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Traduzidos dos respetivos originais, os livros desta coleção

põem o leitor em contacto com textos marcantes da história da


filosofia em toda a sua riqueza e multiplicidade.
Título original:
Representative Men
© desta tradução: Edições 70, 2021
Tradução: Hugo Barros
Revisão: Joana Camões Pereira
Design de coleção: FBA
Capa: Edições Almedina
Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação
EMERSON, Ralph Waldo, 1803-1882
Homens representativos: sete palestras. – (Textos filosóficos)
ISBN 978-972-44-2496-5
CDU 821.111(73)-4”18”
para
EDIÇÕES 70
setembro de 2021
Todos os direitos reservados
EDIÇÕES 70, uma chancela de Edições Almedina, S.A.
LEAP CENTER – Espaço Amoreiras
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I

Da utilidade dos grandes homens


É natural acreditar em grandes homens. Se os
companheiros da nossa infância viessem a tornar-se heróis, e a
sua condição régia, tal não nos surpreenderia. Toda a mitologia
começa com semideuses, e a ocasião é nobre e poética; isto é,
o seu génio é preeminente. Nas lendas de Gautama, os
primeiros homens comeram a terra e acharam-na sumamente
doce.
A natureza parece existir para o excelente. O mundo é
sustentado pela veracidade dos homens bons; eles tornam a
terra saudável. Os que com eles vivem encontram a vida alegre
e nutritiva. A vida só é doce e tolerável se acreditarmos numa
tal sociedade; e, em concreto, ou idealmente, procuramos viver
com [homens] superiores. Damos o seu nome às nossas
crianças e às nossas terras. Os seus nomes são plasmados nos
verbos da linguagem, as suas obras e bustos estão nas nossas
casas e todas as circunstâncias do dia recordam uma historieta
a seu respeito.
Ir em busca dos grandes homens é o sonho da juventude e a
ocupação mais séria da idade adulta. Vamos ao estrangeiro
para encontrar as suas obras — se possível, para ter um
vislumbre deles. Mas, em lugar disso, a fortuna desvia-nos.
Dizemos que os Ingleses são práticos, que os Alemães são
hospitaleiros, que o clima de Valência é encantador e que nas
colinas de Sacramento há ouro a rodos. Sim, mas eu não viajo
para encontrar gente agradável, rica e hospitaleira, ou um céu
limpo, ou lingotes que valem demasiado. Ao invés, se existisse
uma bússola que me indicasse os países e casas onde vivem
pessoas que são intrinsecamente ricas e poderosas, venderia
tudo para a comprar e punha-me hoje mesmo a caminho.
Como nós, a raça humana tira proveito deles. Saber que na
cidade vive um homem que inventou o caminho de ferro
aumenta o crédito de todos os cidadãos. Mas populações
gigantescas de mendigos são repulsivas, como um queijo que
caminhasse, como colinas de formigas ou pulgas: quanto mais,
pior.
A nossa religião está no amor e devoção por esses
patronos. Os deuses das fábulas são os momentos gloriosos
dos grandes homens. Vertemos as nossas vasilhas num só
molde. As nossas colossais teologias do judaísmo, do
cristianismo, do budismo, do maometanismo são a ação
necessária e estrutural da mente humana. O estudante de
História assemelha-se a um homem que entra num armazém
para comprar roupa ou tapetes. Ele imagina que tem um novo
artigo. Se fosse à fábrica, veria que o novo produto reproduz
as espirais e rosetas que se veem nas paredes interiores das
pirâmides de Tebas. O nosso teísmo representa a purificação
da mente humana. O homem não pode pintar, criar ou pensar
senão o homem. Ele acredita que os grandes elementos
materiais tiveram origem no seu pensamento. E a nossa
filosofia depara com uma essência reunida ou distribuída.
Se perguntarmos agora que tipo de serviços obtemos dos
outros, advirtamo-nos contra os perigos dos estudos modernos
e comecemos por baixo. Não devemos lutar contra o amor ou
negar a existência substancial de outras pessoas. Não sei o que
nos aconteceria. Existem forças sociais. O nosso afeto para
com os demais cria uma espécie de vantagem ou apoio que
nada pode substituir. Posso fazer por meio de outro aquilo que
não poderia sozinho. Consigo dizer-te o que não sou capaz de
dizer primeiro a mim mesmo. Os outros homens são lentes
através das quais lemos as nossas próprias mentes. Cada
homem busca outros de qualidade diversa da sua e que são
bons no género deles; isto é, busca outros homens e os mais
distintos (otherest). Quanto mais forte é a natureza, mais
reativa. Que a nossa a natureza se mantenha pura. Libertemos
um pouco de génio. Uma diferença maior entre os homens
consiste em atenderem ou não aos seus próprios assuntos. O
homem é essa nobre planta endógena que cresce, como a
palmeira, de dentro para fora. Quanto ao que lhe concerne,
ainda que impossível para os outros, pode empreendê-lo com
celeridade e descontraidamente. É fácil ao açúcar ser doce e ao
nitrato salgado. Sofremos horrores a perseguir e capturar
aquilo que, por si mesmo, cairá nas nossas mãos. Considero
um grande homem o que habita uma esfera superior do
pensamento, à qual outros ascendem mediante trabalho e
dificuldades; a ele, basta-lhe abrir os olhos para ver as coisas a
uma luz verdadeira e segundo relações mais abrangentes, ao
passo que os demais têm de fazer correções penosas e manter
um olhar vigilante sob múltiplas fontes de erro. O serviço que
nos presta é da mesma natureza. A uma pessoa bela não custa
nada pintar a sua imagem nos nossos olhos; apesar disso, quão
esplêndido o benefício! A uma alma sábia pouco mais custa
proporcionar o seu valor a outros homens. E todos podem
fazer o que sabem melhor da maneira mais fácil. Peu de
moyens, beaucoup d’effet(1). É grande aquele que é o que é
por natureza e que não nos faz recordar ninguém.
Precisará, no entanto, de se relacionar connosco e a nossa
vida receber dele uma promessa de explicação. É-me
impossível dizer aquilo que verdadeiramente gostaria de saber,
mas observei que há quem, pelo seu carácter e ações, responda
a perguntas que não fui capaz de fazer. Um homem responde a
uma pergunta que nenhum dos seus contemporâneos fez e fica
isolado. As religiões e filosofias passadas e passageiras
respondem a outras perguntas. Há homens que nos oferecem
possibilidades fecundas, mas inúteis para si mesmos e para o
seu tempo — talvez um jogo de algum instinto que governa no
vazio —, ignorando as nossas necessidades. Todavia, os
grandes estão próximos; reconhecemo-los à primeira vista.
Satisfazem expectativas e ocupam o seu lugar. O que é bom é
eficaz, gerador; arranja espaço, comida e aliados para si
próprio. Uma maçã boa produz sementes, a híbrida não. Se um
homem ocupa o seu lugar, é construtivo, fértil, magnético,
submergindo exércitos com o seu propósito, que é depois
executado. O rio cria as próprias margens, e toda a ideia
legítima abre os seus canais e receção — colheitas para a
alimentação, instituições para a expressão, armas para lutar e
discípulos que a expliquem. O verdadeiro artista faz do planeta
o seu pedestal; o aventureiro, após anos de porfia, não tem
nada mais amplo do que os sapatos.
A nossa maneira de falar habitual remete para dois tipos de
utilidade ou serviço dos homens superiores. O dom direto é
natural às primeiras crenças dos homens: dom direto de ajuda
material ou metafísica, como a saúde, a eterna juventude, um
sentido refinado, as artes curativas, o poder mágico e a
profecia. O jovem acredita que há um mestre que lhe pode
vender sabedoria. As igrejas acreditam no mérito imputado.
Contudo, em rigor, não sabemos nada do serviço direto. O
homem é endógeno e a educação é o seu desenvolvimento. O
auxílio dos outros é mecânico comparado com as descobertas
da natureza em nós. O que assim se aprende é encantador na
prática e o efeito perdura. Uma ética correta é central e passa
da alma ao exterior. A dádiva é contrária à lei do universo.
Servir os outros é servir-se a si mesmo. Devo absolver-me a
mim mesmo. «Mete-te na tua vida, pretensioso», diz o espírito,
«queres meter-te nos assuntos do céu ou dos outros?» Resta o
serviço indireto. Os homens possuem uma qualidade pictórica
ou representativa e servem-nos intelectualmente. Böhme e
Swedenborg viram que as coisas eram representativas. Os
homens também são representativos; primeiro, das coisas, em
seguida, das ideias.
Assim como as plantas convertem os minerais em alimento
para os animais, também cada homem converte matéria-prima
presente na natureza para uso humano. Os inventores do fogo,
eletricidade, magnetismo, ferro, chumbo, vidro, linho, seda,
algodão, os fabricantes de ferramentas, o inventor da notação
decimal, o geómetra, o engenheiro, o músico — cada um deles
facilita o caminho para todos através de confusões
desconhecidas e impraticáveis. Cada homem está ligado, por
um vínculo secreto, a um distrito da natureza, do qual é agente
e intérprete, como Lineu das plantas, Huber das abelhas, Fries
dos líquenes, Van Mons das peras, Dalton das formas
atómicas, Euclides das linhas, Newton do cálculo diferencial.
O homem é um centro para a natureza, estendendo fios de
relações entre todas as coisas, fluidas e sólidas, materiais e
elementares. A terra gira, cada torrão de terra e pedra alcança
o meridiano; assim também cada órgão, função, ácido, cristal,
partícula de pó tem a sua relação com o cérebro. A espera é
longa, mas a sua vez chega. Cada planta tem o seu parasita, e
cada coisa criada, o seu amante e poeta. Já se fez justiça ao
vapor, ao ferro, à madeira, ao carvão, à pedra-íman, ao iodo,
ao cereal e ao algodão; porém, quão poucos materiais usam as
nossas artes! A massa de criaturas e de qualidades está ainda
oculta e expectante. É como se esperassem, qual princesa
encantada dos contos de fadas, por um libertador humano
predestinado. Deverão ser desencantadas e caminhar à luz do
dia sob forma humana. Na história dos descobrimentos, a
verdade amadurecida e latente parece ter moldado um cérebro
para si própria. O íman tem de se tornar homem em algum
Gilbert, ou Swedenborg, ou Ørsted, antes de a opinião geral
poder abraçar os seus poderes.
Se nos limitarmos às vantagens primordiais, uma moderada
graça adere aos reinos mineral e botânico, que, nos momentos
mais sublimes, aparecem como o encanto da natureza: o brilho
do espato, a segurança das afinidades, a veracidade dos
ângulos. Luz e escuridão, calor e frio, fome e comida, doce e
amargo, sólido, líquido e gasoso circundam-nos como uma
grinalda de prazeres, encantando o dia da vida com a sua
afável disputa. O olho repete todos os dias o primeiro elogio
das coisas: «Viu que eram boas.» Sabemos onde as encontrar,
e estes agentes são ainda mais apreciados após um pouco de
experiência das raças aspirantes. Também nós temos direito a
maiores benefícios. Falta algo à ciência até que se humanize.
A tabela dos logaritmos é uma coisa, outra, o seu papel vital
na botânica, música, ótica e arquitetura. Fazem-se avanços, a
princípio insuspeitos, nos números, na anatomia, arquitetura,
astronomia, até que, graças à união do intelecto com a
vontade, dão entrada na vida e reaparecem na conversação, no
carácter e na política.
Mas isto vem mais tarde. Falamos agora apenas do nosso
trato com eles na sua própria esfera e no modo como parecem
fascinar e atrair para si um génio que se ocupa com uma coisa
durante toda a vida. A possibilidade de interpretação reside na
identidade entre o observador e o observado. Cada coisa
material tem o seu lado celestial; tem a sua tradução, através
da humanidade, na esfera espiritual e imprescindível, onde é
uma parte tão indestrutível como qualquer outra. E para isto,
para os seus fins, ascendem continuamente todas as coisas. Os
gases acumulam-se no sólido firmamento; o torrão químico
chega à planta e cresce, chega ao quadrúpede e caminha,
chega ao homem e pensa. Mas o eleitorado também determina
o voto dos representantes. Ele não é apenas representativo,
mas participante. O semelhante só pode ser conhecido pelo
semelhante. A razão para o conhecer é ser um deles; acabou de
sair da natureza ou de ser uma parte dessa coisa. O cloro
animado conhece o cloro, e o zinco encarnado, o zinco. A sua
qualidade forja a sua carreira, e ele pode enunciar as suas
virtudes, porque elas o constituem. O homem, gerado do pó do
mundo, não esquece a sua origem, e tudo quanto ainda é
inanimado falará e raciocinará um dia. A natureza ainda
ocultada terá o seu segredo contado. Diremos que montanhas
de quartzo se pulverizarão em inumeráveis Werners, Von
Buchs e Beaumonts e que o laboratório da atmosfera mantém
na solução não sei quantos Berzeliuses e Davys?
Sentemo-nos, pois, junto ao fogo e mantenhamos os polos
da terra. Esta quase omnipresença supre a debilidade da nossa
condição. Num desses dias celestiais, quando Céu e Terra se
encontram e adornam mutuamente, é uma pobreza só
podermos vivê-lo uma vez: desejaríamos ter mil cabeças, mil
corpos, para celebrar a sua imensa beleza em muitos lugares e
de muitas formas. Será isso uma fantasia? Bem, em boa-fé,
multiplicamo-nos nos nossos representantes. Quão facilmente
adotamos os seus labores! Cada barco que chega à América
deve a Colombo a sua carta náutica. Todo o romance é
devedor de Homero. O carpinteiro que aplaina com a sua
garlopa toma de empréstimo o génio de um inventor
esquecido. A vida está rodeada por um zodíaco de ciências,
pelas contribuições de homens que morreram para acrescentar
o seu ponto de luz ao nosso céu. O engenheiro, o corretor da
bolsa, o jurista, o médico, o moralista, o teólogo e qualquer
outro homem, desde que possua alguma ciência, define e
cartografa as latitudes e longitudes da nossa condição. Estes
construtores de caminhos de vários destinos enriquecem-nos.
Temos de estender a área da vida e multiplicar as nossas
relações. Ganhamos tanto quando descobrimos uma nova
propriedade na velha terra como quando adquirimos um novo
planeta.
Somos demasiado passivos na receção destas ajudas
materiais ou semimateriais. Não devemos ser sacos ou
estômagos. Para ascender um degrau, nada nos é mais útil do
que a nossa simpatia. A atividade é contagiosa. Olhando o que
os outros olham e privando com as mesmas coisas, retemos o
encanto que os seduziu. Napoleão disse: «Não lutes demasiado
com o mesmo inimigo ou ensinar-lhe-ás toda a tua arte da
guerra.» Falemos longamente com qualquer homem de
espírito vigoroso e iremos adquirir muito rapidamente o hábito
de olhar as coisas à mesma luz e, a cada ocorrência,
anteciparemos o seu pensamento.
Os homens são úteis através do intelecto e dos afetos.
Outras ajudas parecem-me uma falsa aparência. Se finges dar-
me pão ou fogo, dou-me conta de que pago por isso o preço
mais caro, ficando, por fim, como estava, nem melhor nem
pior; mas toda a força mental e moral é um bem positivo. Sai
de ti, quer queiras ou não, e beneficia-me a mim, em quem não
havias sequer pensado. Nem posso ouvir falar de nenhum tipo
de vigor pessoal, de um grande poder de execução, sem uma
clara resolução. Emulamos tudo quanto um homem pode fazer.
O que Cecil diz de Sir Walter Raleigh — «sei que consegue
trabalhar terrivelmente» — é uma descarga elétrica. Assim são
os retratos feitos por Clarendon de Hampden: «tão industrioso
e vigilante que os mais laboriosos não podiam fatigá-lo ou
cansá-lo, possuidor de atributos que impediam os mais subtis e
perspicazes de levar a melhor e de uma coragem pessoal
idêntica às suas melhores qualidades», de Falkland: «que era
um adorador tão severo da verdade que preferia roubar a ser
dissimulado». Não podemos ler Plutarco sem que o sangue nos
ferva, e aceito o dito do chinês Mêncio: «O sábio é o instrutor
de cem eras. Quando se ouve falar dos costumes de Lu, o
estúpido torna-se inteligente e o indeciso determinado.»
É esta a moral da biografia; ainda assim, é difícil para os
mortos comoverem os vivos tanto quanto os nossos
companheiros, cujos nomes podem não durar tanto. Quem é
esse em quem nunca penso?, ao mesmo tempo que em toda a
solidão residem aqueles que socorrem o nosso génio e nos
estimulam de formas extraordinárias. Existe no amor um poder
de adivinhar o destino do outro melhor do que esse outro
consegue fazer, levando-o, com recurso a incitamentos ao
heroísmo, a cumprir a sua tarefa. Haverá na amizade algo de
tão excecional quanto a sua atração sublime por qualquer
virtude que exista em nós? Não mais nos rebaixaremos, ou à
vida. Fomos despertados para um propósito, e a labuta dos
cavadores dos caminhos de ferro não voltará a ser uma
vergonha para nós.
É neste ponto que se situa igualmente a homenagem, muito
pura na minha opinião, que todas as classes prestam ao herói
do momento, de Coriolano e Graco a Pitt, Lafayette,
Wellington, Webster, Lamartine. Ouçam os gritos na rua! As
pessoas não se cansam de o olhar. Deleitam-se com o homem.
Aqui está uma cabeça e um tronco! Que fronte! Que olhos!
Ombros de Atlas e porte heroico, com idêntica força interior
para guiar a grande máquina! Este prazer na expressão plena
daquilo que, na experiência privada, é normalmente tímido e
entravado ocorre também num plano mais elevado, segredo
este da fruição do leitor no génio literário. Nada é reprimido.
Há fogo suficiente para fundir uma montanha de metal. Talvez
possamos afirmar que o principal mérito de Shakespeare
reside em ser ele, de entre todos os homens, aquele que melhor
compreende a língua inglesa e pode dizer o que quiser. No
entanto, estes canais e comportas desobstruídos de expressão
revelam apenas saúde ou uma constituição afortunada. O nome
de Shakespeare sugere outros benefícios e puramente
intelectuais.
Os senados e soberanos, com as suas medalhas, espadas e
armaduras, não recebem um louvor como aquele que consiste
em se dirigir aos pensamentos de um ser humano a partir de
um plano elevado e pressupor a sua inteligência. Esta honra,
que no trato pessoal possivelmente não acontece duas vezes na
vida, é sempre paga pelo génio, satisfeito, senão agora, um
século depois, se a oferta que faz for aceite. Aqueles que
afirmam os valores da matéria são rebaixados a uma espécie
de cozinheiros ou confeiteiros quando aparecem os que
afirmam as ideias. O génio é o naturalista ou o geógrafo das
regiões do suprassensível, traçando o seu mapa e, por nos dar a
conhecer novos campos de ação, esfria o nosso afeto pelos
antigos. Aceitamo-los de imediato como a realidade de um
mundo que conhecemos enquanto aparência.
Vamos ao ginásio e à escola de natação para ver o poder e a
beleza do corpo; existe um prazer semelhante, e um benefício
maior, quando se é testemunha de proezas intelectuais de toda
a espécie, como proezas de memória, de combinação
matemática, de grande poder de abstração, de transmutações
da imaginação, inclusive de versatilidade e concentração,
como se esses atos expusessem os órgãos e membros
invisíveis da mente que respondem, membro a membro, às
partes do corpo. Entramos, assim, num novo ginásio e
aprendemos a escolher homens pelos seus verdadeiros
talentos, instruídos, com Platão, «a escolher aqueles que são
capazes de avançar para a verdade e para o ser sem o auxílio
da visão ou de qualquer outro sentido». Entre estas atividades
destacam-se os saltos mortais, feitiços e ressurreições
produzidas pela imaginação. Quando esta desperta, a força de
um homem parece multiplicar-se por dez ou por mil. Descerra
a encantadora sensação de tamanho indeterminado e inspira
um hábito mental audacioso. Somos tão elásticos como o fumo
da pólvora, e uma frase num livro ou uma palavra deixada cair
numa conversa libertam a nossa fantasia e, de imediato, as
nossas cabeças banham-se de galáxias e os nossos pés pisam o
fundo do abismo. E este benefício é real, porque temos direito
a estas expansões, e, uma vez ultrapassados os limites, não
voltaremos a ser exatamente os miseráveis pedantes que
éramos.
As altas funções do intelecto estão tão ligadas que um certo
poder imaginativo se manifesta em todas as mentes iminentes,
até em matemáticos de primeira classe, mas especialmente em
homens meditativos com um hábito de pensamento intuitivo.
Esta classe serve-nos por possuir a perceção da identidade e a
perceção da reação. Os olhos de Platão, Shakespeare,
Swedenborg, Goethe não se fecham a nenhuma destas leis. A
perceção destas leis é uma espécie de medida mental. As
mentes pequenas são-no, porque falham em vê-las.
Mesmo estes banquetes têm as suas indigestões. O nosso
deleite na razão degenera em idolatria do mensageiro.
Encontramos exemplos de opressão, sobretudo quando uma
mente com um método poderoso instrui os homens. Amostra
disso é o domínio de Aristóteles, da astronomia ptolemaica, o
crédito de Lutero, de Bacon, de Locke; em religião, a história
das hierarquias, dos santos e seitas que tomaram o nome do
fundador. Infelizmente, todos são vítimas! A imbecilidade dos
homens convida sempre a impudência do poder. É um prazer
do talento vulgar deslumbrar e prender o espectador. Mas o
verdadeiro génio procura defender-nos de si próprio. O
verdadeiro génio não empobrecerá, mas libertará e
acrescentará novos sentidos. Se um sábio aparecesse na nossa
aldeia, criaria, naqueles que com ele conversassem, uma nova
consciência da riqueza ao abrir-lhes os olhos para novas
vantagens despercebidas; estabeleceria um sentimento de
igualdade inalterável, acalmar-nos-ia com a segurança de que
não seríamos defraudados, pois cada um discerniria os
cuidados e garantias da sua condição. O rico veria os seus
erros e pobreza, o pobre, as suas saídas e recursos.
A natureza, porém, realiza tudo isso a seu tempo. A rotação
é o seu remédio. A alma está impaciente de mestres e ávida de
mudança. Governantas dizem de uma doméstica valiosa que
«viveu comigo tempo suficiente». Somos tendência ou,
melhor, sintomas, e nenhum de nós está completo. Tocamos e
passamos e bebemos a espuma de muitas vidas. A rotação é a
lei da natureza. Quando a natureza afasta um grande homem,
as pessoas procuram o sucessor dele no horizonte; mas
nenhum vem e nenhum virá. A sua classe extinguiu-se com
ele. Num outro campo, e muito diferente, surgirá o próximo
homem; nenhum Jefferson ou Franklin, mas agora um grande
homem de negócios, depois um construtor de estradas, depois
um estudioso dos peixes, depois um explorador e caçador de
búfalos ou um general ocidental meio selvagem. Deste modo,
tomamos uma posição contra os nossos amos mais rudes, mas
contra os melhores existe um remédio mais refinado. O poder
que comunicam não é seu. Quando uma ideia nos eleva, não o
devemos a Platão, mas à ideia, da qual Platão era também
devedor.
Não me posso olvidar de que temos uma dívida especial
para com uma só classe. A vida é uma escala de graus. Entre
uma categoria e outra dos nossos grandes homens existem
intervalos imensos. Em todas as épocas, a humanidade ligou-
se a umas poucas pessoas, que, fosse pela qualidade da ideia
que encarnavam ou pela amplitude da sua receção, tinham o
direito à posição de líderes e legisladores. Estes ensinam-nos
as qualidades da natureza primordial, apresentam-nos a
constituição das coisas. Nadamos, dia a dia, num rio de ilusões
e entretemo-nos com casas e cidades no ar que ludibriam os
homens à nossa volta. Mas a vida é sinceridade. Em intervalos
lúcidos, dizemos: «Que eu tenha uma porta aberta para as
realidades; usei demasiado tempo o chapéu do bobo.»
Queremos saber o significado da nossa economia e política.
Dai-nos a clave e, se as pessoas e as coisas são partituras de
uma música celestial, leiamos os acordes. Fomos privados da
nossa razão; contudo, existiram homens sensatos que gozaram
de uma existência rica e familiar. O que eles sabem, sabem-no
para nós. Com cada mente nova, sabe-se um novo segredo da
natureza; nem a Bíblia pode ser fechada até que nasça o último
dos grandes homens. Esses homens corrigem o delírio dos
espíritos animais, tornam-nos ponderados e induzem-nos a
novos fins e poderes. A veneração da humanidade seleciona
estes para o lugar mais elevado. Veja-se a multiplicidade de
estátuas, quadros e monumentos que recordam o seu génio em
cada cidade, vila, casa e navio:
Sempre os seus fantasmas se erguem diante de nós,
os nossos irmãos nobres, mas um só de sangue;
na cama e na mesa nos governam,
com um olhar de beleza e palavras de bondade.(2)
Como ilustrar o benefício distintivo das ideias, o serviço
prestado por aqueles que introduzem verdades morais na
mentalidade geral? Ao longo da minha vida, fui atormentado
por uma perpétua tarifa de preços. Se trabalho no meu jardim e
podo uma macieira, dou-me por satisfeito e podia continuar
indefinidamente numa ocupação semelhante. Contudo, tomo
consciência de que passou um dia e que terminei este precioso
nada. Vou a Boston ou a Nova Iorque e corro para cima e para
baixo, tentando resolver os meus assuntos: são despachados,
mas também o dia. Aborrece-me a memória do preço que
paguei por um ganho insignificante. Recordo a peau d’âne na
qual quem se sentasse obteria um desejo, embora um pedaço
de pele desaparecesse a cada desejo.(3) Vou a uma convenção
de filantropos. Faça o que fizer, não consigo tirar os olhos do
relógio. Mas se, por acaso, aparecesse uma alma gentil entre
os convivas que soubesse pouco de pessoas ou partidos, da
Carolina ou de Cuba, mas enunciasse uma lei que dispusesse
estes particulares e, com isso, me garantisse a equidade que
fizesse xeque-mate a qualquer falso jogador, arruinasse todos
os ambiciosos e me informasse da minha independência de
quaisquer condicionantes relacionadas com o país, tempo ou
corpo humano, esse homem libertar-me-ia, eu esqueceria o
relógio. Abandono as relações dolorosas com os meus
semelhantes. Estou curado das minhas feridas. Torno-me
imortal ao dar-me conta de que possuo bens incorruptíveis. Eis
uma grande competição entre ricos e pobres. Vivemos num
mercado onde existe uma quantidade limitada de trigo,
algodão ou terra; se eu tenho um pouco mais, todos os outros
devem ter um pouco menos. Parece que não posso possuir
nenhum bem sem desrespeitar as boas maneiras. Ninguém se
contenta com o contentamento de outrem, e o nosso sistema é
um de guerra, de superioridade nefasta. Todas as crianças da
raça saxónica são educadas a desejar ser a primeira. É o nosso
sistema, e um homem acaba por medir a sua grandeza pelos
lamentos, invejas e ódios dos seus concorrentes. Mas nestes
novos campos há espaço: aqui não há autoestima ou exclusões.
Admiro grandes homens de todas as classes, aqueles que
representam os factos e os pensamentos; agradam-me os rudes
e os refinados, os «Flagelos de Deus» e os «Favoritos da raça
humana». Gosto do primeiro César e de Carlos V de Espanha
e de Carlos XII da Suécia, de Ricardo Plantageneta e de
Bonaparte, em França. Aplaudo um homem capaz, um oficial
à altura do seu cargo: capitães, ministros, senadores. Gosto de
um amo que se mantém firme com pernas de ferro, bem-
nascido, rico, belo, eloquente, repleto de qualidades,
fascinando os homens e tornando-os tributários e defensores
do seu poder. Espada e bastão, ou talentos semelhantes a um e
outro, levam adiante a obra do mundo. Mas acho-o maior
quando é capaz de se abolir a si mesmo e a todos os heróis,
deixando entrar este elemento da razão, independentemente da
pessoa, esta força ascendente de natureza subtil e irresistível
no nosso pensamento, destruindo o individualismo; um poder
tão grande que reduz o potentado a nada. Ele revela-se, então,
um monarca que dá uma constituição ao seu povo, um
pontífice que prega a igualdade das almas e alivia os seus
servos das bárbaras deferências, um imperador que consegue
privar-se do seu império.
No entanto, gostaria de especificar, com um pouco de
minúcia, dois ou três aspetos úteis. A natureza nunca poupa no
ópio nem no nepente(4); porém, sempre que desfigura a sua
criatura com alguma deformidade ou defeito, espalha as suas
papoilas com abundância sobre a ferida, e o doente seguirá
alegremente pela vida, ignorante da ruína e incapaz de a ver,
embora toda a gente lhe aponte o dedo todos os dias. Os
membros inúteis e ofensivos da sociedade, cuja existência é
uma peste social, pensam-se invariavelmente as pessoas vivas
mais desaproveitadas, jamais superando o espanto pela
ingratidão e egoísmo dos seus contemporâneos. O nosso
mundo descobre as suas virtudes ocultas não só nos heróis e
arcanjos, mas nos mexericos e amas de leite. Não é um raro
artifício aquele que crava a devida inércia em toda a criatura, a
energia conservadora ou resistente, a raiva de despertar ou
mudar? Completamente independente da força intelectual em
cada um está o orgulho da opinião, a segurança de estarmos
certos. Nem a dama mais delicada, nem o idiota meneante
deixaram de usar a centelha de perceção e de faculdades que
lhe restam para se regozijar e exultar com a sua opinião diante
dos absurdos dos outros. A diferença entre mim e o meu eu é a
medida do absurdo. Ninguém receia ter-se enganado. Não foi
um pensamento brilhante aquele que deu coerência às coisas
com este betume, o mais lesto dos cimentos? Todavia, no meio
deste regozijo de autogratificação, passa uma figura que
também Térsites(5) amaria e admiraria. Será ela que nos
conduzirá no caminho que percorremos. O seu auxílio não tem
fim. Sem Platão, quase perderíamos a nossa fé na
possibilidade de um livro razoável. Parece que não queremos
mais do que um, mas queremos um. Adoramos associar-nos a
personagens heroicas, porque a nossa recetividade é ilimitada,
e, com os grandes, os nossos pensamentos e maneiras
facilmente se tornam grandes. Somos todos sábios em
capacidade, embora tão poucos o sejam em energia. Basta um
homem sábio para que todos o sejam, tão rápido é o contágio.
Os grandes homens são, por conseguinte, um colírio para
limpar os nossos olhos do egoísmo, capacitando-nos a ver os
outros e as suas obras. Existem, porém, vícios e loucuras
relacionadas com populações e épocas inteiras. Os homens
assemelham-se aos seus contemporâneos mais do que aos
progenitores. Observa-se em velhos casais, ou em pessoas que
coabitam durante anos, que acabam por se parecer e quase não
os distinguiríamos se vivessem tempo suficiente. A natureza
abomina estas delicadezas, que ameaçam agregar o mundo
num amontoado, e apressa-se a destruir estas aglutinações
piegas. Assimilação deste tipo ocorre entre homens de uma
cidade, de uma seita, de um partido político; e as ideias do
tempo estão no ar e infetam todos os que as respiram. Vista de
um ponto elevado qualquer, esta cidade de Nova Iorque,
aquela cidade de Londres, a civilização ocidental pareceriam
uma salgalhada de insanidades. Auxiliamo-nos mutuamente e
exasperamo-nos ao emular o frenesi da época. Escudar-se
contra os aguilhões da consciência é o exercício universal dos
nossos contemporâneos. Diga-se, uma vez mais, que é muito
fácil ser-se tão sensato ou bom quanto os nossos
companheiros. Aprendemos dos contemporâneos o que eles
sabem, sem esforço e quase pelos poros da pele. Captamo-lo
por simpatia ou como a mulher alcança as elevações
intelectuais e morais do marido. Não obstante, paramos onde
eles param. É com dificuldade que damos um passo adiante.
Os grandes, ou os baluartes da natureza, transcendendo as
modas pela sua fidelidade às ideias universais, salvam-nos
dessas falhas nos costumes e defendem-nos dos nossos
contemporâneos. Eles são as exceções que necessitamos, em
que todos se tornam semelhantes. Uma grandeza alheia é o
antídoto para o conluio.
Assim nos alimentamos do génio e nos renovamos do
excesso de conversação com os nossos semelhantes, exultando
nas profundezas da natureza na direção que nos aponta. Que
compensação é um grande homem para uma população de
pigmeus! Todas as mães desejam que o filho seja um génio,
ainda que todos os demais sejam medíocres. Mas um novo
perigo surge no excesso de influência de um grande homem.
Os seus encantos desalojam-nos do nosso lugar. Tornámo-nos
lacaios e intelectuais suicidas. Ah, situada além, no horizonte,
está a nossa ajuda: outros grandes homens, novas qualidades,
contrapesos e freios mútuos. Saciamo-nos com o mel de cada
grandeza peculiar. Todos os heróis acabam por se tornar
maçadores. Talvez Voltaire não fosse mal-intencionado, mas
disse do bom Jesus: «Rogo-lhe, não volteis a pronunciar o
nome desse homem novamente.» Exaltam as virtudes de
George Washington — «maldito George Washington!» resume
o discurso e refutação do pobre jacobino. Apesar disso, é a
defesa indispensável da natureza humana. A força centrípeta
aumenta a força centrífuga. Equilibramos um homem com o
seu oposto, e a saúde do Estado depende deste vaivém.
Existe, contudo, um limite imediato à utilidade dos heróis.
Todo o génio se defende da aproximação por uma série de
impedimentos. São muito atrativos e, à distância, parecem ser
nossos, mas somos entravados de todos os lados quando nos
aproximamos. Quanto mais atraídos, mais repelidos somos. Há
algo que não é sólido no bem que nos é dispensado. A melhor
descoberta, fá-la aquele que descobre por si mesmo. Tem algo
de irreal por companheiro, até que também ele lhe dá
substância. É como se a Divindade vestisse cada alma que
envia à natureza de certas virtudes e poderes não comunicáveis
aos outros homens, grafando nas vestes da alma, ao
encaminhá-la para mais uma volta ao círculo dos seres: «não
transferível» e «válido apenas para uma viagem». Há algo de
ilusório na relação entre os espíritos. As fronteiras são
invisíveis, mas nunca são cruzadas. Existe tanta bondade a
partilhar, e tanta bondade a receber, que cada um ameaça
converter-se no outro, porém, a lei da individualidade reúne a
sua força secreta: tu és tu, e eu sou eu, e assim nos
manteremos.
A natureza deseja, de facto, que cada coisa seja o que é, e,
conquanto todo o indivíduo lute por crescer e excluir, por
excluir e crescer até aos extremos do universo e impor a lei do
seu ser a todas as outras criaturas, a natureza procura com
firmeza proteger cada um de todos os outros. Todos se
defendem a si mesmos. Nada é mais notório do que o poder
que defende os indivíduos dos indivíduos num mundo em que
os benfeitores se tornam tão facilmente em malfeitores, apenas
por prosseguirem a sua atividade em lugares onde não devem;
em que as crianças parecem estar demasiadamente à mercê dos
seus pais tolos; e em que quase todos os homens são
demasiado sociáveis e intrometidos. Fala-se com razão dos
anjos da guarda das crianças. Quão superiores na sua
segurança ante influências de más pessoas, vulgaridade e
segundas intenções! Derramam a sua abundante beleza sobre
os objetos que contemplam. Não estão, pois, à mercê de tão
medíocres educadores como nós, adultos. Se nos irritamos e
ralhamos consigo, depressa deixam de pensar nisso e voltam a
confiar em si mesmos e se formos indulgentes consigo até à
loucura, aprendem noutro lado a conhecer os limites.
Não precisamos de recear uma influência excessiva. Uma
confiança mais generosa é permitida. Servi os grandes. Não
receeis a humilhação. Não poupeis serviços que possais
prestar. Sede os membros do seu corpo, o alento da sua boca.
Comprometei o vosso egoísmo. Que interessa isso se podemos
ganhar algo mais amplo e nobre? Esquecei o escárnio do
boswellismo(6): a devoção pode muito bem ser maior do que o
orgulho deplorável que se fecha sobre si mesmo. Sede outro;
não vós mesmos, mas um platonista; não uma alma, mas um
cristão; não um naturalista, mas um cartesiano; não um poeta,
mas um shakespeariano. Não é em vão que as rodas da
tendência não se deterão, nem todas as forças da inércia, do
medo ou do próprio amor que ali vos mantêm. Adiante,
sempre adiante! O microscópio observa uma mónada ou inseto
entre os infusórios que circulam na água. Em breve, um ponto
aparece no animal, que aumenta até surgir um corte e
converter-se em dois animais perfeitos(7). A separação
constante não surge menos em todo o pensamento e na
sociedade. As crianças pensam que não conseguem viver sem
os pais. No entanto, muito antes de darem conta, o ponto negro
aparece e a separação ocorre. Qualquer acaso lhe revelará
agora a sua independência.
Mas os grandes homens… a palavra é injuriosa. Existe uma
casta? um destino? Que ocorre com a promessa de virtude? O
jovem pensativo lamenta a superfetação da natureza.
«Generoso e belo», diz ele, «é o vosso herói; mas olhai o
pobre Paddy(8), cujo país é o seu carrinho de mão; olhai toda
essa nação de Paddies.» Porque são as massas, desde o
despertar da história, pasto para facas e pólvora? A ideia
dignifica alguns líderes, que possuem sentimento, opinião,
amor, devoção por si mesmos, tornando a guerra e a morte
sagradas; mas e os desgraçados que contratam e matam? O
baixo custo do homem é uma tragédia diária. É uma perda real
que outros sejam tão inferiores como nós o somos, pois é
necessário viver em sociedade.
Uma resposta a estas hipóteses é dizer que a sociedade é
uma escola pestalozziana: todos são, à vez, alunos e
professores. Somos igualmente servidos ao receber e ao
partilhar. Homens que sabem as mesmas coisas não são a
melhor companhia uns para os outros. Mas colocai diante de
cada um alguém inteligente com outra experiência e será como
se libertásseis água de um lago ao escavar uma bacia mais
funda. Parece ser uma vantagem mecânica e um grande
benefício para todo aquele que fala, visto que pode agora
esconder o pensamento de si mesmo. Passamos muito
rapidamente, nos nossos estados de espírito íntimos, da
dignidade à dependência. E se ninguém parece jamais sentar-
se na cadeira e assumir, mas manter-se sempre de pé e servir, é
porque não vemos a sociedade durante um tempo
suficientemente longo para que a rotação completa das partes
se realize. Quanto ao que apelidamos de massas e homens
comuns: não existem homens comuns. Todos os homens
possuem ao menos um tamanho, e a verdadeira arte apenas é
possível com a convicção de que o talento tem a sua apoteose
algures. Jogo limpo e um campo aberto e louros fresquíssimos
para todos aqueles que os ganharem! Mas o Céu reserva uma
oportunidade igual a todas as criaturas. Um homem está
inseguro até ter emitido a sua radiação privada na côncava
esfera e contemplado ainda o seu talento na sua derradeira
nobreza e exaltação.
Os heróis do momento são relativamente grandes, de um
crescimento rápido ou de um tipo no qual, em ocasiões de
êxito, se encontra amadurecida uma qualidade que é
reclamada. Outros dias exigirão outras qualidades. Alguns
raios escapam ao observador comum e pedem um olho
delicadamente adaptado. Perguntai ao homem grande se não
os há maiores. Os seus companheiros são-no; e não menos
grandes, mas tão grandes que a sociedade não consegue vê-los.
A natureza nunca envia um homem grande ao mundo sem
confidenciar o segredo a outra alma.
Um facto agradável emerge destes estudos: existe
verdadeira ascensão no nosso amor. As glórias do século XIX
serão um dia citadas para provar a sua barbárie. O génio da
humanidade é o único tema real cuja biografia é escrita nos
nossos anais. Temos de inferir muito e preencher muitas
lacunas no registo. A história do universo é sintomática e a
vida é mnemónica. Nenhum homem, em todo o cortejo de
homens famosos, é a razão ou a iluminação ou aquela essência
que buscamos, mas uma exibição, em certos locais, de novas
possibilidades. Que possamos um dia completar a imensa
figura que estes pontos brilhantes compõem! O estudo de
muitos indivíduos conduz-nos a uma região elementar onde o
indivíduo se perde, ou onde todos são tocados pela sua
culminância. Pensamento e sentimento, que ali brotam, não
podem ser contidos por barreira alguma da personalidade. É
esta a chave do poder dos maiores homens: o seu espírito
difunde-se a si mesmo. Uma nova qualidade da mente viaja
noite e dia em círculos concêntricos desde a sua origem,
divulgando-se a si mesma através de processos desconhecidos.
A união de todas as mentes parece íntima: o que uma admite
não se pode apartar da outra; a mais pequena aquisição de
verdade ou de energia, seja em que quadrante for, significa um
bem equivalente para a comunidade das almas. Se as
disparidades de talento e posição desaparecem quando os
indivíduos são considerados a partir da duração necessária
para completar a sua carreira, ainda mais célere a aparente
injustiça desaparece, quando ascendemos à identidade central
de todos os indivíduos e reconhecemos que são feitos da
substância que comanda e cria.
O génio da humanidade é a verdadeira perspetiva da
história. As qualidades perduram; os homens que as exibem
possuem-nas num momento em maior grau, de seguida, em
menor e morrem; as qualidades permanecem noutra fronte.
Não há experiência mais familiar. Vimos um dia fénices; elas
desapareceram, mas nem por isso o mundo se desencantou. Os
vasos nos quais se observam emblemas sagrados parecem ser
afinal de cerâmica vulgar, mas o sentido das imagens é
sagrado e, ainda hoje, os podemos ver transportados para as
paredes do mundo. Durante um período, os nossos professores
servem-nos pessoalmente de medida ou marco de progresso.
Outrora, foram anjos do conhecimento e as suas figuras
tocavam o céu. Depois, aproximámo-nos, observámos os seus
meios, cultura e limites e cederam os seus lugares a outros
génios. Regozijemo-nos se uns quantos nomes se mantiveram
no alto sem que pudéssemos lê-los de mais perto e sem que a
idade e a comparação lhes tenham roubado um só raio.
Entretanto, e por fim, deixemos de buscar nos homens a
completude e contentemo-nos com a sua qualidade social e
delegatória. Tudo o que concerne ao indivíduo é temporário e
prospetivo, como o próprio indivíduo, que ascende para lá dos
seus limites até uma existência universal. Jamais
conseguiremos alcançar o verdadeiro e melhor benefício de
qualquer génio enquanto acreditarmos que é uma força
original. No momento em que cessa de nos ajudar como uma
causa, começa a auxiliar-nos mais como um efeito. Aparece
então como um expoente de uma mente e vontade mais ampla.
O eu opaco torna-se transparente com a luz da Primeira Causa.
Dentro dos limites da educação e ação humanas, talvez
possamos dizer, no entanto, que os grandes homens existem
para que homens maiores possam nascer. O destino da
natureza organizada é o aperfeiçoamento, e quem poderá
apontar os seus limites? Cabe ao homem dominar o caos e, em
todo o lado, enquanto viver, espalhar as sementes da ciência e
da poesia para que o clima, o cereal, animais, homens possam
ser mais amenos e se multipliquem os germes do amor e da
generosidade.
-
(1) «Poucos meios para tanto efeito». [N. do T.]

