe-
cuária sobressaiu-se a indústria de transformação da carne,
que passou a ocupar lugar destacado na economia regional,
em razão do caráter capitalista, com o emprego de máquinas
modernas e trabalhadores especializados, estes geralmente
oriundos do Uruguai, Paraguai e do Rio Grande do Sul.
O mesmo não aconteceu no campo, onde a pecuária man-
teve as práticas pré-capitalistas de produção, aliás muito con-
dizentes com a estrutura latifundiária da região. Assim, as
relações sociais de trabalho permaneceram extremamente
atrasadas, com o emprego da mão-de-obra familiar muitas
vezes não remunerada, mantendo a massa humana que ti-
rava a sua subsistência dali no mais lamentável estado de
pobreza e ignorância, situação que vem se modificando vaga-
rosamente em razão das exigências do mercado
O processo de colonização do Pantanal desde o princí-
pio do século 16 esteve estreitamente ligado à pecuária. As
limitações impostas pelo meio ambiente foram superadas
pelo bovino, que garantiu a ocupação econômica da planície
e contribuiu decisivamente para a incorporação da região ao
mercado nacional.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 337


O substancial crescimento do rebanho bovino
e o desenvolvimento das charqueadas no
Pantanal sul-mato-grossense
A presença de grandes estoques de bovinos baratos e su-
butilizados foi o grande estímulo para a instalação das indús-
trias de charque por todo o Pantanal sul.
Outros fatores contribuíram para atrair os investimen-
tos estrangeiros. Orlando Valverde destaca a qualidade do
bovino pantaneiro: “No Pantanal imperou durante todo esse
período o sistema do livre pastoreio. Embora não houvesse
uma seleção dirigida, as condições naturais foram forjando
uma variedade de gado que se tornou conhecida pelo nome
de ‘boi pantaneiro’ e, fora do Estado pelo de cuiabano. Eram
animais de pequeno porte, magros e musculosos, bons para
fazer charque.”94
Contribuiu ainda para a instalação das charqueadas a
facilidade para o escoamento da produção pelo rio Paraguai,
principal via de comunicação de Mato Grosso com o Brasil e
que passava através do rio da Prata nos vizinhos Uruguai e
Argentina. Fator não menos importante foi o baixo preço do
gado bovino. Em 1908, ainda era possível comprar uma vaca
por 15$000 e um novilho por 30$000. No entanto, em 1910,
quando as charqueadas estavam em pleno funcionamento, os
valores saltaram, respectivamente, para 26$000 e 45$000.95
Ainda assim, o preço era muito baixo, pois no mesmo período
em São Paulo e no Rio de Janeiro pagavam-se 100$000 por
um novilho. Esse conjunto de fatores, aliado ao baixo custo da
mão-de-obra, garantiu alta rentabilidade aos negócios.
Aproveitando-se de todas essas condições, os capitalis-
tas platinos passaram a investir no Pantanal. Em 1907, foi
fundada a Charqueada Miranda, em Pedra Branca, próximo

94
VALVERDE, Orlando. Op. cit., p. 115.
95
AYALA, S. Cardoso e SIMON, F. op. cit. 129.

338 Paulo M. Esselin


da Vila de Miranda, de propriedade da firma montevideana
Deambrósio, Legrand & Cia. Em 1909, começou a funcionar a
Charqueada do Barranco Branco no município de Porto Mur-
tinho, pertencente à Empresa Extrativa e Pastoril do Brasil
S.A., com sede em Montevidéu. Ainda em 1909, foi instalado
também em Porto Murtinho o Saladeiro Tereré, de proprieda-
de de Moali & Grosso Ledesma, igualmente de Montevidéu.
Esses três estabelecimentos tinham capacidade para abater
de cinquenta e sessenta mil reses por safra.96
Até o princípio dos anos 1920, a maioria das indústrias
de charque que se instalaram em Mato Grosso o fez no Pan-
tanal sul, às margens do rio Paraguai ou de seus afluentes. A
escolha desses locais se explica pelos estoques de bovinos que
existiam na região, uma vez que as charqueadas têm a neces-
sidade de se instalar em locais onde há uma oferta regular de
matéria-prima; por outro lado, o rio Paraguai se constituía no
principal escoadouro para essa produção.
O mercado favorável à industrialização da carne estimu-
lou a instalação de um grande número de saladeiros;97 havia 22
desses estabelecimentos no estado no início de 1920. (Tab. 1).

96
Idem. 131.
97
MARQUES, A. Mato Grosso: seus recursos naturais, seu futuro econômico. Rio
de Janeiro: Papelaria Americana, 1923. p. 162-164.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 339


Tabela 1 –
Estabelecimento Município
No Rio Paraguai
Saladero Descalvado São Luiz de Cáceres
Saladero Bagoary Corumbá
Saladero Corumbá Corumbá
Saladero Rebojo Corumbá
Saladero Barranco Branco Porto Murtinho
Saladero Matto Grosso Porto Murtinho
No Rio São Lourenço
Saladero Alegre Coxim
No Rio Cuiabá
Saladero São João Poconé
Saladero Cuiaba Cuiabá
Estabelecimento Município
À margem da estrada de ferro Noroeste do Brasil
Saladero Pedra Branca Miranda
SaladeroAquidauana Aquidauana
Saladero Campo Grande Campo Grande
Xarqueada Eliseu Cavalcanti Campo Grande
Xarqueada Salustiano de Lima Campo Grande
Xarqueada Antônio Ignácio da Silva Campo Grande
Saladero Rio Pardo Campo Grande
Saladero Esperança Campo Grande
Saladero Serrinhá Três Lagoas
Xarqueada Matto Grosso Três Lagoas
Xarqueada Santa Luzia Três Lagoas
Xarqueada Villa Velha Três Lagoas
Xarqueada Tombo Três Lagoas
Fonte: MARQUES, A. Mato Grosso: seus recursos naturais, seu futuro econômico. Rio de Ja-
neiro: Papelaria Americana, 1923.

A Charqueada Pedra Branca, em Miranda, embora à


margem da ferrovia Noroeste do Brasil, quando inaugurada,
muito antes do início do funcionamento da Cia. Ferroviária,
possuía lanchas e chatas portadonas para conduzir os produ-

340 Paulo M. Esselin


tos de sua fábrica a Corumbá, onde era efetuado o embarque
para Montevidéu. 98
Dos saladeiros de Mato Grosso, oito estavam instalados
no Pantanal sul, justamente os de maior importância, “o Sa-
ladeiro de Miranda e o Tereré de Porto Murtinho”,99 ou seja,
os que reuniam maior capacidade de abate e que foram estra-
tegicamente estabelecidos, onde havia uma oferta segura de
bovinos.
A instalação das charqueadas permitiu o aproveitamen-
to de toda a produção excedente e, paralelamente ao desen-
volvimento delas, intensificaram-se as vendas de bois magros
para os estados de Minas e de São Paulo. Relato de impor-
tante fazendeiro da Nhecolândia deixa clara a situação que
viveram os produtores antes da instalação dos saladeiros:
“Vai melhorando o preço do gado, já se podendo vender bois
a 40$000, daí a melhora, também nas finanças dos criadores,
que em outros tempos, quando a produção era superior ao
consumo foi excessivamente precária.”100
Com a instalação de novos saladeiros, a produção do
charque cresceu substancialmente, enquanto o caldo e o ex-
trato de carne apresentaram grande variação.

98
AYALA; SIMON, 1914, p. 293.
99
Idem, p. 293.
100
BARROS, José de. Lembranças. Brasília: Gráfica do Senado Federal, 1987.
p. 59.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 341


Tabela 2 –
Produto Ano Quantidade Valor
Caldo e extrato de Carne 1902 198.188 777:662$000
Charque 1905 133.950 80:370$000
Caldo e extrato de carne 1903 326.250 339:448$000
Charque 1906 279.863 167:918$000
Caldo e extrato de carne 1904 208.907 314:982$000
Charque 1907 392.419 235:451$000
Caldo e extrato de carne 1905 63.439 83:205$000
Charque 1908 452.478 271:487$000
Caldo e extrato de carne 1906 47.072 71:041$000
Charque 1909 718.920 431:352$000
Caldo e extrato de carne 1908 49.750 121:828$000
Charque 1910 758.739 455:243$000
Caldo e extrato de carne 1909 39.203 119:403$000
Charque 1911 1.102.841 661:705$000
Caldo e extrato de carne 1910 28.931 70:409$000
Caldo e extrato de carne 1911 10.529 36:752$000
Fonte: AYALA; SIMON, op. cit., p. 120-121).

No período de 1914 a 1918, que coincide com a Primeira


Guerra Mundial, houve expressivo aumento da produção do
charque, como também da venda do gado em pé e do couro.