(2) «Ever their phantoms arise before us, / Our loftier brothers, but one in blood; /
At bed and table they lord it o’er us, / With looks of beauty, and words of good.» Do
poema de Daedalus, de John Sterling. [N. do T.]

(3) Referência ao romance de Balzac La Peau de Chagrin, cuja história envolve


uma manta de pele que encolhe de cada vez que um desejo é realizado. Quando
desaparece, o dono morre. [N. do T.]

(4) Do grego nēpenthés, «que faz desaparecer a dor», o nepente aparece na


mitologia grega enquanto poção do esquecimento. [N. do T.]

(5) Personagem da Íliada, de Homero, ficou conhecido por troçar de todos, Aquiles
incluído, acabando, como consequência, por morrer às mãos deste. [N. do T.]

(6) Referência a James Boswell, biógrafo de Samuel Johnson, a cuja biografia


dedicou a vida inteira. [N. do T.]

(7) Referência aos organismos microscópicos que se reproduzem através da divisão.


[N. do T.]

(8) Termo pejorativo usado para indicar aqueles de ascendência irlandesa. [N. do
T.]
II

Platão, ou o Filósofo
No campo dos livros, Platão é o único autor a merecer o
elogio fanático pronunciado por Omar em relação ao Alcorão:
«Queimai as bibliotecas, pois o seu valor reside neste livro.»
Estas frases contêm a cultura das nações, são os pilares das
escolas, as nascentes das literaturas. Constituem uma
disciplina na lógica, aritmética, gosto, simetria, poesia,
linguagem, retórica, ontologia, costumes ou sabedoria prática.
Nunca houve uma tal amplitude de especulação. De Platão
nasceram todas as coisas que ainda são escritas e debatidas
entre homens de pensamento. Grande transtorno causa ele
entre as nossas originalidades. Chegámos à montanha de onde
todas estas grandes pedras deslizantes se desprenderam. Bíblia
dos eruditos durante vinte e dois séculos, todo o jovem
vigoroso que sucessivamente dirige, a cada geração relutante,
coisas belas — Boécio, Rabelais, Erasmo, Bruno, Locke,
Rousseau, Alfieri, Coleridge — é um leitor de Platão,
traduzindo inteligentemente para o vernáculo o melhor que
tem. Mesmo os homens de maior grandeza são algo
depreciados pelo infortúnio (direi assim?) de chegarem depois
deste generalizador exaustivo. Santo Agostinho, Copérnico,
Newton, Böhme, Swedenborg, Goethe são igualmente seus
devedores e têm de falar depois dele. Pois é justo creditar o
mais amplo dos generalizadores de todos as proposições
dedutíveis da sua tese.
Platão é a filosofia e a filosofia é Platão, em simultâneo a
glória e a vergonha da humanidade, uma vez que nem saxões
nem romanos lograram acrescentar uma ideia às suas
categorias. Não teve mulher nem filhos, e os pensadores de
todas as nações civilizadas são a sua posteridade, marcados
pela sua inteligência. Quantos grandes homens a Natureza
tirou constantemente da noite para serem os seus homens:
Platónicos! Os alexandrinos, uma constelação de génio; os
isabelinos não menos; Sir Thomas More, Henry More, John
Hales, John Smith, Lorde Bacon, Jeremy Taylor, Ralph
Cudworth, Sydenham, Thomas Taylor, Marsílio Ficino e Pico
della Mirandola. O calvinismo está no seu Fédon; e nele está o
cristianismo. O maometanismo extrai dele toda a sua filosofia,
patente no seu guia de moral, o Akhalak-Y-Jalaly. O
misticismo encontra em Platão todos os seus textos. Este
cidadão de uma cidade na Grécia não é um aldeão ou patriota.
Um inglês lê-o e diz: «que inglês!»; um alemão: «que
teutónico!»; um italiano: «que romano e grego!». Assim como
dizem que Helena de Argos possuía aquela beleza universal
que levava toda a gente a atrair-se por ela, também Platão
aparenta ser, para um leitor da Nova Inglaterra, um génio
americano. A sua ampla humanidade transcende todas as
linhas divisórias.
Esta amplitude de Platão instrui-nos sobre o que pensar da
controversa questão relativa às suas supostas obras: o que é
genuíno, o que é apócrifo. É um facto singular o de, onde quer
que encontremos um homem bastante mais elevado do que os
seus contemporâneos apenas pela inteligência, se duvidar
sempre de quais são as suas verdadeiras obras. Foi assim com
Homero, Platão, Rafael, Shakespeare; pois estes homens
magnetizam os seus contemporâneos, tanto que os seus
próximos podem fazer por eles o que nunca são capazes de
fazer por si mesmos; e o grande homem vive assim em vários
corpos e escreve e pinta ou age através de muitas mãos e,
passado algum tempo, não é fácil dizer qual o trabalho
autêntico do mestre e o que pertence exclusivamente à sua
escola.
Também Platão, como qualquer grande homem, consumiu
a sua própria época. O que é um grande homem senão um de
grandes afinidades, que absorve todas as artes, ciências, todos
os conhecimentos como se fossem alimento? Não evita nada;
serve-se de tudo. O que não é bom para a virtude é bom para o
conhecimento. Por isso, os seus contemporâneos acusam-no de
plágio. Mas o inventor só sabe como pedir emprestado, e a
sociedade fica contente em esquecer os inúmeros
trabalhadores que cooperam com este arquiteto e guardam
toda a sua gratidão para ele. Quando louvamos Platão, parece
que louvamos citações de Sólon, e Sófron, e Filolau. Seja.
Todos os livros são citações, e todas as casas são citações de
todas as florestas e minas e pedreiras, e todos os homens são
citações de todos os seus antepassados. E este ávido homem
põe todas as nações a contribuir.
Platão absorveu o conhecimento do seu tempo: Filolau,
Timeu, Heraclito, Parménides e muito mais, do seu mestre
Sócrates e, sentindo-se ainda capaz de uma síntese maior —
maior do que qualquer exemplo passado ou futuro —, viajou
até Itália para receber o que Pitágoras tinha para lhe dar;
viajou de seguida até ao Egito e, porventura, ainda mais para
oriente, de maneira que importasse os outros elementos que a
Europa precisava para a mentalidade europeia. Esta abertura
confere-lhe o direito de se assumir como o representante da
filosofia. N’A República, diz: «Génio como os que os filósofos
necessitam, em todas as suas partes, raramente se encontra nos
homens; as partes que o formam brotam geralmente em
diferentes pessoas.»(9) Todo o homem que queira fazer
qualquer coisa bem, tem de o fazer a partir de algo superior.
Um filósofo tem de ser mais do que um filósofo. Platão
reveste-se dos poderes de um poeta, assume a mais elevada
posição do poeta e (embora duvide que quisesse o dom
decisivo da expressão lírica) não é, em geral, um poeta, porque
prefere usar o dom poético para outro fim.
Os grandes génios têm as biografias mais curtas. Os seus
primos não podem dizer-vos nada a seu respeito. Viveram nos
seus escritos e, por conseguinte, a sua vida doméstica e civil
foi insignificante e típica. Se quiserdes saber os seus gostos e
complexidades, o mais fervoroso dos seus leitores será o que
mais se lhe assemelha. Platão, em particular, carece de
biografia externa. Se tinha amante, mulher ou filhos, nada
sabemos sobre eles. Transformou-os a todos em tinta. Como
um bom fogão que tudo reduz a fumo, um filósofo converte o
valor de todos os seus bens em ações intelectuais.
Nasceu em 430 a. C., por altura da morte de Péricles, de
relações patrícias no seu tempo e cidade, e diz-se que se
inclinou num primeiro momento para a guerra. No entanto,
pelo seu vigésimo aniversário, aquando de um encontro com
Sócrates, foi facilmente dissuadido dessa ocupação e manteve-
se durante dez anos como seu aluno até à morte de Sócrates.
Foi depois para Mégara, aceitou os convites de Dião e
Dionísio para a corte de Siracusa e, para lá, viajou três vezes,
conquanto tenha sido tratado bastante caprichosamente. Viajou
até Itália, depois até ao Egito, onde permaneceu muito tempo;
uns dizem três, outros dizem treze anos. É dito que foi mais
longe, até à Babilónia; é incerto. Quando regressou a Atenas,
deu aulas na Academia aos que aí foram atraídos pela sua
reputação e morreu, assim o soubemos, enquanto escrevia, aos
oitenta e um anos.
Mas a biografia de Platão é interior. Temos de explicar a
suprema elevação deste homem na história intelectual da nossa
raça; como é que os homens se tornaram seguidores dada a
cultura dos homens; como é que, à semelhança da Bíblia
judaica que se impôs nas conversas e na vida doméstica de
todos os homens e mulheres das nações europeias e
americanas, os textos de Platão ocuparam todas as escolas de
conhecimento, todos os amantes do pensamento, todas as
igrejas, todos os poetas, tornando impossível pensar a certos
níveis exceto através dele. Ele ergue-se entre a verdade e toda
a mente humana e quase cunhou a linguagem e as primeiras
formas do pensamento com o seu nome e selo. Quando o leio,
impressiona-me a radical modernidade do seu estilo e espírito.
Eis o germe dessa Europa que conhecemos tão bem, na sua
longa história de artes e armas; eis todos os seus traços, já
discerníveis na mente de Platão e em nenhum outro antes dele.
Disseminou-se desde então em cem histórias, mas não
acrescentou nenhum elemento novo. Esta perpétua
modernidade é a medida do mérito em todo o trabalho
artístico, uma vez que o seu autor não foi desencaminhado por
nada que fosse de vida curta ou local, mas duradouro graças a
traços reais e permanentes. Como Platão se veio a tornar a
Europa, e a filosofia, e quase a literatura, é o problema que
temos de resolver.
Isto não podia ter acontecido sem um homem são, sincero e
universal, capaz de venerar ao mesmo tempo o ideal, ou as leis
da mente, e o destino, ou a ordem da natureza. O primeiro
período de uma nação, como o de um indivíduo, é o período
da força inconsciente. As crianças choram, gritam e batem
com os pés furiosamente, incapazes de expressar os seus
desejos. Assim que conseguem falar e transmitir as suas
necessidades, bem como as suas razões, tornam-se gentis. Na
vida adulta, enquanto as suas perceções são obtusas, homens e
mulheres falam com veemência e superlativamente, fazem
asneiras e brigam; os seus modos estão cheios de desespero; o
seu discurso cheio de juramentos. A partir do momento em
que, com a cultura, as coisas se aclaram um pouco e eles já
não as veem em amontoados e agregados, mas distribuídos
com precisão, desistem dessa frágil veemência e explicam o
seu sentido detalhadamente. Se a língua não tivesse sido
formada para a articulação, o homem seria ainda um bruto na
floresta. A mesma fraqueza e necessidade, num plano mais
elevado, ocorre diariamente na educação de homens e
mulheres jovens e fogosos. «Ah!, não me compreendes; nunca
conheci ninguém que me compreendesse», e suspiram e
choram, escrevem versos e passeiam sozinhos, falhos do poder
para expressar o seu sentido preciso. Num mês ou dois, graças
ao favor dos seus bons génios, encontram alguém tão afim que
os auxilia no seu estado vulcânico e convertem-se em bons
cidadãos, uma vez estabelecida uma comunicação adequada. É
sempre assim. O progresso conduz à exatidão, à habilidade, à
verdade desde a fúria cega.
Na história de cada nação, existe um momento em que,
partindo da sua juventude rudimentar, os poderes percetivos
atingem a sua maturidade sem ainda se terem tornado
microscópicos, de modo que o homem, nesse instante, se
estende por toda a escala e, com os pés ainda plantados nas
imensas forças da noite, conversa, através dos olhos e cérebro,
com a criação solar e estelar. É o momento da saúde adulta, o
culminar do poder.
É esta a história da Europa em todos os seus aspetos e na
sua filosofia. Os seus registos mais antigos, quase
desaparecidos, pertencem às imigrações vindas da Ásia,
carregando com elas os sonhos dos bárbaros, uma confusão de
noções morais rudimentares e de filosofia natural que diminuía
gradualmente perante as intuições parciais de mestres únicos.
Antes de Péricles, vieram os Sete Mestres Sábios e tivemos
os inícios da geometria, metafísica e ética; depois, vieram os
parcialistas, que deduziram a origem das coisas do fluxo ou da
água, ou do ar, ou do fogo, ou da mente. Todos eles
misturavam estas causas com imagens mitológicas. Por fim,
aparece Platão, o distribuidor, que não precisa de nenhuma
pintura bárbara, ou tatuagem, ou gritaria, pois consegue
definir. Deixa na Ásia o vasto e superlativo; ele é o advento da
precisão e da inteligência. «Aquele que divide e define será
como um deus para mim.»
Esta atividade definidora é a filosofia. A filosofia é a
explicação que o homem dá a si mesmo da constituição do
mundo. Dois factos capitais jazem para sempre como
fundamento: o um e o dois. 1) a unidade, ou Identidade; e 2)
Variedade. Unimos todas as coisas, percecionando a lei que as
enforma, as suas diferenças superficiais e as semelhanças
profundas. Mas todo o ato mental, esta mesma perceção da
identidade e a unicidade, reconhece a diferença entre as coisas.
Unicidade e alteridade. É impossível falar, ou pensar, sem
abraçar as duas.
A mente é exortada a perguntar pela causa de muitos
efeitos, depois pela causa disso e de novo pela causa,
mergulhando ainda mais fundo, seguro de que chegará a uma
que seja absoluta e suficiente, uma que será todas. «No centro
do Sol, está a luz, na luz, a verdade e, na verdade, o ser
imperecível», dizem os Vedas. Toda a filosofia, do Oriente e
Ocidente, tem a mesma força centrípeta. Instigada por uma
necessidade oposta, a mente regressa do um para aquilo que
não é uno, mas outro e muitos, da causa para o efeito,
afirmando a existência necessária da variedade, da existência
própria de ambos, pois cada um está envolvido no outro. O
problema do pensamento consiste em separar e reconciliar
estes elementos estreitamente combinados. A sua existência é
mutuamente contraditória e exclusiva, e cada um deles desliza
tão rapidamente para o outro que nunca sabemos dizer qual é e
não é. Proteu é tão ligeiro nas alturas como nas profundezas
quando contemplamos o uno, o verdadeiro, o bem — como
nas superfícies e extremidades da matéria.
Em todas as nações existem mentes que se inclinam a
habitar a conceção da unidade fundamental. Os
arrebatamentos da oração e o êxtase da devoção dissolvem
todo o ser num só Ser. Esta tendência encontra a sua expressão
mais nobre nos textos religiosos do Oriente e, sobretudo, nos
textos da Índia, nos Vedas, no Bhagavad Gita e no Vixnu
Purana. Esses textos contêm pouco mais do que esta ideia e
elevam-se a acordes puros e sublimes ao celebrá-la.
O Mesmo, o Mesmo: amigo e inimigo são feitos da mesma
matéria; o lavrador, o arado e o sulco são feitos da mesma
matéria, e a natureza dessa matéria é tal que as variações de
forma são irrelevantes. «Estás preparado», diz o supremo
Krishna a um sábio, «para compreender que não és distinto de
mim. Aquilo que eu sou, tu és e também este mundo com os
seus deuses e heróis e humanidade. Os homens admiram as
distinções, porque a ignorância os deixa estupefatos.» «As
palavras eu e meu constituem ignorância. Aprenderás agora
qual o grande fim de tudo. É a alma, una em todos os corpos,
predominante, uniforme, perfeita, preeminente em relação à
natureza, livre do nascimento, crescimento e decadência,
omnipresente, feita de verdadeiro conhecimento,
independente, sem ligação a irrealidades, a nome, espécies e a
tudo o mais no passado, presente e futuro. O conhecimento de
que este espírito, que é essencialmente uno, está em si mesmo
e em todos os outros corpos representa a sabedoria daquele
que conhece a unidade das coisas. Como um ar difusivo que se
distingue como uma nota de uma escala quando passa pelos
orifícios de uma flauta, a natureza do Grande Espírito é
singular, embora as suas formas sejam variadas, resultantes
das consequências dos atos. Quando a diferença da forma
investida, como a de deus ou as restantes, é destruída, não há
distinção.» «O mundo inteiro é tão-somente uma manifestação
de Vixnu, que é idêntico a todas as coisas, devendo ser
considerado pelos sábios como não diferindo deles, mas como
sendo o mesmo que eles. Não vou nem venho, nem a minha
morada está em parte alguma, nem tu és tu, nem os outros são
os outros, nem eu sou eu.» Como se dissesse: «Tudo é para a
alma, e a alma é Vixnu, e os animais e as estrelas são imagens
fugazes, e a luz é cal, e a duração enganosa, e a forma uma
prisão e o próprio céu um engodo.» O que a alma procura é
dissolver-se no ser, acima da forma, fora do Tártaro e do céu,
libertar-se da natureza.
Se a especulação tende então para uma unidade terrível, na
qual todas as coisas são absorvidas, a ação tende, em sentido
contrário, para a diversidade. A primeira é o caminho ou
gravitação mental; a segunda é o poder da natureza. A
natureza é variada. A unidade absorve, funde ou reduz. A
natureza abre e cria. Estes dois princípios reaparecem e
interpenetram todas as coisas, todos os pensamentos; o uno, o
múltiplo. Um é ser, o outro, intelecto; um é necessidade, o
outro, liberdade; um, repouso, o outro, movimento; um, poder,
o outro, distribuição; um, força, o outro, prazer; um,
consciência, o outro, definição; um, génio, o outro, talento;
um, sinceridade, o outro, conhecimento; um, posse, o outro,
comércio; um, casta, o outro, cultura; um, rei, o outro,
democracia; e, se arriscarmos levar estas generalizações um
pouco mais longe e designar a última tendência de ambos,
talvez pudéssemos dizer que o fim de um é escapar à
organização — a ciência pura —, e o fim do outro é a
instrumentalização suprema, ou uso dos meios, ou divindade
executiva.
Cada estudante adere por temperamento e hábito ao
primeiro ou ao segundo destes deuses do espírito. Por religião,
tende para a unidade, pelo intelecto, ou pelos sentidos, para o
múltiplo. Uma unificação demasiado rápida e uma excessiva
aplicação às partes e ao particular são os perigos gémeos da
especulação.
A esta inclinação correspondeu a história das nações. O
país da unidade, das instituições inamovíveis, o assento de
uma filosofia que se deleita com abstrações, de homens fiéis,
na doutrina e na prática, à ideia de um destino surdo,
inapelável, imenso é a Ásia e concretiza esta fé na instituição
social da casta. Por outro lado, o génio da Europa é ativo e
criativo, resiste à casta através da cultura, a sua filosofia era
uma disciplina, é uma terra de artes, invenções, comércio,
liberdade. Se o Oriente ama o infinito, o Ocidente delicia-se
com as fronteiras.
A civilidade europeia é o triunfo do talento, a extensão do
sistema, o entendimento aguçado, a capacidade de adaptação,
prazer nas formas, prazer na manifestação, nos resultados
compreensíveis. Péricles, Atenas, Grécia trabalharam neste
elemento com a alegria do génio ainda não esfriado por
nenhuma antevisão do prejuízo de um excesso. Não
vislumbravam diante de si nenhuma política económica
sinistra, nem um Malthus ominoso, nem Paris ou Londres,
nem subdivisão impiedosa de classes — a maldição dos
fabricantes de alfinetes, a maldição dos tecelões, dos
costureiros, dos fazedores de meias, dos cardadores, dos
fiandeiros, dos mineiros de carvão; nem Irlanda, nem a casta
indiana impulsionada pelos esforços da Europa para a
derrubar. O entendimento estava no seu vigor e ponto mais
alto. A arte encontrava-se num momento de esplêndida
novidade. Cortavam o mármore pentélico como se fosse neve
e as suas obras perfeitas em arquitetura e escultura pareciam
coisas correntes, não mais difíceis do que terminar um novo
barco nos estaleiros de Medford ou novos moinhos em Lowell.
Estas coisas seguem o seu curso e podem ser tomadas por
garantidas. A legião romana, a legislação bizantina, o
comércio inglês, os salões de Versalhes, os cafés de Paris, a
máquina a vapor, o barco a vapor, a locomotiva a vapor podem
ser vistos em perspetiva; a assembleia de cidadãos, a urna, o
periódico e a imprensa barata.
Entretanto, Platão, no Egito e em peregrinações ao Oriente,
assimilou a ideia de uma divindade que absorvia todas as
coisas. A unidade da Ásia e o detalhe da Europa; a infinitude
da alma asiática e a Europa definidora, amante do resultado,
fabricante de máquinas, superficial, frequentadora de ópera —
Platão conseguiu unir as duas e, por contacto, engrandecer a
energia de ambas. A excelência da Europa e da Ásia acham-se
no seu cérebro. A metafísica e a filosofia natural expressaram
o génio da Europa; como base e substrato, utilizou a religião
asiática.
Enfim, nasceu uma alma equilibrada, que discernia os dois
elementos. É tão fácil ser grande como ser pequeno. A razão
pela qual não acreditamos imediatamente em almas admiráveis
deve-se a elas não fazerem parte da nossa experiência. Na vida
real, são tão raras que se tornam inacreditáveis, mas, acima de
tudo, não só não existe presunção contra elas, como a mais
forte presunção a favor da sua manifestação. Mas se vozes
foram ouvidas no Céu ou não, se a sua mãe ou pai sonharam
que o filho era o filho de Apolo, se um enxame de abelhas
pousou nos seus lábios ou não, nascera um homem que
conseguia ver os dois lados de uma coisa. A maravilhosa
síntese tão familiar na natureza, o verso e o inverso da
medalha de Júpiter, a união das impossibilidades que
reaparece em cada objeto, o seu poder real e ideal agora
igualmente transferido por inteiro para a consciência de um
homem.
A alma equilibrada chegou. Se amava a verdade abstrata,
salvou-se a si mesmo ao propor o mais popular de todos os
princípios, o bem absoluto, que governa os governantes e julga
o juiz. Se fez distinções transcendentais, fortificou-se ao ir
buscar as suas ilustrações a fontes desprezadas por oradores e
conversadores polidos, a éguas e cachorrinhos, a cântaros e
conchas de sopa, a cozinheiros e pregoeiros, a lojas de
ceramistas, a veterinários, carniceiros e peixeiros. Não podia
perdoar-se uma inclinação, resolvido que estava a que os dois
polos do pensamento devessem aparecer na sua exposição. O
seu argumento e a sua frase são harmoniosos e esféricos. Os
dois polos surgem; sim, e tornam-se duas mãos que agarram e
tomam as suas.
Os grandes artistas são-no por síntese. A nossa força é
transitória, alternante; ou, devo dizer, uma meada de dois fios.
A beira-mar — o mar visto da costa, a costa vista do mar —, a
experiência de dois metais em contacto e os nossos poderes
ampliados à chegada e partida de um amigo; a experiência da
criatividade, que não se encontra ficando em casa nem
viajando, mas em transições de uma para outra que devem, por
conseguinte, ser bem geridas para expor tanta superfície na
transição quanto possível; este domínio de dois elementos
deve explicar o poder e o encanto de Platão. A arte expressa o
uno, ou o mesmo, através da diferença. O pensamento procura
conhecer a unidade na unidade; a poesia mostrá-la através da
variedade; ou seja, sempre por um objeto ou símbolos. Platão
mantém à sua beira os dois vasos, um de éter e outro de
pigmento, e usa invariavelmente os dois. Coisas em cima de
coisas, como as estatísticas ou história civil, são inventários.
As coisas usadas como linguagem são inesgotavelmente
atrativas. Platão vira constantemente uma face e outra da
medalha de Júpiter.
Para dar um exemplo: cada um dos filósofos físicos
esboçou uma teoria do mundo: a teoria dos átomos, do fogo,
do fluxo, do espírito, teorias mecânicas e químicas no seu
génio. Platão, um mestre das matemáticas, estudioso de todas
as leis e causas naturais, sente que estas, como segundas
causas, não são teorias do mundo, mas simples inventários e
listas. Para o estudo da natureza, prescreve então o dogma:
Digamos, pois, por que motivo aquele que constituiu o
devir e o mundo os constituiu. Ele era bom e, no que é
bom, jamais nasce inveja de qualquer espécie. Porque
estava livre de inveja, quis que tudo fosse o mais
semelhante a si possível. Quem aceitar de homens sensatos
que esta é a origem mais válida do devir e do mundo estará
a aceitar o raciocínio mais acertado.(10)
«Todas as coisas existem para o bem, que é a causa de
todas as coisas belas.»(11) Este dogma anima e personifica a
sua filosofia.
A síntese que faz o carácter do seu espírito aparece em
todos os seus talentos. Onde há uma grande capacidade de
engenho, costumamos encontrar excelências que combinam
facilmente no homem vivo, mas que descritivamente parecem
incompatíveis. A mente de Platão não existe para ser exibida
num catálogo chinês, mas existe para ser apreendida por uma
mente original no exercício do seu poder original. O mais livre
abandono une-se nele à precisão de um geómetra. A sua
imaginação audaciosa dá-lhe uma apreensão dos factos mais
sólida, como as aves de voos mais altos têm os ossos alares
mais fortes. O seu refinamento patrício, a sua elegância
intrínseca, emparelhada por uma ironia tão subtil que morde e
paralisa, adorna a mais pura saúde e força corporal. Segundo a
velha frase, «se Júpiter descesse à terra, falaria à maneira de
Platão».
Com esta atmosfera palaciana, existe, como ambição direta
de várias das suas obras e pelo tom que as atravessa a todas,
uma certa seriedade, que culmina, em A República e no Fédon,
na piedade. Foi acusado de ter fingido estar doente aquando da
morte de Sócrates. Mas as histórias que nos chegaram desse
tempo atestam a sua interferência viril ante o povo em defesa
do seu mestre — tendo até sido conservado o clamor selvagem
da assembleia contra Platão — e a indignação, em muitos dos
seus textos, para com o governo popular expressa uma
exasperação pessoal. Possui uma probidade, uma reverência
inata pela justiça e a honra, e uma humanidade que o torna
benevolente em relação às superstições do povo. A isto junta-
se a sua crença de que a poesia, a profecia e uma elevada
intuição têm origem numa sabedoria da qual o homem não é
senhor; que os deuses nunca filosofam, mas que estes milagres
se realizam graças a uma loucura celestial. Cavalgando estes
corcéis alados, passava velozmente por regiões sombrias,
visitava mundos em que a carne não entrava; viu as almas
sofredoras, escutava a condenação do juiz, contemplava a
metempsicose penal, as Moiras, com as rocas de fiar e as
cisalhas e ouve o rumorejo intoxicante do seu fuso.
Porém, a sua circunspeção nunca o abandonou. Dir-se-ia
que leu a inscrição nos portões de Busyrane: «sede ousado» e
no segundo portão: «sede ousado, sede ousado e sempre mais
ousado». A sua força é como o ímpeto de um planeta cadente,
e a sua discrição o regresso à sua própria e perfeita órbita, tão
excelente no seu amor grego pelos limites e pela sua
capacidade na definição. Não nos achamos mais seguros ao ler
logaritmos do que a seguir Platão nos seus voos. Nada é mais
frio do que a sua cabeça quando os relâmpagos da sua
imaginação brilham no céu. Deu por findo o seu pensamento
antes de o apresentar ao leitor; é um mestre literário rico em
surpresas. Possui aquela opulência que, a cada passo, oferece a
arma exata de que necessita. Assim como o homem rico, não
veste mais roupas do que o pobre, não monta mais cavalos,
não ocupa mais quartos, mas tem um só traje, ou carruagem,
ou instrumento apropriado para a ocasião e necessidade,
também Platão, na sua abundância, nunca está limitado, mas
possui a palavra certa. Não existe, de facto, arma em todo o
arsenal do engenho que não possua ou utilize: épica, análise,
loucura(12), intuição, música, sátira e ironia, até ao costumeiro
e cortês. As suas imagens são poesia e os seus gracejos
imagens. A arte obstétrica professada por Sócrates é boa
filosofia e a sua invenção, no Górgias, do termo «culinária» e
«arte adulatória» para a retórica ainda hoje nos presta um
serviço importante. Nenhum orador pode comparar-se em
efeito àquele que sabe dar bons apelidos.
Que moderação, que contenção e controlo dos trovões que
descarrega! Deu alegremente ao cortesão e cidadão tudo o que
pode ser dito contra as escolas. «Pois a filosofia é uma coisa
elegante quando dela nos ocupamos com modéstia, mas se nos
ocupamos dela mais do que é conveniente, corrompe o
homem.» Podia bem dar-se ao luxo de ser generoso, ele que,
da centralidade solar e pelo alcance da sua visão, tinha uma fé
sem névoa. O seu discurso era idêntico à sua perceção: joga
com a dúvida e tira o máximo partido dela; pinta e joga com as
palavras e, pouco tempo depois, surge uma frase que move
mar e terra. A admirável sinceridade não ocorre em intervalos,
no sim ou não perfeito do diálogo, mas em explosões de luz.
Eu, por minha vez, Cálicles, estou convencido com
estas explicações e considero o modo como poderei exibir
a minha alma limpa diante do juiz. Desconsiderando as
honras que a maioria dos homens valoriza e olhando para a
verdade, tratarei, pois, de viver realmente tão
virtuosamente quanto possível e, ao morrer, que morra
assim também. Exorto todos os outros homens na medida
das minhas forças, e a ti também, por minha vez, exorto-te
a que entres nesta luta, a qual, afirmo eu, supera todas as
outras que se travam aqui.
Ele é um grande homem comum; um que, ao melhor
pensamento, acrescenta uma tal proporção e equilíbrio nas
suas faculdades, que os homens veem nele os seus próprios
sonhos e pressentimentos acessíveis e tornados naquilo que
são. Um grande senso comum constitui a sua garantia e
qualificação para ser o intérprete do mundo. Possui razão,
como toda a classe filosófica e poética, mas possui, ao mesmo
tempo, o que ela não tem, esse forte sentimento de resolução
em reconciliar a sua poesia com as aparências do mundo e
erguer uma ponte desde as ruas das cidades até à Atlântida.
Nunca omite esta gradação, mas inclina o seu pensamento, por
muito pitoresco que seja o precipício de um lado, até que este
aceda a uma planície. Nunca escreve em êxtase nem nos
arrasta para arrebatamentos poéticos.
*
Platão apreendeu os factos essenciais. Podia prostrar-se na
terra e cobrir os olhos enquanto adorava aquilo que não pode
ser numerado, ou medido, ou conhecido, ou nomeado, o que
pode afirmar-se ou negar-se de qualquer coisa, «aquilo que é e
não é». Chamou-lhe superessencial. Como no Parménides,
estava pronto, inclusive, a demonstrar que assim era, que este
Ser excedia os limites do intelecto. Nenhum outro homem
reconheceu tão completamente o Inefável. Uma vez prestada a
sua homenagem ao Ilimitado em nome da raça humana,
postou-se ereto e disse à raça humana: «e, no entanto, as coisas
são cognoscíveis!», ou seja, a Ásia na sua cabeça foi primeiro
honrada cordialmente — o oceano de amor e poder antes da
forma, antes da vontade, antes do conhecimento, o Mesmo, o
Bem, o uno — e agora, renovado e fortalecido por este culto, o
instinto da Europa, sobretudo a cultura, regressa, e ele grita:
«no entanto, podemos conhecer as coisas!» Podemos conhecê-
las, porque, ao provirem do uno, as coisas correspondem.
Existe uma escala e a correspondência entre o Céu e a Terra,
entre a matéria e a mente, entre a parte e o todo é o nosso guia.
Assim como há uma ciência das estrelas chamada astronomia,
uma ciência das quantidades chamada matemática, uma
ciência das qualidades chamada química, também existe uma
ciência das ciências — chamo-lhe Dialética —, que consiste
na discriminação feita pelo Intelecto entre o falso e o
verdadeiro. Apoia-se na observação da identidade e da
diversidade, pois julgar é unir a um objeto a noção que lhe
pertence. As ciências, mesmo as melhores — a matemática e a
astronomia —, são como os caçadores, que apanham qualquer
presa que se lhes ofereça, ainda que dela não possam fazer
qualquer uso. A Dialética deve ensinar esse uso. «A sua
categoria é tal, que nenhum homem de intelecto se lançará em
nenhum estudo por si mesmo, mas apenas com a intenção de
avançar na única ciência que tudo engloba.»
«A essência ou peculiaridade do homem é compreender o
todo ou aquilo que, na diversidade das sensações, pode ser
abrangido por uma unidade racional.» «A alma que nunca
percecionou a verdade não pode assumir a forma humana.»(13)
Eu anuncio aos homens o Intelecto. Anuncio o bem que é ser
interpenetrado pela mente que criou a natureza, o benefício de
entender a natureza que fez e faz. A natureza é boa, mas o
intelecto é melhor, como o que faz a lei diante daquele que a
recebe. Trago-vos a alegria, ó filhos dos homens, de saberdes
que a verdade é salubre, que há esperança de encontrarmos o
que pode ser a essência de cada coisa. A miséria do homem
consiste em ser impedido de ver a essência e ser esmagado
com conjeturas; mas o bem supremo é a realidade, a beleza
suprema é a realidade, e toda a virtude e felicidade depende
desta ciência do real, pois a coragem nada mais é do que
conhecimento. A fortuna mais bela que o homem pode ter é a
de ser guiado pelo seu daimon ao que é verdadeiramente seu.
Esta é também a essência da justiça: dar a cada um o que é
seu; mais do que isso, a noção de virtude não é alcançável
senão através da direta contemplação da essência divina.
Coragem, então!, pois «a convicção de que devemos procurar
aquilo que não sabemos irá tornar-nos, sem comparação,
melhores, mais valentes e capazes do que se pensássemos ser
impossível descobrir o que não sabemos e que é inútil procurá-
lo». Ele assegura uma posição ímpar devido à sua paixão pela
realidade ao valorizar a filosofia apenas como o prazer de
conversar com o ser real.
Assim, cheio do génio da Europa, afirma: Cultura.
Observou as instituições de Esparta e reconheceu, diríamos,
com um brilhantismo incomparável até então, a esperança da
educação. Comprazia-se com cada feito alcançado, com todas
as ações graciosas e úteis e verdadeiras; acima de tudo, com os
esplendores das proezas intelectuais e de génio. «A vida, ó
Sócrates», afirma Glauco, «mede-se, para os sábios, em ouvir
discursos como estes.»(14) Que preço coloca às façanhas do
talento, aos poderes de Péricles, de Isócrates, de Parménides!
O preço, acima de qualquer valor, que dá aos próprios
talentos! Chamou deuses às diversas faculdades na sua bela
personificação. A importância que dá à arte da ginástica, cujo
poder apaziguador e medicinal celebra! No Timeu, indica o
mais elevado uso dos olhos:
Quanto a nós, declaremos que esse bem nos foi dado
pelo seguinte motivo: Deus descobriu e concedeu-nos a
visão em nosso favor, para que, ao contemplar as órbitas
do Intelecto no céu, as aplicássemos às órbitas da nossa
atividade intelectiva que são congéneres daquele, ainda
que as nossas tenham perturbações e as deles sejam
imperturbáveis. Só depois de termos analisado aqueles
movimentos, calculando-os corretamente em conformidade
com o que se passa na natureza, e de termos imitado esses
movimentos da divindade, absolutamente impassíveis de
errar, podemos estabilizar os que em nós são errantes.(15)
E em A República: «Graças a cada uma destas ciências, um
certo órgão da alma purifica-se e reanima, cego e sepultado
por estudos de outra ordem; um órgão mais digno de ser salvo
do que dez mil olhos, já que só por este a verdade é
percebida.»(16)
«Cultura», disse ele, mas primeiro admitiu natureza como
base e deu incomensuravelmente o primeiro lugar às suas
vantagens. Os seus gostos patrícios enfatizavam as distinções
de nascimento. Na doutrina do carácter e disposição orgânicos
reside a origem da casta. «Naqueles que estavam aptos a
governar, a divindade misturou ouro; nos militares, prata; ferro
e cobre nos camponeses e artesãos.» O Oriente confirma-se
nesta fé. Na questão da casta, o Alcorão é explícito: «Os
homens têm o seu metal, como o ouro ou a prata. Aqueles de
vós que forem dignos no estado de ignorância sê-lo-ão no
estado de fé, logo que o abraçardes.» Platão não era menos
firme: «Das cinco ordens das coisas, apenas quatro podem ser
ensinadas à generalidade dos homens.» Em A República,
insiste no temperamento da juventude, como o primeiro dos
primeiros.
Um exemplo feliz do relevo concedido à natureza encontra-
se no diálogo com o jovem Téages, que deseja receber lições
de Sócrates. Sócrates declara que, se alguns se tornaram sábios
graças à sua companhia, não é a ele que devem agradecer,
mas, simplesmente, que se foram tornando sábios enquanto
estavam com ele e não por causa dele; ele finge não saber
como isso ocorreu:
[O] daimon é adverso a muitos, e aqueles a quem ele se
opõe não beneficiam da minha companhia, não sendo por
isso possível para mim viver com eles. No entanto, isso
não me impede de conversar com muitos que ainda não
beneficiaram da minha companhia. Essa, ó Téages, é a
natureza da minha companhia, pois, se agradar a deus,
farás muitos e rápidos progressos, se não agradar, não os
farás. Avalia se não será mais seguro seres instruído por
um daqueles que têm o poder sobre o benefício que dão
aos homens do que por mim, que beneficio ou não
consoante o caso.(17)
Como se tivesse dito: «Não tenho sistema. Não posso ser
responsável perante vós. Sereis aquilo que tiverdes de ser. Se
existir amor entre nós, a nossa relação será maravilhosamente
encantadora e proveitosa; se não, perdemos o nosso tempo, e
só me aborrecerás. Parecerei estúpido para ti e a reputação que
tenho, falsa. Muito acima de nós, para lá da tua vontade e da
minha, repousa essa afinidade ou repulsa secretas. Todo o meu
bem é magnético e eu educo, não por lições, mas tratando dos
meus afazeres.»
Disse Cultura, disse Natureza e não deixou de acrescentar:
«existe ainda o divino». Não existe pensamento na mente que
não tenda rapidamente a converter-se num poder e a organizar
uma vasta quantidade de meios. Platão, amante dos limites,
amava o ilimitado, via a amplitude e a nobreza que saía da
própria verdade e bondade, e tentava, como se da parte do
intelecto humano, de uma vez por todas, prestar-lhe uma justa
homenagem, uma homenagem adequada à receção da alma
imensa e uma homenagem digna de ser prestada pelo intelecto.
Disse então:
[A]s nossas faculdades estendem-se até ao infinito e daí
regressam a nós. Podemos definir tão-somente uma parte,
mas há um facto que não pode ser descurado e sobre o qual
seria suicídio fechar os olhos. Todas as coisas estão numa
escala e, comecemos onde quisermos, ascendem e
ascendem. Todas as coisas são simbólicas, e aquilo a que
chamamos resultados são inícios.
Uma chave para o método e perfeição de Platão é a sua
linha dividida em dois. Uma vez ilustrada a relação entre o
bem e a verdade absolutos e as formas do mundo inteligível,
afirma:
[F]aça-se uma linha dividida em duas partes desiguais.
Divida-se de novo cada uma destas partes — uma
representando o visível, a outra o mundo inteligível — e
nestas duas novas secções, representando a parte luminosa
e a parte escura destes mundos, tereis, para uma das
secções do mundo visível imagens, ou seja, plantas,
animais e obras da arte e natureza. Em seguida, divida-se o
mundo inteligível da mesma maneira: uma secção será a
das opiniões e hipóteses, a outra, a das verdades.
A estas quatro secções, correspondem as quatro operações
da alma: conjetura, fé, entendimento, razão. Assim como todas
as poças de água refletem a imagem do sol, também todas as
almas e coisas nos devolvem uma imagem e criatura do Bem
supremo. O universo é perfurado por um milhão de canais da
sua atividade. Todas as coisas ascendem uma vez e outra.
Todo o seu pensamento possui esta ascensão: no Fedro,
quando ensina que a beleza é a mais amável de todas as coisas,
incitando a alegria e espalhando o desejo e a confiança pelo
universo, onde quer que entre, e ela, até certo ponto, entra em
todas as coisas. Todavia, existe outra coisa, muito mais bela do
que a beleza, assim como a beleza é mais bela do que o caos,
isto é, a sabedoria, que o nosso maravilhoso órgão da visão
não pode alcançar, mas que nos extasiaria com a sua realidade
perfeita pudesse ela ser vista. Ele considera-a a fonte da
excelência nas obras de arte:
Quando um artífice, na feitura de qualquer trabalho,
olha para aquilo que subsiste sempre de acordo com o
imutável e expressa a sua ideia e poder na sua obra
empregando um modelo deste tipo, conclui-se que a sua
produção deve ser bela. Mas quando ele contempla aquilo
que nasce e morre, estará muito longe de ser bela.(18)
E isto por todo o lado: o Banquete ensina no mesmo
espírito, agora familiar a toda a poesia e a todos os sermões do
mundo, que o amor entre os sexos é inicial e simboliza, à
distância, a paixão da alma por esse vasto lago de beleza que
justifica a sua existência. Esta fé na divindade nunca o
abandona e constitui o limite de todos os seus dogmas. O
corpo não pode ensinar a sabedoria; só deus pode. No mesmo
sentido, afirma continuamente que a virtude não pode ser
ensinada, que não é uma ciência, mas uma inspiração, que os
maiores bens se produzem em nós através da loucura (mania)
e são-nos atribuídos mediante um dom divino.
Isto conduz-me a essa figura central que estabeleceu na sua
Academia como o órgão pelo qual toda a opinião reputada
seria comunicada e cuja biografia elaborou de tal modo, que os
factos históricos se perderam à luz da mente de Platão.
Sócrates e Platão são a estrela dupla, que os mais poderosos
instrumentos nunca conseguirão separar. Sócrates, uma vez
mais, nas suas particularidades e génio, é o melhor exemplo
dessa síntese que constitui o poder extraordinário de Platão.
Sócrates, um homem de ascendência humilde, mas
suficientemente honrado, com um passado vulgar, de uma
simplicidade pessoal tão impressionante que era motivo de
humor nos outros, era tanto assim, que a sua natureza
imensamente afável e o seu intenso gosto pela pilhéria
convidavam o gracejo que encontrava seguramente resposta.
Os atores representavam-no em palco; os oleiros reproduziam
o seu rosto feio nos seus cântaros de pedra. Era um indivíduo
sereno que acrescentava ao seu humor um carácter perfeito e
um conhecimento daquele com quem calhava falar que
conduzia os seus companheiros a uma derrota certa em
qualquer debate — debate que o comprazia muitíssimo. Os
jovens amavam-no tremendamente e convidavam-no para os
seus banquetes, aos quais ia para conversar. Também bebia;
tinha a cabeça mais forte de Atenas e, após abandonar o grupo
inteiro a dormir no chão, ia-se embora, como se nada se
tivesse passado, para começar novos diálogos com alguém que
estivesse sóbrio. Em suma, era o que as nossas gentes
chamavam um tipo agradável.
Adotava muitos dos gostos típicos dos cidadãos, amava
tremendamente Atenas, odiava árvores, nunca passava
voluntariamente para lá dos muros da cidade, conhecia os
antigos vultos, valorizava os importunos e filisteus, pensava
que era tudo um pouco melhor em Atenas do que em qualquer
outro lado. Era simples como um quaker no traje e maneira de
falar, empregava frases vulgares e imagens de galos e
codornizes, panelas e colheres, palafreneiros e ferradores e
ofícios sem nome, em especial, se falava com uma pessoa
refinada. Possuía uma sabedoria frankliniana. Nessa medida,
demostrou a alguém que tinha medo de ir a pé até Olímpia,
que facilmente lá chegaria, pois tratava-se apenas da sua
caminhada diária dentro de portas se continuamente estendida.
Indivíduo agradável que era, com as suas grandes orelhas,
um falador incansável, corria o rumor, numa ocasião ou
noutra, de que, na guerra com a Beócia, mostrara uma
determinação que permitira a retirada de uma tropa, e contava-
se que, sob a máscara de loucura, revelou grande coragem no
governo da cidade quando, certo dia, tivera a oportunidade de
ocupar nela um cargo, opondo-se sozinho à opinião popular
que quase o arruinou. É bastante pobre, mas depois é robusto
enquanto soldado e consegue viver com umas quantas
azeitonas; geralmente, em sentido estrito, vive a pão e água,
exceto quando sustentado pelos amigos. As suas despesas
indispensáveis eram extraordinariamente reduzidas, e ninguém
era capaz de viver como ele. Não usava roupa interior, a roupa
exterior era a mesma no verão e inverno, e caminhava
descalço, dizendo-se que, para encontrar o prazer — que
adorava — de falar à vontade todo o dia com os jovens mais
elegantes e cultos, regressava de quando em vez à sua oficina
e esculpia estátuas, boas ou más, para vender. Seja ou não
verdade, é certo que desenvolvera um grande prazer exclusivo
pela conversação e que, sob a pretensão hipócrita de não saber
nada, atacava e arrasava todos os requintados oradores e
filósofos de Atenas, fossem nativos ou estrangeiros da Ásia
Menor e das ilhas. Ninguém consegue recusar-se a falar com
ele, tão honesto que é e realmente curioso por saber; um
homem que se deixava refutar de bom grado se não dissesse a
verdade e que de bom grado refutava os outros, afirmando o
que era falso, e não menos satisfeito quando refutado do que
quando refutava, pois acreditava que não havia pior mal para o
homem do que uma opinião falsa acerca do justo e do injusto.
Um disputante implacável, que nada sabe, embora nenhum
homem tenha alcançado os extremos da sua inteligência
triunfante; um homem de temperamento imperturbável, de
uma lógica aterradora sempre ociosa e alegre, tão descuidado e
ignorante que desarmava os mais prudentes, atraindo-os para
as mais horríveis dúvidas e confusões da maneira mais
agradável. Porém, sabia sempre qual a saída; sabia, e, no
entanto, não a revelava. Não havia escapatória; arrastava-os
para escolhas terríveis por via dos seus dilemas e brinca com
os Hípias e os Górgias, com os seus nomes imponentes, como
um menino brinca com as suas bolas. O tirano realista! Ménon
discursava mil vezes, demoradamente, em torno da virtude,
diante de muitos e bastante bem, segundo lhe pareceu; porém,
agora, nem é capaz de dizer o que é, enfeitiçado que foi pelo
choque elétrico que é este Sócrates.
Este comediante obstinado, que divertia os jovens patrícios
com os seus estranhos conceitos, brincadeiras e bonomia, ao
passo que a fama dos seus ditos e subtilezas aumenta a cada
dia, parece afinal possuir uma probidade tão invencível como
a sua lógica e não ser nem louco nem, apesar da representação,
um entusiasta da sua religião. Quando acusado perante os
juízes de subverter as crenças populares, afirmou a
imortalidade da alma, a recompensa e a punição futuras; e,
porque recusou retratar-se, foi condenado à morte e enviado
para a prisão por um capricho do governo popular. Sócrates
entrou na prisão e repeliu toda a ignomínia do local, que não
podia ser uma prisão enquanto ele lá estivesse. Críton
subornou o carcereiro, mas Sócrates não quis sair por traição.
«Seja qual for o mal que disso resulte, nada deve ser preferido
em detrimento da justiça. Estas coisas que ouço como se
fossem flautas e tambores, não me deixam ouvir nada do que
dizes.»(19) A fama desta prisão, dos discursos que aí proferiu e
da ingestão da cicuta são uma das passagens mais valiosas na
história do mundo.
A rara coincidência do bobo e do mártir num corpo
malfeito, do mordaz polemista das ruas e mercados com o
mais doce dos santos conhecido pela história desse tempo
marcou violentamente Platão, tão capaz de assimilar estes
contrastes, e a figura de Sócrates colocou-se necessariamente
em primeiro plano, como o mais adequado dispensador dos
tesouros intelectuais que tinha para comunicar. Rara fortuna
essa de um Esopo da multidão e de um académico de túnica se
terem encontrado e imortalizado um ao outro através das suas
mútuas capacidades. A estranha síntese no carácter de Sócrates
coroava a síntese da mente de Platão. Além disso, por este
meio, mostrava-se capaz, de uma maneira direta e sem inveja,
de se servir do engenho e peso de Sócrates, a quem devia sem
dúvida bastante; por sua vez, foi da arte perfeita de Platão que
estes dotes extraíram a sua principal vantagem.
Resta dizer que o défice de Platão em poder
inevitavelmente advém da sua qualidade. O seu objetivo é
intelectual e, portanto, literário na sua expressão. Ascenda ele
aos céus, desça aos abismos, exponha ele as leis do Estado, a
paixão do amor, o remorso do crime, a esperança da alma que
se despede: ele é literário e nunca outra coisa. Talvez a única
carência de Platão seria a de os seus escritos não possuírem
aquela autoridade vital dos gritos dos profetas e dos sermões
dos árabes e judeus iletrados — relacionado, sem dúvida, com
esta soberania do intelecto no seu trabalho. Existe um
intervalo e o contacto é necessário para a coesão.
Não sei o que pode ser dito em resposta a esta crítica, a não
ser que tocámos um facto da natureza das coisas: um carvalho
não é uma laranja. As qualidades do açúcar mantêm-se no
açúcar e as do sal no sal.
Em segundo lugar, ele não possui um sistema. Os seus
maiores defensores e discípulos estão em falta. Tentou uma
teoria do universo e a sua teoria não está completa nem é
evidente por si mesma. Um pensa que ele quer dizer isto, outro
aquilo; afirmou uma coisa num lugar e o seu contrário noutro.
É acusado de ter falhado em estabelecer a transição das ideias
para a matéria. Aqui está o mundo, inteiro como uma noz,
perfeito, sem a mais pequena réstia de caos, sem costuras ou
fim, sem marcas de precipitação ou emendas ou dúvidas, mas
a teoria do mundo é uma coisa de fragmentos e remendos.
A onda mais longa perde-se rapidamente no mar. De bom
grado, Platão gostaria de ter um platonismo, uma expressão
conhecida e precisa para o mundo e que fosse exata. Teria sido
o mundo segundo a mente de Platão, nada menos do que isso.
Todo o átomo possuiria um matiz platónico; todo o átomo,
toda a relação ou qualidade já conhecidas, voltaríamos a
conhecer e a encontrar aqui de novo, mas agora ordenados; já
não natureza, mas arte. E sentiríamos, então, que Alexandre
invadira de facto, com homens e cavalos, alguns países do
planeta; mas os países, e as coisas de que os países são feitos,
os elementos, o próprio planeta, as leis do planeta e dos
homens, passaram para este homem como o pão para o seu
corpo, não sendo já pão, mas corpo; do mesmo modo, este
colossal fragmento tornou-se Platão. Ele agarrou os direitos de
autor do mundo. É esta a ambição do individualismo. Mas o
fragmento provou ser muito grande. A Boa constrictor(20) tem
vontade de o comer, mas é enganada. Fica a meio caminho; ao
morder, sufoca: o mundo mordido logo prende aquilo que o
morde pelos próprios dentes. Eis que morre; a natureza
invencível vive e esquece-se dele. É assim com tudo, e assim
deve acontecer com Platão. Sob o ponto de vista da natureza
eterna, Platão revela-se como exercício filosófico. Argumenta
de um lado e depois do outro. O mais perspicaz alemão, o
mais dedicado discípulo, nunca conseguiu dizer em que
consistia o platonismo; na verdade, podem citar-se textos dele
em todas as grandes questões a favor de cada um dos lados em
disputa.
Temos a obrigação de dizer estas coisas se quisermos levar
em conta o esforço de Platão, ou de qualquer filósofo, ao
servir-se da natureza, que não está disposta a deixar-se
dominar. Nenhum poder do intelecto teve alguma vez o menor
sucesso em explicar a existência. O enigma perfeito mantém-
se. Comete-se, porém, uma injustiça ao assumir esta ambição
em Platão. Não tratemos com leviandade o seu venerável
nome. Os homens, conforme o seu intelecto, admitiram as suas
reivindicações transcendentes. A maneira de o conhecer é
compará-lo não com a natureza, mas com outros homens.
Passou tanto tempo e mantém-se sem igual! Estrutura
principal do engenho humano, como Karnac ou as catedrais
medievais ou as ruínas etruscas, requer toda a extensão da
faculdade humana para o conhecer. Creio que o vemos do
modo mais fiel quando o vemos com o maior respeito. O seu
sentido aprofunda-se, os seus méritos multiplicam-se com o
estudo. Quando dizemos «aqui está uma bela coleção de
fábulas» ou quando louvamos o estilo, ou o senso comum, ou
a aritmética, falamos como meninos, e muita da nossa
impaciente crítica da dialética, suspeito eu, não é melhor. A
crítica é como a nossa impaciência com os quilómetros quando
estamos com pressa, mas, ainda assim, é melhor que um
quilómetro tenha mil metros. A visão ampla de Platão
proporcionou as luzes e sombras ao génio da nossa vida.
Platão: novas leituras
A publicação das excelentes traduções de Platão na «Serial
Library» do Sr. Bohn, que são para nós um dos principais
benefícios que a imprensa barata nos facultou, dá-nos uma
oportunidade de tirar apressadamente mais algumas notas
acerca da elevação e orientação desta estrela fixa ou
acrescentar um boletim, à semelhança dos periódicos, sobre as
últimas de Platão.
A ciência moderna, por via da extensão da sua
generalização, aprendeu a indemnizar o estudante do homem
com os defeitos dos indivíduos, traçando o crescimento e a
ascensão nas raças e gerando um sentimento de complacência
e esperança pelo simples expediente de iluminar os inúmeros
antecedentes. O ser humano tem o sáurio e a planta atrás de si.
As suas artes e ciências, o produto fácil do seu cérebro,
parecem gloriosas quando contempladas em perspetiva a partir
do distante cérebro do boi, crocodilo e peixe. É como se a
natureza, ao observar a noite geológica atrás de si, não ficasse
nada descontente com o resultado, porque, em cinco ou seis
milénios, produzira cinco ou seis homens como Homero,
Fídias, Manes e Colombo. Estas amostras atestam a virtude da
árvore. Eram uma clara melhora em relação às trilobites e
répteis, e uma boa base para um novo desenvolvimento. Para
este artista, o tempo e o espaço são baratos, e é insensível ao
que chamais preparação tediosa. Ela esperou tranquilamente
os períodos fluidos da paleontologia até soar a hora dos
homens aparecerem. Depois, outros períodos passaram antes
de se perceber o movimento da terra, antes de o mapa dos
instintos e dos poderes cultivados poder ser traçado. Todavia,
como as raças, também a sucessão dos indivíduos é fatal e
bela, e Platão tem a felicidade, na história da humanidade, de
marcar uma época.
A reputação de Platão não se apoia num silogismo nem em
nenhuma das obras-primas do pensamento socrático, nem em
nenhuma tese, como, por exemplo, a imortalidade da alma. Ele
é mais do que um perito, um professor, um geómetra ou o
profeta de uma mensagem singular. Ele representa o privilégio
do intelecto, o poder designadamente de elevar cada facto a
plataformas sucessivas e, assim, desvelar, em cada um deles,
um germe de expansão. Estas expansões pertencem à essência
do pensamento. O naturalista jamais nos conduziria a elas por
meio de uma qualquer descoberta da extensão do universo,
mas é tão pobre quando cataloga as estrelas da nebulosa de
Oríon como quando mede os ângulos de um campo. No
entanto, pode dizer-se que A República de Platão, dadas estas
expansões, requer a astronomia de Laplace, antecipando-a. As
expansões são orgânicas. A mente não cria o que perceciona,
não mais do que o olho cria a rosa. Ao atribuirmos a Platão o
mérito de as enunciar, queremos dizer simplesmente: aqui está
um homem mais completo, que poderia aplicar à natureza a
escala integral dos sentidos, da compreensão e da razão. Estas
expansões, ou extensões, consistem em prolongar a visão
espiritual quando o horizonte escapa à nossa visão natural e,
mediante esta segunda visão, descobrir as linhas longas da lei
que se projetam em todas as direções. Em todo o lado,
encontra-se num caminho sem fim, circundando
continuamente o universo. Por conseguinte, cada palavra
torna-se um expoente da natureza. Para onde quer que olhe,
revela um segundo sentido, e sentidos ocultos. A sua perceção
da geração de contrários, da morte a partir da vida e da vida a
partir da morte — essa lei segundo a qual, na natureza, a
decomposição é recomposição e a putrefação e a cólera são
apenas sinais de uma nova criação —, o seu discernimento do
pequeno no grande e do grande no pequeno, estudando o
Estado no cidadão e o cidadão no Estado e deixando em
dúvida se exibia A República como uma alegoria da educação
da alma pessoal; as suas belas definições das ideias, do tempo,
da forma, da figura, da linha, por vezes hipoteticamente dadas,
como a sua definição de virtude, coragem, justiça, moderação,
o seu amor pelo apólogo e os seus próprios apólogos, a
caverna de Trofónio, o anel de Giges, o cocheiro e os dois
cavalos, os temperamentos de ouro, prata, cobre e ferro,
Theuth e Tamos e as visões do Hades e das Moiras — fábulas
que se gravaram na memória humana como os signos do
zodíaco —, o seu olho soliforme e a sua alma boniforme(21), a
sua doutrina da assimilação, a sua doutrina da reminiscência, a
sua visão clara das leis de retorno, ou reação, que asseguram
justiça instantânea por todo o universo, visíveis por todo o
lado, mas especialmente na doutrina que afirma que «aquilo
que recebemos de Deus, regressa a Deus» e na crença de
Sócrates de que as leis inferiores são irmãs das leis superiores.
Outros exemplos notáveis são as suas conclusões morais.
Platão afirma a coincidência entre a ciência e a virtude, pois o
vício nunca pode conhecer-se a si mesmo e à virtude, e a
virtude conhece-se a si mesma e ao vício. O olho atestava que
a justiça era melhor, desde que fosse proveitosa; Platão
afirmava que era sempre proveitosa, que o proveito era
intrínseco, embora o justo oculte a sua justiça dos deuses e dos
homens; que é melhor sofrer a injustiça do que cometê-la; que
o pecador devia desejar ser punido; que a mentira era mais
danosa do que o homicídio e que a ignorância, ou a mentira
involuntária, era mais calamitosa do que o homicídio
involuntário; que a alma se vê privada a contragosto de
verdadeiras opiniões e que nenhum homem peca
deliberadamente; que a ordem ou processo da natureza era da
mente para o corpo e que, conquanto um corpo são não fosse
capaz de restaurar uma mente doente, uma boa alma podia, no
entanto, pela sua virtude, tornar o corpo o melhor possível. Os
inteligentes têm um direito sobre os ignorantes, em particular,
o direito de os instruir. O justo castigo para alguém que
desafina é fazê-lo tocar afinado, a multa que o bom deve pagar
quando recusa governar é ser governado por alguém pior; que
os seus guardiões não deviam lidar com ouro e prata, mas ser
instruídos de que existe ouro e prata nas suas almas, algo que
levará os homens a dar-lhes tudo o que eles precisarem.
A segunda visão explica a ênfase colocada na geometria.
Viu que o globo terrestre não possuía mais lei e precisão do
que o suprassensível, que uma geometria celestial se
estabelecera aí, como uma lógica de linhas e ângulos aqui em
baixo; que o mundo era inteiramente matemático, com
proporções constantes de oxigénio, azoto e cal; que há apenas
uma certa quantidade de água e ardósia e magnésia e que as
proporções constantes dos elementos morais não são menores.
Este Goethe mais velho, que odiava o polimento e a
falsidade, adorava revelar o real na base do acidental,
descobrir as relações, a continuidade e a representação em
todo o lado; odiava o isolamento, assomando-se, como o deus
da riqueza, nas cabanas dos mendigos, fazendo brotar poder e
capacidade de tudo o que toca. A ciência ética era nova e sem
expressão quando Platão escrevia assim:
[D]e todos vós, que vos proclamais defensores da
justiça, começando nos heróis de antanho, cujos discursos
se conservaram, até aos contemporâneos, ninguém jamais
censurou a injustiça ou louvou a justiça por outra razão
que não fosse a reputação, honrarias, presentes dela
derivados. Quanto ao que são cada uma em si e o efeito
que produzem pela sua virtude própria, pelo facto de se
encontrarem na alma do seu possuidor, ocultas a homens e
deus, ninguém jamais demonstrou suficientemente, em
prosa ou em verso, até que ponto uma é o maior dos males
que uma alma pode albergar, ao passo que a outra, a
justiça, é o maior dos bens.(22)
A sua definição das ideias como aquilo que é simples,
permanente, uniforme e existente por si mesmo, diferenciadas
para sempre das noções do entendimento, marca uma era no
mundo. Nasceu para contemplar o poder do espírito, que se
desenvolve a si mesmo, gerador inesgotável de novos fins,
poder esse que é a chave, ao mesmo tempo, da centralidade e
da evanescência das coisas. Platão é tão centrado que pode
muito bem dispensar todos os seus dogmas. Assim, o facto do
conhecimento e das ideias revela-lhe o facto da eternidade, e
ele oferece a doutrina da reminiscência como a mais provável
explicação. Digam que é extravagante: pouco importa; a
relação entre o nosso conhecimento e o abismo do ser continua
a ser real, e a explicação não deve ser menos grandiosa.
Assinalou todos os pontos eminentes da especulação.
Escreveu na escala do próprio espírito, de modo que todas as
coisas são simétricas na sua tabela. Juntou todo o passado sem
descanso e desceu ao detalhe com uma coragem semelhante à
que testemunhava na natureza. Dir-se-ia que os seus
precursores traçaram no mapa cada quinta, distrito ou ilha,
numa geografia intelectual, mas foi Platão quem primeiro
desenhou a esfera. Domesticou a alma na natureza: o homem é
o microcosmo. Todos os círculos do céu visível representam
outros tantos círculos na alma racional. Não há partícula sem
lei, nem há nada casual na ação da mente humana. Também os
nomes das coisas são fatais, seguindo a natureza das coisas.
Todos os deuses do panteão, pelo seu nome, denotam um
sentido profundo. Os deuses são ideias. Pã é discurso ou
manifestação; Saturno, o contemplativo; Júpiter, a alma régia e
Marte, a paixão. Vénus é proporção; Calíope, a alma do
mundo; Aglaia, a clareza intelectual.
*
Estes pensamentos apareceram amiúde a almas piedosas e
poéticas em lampejos de luz; mas eis que chega imperial este
refinado, omnisciente geómetra grego, que os reúne a todos
em posições e hierarquias, o Euclides da santidade, e casa as
duas partes da natureza. Antes de todos os homens, ele viu os
valores intelectuais do sentimento moral. Descreve o seu
próprio ideal quando retrata no Timeu um deus a ordenar as
coisas a partir da desordem. Acendeu um fogo tão vivo no
centro que vemos a esfera iluminada e podemos distinguir os
polos, o equador e as linhas de latitude, cada arco e nodo: uma
teoria tão equilibrada, tão modulada que se diria que os ventos
de todas as eras atravessaram esta estrutura rítmica e que não
foi um breve borrão extemporâneo de um escriba passageiro.
Resulta daqui que se diga que uma distinta classe de almas
platoniza, nomeadamente, aquelas que se comprazem em dar
uma expressão espiritual, isto é, ético-intelectual a toda a
verdade, exibindo um fim ulterior e, todavia, legítimo. Por
exemplo, Miguel Ângelo é um platónico nos seus sonetos.
Shakespeare é um platónico, quando escreve: «nada na
natureza se melhora / senão pelos meios da natureza»(23), ou:
Aquele que suporta
seguir com lealdade um senhor caído
conquista aquele que o seu senhor conquista
e ganha um lugar na história.(24)
Hamlet é um platónico puro, e só a magnitude do génio de
Shakespeare impede que o classifiquemos como o mais
eminente desta escola. Swedenborg, ao longo do seu poema
em prosa Amor Conjugal, é um platónico.
A sua subtileza recomenda-o a homens de pensamento. O
segredo do seu êxito popular é o propósito moral, que o fez
cativar a humanidade. «O intelecto», disse ele, «é o rei dos
céus e da terra»; em Platão, porém, o intelecto é sempre moral.
Os seus escritos contêm ainda a sempiterna juventude da
poesia. Na verdade, os seus argumentos, a maioria deles,
talvez pudessem ser redigidos em sonetos, e a poesia nunca se
elevou tão alto quanto no Timeu e no Fedro. Tal como o poeta,
também Platão é exclusivamente contemplativo. Não rompeu,
como Pitágoras, com uma instituição. Todas as suas descrições
n’A República devem ser consideradas míticas, com o intento
de divulgar, por vezes em cores violentas, o seu pensamento.
Não se pode fundar nada, sem o perigo do charlatanismo.
Era um plano grandioso, o seu absoluto privilégio para os
melhores (os quais, para enfatizar, expressava por meio de
uma comunidade de mulheres), o prémio que daria à grandeza.
Havia duas classes isentas: em primeiro lugar, aqueles que por
demérito se colocaram debaixo de proteção — os fora da lei;
em segundo, aqueles que por eminência da natureza e
merecimento estão fora do alcance das nossas recompensas;
deixemo-los livres da cidade e acima da lei. Confiamo-los a
eles próprios; que façam de nós aquilo que lhes aprouver. Que
ninguém ouse medir as irregularidades de Miguel Ângelo e
Sócrates com escalas vulgares.
No oitavo livro d’ A República, atira um pouco de poeira
matemática para os nossos olhos. Lamento vê-lo consentir a
mentira aos governadores depois de superioridades tão nobres.
Platão dá-se a liberdade de brincar à Providência com a classe
inferior, como as pessoas com os seus cães e gatos.
-
(9) Platão, A República, 503b. [N. do T.]