342 Paulo M. Esselin


Tabela 3 –

Quantidade
Ano Produto Valor
(Kg)
1914 1.733.973 Charque 1.560:575$700
1915 2.703.267 Charque 2.703:267$000
1916 3.755.310 Charque 3.755:310$000
1917 4.052.811 Charque 4.863:373$000
1918 4.144.736 Charque 4.973:683$200
1914 810.586 Couro Secco 1.008:984$400
1915 630.394 Couro Secco 881:704$450
1916 1.026.327 Couro Secco 1.197:383$540
1917 1.053.290 Couro Secco 1.470:264$860
1918 887.068 Couro Secco 1.257:257$350
1914 29.091 nº Couro Salgado 546:453$200
1915 40.033 nº Couro Salgado 765:356$400
1916 67.865 nº Couro Salgado 1.425:666$333
1917 67.599 nº Couro Salgado 1.621:242$870
1918 75.594 nº Couro Salgado 1.814:256$000
1914 51.469 Numero de reses exportadas 2.573:450$000
1915 54.798 Numero de reses exportadas 2.739:900$000
1916 51.034 Numero de reses exportadas 4.082:720$000
1917 66.689 Numero de reses exportadas 6.668:900$000
1918 62.545 Numero de reses exportadas 7.505:400$000
Fonte: CORRÊA FILHO. A Proposito do boi pantaneiro. Monographias cuiabanas, Rio de Ja-
neiro: Pongetti, 1926. p.

Fora o consumo interno, é possível aferir que em torno


de 130 mil cabeças de gado bovino passaram a ser comercia-
lizadas pelos produtores e industriais de Mato Grosso na pri-
meira década do século 20; além do que o contrabando conti-
nuou expressivo, tanto para o Paraguai e Bolívia como para
São Paulo e Minas Gerais.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 343


A melhora do preço do gado bovino e a absorção do ex-
cedente produzido no interior das fazendas pelo mercado au-
mentaram os rendimentos dos produtores rurais, os quais
estreitaram relações com seus pares, sobretudo de Minas Ge-
rais, e começaram a incorporar novas técnicas ao processo de
produção; cresceu a especialização da própria pecuária, com o
contínuo aumento da produção. Com relação ao manejo, mui-
to pouco mudou, mas a grande reavaliação foi o melhoramen-
to genético do rebanho na busca do aumento do desfrute e da
produtividade.
Desde o último quartel do século 19, os produtores de
Uberaba passaram a importar da Índia o gado zebu, cuja ca-
racterística era a rusticidade. Os animais se adaptavam mui-
to bem ao clima tropical, podiam ser criados extensivamente,
não dependiam de muitos cuidados e se revelaram extrema-
mente precoces, fortes para o trabalho do campo e de rápida
reprodução. “Onde os animais das chamadas ‘raças finas’ se
extinguiram ele prosperava”.101 Uma raça bovina como a ze-
buína se encaixou perfeitamente nas necessidades dos pro-
dutores de Mato Grosso, já que nada podia ser melhor para
uma região em que as propriedades estavam, em sua maioria,
“mergulhadas num regime primitivo de exploração das rique-
zas e sem chance de rápida locomoção, era importante que os
bovinos fossem rústicos, antes de tudo lucrativo”.102
Lentamente, o gado azebuado foi ganhando a planície
pantaneira e a preferência dos produtores, de modo que em
cinquenta anos, ou seja, no começo da década de 1960, os pri-
mitivos rebanhos coloniais desapareceram completamente.
Um inimigo contumaz do zebu assim se referiu à sua prolife-
ração em Mato Grosso: “Desgraçadamente, aquela belíssima
região de Mato Grosso, como, aliás, todo o sertão, foi invadido
pelo Zebu, esse fantasma oriental, que aí se introduziu, des-

101
VALVERDE, Orlando. Op. cit., p. 116.
102
SANTOS, Rinaldo. O zebu. Uberaba: Agropecuaria Tropical Ltda, 1998. p. 89.

344 Paulo M. Esselin


truindo a capacidade do nosso gado nacional, muito suscetível
de melhorar-se com um rápido cruzamento de reprodutores
finos já conhecidos e experimentados.”103
A crítica era para os métodos utilizados pelos vendedo-
res-boiadeiros de Minas, que trocavam lotes de reprodutores
indianos por novilhos de corte. Diz o próprio Cotrim que, “não
raramente, pegavam espertamente, 100 novilhos de corte por
um único garrote zebu”.104
Ao lado da melhoria do padrão racial, o arame farpado
começou a aparecer nas propriedades do Pantanal como con-
dição essencial para o azebuamento do rebanho. As fazendas
foram sendo cercadas, e as pastagens, divididas, propiciando
a seleção dos animais. Com isso, o rebanho foi sendo dire-
cionado e preparado para a produção de carne. “O rebanho
regional era conhecido na época por sua inferior qualidade e,
exatamente por dispor de exígua quantidade de carne, só po-
deria ter aproveitamento industrial lucrativo nos saladeiros
e charqueadas”105 Por isso, foi aos poucos sendo substituído
pelo gado graúdo de forma arredondada, muito andejo e com
visível acúmulo de carne no posterior.
Embora as técnicas de pastoreio tenham permanecido
extensivas no Pantanal, as práticas primitivas de manejo
pecuário foram sendo substituídas. O vaqueiro que fazia o
rodeio, jogando o laço, foi desaparecendo.
O trabalho do gado continuou sendo feito entre dezembro
e fevereiro. O gado era recolhido nas proximidades da sede da
fazenda, onde se realizava a marcação a ferro das crias novas,
no quarto posterior direito, a marcação na orelha, por meio
de um corte, e a castração dos garrotes. Em vez de se fazerem
violentamente essas operações, como antigamente, subjugan-

103
COTRIM apud: SANTOS, Rinaldo. Op. cit. p. 565.
104
Idem. p. 565.
105
ALVES, Gilberto Luis. Mato Grosso e a história: 1870 – 1929 ________ ensaio
sobre a transição do domínio da casa comercial para a hegemonia do capital
financeiro In: Boletim Paulista de Geografia. São Paulo: 2º sem. 1984. Nº 61.

A pecuária bovina e o processo de ocupação do Pantanal Sul-Mato-Grossense 345


do e derrubando a rês, ela era conduzida ao brete, onde ficava
imobilizada e não sofria as torturas costumeiras. Em julho,
os bezerros acima de oito meses de idade eram apartados das
respectivas mães. Passado o auge da estação seca, fazia-se a
queima do pasto, prática ainda tradicional no pantanal sul-
mato-grossense. Procuravam os fazendeiros, ao lançar mão
desse recurso, eliminar a macega, o capim-carona, fazendo re-
nascer tenro pasto junto com outros pastos naturais, de modo
a servir de alimentação do gado.106
O período que se estendeu de 1870 a 1910 foi marca-
do pela lenta integração do Pantanal sul de Mato Grosso ao
mercado nacional, quando foram sendo construídas as bases
para o desenvolvimento da pecuária de corte. Como assina-
lado, esse foi um período que coincidiu com a substituição da
criação do bovino pela ovelha na Argentina e Uruguai, com o
consequente deslocamento de capitais desses países para a
exploração dos imensos rebanhos que estavam subutilizados
na planície pantaneira. Pouco mais tarde, quando grandes
frigoríficos ingleses se instalaram naqueles dois países para
a exportação da carne congelada ou em conserva para o mer-
cado europeu, ambos deixaram de fabricar o charque, que,
em parte, era exportado para o Brasil, cujo mercado foi então
suprido exclusivamente pela indústria nacional. Isso permi-
tiu novo aporte de investimentos no Pantanal sul de Mato
Grosso, o que acelerou o processo de transformação de toda
a região. Os produtores passaram a vender mais e melhor
e, consequentemente, as fazendas começaram a ser melhora-
das, com benfeitorias sendo construídas, cercas separando as
propriedades e permitindo melhor seleção dos animais, o que
abriu caminho para a estruturação de um dos mais importan-
tes plantéis de gado bovino do mundo.

106
VALVERDE, Orlando. Op. cit.

346 Paulo M. Esselin


Sobre o Piauí
Origens e espaços de produção
das fazendas pastoris do Piauí1

Solimar Oliveira Lima*

No século 17, o Novo Mundo era já um velho conheci-


do da Europa. A passagem para os Quinhentos havia levado
consigo as imprecisões de terras e incertezas das conquistas.
Ao longo do século 16, na ocupação das novas terras, o fausto
produzido e idealizado atraiu interesses de Coroas e súditos,
que, acreditando na opulência, lançaram-se com furor ensan-
decido na busca de ouro e outras riquezas. Em pouco tempo,
o desbravamento a ferro e fogo revelou-se meio seguro de
consolidar posses. Nada resistiu ao ímpeto dos colonizadores,
nem terra nem gente. No caminho das riquezas, o Brasil dos
portugueses era rota e destino.
Naus abarrotadas de mercadorias singravam continua-
mente o Atlântico, tornando mais próximo o litoral do Brasil
das costas da África e das ricas casas comerciais europeias. O
oceano também insistia em desembarcar em terra firme do
Nordeste lusitanos desejosos de fortunas. Contudo, no litoral
nordestino, ao findar o século 16, estava estabelecida em gran-
des domínios a produção de açúcar, com plantações de cana e

*
Doutor em História/PUCRS, Professor do Departamento de Ciências Econômi-
cas e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Piauí
1
Este texto resulta da pesquisa em andamento “A produção pastoril no Piauí, no
Mato Grosso do Sul e no Rio Grande do Sul, de 1780 a 1930: um estudo compa-
rado”, coordenada pelo Prof. Dr. Mario Maestri/UPF e financiada pelo CNPq.
No Piauí a pesquisa conta ainda com o apoio da FAPEPI.

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí 349


engenhos. Estima-se que, à época, cerca de 120 engenhos pro-
duzissem em torno de dois milhões de arrobas de açúcar e que
o valor total exportado tenha alcançado 2,5 milhões de libras
A montagem desta estrutura produtiva certamente requeria
muitos cabedais. Um engenho, em rigor, contemplava os es-
paços voltados ao plantio da cana e de produção de açúcar e
requeria um investimento médio de 15 mil libras.2
O espaço destinado à produção, composto por equipa-
mentos específicos, dependia do desenvolvimento tecnológi-
co e de trabalhadores especializados trazidos da Europa. O
plantio, além de requerer grandes extensões de terras, exigia
uma inversão em trabalhadores escravizados que consumia
cerca de um quarto do capital fixo da empresa. Os elevados
custos de operação da iniciativa açucareira fez surgir uma
especialização entre os produtores. Assim, nos domínios mais
ricos, dos “senhores de engenho”, podiam-se encontrar todos
os processos produtivos, ao passo que as propriedades menos
afortunadas, dos “senhores lavradores”, dedicavam-se apenas
ao plantio da cana.3
É crível que no exigente mercado colonial de mercado-
rias e prestígios as relações entre estes “senhores” não fossem
tão harmônicas. No que se refere à relação comercial, insta-
lava-se uma dependência que acarretava aos menos ricos
sérias desvantagens. O reduzido mercado de comparadores
impunha quase exclusividade nas transações; além disso, em
face do exclusivo metropolitano, o preço da matéria-prima era
rigidamente controlado pelos “senhores produtores” como for-
ma de redução de custos. É crível também que, especialmente
em épocas menos favoráveis ao açúcar brasileiro no mercado
internacional, as respostas negativas à economia colonial re-

2
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional,
1976, p. 43.
3
ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste. São Paulo:
Brasiliense, 1973, p. 72. CASTRO, Antônio Barros de. 7 ensaios sobre a econo-
mia brasileira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1980, p. 15.

350 Solimar Oliveira Lima


caíssem sobremaneira sobre os “senhores lavradores”. Nesse
contexto de hierarquia senhorial, podemos inferir que a busca
por novas inversões seria uma estratégia para a garantia da
manutenção e aumento de riquezas e poder.
Assim, senhores descontentes com a relativa exclusão de
prestígio buscaram a diversificação produtiva tomando como
referência os rumos da acumulação potencializada pela pro-
dução de açúcar. A expansão da própria atividade açucareira
demandava o fortalecimento de uma infraestrutura necessá-
ria ao seu desenvolvimento, sendo o fato percebido por essa
fração proprietária que via na sua consecução a oportunida-
de de acesso a vastos domínios para criatório. Além disso, o
uso das novas posses com atividade produtiva complementar
ao interesse da produção açucareira renderia lucratividade a
baixos custos e incorporação de reduzidas somas. A especia-
lização da produção no litoral nordestino fazia da terra um
recurso exclusivo da empresa agrícola açucareira. A rígida es-
trutura social, a elevada concentração de renda e o monopólio
lusitano não deixavam margens para diversificação produti-
va no interior do espaço cativo do açúcar. A saída, portanto,
seria o distanciamento do cheiro da maresia.
Os caminhos para o interior do Nordeste exigiam, contu-
do, mais que desejos de posses e poder. Exigiam dos entran-
tes reconhecimento social e recursos suficientes para dispo-
rem de estrutura de enfretamento a nativos que resistiam
às expedições. As contínuas guerras dizimaram populações
nativas e afastaram homens pobres da propriedade de terras.
Os “desbravadores” dos sertões nordestinos foram homens de
posses a serviço de interesses próprios e da Coroa lusitana.
Nos sertões, a Casa da Torre foi referência no processo de de-
vassamento e conquista. O “feudo” teve como fundador Gar-
cia D´Ávila, que chegou à Bahia em 1549, acompanhando o
primeiro governador geral, Tomé de Sousa. Iniciou-se no país
como feitor e almoxarife da cidade do Salvador e da Alfân-

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí 351


dega, sendo posteriormente recompensado pelos serviços na
capital com sesmarias, tornando-se o “primeiro Bandeirante
do Norte”. Após seu falecimento em 1609, seus descenden-
tes dedicaram-se, ainda mais, às entradas pelos sertões do
Nordeste e ao extermínio de nativos junto à bacia do rio São
Francisco, em busca de terras e de braços.4
Em expedição de 1676, a Casa da Torre comandada pelo
neto do fundador, Francisco Dias D´Ávila, alcançou o rio Gur-
guéia em perseguição aos gueguês5. Desse confronto entre na-
tivos e ocupadores resultariam o devassamento e a conquista
do Piauí. Desse processo também resultariam doações de ter-
ras à Casa no Piauí, iniciando-se o chamado ciclo dos criado-
res de gado. Segundo o historiador Odilon Nunes, em outubro,
após quatro meses da “carnificina dos pobres indigenas”, o
governador de Pernambuco, dom Pedro de Almeida, “concede
as primeiras sesmarias em território piauiense a Domingos
Afonso sertão, Julião Afonso Serra, Francisco Dias D’Ávila
e Bernardo Pereira Gago, de dez léguas de terra em quadro
a cada um, nas margens do Gurguéia”.6 Em 1681, a Casa da
Torre e seus associados ainda foi agraciada com novas sesma-
rias nas margens dos rios Parnaíba, Paraim e Gurguéia; e em
1684 e 1686, outras datas foram concedidas no extremo sul
do atual Piauí. Ao final do século 17, o atual solo piauiense
era praticamente partilhado entre a Casa da Torre e seus as-
4
Sobre a Casa da Torre ver, por exemplo, CALMON, Pedro. A história da casa
da torre: uma dinastia de pioneiros. Salvador: Editora Fundação Cultural do
Estado da Bahia, 1983; ALMENDRA, General Jacob Manoel Gayoso e. O feudo
da casa da torre no Piauí: povoamento – luta pela propriedade. Teresina: cen-
tro de Estudos piauienses, 1953. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O feudo: a
casa da Torre de Garcia D’Ávila – da conquista dos sertões a independência do
Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
5
Ver, por exemplo, CHAVES, Joaquim. O índio no solo piauiense. Teresina: Cen-
tro de Estudos Piauienses, 1953; MACHADO, Paulo Henrique Couto. As tri-
lhas da morte: extermínio das nações indígenas na região da bacia hidrográfica
parnaíbana piauiense. Teresina: Corisco, 2002; CARVALHO, João Renôr F. de.
Resistência indígena no Piauí colonial. Teresina: EDUFPI, 2008.
6
NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. Teresina: Imprensa Ofi-
cial, 1966, p. 72

352 Solimar Oliveira Lima


sociados e ocupado com fazendas de gado administradas por
prepostos.7
Vinculado à Casa da Torre, encontrava-se Domingos
Afonso Mafrense que recebera, em 1674, a patente de capitão
de infantaria para acompanhar os Ávila em expedição contra
os guegues no São Francisco. Domingos era natural de São
Domingos de Fanga da Fé, termo de Torres Vedras, do arce-
bispado de Lisboa, e antes das incursões sertanejas vivia de
“uma fortuna humilde” na Bahia. Contudo, “possuía já uma
fazenda de gados, chamada Sobrado, da outra parte do rio S.
Francisco, distrito de Pernambuco, na estrada da travessia,
que vai para o Piauí”.8 As incursões de Domingos Afonso pelo
atual Piauí renderam-lhe, além da alcunha Sertão, trinta fa-
zendas. Uma delas tornou-se vila da Mocha e primeira capital
com o nome de Oeiras.
Em junho de 1711, o sertanista faleceu em Salvador,
Bahia, deixando suas posses para os padres inacianos. Ao
patrimônio herdado, foram acrescidas outras fazendas, tota-
lizando 39 unidades produtivas. Em 1760, as propriedades
passaram à administração da Coroa portuguesa, sendo deno-
minadas “Fazendas do Real Fisco” ou “Fazendas do Fisco”, e
foram divididas em três departamentos ou inspeções – Canin-
dé, Nazaré e Piauí. Findos os laços coloniais, as propriedades
tornaram-se nacionais ou da nação.9

7
Sobre a ocupação dos sertões piauienses ver, por exemplo, LIMA SOBRINHO,
Barbosa. O devassamento do Piauí. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1946: NUNES, Odilon. Devassamento e conquista do Piauí. Teresina: Comepi,
1972; NUNES, Odilon. Os primeiros currais: geografia e história do Piauí seis-
centista. Teresina: Comepi, 1972; CASTELO BRANCO, Moysés. O povoamento
do Piauí. Teresina: Comepi, 1982.
8
PITTA, Rocha. História da América Portuguesa. Rio de Janeiro: W. M. Jackson,
1950, p. 243.
9
Ver LIMA, Solimar Oliveira. Braço forte: trabalho escaravo nas fazendas da na-
ção no Piauí: 1822-1871. Passo Fundo:UPF, 2005; FALCI, Miridan Brito Knox.
Escravos do sertão: demografia, trabalho e relações sociais. Teresina: Fundação
Cultural Monsenhor Chaves, 1995.