(10) Platão, Timeu, 29e–30a. (Tradução portuguesa: Lopes, Rodolfo (tradutor),


Platão, Timeu e Crítias, Coimbra, CECH, 2011.) [N. do. T.]

(11) Taylor, Thomas, The Six Books of Proclus, 1816. [N. do T.]

(12) Mania no original. Platão usava o termo para descrever o método da


comunicação direta através de um médium. A essa ocorrência Platão chamava
mania, ou loucura, divinamente inspirada. [N. do T.]

(13) Platão, Fedro, 249b. [N. do T.]

(14) Platão, A República, 450b. [N. do T.]

(15) Platão, Timeu, 47b–c. [N. do T.]

(16) Platão, A República, 527d–e. [N. do T.]

(17) Platão, Téages, 129e–130e. [N. do T.]

(18) Platão, Timeu, 28a-b. [N. do T.]

(19) Cf. Platão, Críton, 54d. [N. do T.]

(20) Jiboia. [N. do T.]

(21) No original, «his soliforme eye and his boniforme soul». «Soliforme» ou com a
forma do sol, «boniforme» ou com a forma da bondade. Não parece haver
equivalente em português, mas a partícula latina «forme» faz parte do léxico, pelo
que usaremos aqui os dois vocábulos. [N. do T.]

(22) Platão, A República, tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, 9.ª edição
(Lisboa: Fundação Calouste-Gulbenkian, 2001), 366e–367a. [N. do T.]
(23) Shakespeare, William, Vasconcelos, Filomena (trad.), O Conto de Inverno,
Porto, Campo das Letras, pp. 88–90. [N. do. T.]

(24) Shakespeare, William, António e Cleópatra, pp. 43–46. [N. do T.]