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí 353


Domingos Sertão contribuiu particularmente para dois
processos históricos no Piauí: a ocupação do território e a in-
serção do trabalho escravizado na estrutura social em forma-
ção. Quando “dissolveu sua sociedade com os Ávila (a Casa da
Torre), Sertão ficou com as mais opulentas fazendas da bacia
do Canindé, que é tributária da bacia do Parnaíba, por onde
se estendiam dos sertões de Parnaguá aos campos dos Longás,
os vastos latifúndios daqueles primitivos colonizadores”.10 O
sertanista declarou em testamento que tinha “ocupado muitos
sítios, com gados meus, assim como vacum, como cavalar, e to-
dos fornecidos com escravos e cavalos e o mais necessário”.11
Do processo de utilização de escravizados em suas pro-
priedades resultaram duas formas de cativeiro no Piauí. A
primeira, caracterizada pelo domínio privado, passou a vigo-
rar a partir da administração das propriedades pelo sertanis-
ta. Esta forma de dominação se reproduziu sistematicamente
e se consolidou no novo território à medida que outros ocupa-
dores se instalaram nos campos ou se fixaram nos emergen-
tes povoados e vilas. A outra forma de cativeiro, domínio pú-
blico, nasceu do legado de Domingos Mafrense à Companhia
de Jesus. Ao contrário do que propagam alguns historiadores,
a exploração dos escravizados e destas fazendas manteve-se
com esmerado zelo administrativo ao longo das gestões das
Coroas portuguesa e brasileira. O cativeiro público não foi es-
pecifico do Piauí: outras propriedades foram administradas
pelo Império no Brasil, dentre elas, fazendas no Maranhão,
Pará e Rio de Janeiro.
Os domínios privados do século 17 e até a primeira me-
tade do 18 possuíram como origem exclusiva a doação de ses-
marias, que, no geral, não apresentavam demarcação precisa.

10
NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. Teresina:Imprensa Oficial,
1966, p. 116.
11
PEREIRA DA COSTA, F. A. Cronologia histórica do estado do Piauí: desde os
seus tempos primitivos até a Proclamação da República. Rio de Janeiro: Arte-
nova, 1974, p. 45.

354 Solimar Oliveira Lima


Nesse contexto, para tornar-se proprietário bastavam, além
da influência, “papel e tinta”.12 Contudo, a ocupação foi mar-
cada por intensas disputas entre sesmeiros e posseiros, em
geral, os cuidadores das propriedades dos sesmeiros, os pre-
postos. Os sesmeiros impunham aos posseiros “o pagamneto
de dez mil réis, de cada ano e de cada fazenda, o que provocou
geral clamor”, e mantinham um rígido controle sobre as ren-
das e posses, conforme constatou em 1728 João da Maia da
Gama em viagem pelo Piauí.13 Ao comunicar o fato à Coroa, o
ex-governador do Maranhão confessou que, “tendo eu corrido
todos os domínios de Vossa Majestade em Portugal, Índia e
Brasil, me parece que não achei em parte alguma aonde os
vassalos de V. Majestade experimentassem de outro vassalo
mais violências”.14
Na ocupação do Piauí, os fatos parecem indicar que, ape-
sar do zelo dos ricos sesmeiros residentes no litoral, as suas
propriedades potencializaram o surgimento de um setor que,
utilizando-se de condições específicas, passou a demandar o
acesso à terra. Entretanto, até a primeira metade dos Sete-
centos, tal constatação não necessariamente se materializa
facilmente, muito menos se torna regra. As medidas tomadas
pelas autoridades frente à luta pela terra não tiveram “ne-
nhuma influencia a favor dos que sentem o peso da tirania.
Privilegio era dom que se concedia ao senhor dos cabedais;
a violência era contra os que trabalhavam: era o dispositivo
governamental que infelizmente perduraria por largos anos”
– lembra o historiador Odilon Nunes em Pesquisas para a his-

12
ABREU, Capistrano e. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Rio de Janei-
ro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975, p. 260.
13
NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. Teresina: Imprensa Ofi-
cial, 1966, p. 146.
14
OLIVEIRA MARTINS, F. A. Um herói esquecido (Diário da viagem de regresso
para o reino de João da Maia da Gama, e de inspecção das barras dos rios do
Maranhão e das capitanias do norte, em 1728). Lisboa: Agência Geral das Colô-
nias, 1944, p. 28.

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí 355


tória do Piauí, de 1966. 15 Para o problema, os sesmeiros re-
corriam mais a práticas do período de domínio da terra contra
os nativos e menos a litígios no Judiciário. Quando a estes
recorriam, o foro escolhido era o da Bahia e, mesmo, Portugal,
onde os sesmeiros possuíam força e poder.16
Prestígio, papel, tinta e violência resumem os mecanis-
mos predominantes de obtenção e controle das propriedades
no primeiro século de ocupação do Piauí. No primeiro quartel
do 18, pode-se encontrar na historiografia apenas uma re-
ferência à aquisição por grandes proprietários por meio de
compra, realizada em 1721 – no entanto, a transação não foi
efetivamente validada. Neste ano, “o Ouvidor do Piauí deu
posse à Casa da Torre de uma propriedade que media 180
quilômetros de comprimento por 120 de largura do extenso
vale de Crateús, adquiridos por quatro mil cruzados. Seria
quase todo o vale do Poti. O ato de posse efetuou-se na fazen-
da Lagoa das Almas, às margens do riacho do Gado, afluente
do Poti. Parece que essa venda não foi respeitada, porque um
pouco mais tarde se concedem sesmarias às margens desse
rio”.17
Diante das violências praticadas pelos sesmeiros, os
posseiros desenvolveram mecanismos diferenciados de resis-
tência, como a violência, o Judiciário e alianças com forças
políticas locais. Este último aspecto indica a existência, nesse
período, de um setor da sociedade representado por não pro-
prietários e proprietários residentes em suas propriedades
em contraposição aos sesmeiros absenteístas. A aproximação,
entretanto, parece deixar antever dois nítidos interesses: o de

15
NUNES,Odilon. Pesquisas para a história do Piauí.Teresina:Imprensa Oficial,
1966, p. 147.
16
OLIVEIRA MARTINS, F. A. Um herói esquecido (Diário da viagem de regresso
para o reino de João da Maia da Gama, e de inspecção das barras dos rios do
Maranhão e das capitanias do norte, em 1728). Lisboa: Agência Geral das Colô-
nias, 1944, p. 28.
17
NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. Teresina :Imprensa Ofi-
cial, 1966:147-8.

356 Solimar Oliveira Lima


garantia da propriedade e o de ampliação da propriedade. O
combate aos sesmeiros residentes na Bahia encontra aliados
no campo político.
Em dezembro de 1743, uma Provisão do Conselho Ultra-
marino dirigida ao governador de Pernambuco informa uma
representação da Câmara da vila da Mocha [Oeiras] sobre
as concessões de sesmarias. Em razão de sua importância a
transcrevemos, apesar de sua amplidão: “Senhor- São extra-
ordinários os danos espirituais e temporais que tem havido, e
atualmente se experimentam nesta capitania originados da
sem razão e injusta com que os governadores de Pernambuco,
nos princípios da povoação daqueles sertões, deram por ses-
maria neles e indevidamente grande quantidade de terras a
três ou quatro pessoas particulares moradores na cidade da
Bahia, que cultivando algumas delas, deixaram a maior parte
devolutas sem consentirem que pessoa alguma as povoasse,
salvo quem à sua custa e com risco de suas vidas as descobris-
sem e defendessem do gentio bárbaro [sic], constrangendo-
lhes depois a lhes pagarem dez mil réis de renda por cada
sítio em cada ano pedimos a V. M. seja servido mandar que os
ditos intrusos sesmeiros não possam usar dos ditos arrenda-
mentos nem pedir renda aos moradores desta capitânia dos
sítios, que com tanto risco e trabalho descobriram à sua custa,
mas antes se sirva ordenar que cada uma das ditas fazendas
contribua em cada um ano com algum limitado foro, atenden-
do a muita pobreza destes moradores, a metade para o au-
mento da real fazenda, e a outra metade para o rendimento
do conselho e câmara daquela vila, para o que o provedor da
fazenda e o ouvidor da dita capitania faça averiguação das
fazendas que há nelas pelo modo que for mais suave, fazendo-
as numerar em um livro por ele numerado e rubricado, que
fique na câmara, ficando desta forma as terras das sobreditas
fazendas pertencendo in solidum aos ditos possuidores delas
sem que em tempo algum se possa converter e disputar em

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí 357


juízo escusa alguma a respeito do domínio das ditas terras,
porque só desta sorte poderão cessar tão injustos pleitos e o
contínuo desassossego que experimentam os referidos mora-
dores; e o universal clamor e queixa que há naquela capitania
sobre esta matéria, e que por nenhum modo possam os ditos
moradores serem convencidos e demandados fora do seu do-
micílio mas que o sejam em todas as suas causas e dependên-
cias perante os juízes que há naquela capitania ou perante o
ouvidor e provedor da fazenda real”.18
Segundo o historiador Pereira da Costa, no mesmo ano,
1743, entre maio e setembro, haviam sido concedidas dezes-
seis cartas de sesmarias no Piauí:19 em 25 de maio, a fazen-
da Jacaré, no rio Paraim, a Pedro de Oliveira Freitas; em 6
de junho, o sítio Traíras, no rio Parím, a Bernardo Lopes de
Oliveira; em 24, o sítio Curralinho, a Francisco Teixeira de
Carvalho; e em 25, uma data no rio Poti, a Francisco Coelho
Teixeira. Em julho, no dia 4, o sítio São José, em Piracuru-
ca, a Antonio Ferreira de Carvalho; 5, o sítio Bom Jesus, em
Longá, a Antonio da Cunha Valadares; 11, o sítio Poções, em
Parnaguá, a Manuel Jorge dos Reis; 21, uma data no rio Poti,
a Antonio Coelho Teixeira; 22, o sítio Barra, no Piauí, a José
Gonçalves de Lima e uma data no riacho do Saco, em Parna-
guá, a João Lopes Pereira; 23, uma data no riacho do Jucá, na
ribeira de Cratéus, a Manuel José de Lima. Em agosto, no dia
12, fora concedida a carta do sítio Tinguis, em Piracuruca, a
Bento Correia da Costa, e em 29, Sitiozinho, no Piauí, a José
da Cunha. Em setembro, no dia 7, uma data no lugar Santa
Rosa, em Gilbués, a João Rodrigues; 13, uma data no lugar
Jacareí, em Piracuruca, a Teodosio dos Remédios Antonino
e Antônio Tavares dos Remédios; e 17, a fazenda São Barto-
lomeu, no sertão do Longá, a José da Mota Verdade. As con-

18
PEREIRA DA COSTA, F. A. Cronologia histórica do estado do Piauí: desde os
seus tempos primitivos até a Proclamação da República. Rio de Janeiro: Arte-
nova, 1974, p. 113-114.
19
Loc. cit

358 Solimar Oliveira Lima


cessões seguem continuamente entre os anos 1744 e 1752. As
novas cartas contemplavam em certa medida alguns possei-
ros mais bem estabelecidos na teia de relação do poder local
e governo, que, se somados a outros novos agraciados, iriam
se estabelecer nas propriedades, reduzindo o número de pro-
prietários ausentes.
O poder local, ainda que frágil, era densamente articula-
do em torno dos interesses dos posseiros, que longe estavam
de compor um segmento de homens pobres. Eram, na verda-
de, fazendeiros estabelecidos, produzindo a partir do criatório
e trabalhadores escravizados, mas sem a propriedade da ter-
ra. Seus interesses estavam representados na Câmara, sendo
provável que alguns fossem parte da instituição. Além disso,
esses homens e suas famílias davam o contorno social neces-
sário à ocupação do território. O sentimento antissesmeiros,
considerados “intrusos”, revestia-se diretamente de uma de-
fesa de qualidades que somente eles, posseiros, pareciam ter
como condição justa para o acesso à propriedade formal das
terras: residiam e “cultivavam” a terra. Nesse contexto, consi-
deravam a renda da terra uma injusta transferência de rique-
zas para as mãos dos sesmeiros distantes da dura realidade
dos sertões.
Em meio às contendas, às concessões de cartas e às
representações, apenas em 1753 a política governamen-
tal aponta para um desfecho contemplando posseiros e ses-
meiros. Segundo Odilon Nunes, as provisões de 11 e 23 de
abril e uma de 2 de agosto consideram “cassadas, anuladas
e abolidas todas as datas, ordens e sentenças” relacionadas
às disputas de terras envolvendo “antigos e novos possuido-
res”. Contudo, é a provisão de 20 de outubro, dirigida ao go-
vernador de Pernambuco, que se posiciona efetivamente em
relação aos conflitos e tensões. Segue, pela sua importância,

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí 359


parte do ato régio. 20 “Para evitar as pressões e prejuízos que
se me têm representado haverem padecido os moradores do
Piauí, sertão da Bahia, e dessa capitania de Pernambuco por
ocasião das contendas e litígios que lhe moveram os chama-
dos sesmeiros de um excessivo número de léguas de terra de
sesmaria que nulamente possuem por não se cumprir o fim
para que se concederam, e foram dadas naqueles distritos a
Francisco Dias de Ávila, Francisco Barbosa Cam, Bernardo
Pereira Gago, Domingos Afonso Sertão, Francisco de Sousa
Fagundes, Antonio Guedes de Brito e Bernardo Vieira Ra-
vasco, experimentando os ditos moradores grandes vexações
nas execuções das sentenças contra eles alcançadas para a
expulsão das suas fazendas, cobranças de rendas, e foros das
ditas terras, sobre o que mandei tirar as informações necessá-
rias, e os ditos sesmeiros me fizeram suas representações, em
que foram ouvidos, e responderam os procuradores de minha
fazenda e Coroa. Fui servido, por resoluções de onze de abril
e dois de agosto deste presente ano tomadas em consultas do
meu Conselho Ultramarino, anular, abolir e cassar todas as
datas, ordens e sentenças que tem havido nesta matéria para
cessarem os fundamentos das demandas que pode haver por
umas e outras partes, concedendo aos mesmos sesmeiros por
nova graça todas as terras que eles têm cultivado por si, seus
feitores, ou criados ainda que estas se achem de presente ar-
rendadas a outros colonos, nas quais se não devem incluir as
que outras pessoas entraram a rotear, e cultivar ainda que
fosse a título de aforamento, ou arrendamento, por não serem
dadas as sesmarias senão para os sesmeiros a cultivarem, e
não para as repartirem, e darem a outros que as conquistem,
roteiem, e entrem a fabricar o que só é permitido aos capitães
donatários, e não aos sesmeiros, os quais hei por bem que
destas terras que lhe concedo por terem cultivado, e das que

20
NUNES,Odilon. Pesquisas para a história do Piauí.Teresina:Imprensa Oficial,
1966, p. 149.

360 Solimar Oliveira Lima


pedirem de sesmaria estando nos distritos das suas primeiras
datas, e achando-se ainda incultas e despovoadas em que se
devem por clausulas com que ao presente se passam decla-
rando as léguas que compreendem, e as suas confrontações
e limites; com declaração que cada uma das cartas não há de
ser mais que de uma data de três léguas de terra de comprido
e uma de largo, e não serão contíguas umas a outras, por-
que deve medear entre elas ao menos uma légua de terra, e
as três léguas da data serão continuadas, e não interceptas
com nenhum pretexto porque lhes é lícito escolher as terras
capazes de cultura de que se lhes passe carta sem incluírem
maior extensão que as três léguas com o motivo de entrar
nelas terras incultas tudo na forma de repetidas ordens que
há para se evitarem as fraudes na extensão das fazendas e as
perturbações e contendas que há, quando se não acautelam
nas cartas estas clausulas. Para averiguar os sítios de que
se hão de passar as cartas tenho nomeado ao desembargador
Manuel Sarmento, ouvidor atual do Maranhão, que deve ser
pago pelos mesmos sesmeiros que possuem as terras que se
hão de dar por novas sesmarias, cuja diligência deve primei-
ro ir fazê-la no Piauí, e acabada naquela comarca passar à
de Jacobina, e examinando o mesmo desembargador pessoal-
mente os ditos sítios ouvindo as partes breve e sumariamente
sem figura de Juízo, determinar as terras que os sesmeiros
têm cultivado por se acharem ainda incultas, nas quais de-
vem eles ter preferência: Como também examine as que se
acham cultivadas e povoadas por outras pessoas à sua custa
porque nelas terão os seus cultores e povoadores preferência
pedindo de sesmaria ainda que lhes dadas de aforamento, ou
arrendamento, e de tudo formará autos a requerimento e à
custa das partes e os deixará aos provedores da fazenda dos
distritos a que pertencerem as terras, os quais as farão medir
e demarcar cada uma das datas separadamente para com os
autos da medição e demarcação se pedirem as cartas que eu

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí 361


lhes concederei requerendo-as o sesmeiro dentro em três anos
do dia em que o ministro fizer o exame da terra e quando os
procuradores não possam fazer todas as medições e demarca-
ções se lhes concederão pelo meu Conselho Ultramarino pro-
visões de tombo para os ministros que o devem fazer dentro
do referido tempo, e passando ele se poderão dar as terras a
quem as pedir não se tendo medido e demarcado para se evi-
tarem as contendas que costumam haver sobre as terras que
não se acham medidas.
Os rendeiros das terras que se derem de sesmaria dos
sesmeiros serão obrigados a pagar rendimentos que deverem
por sentenças que se acham suspensas por ordem expedida
pela secretaria de Estado, sem embargo dela, e de se darem
as terras por nova graça, porque a mesma causa que se con-
sidera para se lhes darem as terras, essa mesma se dá para
se lhes pagar o rendimento delas, o que tudo se deve praticar
igualmente com todos os referidos sesmeiros, observando-se
nestas datas e que atualmente tenho ordenado se pratique
com todas as mais”.21
A decisão real possibilitou dois desdobramentos discipli-
nares, em rigor já conquistados e necessários à sociedade de
classe e latifundiário-escravista em formação: a organização
social e a organização do espaço. A provisão validou duas ca-
tegorias de latifundiários como estratégia de consolidação de
poder sobre o território. Manteve a presença de grandes pro-
prietários absenteístas, garantindo propriedades e permitin-
do a ampliação de posses, e oficializou a existência, a partir
dos posseiros, de grandes proprietários residentes e domici-
liados nas terras. O governo garantia com a medida antigas
alianças e criava novas, importantes para assegurar o con-
trole sobre o processo de ocupação. O novo status conferido a

21
PEREIRA DA COSTA, F. A. Cronologia histórica do estado do Piauí: desde os
seus tempos primitivos até a Proclamação da República. Rio de janeiro: Arte-
nova, 1974, p. 121-123.