III

Swedenborg, ou o Místico
Entre pessoas eminentes, aqueles que são mais queridos
pelos homens não pertencem à classe que os economistas
designam de produtores: não têm nada nas mãos, não
cultivaram milho, nem pão, não estabeleceram uma colónia,
nem inventaram um tear. Uma classe superior, segundo o juízo
e amor desta raça edificadora de cidades e frequentadora de
mercados, são os poetas, que, a partir do reino intelectual,
alimentam o pensamento e a imaginação com ideias e imagens
que alçam os homens para fora do mundo do cereal e do
dinheiro e os consolam das insuficiências do dia e da baixeza
do trabalho e do comércio. Também o filósofo tem o seu valor
ao embelezar o intelecto deste trabalhador, ocupando-o com
subtilezas que o instruem em novas faculdades. Outros talvez
construam cidades; a tarefa dele é entendê-las e inspirar-lhes
reverência. Mas há outra classe que nos conduz para outra
região: o mundo da moral ou da vontade. O que é singular
nesta região do pensamento é a sua reivindicação. Onde quer
que entre o sentimento do justo, adquire prioridade sobre tudo
o resto. Com as outras coisas faço poesia, mas o sentimento
moral faz poesia comigo.
Pensei por vezes que aquele que traçasse a linha da relação
que subsiste entre Shakespeare e Swedenborg prestaria o
maior serviço à critica moderna. A mente humana mantém-se
em eterna perplexidade, exigindo inteligência, exigindo
santidade, impaciente por uma e outra em igual medida. O
reconciliador ainda não apareceu. Se nos cansamos dos santos,
Shakespeare é a nossa cidade de refúgio. Contudo, os instintos
ensinam agora que o problema da essência deve ter prioridade
sobre todos os outros. As questões de onde, o quê e para onde,
juntamente com a sua solução, devem estar na vida e não num
livro. Um drama ou poema é uma réplica aproximada ou
indireta; mas Moisés, Manes, Jesus trabalharam diretamente
no problema. A atmosfera do sentimento moral é a região da
grandeza que reduz toda a magnificência material a joguetes,
abrindo, porém, a todo o desgraçado que tenha razão, as portas
do universo. Com uma prontidão quase feroz faz descer o seu
império sobre o homem. Na linguagem do Alcorão: «Deus
disse: o Céu e a Terra, e tudo o que está entre eles, pensais vós
que os criámos por brincadeira e de que não retornareis a
nós?» É o reino da vontade, e ao inspirar a vontade, que é o
assento da personalidade, parece converter o universo numa
pessoa:
Os reinos do ser não se inclinam ante mais ninguém, não
só são todos teus, como são todos tu.
Todos os homens obedecem ao santo. O Alcorão cria uma
classe distinta daqueles que são bons por natureza, e cuja
bondade exerce influência sobre os outros, e proclama esta
classe o propósito da criação; as outas classes são admitidas no
banquete do ser, apenas se seguirem na sua esteira. E o poeta
persa exclama a uma alma desta índole:
Avança com ousadia e festeja no banquete do ser; foste tu
o convocado; os restantes são admitidos contigo.
O privilégio desta casta é o acesso aos segredos e estrutura
da natureza graças a um método mais elevado do que a
experiência. No discurso corrente, aquilo que se diz que um
homem aprende por experiência, um homem de extraordinária
sagacidade adivinha sem ela. Os Árabes dizem que Abdul
Khain, o místico, e Abu Ali Seena, o filósofo, conversavam e,
no momento da despedida, o filósofo disse: «Tudo o que ele
vê, eu sei»; e o místico disse: «Tudo o que ele sabe, eu vejo.»
Se nos perguntarmos a razão desta intuição, a solução levar-
nos-ia até àquela faculdade que Platão designava por
reminiscência e que está implícita na doutrina da
transmigração dos brâmanes. Tendo a alma nascido várias
vezes, ou, como dizem os hindus, «viajado pelo caminho da
existência através de milhares de nascimentos», tendo
contemplado as coisas que estão aqui, as que estão no Céu e as
que estão debaixo, não há nada que ela não tenha conhecido:
não espanta que seja capaz de recordar cada uma das coisas
que conheceu anteriormente.
Pois que, estando ligadas e relacionadas todas as coisas
na natureza, e tendo a alma conhecido todas as que
existiram até agora, nada impede que um homem que
tenha relembrado, ou, segundo um dito popular, tenha
«aprendido», deva recuperar todo o seu antigo
conhecimento e descobrir novamente o resto, se tiver
coragem e não se deixar desencorajar nas suas
investigações. Pois o investigar e o aprender são apenas
reminiscência.(25)
Ainda mais se aquele que inquire é uma alma sagrada e
divina! Pois é ao ser assimilada na alma original, pela qual, e a
partir da qual, todas as coisas subsistem, que a alma do homem
pode, então, facilmente fluir em todas as coisas e todas as
coisas fluírem nela; misturam-se, e ele está presente e em
harmonia com a sua estrutura e lei.
Este caminho é difícil, secreto e aterrador. Os antigos
chamavam-lhe êxtase ou ausência — um sair do corpo para
pensar. A história de todas as religiões contém traços do transe
dos santos — um estado de beatitude —, mas sem qualquer
sinal de alegria, séria, solitária, inclusive triste. «O voo»,
chamou-lhe Plotino, «do solitário até ao solitário»; Mnesiz
(Mnesis), o fechar dos olhos, de onde deriva a nossa palavra
místico. Os transes de Sócrates, Plotino, Porfírio, Böhme, John
Bunyan, George Fox, Pascal, Jeanne Guion, Swedenborg vêm
imediatamente à cabeça. Mas o que vem imediatamente à
memória é a doença que os acompanha. Esta beatitude chega
com o terror e choca a mente de quem a recebe. «Põe
demasiado barro na casa»(26) e leva o homem à loucura; ou
dá-lhe um pendor violento que tolda o seu juízo. Nos
principais exemplos de iluminação religiosa, misturou-se algo
mórbido, apesar do inquestionável aumento do poder mental.
Terá o maior bem de arrastar com ele uma qualidade que o
neutraliza e desacredita?
Na verdade, retira dos nossos feitos, quando elevados, toda
a essência do seu valor.(27)
Diremos que a mãe, económica, desembolsa tanta terra e
fogo, em peso e medida, para fazer um homem e não adiciona
um grama ainda que uma nação pereça por falta de um líder?
Logo, os homens de Deus compram a sua ciência com loucura
e dor. Se tivéssemos carbono puro, carbúnculo ou diamante
para tornar o cérebro transparente, o tronco e os órgãos seriam
grosseiros: em vez de porcelana, seriam a terra, argila ou barro
dos oleiros.
Nos tempos modernos, nenhum outro exemplo ilustre deste
tipo de mente introvertida se manifestou além de Emanuel
Swedenborg, nascido em Estocolmo, em 1688. Este homem,
que era, aos olhos dos seus contemporâneos, um visionário e
elixir de raios lunares, levou a vida mais real de todos os
homens surgidos até então no mundo; e agora, quando os
Fredericos reais e ducais, os Cristierns e Brunswicks dessa
época caíram no esquecimento, ele começa a disseminar-se
pelas mentes de milhares. Como acontece com os grandes
homens, ele parece, graças à variedade e quantidade dos seus
poderes, ser uma composição de várias pessoas, como os
frutos gigantes que amadurecem nos jardins pela união de
quatro ou cinco flores distintas. A sua estrutura é de grande
escala e possui as vantagens do tamanho. Assim como é mais
fácil ver o reflexo de uma enorme esfera em grandes globos,
embora danificados por algumas rachas ou manchas, do que
em gotas de água, também os homens de grande calibre, ainda
que algo excêntricos ou loucos, como Pascal ou Newton,
ajudam-nos mais do que mentes medíocres equilibradas.
A sua juventude e formação não podia deixar de ser
extraordinária. Um rapaz desta natureza não sabia assobiar ou
dançar, mas desbravava minas e montanhas, perscrutando a
química e a ótica, a fisiologia, a matemática e a astronomia,
em busca de imagens adequadas à medida do seu cérebro
versátil e capaz. Foi um estudioso desde a infância e educado
em upssala. Aos vinte e dois anos, foi nomeado assessor da
Junta de Minas por Carlos XII. Em 1726, ausentou-se de casa
durante quatro anos e visitou as universidades de Inglaterra,
Países Baixos, França e Alemanha. Realizou um feito notável
de engenharia em 1718, durante o cerco de Frederikshald, ao
rebocar por terra duas galés, cinco barcos e uma chalupa ao
longo de cerca de catorze milhas inglesas. Em 1721, viajou
pela Europa para examinar minas e trabalhos de fundição.
Publicou, em 1716, o seu Daedalus Hyperboreus, e, desde
então, nos trinta anos seguintes, entregou-se à composição e
publicação dos seus trabalhos científicos. Com a mesma
intensidade, entregou-se à teologia. Em 1743, quando tinha
cinquenta e quatro anos, teve início aquilo a que se chamou a
sua iluminação. Toda a sua metalurgia e transporte de navios
por terra foi absorvido por este êxtase. Deixou de publicar
livros científicos, retirou-se dos labores práticos e devotou-se à
escrita e publicação das suas volumosas obras teológicas,
impressas à sua custa, ou à custa do duque de Brunswick, ou
de outro príncipe em Dresden, Leipzig, Londres ou
Amesterdão. Mais tarde, demitiu-se do cargo de assessor; o
salário continuou a ser-lhe pago ao longo da vida. Os seus
deveres conduziram-no à esfera íntima do rei Carlos XII, por
quem foi muito consultado e homenageado. O mesmo favor
foi-lhe prestado pelo seu sucessor. Durante a Dieta de 1751, o
conde Hopken disse que as mais sólidas dissertações sobre
finanças vinham da sua pena. Na Suécia, pareceu granjear um
respeito assinalável. O seu raro saber e habilidade prática,
assim como a fama adicional de uma segunda visão e
conhecimentos e dons religiosos extraordinários, atraíram para
si rainhas, nobres, clero, capitães da marinha e pessoas que
circulavam pelos portos por onde tinha o costume de passar
nas suas muitas viagens. O clero interferiu um pouco com a
importação e publicação das suas obras religiosas, mas isso
não pareceu intrometer-se na amizade com os homens de
poder. Nunca se casou. Possui grande modéstia e modos
gentis. Os seus hábitos eram simples; vivia de pão, leite e
vegetais e habitava uma casa situada num vasto jardim. Ia
várias vezes a Inglaterra, onde não parece ter atraído nenhuma
atenção dos eruditos ou dos notáveis, morrendo em Londres,
em 29 de março de 1772, de apoplexia, aos oitenta e cinco
anos. Foi descrito, durante a sua estada em Londres, como um
homem de modos tranquilos e clericais, não adverso a chá ou
café e terno com as crianças. Usava espada quando vestia um
fato completo de veludo e, sempre que saía, levava uma
bengala de castão de ouro. Existe um conhecido retrato dele
com um casaco e peruca antigos, mas a face possui um ar vago
e distraído.
O génio que entraria na ciência da época com uma ciência
bastante mais subtil, que passaria as fronteiras do espaço e do
tempo, que se aventuraria no obscuro reino do espírito e
tentaria fundar uma nova religião no mundo iniciou as suas
lições em pedreiras e fornalhas, em fundições e cadinhos, em
estaleiros e salas de dissecação. Talvez nenhum outro esteja
habilitado a ajuizar os méritos das suas obras em tantas
matérias. É uma alegria saber que os seus livros sobre minas e
metais são dignos de elevada estima por aqueles que percebem
destes assuntos. Parece ter antecipado muita da ciência do
século XIX; antecipou, em astronomia, a descoberta do sétimo
planeta, mas, desgraçadamente, não do oitavo; antecipou as
visões da astronomia moderna no que toca à génese da Terra
pelo Sol; no magnetismo, algumas das mais importantes
experiências e conclusões de estudiosos posteriores; na
química, a teoria atómica; na anatomia, as descobertas de
Schlichting, Monro e Wilson; e foi o primeiro a demonstrar a
função dos pulmões. O seu excelente editor inglês,
magnanimamente, não salientou as suas descobertas, visto que
era demasiado grande para se preocupar em ser original, e
teremos de julgar aquilo que resta pelo que dispensou.
Alma colossal, estende-se muito além do seu tempo,
incompreendido por ele, exigindo uma grande distância focal
para ser visto; sugere, como Aristóteles, Bacon, Selden,
Humboldt, que uma certa vastidão de aprendizagem, ou quase
omnipresença da alma humana na natureza, é possível. Como
se de uma torre se tratasse, a sua soberba especulação sobre a
natureza e as artes, sem nunca perder de vista a textura e
sequência das coisas, quase concretiza a sua própria
representação, nos Principia, da integridade original do
homem. Além do mérito das suas descobertas particulares,
está o mérito capital da sua homogeneidade. Uma gota de água
tem as propriedades do mar, mas não pode exibir uma
tempestade. Existe beleza num concerto, como numa flauta,
força numa multidão, como num herói, e, em Swedenborg,
aqueles que melhor conhecem os livros modernos irão admirar
mais o mérito do conjunto. Um dos missouriums(28) ou
mastodontes da literatura não pode ser avaliado por faculdades
inteiras de académicos vulgares. A sua forte presença
estremeceria as togas universitárias. Os nossos livros são
falsos por serem fragmentários; as suas frases são bons mots, e
não partes de um discurso natural, expressões infantis de
surpresa ou prazer na natureza ou, pior ainda, devedoras à sua
petulância da sua fugaz notoriedade, ou aversão pela ordem da
natureza, ao serem mera curiosidade ou excentricidade,
intencionalmente em desarmonia com a natureza e
propositadamente imaginadas para gerar surpresa, à maneira
dos ilusionistas que ocultam o seu truque. Swedenborg, porém,
é sistemático e respeitador do mundo em cada frase: todos os
meios são dispostos ordenadamente, as suas faculdades
funcionam com pontualidade astronómica, e a sua escrita
admirável é isenta de presunção ou egoísmo.
Swedenborg nasceu numa atmosfera de grandes ideias. É
difícil dizer o que é seu e, no entanto, dignificou a sua vida
com imagens sublimes do universo. O robusto método
aristotélico, com a sua amplitude e conformidade, humilhando
a nossa lógica estéril e linear em virtude da sua radiação
genial, versada em séries e graus, em efeito e fins, hábil em
discriminar poder de forma, essência de acidente e, abrindo,
por via da sua terminologia e definição, largos caminhos até à
natureza, treinou uma raça inteira de filósofos atléticos.
William Harvey demostrara a circulação do sangue; William
Gilbert que a terra era um íman; Descartes, instruído pelo
magnete de Gilbert, com o seu vórtice, espiral e polaridade,
enchera a Europa com a influente ideia do movimento espiral
como o segredo da natureza. Newton, no ano em que
Swedenbog nasceu, publicou os Principia e definiu a
gravidade universal. Marcello Malpighi, seguindo as nobres
doutrinas de Hipócrates, Leucipo e Lucrécio, enfatizara o
dogma de que a natureza labuta no mais pequeno — tota in
minimis existit natura. Dissecadores incomparáveis, Jan
Swammerdam, Antonie van Leeuwenhoek, Jacob Winsløw,
Bartolomeo Eustachi, Lorenz Heister, Andreas Vesalius,
Herman Boerhaave, nada escapou ao seu escalpelo e
microscópio na anatomia comparativa ou humana; Lineu, seu
contemporâneo, afirmava, na sua bela ciência, que «a natureza
é sempre igual a si mesma»; e, por último, a nobreza do
método, a mais ampla aplicação de princípios, exibida por
Leibniz e Christian Wolff na cosmologia, enquanto Locke e
Grócio extraiam o argumento moral. Que restava a um génio
do mais alto calibre senão ir ao seu terreno e verificar e unir?
É fácil ver, nestas mentes, a origem dos estudos de
Swedenborg e o prenúncio dos seus problemas. Ele tinha a
capacidade de manter e de dar vida a estes volumes de
pensamento. No entanto, a proximidade destes génios, um ou
outro dos quais introduzira todas as suas principais ideias, fez
de Swedenborg mais um exemplo da dificuldade, mesmo para
um génio altamente fértil, de provar originalidade, o primeiro
nascimento e enunciação de uma das leis da natureza.
Nomeou as suas ideias favoritas de Doutrina das Formas,
Doutrina das Séries e Graus, Doutrina do Influxo, Doutrina da
Correspondência. A sua exposição destas doutrinas merece ser
estudada nos seus livros. Nem todos os conseguem ler, mas
recompensarão aqueles que o fizerem. As suas obras
teológicas são importantes para as ilustrar. Os seus escritos
seriam biblioteca bastante para um estudante solitário e
atlético, e a Economia do Reino Animal é um desses livros
que, graças a uma dignidade constante de pensamento,
constitui uma honra para a humanidade. Estudara espatos e
metais com um propósito. O seu conhecimento variado e
sólido torna o seu estilo lustroso de pontos e espículas agudas
de pensamento, à semelhança de uma dessas manhãs de
inverno quando o ar cintila de cristais. A grandeza dos tópicos
faz a grandeza do estilo. Tinha aptidão para a cosmologia, em
virtude dessa perceção nativa da identidade que tornava o
tamanho insignificante para si. No átomo do ferro magnético,
observou a qualidade que iria gerar o movimento espiral do
Sol e do planeta.
Os pensamentos em que habitava eram a universalidade de
cada lei da natureza, a doutrina platónica da escola ou
gradação, a versão ou conversão de cada um no outro e, por
conseguinte, a correspondência de todas as partes, o segredo
subtil de que o pequeno explica o grande, e o grande o
pequeno, a centralidade do homem na natureza e a conexão
que subsiste em todas as coisas. Observou que o corpo
humano era estritamente universal ou um instrumento através
do qual a alma alimenta e é alimentada pela totalidade da
matéria, de modo que defendeu, em exato antagonismo aos
céticos, que «quanto mais sábio um homem é, mais ele será
um devoto da divindade». Em suma, ele foi um crente da
filosofia da identidade, a qual não defendia ociosamente, como
os sonhadores de Berlim ou Boston, mas que experimentou e
estabeleceu ao longo de anos de trabalho, com a coragem e a
força do mais rude viking que a sua dura Suécia alguma vez
enviou para a guerra.
Esta teoria data dos mais antigos filósofos e talvez extraia a
sua melhor explicação do mais recente. É esta: que a natureza
itera os seus meios perpetuamente em planos sucessivos.
Segundo o velho aforismo, a natureza é sempre semelhante a
si mesma. Na planta, o olho ou o ponto de germinação abre-se
a uma folha, depois a outra folha, com o poder de transformar
a folha em radícula, estame, gineceu, pétala, bráctea, sépala ou
semente. Toda a arte da planta consiste em repetir eternamente
folha após folha, enquanto o maior ou menor calor, luz,
humidade e alimento determina a forma que assumirá. No
animal, a natureza cria uma vértebra ou uma espinha de uma
vértebra e ajuda-se a si mesma com uma nova espinha, com
uma capacidade limitada de modificar a sua forma — espinha
após espinha até ao fim do mundo. Um anatomista poético
contemporâneo ensina que uma cobra, porque é uma linha
horizontal, e um homem, porque é uma linha ereta, constituem
um ângulo reto; e que, entre as linhas deste quadrante místico,
todos os seres animados têm o seu lugar; e assume que o
verme-cabelo, ou a lagarta ou a cobra como o tipo ou
prenúncio da espinha. Visivelmente, no final da espinha, a
natureza faz que cresçam espinhas mais pequenas, como se
fossem braços; no final dos braços, novas espinhas, como se
fossem mãos; na outra extremidade, ela repete o processo,
como se fossem pernas e pés. No cimo da coluna, faz nascer
outra espinha, que se dobra ou enrola sobre si mesma, como
uma lagarta, numa bola, e forma o crânio com outras
extremidades; as mãos são agora o maxilar superior, os pés o
maxilar inferior, os dedos das mãos e pés são, desta feita,
representados pelos dentes superiores e inferiores. Esta nova
espinha destina-se a usos mais sofisticados. É um novo
homem nos ombros do anterior. Quase que pode dispensar o
seu tronco e viver sozinho, de acordo com a ideia platónica no
Timeu. No seu interior, num plano acima, repete-se o que
ocorreu com o tronco. A natureza recita a sua lição novamente
num tom mais elevado. A mente é um corpo mais refinado e
reassume as suas funções de alimentar, digerir, absorver,
excluir e gerar, num elemento novo e etéreo. Aqui reside todo
o processo de alimentação repetido, na aquisição, comparação,
digestão e assimilação da experiência. Eis novamente o
mistério da geração repetida. No cérebro estão as faculdades
masculinas e femininas: aqui está o matrimónio, aqui está o
fruto. E não há limite para esta escala ascendente, mas séries
após séries. No final do seu uso, cada coisa é conduzida ao
próximo, com cada série a repetir exatamente cada órgão e
processo do anterior. Estamos adaptados à infinitude. Somos
difíceis de agradar e gostamos de tudo o que não acabe: e na
natureza não há fim, mas todas as coisas, no final do seu uso,
são alçadas a um nível superior e a ascensão destas coisas
assoma a naturezas demoníacas e celestiais. Como um
compositor musical, a força criativa repete sem cessar uma
simples ária ou tema, agora alto, depois baixo, a solo, em coro,
dez mil vezes reproduzida até cobrir a Terra e o Céu com o
canto.
Tal como é explicada por Newton, a gravitação é boa, mas
é mais grandiosa quando descobrimos que a química se
resume a uma extensão da lei das massas em partículas e que a
teoria atómica mostra que a ação da química também é
mecânica. A metafísica apresenta-nos uma espécie de
gravitação, igualmente operativa nos fenómenos mentais, e a
terrível catalogação dos estatistas franceses reduz qualquer
fragmento de capricho ou humor a rácios numéricos. Se um
homem em vinte mil, ou em trinta mil, come sapatos ou casa
com a avó, conclui-se que, em cada vinte mil, ou trinta mil,
existe um homem que come sapatos ou casa com a avó. O que
chamamos de gravitação, e supomos como algo definitivo, é
uma confluência de uma corrente mais poderosa para a qual
não temos ainda nome. A astronomia é excelente, mas deve
fazer parte da vida para adquirir o seu completo valor e não se
manter ali em globos e espaços. O glóbulo de sangue gira em
torno do seu próprio eixo nas veias humanas, como o planeta
no céu, e os círculos da inteligência relacionam-se com os dos
céus. Toda a lei da natureza possui uma universalidade
idêntica: comer, dormir ou hibernar, rodar, gerar, metamorfose,
movimento em espiral, que pode ver-se no ovo como nos
planetas. Estas grandes rimas ou voltas na natureza — o rosto
querido e mais bem conhecido que nos surpreende a cada
momento, sob uma máscara tão inesperada que pensamos ser o
rosto de um estranho, elevando a semelhança a formas divinas
— deliciaram o olho profético de Swedenborg, e deve
reconhecer-se nele um líder nessa revolução, que, por oferecer
à ciência uma ideia, deu a um acumulado inútil de
experiências um guia e forma e coração pulsante.
Confesso, com algum pesar, que as suas obras impressas
compreendem cerca de cinquenta sólidos volumes in octavo,
com os seus trabalhos científicos a perfazer cerca de metade
do número total e parece que o conjunto de manuscritos ainda
por editar se mantém na biblioteca real em Estocolmo. Os
trabalhos científicos só agora foram traduzidos para inglês,
numa excelente edição.
Swedenborg publicou estes livros científicos ao longo de
dez anos, entre 1734 e 1744, tendo sido negligenciados desde
então, e agora, após o seu século se ter completado, encontrou
finalmente um discípulo no Sr. Wilkinson, em Londres, um
crítico filosófico, com um vigor igual de compreensão e
imaginação comparável apenas a Lorde Bacon, que
desenterrou os livros do seu mestre e os trouxe à luz do dia,
para os passar, com todos os benefícios, do seu esquecido
latim para inglês, de maneira a darem a volta ao mundo na
nossa língua comercial e conquistadora. Este surpreendente
reaparecimento de Swedenborg no seu discípulo após cem
anos não é algo menos notável na sua história. Auxiliado, diz-
se, pela munificência do Sr. Clissold, e também pela sua
capacidade literária, fez-se esta porção de justiça poética. Os
admiráveis textos preliminares com os quais o Sr. Wilkinson
enriqueceu esses três volumes, lançando toda a filosofia
contemporânea inglesa para a sombra, não me deixando nada
para acrescentar no seu próprio terreno.
O Reino Animal é um livro de méritos espantosos. Foi
escrito com o propósito mais nobre — para unir ciência e
alma, há muito apartadas uma da outra. Era uma explicação
anatomista do corpo humano no mais elevado estilo poético.
Nada pode ultrapassar o ousado e brilhante tratamento de um
tema normalmente tão árido e repulsivo. Ele viu a natureza
«entrelaçar-se numa espiral eterna, com rodas que não se
gastam em eixos que nunca rangem», procurando por vezes
«desvelar esses recessos secretos onde a natureza está sentada
junto ao fogo nas profundezas do seu laboratório», embora o
quadro seja recomendável pela dura fidelidade com que se
baseia na anatomia prática. É extraordinário que este génio
sublime decida, perentoriamente para o analítico, contra o
método sintético e afirme cingir-se a uma experiência rígida
num livro cujo génio representa uma arriscada síntese poética.
Ele conhece, ainda que só ele, o fluir da natureza e quão
sensata era a velha resposta de Amósis àquele que o ordenou
beber o mar — «sim, de bom grado, se parares os rios que
desaguam nele». Poucos conheceram tanto acerca da natureza
e das suas maneiras subtis ou expressaram mais subtilmente as
suas moções. Pensava que a natureza fazia uma exigência tão
grande à nossa fé quanto os milagres: «Notava que no seu
processo desde os primeiros princípios até às suas diversas
subordinações, não havia estado pelo qual não passasse, como
se o seu caminho atravessasse todas as coisas.»
Pois sempre que ela se eleva acima dos fenómenos
visíveis ou, por outras palavras, se retira para dentro de si
mesma instantaneamente, por assim dizer, desaparece sem
que ninguém saiba o que aconteceu ou para onde foi, pelo
que é necessário tomar a ciência como guia ao seguir os
seus passos.
Prosseguir a investigação à luz de um fim ou causa final,
confere uma vivacidade maravilhosa, uma espécie de
personalidade a toda a sua escrita. Este livro anuncia os seus
dogmas preferidos. A antiga doutrina de Hipócrates de que o
cérebro é uma glândula, e a de Leucipo, de que o átomo pode
ser conhecido pela massa, ou, em Platão, a de que o
macrocosmo pode ser conhecido através do microcosmo; e,
nos versos de Lucrécio:
Ossa uidelicet e pauxillis atque minutis
ossibus hic et de pauxillis atque minutis
uisceribus uiscus gigni sanguenque creari
sanguinis inter se multis coeuntibus guttis
ex aurique putat micis consistere posse
aurum et de terris terram concrescere paruis,
ignibus ex ignis, umorem umoribus esse[.]
[Em primeiro lugar, ele denomina
homeomeria] os ossos serem formados
por ossos pequeníssimos e diminutos,
e as vísceras por vísceras diminutas, e diz que o sangue
é criado por muitas gotas de sangue que se juntam umas às
outras,
que o ouro pode ser formado de bocadinhos de ouro,
que a terra se aglomera a partir de pequenos torrões,
o fogo a partir de fogos, que a água é formada de águas[.]
(29)
Versos que Malpighi resumiu na sua máxima de que «a
natureza existe inteira no mais pequeno», são um dos
pensamentos preferidos de Swedenborg.
É uma lei constante do corpo orgânico, a de que as
formas grandes, compostas ou visíveis existem e subsistem
a partir das formas mais pequenas, simples e, em última
instância, invisíveis, que atuam à semelhança das grandes,
mas mais perfeitamente e de modo mais universal, e que o
mais pequeno se forma tão perfeitamente que envolve uma
ideia representativa do seu universo inteiro.
As unidades de cada órgão são outros tantos órgãos
pequenos, homogéneos com o seu composto: as unidades da
língua são pequenas línguas, as do estômago, pequenos
estômagos, as do coração são pequenos corações. Esta ideia
fecunda oferece-nos uma chave para todos os segredos. O que
era demasiado pequeno para ser detetado pelo olho era
decifrado pelo agregado; o que era demasiado grande, pelas
unidades. Não existe fim para a aplicação dele do pensamento.
«A fome é um agregado de muitas fomes menores, ou perdas
de sangue pelas pequenas veias ao longo do corpo.» Também é
uma chave para a teologia dele:
O homem é uma espécie de céu minúsculo,
correspondendo ao mundo dos espíritos e do céu. Toda a
ideia particular do homem, e cada afeto, sim, a mais
pequena parcela de afeto é uma imagem e efígie dele. Um
espírito pode ser conhecido unicamente por um
pensamento. Deus é o grande homem.
A intrepidez e minúcia do seu estudo da natureza exige
igualmente uma teoria das formas:
A ordem de ascensão das formas é do mais baixo para o
mais elevado. A forma mais baixa é angular, ou terrestre e
corpórea. A segunda forma e que está logo acima é a
circular, que é designada ainda de perpétuo-angular,
porque a circunferência de um círculo é um ângulo
perpétuo. A forma acima desta é a espiral, origem e
medida das formas circulares: os seus diâmetros não são
retilíneos, mas diversamente circulares e possuem uma
superfície esférica como centro; são, por isso, chamados
perpétuo-circulares. A forma acima desta é a vorticosa, ou
perpétuo-espiral; a seguir, a perpétuo-vorticosa ou
celestial; por último, a perpétuo-celestial ou espiritual.
Seria estranho que um génio tão audacioso devesse ainda
dar um último passo, crendo que podia alcançar a ciência de
todas as ciências, desvendando o significado do mundo? No
primeiro volume do seu Reino Animal, aborda o assunto num
comentário notável:
Na nossa doutrina das representações e
correspondências, trataremos de ambas as semelhanças,
simbólicas e típicas, e das coisas extraordinárias que
ocorrem, não direi que somente no corpo vivo, mas por
toda a natureza e que correspondem tão completamente às
coisas supremas e espirituais que se juraria que o mundo
físico era puramente simbólico do mundo espiritual; tanto
que, se escolhermos expressar qualquer verdade natural em
termos vocais físicos e definitivos, e converter esses
termos apenas para os termos espirituais e
correspondentes, conseguiremos por este meio obter uma
verdade espiritual, ou dogma teológico, em lugar da
verdade ou preceito físico, embora nenhum mortal tenha
predito que algo do género pudesse suceder pela simples
transposição literal, visto que um preceito, considerado
separadamente do outro, parece não ter relação alguma
com ele. Daqui em diante, pretendo comunicar um certo
número de exemplos de tais correspondências, juntamente
com um vocabulário contendo os termos das coisas
espirituais, bem como das coisas físicas que irão substituir.
Este simbolismo atravessa o corpo vivo.
O facto, assim explicitado, está implícito em toda a poesia,
na alegoria, na fábula, no uso de emblemas e na estrutura da
linguagem. Platão sabia-o, como é evidente pela sua linha
dividida em dois, no sexto livro d’A República. Lorde Bacon
percebeu que verdade e natureza diferiam apenas como o selo
e a impressão e avançou algumas proposições físicas com a
sua tradução num sentido moral ou político. Böhme, e todos os
místicos, têm esta lei implícita na sua escrita sombria e
enigmática. Os poetas — visto que o são — usam-na, mas só a
conhecem como o íman foi conhecido durante muito tempo:
como um brinquedo. Swedenborg foi o primeiro a enunciar o
facto autónoma e cientificamente, porque era habitual para ele
e nunca deixou de o ver. Estava presente, como já explicámos,
na doutrina da identidade e iteração, pois as séries mentais
correspondem exatamente às séries materiais. Requer uma
visão que consiga hierarquizar as coisas em ordem e em série,
ou melhor, requer uma tal exatidão da posição, que os polos do
olho devem coincidir com os eixos do mundo. A terra
alimentou a sua humanidade durante cinco ou seis milénios e
criou ciências, religiões, filosofias; e, no entanto, falhou em
ver a correspondência de significado entre umas partes e
outras. Ademais, até hoje, a literatura não produziu um único
livro no qual o simbolismo das coisas esteja cientificamente
exposto. Dir-se-ia que, mal os homens tenham o primeiro
vislumbre de que cada objeto sensível — animal, rocha, rio, ar
—, mais do que isso, espaço e tempo, não subsiste por si
mesmo, nem afinal por um fim material, mas como uma
imagem-linguagem para contar uma outra história dos seres e
deveres, uma outra ciência surgirá, e uma ciência de um tal
pressentimento absorveria todas as faculdades, permitindo a
cada homem perguntar o significado de todos os objetos.
Porque me mantém o horizonte firmemente neste centro, com
a minha alegria e dor? Porque apreendo eu o mesmo sentido
em inúmeras vozes distintas e percebo um facto nunca
expressado totalmente em infindáveis imagens-linguagens?
Contudo, seja porque essas coisas não foram intelectualmente
aprendidas ou porque muitos séculos tenham de passar para
elaborar e compor uma alma tão rara e opulenta, não existe
cometa, camada rochosa, fóssil, peixe, quadrúpede, aranha ou
fungo que, por si mesmo, não interesse mais os académicos e
classificadores do que o significado e resultado da estrutura
das coisas.
Mas Swedenborg não se contentava com o uso culinário do
mundo. Aos cinquenta e quatro anos, estes pensamentos
agarraram-no e a sua mente profunda aceitou a perigosa
opinião, demasiado frequente na história religiosa, de que era
uma pessoa fora do vulgar a quem teria sido concedido o
privilégio de conversar com anjos e espíritos, e este êxtase
associou-se unicamente a esta função de explicar o valor moral
do mundo sensível. A uma perceção adequada da ordem da
natureza, ao mesmo tempo alargada e pormenorizada,
acrescentou a compreensão das leis morais nos seus aspetos
sociais mais vastos; todavia, o que quer que tenha visto na sua
constituição por meio de uma excessiva determinação formal,
não viu abstratamente, mas em imagens, ouviu em diálogos,
elaborou-o como acontecimentos. Quando tentou anunciar a
lei de um modo mais sensato, foi forçado a expressá-la em
parábolas.
A psicologia moderna não oferece outro exemplo similar
de equilíbrio perturbado. Os poderes principais continuam a
manter uma ação salutar e, para um leitor que consiga fazer as
devidas concessões no relato às peculiaridades do relator, os
resultados ainda são instrutivos e um testemunho mais
surpreendente das sublimes leis que enunciou do que esse
equilíbrio sensaborão permitiria. Ele tenta dar uma ideia do
modus do novo estado ao afirmar que «a sua presença no