362 Solimar Oliveira Lima


posseiros traria mudanças significativas nos rumos não só da
estrutura social, mas também da produção.
Investidos do poder da terra, os latifundiários residen-
tes compuseram uma fração hegemônica de poder econômico,
político e social no Piauí. A partir de seus interesses e ne-
cessidades, estruturou-se a vida em sociedade. Investiram-se
de autoridade oligárquica sobre seus domínios, habitantes e
cargos. Melhoraram estradas, ampliaram o pequeno número
de povoados e adonaram-se das poucas vilas. E ainda nem
desfrutando plenamente da nova condição de proprietários, já
reproduziam relações de exploração do trabalho de livres po-
bres e libertos na condição de agregados, moradores, rendei-
ros ou de trabalhadores escravizados nas lidas das fazendas.22
O crescimento da presença dos proprietários nas fazendas e,
em decorrência, na ingerência sobre o contexto social pode ser
percebido nos dados apresentados pelo historiador Luiz Mott.
Em 1697, das 129 fazendas existentes, apenas doze eram ad-
ministradas diretamente pelos proprietários. Em 1772, entre
os 931 proprietários, somente 107 se encontravam ausentes,
ou seja cerca de 11%. O percentual se reduz para 6,9% em
1818, quando em apenas 170 das 2.460 propriedades os lati-
fundiários eram absenteístas.23
No respeito à organização do espaço, aquela iniciativa
atrelava-se intimamente às necessidades da produção predo-
minante na pecuária. A provisão de 1753, ao delimitar as con-
cessões de sesmarias à área de três léguas de comprimento e
uma de largura (cerca de treze mil hectares) e à distância de
uma légua (cerca de seis quilômetros) entre as propriedades,
além de ratificar a institucionalização da grande propriedade
como padrão de domínio, cuidava do ordenamento espacial,
favorecedor ao criatório extensivo, evitando a possibilidade

22
MARTINS, Agenor et al. Piauí: história, realidade e desenvolvimento. Teresi-
na: Fundação Cepro, 1977.
23
MOTT, Luiz R. B. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina:
fundação Cultural do Piauí, 1985, p. 98-9.

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí 363


de ocupações irregulares entre as fazendas, uma vez que “na
dita légua entram igualmente os vizinhos a procurar os seus
gados, sem contudo poderem nela levantar casas ou currais”.24
Segundo os viajantes franceses Spix e Martius, que visitaram
essas regiões em 1820, “só raramente um dos chamados agre-
gados, em geral pretos forros ou mulatos, construíram aqui e
acolá, neste território, pequenas moradas ou quintas, pois os
proprietários das grandes fazendas não querem ceder porção
alguma de suas terras, por considerarem indispensável as
grandes extensões para a criação do gado”. Os viajantes cons-
tataram que, em razão da seca, era necessário movimentar
os animais por amplos espaços para alimentá-los com capim
seco e frutas.25
As distâncias entre as fazendas não estavam, contudo,
sujeitas apenas à lei. As condições naturais parecem ser de-
terminantes na localização das propriedades, ou, pelo menos,
na instalação das áreas de produção nas propriedades. No
geral, a tendência era pleitear terras próximas a rios ou ou-
tros cursos de água. O acesso a mananciais era condição in-
dispensável, por exemplo, para a manutenção e reprodução
do rebanho. Em 1697, uma descrição dos sertões do Piauí, de
autoria do padre Coutinho, apontava uma distância entre
as fazendas de “mais de duas léguas uma das outras”.26 Em
1757, o vigário Antônio Luiz Coutinho constatava na fregue-
sia de Nossa Senhora da Vitória da Mocha [Oeiras] que, “nas
beiradas dos riachos assistem os paroquianos, criando gados
e cavalares, distantes uns dos outros, três, quatro, cinco, seis,
sete, oito, dez e mais léguas, por morarem junto dos poços

24
Roteiro do Maranhão a Goiaz pela Capitania do Piauhy. In Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo LXII, 1º e 2º semestres, 1900, p. 79.
25
SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Carl Friedr Phill von.. Viagem pelo Bra-
sil. Rio de Janeiro:Imprensa Nacional, 1938, p. 216.
26
Dezcripção do certão do Peauhy Remetida ao Ilmo. e Rmo. Sr. Frei Francisco
de Lima Bispo de Pernambuco. In: ENES, Ernesto. As guerras nos Palma-
res subsídios para sua história. São Paulo: Companhia editora nacional, 1938,
p. 373.

364 Solimar Oliveira Lima


que ficam nos tais riachos do tempo do inverno”.27 As indi-
cações em léguas devem, entretanto, ser relativizadas, como
bem aponta o Roteiro do Maranhão a Goiás pela Capitânia do
Piauí, de autoria desconhecida, no início do século 19.
“As léguas, com que mostro as distâncias, não são mate-
máticas, são as mesmas, que contam os habitantes os quais
as regulam arbitrariamente; e as dividem sempre com algum
sinal remarcável posto pela natureza. Além de ser impra-
ticável, que simelhantes balizas se enchem por si mesmas
acomodadas a uma justa dimensão; os habitantes terminam
comumente as léguas antes de terem trez mil braças, que é
a medida de que judicialmente se servem na demarcação das
terras. De sorte que as ditas léguas só vem a ser irregulares e
desiguais entre si, mas são todas diminutas; e nenhuma che-
ga a fazer uma hora enganando, quem ao grande número de
léguas, em que acaba o Roteiro, diminuir ao menos a quarta
parte.”28
As distâncias não foram, de fato, obstáculos para a es-
truturação da economia pastoril: foram a solução encontrada
para a ampliação dos domínios e da fronteira de produção. To-
mando como referência as propriedades legadas por Domingos
Sertão aos jesuítas, Luiz Mott constata que 29 fazendas, de
33, possuíam área superior ao estabelecido. Para o autor, as
extensas superfícies explicavam-se pela “rusticidade do nível
técnico dominante na pecuária e a rarefação das pastagens
nos períodos estivais forçavam os proprietários a desejarem e
necessitarem grandes extensões fundiárias”.29
O latifúndio foi, por excelência, a base da fazenda pas-
toril e sua defesa, repetidamente apresentada como uma ne-
27
MOTT, Luiz R. B. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina:
Fundação Cultural do Piauí, 1985, p. 53.
28
Roteiro do Maranhão a Goiaz pela Capitania do Piauhy. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXII, 1º e 2º semestres, 1900,p. 60. [Mo-
dernizamos]
29
MOTT, Luiz R. B. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina:
Fundação Cultural do Piauí, 1985, p. 58.

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí 365


cessidade da forma de produção. Nesse contexto, as fazendas
do início da ocupação territorial, pelas próprias condições
materiais, tenderam à exclusividade do pastoreio no uso do
solo. Nos primórdios, em especial nos anos de devassamento
do século 17, o deslocamento constante dos animais conferiu
uma característica eminentemente extensiva, tendendo-se a
utilizar esta característica como uma necessidade da produ-
ção, que evidentemente satisfazia ao desejo de conquista de
terras. Nesse sentido, parece prudente pensar que o elevado
grau de disponibilidade de terras associado à cultura latifun-
diária colonial tenha de fato determinado a forma de produ-
ção. Essa vinculação de dependência se materializa sobrema-
neira nos reduzidos investimentos no processo de produção,
como infraestrutura, manejo e qualidade do rebanho.
Na segunda metade do século 18, sobretudo após a nor-
malização das disputas e as garantias sobre as terras, aumen-
taram modestamente as iniciativas de melhorias na pecuá-
ria, especialmente em infraestrutura, sem, contudo, alterar
substancialmente o caráter de dependência da natureza. Em
razão do aumento populacional e surgimento de povoados e
vilas, as fazendas passam também a destinar parte das ter-
ras à agricultura, recebendo esses espaços a denominação de
“sítios”. De acordo com o relato do ouvidor Antônio José de
Morais Durão de 1772, “fazenda se chama a de gado vacum
ou cavalar, ditas vulgarmente, currais; sítios se toma pela fa-
zenda que se cultiva, sendo separadas das de gado”.30 Em ver-
dade, a partir, especialmente do final do século 18, havia uma
rígida separação apenas no uso do solo. Grandes fazendeiros
possuíam sítios e fazendas, onde eram produtoras de gado e
de cultivos.
Nessa perspectiva, torna-se, inicialmente, imperioso
romper com a visão de fazendas pastoris como espaço exclusi-