mundo espiritual é acompanhada de uma certa separação, mas
apenas no que concerne à parte intelectual da sua mente, não à
parte da vontade»; afirma ainda que «vê, com a visão interna,
as coisas que existem numa outra vida mais claramente do que
vê as coisas que existem neste mundo».
Tendo adotado a crença de que alguns livros do Novo e do
Velho Testamento eram alegorias precisas, ou escritas no
modo angélico ou extático, passou os anos que lhe restavam a
desenredar o sentido universal do literal. Tomou de
empréstimo a Platão a encantadora fábula de «um povo
antiquíssimo, homens melhores do que ele, e que habitavam
mais próximos dos deuses», à qual Swedenborg acrescentou
que eles usavam a terra simbolicamente, que estes, quando
viam objetos terrestres, não perdiam um segundo a pensar
neles, mas apenas no que eles significavam. A
correspondência entre pensamentos e coisas ocupou-o daí em
diante: «A própria forma orgânica assemelha-se ao fim inscrito
nela.» um homem é, em geral e em particular, uma justiça ou
injustiça organizada, egoísmo ou gratidão. E a causa para esta
harmonia indicou-a nos Arcana: «A razão pela qual uma e
todas as coisas, nos céus e na terra, são representativas está em
existirem a partir de um influxo do Senhor, através do céu.»
Esta intenção de exibir tais correspondências — que, se
adequadamente levada a cabo, seria o poema do mundo, no
qual toda a história e ciência desempenharia um papel
essencial — foi reduzida e derrotada pela direção
exclusivamente teológica que as suas investigações tomaram.
A sua perceção da natureza não é humana e universal, mas
mística e hebraica. Ele fixa cada objeto natural a uma noção
teológica: um cavalo significa a compreensão carnal; uma
árvore, a perceção; a Lua, a fé; um gato significa isto; uma
avestruz, aquilo; uma alcachofra, aqueloutro; e liga
precariamente cada símbolo a um sentido eclesiástico
diferente. O esquivo Proteu não se deixa apanhar tão
facilmente. Na natureza, cada símbolo individual desempenha
inúmeros papéis, assim como cada partícula de matéria circula
por sua vez ao longo de todo o sistema. A identidade central
permite a cada símbolo expressar sucessivamente todas as
qualidades e tonalidades do ser real. Na transmissão das águas
celestiais, todas as mangueiras encontram a sua boca de
incêndio. A natureza vinga-se prontamente do insuportável
pedantismo que acorrentaria as suas ondas. Ela não é
literalista. Tudo deve ser considerado de uma perspetiva
genial, e temos de estar no auge da nossa condição para
compreender alguma coisa corretamente.
O seu pendor teológico estreitou assim, fatalmente, a sua
interpretação da natureza, e o dicionário dos símbolos está
ainda por escrever. Mas o intérprete, por que a humanidade
tem ainda de esperar, não encontrará antecessor que se tenha
aproximado tanto do verdadeiro problema.
Swedenborg denomina-se, a si mesmo, na capa dos seus
livros, «Servo do Senhor Jesus Cristo» e, pela força do
intelecto e de facto, ele é o último Padre da Igreja e não é
provável que tenha sucessor. Não admira que a profundidade
da sua sabedoria ética lhe garanta influência como professor.
Deixou entrar novamente a natureza na atrofiada igreja
tradicional rendida a catecismos áridos, e o devoto, escapando
da sacristia de verbos e textos, fica surpreso por se descobrir
uma parte do todo da sua religião. A sua religião pensa por ele
e é de aplicação universal. Ele vira-a de todos os lados,
interpreta e dignifica cada circunstância. Em lugar de uma
religião que o visita diplomaticamente três ou quatro vezes —
quando nasce, quando se casa, quando adoece e quando morre,
nunca interferindo nele o resto do tempo —, aqui estava um
ensinamento que o acompanhava todo o dia, inclusive no sono
e sonhos; no seu pensamento, mostrando-lhe a longa
ascendência dos seus pensamentos; na sociedade, mostrando-
lhe as afinidades que o amarram aos seus iguais e pares; nos
objetos naturais, mostrando-lhe a sua origem e significado,
aqueles que são benéficos e aqueles que são prejudiciais, e
abrindo-lhe o mundo futuro, indicando a continuidade das
mesmas leis. Os seus discípulos alegam que o seu intelecto
ganha novo vigor através do estudo dos seus livros.
Não há problema semelhante para a crítica como os seus
textos teológicos, tão imperiosos são os seus méritos e, no
entanto, devem ser retiradas algumas conclusões sérias. A sua
imensa e arenosa prolixidade é como a pradaria, ou o deserto,
e as suas incongruências são uma espécie de último delírio. É
superfluamente explicativo, e o seu sentimento da ignorância
dos homens, estranhamente exagerado. Os homens assumem
as verdades desta natureza muito rapidamente. Ainda assim,
ele abunda em asserções: é um grande explorador, e das coisas
que mais queremos saber. O seu pensamento habita
semelhanças essenciais, como a semelhança de uma casa com
o homem que a construiu. Viu as coisas de acordo com a sua
lei, segundo a similitude da função, não da estrutura. Existe
um método e ordem invariáveis no pronunciamento da sua
verdade, o processo habitual da mente do mais íntimo para o
mais exterior. Que seriedade e que força, sem nunca desviar o
olhar, sem um assomo de vaidade ou um olhar para si mesmo
ou de uma qualquer forma vulgar de orgulho literário! um
teórico ou homem especulativo, mas que nenhum homem
prático no universo pode desprezar. Platão é um homem de
toga: as suas roupas, conquanto púrpura e quase tecidas no
céu, são uma túnica académica e impedem a ação com as suas
dobras volumosas. Este místico, todavia, é terrível para César.
O próprio Licurgo se curvaria.
A compreensão moral de Swedenborg, a correção dos erros
populares, o anúncio de leis éticas eximem-no a qualquer
comparação possível com outro escritor moderno, garantindo-
lhe um lugar, há muito desocupado, entre os legisladores da
humanidade. Essa influência lenta, mas imponente, que
adquiriu, como a de outros génios religiosos, tem de ser
igualmente excessiva, e com as suas marés, antes de desaguar
num equilíbrio permanente. Como é óbvio, aquilo que é real e
universal não pode ser confinado ao círculo daqueles que
simpatizam estritamente com o seu génio, mas passará à
reserva comum do pensamento sábio e justo. O mundo tem
uma química certa com a qual extrai o que é excelente nos
seus filhos, deixando cair as infirmidades e limitações das
melhores mentes.
A metempsicose, que é conhecida na antiga mitologia dos
gregos — coligida em Ovídio — e na transmigração indiana,
onde é objetiva, ou tem realmente lugar nos corpos por uma
vontade estranha, possui, em Swedenborg, um carácter mais
filosófico. É subjetiva, ou depende inteiramente do
pensamento da pessoa. Todas as coisas no universo se dispõem
de novo em cada pessoa de acordo com o amor que as
governa. O homem é aquilo que o seu afeto e pensamento são.
O homem é homem em virtude do querer e não em virtude do
conhecer e compreender. Tal qual é, assim vê. Os casamentos
do mundo rompem-se. Os interiores associam-se no mundo
espiritual. O que quer que os anjos considerassem era, para
eles, celestial. Satã aparece a si mesmo como um homem; para
aqueles tão maus quanto ele, um homem gracioso; para os
purificados, um monte de carne putrefacta. Nada resiste
estático, tudo gravita, semelhantes que atraem semelhantes;
aquilo a que chamamos justiça poética ocorre imediatamente.
Viemos a um mundo que é um poema vivo. Tudo é como eu
sou. Ave e besta não são ave e besta, mas emanação e eflúvio
das mentes e vontades dos homens nele presentes. Todos
fazem a sua própria casa e estado. Os fantasmas são
atormentados com o medo da morte e não conseguem lembrar-
se que morreram. Os que se encontram no mal e na falsidade
têm medo de todos os outros. Aqueles que se privaram da
caridade vagueiam e fogem; as sociedades das quais se
aproximam descobrem o seu carácter e expulsam-nos. Os
gananciosos imaginam-se, a si mesmos, a habitar celas onde o
seu dinheiro é depositado, infestadas de ratos. Os que
reconhecem mérito nas boas obras imaginam-se a cortar lenha.
«Perguntei-lhes se não estavam cansados. Responderam que
ainda não haviam trabalhado o suficiente para merecer o céu.»
Pronuncia frases de ouro que expressam com singular
beleza as leis éticas, como quando proferiu a célebre frase: «no
céu, os anjos avançam continuamente para a primavera da sua
juventude, de maneira que o mais velho parece o mais novo»;
«quantos mais anjos, mais espaço»; «a perfeição do homem
está em amar a utilidade»; «o homem, na sua forma perfeita, é
o céu»; «o que vem Dele é Ele»; «os fins ascendem sempre
que a natureza descende» e a explicação verdadeiramente
poética da escrita no mais íntimo céu, que, por consistir em
inflexões segundo a forma do céu, pode ser lida sem instrução.
Chega quase a justificar a sua alegação de visões
preternaturais por meio de estranhas revelações da estrutura do
corpo e mente humanos: «No céu, a ninguém é permitido
posicionar-se atrás de outro e ver a parte posterior da cabeça,
pois, nesse caso, o influxo que vem do Senhor é perturbado.»
Os anjos, pelo som da sua voz, conhecem o amor de um
homem, pela articulação do som, a sua sabedoria e, pelo
sentido das suas palavras, a sua ciência.
No Amor Conjugal, expõe a ciência do casamento. Deste
livro, seria possível dizer-se que, com os elementos mais
elevados, fracassou. Esteve perto de ser o Hino do Amor, que
Platão tentou no Banquete; o amor que, diz Dante, Casella
cantou entre os anjos no Paraíso e que, devidamente celebrado,
na sua génese, fruição e efeito, pode muito bem arrebatar as
almas ao revelar a génese de todas as instituições, costumes e
atitudes.(30) O livro podia ter sido grandioso se o hebraísmo
tivesse sido omitido e a lei afirmada sem goticismo, como
ética e com aquela intenção de ascensão de estado que a
natureza das coisas requer. É um belo desenvolvimento
platónico da ciência do casamento, ensinar que o sexo é
universal e não local, que a virilidade no homem qualifica
cada órgão, ato e pensamento, e a feminidade na mulher. Em
consequência, no mundo real ou espiritual, a união nupcial não
é momentânea, mas incessante e total, e a castidade não é
total, mas uma virtude universal, sendo a falta dela descoberta
tanto no comércio, na agricultura, no discurso, no ato de
filosofar, como na geração; e, embora as virgens que viu no
Céu fossem belas, as mulheres eram incomparavelmente mais
belas, aumentando sempre mais e mais a sua beleza.
No entanto, à sua maneira, Swedenborg fixou a teoria numa
forma temporária. Ele exagera a circunstância do casamento e,
conquanto encontre falsos casamentos na terra, imagina uma
escolha mais sábia no céu. Porém, nas almas progressivas,
todos os amores e amizades são momentâneos. Amas-me?
significa «vês a mesma verdade?». Se sim, somos felizes na
mesma felicidade; mas em breve um de nós terá a perceção de
uma nova verdade, divorciamo-nos e nenhuma tensão na
natureza nos manterá juntos. Eu sei quão delicioso é este
cálice de amor: eu a existir para ti, tu a existires para mim.
Mas não passa de um agarrar-se de criança ao seu brinquedo,
uma tentativa de eternizar a lareira e o quarto nupcial, de
manter o alfabeto em imagens, que tão bom serviço prestou
nas primeiras lições que recebemos. O Éden de Deus é
despojado e grandioso; como a paisagem exterior recordada
junto à lareira noturna, tem um ar frio e desolador, enquanto
nos aconchegamos nas brasas; no entanto, uma vez lá
novamente fora, apiedamo-nos daqueles que trocaram a
magnificência da natureza pela luz das velas e cartas de jogo.
Talvez o verdadeiro tema do Amor Conjugal seja a
conversação, cujas leis são profundamente excluídas. É falso
se literalmente aplicado ao casamento. Pois Deus é o noivo ou
noiva da alma. O Céu não é o emparelhamento dos dois, mas a
comunhão de todas as almas. Conhecemo-nos e vivemos um
instante no templo de um pensamento único e separamo-nos,
como se não nos separássemos, para nos unirmos a outro
pensamento em outras irmandades de alegria. Muito longe de
existir algo divino no sentido vulgar e de posse do «Amas-
me?», é só quando me deixas, me perdes e te entregas a um
sentimento que é mais elevado do que nós os dois que eu me
aproximo e me vejo ao teu lado, repelido, contudo, se fixas o
olhar em mim e exiges amor. De facto, no mundo espiritual,
mudamos de sexo a todo o instante. Tu amas o que é valioso
em mim, e eu sou então teu marido; mas o que prende o amor
não sou eu, mas o que é de valor, e o que é de valor é uma gota
num oceano de valor que está para lá de mim. Entretanto, eu
adoro o maior valor em outro e torno-me, assim, sua mulher.
Ele aspira a um valor maior noutro espírito e é mulher e
recetor dessa influência.
Independentemente de o interrogar-se a si mesmo devido à
preocupação com os pecados a que os homens de pensamento
eram propensos ser ou não um hábito adquirido, desenvolveu,
ao deslindar e demonstrar essa forma particular de doença
moral, uma clarividência à qual nenhuma consciência pode
resistir. Refiro-me ao seu pressentimento da profanação do
pensamento por aquilo que é bom «segundo os cientistas»:
«Raciocinar sobre a fé é duvidar e negar.» Era penosamente
sensível à diferença entre conhecer e fazer, e esta sensibilidade
é incessantemente expressa. Os filósofos são, portanto,
víboras, basiliscos, áspides, hemorroidas, sacerdotes e
serpentes voadoras; os homens de letras são conjuradores e
charlatães.
Mas este tópico indica uma triste reflexão posterior: a de
que encontramos aqui o lugar da sua própria dor. É possível
que Swedenborg tenha sofrido a sanção das faculdades
introvertidas. O sucesso, ou um génio afortunado, parece
depender de um feliz ajustamento entre coração e cérebro, de
uma proporção adequada, difícil de alcançar, entre poder
moral e mental, que obedecerá, porventura, à lei daqueles
rácios químicos que tornam necessária uma proporção em
volumes para a combinação, como quando os gases se
combinam em certas taxas fixas, mas não numa qualquer. É
difícil transportar um cálice cheio, e este homem, tão
profusamente dotado de coração e mente, cedo se sentiu em
perigoso desacordo consigo mesmo. No seu Reino Animal,
surpreende-nos ao declarar que amava a análise e não a
síntese; e agora, aos cinquenta anos, mostra-se preocupado
com o seu intelecto e, embora saiba que nem a verdade nem a
bondade são solitárias, mas que ambas se devem misturar e
casar, entra em guerra com a sua mente, toma o partido da
consciência contra a inteligência, traduzindo-a e renegando-a
sempre que pode. A violência é imediatamente vingada. A
beleza perde a graça, o amor torna-se desamoroso quando a
verdade, uma das metades do céu, é negada, tal como quando
uma amargura nos homens de talento conduz à sátira e destrói
o juízo. Ele é sábio, mas é sábio a despeito dele próprio. Sente-
se um ar de dor infinita e um som de pranto por todo o seu
universo sinistro. Um vampiro ocupa o lugar do profeta e
volta-se com um apetite sombrio para as imagens de
sofrimento. De facto, uma ave não faz mais rápido o seu
ninho, nem uma toupeira fura o chão, do que este visionário de
almas constrói um novo inferno e abismo, um mais
abominável do que o outro, em torno de cada novo grupo de
ofensores. Foi descido por uma coluna que parecia de bronze,
mas era formada de espíritos angélicos para que pudesse cair
em segurança entre os infelizes e testemunhasse a devastação
das almas, ouvindo aí, durante largo tempo, as suas
lamentações; viu os seus torturadores que aumentavam e
reforçavam as aflições até ao infinito; viu o inferno dos
impostores, o inferno dos assassinos, o inferno dos lascivos, o
inferno dos ladrões que matam e fervem os homens, os
infernos excrementícios, o inferno dos vingativos, com rostos
semelhantes a um bolo redondo e grande e braços que giram
como uma roda. Com exceção de Rabelais e Dean Swift,
ninguém possuiu uma tal ciência da imundície e corrupção.
Estes livros devem ser usados com cautela. É perigoso
esculpir estas evanescentes imagens do pensamento.
Verdadeiras quando em transição, tornam-se falsas quando
fixas. Requerem, para a sua justa apreensão, de um génio
quase igual ao seu. Mas no momento em que as suas visões se
tornam a linguagem estereotipada das multidões, de todas as
idades e aptidões, são pervertidas. Como parte da sua
educação, o sábio povo da raça grega estava acostumado a
iniciar os jovens mais inteligentes e virtuosos nos mistérios de
Elêusis, através dos quais, com muita pompa e circunstância,
eram ensinadas as verdades mais elevadas da sabedoria antiga.
Um jovem fogoso e contemplativo, aos dezoito ou vinte anos,
talvez lesse certa vez um destes livros de Swedenborg, estes
mistérios de amor e consciência, atirando-o, de seguida, fora
para sempre. O génio é constantemente assombrado por
sonhos similares, quando os infernos e os céus se abrem para
ele. Estas imagens devem, porém, ser consideradas místicas,
isto é, não como a verdade, mas como uma imagem da
verdade algo arbitrária e acidental. Qualquer outro símbolo
serviria: pode então ser visto em segurança.
Ao sistema do mundo de Swedenborg falta uma
espontaneidade central; é dinâmico, não-vital e carece do
poder de gerar vida. Nele, o indivíduo não existe. O universo é
um gigantesco cristal cujos átomos e lâminas jazem numa
ordem contínua e com uma unidade inquebrantável, embora
fria e imóvel. O que parece um indivíduo e uma vontade não o
é. Existe uma imensa cadeia de intermediação, desde o centro
até aos extremos, que priva a ação de toda a liberdade e
carácter. O universo, no poema de Swedenborg, é afetado por
um sono magnético e só reflete a mente do magnetizador. Os
pensamentos penetram em cada mente por influência de uma
sociedade de espíritos que a rodeia, infiltrando-se a partir de
uma outra mais elevada e assim sucessivamente. Todos os seus
tipos significam as mesmas poucas coisas. Todas as suas
figuras dizem o mesmo. Todos os seus interlocutores
swedenborguizam. Sejam eles quem forem, acabam sempre
por ter a mesma abordagem. Este Caronte leva-os a todos no
seu barco: reis, conselheiros, cavaleiros, doutores, Sir Isaac
Newton, Sir Hans Sloane, o rei Jorge II, Maomé ou quem quer
que seja, e todos adquirem uma severidade de tom e estilo. Só
quando surge Cícero, o nosso gentil visionário vacila um
pouco ao dizer que falou com Cícero, notando, com um toque
de comedimento: «um que me levou a crer que era Cícero» e,
quando o soi-disant romano abre a boca, Roma e a eloquência
desaparecem e surge o puro teólogo Swedenborg, como em
tudo o resto. Os seus céus e infernos são apagados, falhos de
individualismo. As mil e uma relações humanas estão
ausentes. O valor natural associado a cada homem, porque ele
está certo quando erra e errado quando está certo, porque
desafia todos os dogmatismos e classificações e precisa de
levar em conta concessões, contingências e possibilidades
futuras, porque é forte graças aos seus vícios e amiúde
paralisado pelas suas virtudes, dissipa-se numa plena simpatia
pela sua sociedade. Esta falha reage no centro do sistema.
Embora a ação do «Senhor» seja referida pelo nome em cada
linha, ela nunca chega a ganhar vida. Não há brilho nesse olho
que fita desde o centro e que devia animar a imensa
dependência dos seres.
O vício da mente de Swedenborg é a sua determinação
teológica. Não há nele aquela largueza de vistas da sabedoria
universal, mas estamos sempre como numa igreja. A musa
hebraica que ensinou o conhecimento popular do certo e do
errado aos homens exerceu sobre ele a mesma influência
excessiva que exerceu sobre as nações. O modo, tal como a
essência, era sagrado. A Palestina é sempre mais valiosa como
um capítulo da história universal e menos como um elemento
acessível à educação. O génio de Swedenborg, a maior de
todas as almas modernas no departamento do pensamento,
dissipou-se no esforço de reanimar e conservar o que já
atingira a sua conclusão natural e que, na grande providência
secular, já se retirara da sua preeminência diante dos modos de
pensamento e expressão ocidentais. Swedenbog e Böhme
falharam ambos por se ligarem ao símbolo cristão em
detrimento do sentimento moral que alberga em si inúmeros
cristianismos, humanidades, divindades.
O excesso de influência mostra-se na incongruente
importação de uma retórica estrangeira: «Que tenho eu que
ver», questiona-se o leitor impaciente:
com o jaspe e a sardónica, o berilo e a calcedónia, com
arcas e páscoas, efás e éfodes, com lepra e tumores, com
ofertas santas e pão ázimo, carros de jogo, dragões
coroados e com cornos, com monstros e unicórnios? Se
bons para os Orientais, para mim não valem nada. Quanto
mais conhecimentos usas para os explicares, mais notória é
a impertinência. Quanto mais coerente e elaborado é o
sistema, menos gosto dele. Direi, como os Espartanos:
«Porque falas tão a propósito daquilo que não tem
propósito?» O meu conhecimento é aquele que que me foi
dado por Deus no nascimento e hábito, no deleite e estudo
dos meus olhos e não pelos de outro. De todos os absurdos,
o mais desnecessário parece-me ser o de um qualquer
estrageiro pretender tirar-me a minha retórica e substituí-la
pela sua, divertindo-me com pelicanos e cegonhas em vez
de tordos e piscos, com palmeiras e acácias em vez de
sassafrás e nogueiras americanas.
Locke disse: «Deus, quando fez o profeta, não desfez o
homem.»(31) A história de Swedenborg valida o comentário.
As disputas paroquiais da Igreja Sueca entre os amigos e
inimigos de Lutero e Melanchthon relativamente à questão da
«fé» e das «obras» intrometeram-se nas suas especulações em
torno da economia do universo e das sociedades celestes. O
filho do bispo luterano, para quem os céus se abriram para que
visse com os seus olhos, e nas suas formas mais ricas, a
terrível verdade das coisas — pronunciando nos seus livros,
uma vez mais, como se sob um mandato celestial, os
indiscutíveis segredos da natureza moral —, com todas as
grandezas sobre ele, permanece o filho do bispo luterano, os
seus juízos são os de um polemista sueco e a sua vasta
argumentação resulta de limitações adamantinas. Leva a sua
controversa memória consigo, nas suas visitas às almas. É
como Miguel Ângelo, que, nos frescos, punha o cardeal que o
ofendera a assar debaixo de uma montanha de demónios; ou,
como Dante, que se vingou, em melodias vingativas, de todos
as ofensas pessoais; ou, porventura, ainda mais como o pároco
de Montaigne, que, se uma tempestade passasse sobre a aldeia,
pensava que o Dia do Juízo Final chegara e que os canibais já
tinham a pevide. Swedenborg não nos confunde menos com as
dores de Melanchthon e Lutero e Wolfius e com os seus
próprios livros, que dá a conhecer entre os anjos.
Muitos dos seus dogmas estão limitados pelo mesmo
obstáculo teológico. A sua posição fundamental em moral é a
de que os males devem ser evitados como pecados. Mas
aquele que pensa que ainda fica terreno por ocupar depois de
dizer que o mal deve ser evitado como mal não sabe o que é o
mal ou o bem. Não duvido de que foi levado pelo desejo de
incluir o elemento da personalidade da divindade. Mas nada é
acrescentado. Um homem, diz-se, tem medo de erisipelas:
mostrai-lhe que esse medo é um mal; ou outro que tem medo
do Inferno: mostrai-lhe que o medo é um mal. Aquele que ama
a bondade abriga anjos, reverencia a reverência e vive com
Deus. Quanto menos tivermos que ver com os nossos pecados,
melhor. Nenhum homem pode permitir-se gastar o seu tempo
em compunções: «É um dever ativo», dizem os hindus, «que
não tem que ver com a nossa servidão; é conhecimento que
serve para a nossa libertação; todos os outros deveres só são
bons para nos cansar.»
Outro dogma que deriva desta perniciosa limitação
teológica é este Inferno. Swedenborg tem demónios. O mal,
segundo os antigos filósofos, é o bem em potência. Que a
malignidade pura possa existir é a proposição extrema da
incredulidade. Não deve ser defendida por um agente racional:
é ateísmo, a última profanação. Eurípedes disse com razão:
A bondade e o ser são um nos deuses;
Aquele que lhes imputa o mal redu-los a nada.
A que dolorosa perversão chegou a teologia gótica para que
Swedenborg não admitisse qualquer conversão aos espíritos
maus! Apesar disso, o esforço divino nunca relaxa; a carne
putrefacta ao sol converter-se-á em relva e flores, e o homem,
ainda que em bordéis, prisões ou pelourinhos, está sempre a
caminho daquilo que é bom e verdadeiro. Robert Burns, com o
humor selvagem da sua apóstrofe ao «pobre velho Nickie
Ben», «Ah, se ao menos pensasses e te emendasses!», supera
este teólogo vingativo. Tudo é superficial e morre, exceto o
amor e a verdade. O sentimento maior é sempre o mais
verdadeiro e, por isso, sentimos o espírito mais generoso do
indiano Vixnu:
Sou o mesmo para toda a humanidade. Não existe um
que seja digno do meu amor ou ódio. Estou naqueles que
me servem com admiração, e eles em mim. Se aquele cuja
maneira de proceder é absolutamente malvada me serve
apenas a mim, é tão respeitável quanto o homem justo; no
final, acaba por prestar um bom serviço e, em breve, se
tornará um espírito virtuoso e obterá a felicidade eterna.
Quanto à reivindicação anómala de revelações do outro
mundo, só a sua probidade e génio lhe dão direito a uma
consideração séria. As suas revelações destroem o seu crédito
ao entrarem no detalhe. Se um homem afirma que o Espírito
Santo o informou de que o Juízo Final (ou o último dos juízos)
ocorreu em 1757, ou que, no outro mundo, os Holandeses,
assim como os Ingleses, vivem num céu só para eles, respondo
que o Espírito, que é santo, é reservado, taciturno e trata com
leis. Os rumores de fantasmas e duendes cavaqueiam e
predizem o futuro. As lições do Espírito supremo são sóbrias
e, em relação aos indivíduos, negativas. O génio de Sócrates
não o aconselhou a agir ou a procurar, mas, se ele se
propusesse fazer algo menos benéfico, dissuadia-o. «Não sei o
que Deus é», disse, «mas sei o que não é.» Os hindus
denominaram o Ser Supremo «controlo interno». Os
iluminados quakers explicam a sua Luz não como algo que os
conduz à ação, mas aparentemente como uma obstrução a algo
que não se adequa. No entanto, os melhores exemplos são as
experiências privadas, que são unânimes a este respeito. Em
rigor, a revelação de Swedenborg é uma confusão de planos,
uma ofensa capital num categorizador tão instruído. Isto
significou elevar a lei da superfície até ao plano da substância,
elevar o individualismo e as suas fanfarronices até ao reino das
essências e das generalidades, o que implica deslocação e
caos.
O segredo do Céu é guardado época após época. Nenhum
anjo imprudente ou sociável alguma vez deixou cair uma
sílaba prematura que respondesse aos anseios dos santos e
receios dos mortais. Escutaríamos de joelhos um qualquer
eleito que, em estrita obediência, estabelecesse um paralelo
entre os seus pensamentos e as correntes celestiais e sugerisse
aos ouvidos humanos a paisagem e a circunstância da alma
recém-partida. Porém, é certo que precisa de se ajustar ao que
é melhor na natureza. Não pode ser inferior em tom aos já
conhecidos trabalhos do artista que talha os globos do
firmamento e redige a lei moral. Deve ser mais vivo do que o
arco-íris, mais sólido do que as montanhas, em harmonia com
as flores, as marés e com o nascer e pôr das estrelas de outono.
Poetas melodiosos serão rudes como baladas populares quando
a penetrante tónica da natureza e do espírito soar: o ritmo da
terra, do mar, do coração que cria a música ao som da qual o
sol rola, e o glóbulo de sangue e a seiva das árvores.
É com este ânimo que ouvimos o rumor de que o visionário
chegou e contou o seu conto. Mas não há beleza ou céu, antes
anjos e duendes. A musa adora a noite e a morte e o abismo. O
seu Inferno é mesmérico. O seu mundo espiritual possui a
mesma relação com as generosidades e alegrias da verdade —
que as almas humanas já nos deram a conhecer — que os
pesadelos de um homem mantêm com a sua vida ideal. É, de
facto, muito semelhante, no poder infindável das imagens
sinistras, aos fenómenos do sonho, que, a cada noite,
transformam muitos cavalheiros honestos, benevolentes, mas
dispépticos em miseráveis que se escondem como cães no
exterior de quintais e canis de criação. Quando sobe ao Céu,
não ouço a sua linguagem. Um homem não tem de me dizer
que caminhou entre os anjos, a sua prova está em fazer de mim
um graças à sua eloquência. Serão os arcanjos menos
majestosos e doces do que as figuras que caminharam
verdadeiramente sobre a Terra? Estes anjos que Swedenborg
pinta não nos dão uma ideia muito elevada da sua disciplina e
cultura: são todos párocos de aldeia, cujo céu é uma fête
champêtre, um piquenique evangélico ou uma distribuição
francesa de prémios a camponeses virtuosos. Que homem
estranho, escolástico, didático, desapaixonado, exangue,
aquele que identifica as classes de almas como um botânico
classifica o género Carex e visita infernos dolorosos como
visitaria estratos de cré ou horneblenda! Não tem simpatia
alguma. Sobe e desce o mundo dos homens como um
Radamanto de bengala com castão de ouro e peruca,
distribuindo as almas, indiferente e com a aparência de um
árbitro. Esse mundo quente, de climas variados e povos
apaixonados é, para ele, uma gramática de hieróglifos ou uma
procissão emblemática de maçons. Quão diferente é Jacob
Böhme! Ele tremula de emoção e ouve respeitosamente, com a
mais branda humanidade, o Professor, cujas lições transmite, e
quando assevera que «num certo sentido, o amor é maior do
que Deus», o seu coração bate tão forte que o batimento contra
o seu casaco de couro é audível através dos séculos. É uma
grande diferença. Böhme é saudável e belamente sábio, não
obstante a estreiteza e incomunicabilidade mística.
Swedenborg é desagradavelmente sábio, e, com todos os seus
dons acumulados, paralisa e repele.
O sinal mais evidente de uma grande natureza é o de nos
abrir para um amplo terreiro e, à semelhança do alento das
paisagens matinais, de nos incitar a avançar. Swedenborg é
retrospetivo e não podemos privá-lo da sua picareta e
mortalha. Certas mentes estarão para sempre refreadas de
descer à natureza; outras, para sempre impedidas de se elevar
para fora dela. Com a força de muitos homens, nunca
conseguiu romper o cordão umbilical que o mantinha preso à
natureza e não ascendeu ao plano dos puros génios.
É impressionante que este homem, que, graças à sua
perceção dos símbolos, observou a construção poética das
coisas e a relação primordial entre a mente e a matéria, tenha
permanecido inteiramente desprovido de qualquer instrumento
de expressão poética criado por essa perceção. Se conhecia a
gramática e os rudimentos da sua língua materna, porque não
conseguia converter uma só linha em música? Seria como
Saadi, que, na sua visão, planeou encher o regaço de flores
celestiais como presentes para os amigos, mas a fragância das
rosas intoxicava-o tanto, que a saia lhe caiu das mãos? Ou será
que reportar é uma transgressão dos costumes dessa sociedade
dos céus? Ou será que teve a visão intelectualmente, daí essa
censura do intelectual que permeia os seus livros? Seja como
for, os seus livros não têm melodia, emoção, humor, nenhum
alívio do nível seco e prosaico. No seu imaginário profuso e
exato, não existe prazer, porque não há beleza. Vagamos
desolados numa paisagem sem brilho. Não há pássaro que
cante nestes jardins de mortos. A completa ausência de poesia
numa mente tão transcendente é indicadora de doença e, como
uma voz rouca numa pessoa bonita, configura uma espécie de
aviso. Penso, por vezes, que não será lido muito mais tempo.
O seu grande nome reduzir-se-á a uma frase. Os seus livros
tornaram-se um monumento. Os seus louros estão tão
misturados com cipreste, um bafo de ossário mistura-se de tal
modo com o incenso do templo, que rapazes e raparigas
fugirão do lugar.
Porém, nesta imolação do génio e fama no altar da
consciência, reside um mérito sublime superior a qualquer
elogio. Viveu com um propósito: dar um veredicto. Elegeu a
bondade como a chave que a alma deve seguir neste labirinto
da natureza. Muitas opiniões diferem quanto ao verdadeiro
centro. Num naufrágio, uns agarram-se ao cordame, outros a
tonéis e barris, alguns a vergas, outros aos mastros; o piloto
escolhe com conhecimento: «Fico aqui; afundarei antes disto;
quem me seguir chegará a terra.» Não confieis no favor
celeste, ou na compaixão pela loucura, ou na prudência, no
senso comum, o velho costume e principal oportunidade dos
homens; nada vos manterá a salvo — nem o destino, nem a
saúde, nem o intelecto admirável; ninguém vos salvará, exceto
a retidão, só e sempre a retidão! E, com uma tenacidade que
nunca vacila em todos os seus estudos, invenções, sonhos,
adere a essa escolha corajosa. Penso nele como um devoto da
transmigração das lendas da Índia que diz: «embora seja um
cão, ou chacal, ou formiga, nos últimos rudimentos da
natureza, sob qualquer tegumento ou ferocidade, adiro ao que
é justo como à sólida escada que leva ao homem e a Deus».
Swedenborg prestou um duplo serviço à humanidade, que
só agora começa a ser conhecido. Deu os primeiros passos na
ciência e prática experimental, observou e enunciou as leis da
natureza e, ascendendo por graus equitativos, dos
acontecimentos até aos seus picos e causas, foi consumido
pela piedade diante das harmonias que experienciou e
abandonou-se às suas alegrias e culto. Foi este o seu primeiro
serviço. Se a glória era demasiado brilhante para que os seus
olhos a suportassem, se ficava abismado num êxtase de prazer,
mais excelente era o espetáculo que via, as realidades do ser
que irradiavam e resplandeciam através dele e que nenhuma
infirmidade do profeta permitia obscurecer; e prestou um
segundo, e passivo, serviço aos homens, não menor do que o
primeiro, talvez, no grande círculo do ser e nas retribuições da
natureza espiritual, não menos glorioso ou menos belo para si
mesmo.
-
(25) Cf. com a tradução portuguesa de Gomes, Ernesto (trad.), Platão, Ménon,
Lisboa, Colibri, 1993, 81d. [N. do T.]
(26) «And o’er-informed the tenement of clay», verso de Dryden do poema
«Absalom and Achitophel». [N. do T.]