30
MOTT, Luiz R. B. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina:
fundação Cultural do Piauí, 1985, p. 23.

366 Solimar Oliveira Lima


vo de criação de gado. Em rigor, embora possam ser denomi-
nadas como fazendas pastoris as de gado, como o faz o ouvidor
Durão, poucas foram, pela exigência material, as unidades
com essa característica. Como dito anteriormente, a existên-
cia de fazenda pastoril especializada pode ser associada, pela
precariedade de condições e bases materiais, ao início do pro-
cesso de ocupação.
A dispersão do gado pelo interior do Piauí fez crescer
continuamente o número de animais e, embora com vagar, a
quantidade de moradores. No findar o século 18, as terras e
os habitantes estavam estabelecidos na capitania. Porém, os
números da comercialização do gado já não indicavam mais
patamares como os de outrora, e os fazendeiros buscaram al-
ternativas para manutenção da lucratividade e de vínculos
com setores e regiões mais dinâmicos da economia. No iní-
cio dos Oitocentos, aumentou a diversificação produtiva, no
sentido de deslocar acumulação para explorar também outras
atividades lucrativas, como a agricultura mercantil.
Nesse processo, não houve necessariamente redução de
investimento no criatório, até porque ele, pela característica
extensiva, era praticamente imune a crises e continuou se
expandindo. O rebanho tendia a crescer independentemente
dos mercados e sua expansão, quando associada à incorpora-
ção de novas terras, de certa forma, favorecia a diversificação
para o plantio, uma vez que este se relacionava diretamen-
te ao uso do solo na grande propriedade. Progressivamente,
áreas foram sendo destinadas a cultivos, mantendo-se as mais
propicias às pastagens ao criatório. Nesse contexto, grandes
propriedades pastoris passaram a desenvolver uma agricul-
tura para mercado, utilizando-se de duas condições disponibi-
lizadas pela pecuária: o latifúndio e o trabalho escravizado.
Na agricultura mercantil-escravista nas grandes fazen-
das pastoris, considerando o destino da produção, podemos
distinguir dois tipos de lavouras: as produtoras de gêneros

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí 367


para o mercado interno e as produtoras de gêneros para o
mercado externo. Em rigor, essa distinção deve ser relativiza-
da, uma vez que em uma e outra se podem encontrar, dentro
e fora da província, a comercialização de produtos aqui iden-
tificados como de referência dos plantios. Nesse sentido, vale
ressaltar que o caráter predominante da comercialização de-
terminaria a existência da produção e, portanto, a classifica-
ção referenciada. Assim, a primeira lavoura estaria associada
à produção de mandioca, de milho e de feijão, embora esses
produtos fossem também vendidos, especialmente, para o Ce-
ará e o Maranhão. Na segunda lavoura encontra-se a produ-
ção de algodão, de cana e de fumo, destinada preferencial-
mente ao exterior, Pernambuco e Bahia, o que não impedia
que fios e algodão, rolos de fumo e derivados da cana, como
açúcar e aguardente, abastecessem também povoados e vilas
da província.
Nos Oitocentos, são recorrentes as informações sobre a
redução do plantio de feijão e de milho, gradativamente rele-
gado para estimular os cultivos de mandioca, da cana, do al-
godão e do fumo. Estes produtos passaram a receber atenção
especial por parte de produtores privados e públicos em razão
do crescimento da demanda comercial. Nas fazendas públi-
cas, a negligência com o consumo interno, especialmente o
dos trabalhadores escravizados, desenvolveu uma tendência
à concentração do consumo em torno do gado, o que fez surgir
preocupações com a produção de cereais para a diversificação
da dieta alimentar, a fim de diminuir as “matalotagens”, ou
seja, reduzir o número de reses abatidas para o consumo. Para
os trabalhadores, a base alimentar era praticamente compos-
ta por carne bovina “verde” ou “seca” e farinha. Em Valença,
uma fazenda particular, em setembro de 1811, abateu oito
bois para o consumo estimado em 15 dias. Nas fazendas pú-
blicas, entre 1803 e 1805, foi constatado o abate de “quase
seiscentas reses anualmente” apenas em uma Inspeção. Ain-

368 Solimar Oliveira Lima


da assim, a lavoura praticada destinou-se, prioritariamente,
a cultivar produtos de maior aceitação no mercado.31
Fontes documentais relativas à Parnaíba (cidade ao nor-
te do Piauí) e Jerumenha (ao sul) apresentam a disposição de
fazendeiros, a exemplo da família Dias da Silva, na primeira,
de buscar a especialização de áreas para o plantio, em espe-
cial do algodão. Segundo o francês Louis-François de Tollena-
re, nos arredores de Parnaíba “se cultivava o melhor algodão
do país”.32 Costumava-se “apartar” as terras com o intuito
da produção exclusiva, que passariam a ser denominadas
“sítios”. Porém, os trabalhadores escravizados permaneciam
vinculados a uma fazenda próxima. Da postura, pode-se infe-
rir que pareciam predominar as experiências de evitar gran-
des distanciamentos entre as áreas de criatório e a lavoura,
não “distanciando-se mais que duas léguas”.33 Nas fazendas
públicas, desenvolveu-se o costume do plantio em áreas inter-
nas das fazendas de gado, isto é, procedia-se à escolha de ter-
ras mais propícias ao cultivo, próximas ao núcleo central de
povoamento, no geral a “uma légua” de distância. Essas áreas
eram chamadas de “lavouras”, “sítios” e “roças”. Em algumas
fazendas, a utilização da categoria “roça” remetia à indicação
de que nesta área havia o consórcio do plantio do algodão com
outros produtos.34
Nas grandes propriedades, a produção e a delimitação
de áreas destinadas à agricultura mercantil-escravista esta-
vam sujeitas aos mesmos critérios que em pequenas proprie-
dades: dependiam da qualidade do solo e, algumas culturas,
de muita proximidade de cursos de água, além das condições
climáticas. Encontrou-se referência ao cultivo, em fazendas

31
Arquivo Público do Estado do Piauí (Apep). Correspondência com a Tesouraria
Geral de Fazenda. 1810-1815.
32
TOLLENARE, L. F. Notas Dominicais – Tomadas durante uma viagem em
Portugal e no Brasil em 1816, 1817 e 1818. Salvador: Progresso, 1956, p. 127.
33
APEP. Palácio do Governo. Oeiras (PGO). 1817-1825.
34
APEP. PGO. 1820-1829.

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí 369


particulares, de 21 “tarefas” (uns sete hectares) e a onze “al-
queires” (uns trinta hectares), o que não significa necessaria-
mente grandes extensões.35 É crível que nas fazendas parti-
culares, assim como nas públicas, o tamanho das roças fosse
limitado pelo reduzido emprego de mão-de-obra. Nas fazendas
públicas predominava entre os trabalhadores escravizados a
presença de mulheres nos roçados, tendência seguida, salvo
engano, pelas propriedades particulares. Dentre as indica-
ções podem-se encontrar as fazendas Malhada e Boa Vista,
no termo de Oeiras, em 1817 e 1824, onde havia “mais mulher
que homem” no plantio. Em 1854, segundo um arrolamento
da população por sexo e ocupação das fazendas públicas, o
trabalho nas roças era quase exclusivamente feminino.36
Uma característica do cultivo nas grandes propriedades,
diferentemente da pequena produção, era ser “sem proteção
de bichos e animais”.37 O plantio livre, ou seja, sem cercas ou
“muradas”, explica-se pela extensão das áreas, que certamen-
te demandariam muito tempo de serviço, braços e matéria-
prima para a empreitada. As roças desprotegidas estavam
sujeitas, além dos “ataques” de animais, “aos abusos que mui-
tos moradores sem o respeito e provocando descômodos estão
a retirar plantas de farinha e feijão”.38 A referência a animais
indicava a “invasão de vacas, bezerros e porcos alimentando-
se” nas roças. Era também comum nas grandes propriedades
o criatório em “chiqueiros” de pequenos animais, como porcos,
caprinos e galinhas, denominados genericamente como “cria-
ções”.
Os chiqueiros eram construções similares a currais, por
isso mesmo chamados, às vezes, de “pequenos currais”, e ocu-
pavam quase sempre terreno próximo às casas. É provável
que apenas fazendas com pouco número de animais fizessem

35
APEP. PGO. 1700-1821.
36
APEP. Fazendas Nacionais. 1800-1877.
37
APEP. PGO. 1820-1829.
38 APEP. PGO. 1820-1829.

370 Solimar Oliveira Lima


uso dos cercados de forma contínua. Onde a quantidade ten-
dia a ser significativa, os animais viviam soltos pelas fazen-
das e os chiqueiros serviam mais para períodos de engorda e
de castração. O criatório livre acarretava, além das invasões
das roças, outros sérios problemas. Os porcos, por exemplo,
“destruíam cercas”, “invadiam terrenos” de propriedades vizi-
nhas e os pastos e poluíam os mananciais destinados ao uso
doméstico e do gado.39
As grandes fazendas dispunham ainda de espaços para
plantações de frutas e legumes. Fazendas destinavam áreas
ao cultivo consorciado de “milho, feijão, batatas e abóboras”,
medindo “10 linhas de roças” (uns três hectares), situadas
mais próximas às moradias e comumente cercadas e “prote-
gidas dos contínuos ataques”.40 Para as frutas predominava
o “laranjal”, onde se cultivavam também limão e abacaxi, e
o “bananal”, que costumava ficar “ao derredor da casa de re-
sidência [alusão a moradia do proprietário]”.41 As fazendas,
em geral, contavam com pomares naturais, “abundantes de
várias frutas, como mangauas, ginipapos, areticus”42 e de jua-
zeiros, imbuzeiros e palmeiras de buriti, que forneciam frutos
de “grande apreço” entre os habitantes.43 Algumas fazendas
contavam ainda com espaços específicos para serviços espe-
cializados, como a “casa de ferreiro” e olarias.44
No século 19, seguramente, um grande fazendeiro pas-
sou a ser aquele que dispunha de fazendas com boas condi-
ções naturais, gados, trabalhadores escravizados e produção
para consumo e mercado. Predominaria, entretanto, como
39
APEP. PGO. 1752/1789; APEP. Fazendas Nacionais. 1800-1877.
40
APEP. PGO. 1820-1829.
41
APEP. Tesouraria de Fazenda.1841-1846.
42
Dezcripção do certão do Peauhy Remetida ao Ilmo. e Rmo. Sr. Frei Francisco
de Lima Bispo de Pernambuco. In: ENNES, Ernesto. As Guerras nos Palma-
res: subsidios para sua história. SãoPaulo: Companhia editora nacional, 1938,
p. 386.
43
GARDNER, George. Viagens no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacio-
nal, 1942, p. 195.
44
APEP. Tesouraria de Fazenda. 1841-1846.