(27) Shakespeare, William, Hamlet, Ato I, Cena 4, vv. 20–22. [N. do T.]

(28) Termo latino que surgiu em meados do século XIX para designar um grande
esqueleto fóssil encontrado no estado do Missouri, que lhe deu o nome. [N. do T.]

(29) Lucrécio, Cerqueira, Luís (trad.), Da Natureza das Coisas, Lisboa, Relógio
d’Água, 2015, Livro I, vv. 835–841. [N. do T.]

(30) Cf. Alighieri, Dante, Purgatório, in A Divina Comédia, Canto II, v. 112 e ss.
[N. do T.]

(31) Locke, John, Soveral, Eduardo de (trad.), Ensaio Sobre o Entendimento


Humano, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 976. [N. do T.]
IV

Montaigne, ou o Cético
Todo o facto se relaciona, por um lado, com a sensação e,
por outro, com a moral. O jogo do pensamento está, quando
um destes dois lados aparece, em descobrir o outro: dado o
superior, descobrir o inferior. Não há nada tão pequeno que
não tenha estas duas faces e, quando o observador viu o
anverso, gira-o e vê o reverso. A vida é um lançar de moeda,
cara ou coroa. Nunca nos cansamos deste jogo, porque ainda
sentimos um ligeiro estremecimento de espanto ao ver a outra
face, ao contrastar ambas. O sucesso exalta o homem, que se
lembra do que esta boa sorte significa. Negocia com ardor nas
ruas, mas acontece que é igualmente comprado e vendido. Vê
a beleza de um rosto humano e procura a causa dessa beleza,
que deve ser mais bela. Constrói a sua fortuna, observa as leis,
cuida dos filhos, mas pergunta-se porquê e para onde vai. Esta
cara e coroa são chamadas, na linguagem da filosofia, infinito
e finito, relativo e absoluto, aparente e real e muitos outros
nomes belos.
Todo o homem nasce com uma predisposição para um ou
outro lado da natureza e facilmente sucederá que os homens se
dedicarão por um ou outro. Uma classe tem a perceção da
diferença e está familiarizada com os factos e superfícies,
cidades e pessoas e com a realização de certas coisas: os
homens de talento e ação. Outra classe tem a perceção da
identidade e são homens de fé e filosofia, homens de génio.
Cada um destes cavaleiros cavalga demasiado rápido.
Plotino apenas acredita em filósofos, Fénelon, em santos,
Píndaro e Byron, em poetas. Lede a linguagem altiva com que
Platão e os platónicos falam de todos os homens que não se
dedicam às suas brilhantes abstrações: os outros homens são
ratazanas e ratos. A classe literária é, em geral, orgulhosa e
exclusiva. A correspondência entre Pope e Swift descreve o
género humano à sua volta como monstruoso e a de Goethe e
Schiller, já no nosso tempo, é pouco mais amável.
É fácil ver de onde vem essa arrogância. O génio é um
génio desde o primeiro olhar que lança sobre um objeto. Será
o seu olho criativo? Não se limita a ângulos e cores, mas
admira o padrão; por ora, desvalorizará o objeto real. Em
momentos poderosos, o seu pensamento dissolveu as obras de
arte e da natureza nas suas causas, de modo que as obras
parecem pesadas e defeituosas. Possui uma conceção de beleza
que o escultor não consegue expressar. O quadro, a estátua, o
templo, o caminho de ferro, o motor a vapor existiram
primeiro na mente do artista, sem falhas, erros ou desacordos,
que afetam os modelos executados. Assim como a Igreja, o
Estado, a universidade, o tribunal, o círculo social e todas as
instituições. Não é estranho que estes homens, recordando o
que viram e esperaram das ideias, tivessem afirmado com
desdém a superioridade das ideias. Tendo visto, a certa altura,
que a alma feliz é portadora de todas as artes em potência,
dizem: «porquê embaraçar-nos com concretizações
supérfluas?» e, como mendigos sonhadores, pensam falar e
agir como se esses valores já estivessem estabelecidos.
Em contrapartida, os homens de trabalho árduo e comércio
e fausto, o mundo animal, incluindo também o animal no
filósofo e no poeta — e o mundo prático, incluindo as tarefas
dolorosas às quais o filósofo e o poeta não escapam mais do
que os restantes —, pesam fortemente do outro lado. O
comércio nas nossas ruas não crê em causas metafísicas,
despreza as forças que os comerciantes e um planeta mercante
necessitam para existir: só contam o algodão, o açúcar, a lã e o
sal. As reuniões constituintes, nos dias de eleições, não são
temperadas por nenhuma incerteza quanto ao valor destas
votações. A vida quente flui numa mesma direção. Para os
homens deste mundo, para a força e vitalidade animal, para os
homens de poder prático, quando estão imersos nele, o homem
de ideias parece-lhes ter perdido a razão. Só eles têm razão.
As coisas acarretam sempre consigo a sua própria filosofia,
isto é, a prudência. Não há homem que adquira propriedade
sem com ela adquirir também um pouco de aritmética. Em
Inglaterra, o país mais rico que alguma vez existiu, a
propriedade significa mais, comparada com a habilidade
pessoal, do que em qualquer outro. Após jantar, um homem
acredita menos, nega mais; as verdades perdem algum
encanto. Após jantar, a aritmética é a única ciência: as ideias
são perturbadoras, incendiárias, loucuras de jovens, repudiadas
pela porção sólida da sociedade, e um homem acaba por ser
valorizado pelas suas qualidades atléticas e animais. Spence
conta que, certo dia, o senhor Pope se encontrava com Sir
Godfrey Kneller quando o sobrinho, um comerciante guineano
apareceu. «Sobrinho», disse Sir Godfrey, «tens a honra de ver
os dois mais notáveis homens do mundo.» «Não sei quão
notáveis sois», disse o guineano, «mas não gosto do vosso
aspeto. Compro com frequência homens muito melhores do
que vós, só músculos e ossos, por dez guinéus.» Assim se
vingam dos professores os homens dos sentidos, retribuindo-
lhes o desdém com desdém. Os primeiros saltaram para
conclusões ainda não amadurecidas e dizem mais do que
aquilo que é verdade; os outros riem-se do filósofo e pesam o
homem ao quilo. Acreditam que a mostarda arde na língua,
que a pimenta é picante, que os fósforos são incendiários, que
os revólveres devem ser evitados e os suspensórios seguram as
calças, que há muito sentimento numa caixa de chá e que um
homem será eloquente se lhe derem um bom vinho. Sois
afetuosos e escrupulosos, deveis comer mais pastel de frutas.
Afirmam que Lutero bebera leite quanto disse:
Wer nicht liebt Wein, Weib, und Gesang,
Der Bleibt ein Narr sein Leben lang[.](32)
E quando aconselha um jovem académico, confuso com a
predestinação e o livre-arbítrio, que se embebedasse. «Os
nervos», diz Cabanis, «são o homem.» O meu vizinho, um
agricultor jovial, na taberna, pensa que o uso do dinheiro é um
gasto seguro e rápido: «Por minha parte», diz, «faço-o descer
pela garganta e tiro o melhor dele.»
O inconveniente dessa maneira de pensar está em
desembocar na indiferença e, depois, no desgosto profundo. A
vida devora-nos. Em breve, seremos fábulas. Mantenhamos a
calma: todos seremos uma daqui a cem anos. A vida é
suficientemente boa, mas ficaremos contentes por sair dela e
eles que o façamos. Para quê afligir-nos e trabalhar como
escravos? A carne terá o mesmo sabor hoje que tinha ontem,
talvez cheguemos ao ponto de nos fartarmos dela. «Ah», diz o
meu lânguido cavalheiro de Oxford, «não há nada de novo ou
verdadeiro, e pouco importa.»
Com um pouco mais de rancor, o cínico lamenta-se: a vida
é como um burro conduzido ao mercado, atraído por um fardo
de feno à sua frente: não vê mais nada senão o fardo de feno.
«Há tantas dificuldades para vir ao mundo», diz Lorde
Bolingbroke, «e muitas outras, assim como mesquinhez, para
sair dela, que quase não vale a pena estar aqui de todo.»
Conheci um filósofo com este temperamento que estava
acostumado a resumir em poucas palavras a sua experiência da
natureza humana, dizendo: «A humanidade é um bando de
canalhas» e o corolário natural é o que se segue: «[O] mundo
vive de embustes, como eu viverei.»
Com o abstracionista e o materialista a exasperar-se
mutuamente, e o trocista a expressar o pior do materialismo,
surge um terceiro partido que ocupa o terreno intermédio entre
estes dois, isto é, o cético. Para si, estão ambos errados, porque
se situam nos extremos. Esforça-se para firmar os pés, para ser
o fiel da balança. Não arrisca apostar acima do jogo que tem.
Ele vê a parcialidade desses homens de rua; ele não será um
gabaonita; ele simboliza as faculdades intelectuais, a cabeça
fria e tudo o que serve para a manter assim: nenhuma atividade
irrefletida, nenhuma devoção sem recompensa, nenhum
embrutecimento devido a uma labuta excessiva. Serei eu
algum boi ou carreta? Estais ambos nos extremos, diz ele. Vós,
que quereis tudo sólido e um mundo de aço, equivocais-vos
gravemente. Credes-vos, a vós mesmos, arraigados e fundados
na solidez; e, no entanto, se destaparmos os derradeiros factos
do nosso conhecimento, girais como bolhas num rio, não
sabeis para onde ir nem de onde vindes, afundados, cobertos e
envoltos em ilusões. Nem se verá traído por um livro e
embrulhado numa toga. A classe dos estudiosos é vítima de si
mesma: são magros e pálidos, os seus pés frios, as cabeças
quentes, a noite insone, o dia preenchido por um medo de
interrupções — palidez, sordidez, fome e egoísmo. Se vos
aproximardes deles e observardes as opiniões que alimentam,
vereis que são abstracionistas que passam os dias e noites a
sonhar um sonho qualquer, esperando a homenagem da
sociedade por algum sistema precioso construído sobre uma
verdade, mas destituído de equilíbrio na sua exposição, de
justeza na sua aplicação e de toda a energia de vontade no
projetista para lhe dar corpo e reanimá-la.
Vejo claramente, porém, que não consigo ver, diz ele. Eu
sei que a força humana não reside nos extremos, mas em evitar
os extremos. Eu, pelo menos, evitarei a fraqueza de filosofar
acima da minha capacidade. De que serve aparentar ter
poderes que não se temos? Para que serve aparentar possuir
certezas que não temos quanto à outra vida? Porquê exagerar o
poder da virtude? Porquê ser um anjo antes de tempo? Estas
cordas partirão se apertadas em demasia. Se existe um desejo
de imortalidade e nenhuma prova, porque não dizer isso
mesmo? Se existem provas contraditórias, porque não afirmar
isso? Se não há motivo para o pensador imparcial decidir, sim
ou não, porque não suspender o juízo? Estou cansado destes
dogmatizadores. Estou farto destes medíocres da rotina, que
negam os dogmas. Eu não afirmo nem nego. Estou aqui para
julgar o caso. Estou aqui para considerar, sceptein(33), para
julgar como é. Tentarei manter a balança nivelada. De que
serve ocupar a cátedra e despachar levianamente teorias sobre
a sociedade, a religião e a natureza, quando sei que há
objeções práticas no caminho, intransponíveis para mim e para
os meus companheiros? Para quê tanta loquacidade em
público, quando qualquer vizinho me pode cravar ao assento
com argumentos que não consigo refutar? Para quê fingir que
a vida é um jogo simples, quando sabemos quão subtil e
esquivo é Proteu? Porquê pensar em encerrar as coisas no
vosso pequeno galinheiro, quando sabemos que não há apenas
um ou dois, mas dez, vinte, mil coisas e diferentes? Porquê
julgar que se terá toda a verdade no bolso? Há muito para
dizer de todas as partes.
Se vemos que não existe questão prática para a qual seja
possível algo mais do que uma solução aproximada, quem
contestará um sábio ceticismo? Não é o casamento uma
questão em aberto quando se alega, desde o começo do
mundo, que aqueles que estão na instituição querem sair e
aqueles que estão fora querem entrar? E a resposta de Sócrates
ainda é sensata ao dizer que: «[Q]uer escolha uma ou outra, irá
arrepender-se.» Não é o Estado uma questão? A opinião da
sociedade divide-se acerca do Estado. Ninguém gosta dele e
desagrada a muitos que sofrem de escrúpulos conscientes pela
lealdade, sendo que o único argumento invocado é o receio de
piorar as coisas com a desorganização. Será diferente com a
Igreja? Ou, para fazer qualquer uma das questões que tocam
mais perto a humanidade: deve o jovem almejar um papel de
liderança no direito, na política, no comércio? Não devemos
fingir que ter êxito num desses domínios coincide com o que é
melhor e mais íntimo ao seu espírito. Assim, deverá ele cortar
as amarras que o mantêm preso ao estado social, devolvendo-o
ao mar sem nenhum guia além do seu génio? Muito há que
dizer de ambos os lados. Lembremo-nos da questão em aberto
entre a ordem atual da «competição» e os amigos do «trabalho
atrativo e associado». Os espíritos generosos abraçam a ideia
do trabalho partilhado por todos, é o único honesto, nada é
mais seguro. A força e a virtude vêm unicamente da cabana do
pobre, no entanto, do outro lado, afirma-se que o trabalho
prejudica o corpo e quebra o espírito do homem ao gritarem os
trabalhadores em uníssono: «já não conseguimos pensar». A
cultura, quão indispensável! Não posso acusar-vos de falta de
talento e, contudo, a cultura destruirá instantaneamente a
beleza essencial da espontaneidade. Para um selvagem, a
cultura é algo de excelente; porém, se o deixamos ler um livro,
nunca mais conseguirá deixar de pensar nos heróis de
Plutarco. Em suma, uma vez que a verdadeira força da
compreensão consiste «em não deixar que aquilo que sabemos
seja impedido pelo que não sabemos», devíamos garantir essas
vantagens que podemos dominar sem arriscar prender-nos ao
etéreo e inatingível. Vamos lá, sem quimeras! Viajemos ao
estrangeiro, envolvamo-nos nas coisas, aprendamos,
recebamos, usufruamos e elevemo-nos. «Os homens são uma
espécie de plantas em movimento e, à semelhança das árvores,
recebem grande parte do seu alimento do ar. Se ficam
demasiado em casa, definham.» Que levemos uma vida
robusta, viril; que saibamos o que sabemos com certeza; que
aquilo que temos seja sólido e adequado e nosso. Mais vale
um mundo na mão do que dois a voar. Falemos de homens e
mulheres reais, não de fantasmas saltitantes.
Este é, pois, o terreno do cético, o da consideração, da
moderação; de modo nenhum o da descrença, da negação
universal ou da dúvida universal, duvidando inclusive de que
duvida; menos ainda o escárnio trocista e libertino de tudo o
que é estável e bom. Este não é o seu humor, tal como não é o
da religião e da filosofia. Ele é o ponderador, o prudente, o que
arria as velas, conta as provisões, gere os meios, crendo que
um homem tem demasiados inimigos para se permitir ser o seu
próprio inimigo, que não podemos conceder-nos demasiadas
vantagens neste conflito desigual, com poderes tão vastos e
incansáveis alinhados, de um lado e esse papagaio pequeno,
pretensioso e vulnerável que o homem é, vacilante a cada
perigo, do outro. É uma posição assumida para uma melhor
defesa, de maior segurança, e uma que pode ser mantida; além
disso, oferece mais oportunidades e raio de ação; assim,
quando construímos uma casa, a regra é não a construir nem
demasiado alto nem demasiado baixo, debaixo do vento, mas
não na lama.
A filosofia que queremos é uma de fluxos e mobilidade. Os
esquemas espartanos e estoicos são demasiado austeros e
rígidos para a ocasião. A teoria de São João, a da não-
resistência, parece, por outro lado, pouco convincente e etérea.
Queremos um manto tecido de aço elástico, resistente como o
primeiro e flexível como o segundo. Queremos um navio
nestas ondas em que habitamos. Uma casa angular e
dogmática quebrar-se-ia em pedaços e lascas nesta tormenta de
muitos elementos. Não, deve ser hermética e ajustada à forma
do homem para que ele aí possa viver, assim como uma
concha representa a arquitetura de uma casa construída no
mar. A alma do homem deve constituir o modelo do nosso
esquema, como o corpo do homem é o modelo mediante o
qual se constrói uma casa. A adaptabilidade é a característica
peculiar da natureza humana. Somos números de ouro,
estabilidades volitantes, erros compensados ou periódicos,
casas construídas no mar. O cético inteligente deseja ter uma
visão próxima do melhor jogo e dos principais jogadores, do
que é melhor no planeta, arte e natureza, lugares e eventos,
mas sobretudo dos homens. Tudo o que é excelente na
humanidade — uma forma graciosa, um braço de ferro, lábios
persuasivos, um cérebro engenhoso, todo o ser hábil a jogar e
a ganhar — será visto e julgado por ele.
Para sermos admitidos neste espetáculo, as condições que
temos de preencher são as de possuirmos uma certa maneira
de viver própria, sólida e inteligível, um qualquer método para
responder às inevitáveis necessidades da vida humana, a prova
de ter jogado com habilidade e sucesso que tenha evidenciado
o temperamento, a força e a gama de qualidades que, entre os
seus contemporâneos e compatriotas, lhe conferem o direito à
amizade e confiança. Pois os segredos da vida não se mostram
exceto por simpatia e semelhança. Os homens não se
confidenciam a rapazolas, ou a pretensiosos, ou a pedantes,
mas sim aos seus pares. Uma sábia limitação, segundo a
expressão moderna; uma condição entre os extremos, tendo ela
própria uma qualidade positiva; um homem resoluto e
suficiente, que não é sal ou açúcar, mas que se relaciona
quanto baste com o mundo para fazer justiça a Paris e a
Londres e, em simultâneo, um pensador vigoroso e original,
que as cidades não conseguem intimidar, mas que delas se
serve — eis a pessoa capaz de ocupar este terreno de
especulação.
Estas qualidades reúnem-se no carácter de Montaigne. E,
no entanto, como o interesse pessoal que sinto por Montaigne
talvez se revele excessivo, sob a proteção deste príncipe dos
egoístas, à maneira de apologia à sua eleição como
representante do ceticismo, oferecerei uma palavra ou duas
para explicar como teve início e cresceu o meu amor por este
admirável tagarela.
Da biblioteca do meu pai, e da minha infância, ficou-me
um volume único e estranho da tradução de Cotton dos
Ensaios. Ali ficou, abandonado, até ao momento em que,
muitos anos depois, recém-saído da universidade, li o livro e
adquiri os restantes volumes. Recordo o deleite e espanto em
que vivi com a obra. Dava-me a sensação de eu próprio ter
escrito o livro, numa vida anterior, tão sinceramente falava ele
ao meu pensamento e experiência. Aconteceu que, em Paris,
em 1833, no cemitério de Père Lachaise, deparei com o
túmulo de um Auguste Collignon, que morreu em 1830, aos
sessenta e oito anos, e que, dizia o monumento, «viveu
retamente e aprendeu a virtude nos Ensaios de Montaigne».
Uns anos mais tarde, travei conhecimento com um notável
poeta inglês, John Sterling, tendo descoberto, na sequência de
uma troca epistolar com ele, que, por amor a Montaigne, fizera
uma peregrinação ao seu castelo, ainda de pé nas
proximidades de Castellan, em Perigord, e, duzentos e
cinquenta anos depois, copiou das paredes da sua biblioteca as
inscrições que Montaigne ali deixara. O Diário do senhor
Sterling, publicado na Westminster Review, foi reeditado, pelo
Sr. Hazlitt, nos Prolegomena na sua edição dos Ensaios. Ouvi
com prazer que uns recém-descobertos autógrafos de William
Shakespeare se encontravam num exemplar da tradução de
Florio de Montaigne. É o único livro que sabemos com
segurança ter feito parte da biblioteca do poeta. E,
curiosamente, o exemplar de Florio que o Museu Britânico
adquiriu, com a intenção de proteger o autógrafo de
Shakespeare (segundo informação do Museu), parece conter
afinal o autógrafo de Ben Jonson na guarda do livro. Leigh
Hunt conta que, para Lorde Byron, Montaigne era o único
grande escritor do passado que lia com manifesta satisfação.
Outras coincidências, que não é necessário mencionar aqui,
concorrem para fazer que este velho gascão ainda seja novo e
imortal para mim.
Em 1571, quando o seu pai faleceu, Montaigne, então com
trinta e oito anos, abandonou a prática do direito, em Bordéus,
estabelecendo-se na sua propriedade. Conquanto tenha sido
um homem dedicado aos prazeres e, por vezes, um cortesão,
os seus hábitos de estudo desenvolveram-se então, prezando a
amplitude, sobriedade e independência da vida de cavalheiro
rural. Assumiu as suas finanças com seriedade e retirou o
máximo proveito das suas propriedades. Sincero e direto,
avesso a ser enganado e a enganar, era estimado na região pela
sua sensatez e probidade. Nas guerras civis da Liga, que
converteram cada casa num forte, Montaigne manteve os seus
portões abertos e a sua casa sem defesa. Todos os partidos iam
e vinham livremente, e o seu valor e honra eram
universalmente estimados. Os senhores e nobres vizinhos
levavam-lhe joias e papéis para que os guardasse. Gibbon crê
que, nesses tempos intolerantes, só havia dois homens liberais
em França: Henrique IV e Montaigne.
Montaigne é o mais franco e honesto dos escritores.
Embora a sua liberalidade francesa resvalasse para a grosseria,
antecipou todas as censuras pela abundância das suas próprias
confissões. No seu tempo, os livros eram escritos para um
único sexo, e quase todos escritos em latim, de modo que, num
humorista, uma certa crueza de linguagem era permitida, algo
que o nosso tipo de literatura, dirigido a ambos os sexos, não
permite. Porém, ainda que uma simplicidade bíblica unida a
uma leviandade pouco canónica possa fechar as suas páginas a
leitores mais sensíveis, a ofensa é superficial. Faz alarde dela,
tira dela o maior proveito, ninguém pensa ou diz dele algo pior
do que ele próprio. Finge possuir os maiores vícios, afirmando
que, se nele houver alguma virtude, terá entrado pela calada.
Não existe homem, na sua opinião, que não tenha merecido a
forca cinco ou seis vezes, alegando que ele não constitui
exceção. Dele, afirma ainda que «se podem contar cinco ou
seis histórias ridículas, como de qualquer outro homem». Não
obstante esta franqueza verdadeiramente supérflua, a ideia de
uma probidade inabalável cresce na mente de todo o leitor.
Quando me confesso o mais estrita e religiosamente,
percebo que a melhor virtude que possuo contém em si um
traço de vício e receio que Platão, na sua virtude mais pura
(eu, que sou um amante tão sincero e perfeito da virtude
dessa espécie como qualquer outro), se ele tivesse escutado
e aproximado o seu ouvido de si mesmo, teria escutado um
qualquer som desagradável de mistura humana, embora
débil e remoto e apenas percebido por si mesmo.
Existe aqui uma atitude de impaciência e fastio perante o
colorido ou a pretensão de toda a espécie. Passou tempo
suficiente em tribunais para desenvolver uma furiosa aversão
pelas aparências; permite-se alguns palavrões e blasfémias,
fala com marinheiros e ciganos, canta baladas populares e
espirituosas. Fechou-se em casa quase morrendo de doença;
sai para o exterior, mesmo quando chove a cântaros. Viu tantos
cavalheiros de toga, que prefere os canibais, e essa vida
artificial enervou-o tanto, que pensou que, quanto mais
bárbaro o homem, melhor seria. Gosta da sua sela. Podeis ler
teologia e gramática e metafísica noutro lugar. Seja o que for
que aqui obtenhais, terá um travo da terra e da vida real, doce,
severo ou pungente. Não hesita em entreter-vos com memórias
da sua doença, e o relato da sua viagem a Itália abunda a esse
respeito. Assumiu e conservou esta posição equilibrada. Sobre
o seu nome, desenhou uma emblemática balança e escreveu
«que sei eu?» por baixo. Ao olhar a sua efígie na página
oposta à página do título, parece que o ouço dizer: «Podeis
brincar ao velho Poz(34), se quiserdes, protestar e exagerar, eu
estou aqui pela verdade e nem todos os Estados e Igrejas,
rendas e reputações pessoais da Europa me farão sobrestimar o
facto tal como eu o vejo; prefiro balbuciar e arengar sobre o
que sei com certeza: a minha casa e os meus celeiros; o meu
pai, a minha mulher e os meus arrendatários; a minha velha
careca; as minhas facas e os meus garfos; que carnes como e
que bebidas gosto mais e mil outras ninharias igualmente
ridículas, do que escrever, com uma pena de corvo, um belo
romance. Gosto de dias cinzentos, e do tempo outonal e de
inverno. Eu próprio sou cinzento e outonal e penso que uma
roupa informal e sapatos velhos que não me apertam os pés e
velhos amigos que não se impõem e temas simples sobre os
quais não preciso de me esforçar e arrancar do meu cérebro
são os mais convenientes. A nossa condição de homens já é
arriscada e difícil o suficiente. Ninguém está seguro de si e da
sua fortuna por uma hora que seja, podendo, pelo contrário,
ver-se subitamente atirado para uma situação lamentável ou
ridícula. Porque devo eu vangloriar-me e brincar ao filósofo,
em lugar de lastrar, o melhor que puder, este balão dançante?
Assim, ao menos, vivo dentro de certos limites, mantenho-me
pronto para agir e posso atravessar, por fim, o abismo com
decência. Se houver alguma falsidade numa tal vida, não me
imputem a culpa: deixem-na às portas do destino e da
natureza.»
Os Ensaios, portanto, constituem um entretido solilóquio
sobre qualquer tópico fortuito que lhe venha à cabeça, tratando
tudo sem cerimónia, embora com um bom senso viril. Já
existiram homens com uma visão mais penetrante, mas dir-se-
ia que jamais houve um homem com uma tal abundância de
pensamentos; nunca é aborrecido, é sempre sincero e possui o
génio de fazer o leitor interessar-se por aquilo que lhe
interessa.
A sinceridade e essência do homem transparece nas suas
frases. Não conheço outro livro que pareça ter sido menos
escrito. É a linguagem da conversação transferida para um
livro. Cortai as palavras e sangrarão; são vasculares e vivas.
Sente-se o mesmo prazer que temos ao ouvir o discurso
necessário dos homens acerca do seu trabalho, quando uma
qualquer circunstância pouco habitual dá ao diálogo uma
importância momentânea. Pois ferreiro e cocheiros não
hesitam quando falam; é uma chuva de balas. São os homens
de Cambridge que se corrigem a si mesmos e começam de
novo a meio de cada frase e que, além disso, jogarão com as
palavras, refinando em demasia, derivando do assunto para a
expressão. Montaigne fala com astúcia, conhece o mundo, os
livros e a si mesmo, usando sempre o grau positivo: nunca
grita, ou protesta, ou reza; sem fraqueza, sem convulsão, sem
superlativos; não quer sair da sua pele, ou dizer disparates, ou
aniquilar o espaço e o tempo, mas é resoluto e sólido; saboreia
cada momento do dia; gosta da dor, por o tornar consciente de
si mesmo, e das coisas, como quando nos beliscamos para
sabermos que estamos acordados. Mantém-se na planura,
raramente sobe ou desce, gosta de sentir por baixo o sólido
piso e as pedras. Não há grandes entusiasmos ou aspirações
nos seus textos; satisfeito, de expressão digna e mantendo-se
no meio do caminho. Existe apenas uma exceção: o seu amor
por Sócrates. Ao falar dele, por uma vez, a sua face ruboriza e
o seu estilo eleva-se até à paixão.
Montaigne morreu de uma angina, com sessenta anos, em
1592. Pouco antes de morrer, fez que a missa se celebrasse no
seu quarto. Tinha-se casado aos trinta e três anos. «Contudo»,
afirma, «por minha vontade, nem a própria Sabedoria teria
esposado, se ela me quisesse; no entanto, custa muito evitá-lo,
pois o costume e hábito da vida impõem-no. Grande parte das
minhas ações é guiada pelo exemplo, não pela escolha.» Na
hora da morte, deu o mesmo peso ao costume. Que sçais-je?
Que sei eu?
O mundo sancionou este livro de Montaigne, traduzindo-o
para todas as línguas e imprimindo setenta e cinco edições na
Europa; e isto no contexto de uma circulação algo seletiva,
sobretudo entre cortesãos, soldados, príncipes, homens do
mundo e homens de espírito e generosidade.
Será que podemos dizer que Montaigne falou com sensatez
e deu a expressão mais correta e permanente à mente humana
na questão da conduta da vida?
Somos crentes natos. Só a verdade, ou a conexão entre
causa e efeito, nos interessa. Estamos convencidos de que um
fio atravessa todas as coisas, todos os mundos pendem nele,
como contas de um rosário, e os homens e os acontecimentos e
a vida chegam até nós unicamente graças a esse fio, eles
passam e voltam a passar, apenas para que saibamos a direção
e continuidade dessa linha. Um livro ou afirmação que mostre
que não existe qualquer fio condutor, mas arbitrariedade e
caos, uma calamidade a partir do nada, uma felicidade sem
justificação, um herói nascido de um tolo, um tolo de um
herói, desencoraja-nos. Visível ou invisível, acreditamos que a
ligação existe. O talento cria ligações falsas, o génio descobre
as verdadeiras. Escutamos o homem de ciência, porque
antecipamos a sequência dos fenómenos naturais que ele
desvenda. Gostamos de tudo o que afirma, liga, preserva e
desgostamos do que fragmenta ou enfraquece. Surge um
homem cuja natureza, para os que o contemplam, é
conservadora e construtiva, a sua presença supõe uma
sociedade bem organizada, agricultura, comércio, grandes
instituições e um império. Se isto não existisse, passaria a
existir pelos seus esforços. Ele alegra e conforta, por isso, os
homens, que veem nele de pronto tudo isto. O não-conformista
e o rebelde dizem todo o tipo de coisas incontestáveis contra a
república existente, mas não oferecem qualquer plano próprio
de casa ou Estado. Deste modo, embora a cidade e o Estado e
o modo de vida que o nosso conselheiro considerou possam
revelar-se uma prosperidade assaz modesta ou antiquada, os
homens dirigem-se a ele e rejeitam o reformador, porquanto
ele apenas traz o machado e a alavanca.
Mas apesar de sermos por natureza conservadores e
adeptos da causalidade e rejeitarmos uma descrença amarga e
melancólica, a classe cética, que Montaigne representa, tem
razão e todo o homem, num dado momento, acaba por fazer
parte dela. Toda a mente superior atravessa este domínio de
equilíbrio — diria antes, aprenderá a servir-se dos freios e
equilíbrios presentes na natureza como uma arma natural
contra o excesso e formalismo dos fanáticos e imbecis.
O ceticismo é a atitude assumida pelo estudioso
relativamente às particularidades que a sociedade adora, mas
que ele entende deverem ser reverenciadas apenas na sua
tendência ou espírito. O terreno ocupado pelo cético é o
vestíbulo do templo. A sociedade não gosta de sentir a brisa do
questionamento na ordem vigente. Mas a interrogação dos
costumes em todos os seus pontos é um estágio inevitável no
crescimento de qualquer mente superior e prova da sua
perceção do poder fluido que se mantém em todas as
mudanças.
A mente superior ver-se-á igualmente em conflito com os
males da sociedade e com os projetos que são avançados para
os aliviar. O cético sábio é um mau cidadão; não sendo um
conservador, consegue ver o egoísmo da propriedade e a
sonolência das instituições. Tampouco se sente apto a trabalhar
com partidos democráticos que se tenham formado, porque os
partidos desejam o compromisso e ele está imbuído do
patriotismo popular. A sua política é a do «Soul’s Errand» de
Sir Walter Raleigh, ou de Krishna, no Bhagavad Gita: «Não há
quem mereça o meu amor ou o meu ódio», ao mesmo tempo
que condena a lei, a física, a divindade, o comércio e os
costumes. É um reformador; apesar disso, não é um membro
superior da associação filantrópica. Não parece ser um
campeão do prático, do indigente, do prisioneiro, do escravo.
Na sua cabeça, a vida neste mundo não é tão fácil de
interpretar quanto dão a entender as igrejas e livros escolares.
Não é seu desejo erguer-se contra estas atitudes benevolentes,
desempenhar o papel do advogado do Diabo e alardear cada
dúvida e cada sarcasmo que obscureça o sol para ele. Mas
afirma: há dúvidas.
Quero usar esta oportunidade e celebrar o dia de festa do
nosso São Michel de Montaigne, contando e descrevendo estas
dúvidas ou negações. Quero fazê-las sair do seu buraco e
apanhar um pouco de sol. Temos de fazer com elas o que a
polícia faz com velhos patifes que são exibidos ao público no
posto do xerife. Não serão tão aterradores quando forem
identificados e registados. Mas quero ser honesto com elas:
que seja feita justiça pelos seus terrores. Não aceitarei
objeções catequéticas, levantadas com o intuito de ser
refutadas. Assumirei o pior que encontrar, disponha eu de si ou
elas de mim.
Não pretendo insistir no ceticismo do materialista. Eu sei
que a opinião do quadrúpede não prevalecerá. O que morcegos
e bois pensam não tem importância alguma. O primeiro
sintoma perigoso que observo é a leveza do intelecto, como se
fosse fatal para a seriedade saber muito. O conhecimento é
saber que não podemos saber. Os simples rezam, os génios são
zombadores ligeiros. Quão respeitável é a seriedade a todos os
níveis! Mas o intelecto mata-a. Mais do que isso: São
Carlo(35), meu subtil e admirável amigo, um dos homens mais
sagazes, pensa que toda a ascensão direta, mesmo a de uma
piedade elevada, conduz a essa intuição pavorosa, fazendo do
devoto um órfão. O meu espantoso São Carlo pensava que os
legisladores e santos estavam infetados. Encontraram a arca
vazia; viam e não diziam nada, tentando travar os seus
seguidores que se aproximavam, dizendo: «A ação, meus
caros amigos, a ação é para vocês!» Por muito má que esta
descoberta de São Carlo seja para mim, este gelo em julho,
este golpe desferido por uma noiva, existe ainda algo pior,
nomeadamente, o enjoo ou saturação dos santos. No monte
onde tiveram a visão, disseram ainda de joelhos:
«[P]ercebemos que a nossa homenagem e beatitude é parcial e
deformada; para encontrar consolo, temos de nos precipitar
para o Intelecto suspeito e ultrajado, para o Entendimento,
para Mefistófeles e a ginástica do talento.»
Este é o primeiro duende e, embora tenha sido tema de
muita elegia no nosso século XIX, desde Byron, Goethe e
outros poetas de menor nomeada, para não mencionar muitos
distintos observadores privados, confesso que não estimula
muito a minha imaginação, porque parece remeter para a
destruição de casas de bonecas e lojas de porcelana. O que
agita a Igreja de Roma, ou de Inglaterra, ou de Genebra, ou de
Boston, pode muito bem estar longe de tocar qualquer
princípio de fé. Julgo que o intelecto e o sentimento moral são
unânimes e, ainda que a filosofia extirpe certos pesadelos,
acaba por fornecer os freios naturais do vício e polaridade à
alma. Creio que quanto mais sensato é um homem, mais lhe
parece estupenda a economia natural e moral, elevando-se a
uma confiança mais absoluta.
O poder dos humores existe, cada um deles desprezando
tudo o que não seja o seu próprio tecido de factos e crenças.
Existe o poder dos caracteres, que modificam obviamente as
disposições e sentimentos. As crenças e descrenças parecem
ser estruturais e, logo que cada homem atinja o equilíbrio e
vivacidade que permite a toda a maquinaria funcionar, já não
necessitará de exemplos extremados, mas mudará rapidamente
todas as opiniões na sua vida. A nossa vida é como o tempo de
março, selvagem e sereno numa só hora. Avançamos austeros,
dedicados, acreditando nas ligações de aço do Destino, sem
darmos meia-volta para salvar a nossa vida; mas um livro, ou
um busto, ou simplesmente o ressoar de um nome, provoca um
choque nos nervos e, de súbito, passamos a acreditar na
vontade: o meu anel será o selo de Salomão, o destino é para
os impossíveis e tudo é possível para a mente decidida. Em
breve, uma nova experiência dá uma nova direção aos nossos
pensamentos, o senso comum retoma a sua tirania e dizemos:
«Bem, o exército, afinal de contas, é a porta para a fama, das
boas maneiras e da poesia e, vede bem, no geral, é o egoísmo
que planta e poda melhor, gera melhor comércio e o melhor
cidadão.» Estarão as opiniões de um homem sobre o que é
certo e errado, sobre o destino e a causação à merce de um
sono interrompido ou de uma indigestão? E o que garante a
constância das suas opiniões? Não gosto da pressa francesa —
uma Igreja e Estado novos a cada semana. Esta é a segunda
negação, que deixarei passar pelo que é. Por ela afirmar a
alternância de estados de espírito, suponho que indique o seu
próprio remédio, designadamente, o registo de períodos mais
longos. Qual é o termo médio de muitos estados, de todos os
estados? A voz geral dos tempos afirmará algum princípio ou
não existe comunidade nenhuma de sentimento discernível em
tempos e lugares distantes? E quando mostra o poder do
interesse pessoal, aceito isso como parte da lei divina e tenho
de o reconciliar o melhor que puder com a aspiração.
Em todas as épocas, a palavra «fado», ou «destino»,
expressa o sentimento da humanidade de que as leis do mundo
nem sempre nos protegem, mas, amiúde, nos ferem e
esmagam. O Fado, na forma de carácter (kind) ou natureza,
cresce sobre nós como erva. Descrevemos o Tempo com uma
gadanha, o Amor e a Fortuna, cegos, e o Destino, surdo.
Temos pouco poder de resistência contra esta ferocidade que
nos tritura. Que frente podemos apresentar contra estas forças
inevitáveis, vitoriosas, maleficentes? Que posso eu fazer
contra a influência da Raça, na minha história? Que posso eu
fazer contra a hereditariedade e os hábitos que fazem parte da
minha constituição, contra a escrófula, a linfa, a impotência?
Contra o clima, contra a barbárie, no meu país? Posso
racionalizar ou negar tudo, exceto este estômago perpétuo: tem
de ser alimentado e sê-lo-á, não posso torná-lo respeitável.
Mas a maior resistência que o impulso afirmativo encontra,
e um que inclui todos os outros, reside na doutrina dos
Ilusionistas. Circula um rumor doloroso de que somos
manipulados em todas as principais ações da vida e que o
livre-arbítrio é um conceito vazio. Fomos empapados e
sedados com ar, com comida, com mulheres, com crianças,
com ciências, com acontecimentos que nos deixaram
exatamente onde nos encontraram. As matemáticas, toda a
gente se queixa, deixam a mente onde a encontraram, assim
como todas as ciências e todos os acontecimentos e ações.
Vejo um homem que estudou todas as ciências e que continua
o simplório que sempre foi e, devido a todos os cargos que
ocupou, científicos, civis e sociais, consigo detetar a criança.
Não estamos dispensados de lhes dedicar a nossa vida. Na
verdade, podemos chegar ao ponto de aceitar como uma regra
e teoria fixa do estado da nossa educação que Deus é uma
substância e o seu método ilusão. Os sábios orientais
reconhecem a deusa Yoganidra, a poderosa energia ilusória de
Vixnu, por quem todo o mundo é enganado em total
ignorância.
Será possível dizê-lo de outra maneira? O que suscita o
assombro da vida é a ausência total de uma aparente
reconciliação entre a teoria e a prática da vida. A razão, a
estimada realidade, a lei, é, de tempos a tempos, apreendida
num instante de serenidade e profundidade, no tumulto dos
cuidados e tarefas que não têm nenhuma relação direta com
elas, perdendo-as em seguida, por meses ou anos, até as
encontrarmos de novo, por um instante, perdendo-as
novamente a seguir. Se calcularmos tudo em tempo, talvez
tenhamos, em cinquenta anos, meia dúzia de horas racionais.
Mas serão, por isso, os nossos cuidados e tarefas melhores?
Não vemos um método no mundo, com exceção deste
paralelismo entre o grande e o pequeno, que nunca reagem um
ao outro, nem descobrem a menor tendência para convergir.
Experiências, fortunas, governos, leituras, escritos não servem
o nosso propósito, como, quando um homem entra no quarto,
não podemos dizer se foi alimentado com inhames ou búfalo
— ele terá arranjado forma de conseguir os ossos e fibras de
que precisava, extraindo-as do arroz ou da neve. Tão vasta é a
desproporção entre o céu da lei e a formiga do desempenho
abaixo dele que, seja ele um homem de mérito ou um bêbado,
a diferença não é tão relevante quanto afirmam. Devo
acrescentar, como um malabarismo deste encantamento, a
surpreendente lei da não-relação que impossibilita toda a
cooperação? O jovem espírito anseia por entrar na sociedade.
Mas todas as vias da cultura e da grandeza levam a um
encarceramento solitário. É com frequência frustrado. Não
esperava grande simpatia pelo seu pensamento por parte da
cidade, porém, levou-o aos eleitos e inteligentes e não
encontrou recetividade, mas pura incompreensão, antipatia e
escárnio. Os homens agem estranhamente no tempo errado e
de forma errada, e a excelência de cada um reside num
individualismo inflamado que o aparta ainda mais.
São estas, e outras ainda, as doenças do pensamento, que os
nossos mestres vulgares não procuram eliminar. Diremos,
então, porque a boa natureza nos faz pender para o lado da
virtude, que «não há dúvidas», mentindo em prol do bem?
Deve a vida ser vivida de forma corajosa ou covarde? E não
será a dissipação das dúvidas essencial para toda a atitude
viril? Será o termo «virtude» uma barreira ao que é realmente
virtude? Será possível não acreditar que um homem de hábitos
sinceros e firmes possa encontrar um pequeno bem no chá, em
ensaios e no catecismo e deseje uma instrução mais rude,
necessitando de homens, trabalho, comércio, agricultura,
amor, ódio, dúvida e terror, a fim de tornar as coisas mais
simples para ele, e não terá ele o direito a ser persuadido à sua
maneira? Quando estiver convencido, todas as dores terão
valido a pena.
A crença consiste em aceitar as afirmações da alma; a
descrença, em negá-las. Há mentes que são incapazes de
ceticismo. As dúvidas que professam são sobretudo uma
marca de civilidade ou acomodação ao discurso comum dos
seus pares. Podem muito bem dar a si próprios a liberdade de
especular, porque estão seguros de uma retribuição. Uma vez
admitidos no céu do pensamento, não esperam voltar a cair na
escuridão, mas um convite eterno para o outro lado. Os céus
estão no interior dos céus, o céu acima do céu, cercados de
divindades. Outros há para quem os céus são de lata e
confinados à superfície da terra. É uma questão de
temperamento ou de uma maior ou menor imersão na
natureza. Estes últimos precisam de uma fé reflexiva ou
parasitária, não de uma visão das realidades, mas de uma
confiança instintiva em visionários e crentes nas realidades. As
maneiras e pensamentos dos crentes espantam-nos e
convencem-nos de que viram algo que lhes está oculto. Mas o
seu hábito sensual fixaria o crente à sua derradeira posição, ao
passo que ele teria inevitavelmente avançado, e logo o
descrente, por amor da crença, lança à fogueira aquele que crê.
Os grandes crentes são sempre vistos como infiéis, pouco
práticos, excêntricos, ateus e verdadeiramente homens sem
importância. O espiritualista é levado a expressar a sua fé
mediante uma série de ceticismos. Almas caridosas vêm até
ele com os seus projetos e pedem a sua cooperação. Como
poderia ele hesitar? É uma regra da mais simples delicadeza e
cortesia concordar quando possível, de dar à sua resposta um
tom de bom augúrio, ao invés de gélido e sinistro. No entanto,
é forçado a dizer: «Oh, as coisas serão como são, que podeis
fazer? Estas dores e crimes particulares são a folhagem e fruto
de árvores como aquelas que vemos crescer. É inútil
queixarmo-nos das folhas ou das bagas. Cortem-nas, irão gerar
outras tão más quanto as anteriores. A vossa cura deve
começar mais abaixo.» Para o espiritualista, as liberalidades
do quotidiano mostram ser um elemento intratável. As
questões das pessoas não são as suas, os métodos não são os
seus e, contra todos os ditames da boa natureza, é levado a
afirmar que não retira delas prazer nenhum.
Mesmo as doutrinas queridas à esperança do homem, as da
divina providência e da imortalidade da alma, não conseguem
ser enunciadas para que possa afirmá-las igualmente. No
entanto, nega-as por possuir uma fé maior, não menor. Nega-as
por honestidade. Prefere assumir a acusação de imbecilidade
do ceticismo do que a de faltar à verdade. Acredito, diz ele, na
intenção moral do universo, na sua hospitalidade, ele existe
para a felicidade das almas, mas os vossos dogmas parecem-
me caricaturas: porque hei de eu fingir crer neles? Alguém
dirá que isto é frio ou infiel? Os sábios e magnânimos não o
dirão. Regozijar-se-ão com a sua benevolência clarividente
que cederá ao adversário todo o terreno da tradição e da crença
comum sem perder uma onça de força. Ela consegue ver o
final de toda a transgressão. George Fox observou que «existe
um oceano de trevas e morte, mas, ao mesmo tempo, um
oceano infinito de luz e amor que fluía sobre essas trevas».
A solução final em que o ceticismo se perde está no
sentimento moral, que nunca renuncia à sua supremacia. Todas
as disposições de humor podem ser tentadas de forma segura,
e o seu peso submetido a todas as objeções: o sentimento
moral pesará facilmente mais do que elas e que qualquer outro.
É a gota de água que mantém o mar em equilíbrio. Eu jogo
com a miscelânea de factos e adoto essas conceções
superficiais a que chamamos ceticismo, mas sei que elas irão
em breve apresentar-se-me numa ordem tal que tornará o
ceticismo impossível. Um homem de pensamento deve sentir o
pensamento que é causa do universo: de que as massas da
natureza ondulam e fluem.
Esta fé é útil à emergência da vida e dos objetos. O mundo
está saturado de divindade e de lei. Ele satisfaz-se com o justo
e injusto, com bêbados e imbecis, com o triunfo da loucura e
da fraude. Pode contemplar serenamente o abismo ingente
entre a ambição do homem e o seu poder de ação, entre a
procura e a oferta de poder, tragédia de todas as almas.
Charles Fourier declarava que «as atrações do homem se
relacionam com os seus destinos», ou, por outras palavras, que
todo o desejo vaticina a sua própria satisfação. Contudo, toda a
experiência demonstra o contrário, a insuficiência de poder é a
causa universal de dor entre as mentes jovens e ardentes. Elas
acusam a divina providência de uma certa parcimónia. Ela
mostrou, a cada criança, o céu e a terra, enchendo-a de um
desejo do todo, um desejo furioso, infinito; uma ânsia, como a
de um espaço a ser preenchido por planetas; um grito de fome,
como o de demónios por almas. Depois, como satisfação, é
administrada diariamente a cada homem uma simples gota,
uma pérola de orvalho de poder, uma taça tão grande como o
espaço e, dentro, uma gota de água da vida. O homem acorda
de manhã com um apetite que o faria comer o sistema solar
como se de um bolo se tratasse, um espírito para a ação e
paixão sem limites, podia pousar a mão na Estrela da Manhã,
tirar conclusões sobre gravitação ou química, mas, ao primeiro
movimento para provar a sua força, as mãos, pés, sentidos
cedem, deixando de o servir. É um imperador abandonado
pelos seus Estados e deixado a assobiar sozinho ou lançado
para uma multidão de imperadores, todos a assobiar, enquanto
as sereias continuavam a cantar: «as atrações relacionam-se
com os destinos». Em todas as casas, no coração de cada
rapariga ou rapaz, na alma do santo altaneiro, encontra-se esta
diferença entre a mais ampla promessa do poder ideal e a
mísera experiência.
A natureza expansiva da verdade vem em nosso socorro,
elástica, não se deixando cercar. O homem auxilia-se através
de generalizações mais amplas. A lição da vida consiste, na
prática, em generalizar, em acreditar no que os anos e séculos
dizem contra as horas, em resistir à usurpação dos aspetos
particulares, em penetrar no seu sentido universal. As coisas
parecem dizer algo e o seu inverso. A aparência é imoral, o
resultado é moral. As coisas parecem tender para baixo, para
justificar o desânimo, para promover os intrujões, para
derrotar o justo, e, através dos patifes assim como dos
mártires, a causa justa avança. Ainda que os patifes vençam
todas as lutas políticas, conquanto a sociedade pareça ser
passada das mãos de um bando de criminosos para as mãos de
outro bando de criminosos tão prontamente como o governo
muda e a marcha da civilização seja uma série de crimes;
apesar disso, os fins gerais são de algum modo atendidos.
Atualmente, assistimos a acontecimentos impostos que
parecem atrasar ou fazer recuar a civilidade dos séculos. Mas o
espírito do mundo é bom nadador, e nenhuma tormenta ou
onda consegue afogá-lo. Ri-se das leis, e, ao longo da história,
os céus parecem empregar meios baixos e pobres. Ao longo
dos anos e séculos, através de agentes maldosos, através de
ninharias e átomos, uma tendência grandiosa e beneficente
mana irresistivelmente.
Que o homem aprenda a procurar o permanente no mutável
e efémero; que aprenda a suportar o desaparecimento das
coisas que costumava venerar sem perder a reverência; que
aprenda que se encontra aqui não para trabalhar, mas para ser
trabalhado; e que, mesmo que se abra um abismo atrás de
outro e a opinião faça mudar a opinião, todos estão finalmente
contidos na Eterna Causa: «Se o meu barco afundar, é para um
outro mar.»(36)
-
(32) «Aquele que não gostar de vinho, mulheres e canto / será um tolo para o resto
da vida.» [N. do T.]

(33) Em grego, significa «julgar, refletir, considerar». [N. do T.]

(34) Referência à personagem do conto Old Poz de Maria Edgeworth. [N. do T.]

(35) Referência a Charles King Newcomb (1820–1894), poeta e editor do The Dial
e membro da comunidade utópica de Brook Farm. [N. do T.]

(36) Do poema «If my Bark sink», de Emily Dickinson. [N. do T.]


V

Shakespeare, ou o Poeta
Os grandes homens distinguem-se mais pelo alcance e
extensão do que pela originalidade. Se exigirmos que a
originalidade consista em tecer, como uma aranha, a sua teia
das próprias entranhas, em procurar barro, em fazer tijolos e
construir uma casa, nenhum homem é original. Nem a
originalidade de valor consiste na diferença relativamente a
outros homens. O herói sai da refrega dos cavaleiros e do peso
dos acontecimentos e, observando as necessidades dos homens
e partilhando os seus desejos, junta um indispensável alcance
de visão e braço para atingir o ponto pretendido. O maior
génio é o homem que mais deve. Um poeta não é um
desmiolado que diz o que lhe vem à cabeça, acabando por
dizer, porque diz tudo e mais alguma coisa, algo de bom, mas
um coração em uníssono com o seu tempo e país. Nada existe
de caprichoso e fantástico na sua produção, afora doce e triste
sinceridade, prenhe das mais pesadas convicções e marcada
pelo propósito mais determinado que um homem ou classe
conhece na sua época.
O génio da nossa vida tem inveja dos indivíduos e não irá
permitir nenhum indivíduo grande, salvo através do general. O
génio não tem escolha. Um grande homem não acorda uma
bela manhã e diz: «estou cheio de vida, vou fazer-me ao mar e
encontrar o continente antártico; hoje, farei do círculo
quadrado; vou esmiuçar a botânica e encontrar um novo
alimento para o homem; tenho uma nova arquitetura na
cabeça; antevejo uma nova força mecânica»; pelo contrário,
vê-se a si mesmo no rio dos pensamentos e acontecimentos,
arrastado pelas ideias e necessidades dos seus
contemporâneos. Ele encontra-se no local para onde
convergem os olhares dos homens, e as suas mãos apontam a
direção que deve seguir. A Igreja criou-o entre ritos e
cerimoniais, tendo ele seguido o conselho que a música lhe
deu e construído a catedral de que os seus cânticos e
procissões careciam. Nasce no meio de uma guerra feroz, ela
educa-o, ao som de trombetas, nas barracas, melhorando a sua
instrução. Vê dois países em dificuldades para trazer carvão,
farinha ou peixe do lugar onde é produzido para o lugar onde é
consumido e descobre, por acaso, o caminho de ferro. Todo o
mestre encontra já reunidos os seus materiais e o seu poder
reside na simpatia que nutre pela sua gente e no seu amor
pelos materiais que trabalha. Que economia de poder! E que
compensação pela brevidade da vida! Tudo se cria pela sua
mão. O mundo trouxe-o até aqui seguindo o seu caminho. A
raça humana laborou antes dele, arrasando colinas, enchendo
os buracos vazios e construindo pontes sobre os rios. Homens,
nações, poetas, artesãos, mulheres, todos trabalham para ele, e
ele participa nos seus labores. Escolhei qualquer outra coisa
fora de uma linha tendencial, à margem do sentimento e
história nacional, e ele teria de fazer tudo sozinho: todo o seu
poder seria gasto nos preparativos. Quase que se diria que o
grande poder genial consiste em não ser nada original, em ser
absolutamente recetivo, em deixar o mundo fazer tudo e
permitir que o espírito do momento passe desimpedido pela
mente.
A juventude de Shakespeare coincidiu com uma época em
que o povo inglês clamava por espetáculos dramáticos. A corte
ofendia-se facilmente com as alusões políticas e tentou
suprimi-los. Os Puritanos, um partido em crescimento e ativo,
e os religiosos entre a Igreja Anglicana acabariam por eliminá-
los. No entanto, o povo desejava-os. Pátios de pousadas, casas
sem teto e recintos improvisados em feiras rurais constituíam
os teatros improvisados de que os atores ambulantes
dispunham. O povo provara esta nova alegria e não era agora
possível eliminar os jornais — não, nem o partido mais forte o
conseguiria —, nem mesmo o rei, prelado ou puritano,
sozinhos ou em conjunto, podiam suprimir um órgão que era
simultaneamente balada, epopeia, jornal, reunião política,
conferência, local para beber e biblioteca. Muito
provavelmente, rei, prelado e puritano, todos viram nele a sua
utilidade. Tornara-se, por todos os motivos, num interesse
nacional — de forma nenhuma conspícuo a ponto de um
grande estudioso ter pensado fazer dele tema numa história de
Inglaterra —, mas nem por isso menos valorizado por ser
barato e de pouca importância, tal como uma padaria. A
melhor prova da sua vitalidade está no facto de uma multidão
de escritores ter subitamente irrompido neste domínio: Kyd,
Marlowe, Greene, Jonson, Chapman, Dekker, Webster,
Heywood, Middleton, Peele, Ford, Massinger, Beaumont e
Fletcher.
A posse segura, desde o palco, da mente do público revela-
se de importância capital para o poeta que trabalha para ele.
Não perde tempo com experiências inúteis. Trata-se de uma
audiência e expectativa bem preparadas. No caso de
Shakespeare, há muito mais. Quando saiu de Stratford para
Londres, levava-se à cena um grande conjunto de peças
dramáticas manuscritas, de todos os períodos e escritores. O
conto de Troia era uma das que o público ouvia um pouco
todas as semanas; a morte de Júlio César e outras histórias de
Plutarco, das quais nunca se cansava; uma estante cheia de
história inglesa, das crónicas de Bruto e Artur aos régios
Henriques, que os homens ouviam avidamente; e uma série de
tragédias tristes, alegres contos italianos e viagens espanholas,
que todos os aprendizes de Londres conheciam. Todo o
conjunto foi tratado, com mais ou menos habilidade, por todos
os dramaturgos, até que o ponto tinha os manuscritos
manchados e rasgados. Já não é possível afirmar quem os
escreveu primeiro. São propriedade do Teatro há tanto tempo,
alterados e ampliados por tantos novos génios, inserindo neles
um discurso ou uma cena inteira ou acrescentando uma
canção, de modo que já ninguém pode reclamar a autoria desta
obra de muitos. Felizmente, ninguém o quer fazer. As obras
ainda não são desejadas dessa maneira. Existem uns poucos
leitores, muitos espectadores e ouvintes. É melhor que fiquem
onde estão.
Shakespeare, como os seus companheiros, apreciava o
conjunto de velhas peças dramáticas, material desgastado, a
partir do qual se podia fazer livremente qualquer experiência.
Existisse esse prestígio que rodeia toda a obra moderna e nada
se teria feito. O sangue rústico e caldo da Inglaterra viva
circulava na peça, como nas baladas populares, e dava corpo à
sua imaginação graciosa e majestosa. O poeta precisa de um
terreno na tradição popular sobre o qual possa trabalhar e
capaz de conter, uma vez mais, a sua arte dentro dos limites de
uma justa moderação. Vincula-o ao povo, dá-lhe os alicerces
para o seu edifício e, pondo-lhe nas mãos tanto trabalho já
feito, deixa-o à vontade e com toda a força para as audácias da
sua imaginação. Em suma, o poeta deve à sua lenda o que a
escultura deve ao templo. A escultura, no Egito e na Grécia,
nasceu subordinada à arquitetura. Era o ornamento da parede
do templo: a princípio, um relevo rudimentar esculpido no
frontão, em seguida, o relevo tornava-se mais marcado e uma
cabeça ou braço sobressaíam da parede, com os conjuntos
ainda a ser dispostos de acordo com o edifício, que serve
simultaneamente de enquadramento para as figuras e, quando,
por fim, se atingiu a maior liberdade de estilo e tratamento, o
génio reinante da arquitetura ainda impõe uma certa calma e
continência na estátua. Assim que a estátua se fez por si
mesma e sem qualquer referência ao templo ou palácio, a arte
entrou em declínio: o capricho, a extravagância e a exibição
ocuparam o lugar da antiga moderação. Este contrapeso que o
escultor encontrou na arquitetura, a perigosa irritabilidade do
talento poético, foi encontrá-lo nos materiais dramáticos
acumulados aos quais o povo já se acostumara e que tinham
uma certa excelência que nenhum génio isolado podia aspirar
criar, por muito extraordinário que fosse.
De facto, parece que Shakespeare contraira dívidas em
todos os lados e foi capaz de usar o que quer que encontrasse;
além disso, este volume de dívidas pode ser inferido dos
laboriosos cálculos de Malone relativamente à primeira,
segunda e terceira partes de Henrique VI, na qual, «de um todo
de 6043 versos, 1771 foram escritos por um autor que
precedeu Shakespeare, 2373 por ele, sobre a base deixada
pelos seus predecessores, e 1899 eram inteiramente da sua
autoria». E a investigação quase não reconhece a autoria
absoluta de uma única peça. A tese de Malone é uma peça
importante de história externa. Em Henrique VIII, julgo ver
claramente revelar-se a rocha original na qual constava o seu
estrato mais fino. A primeira peça foi escrita por um homem
superior, profundo, com um ouvido perverso. Posso assinalar
os seus versos e conheço bem a sua cadência. Veja-se o
solilóquio de Wolsey e a cena seguinte com Cromwell na qual,
em lugar da métrica de Shakespeare — cujo segredo reside em
o pensamento construir o tom, de maneira que a leitura a partir
do sentido é a que melhor faz sobressair o ritmo —, temos
versos construídos num dado tom, possuindo até um traço da
eloquência dos pregadores. Todavia, ao longo de toda a sua
extensão, a peça contém traços inconfundíveis da mão de
Shakespeare e certas passagens, como a descrição da
coroação, assemelham-se a autógrafos. O que parece estranho
é que a saudação à rainha Isabel tenha um ritmo tão
inadequado.
Shakespeare sabia que a tradição providenciava uma fábula
melhor do que qualquer invenção. Se perdia algum crédito
pela autoria, aumentava os seus recursos; ademais, a nossa
petulante exigência de originalidade não era tão premente. Não
havia literatura para as massas. A leitura universal e a
imprensa barata eram desconhecidas. Um grande poeta, que
surge em tempos iletrados, absorve na sua esfera toda a luz
que se irradia. Levar ao povo toda a joia intelectual, toda a flor
do sentimento, eis o belo serviço que lhe presta, valorizando a
sua memória tanto quanto a sua invenção. Não presta, por
conseguinte, muita atenção quando os seus pensamentos são
desviados pela tradução, ou pela tradição, ou pelas viagens a
países distantes, ou pela inspiração; seja qual for o motivo, são
igualmente bem-vindos para o seu público fácil de contentar.
Não, ele toma de empréstimo mais perto de casa. Outros
homens dizem coisas tão sensatas como ele, simplesmente
dizem muitas tolices e não sabem quando falaram com
sensatez. Ele conhece o brilho de uma verdadeira pedra
preciosa e, onde quer que a encontre, coloca-a no lugar mais
elevado. Talvez seja essa a ditosa posição de Homero, de
Chaucer, de Saadi. Sentiram que todo o engenho era seu. E são
bibliotecários e historiógrafos, assim como poetas. Todo o
romancista era herdeiro e dispensador das centenas de contos
do mundo:
Narrando o verso de Tebas e Pélope
E o conto da divina Troia.(37)
A influência de Chaucer é conspícua em toda a nossa
literatura mais antiga e, mais recentemente, não só Pope e
Dryden lhe são devedores, como é com facilidade que se
observa uma vasta dívida ainda por reconhecer em toda a
sociedade dos escritores ingleses. Fica-se encantado com a
opulência que alimenta tantos pensionistas. Mas Chaucer é um
grande devedor. Chaucer, ao que parece, pediu emprestado
continuamente, através de Lydgate e Caxton, de Guido di
Colonna, cujo romance latino da guerra de Troia constituía,
por sua vez, uma compilação de Dares Frígio, Ovídio e
Estácio. Em seguida, Petrarca, Boccaccio e os poetas da
Provença são seus benfeitores, o Romance da Rosa não passa
de uma tradução judiciosa de Guilherme de Lorris e Jean de
Meung, Troilo e Créssida de Lólio Úrbico, O Galo e a Raposa
de Lais de Marie, The House of Fame do francês ou do italiano
e o pobre Gower é usado como se fosse apenas um forno de
tijolos ou pedreira com a qual constrói a sua casa. Rouba
usando esta justificação: aquilo que colhe não tem valor algum
onde o encontra, mas possui o maior onde o coloca. Acabou
por se tornar quase uma regra na literatura, que um homem
que se tenha mostrado capaz de uma escrita original tem, daí
em diante, o direito de roubar dos textos dos outros à vontade.
O pensamento é propriedade de quem o consegue albergar e
daquele que sabe fazer um uso adequado dele. O uso de
pensamentos tomados de empréstimo é marcado por um certo
desconforto, porém, a partir do momento em que aprendemos
o que fazer com eles, tornam-se nossos.
Toda a originalidade é, portanto, relativa. Todo o pensador
é retrospetivo. O deputado culto, em Westminster ou em
Washington, discursa e vota em nome de milhares. Mostrai aos
eleitores e aos canais, por ora invisíveis, através dos quais o
senador toma conhecimento dos seus desejos, à multidão de
homens práticos e entendidos que, por meio de
correspondência ou conversação, o vão alimentando com
testemunhos, histórias e opiniões, e a sua bela atitude e
resistência será privada de algo do seu carácter
impressionante. Assim como Sir Robert Peel e Webster votam,
também Locke e Rousseau pensam por milhares e, do mesmo
modo, existiam fontes por todo o Homero, Manes, Saadi ou
Milton, das quais beberam; amigos, amantes, livros, tradições,
provérbios — todos já mortos —, os quais, se vistos,
reduziriam o assombro. Terá o bardo falado com autoridade?
Ter-se-á sentido superado por algum companheiro? O apelo
dirige-se à consciência do escritor. Afinal, terá ele, no seu
peito, um vidente délfico a quem se possa perguntar algo sobre
um qualquer pensamento ou coisa, se é realmente assim ou
não? E será possível confiar na resposta? Não há dívida que
um tal homem contraísse de outro espírito que perturbasse a
sua consciência de originalidade, pois o auxílio de livros e
outras mentes não passa de uma baforada de fumo sobre essa
realidade mais privada com a qual conversara.
Vê-se facilmente que aquilo que é mais bem escrito e feito
no mundo pelo génio não é trabalho de um homem, mas surge
mediante um labor social mais vasto, quando um milhar
trabalha como um, partilhando o mesmo impulso. A nossa
Bíblia inglesa é um espécime maravilhoso da força e música
da língua inglesa. Não foi, porém, gerada por um homem ou
num dado momento; pelo contrário, séculos e igrejas levaram-
na à perfeição. Não houve período em que não existisse uma
tradução qualquer. A liturgia, admirada pela sua energia e
pathos, é uma antologia da piedade dos tempos e nações, uma
tradução das orações e formas da Igreja Católica — estas
também coligidas por longos períodos de orações e meditações
de cada santo e escritor sagrado de todo o mundo. A respeito
do pai-nosso, Grócio comenta que as proposições singulares
de que é composto já eram usadas no tempo de Cristo nas suas
formas rabínicas. Ele recolheu os grãos de ouro. A linguagem
vigorosa do direito comum, as formas imponentes dos nossos
tribunais e a verdade precisa e substancial das distinções legais
são o contributo de todos os homens perspicazes e
determinados que viveram em países governados por estas
leis. A tradução de Plutarco é considerada excelente por ser
uma tradução de uma tradução.(38) Nunca houve um tempo em
que não houvesse uma. Todas as frases verdadeiramente
idiomáticas e nacionais foram mantidas, e todas as outras,
escolhidas sucessivamente e deitadas fora. Algo semelhante a
este processo ocorreu, muito antes, com os originais destes
livros. O mundo toma as suas liberdades com os livros do
mundo. Os Vedas, as Fábulas de Esopo, o Pilpay, As Mil e
Uma Noites, O Poema do Cid, a Ilíada, Robin Hood, a arte
escocesa dos menestréis não são obras de um único homem.
Na composição dessas obras, o tempo pensa, o mercado pensa,
o pedreiro pensa, o carpinteiro, o mercador, o agricultor, o
janota, todos eles pensam por nós. Todo o livro oferece ao seu
tempo uma palavra benéfica; toda a lei municipal, todo o
comércio, toda a loucura do dia; e o génio universal, que não
receia ou se envergonha por dever a sua originalidade à
originalidade de todos, mostra-se à época seguinte como
aquele que regista e personifica a sua.
Temos de agradecer à investigação dos antiquários, assim
como à Shakespeare Society, o apuramento das fases do drama
inglês, desde os mistérios celebrados nas igrejas pelos clérigos
até à separação final da igreja, à conclusão de peças seculares,
de Ferrex and Porrex e do Gammer Gurton’s Needle, até ao
momento em que as peças que Shakespeare alterou,
remodelou, até as tornar, por fim, suas, tomaram conta do
palco. Enlevados pelo sucesso e excitados pelo crescente
interesse no problema, não deixaram banca de livros por
vasculhar, nenhuma arca num sótão por abrir, nenhum arquivo
amarelecido a decompor-se entregue à humidade e aos vermes,
tão intensa era a esperança em descobrir se o jovem
Shakespeare fora um caçador furtivo ou não, se tinha cavalos à
entrada do teatro, se frequentara a escola e qual o motivo para
só ter deixado a sua segunda melhor cama a Ann Hathaway, a
sua mulher.
Há algo impressionante na loucura que levou a época que
passou a escolher tão mal o objeto sobre o qual todas as velas
brilham e todos os olhares se voltam; o cuidado com que
registou todas as frivolidade relativas à rainha Isabel e ao rei
Jaime, aos Essexs, Leicesters, Burleighs e Buckinghams,
deixando de lado, sem um único comentário de valor, o
fundador de outra dinastia que, sozinho, fará que a dinastia
Tudor fique na memória, o homem que alberga em si a raça
saxónica na inspiração que o nutre e cujos pensamentos
alimentarão durante gerações os mais importantes povos do
mundo, mentes que receberão essa influência e não outra. Um
artista popular, ninguém suspeitou que fosse o poeta da raça
humana, e o segredo foi guardado com tanto zelo dos poetas e
eruditos quanto dos cortesãos e gente frívola. Bacon, que
tomou a tarefa de inventariar o entendimento humano da sua
época, não mencionou o seu nome. Conquanto tenhamos
sobrevalorizado as poucas palavras de consideração e louvor,
Ben Jonson não imaginava a elasticidade da fama, cujas
primeiras vibrações notava. Seguramente, pensou que o elogio
que lhe concedia era generoso, considerando-se, sem dúvida, o
melhor poeta dos dois.
Se para reconhecer o talento é preciso talento, segundo o
provérbio, o tempo de Shakespeare devia ser capaz de o
reconhecer. Sir Henry Wotton nasceu quatro anos depois de
Shakespeare e morreu vinte e três anos mais tarde e, entre os
seus correspondentes e relações, encontro as seguintes
personalidades: Teodoro de Beza, Isaac Casaubon, Sir Philip
Sidney, o conde de Essex, Lorde Bacon, Sir Walter Raleigh,
John Milton, Sir Henry Vane, Izaak Walton, Dr. Donne,
Abraham Cowley, Bellarmine, Charles Cotton, John Pym,
John Hales, Kepler, Vieta, Alberico Gentili, Paolo Sarpi,
Armínio; com todos eles, existe um qualquer indício de ter
havido comunicação, sem enumerar muitos outros que, sem
dúvida, terá conhecido: Shakespeare, Spenser, Jonson,
Beaumont, Massinger, os dois Herberts, Marlowe, Chapman e
os demais. Desde a constelação de grandes homens que surgiu
na Grécia no tempo de Péricles, que não se via uma sociedade
destas, no entanto, o seu génio falhou em encontrar a melhor
cabeça do universo. A máscara do nosso poeta era
impenetrável. Não se vê a montanha de perto. Demorou um
século para a tornar aparente e, somente dois séculos após a
sua morte, é que se vislumbrou o surgimento de uma crítica
digna desse nome. Não foi possível até hoje escrever a história
de Shakespeare, pois ele é o pai da literatura alemã: foi com a
introdução de Shakespeare na Alemanha, por intermédio de
Lessing, e a tradução das suas obras por Wieland e Schlegel
que a literatura alemã conheceu um rápido impulso. Só no
século XIX, cujo génio especulativo é uma espécie de Hamlet,
é que a tragédia de Hamlet pode encontrar leitores curiosos. A
sua mente é o horizonte para lá do qual, no presente, nada se
vê. Os nossos ouvidos são educados musicalmente pelo seu
ritmo. Coleridge e Goethe são os únicos críticos que
expressaram as nossas convicções com a fidelidade adequada,
mas existe, em todas as mentes cultivadas, uma silente
apreciação do seu poder e belezas superlativos, que, à
semelhança do cristianismo, qualificam a época.
A Shakespeare Society inquiriu por todo o lado, publicitou
os dados em falta, ofereceu dinheiro por qualquer informação
que conduzisse a conclusões — e qual o resultado? Juntamente
com alguns esclarecimentos sobre a história do drama inglês,
para as quais já chamei a atenção, reuniram uns poucos factos
a propósito dos bens e relações comerciais, relacionados com
o património do poeta. Consta que, de ano para ano, aumentou
a sua quota no Teatro Blackfriars, que o guarda-roupa e outros
acessórios eram seus, que comprou uma propriedade na sua
cidade natal com os ganhos enquanto escritor e acionista, que
viveu na melhor casa de Stratford, que os seus vizinhos lhe
confiaram os seus assuntos em Londres, como empréstimos de
dinheiro e afins, que era um verdadeiro agricultor. Por volta da
altura em que escrevia Macbeth, processou Philip Rogers, no
tribunal do distrito de Stratford, em trinta e cinco xelins e dez
pennies, por trigo que fora entregue a ele em vários momentos;
aparentou ser um bom marido em todos os sentidos, sem fama
de excentricidade ou excesso. Era um homem de índole fácil,
um ator e acionista no teatro, mas não de uma maneira que o
distinguisse grandemente dos outros atores e administradores.
Reconheço a importância desta informação. Valeu bem os
sofrimentos por que se passou para a conseguir.
Não obstante estes fragmentos de informação sobre a sua
condição terem sido resgatados, acabam por não lançar luz
alguma sobre essa infinita invenção que é o íman oculto da sua
atração para nós. Somos escritores de história muito
desastrados. Escrevemos a crónica do parentesco, do
nascimento, do local onde nasceu, da educação escolar, dos
colegas de escola, de como ganhou dinheiro, do casamento, da
publicação de livros, da sua celebridade, da morte e, quando
chegamos ao fim desta bisbilhotice toda, não há uma réstia de
relação entre isso e o filho de uma deusa; parece até que, se
mergulhássemos ao acaso no «Plutarco Moderno» e lêssemos
aí uma outra vida qualquer, também nela se encaixariam os
poemas. A essência da poesia é brotar do invisível, como o
arco-íris, filha do Maravilhoso(39), para abolir o passado e
recusar toda a história. Malone, Warburton, Dyce e Collier(40)
desperdiçaram o seu óleo. Os afamados teatros, Covent
Garden, Drury Lane, Park e Tremont(41) ajudaram em vão.
Betterton, Garrick, Kemble, Kean e Macready(42) dedicaram
as suas vidas a este génio; a ele, coroaram, elucidaram,
obedeceram e expressaram. O génio não os conhece. A récita
começa, solta-se uma imortal palavra áurea de toda esta
pedantaria maquilhada e atormenta-nos docemente com
convites para as suas casas inacessíveis. Recordo ter assistido
uma vez ao Hamlet de um célebre ator, o orgulho dos palcos
ingleses, e tudo o que então ouvi e tudo o que agora recordo
do ator trágico é aquilo em que o ator não tomou parte, tão-
somente a pergunta de Hamlet ao fantasma:
What may this mean,
That thou, dead corse, again in complete steel
Revisit’st thus the glimpses of the moon?(43)
Essa imaginação que dilata o pequeno gabinete em que
escreve até à dimensão do mundo, que o povoa de agentes
dispostos por grau e ordem reduz de uma forma igualmente
instantânea a grande realidade aos fulgores da Lua. Estes
truques da sua magia arruínam, para nós, as ilusões do
camarim. Poderá alguma biografia lançar luz sobre as
localidades em que me faz entrar o Sonho de Uma Noite de
Verão? Terá Shakespeare confidenciado a um notário ou
arquivista de paróquia, sacristão ou sucedâneo, em Stratford, a
génese dessa delicada criação? A floresta de Arden, o ar
ligeiro do Castelo de Scone, o luar da vila de Pórcia, «as
fundas cavernas e desertos ociosos»(44) do cativeiro de Otelo
— onde está o primo longínquo ou o sobrinho-neto, os registos
do chanceler ou correspondência privada, que terão
conservado uma palavra desses segredos transcendentes? Em
suma, neste drama, como em todas as grandes obras de arte —
na arquitetura ciclópica do Egito e Índia, na escultura ao estilo
de Fídias, nas catedrais góticas, na pintura italiana, nas baladas
de Espanha e da Escócia —, o génio leva a escada consigo
quando o período criativo alcança o céu e dá azo a um novo
período, que observará as obras e pedirá em vão uma
explicação.
Shakespeare é o único biógrafo de Shakespeare e nem ele
poderá dizer coisa alguma, exceto ao Shakespeare em nós, nos
nossos momentos mais perspicazes e compreensivos. Não
pode levantar-se da sua tripeça e contar-nos histórias das suas
inspirações. Leia-se os antigos documentos descobertos,
analisados e comparados pelos dedicados Dyce e Collier, e
leia-se depois uma dessas frases celestes — meteoritos —, que
parecem ter caído do céu e que só o homem dentro do peito,
não a vossa experiência, aceitou como palavras do destino, e
dizei-me se elas correspondem; se as primeiras explicam as
segundas ou quais fornecem uma melhor compreensão
histórica do homem.
Portanto, embora a nossa história externa seja imensamente
pobre, ainda que com Shakespeare como biógrafo, em lugar de
Aubrey e Rowe, possuímos realmente a informação essencial:
a que descreve o carácter e a fortuna, aquela que mais nos
importaria, caso fôssemos conhecer o homem e conviver com
ele. Temos o registo das suas convicções, às quais todo o
coração exige resposta: sobre a vida e a morte, o amor, a
riqueza e pobreza, as recompensas da vida e maneiras de as
alcançar; sobre as índoles dos homens, as influências ocultas e
explícitas, que afetam os seus destinos, e sobre aqueles
poderes misteriosos e demoníacos que desafiam a nossa
ciência e que, no entanto, entrelaçam a sua malícia e os seus
dons nos nossos melhores momentos. Quem leu o volume dos
Sonetos sem descobrir que o poeta relevara, sob máscaras que
não são máscaras para o inteligente, o saber da amizade e do
amor, a confusão de sentimentos nos homens mais suscetíveis
e, ao mesmo tempo, mais intelectuais? Que traço da sua mente
privada escondeu ele nas suas peças dramáticas? Podemos
discernir, nos seus amplos retratos de cavalheiros e do rei,
quais as formas e géneros de humanidade que lhe agradam; o
seu prazer em grupos de amigos, na hospitalidade plena, na
jucunda liberalidade. Deixai Tímon, Warwick, António, o
mercador responder pelo seu grande coração. Longe de ser o
menos conhecido, Shakespeare é a única pessoa, em toda a
história moderna, que conhecemos. Que aspeto dos costumes,
da educação, da economia, da filosofia, da religião, do gosto,
da conduta de vida deixou por resolver? Que mistério não foi
elucidado pelo seu conhecimento? A que rei não ensinou a
realeza, como Talma(45) ensinou a Napoleão? Que donzela
não o achou mais refinado do que a sua própria delicadeza?
Que amante não foi superado por ele em amor? Que sábio não
foi superado em sabedoria? Que gentil-homem não instruiu ele
sobre a rudeza do seu comportamento?
Alguns críticos capazes e inteligentes entendem que uma
crítica de Shakespeare que não se baseie puramente no seu
mérito dramático não tem valor nenhum, que ele é falsamente
apreciado como poeta e filósofo. A minha opinião é tão
elevada como a destes críticos em relação ao seu mérito
dramático, mas continuo a pensar que esse mérito é
secundário. Ele foi um homem pleno, que gostava de falar, um
cérebro que exalava pensamentos e imagens, que encontrou no
teatro o meio mais à mão de ventilar. Tivesse ele sido menos
do que foi e teríamos de considerar quão bem ocupou o seu
lugar, quão bom dramaturgo foi — e foi o melhor do mundo.
Mas, aparentemente, aquilo que tinha para dizer tinha um tal
peso, que desviava a atenção do veículo, ele é como um santo
cuja história deve ser reproduzida em todas as línguas, em
verso e em prosa, em canções e imagens, e talhada em
provérbios, de maneira que a ocasião que deu ao significado
do santo a forma de uma atitude, de uma oração ou de um
código de leis é irrelevante comparada com a universalidade
da sua aplicação. Assim sucede com o sábio Shakespeare e o
seu livro da vida. Ele escreveu as árias de toda a nossa música
moderna; escreveu o texto da vida moderna, o texto das nossas
maneiras; traçou o esboço do homem de Inglaterra e da
Europa; é o pai do homem da América; desenhou o homem e
descreveu o dia, bem como tudo o que se faz na sua duração;
leu os corações dos homens e mulheres, a sua probidade e os
seus pensamentos ocultos e manhas; as manhas da inocência e
as transições que fazem deslizar as virtudes e vícios para os
seus contrários; sabia separar a parte da mãe da parte do pai no
rosto de uma criança, ou traçar as finas demarcações da
liberdade e do fado; ele conhecia as leis da repressão que
constituem a política da natureza; e todos os encantos e todos
os horrores da sina humana jazem tão veramente na sua mente,
ainda que de um modo subtil, como a paisagem no olho. A
importância desta sabedoria de vida faz perder de vista a
forma do drama ou da épica. É como perguntar algo sobre o
papel no qual é escrita a mensagem de um rei.
Shakespeare está tão à margem da categoria dos autores
eminentes como está à margem da multidão. É
incompreensivelmente sábio; os outros, compreensivelmente.
Um bom leitor pode, de certo modo, aninhar-se no cérebro de
Platão e pensar a partir daí, mas não no de Shakespeare.
Estamos ainda fora de portas. Quanto à faculdade executiva, à
criação, Shakespeare é único. Ninguém pode imaginá-lo
melhor. Ele possuía o maior poder de subtileza compatível
com um eu individual — o mais subtil dos autores, e apenas
dentro das possibilidades da autoria. Paralelamente à sua
sabedoria de vida está o igual dom natural de poder
imaginativo e lírico. Vestiu as criaturas que fazem parte da sua
lenda de formas e sentimentos como se fossem gente que
viveu consigo, e poucos homens reais deixaram personagens
tão distintas como estas ficções. E falavam numa linguagem
tão doce quanto apropriada. No entanto, os seus talentos nunca
o seduziram a cair na ostentação nem a falar repetidamente do
mesmo assunto. Uma humanidade omnipresente coordena
todas as suas faculdades. Dai a um homem de talento uma
história para contar e, de súbito, a sua parcialidade se
manifestará. Certas observações, opiniões, tópicos que
expressa possuem uma elevação fortuita, usando tudo para a
exibir. Ele empanturra esta parte e mata de fome aquela,
ponderando não a capacidade da coisa, mas a sua própria
capacidade e força. Shakespeare não mostra, todavia,
peculiaridade alguma, nenhum tópico lhe é incómodo, mas
tudo tem o seu devido lugar, sem tendências ou curiosidades,
não é pintor de vacas nem amante de pássaros nem maneirista,
não se deteta nele egotismo nenhum: o grande é dito com
grandeza, o pequeno com pequenez. É sensato sem afetação ou
alarde, é forte tal como a natureza é forte, elevando a terra em
montanhas sem esforço e pela mesma regra com que faz pairar
uma bolha no ar, tirando prazer num e noutro. É isto que faz
aquela igualdade de poder na farsa, na tragédia, na narrativa e
nas canções de amor, um mérito tão incessante que cada leitor
se espanta com a perspetiva dos outros leitores.
O poder da expressão, ou da transposição da verdade mais
íntima das coisas em música ou verso, converte-o no tipo do
poeta, juntando, assim, um problema à metafísica. É isto que o
atira para a história natural, como uma produção maior do
globo, anunciando novas eras e melhoramentos. As coisas
espelharam-se na sua poesia sem perda ou esbatimento: sabia
pintar o subtil com precisão, o grande com amplitude, o
trágico e o cómico com igual facilidade e sem distorção
alguma ou sem privilegiar um em detrimento do outro. A sua
poderosa execução foi levada a cabo com a maior minúcia nos
detalhes até à ponta de um cabelo, dá os últimos retoques
numa pestana e numa covinha do rosto tão firmemente como
se desenhasse uma montanha. E, no entanto, estes, tal como os
da natureza, terão de suportar o escrutínio do microscópio
solar.
Em suma, ele é o exemplo maior que prova que mais ou
menos produção, mais ou menos imagens são coisas
perfeitamente indiferentes. Ele tinha o poder de criar uma
imagem. Daguerre ensinou como deixar uma flor gravar a sua
imagem na placa de iodo, e seguiu gravando calmamente um
milhão. Existem sempre objetos, mas nunca houve
representação. Eis finalmente a representação perfeita,
deixamos agora o mundo das figuras posar para o seu retrato.
Não há receita para a criação de um Shakespeare, mas fica
demonstrada a possibilidade de tradução das coisas em
canções.
O seu poder lírico reside no génio da obra. Os sonetos,
apesar de a sua excelência se perder no esplendor das peças
dramáticas, são tão inimitáveis quanto elas. Não é mérito dos
versos, mas mérito total da obra; como o tom de voz de
alguém incomparável, também este é um discurso de seres
poéticos, e toda a oração é agora tão impronunciável quanto o
poema inteiro.
Não obstante os discursos nas peças e versos isolados
possuírem uma beleza que tenta o ouvido a parar neles pelo
seu eufuísmo, a frase está, ainda assim, tão carregada de
significado e tão ligada às que a antecedem e sucedem que o
lógico fica satisfeito. Os seus meios são tão admiráveis como
os fins, toda a invenção inferior, de cujo auxílio se serve para
ligar alguns contrários irreconciliáveis, é igualmente um
poema. Não é forçado a desmontar e a caminhar, pois os seus
cavalos correm com ele para lugares distantes; ele cavalga
sempre.
A mais bela poesia foi a primeira experiência, no entanto, o
pensamento sofreu uma transformação desde que foi uma
experiência. Os homens cultos muitas vezes podem alcançar
um certo grau de habilidade na versificação, mas a sua história
pessoal torna-se fácil de ler através dos seus poemas. Aqueles
que os conhecerem podem nomeá-los: este é o André e esta a
Raquel. O sentido mantém-se, pois, na esfera do prosaico. É
uma lagarta com asas, ainda não uma borboleta. Na mente do
poeta, o facto já passou para o novo elemento do pensamento e
perdeu tudo o que o revestia. Esta generosidade subsiste em
Shakespeare. A partir da verdade e exatidão das suas imagens,
diremos que ele sabe a lição de cor. Contudo, não há sinal de
egotismo algum.
Ao poeta propriamente dito, pertence uma outra
característica régia. Refiro-me à sua jovialidade sem a qual
nenhum homem pode ser poeta, porque o seu objetivo é a
beleza. Ama a virtude não por obrigação, mas pela sua graça;
tira prazer do mundo, do homem, da mulher, em virtude da luz
encantadora que neles brilha. Irradia beleza, um espírito de
alegria e hilaridade sobre o universo. Epicuro conta que a
poesia possuía encantos tais, que um amante podia esquecer a
sua amada para tomar partido neles. E, aos verdadeiros bardos,
era reconhecido o seu temperamento firme e jovial. Homero
deita-se ao sol, Chaucer está contente e de pé, e Saadi afirma:
«diz-se no estrangeiro que sou um penitente, mas que tenho eu
que ver com o arrependimento?». O tom de Shakespeare não é
menos soberano e jovial, mas muito mais soberano e jovial. O
seu nome inspira alegria e emancipação ao coração do homem.
Se devesse aparecer na companhia de almas humanas, quem
não marcharia com ele? Em nada toca ele que não adquira a
saúde e longevidade do seu estilo festivo.
E agora, como fica a dívida do homem para com este bardo
e benfeitor, quando, na solidão, fechando os ouvidos à
reverberação da sua fama, procuramos saldar as contas? São
austeras as lições da solidão, ela pode ensinar-nos a poupar ao
mesmo tempo heróis e poetas, avaliando Shakespeare na
mesma medida, descobrindo a incompletude e imperfeição que
partilha com a humanidade.
Shakespeare, Homero, Dante, Chaucer viram o esplendor
de significado que pairava sobre o mundo visível, sabiam que
uma árvore tinha outro uso além de produzir maçãs, o cereal,
para mais do que farinha e o globo terreste, para mais do que
lavoura e estradas; sabiam que estas coisas produzem uma
segunda e mais subtil colheita na mente, quando se tornam
emblemas dos seus pensamentos e transmitem, em toda a sua
história natural, um certo comentário mudo acerca da vida
humana. Shakespeare empregou-as à maneira de cores para
compor o seu quadro. Apoiou-se na sua beleza, não dando
jamais o passo que parecia inevitável a um tal génio: ou seja,
explorar a virtude que reside nestes símbolos e que comunica
este poder — que dizem por si mesmos? Converteu os
elementos, que esperavam as suas ordens, em entretenimentos.
Ele era o mestre de festas da humanidade. É como se alguém
visse, por meio de majestosos poderes científicos, os cometas
caírem-lhe na mão, ou os planetas e as suas luas, e devesse
desviá-los das suas órbitas para brilharem juntamente com os
fogos de artifício municipais numa noite festiva, publicitando
em todas as cidades: «Esta noite, pirotecnia de primeira
classe!» Não merecerão os agentes da natureza e o poder de os
compreender mais do que uma serenata ou um trago num
charuto? Vem-nos novamente à memória o texto laudatório do
Alcorão: «Acreditais, vós, que criei os céus e a terra, e tudo
entre eles, por brincadeira?» Enquanto a questão for a do
talento e poder mental, o mundo dos homens não tem nada de
comparável para mostrar. Mas quando se trata da vida, dos
seus materiais e dos seus auxiliares, em que é que ele me
beneficia? Que significa isso? Será tão-somente uma Noite de
Reis, ou Sonho de Uma Noite de Verão ou O Conto de
Inverno: que importa um quadro a mais ou a menos? O
veredicto egípcio da Shakespeare Society de que terá sido um
ator e diretor jovial vem-nos à cabeça. Não consigo casar este
facto com os seus versos. Outros homens notáveis levaram
vidas de modo que se mantivessem de acordo com o seu
pensamento, ao contrário deste homem, que viveu uma de
grandes contrastes. Tivesse sido menos do que foi, tivesse ele
alcançado apenas a mediania de grandes autores, de Bacon,
Milton, Tasso, Cervantes, e talvez deixássemos o facto cair no
crepúsculo do destino humano; no entanto, que este homem
dos homens, que deu à ciência da mente um tema novo e mais
vasto nunca antes visto e plantado o padrão da humanidade
uns metros mais perto do caos, não tenha sido sábio para ele
mesmo deve mesmo constar da história do mundo: que o
melhor poeta tenha levado uma vida obscura e profana, usando
o seu génio para o divertimento do público.
Bem, outros homens, sacerdotes e profetas, israelitas,
alemães e suecos contemplaram os mesmos objetos, viram
também através deles o que continham. E para quê? A beleza
desaparecia de imediato: viam mandamentos, um dever
gigantesco que tudo exclui, uma obrigação, uma tristeza, como
se uma pilha de montanhas lhes tivesse caído em cima e a vida
se tivesse tornado horrível, sem alegria, uma peregrinação,
uma provação, perseguidos por histórias sombrias da queda e
do pecado de Adão, com o Juízo Final e o Purgatório e o fogo
do Inferno pela frente, e o coração do vidente e o coração do
ouvinte afundavam-se neles.
Admita-se que estas são visões incompletas de homens
incompletos. O mundo ainda precisa do seu poeta-sacerdote,
um reconciliador, que não graceje com Shakespeare, o ator,
nem ande às cegas no meio de túmulos com Swedenborg, o
enlutado, mas que verá, falará e agirá com igual inspiração.
Porque o conhecimento aclarará a luz do Sol, a justiça é mais
bela do que o afeto pessoal e o amor é compatível com a
sabedoria universal.
-
(37) Milton, John, Il Penseroso, vv. 99–100. [N. do T.]
(38) Shakespeare usou a tradução de Thomas North das Vidas de Plutarco, feita a
partir da tradução francesa de Jacques Amyot. [N. do T.]

(39) Referência a Íris, personificação do arco-íris, filha de Taumas (em grego,


«maravilhas»), uma divindade marinha. Segundo Hesíodo, na Teogonia, Íris tinha a
incumbência de ser a mensageira dos deuses e, assim, de unir céu e terra. O arco-
íris simboliza essa união. [N. do T.]

(40) Académicos do século XVIII e XIX que editaram Shakespeare. [N. do T.]

(41) Os mais célebres teatros de Londres no século XVIII e XIX. [N. do T.]

(42) Atores famosos do teatro shakespeariano. [N. do T.]

(43)Shakespeare, William, Hamlet, Ato 1, Cena IV. Em português, «O que


significará isto / que tu, cadáver morto, de novo em armadura completa / venhas,
assim, visitar-nos aos fulgores da Lua?». [N. do T.]

(44) Shakespeare, William, Otelo, Ato 1, Cena III. [N. do T.]

(45) Referência a François-Joseph Talma, ator francês e amigo íntimo de Napoleão.