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí 371


atividade principal a pecuária, ocupando grandes extensões
de terras com campos de pastagens. Segundo o memorialis-
ta Pereira o D´Alencastre, “as fazendas de gado vacum estão
situadas sobretudo nas fraldas de vários olhos d´água que de-
las nascem. Para que no sertão uma fazenda mereça o nome
de boa, deve ser primeiro bem provida de água, porque sendo
o Piauí sujeito a secas, como todos os altos sertões do Brasil,
as fazendas faltas de água são as primeiras que ficam despo-
voadas de seus gados”.45
De acordo com viajantes e memorialistas, o criatório era
a inclinação do Piauí, dadas a presença de pastos naturais e
a reduzida necessidade do uso do trabalho. Segundo o autor
do Roteiro do Maranhão a Goiás, os sertões piauienses além
de “abertos e cheios de campinas [...] Não há neles aquele
horroroso trabalho de deitar grossas matas abaixo, e romper
as terras a força de braço, como sucede nos Engenhos do Bra-
sil, nas Roças das minas, e por este mesmo Estado do Pará, e
Maranhão na cultura dos seus gêneros. Nele pouco se muda
na superfície da terra tudo se conserva quase no seu primeiro
estado. Levanta uma casa coberta pela maior parte de palhas,
feitos uns currais, e introduzidos os gados, estão povoados as
três léguas de terra, e estabelecida uma fazenda”.46
Os sertões abertos eram ricos em vegetações do tipo
agreste e capim mimoso, que se adequavam à formação de
pastos. As qualidades do capim mimoso apresentavam-se su-
periores ao criatório e permitiam uma maior produtividade do
rebanho. Pereira D´Alencastre aponta, certamente exageran-
do, que “nas fazendas de pasto agreste, 300 vacas produzem
130 bezerros, sendo que as que parem em um ano, descansam

45
Memória cronológica, histórica e corográfica da província do Piauí por José
Martins Pereira D´Alencastre. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro, tomo XX, 1º trimestre, 18857, p. 69.
46
Roteiro do Maranhão a Goiaz pela Capitania do Piauhy. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXII, 1º e 2º semestres, 1900, p. 88.
(modernizamos).

372 Solimar Oliveira Lima


o ano seguinte; nas fazendas chamadas de mimoso, em que o
pasto é bastante suculento, 300 vacas produzem 250 bezerros
anualmente, isto é, sem interrupção. O que se diz acerca do
gado vacum é extensivo ao cavalar”.47 Nessas áreas, denomi-
nadas “campos mimosos”, ricas em boas pastagens, cresciam
os melhores rebanhos.
Parece pertinente salientar que nas propriedades nem
toda terra ou área de vegetação constituía-se como campo e
nem todo campo dispunha do conjunto de condições naturais
ao criatório. Assim, um campo com boa pastagem deveria
também possuir ou facilitar o acesso a mananciais. Para os
campos que não se localizavam próximos aos cursos de água,
como rios e riachos ou lagoas, eram providenciados “vaque-
jadouros”, para que o gado se deslocasse pelos campos, che-
gasse às reservas naturais de água e fosse conduzido, quando
necessário, com segurança aos currais ou sedes das fazendas.
O vaquejador, às vezes, conduzia o gado a uma “aguada”,
“cacimba” ou mesmo “outras águas conservadas em tanques
feitos por indústria dos habitantes, com muito trabalho e
moléstia”.48
Nas fazendas menos favorecidas pela natureza e que dis-
punham de poucas reservas naturais de água, especialmente
nos períodos de estiagem, as aguadas e cacimbas eram prati-
camente os únicos recursos de abastecimento, inclusive para
o uso doméstico. Após abertas, os mananciais eram conser-
vados com limpezas periódicas para que se evitasse o esgota-
mento dos veios. O mesmo acontecia com os vaquejadouros,
em que a limpeza “em tempos oportunos” mantinha domi-
nado o crescimento de plantas, embora a passagem contínua

47
Memória cronológica, histórica e corográfica da província do Piauí por José
Martins Pereira D´Alencastre. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro, tomo XX, 1º trimestre, 18857, p. 68.
48
APEP. Tesouraria da Fazenda. 1841/1846; MOTT, Luiz R. B. Piauí Colonial:
população, economia e sociedade. Teresina: fundação Cultural do Piauí, 1985,
p. 61.

Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí 373


das reses, por si, já contribuísse para impedir o florescimento
de vegetação que comprometesse o deslocamento do gado e de
vaqueiros.
Na infraestrutura necessária ao criatório, os “currais”
figuram como elementos representativos da atividade e che-
gam mesmo a aparecer como espaços fundantes das próprias
fazendas. Nas descrições, muitas vezes imagéticas, para a
instalação de uma fazenda, com pouco trabalho, bastava fa-
zer “uns currais” e introduzir o gado. Aos currais eram reco-
lhidos os animais para serem amansados, ferrados, aparta-
dos ou reunidos para venda. Em algumas fazendas chegaram
a ser construídos com pedras e adquiriram o formato de mu-
retes – contudo, predominaram as construções de madeira,
em razão, provavelmente, da disponibilidade de matas nas
propriedades.
Em geral, havia duas possibilidades de localização dos
currais, nos campos de pastagens ou na chamada “sede da
fazenda”, próximo à residência do proprietário. Em algumas
fazendas, nos chamados “retiros”, uma área de pasto contígua
à fazenda, construíam-se currais e “os necessários preparati-
vos para tratar as crias nas ocasiões em que é preciso separá-
las das mães”.49 Em outras, segundo o viajante inglês George
Gardner, era costume “o gado internar-se a grande distancias
nas matas e campos; mas nesta época do ano, que é da pro-
dução dos bezerros, o vaqueiro e seus ajudantes, geralmente
escravos, estão sempre campeando as vacas paridas. Tra-
zem então para casa os bezerros e os encerram em grandes
cercados, a que chamam currais, aonde as mães os seguem
naturalmente. No curral fecham-se à noite vacas e bezerros,
mas de dia soltam-se as vacas a pastar fora; indispensável a

49
Memória Relativa das Capitanias do Piauhy e Maranhão por Francisco Xavier
Machado. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVII,
n. 13, 1º trim., terceira série, 1854, p. 58.

374 Solimar Oliveira Lima


precaução em região tão agreste, para evitar que as mães se
extraviem nas matas”.50
Segundo Pereira d’Alencastre, “em cada fazenda devem
haver pelo menos 3 currais, que tomam diversos nomes con-
forme o serviço que prestam. Chamam curral de vaqueijada
aquele em que se recebe o gado que tem de ser vendido, onde
se tira o leite e onde se faz o rol de porteiras; curral de apartar
o em que se recebe todo o gado indistintamente para ao de-
pois ser distribuído pelas diferentes acomodações; curral de
benefício onde se recolhem os garrotes para serem ferrados e
para se fazer as partilhas dos vaqueiros”.51
A montagem e a conservação da infraestrutura das fa-
zendas pastoris exigiam trabalho – árduo, penoso e perigoso
trabalho de escravizados e de homens livres. Trabalhadores,
de ambos os sexos, manejavam, com destreza e força, velhas
ferramentas para abrir entre matas e caatingas vaquejadou-
ros e aguadas, onde o trabalho se iniciava na madrugada e es-
tendia-se ao longo do dia. Trabalhadores derrubavam árvores,
cortavam madeiras, levantavam cercas e currais, não raro pi-
cados de cobras, arranhados com galhos e espinhos, feridos
por facões e machados. Este trabalho pesado certamente era
“pouco gratificante para o homem livre”, mais ainda para os
ricos fazendeiros.52 Mesmo assim, há quem tenha visto nas
fazendas pastoris do Piauí personagens lutando e padecendo,
de sol a sol, juntos.53

50
GARDNER, George. Viagens no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacio-
nal, 1942, p. 166.
51
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53
PORTO, Carlos Eugênio. Roteiro do Piauí. Rio de Janeiro: Artenova, 1974,
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Origens e espaços de produção das fazendas pastoris do Piauí 375

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