[N. do T.]
VI

Napoleão, ou o Homem do Mundo


Entre as pessoas eminentes do século XIX, Bonaparte é de
longe a mais conhecida e a mais poderosa, devendo a sua
predominância à fidelidade com que expressa o tom do
pensamento e da crença, dos objetivos das massas de homens
cultos e ativos. Segundo a teoria de Swedenborg, cada órgão é
composto de partículas homogéneas, ou, como é por vezes
dito, cada todo é feito de similares, ou seja, os pulmões de
pulmões infinitamente menores, o fígado de fígados
infinitamente pequenos, os rins de pequenos rins, etc. Na
esteira desta analogia, se um homem transporta em si o poder
e afetos de um grande número, se Napoleão é França, se
Napoleão é a Europa, é porque as gentes que ele influencia são
pequenos Napoleões.
Na nossa sociedade, existe um permanente antagonismo
entre a classe conservadora e a democrática, entre aqueles que
fizeram as suas fortunas e os jovens e os pobres, que têm
fortunas por fazer, entre os interesses do trabalho morto — isto
é, o trabalho de mãos há muito no túmulo, cujo labor está
agora sepultado em depósitos bancários ou em terras e
edifícios detidos por capitalistas ociosos — e os interesses do
trabalho vivo, que busca possuir para si terra, edifícios e
depósitos bancários. A primeira classe é tímida, egoísta,
iliberal, odeia a inovação e perde continuamente pessoas para
a morte. A segunda é igualmente egoísta, invasora, ousada,
autoconfiante, sempre em maior número do que a outra,
aumentando-o a todo o instante pelos nascimentos. Deseja
manter em aberto, e multiplicar, todas as vias para a
competição de todos: a classe dos homens de negócio na
América, em Inglaterra, em França e por toda a Europa, a
classe da indústria e do engenho. Napoleão é o seu
representante. O instinto dos homens ativos, corajosos,
capazes, em toda a classe média por todo o lado aponta
Napoleão como o democrata encarnado. Possuía as suas
virtudes e os seus vícios, acima de tudo, possuía o seu espírito
ou ambição. Esta tendência é material, sinalizando um êxito
dos sentidos e empregando os mais ricos e variados meios para
esse efeito, conhecedora das forças mecânicas, altamente
intelectual, extensa e primorosamente instruída e hábil,
submetendo, porém, todas as forças intelectuais e espirituais
como meios para um sucesso material. A meta é ser o homem
rico. «Deus garantiu», diz o Alcorão, «a todos os povos um
profeta que falasse a sua própria língua.» Paris, Londres e
Nova Iorque, o espírito do comércio, do dinheiro e do poder
material também teria o seu profeta, Bonaparte reunia os
requisitos e foi enviado.
Cada um dos milhões de leitores de episódios da vida dele,
ou memórias, ou vidas de Napoleão deleita-se na página,
porque nela estuda a sua própria história. Napoleão é
inteiramente moderno e, no pico das suas qualidades, possui o
mesmo espírito dos jornais. Não é santo — para usar a sua
expressão, «não sou capuchinho» — nem herói, no sentido
mais elevado. O homem da rua encontra nele qualidades e
poderes semelhantes aos outros homens da rua. Vê nele, como
em si mesmo, um cidadão desde o berço, que, por meios muito
compreensíveis, chegou a uma tal posição de comando, que
podia entregar-se a todos aquele gostos que o homem comum
possui, embora seja obrigado a ocultá-los e a negá-los: alta
sociedade, bons livros, viagens rápidas, vestuário, jantares,
criados sem-fim, influência pessoal, a concretização das suas
ideias, a reputação de uma atitude de benfeitor para todas as
pessoas em seu redor, os prazeres refinados dos quadros, das
estátuas, da música, dos palácios e as honras convencionais,
tudo possuía este homem poderoso, justamente o que é
agradável ao coração de todos os homens do século XIX.
É verdade que um homem com a real capacidade de
adaptação de um Napoleão à mente das massas que o rodeia se
torna não só representativo, como efetivamente um
monopolizador e usurpador de outras mentes. Como Mirabeau,
plagiou todo o pensamento e toda a palavra útil proferida em
França. Dumont conta que se sentou na galeria da Convenção
e ouviu Mirabeau fazer um discurso. Ocorreu-lhe pensar que
podia incorporar nele uma peroração, que, de imediato,
escreveu a lápis, e mostrou-a a Lorde Elgin, que se sentava ao
seu lado. Lorde Elgin aprovou-a, e Dumont, à noite, mostrou-a
a Mirabeau. Mirabeau leu-a, proferiu-a admiravelmente e
declarou que a integraria na sua alocução pública, no dia
seguinte, diante da Assembleia. «É impossível», disse
Dumont, «porque, infelizmente, mostrei-a a Lorde Elgin.»
«Ainda que o tenhais mostrado a Lorde Elgin, e a mais
cinquenta pessoas, irei na mesma usá-la amanhã» e usou-a
realmente na sessão do dia seguinte. Mirabeau, com a sua
personalidade dominante, sentia de facto que estas coisas,
inspiradas pela sua presença, eram suas como se tivesse sido
ele próprio a proferi-las e que, ao adotá-las, lhes atribuía o seu
peso. Muito mais absoluto e centralizador foi o sucessor da
popularidade de Mirabeau, e muito além da sua predominância
em França. De facto, um homem da estatura de Napoleão
quase deixa de ter um discurso ou opinião privados. É tão
amplamente recetivo e ocupa uma tal posição que acaba por se
tornar num departamento para toda a inteligência, engenho e
poder da época e do país. Ele ganha a batalha, dita o código,
cria o sistema de pesos e medidas, nivela os Alpes, constrói as
estradas. É a ele que todos os mais notáveis engenheiros,
eruditos, estatistas reportam, assim como todas as grandes
cabeças de todos os géneros; ele adota as melhores medidas,
coloca o seu carimbo nelas e não apenas nestas, mas em
qualquer expressão feliz e memorável. Qualquer frase
proferida por Napoleão, bem como qualquer linha da sua
prosa, merece ser lida, pois trata-se do sentimento da França.
Bonaparte foi o ídolo do homem comum, porque possuía
em grau transcendente as qualidades e poderes dos homens
comuns. Existe um certo contentamento em descer ao nível
mais baixo da política, dado que nos livramos de palavreado e
hipocrisia. Bonaparte labutou, em conjunto com a grande
classe que representava, pelo poder e riqueza, mas Bonaparte,
em especial, sem nenhum escrúpulo quanto aos meios. Põe de
lado todos os sentimentos que embaraçam os homens que
perseguem esses objetos. Os sentimentos são para mulheres e
crianças. Louis de Fontanes, em 1804, dirigiu-se a ele: «Sire, o
desejo de perfeição é a pior doença alguma vez infligida à
mente humana.» Os defensores da liberdade, e do progresso,
são «ideólogos», um termo desdenhoso tantas vezes na sua
boca: «Necker é um ideólogo», «Lafayette é um ideólogo».
Um provérbio italiano excessivamente conhecido declara
que «se queres ter sucesso, não podes ser demasiado bom».
Dentro de certos limites, é uma vantagem renunciar-se ao
domínio dos sentimentos de piedade, gratidão e generosidade,
já que o que constituía um obstáculo intransponível para nós, e
que ainda o é para os outros, torna-se numa arma útil para os
nossos fins, da mesma forma que um rio, que era uma barreira
terrível, se transforma, no inverno, na mais tranquila das
estradas.
Napoleão renunciou, de uma vez por todas, a sentimentos e
afetos, procurando auxiliar-se com as mãos e a cabeça. Com
ele, não há milagres nem magia. Trabalha em bronze, em
ferro, em madeira, em terra, em estradas, em edifícios, em
dinheiro e em tropas, revelando-se um mestre de obras muito
consistente e sábio. Nunca é débil e literato, mas age com a
solidez e a precisão das causas naturais. Não perdeu o seu
sentimento e simpatia natos pelas coisas. Os homens cedem
diante de um homem desta índole como cedem diante de
fenómenos naturais. Existem certamente homens imersos nas
coisas, como agricultores, ferreiros, marinheiros e mecânicos,
sabendo nós quão reais e sólidos tais homens aparentam ser na
presença de académicos e linguistas; mas estes homens
normalmente carecem do poder de organização e são como
mãos sem uma cabeça. Bonaparte, porém, acrescentou a esta
força mineral e animal uma tal visão e generalização, que
homens e terra se fizeram carne e começaram a calcular.
Portanto, a terra e o mar parecem pressupô-lo. Apresentou-se à
sua gente e ela recebeu-o. Este operário calculador sabe com
que trabalha e qual o produto. Ele conhece as propriedades do
ouro e do ferro, dos carros e navios, das tropas e diplomatas e
exigia que cada um fizesse aquilo que lhe era próprio.
A arte da guerra era o jogo no qual empregava a sua
aritmética. Consistia, segundo ele, em ter sempre mais forças
do que o inimigo no ponto em que o inimigo é atacado ou
onde ele ataca, e todo o seu talento se esgota em infinitas
manobras e evolução para marchar sobre o inimigo sempre a
partir de um ângulo e destruir as suas forças por completo. É
óbvio que uma força muito pequena que se mova hábil e
velozmente, de modo que consiga apresentar sempre dois
homens contra um no local de combate levará a melhor sobre
um grupo de homens muito mais vasto.
A época, a sua constituição e as circunstâncias iniciais da
sua vida combinaram-se para desenvolver este democrata
modelo. Detinha as virtudes da sua classe e as condições
necessárias para as suas atividades: aquele senso comum que
logo que encontra um fim procura os meios de o concretizar; o
prazer no uso dos meios, na escolha, simplificação e
combinação dos meios; a objetividade e rigor do seu trabalho;
a prudência com que observou tudo e a energia com tudo foi
feito fazem dele o órgão natural e a cabeça daquilo a que eu
quase chamaria, pelo seu alcance, o indivíduo moderno.
A natureza tem de longe a quota maior de responsabilidade
em todos os sucessos e, por isso, no dele. Um tal homem foi
desejado, um tal homem nasceu; um homem de pedra e ferro,
capaz de cavalgar durante dezasseis ou dezassete horas, de
passar dias e dias sem descanso ou comer senão pequenos
bocados aqui e ali, e com a velocidade e a energia de um tigre
em ação; um homem que não se deixa embaraçar por nenhum
tipo de escrúpulo; compacto, obstinado, egoísta, prudente e
dono de uma perceção que não consentia ver-se frustrada ou
desencaminhada por pretensões alheias, superstição ou por
uma ânsia ou urgência pessoais. «A minha mão de ferro»,
disse ele, «não se situa na extremidade do meu braço, mas
imediatamente ligada à minha cabeça.» Respeitava o poder da
natureza e atribuía-lhe a sua própria superioridade, ao invés de
se valorizar a si mesmo, à semelhança dos homens inferiores,
a partir da sua própria capacidade opinativa, travando uma
guerra com a natureza. A sua retórica preferida acha-se na
alusão à sua estrela e contenta-se, assim como o povo, quando
se intitula a si mesmo «Filho do Destino». «Acusam-me», diz:
[D]a prática de grandes crimes: homens da minha
estatura não cometem crimes. Nada é mais simples do que
a minha elevação, é em vão que se atribui a sua causa à
intriga ou ao crime, deve-se à peculiaridade da época e à
minha reputação de ter lutado bem contra os inimigos do
meu país. Marchei sempre juntamente com a opinião das
grandes massas e com os acontecimentos. Que utilidade
teriam os crimes para mim?
Diz novamente, falando do filho: «O meu filho não
consegue substituir-me, eu não conseguiria substituir-me. Sou
uma criatura das circunstâncias.»
Possuía uma objetividade na ação nunca antes combinada
com tanta compreensão. É um realista, aterrador para todos os
palradores e gente confusa que ofusca a verdade. Ele percebe
onde a questão vacila, atira-se ao ponto exato de resistência e
desvaloriza todas as outras considerações. É forte da maneira
certa, isto é, por intuição. Nunca ganhou por acaso, mas
venceu as batalhas na sua cabeça antes de as vencer no
terreno. Os principais meios estão nele próprio. Não pede
conselhos a ninguém. Em 1796, escreve ao Diretório:
Conduzi a campanha sem consultar ninguém. Não teria
feito nada se fosse obrigado a conformar-me às noções de
outra pessoa. Ganhei algumas vantagens sobre forças
superiores e, quando me encontrava totalmente
desamparado, porque, convencido de que a vossa
confiança repousava sobre mim, as minhas ações foram tão
imediatas como os meus pensamentos.
A história encontra-se até hoje repleta da imbecilidade de
reis e governantes. São uma classe de pessoas merecedoras da
nossa pena, pois não sabem o que devem fazer. Os tecelões
fazem greve reivindicando pão, e o rei e seus ministros, não
sabendo o que fazer, vão ao seu encontro com baionetas. Mas
Napoleão sabia do seu negócio. Aqui estava um homem que,
em cada momento e emergência, sabia o que fazer a seguir. É
um imenso consolo e alívio para os espíritos, não só dos reis
como dos cidadãos. Poucos homens veem adiante, vivem da
mão para a boca, sem plano, sempre no fim da linha,
esperando permanentemente um impulso do exterior após cada
ação. Napoleão teria sido o homem mais importante do mundo
se os seus fins tivessem sido exclusivamente públicos. Como
é, inspira confiança e vigor pela extraordinária unidade da sua
ação. É firme, seguro, abnegado, paciente, sacrificando tudo
— dinheiro, soldados, generais e a sua própria segurança pelo
seu objetivo —, não se deixando desviar, como os aventureiros
vulgares, pelo esplendor dos seus próprios meios. «Os
incidentes não devem governar a política», afirma, «mas a
política os incidentes.» «Ser empurrado por um acontecimento
qualquer é não ter sistema político.» As suas vitórias eram
somente outras tantas portas e nem por um momento perdeu
de vista o caminho adiante, no deslumbramento e tumulto das
circunstâncias presentes. Sabia o que fazer e estava à altura.
Encurtaria uma linha reta para chegar ao seu objetivo. Não há
dúvida de que seria possível reunir curiosidades horríveis da
sua história, do preço que pagou pelo seu sucesso, mas não é
por isso que deve ser visto como cruel, apenas como alguém
que não conheceu obstáculo algum à sua vontade; nem
sanguinário, nem cruel, mas ai daquilo ou de quem se
atravessar no seu caminho! Não era sanguinário, mas não
poupava no sangue, nem se apiedava. Só via o objetivo, o
obstáculo tinha de ceder. «Sire, o general Clarke não consegue
unir esforços com o general Junot devido ao fogo terrível da
artilharia austríaca.» «Pois que aguente o fogo.» — «Sire, os
regimentos que se aproximam da artilharia pesada são
sacrificados: Sire, quais as ordens?» — «Em frente, em
frente!» Séruzier, um coronel da artilharia, nas suas Memórias
Militares(46), traça, o seguinte retrato após a Batalha de
Austerlitz:
No momento em que o exército russo estava a bater em
retirada, penosa mas organizadamente, sobre o gelo do
lago, o Imperador Napoleão aparece cavalgando a toda a
brida em direção à artilharia. «Estão a perder tempo»,
gritou, «disparem sobre as massas; eles têm de ser
engolidos: disparem sobre o gelo!» A ordem não foi
cumprida durante dez minutos. Em vão, vários oficiais e eu
próprio fomos colocados na encosta de uma colina para
cumprir a tarefa: as balas deles e as minhas rolaram sobre
o gelo sem o quebrar. Ao ver aquilo, tentei um método
simples que consistia em elevar morteiros ligeiros. A
queda quase perpendicular dos pesados projéteis produziu
o efeito desejado. O meu foi seguido de imediato pelas
baterias contíguas, e em menos de nada sepultámos —
alguns(47) — milhares de russos e austríacos nas águas do
lago.
Na plenitude dos seus recursos, todos os obstáculos
pareciam desaparecer. «Não haverá Alpes», disse; e construiu
as suas estradas perfeitas, que trepam os mais íngremes
precipícios através de galerias niveladas, até que Itália se via
tão aberta a Paris como qualquer outra cidade francesa.
Trabalhou incansavelmente pela sua coroa. Uma vez decidido
o que fazer, executava-o com toda a energia. Mostrava toda a
sua força. Arriscava tudo sem poupar nada, fossem munições,
dinheiro, soldados, generais ou ele mesmo.
Gostamos de ver cada coisa cumprir a sua função conforme
o seu género, seja uma vaca leiteira ou uma cascavel, e se lutar
é o melhor modo de resolver as diferenças entre nações (como
parecem concordar a grande maioria dos homens), Bonaparte
estava certo em fazê-lo até ao fim. O grande princípio da
guerra, declarava, consistia em ter o exército sempre pronto,
dia e noite, a todas as horas, para que pudesse resistir até onde
fosse capaz. Nunca economizava munições, pelo contrário,
fazia chover uma torrente de ferro — obus, balas de canhão,
de metralhadora — sobre uma posição hostil para aniquilar
qualquer defesa. Concentrava esquadrão após esquadrão, em
números impressionantes, sobre qualquer ponto de resistência
até este ser varrido da existência. A um regimento de
caçadores a cavalo em Lobenstein, dois dias antes da Batalha
de Jena, Napoleão disse: «Rapazes, não temais a morte;
quando soldados desafiam a morte, levam-na às fileiras do
inimigo.» No furor do assalto, tampouco se poupava a si
mesmo. Ia ao limite das suas possibilidades. Revela-se
evidente que fez em Itália o que era possível e tudo o que
podia. Esteve, por diversas vezes, a um passo da ruína e, ele
próprio, perto da morte. Viu-se atirado para o pântano em
Arcola. Na peleja, os austríacos achavam-se entre ele e as suas
tropas e esteve quase a ser feito prisioneiro. Participou em
sessenta batalhas. Nunca estava satisfeito. Cada vitória era
uma nova arma. «O meu poder cairia se não fosse apoiado por
novas conquistas. A conquista fez de mim o que sou e deve ser
ela a preservar-me.» Sentiu, à semelhança de todo o homem
sábio, que a vida é tão necessária para a conservação como
para a criação. Estamos sempre em perigo, sempre numa má
posição, sempre à beira da destruição e salvos unicamente pelo
engenho e coragem.
Este vigor era conservado e temperado pela mais fria
prudência e pontualidade. Um meteorito no ataque, era
considerado invulnerável nas suas trincheiras. O próprio
ataque não era fruto da inspiração da coragem, mas resultado
do cálculo. A sua ideia da melhor defesa consiste, ainda assim,
em ser a fação que ataca. «A minha ambição», afirma, «era
grande, mas de uma natureza gélida.» Numa das suas
conversas com Las Cases, notou que, «quanto à coragem
moral, raramente conheci alguém que fosse do tipo de
coragem das duas-da-manhã; isto é, uma coragem sem
preparação, aquela que é necessária numa ocasião inesperada e
que, apesar dos acontecimentos mais imprevistos, permite, ao
juízo e à decisão, inteira liberdade». E não hesitou em declarar
que ele mesmo era dotado dessa «coragem das duas-da-manhã,
e que conhecera poucas pessoas que o igualassem nesse
particular».
Todas as coisas dependiam da exatidão das suas
combinações, e as estrelas não eram mais pontuais do que a
sua aritmética. A sua atenção ia aos mais ínfimos pormenores.
Em Montebello, ordenei Kellermann que atacasse com
oitocentos cavalos, e, com estes, ele separou os seis mil
granadeiros húngaros sob o olhar da própria cavalaria
austríaca. Esta cavalaria estava a meia légua de distância e
precisava de um quarto de hora para chegar ao campo de
batalho, e eu observara que são sempre estes quartos de
hora que decidem uma batalha.
«Antes de entrar numa batalha, Bonaparte pensava pouco
sobre o que faria caso tivesse êxito, mas muito sobre o que
devia fazer em caso de um revés da fortuna.» A mesma
prudência e bom senso marcam todo o seu comportamento. As
instruções ao seu secretário nas Tuileries são dignas de ficar na
memória: «Durante a noite, entrai nos meus aposentos o
menos possível. Não me despertai quando tiveres boas notícias
para comunicar; para isso, não há pressa. Mas quando
trouxerdes uma má notícia, acordai-me imediatamente, pois,
nesse caso, não há um momento a perder.» Foi uma economia
bizarra do mesmo género que ditou a sua prática, quando era
general em Itália, relativamente à sua volumosa
correspondência. Pediu a Bourrienne para deixar as cartas por
abrir durante três semanas, observando depois com satisfação
que grande parte da correspondência se despachara a ela
mesma e já não precisava de resposta. O seu sucesso na
resolução dos assuntos era imenso e amplia os poderes já
conhecidos do homem. Existiram muitos reis laboriosos, de
ulisses a Guilherme de Orange, mas nenhum que realizasse um
décimo do que este homem conseguiu.
A estes dons da natureza, Napoleão acrescentou a
vantagem de ter herdado uma fortuna familiar e humilde. Nos
últimos anos, teve a fraqueza de desejar acrescentar às suas
glórias e insígnias o título da aristocracia, tinha conhecimento,
no entanto, da sua dívida para com a austera educação que
recebeu e nunca escondeu o seu desdém pelos monarcas de
berço nem pelos «imbecis hereditários», como designou
grosseiramente os Bourbon. Afirmou que «no exílio deles, não
aprenderam nada, nem esqueceram nada». Bonaparte passou
por todas as categorias do serviço militar, mas era também um
cidadão antes de ser um imperador, detendo, por isso, a chave
da cidadania. Os seus comentários e avaliações revelam a
informação e justeza de avaliação da classe média. Aqueles
que tinham de lidar com ele perceberam que não era possível
abusar dele, mas que sabia calcular como qualquer outro
homem. Este facto é ubíquo nas suas Memórias, ditadas em
Santa Helena. Quando as despesas da imperatriz, da sua casa,
dos seus palácios acumularam enormes dívidas, Napoleão
examinou, ele mesmo, as faturas dos credores, detetou
despesas extras e erros e reduziu consideravelmente as somas
reclamadas.
A sua maior arma, quer dizer, os milhões que chefiava,
devia-a ao carácter representativo que o revestia. Ele interessa-
nos como representante de França e da Europa e existe como
capitão e rei apenas por a Revolução, ou o interesse das
massas industriosas, ter visto nele um órgão e um líder.
Quanto ao interesse social, ele percebeu o significado e o valor
do trabalho e deixou-se pender naturalmente para esse lado.
Aprecio um incidente mencionado por um dos seus biógrafos,
em Santa Helena: «Enquanto passeava com a senhora
Balcombe, alguns criados, carregando caixas pesadas,
cruzaram-se na estrada, e a senhora Balcombe, num tom algo
irritado, pediu-lhes que se afastassem. Napoleão interveio,
dizendo: “Respeite a carga, minha senhora.”» No período do
império, dirigiu a sua atenção para o desenvolvimento e
embelezamento dos mercados da capital: «O mercado», disse,
«é o Louvre da gente comum.» As mais importantes obras que
sobreviveram são as magníficas estradas. Insuflou as tropas
com o seu espírito e uma espécie de liberdade e camaradagem
cresceu entre ele e os soldados, a qual a formalidade da sua
corte nunca permitia entre os oficiais e ele próprio. Sob o seu
olhar, executavam aquilo que nenhuns outros conseguiam
fazer. A melhor prova da sua relação com as suas tropas é a
ordem do dia na manhã da Batalha de Austerlitz, na qual
Napoleão promete à tropa que irá manter a sua pessoa fora do
alcance do fogo inimigo. Esta declaração, que é a inversa
daquela que é em geral proferida por generais e soberanos na
véspera de uma batalha, explica suficientemente a devoção do
exército pelo seu líder.
Mas se existe, na esfera particular, esta identificação entre
Napoleão e a massa do povo, a sua verdadeira força reside na
convicção de que ele era o seu representante no génio e
objetivo, não apenas quando a cortejava, mas também quando
a controlava e até mesmo quando a dizimava com os seus
recrutamentos. Ele sabia como filosofar sobre a liberdade e a
igualdade tão bem como qualquer jacobino em França e,
quando era feita alguma alusão ao sangue precioso dos
séculos, que fora derramado com a morte do duque de
Enghien, lembrou: «O meu sangue também não é água suja.»
O povo sentiu que o trono já não estava ocupado e a terra fora
sugada do seu sustento por uma pequena classe de protegidos,
sem contacto com os filhos da terra, perfilhando as ideias e
superstições de um Estado da sociedade há muito esquecido.
Em vez desses vampiros, um dos seus detinha, nas Tuileries,
um conhecimento e ideias idênticas às suas, abrindo
naturalmente a eles e aos seus filhos todos os lugares de poder
e confiança. Os dias de uma política dormente, egoísta,
limitando constantemente os meios e oportunidades dos jovens
terminava e era chegada a hora dos dias de expansão e
exigência. Abria-se um mercado para todos os poderes e
produções do homem, recompensas brilhantes reluziam aos
olhos da juventude e dos homens de talento. A velha e férrea
França feudal transformou-se num jovem Ohio ou Nova
Iorque, e aqueles que sofreram os rigores imediatos do novo
monarca perdoaram-lhos enquanto severidades necessárias do
sistema militar que expulsou o opressor. E mesmo quando a
maioria do povo começou a perguntar-se se tinham realmente
ganhado alguma coisa com as esgotantes requisições de
homens e dinheiro do novo senhor, todos os homens de talento
do país, de todos os quadrantes e afinidades, tomaram o seu
partido e defenderam-no como o seu protetor natural. Em
1814, aconselhado a apoiar-se nas classes mais altas, Napoleão
disse aos que o rodeavam: «Meus senhores, na situação em
que me encontro, a minha única nobreza é a ralé dos
Faubourgs.»(48)
Napoleão esteve à altura desta expectativa natural. A
exigência da sua posição requeria uma hospitalidade para com
toda a espécie de talento e a sua nomeação para cargos de
confiança, e os seus sentimentos acompanhavam esta política.
Como todas as pessoas superiores, sentiu certamente um
desejo por homens e seus iguais, uma vontade de medir o seu
poder com outros senhores e uma impaciência para com os
idiotas e subalternos. Em Itália, procurou homens e não
encontrou nenhum. «Meu Deus», afirmou, «quão raros são os
homens! Há dezoito milhões de pessoas em Itália e foi com
dificuldade que encontrei duas: Dandolo e Melzi.» Nos
últimos anos, com uma experiência mais vasta, o seu respeito
pela humanidade não aumentou. Num momento de amargura,
confidenciou a um dos seus amigos mais antigos: «Os homens
merecem o desprezo que me inspiram. Bastava-me colocar
algumas fitas de ouro na casaca dos meus virtuosos
republicanos e, de imediato, tornavam-se exatamente naquilo
que desejava deles.» Esta impaciência para com a leviandade
era, porém, um tributo indireto de respeito por aqueles
indivíduos capazes e dignos da sua estima, não só quando
demonstravam ser amigos e coadjutores, mas também quando
resistiam à sua vontade. Não confundia Fox e Pitt, Carnot,
Lafayette e Bernadotte com os galanteadores da sua corte e,
apesar da maledicência que o seu egoísmo sistemático lhe
ditava para com os grandes capitães que conquistaram para si
e consigo, tecia amplos elogios a Lannes, Duroc, Kleber,
Dessaix, Massena, Murat, Ney e Augereau. Se sentia ser o seu
benfeitor e criador das suas fortunas, como quando disse
«gerei os meus generais a partir da lama», não sabia esconder
a sua satisfação ao receber deles um auxílio e suporte
proporcional à grandeza da sua empreitada. Durante a
campanha russa, ficou tão impressionado com a coragem e
recursos revelados pelo marechal Ney que afirmou: «Tenho
duzentos milhões nos meus cofres e dá-los-ia todos a Ney.» Os
retratos que traçou de vários dos seus marechais são criteriosos
e, embora não satisfaçam a insaciável vaidade dos oficiais
franceses, são, sem dúvida, justos na sua substância. E, de
facto, procuraram-se e exerceram-se todas as espécies de
mérito sob o seu governo. «Eu conheço», dizia, «a
profundidade e o calado das águas de cada um dos meus
generais.» O poder natural tinha a garantia de ser bem
recebido na sua corte. Dezassete homens no seu tempo foram
elevados de comuns soldados à categoria de rei, marechal,
duque ou general, e as cruzes da sua Legião de Honra foram
dadas ao mérito individual e não às ligações familiares:
«Quando os soldados foram batizados no fogo do campo de
batalha, têm todos uma só categoria para mim.»
Quando um rei natural se torna um rei nominal, toda a
gente fica agradada e satisfeita. A Revolução deu o direito à
forte populaça do Faubourg Saint-Antoine, e a todos os moços
de cavalariça e grumetes do exército, de olhar Napoleão como
carne da sua carne e uma criatura do seu partido. Não obstante,
existe algo no êxito de um grande talento que assegura uma
simpatia universal. Porque todos os homens sensatos estão
interessados na prevalência do sentido e do espírito sobre a
estupidez e malversação e, na qualidade de seres intelectuais,
sentimos o ar purificado pelo choque elétrico, quando a força
material é derrubada pelas energias intelectuais. Logo que se
encontra fora do alcance de partidarismos locais ou ocasionais,
o homem sente que Napoleão luta por si; estas são vitórias
honestas; esta poderosa máquina a vapor faz o nosso trabalho.
Tudo aquilo que apela à imaginação encoraja e liberta-nos
maravilhosamente por transcender os normais limites da
capacidade humana. Esta cabeça imensa, refletindo e dirigindo
soberanamente um vasto conjunto de assuntos e
impulsionando uma tão grande multidão de agentes; este olhar
que cruza toda a Europa; esta prontidão na invenção; este
recurso inesgotável — que acontecimentos!, que quadros
românticos!, que situações insólitas! — quando espiava os
Alpes, a um pôr-do-sol no mar da Sicília, dispondo o seu
exército para a batalha à vista das pirâmides, enquanto dizia à
sua tropa: «do topo destas pirâmides, quarenta séculos vos
contemplam», vadeando o Mar Vermelho, avançando com
dificuldade no golfo do istmo do Suez. Nas costas de
Ptolemais, a sua mente fervilhava de grandes projetos.
«Tivesse Acre(49) caído e teria mudado a face do mundo.» O
seu exército, na noite da Batalha de Austerlitz, que coincidia
com o aniversário da sua investidura como imperador,
presenteou-o com um ramalhete de quarenta estandartes
recolhidos na luta. Talvez seja um pouco pueril o prazer que
assumia em realçar estes contrastes, como quando se deleitava
em fazer esperar os reis na sua antecâmara, em Tilsit, em Paris
e em Erfut.
No meio desta imbecilidade, indecisão e indolência dos
homens, não podemos felicitar-nos o suficiente por este ator
forte e pronto, que agarrou a ocasião pelos cabelos e nos
mostrou o quanto pode ser feito graças à mera força daquelas
virtudes que todos os homens possuem em menor grau, a
saber, a pontualidade, a atenção pessoal, a coragem e a
minúcia. «Os Austríacos», declarou, «não sabem o valor do
tempo.» Devia indicá-lo, nos seus primeiros anos, como um
modelo de prudência. O seu poder não consiste numa força
selvagem ou extravagante, num entusiasmo semelhante ao de
Maomé ou num poder singular de persuasão, mas no exercício
do senso comum em cada emergência, em lugar de se
submeter a regras e costumes. A lição que ele dispensa é
aquela que a energia nos dá: que há sempre espaço para ela. A
vida deste homem é uma resposta a um acúmulo de dúvidas
cobardes. No momento em que surgiu, era crença de todos os
militares de que não podia haver nada de novo na guerra, tal
como é hoje crença que nada de novo pode ser empreendido
na política, na religião, nas letras, no comércio, na agricultura
ou nas nossas atitudes e costumes sociais, assim como é
costume de todos os tempos que a sociedade acredite que o
mundo está gasto. Mas Bonaparte sabia mais do que sociedade
e, mais do que isso, sabia que sabia mais. Julgo que todos os
homens sabem mais do que aquilo que pensam; sabem que as
instituições que tão loquazmente elogiamos são apenas
andarilhos e ninharias, mas não se atrevem a confiar nos seus
pressentimentos. Bonaparte confiava no seu próprio juízo e
não dava a mínima importância ao das outras pessoas. O
mundo tratou a sua originalidade como trata todas as
originalidades: levantou infinitos problemas, arrolou todos os
impedimentos, mas ele não ligou absolutamente nada às suas
objeções. «O que cria grande dificuldade», nota, «na função de
comandante de forças terrestes é a necessidade de alimentar
tantos homens e animais. Se nos permitirmos ser guiados por
comissários, jamais nos mexeremos, e todas as campanhas
resultarão em fracassos.» Aquilo que diz acerca da passagem
dos Alpes no inverno — que todos os escritores, repetindo-se
uns aos outros, descreveram como impraticável — é um
exemplo do seu senso comum. Napoleão afirma:
O inverno não é a estação mais desfavorável para
atravessar montanhas elevadas. Por essa altura, a neve é
firme, o tempo aplaca-se e não há que recear avalanchas, o
real e único perigo nos Alpes. Nessas montanhas altas,
existem muitos dias de bom tempo em dezembro, de um
frio seco, com uma calma extrema no ar.
Leia-se ainda este relato sobre como se ganham as
batalhas:
Em todas as batalhas, há um momento em que os
soldados mais corajosos, depois de terem realizados os
maiores esforços, se sentem inclinados a fugir. Esse terror
tem origem numa falta de confiança na sua própria
coragem e basta apenas uma brevíssima oportunidade, um
pretexto, para lhes ser restituída. A habilidade está em
gerar a oportunidade e em inventar um pretexto. Em
Arcola, ganhei a batalha com vinte e cinco cavaleiros.
Tirei proveito desse momento de lassidão, dei a cada
homem um clarim e ganhei o dia com este punhado de
homens. Note-se que dois exércitos são como dois corpos
que se encontram e procuram assustar-se mutuamente; um
momento de pânico ocorre e esse momento deve ser
transformado em vantagem. Quando um homem participa
em muitos combates, sabe distinguir o momento sem
dificuldade: é tão fácil como fazer uma soma.
Este delegado do século XIX juntou aos seus dons uma
capacidade para especular sobre tópicos gerais. Tinha prazer
em percorrer todo o espectro de questões de natureza prática,
literária e abstrata. A sua opinião é sempre original e
pertinente. Durante a viagem ao Egito, gostava, após o jantar,
de arranjar três ou quatro pessoas para defender uma tese e
outras tantas para se opor a ela. Propunha o tema, girando as
discussões em torno de questões de religião, os diferentes tipos
de Governo e a arte da guerra. Certa vez, perguntou se os
planetas eram habitados. Noutra ocasião, qual a idade do
mundo. De seguida, propôs considerar a probabilidade da
destruição do planeta por água ou fogo; noutra vez, a verdade
ou falsidade das intuições e a interpretação dos sonhos.
Gostava imenso de falar de religião. Em 1806, teve uma
conversa com Fournier, bispo de Montpellier, sobre teologia.
Não conseguiram chegar a acordo em dois pontos: o do
Inferno e o da salvação através da Igreja. O imperador contou
a Josefina que discutira como um diabo quanto a estes dois
pontos, sobre os quais o bispo era intransigente. Aos filósofos,
concedia tudo quanto fosse demonstrado a favor da religião
enquanto obra dos homens e do tempo, todavia, não queria
ouvir falar de materialismo. Uma bela noite, num convés, a
meio de uma conversa animada sobre materialismo, Bonaparte
apontou para as estrelas e disse: «Meus senhores, podem falar
o que quiserem, mas quem fez aquilo?» Adorava as discussões
com homens da ciência, em particular, com Gaspard Monge e
Claude Berthollet; já em relação aos homens de letras,
desprezava-os: eram «fabricantes de frases». Gostava ainda de
falar sobre medicina e com os praticantes por quem nutria
mais estima: Jean-Nicolas Corvisart, em Paris, e François
Carlo Antommarchi, em Santa Helena. Disse ao último:
Acreditai em mim, estaríamos melhor sem todos esses
remédios, a vida é uma fortaleza da qual nem vós nem nós
sabemos o que quer que seja. Para quê dificultar-lhe a
defesa? Os seus próprios meios são superiores a todo o
aparato dos vossos laboratórios. Corvisart concordou
abertamente comigo que todas as vossas misturas nojentas
não servem para nada. A medicina é uma coleção de
prescrições incertas, cujos resultados, considerados em
conjunto, são mais fatais do que úteis à humanidade. Água,
ar e asseio são os principais artigos da minha farmacopeia.
As suas memórias, ditadas ao conde Montholon e ao
general Gourgaud, em Santa Helena, são importantíssimas,
uma vez removido tudo o que aparentemente se deve
desconsiderar, tendo em conta a sua conhecida falta de
sinceridade. Possuía a franqueza de não dissimular o seu valor
e a consciência da sua superioridade. Admiro a narrativa
simples e clara das suas batalhas, tão boa como a de César; a
sua descrição simpática e suficientemente respeitosa do
marechal Wurmser e dos seus outros antagonistas, assim como
a capacidade de tratar de igual forma os mais variados temas.
A parte mais agradável é a da campanha no Egito.
Tinha horas de pensamento e sabedoria. Nos intervalos de
lazer, fosse no campo ou no palácio, Napoleão parecia ser o
tipo de homem de génio que, nas questões abstratas, mostrava
o mesmo apetite pela verdade e manifestava a mesma
impaciência pelas palavras que costumava revelar na guerra.
Sabia apreciar todos os jogos de imaginação, tanto num
romance, num dito espirituoso, como num estratagema militar.
Divertia-se a amedrontar Josefina e as suas damas, num
apartamento a meia luz, contando histórias terríveis
acentuadas pela sua voz e talento dramático.
Chamo a Napoleão o agente ou advogado da classe média
da sociedade moderna, da turba que enche os mercados, lojas,
gabinetes de contabilidade, manufaturas, navios do mundo
moderno, ambicionando a riqueza. Foi ele o agitador, o
destruidor da prescrição, o renovador interno, o liberal, o
radical, o inventor de meios, aquele que abriu as portas e
mercados, o subversor do monopólio e do abuso. É claro que
os ricos e aristocratas não gostavam dele. Inglaterra, o centro
do capital, Roma e Áustria, centros de tradição e genealogia,
opunham-se-lhe. A consternação das classes entorpecidas e
conservadoras, o terror dos velhos e velhas tontos do conclave
romano — que, no seu desespero, deitariam a mão a qualquer
coisa, nem que fosse a um ferro em brasa —, as tentativas
inúteis de estadistas de distraí-lo e enganá-lo, a do imperador
da Áustria de suborná-lo e o instinto dos jovens, homens
ardentes e ativos por todo o lado que o identificavam como o
gigante da classe média, fazem da sua história uma de
brilhantismo e imponência. Ele detinha as virtudes da massa
dos seus constituintes, e também os seus vícios. Tenho pena de
que o brilhante retrato tenha o seu inverso. Mas a riqueza,
quando a buscamos, tem uma qualidade fatal: é traiçoeira e
compra-se às custas dos sentimentos que quebra e enfraquece,
e é inevitável encontrarmos o mesmo facto na história deste
campeão, que se propôs simplesmente a uma brilhante carreira
sem colocar condições ou escrúpulos quanto aos meios.
Bonaparte era singularmente destituído de sentimentos
generosos. O indivíduo mais bem colocado no mais cultivado
período e população do mundo não tem o mérito da verdade e
honestidade comuns. É injusto com os seus generais, egoísta e
monopolizador, roubando miseravelmente a Kellermann, a
Bernadotte o crédito das suas grandes ações, gerando uma
intriga para levar o seu fiel Junot a uma bancarrota
irrecuperável, a fim de o afastar de Paris, porque o seu modo
familiar ofendia o novo orgulho do seu trono. É um mentiroso
sem limites. O jornal oficial, o seu Moniteur, e todos os seus
boletins estão cheios de adágios para dizer aquilo em que
queria que se cresse e, pior, sentou-se à secretária, na sua
velhice prematura, na sua ilha isolada, a falsificar friamente
factos e datas e personagens, dando à história um éclat teatral.
Como todos os franceses, tem uma paixão pelo efeito cénico.
Qualquer ação que respire generosidade é envenenada por este
cálculo prévio. A sua estrela, o seu amor pela glória, a sua
doutrina da imortalidade da alma, tudo isto é francês: «Tenho
de deslumbrar e surpreender. Se permitisse a liberdade de
imprensa, o meu poder não teria durado três dias.» Causar um
grande ruído é a sua estratégia favorita: «uma grande
reputação consiste num grande ruído: quanto mais se fizer,
mais longe será ouvido. Leis, instituições, monumentos,
nações, tudo desaba, mas o ruído continua e ressoa durante
séculos.» A sua doutrina da imortalidade reduz-se à fama. A
sua teoria da influência não é lisonjeira:
[E]xistem duas alavancas para mover os homens: o
interesse e o medo. O amor é um entusiasmo tolo, uma
dependência. A amizade não passa de um nome. Não amo
ninguém. Não amo sequer os meus irmãos; talvez um
pouco Joseph, por hábito, e porque é o meu irmão mais
velho, e também gosto de Duroc; mas porquê? Porque o
seu temperamento me agrada: é firme e resoluto, e creio
que o sujeito nunca verteu uma lágrima. Quanto a mim, sei
muito bem que não tenho nenhum verdadeiro amigo.
Enquanto continuar a ser quem sou, posso continuar a ter
os falsos amigos que me apetecer. Deixemos a
sensibilidade para as mulheres, já os homens devem
possuir um coração e um propósito inflexíveis, ou esquecer
por completo qualquer carreira na guerra ou no Governo.
Roubaria, caluniaria, mataria, afogaria e envenenaria se o
seu interesse o ditasse. Não demostrava generosidade, mas
apenas um ódio vulgar; era intensamente egoísta, pérfido,
fazia batota nas cartas; era um tremendo coscuvilheiro,
abrindo cartas e deleitando-se na sua polícia infame,
esfregando as mãos de alegria quando intercetava algum
pedaço de informação relativa aos homens e mulheres que o
rodeavam, vangloriando-se por «saber tudo»; mais, intervinha
no corte dos vestidos das mulheres e ouvia, incógnito, os vivas
e saudações que lhe faziam nas ruas. Os seus modos eram
grosseiros. Tratava as mulheres com uma familiaridade rude.
Até ao fim dos seus dias, manteve o hábito de puxar as orelhas
e apertar as bochechas das senhoras, quando estava de bom
humor, e de puxar as orelhas e as suíças aos homens, batendo-
lhes e gozando com eles. Não parece ter espreitado pelos
buracos das fechaduras ou, pelo menos, não foi apanhado a
fazê-lo. Enfim, quando penetramos totalmente nos círculos de
poder e esplendor, percebemos que não estamos a lidar com
um cavalheiro, mas com um impostor e vigarista que merece
por inteiro o epíteto de Jupiter Scapin, uma espécie de Júpiter
Pícaro.
Ao descrever os dois partidos entre os quais a sociedade
moderna se divide — o democrata e o conservador —, afirmei
que Bonaparte representa o democrata, ou o partido dos
homens de negócio, contra o partido estacionário, ou
conservador. Omiti, então, algo fundamental para a tese,
designadamente, que estes dois partidos diferem apenas como
o jovem do velho. O democrata é um jovem conservador; o
conservador, um velho democrata. O aristocrata é o democrata
maduro, caído e usado como semente, pois ambos os partidos
se situam no terreno da propriedade como valor supremo, algo
que um tenta obter e o outro manter. Sim, pode dizer-se de
Bonaparte que, ele mesmo, representa a história integral deste
partido, a sua juventude e a sua velhice e, com alguma justiça
poética, o seu destino. A contrarrevolução, o partido contrário,
espera ainda o seu órgão e representante, na forma de um
amante e de um homem de ambições verdadeiramente
públicas e universais.
Eis uma experiência, sob as mais favoráveis condições,
realizada sobre os poderes do intelecto sem consciência.
Nunca existiu um líder tão dotado e tão preparado; nunca um
líder encontrou tantas ajudas e seguidores. E qual o resultado
deste vasto talento e poder, destes exércitos imensos, das
cidades reduzidas a cinza, dos tesouros dissipados, de milhões
de homens imolados, desta Europa desmoralizada? Nenhum.
Tudo passou, tal qual o fumo da sua artilharia, não deixando
rasto. Deixou a França mais pequena, mais débil do que a
encontrou, e toda a luta pela liberdade recomeçaria. A
tentativa foi, em princípio, suicida. França serviu-o com a
vida, os membros e os bens enquanto conseguia identificar o
seu interesse com o dele, mas, quando os homens viram que
após a vitória havia uma nova guerra; após a destruição de
exércitos, novos recrutamentos e que eles, que combateram tão
desesperadamente, nunca estiveram perto da recompensa, que
nunca puderam gastar o dinheiro que ganharam, repousar nos
seus leitos, nem pavonear-se pelos seus castelos, nessa altura,
abandonaram-no. Compreenderam que o seu egoísmo
absorvente era mortal para todos os outros homens.
Assemelhava-se ao torpedo(50), que inflige uma sucessão de
choques naquele que o agarra, produzindo espasmos que
contraem os músculos da mão de tal intensidade que o homem
não consegue mexer os dedos, e o animal segue infligindo
novos choques, cada vez mais violentos, até paralisar e matar a
sua vítima. Da mesma maneira, este egoísta exorbitante
limitou, empobreceu e absorveu o poder e a existência
daqueles que o serviram, e o clamor universal de França e da
Europa, em 1814, era «Basta de Bonaparte»: «Assez de
Bonaparte».
Não foi culpa de Bonaparte. Ele fez tudo o que lhe era
natural para viver e ser bem-sucedido sem princípios morais.
Foi a natureza das coisas, a eterna lei do homem e do mundo
que o frustrou e arruinou. Qualquer experiência, realizada por
muitos ou individualmente, que tenha um fim puramente
sensual ou egoísta irá falhar. O pacífico Fourier(51) será tão
ineficiente como Napoleão foi pernicioso. Enquanto a nossa
civilização for essencialmente uma de propriedade, de
cercados, de exclusividade, será ludibriada por ilusões. As
nossas riquezas deixar-nos-ão doentes, haverá amargura no
nosso riso e o vinho queimará a nossa boca. O único bem de
que poderemos usufruir será aquele que provaremos de portas
abertas e útil a todos os homens.
-
(46) Théodore Jean Joseph, barão de Séruzier, Mémoires militaires du B. Séruzier,
colonel d’artillerie légère, 1823. [N. do T.]

(47) Como estou a citar em segunda mão, e não consigo confirmar Séruzier, não me
atrevo a assumir o elevado número que li. [N. do A.] O elevado número que
constava da descrição de Séruzier era quinze mil. [N. do T.]

(48) Bairros da classe trabalhadora nos arredores de Paris. [N. do T.]

(49) Cidade costeira israelita, outrora conhecida como Ptolemais. Napoleão falhou
a conquista desta cidade após um cerco de noventa e nove dias. [N. do T.]

(50) Designação comum dos peixes da família dos Torpedinídeos, dotados da


capacidade de produzir fortes descargas elétricas. [N. do T.]

(51) Charles Fourier, reformador social. [N. do T.]


VII

Goethe, ou o Escritor
Para o escritor ou secretário, encontro uma disposição, na
constituição do mundo, que consiste em registar as obras do
espírito miraculoso da vida, que por todo o lado palpita e
labora. O seu ofício é a receção dos factos na mente e, em
seguida, uma seleção das experiências notáveis e
características.
A natureza regista-se. Todas as coisas se ocupam em
escrever a sua história. O planeta, o seixo, é acompanhado pela
sua sombra. A pedra que rola deixa os seus arranhões na
montanha; o rio, o seu leito no solo; o animal, os ossos no
estrato; o feto e a folha, o seu modesto epitáfio no carvão. A
gota que cai esculpe a areia ou a pedra. Não são pegadas na
neve ou no chão, mas impressões, em letras mais ou menos
duradouras, um mapa da sua marcha. Todo o ato do homem se
inscreve nas memórias dos seus companheiros, nos seus gestos
e rosto. O ar está cheio de sons; o céu, de sinais; o chão,
repleto de memorandas e assinaturas; e todo o objeto, coberto
de alusões que falam ao inteligente.
Na natureza, este autorregisto é incessante e a narrativa é a
impressão do selo. Nem excede nem fica aquém do facto. Mas
a natureza luta por ascender e, no caso do homem, o registo é
algo mais do que a impressão do selo. É uma nova e mais
refinada forma do original. O registo está vivo, assim como
aquilo que é registado está vivo. No homem, a memória é uma
espécie de espelho que, tendo recebido as imagens dos objetos
circundantes, ganha vida e as dispõe numa nova ordem. Os
factos revelados não ficam inertes, uns fenecem, outros
brilham, e temos, assim, de imediato, um novo quadro,
composto de experiências eminentes. O homem coopera. Ele
adora comunicar, e aquilo que deve dizer jaz no seu coração
como uma carga até que seja aliviada. Todavia, além da alegria
universal da conversação, alguns homens nascem com poderes
aprimorados para esta segunda criação. Os homens nascem
para escrever. O jardineiro guarda todas as estacas e sementes
e caroços de pêssego; a sua vocação é ser um plantador de
plantas. O escritor não encara o seu ofício de forma muito
distinta. O que quer que contemple ou experiencie chega-lhe
como um modelo e posa para o seu quadro. Ele conta todos os
absurdos que as coisas dizem, e algumas são indescritíveis. Ele
acredita que tudo o que pode ser pensado pode ser escrito e
registará o Espírito Santo, ou tentará fazê-lo. Não há nada
mais amplo ou subtil ou tão querido que não se apresente à sua
pena — e ele escrevê-lo-á. Aos seus olhos, um homem
representa a faculdade de registar e o universo, a possibilidade
de ser registado. Encontra novos materiais numa conversação,
numa calamidade; ou, como diz o nosso poeta alemão: «um
deus deu-me a capacidade de pintar o que sofro». As suas
rendas chegam-lhe da fúria e da dor. Ao agir impetuosamente,
compra o poder de falar com sabedoria. Tormentos, e uma
tempestade de paixão, só lhe dão mais força; escreve o bom
Lutero: «quando estou zangado, consigo rezar melhor e pregar
melhor»; soubéssemos nós a génese dos magistrais golpes de
eloquência e talvez nos lembrassem a complacência do sultão
Murad, que cortou algumas cabeças persas, para que o seu
médico, Vesalius, pudesse observar os espasmos nos músculos
do pescoço. Os seus fracassos valem como preparação para as
suas vitórias. Um novo pensamento, ou uma crise de paixão,
informa-o de que tudo o que aprendeu e escreveu até agora é
exotérico, não é o facto, mas um rumor de um facto. E depois?
Lançará ele fora a pena? Não, começa novamente a descrever
aquilo que brilhou sobre ele a uma nova luz — se, por algum
meio, ainda guardar alguma palavra verdadeira. A natureza
conspira. Tudo o que possa ser ensinado pode ser dito,
procurando sempre, embora por meios rudes e balbuciantes,
uma forma de expressão. Se não lhes for possível abarcá-lo,
espera e trabalha, até que, por fim, os modela à sua vontade e é
articulado.
Esta busca pela expressão imitativa, que encontramos por
todo o lado, é significativa do propósito da natureza, mas é
mera estenografia. Existem graus mais elevados, e a natureza
tem dotes mais impressionantes para aqueles que ela elegeu
para um ofício superior, para a classe dos académicos ou
escritores, que veem conexões onde a maioria vê fragmentos e
que são incentivados a exibir os factos ordenadamente e,
assim, fornecer o eixo sobre o qual gira a estrutura das coisas.
A natureza leva muito a sério a formação do homem
especulativo ou académico. É um fim que nunca perde de vista
e que é preparado no molde original das coisas. Não é uma
presença tolerada ou acidental, mas um agente orgânico, um
dos estados do reino, provido e antecipado, de há muito e de
sempre, na malha e contextura das coisas. Intuições, impulsos
alegram-no. Há um certo calor no peito que acompanha a
perceção de uma verdade primordial, o brilho do sol espiritual
dentro do poço de uma mina. Cada pensamento que amanhece
na mente, no momento do seu surgimento, anuncia o seu
próprio lugar na hierarquia — se é um mero capricho ou se é
um poder.
Se ele tem os seus incentivos, existe, do outro lado,
convites e necessidade suficientes dos seus dons. A sociedade
possui, em todas as épocas, a mesma carência, nomeadamente,
de um homem são com poderes adequados de expressão para
expor cada objeto de monomania nas suas justas conexões. O
ambicioso e o mercenário divulgam os seus mais recentes
disparates, sejam as tarifas, o Texas, o caminho de ferro, o
romanismo, o mesmerismo ou a Califórnia, e, separando o
objeto das suas conexões, conseguem facilmente que seja visto
a uma luz favorável, e um grupo enorme enlouquece com ele,
sem que seja censurado ou curado pelo grupo contrário, que é
mantido a salvo desta insanidade graças a um furor semelhante
por outra fantasia. Mas deixai que um homem tenha o olhar
compreensivo que recoloque este prodígio isolado na sua
vizinhança e contexto certos: a ilusão desaparecerá, e a razão
restaurada da comunidade dará graças à razão do monitor.
O académico é o homem de todas as épocas, mas também
deve querer, com os restantes homens, existir em harmonia
com os seus contemporâneos. Entre as gentes superficiais,
verifica-se, contudo, um certo escárnio para com os
académicos ou classe de pessoas letradas sem nenhum
interesse, a menos que o académico o reconheça. Neste país, a
conversação e a opinião pública enfatiza e louva o homem
prático, e a parte mais sólida da comunidade é mencionada
com um respeito significativo em todos os círculos sociais. O
nosso povo é da opinião de Bonaparte em relação aos
ideólogos. As ideias são subversoras da ordem social e do
conforto e acabam por fazer, de quem as possui, um tolo.
Acredita-se que aquilo que é prático e louvável é o envio de
um carregamento de bens de Nova Iorque para Esmirna, ou
correr para cima e para baixo em busca de um grupo de
subscritores para pôr em andamento cinco ou dez mil teares,
ou as negociações de um círculo eleitoral e a familiarização
com os preconceitos e o carácter dúctil das gentes do povo, de
modo que se garanta os seus votos em novembro.
Se tivesse de comparar uma ação relevantíssima com uma
vida de contemplação, não arriscaria pronunciar-me a favor da
primeira com muita confiança. A humanidade guarda um
interesse tão profundo na iluminação interior que o eremita ou
monge teriam muito que dizer em defesa da sua vida de
pensamento e prece. Uma certa parcialidade, uma
impetuosidade e perda de equilíbrio, é o preço que todas as
ações devem pagar. Agi, se quiserdes, mas fazei-o por vossa
conta e risco. As ações dos homens são demasiado fortes para
eles. Mostrai-me um homem que tenha agido e que não se
tenha tornado vítima e escravo da sua ação. Aquilo que
fizeram compromete-os e obriga-os a realizar o mesmo uma
outra vez. O primeiro ato, que deveria ser uma experiência,
torna-se um sacramento. O reformador arrebatado encarna a
sua aspiração por meio de certos ritos ou pactos, agarrando-se,
ele e os seus amigos, à forma ao mesmo tempo que perde a
aspiração. O quacre fundou o quacrismo, o shaker fundou o
seu mosteiro e a sua dança e, conquanto ambos falem muito de
espírito, não há espírito, mas repetição, o que é antiespiritual.
Mas onde estão as novidades de hoje? Nas ações do
entusiasmo, esta desvantagem aparece; nas atividades mais
banais, porém, que não têm outro objetivo senão tornar-nos
mais confortáveis e mais cobardes em ações manhosas, ações
que roubam e mentem, ações que divorciam a faculdade
especulativa da prática e impõem uma proibição à razão e ao
sentimento, não há outra coisa além de desvantagens e
negação. Os hindus dizem nos seus livros sagrados:
Só as crianças, e não os eruditos, falam das faculdades
especulativa e prática como se fossem duas. Elas são uma,
pois ambas obtêm o mesmo fim, e o lugar obtido pelos
seguidores de uma é ganho pelos seguidores da outra. Só
vê aquele homem que vê que as doutrinas especulativa e
prática são uma só.
Porque as ações excelentes devem alimentar-se da natureza
espiritual. O valor da ação é extraído do sentimento que o
causa. A ação mais notável pode facilmente originar-se no
contexto mais privado.
Esta depreciação não virá dos líderes, mas de gente
inferior. Os cavalheiros vigorosos que ocupam o lugar à
cabeça da classe prática partilham as ideias do seu tempo e
sentem demasiada simpatia pela classe especulativa. Não é em
homens possuidores de um qualquer tipo de excelência que
devemos procurar esta depreciação. Em relação a estes, a
questão mais importante de Talleyrand é sempre a mesma: não
se é rico, se é empenhado, bem-intencionado, se tem esta ou
aquela qualidade, se pertence ao movimento; mas se é alguém,
se defende algo. Um homem deve ser bom no seu género. Isso
é tudo o que pergunta Talleyrand, o State Street e todo o senso
comum da humanidade. Sede reais e admiráveis, não como
nós sabemos, mas como vós sabeis ser. Os homens capazes
não se importam com o género em que um homem é capaz,
apenas se é capaz. Um mestre gosta de outro mestre e não
determina se deve ser um orador, artista, artesão ou rei.
A sociedade não tem realmente outro interesse senão o do
bem-estar da classe literária. Não deve, além disso, negar-se
que os homens se mostram cordiais na sua aprovação e
acolhimento dos feitos intelectuais. Ainda assim, o escritor
não ocupa entre nós um lugar dominante. Penso que isto é
culpa sua. Uma libra é uma libra. Tempos houve em que era
uma pessoa sagrada: escreveu bíblias, os primeiros hinos, os
códigos, as epopeias, os cantos trágicos, os versos sibilinos, os
oráculos caldaicos, as máximas lacónicas inscritas nos muros
do templo. Toda a palavra era verdadeira e despertava nações
para uma nova vida. Não havia leviandade ou escolha na sua
escrita. Cada palavra era gravada na terra e no céu perante o
seu olhar, e o Sol e as estrelas eram apenas letras com o
mesmo significado e sem outra utilidade. Mas como pode ele
ser respeitado, se não se respeita a si mesmo, quando se perde
na massa, quando já não é o legislador, mas o sicofanta,
curvando-se perante a impulsiva opinião pública, quando tem
de defender desavergonhadamente um mau governo, ou latir, o
ano inteiro, na oposição, ou escrever críticas convencionais ou
romances dissolutos, ou, em todo o caso, escrever sem
pensamento e sem recorrer, de dia ou de noite, às fontes da
inspiração?
Talvez possamos encontrar algumas respostas a estas
questões se passarmos revista à lista de homens de génio
literário da nossa época. Entre estes, nenhum outro nome é
mais instrutivo do que o de Goethe para representar os poderes
e deveres do académico ou escritor.
Descrevi Bonaparte como um representante da vida e
ambição externas e populares do século XIX. A sua outra
metade, o seu poeta, é Goethe, um homem totalmente
domesticado pelo seu século, que respira o ar dele, saboreia os
frutos, impossível numa época mais remota e frustra, devido
aos seus dotes colossais, a censura de fraqueza, que, exceção
feita a ele, pesaria sobre as obras intelectuais do período. Ele
aparece num tempo em que uma cultura geral se disseminou e
suavizou os traços individuais mais vincados, num tempo em
que, na ausência de temperamentos heroicos, entrou em cena
um certo conforto social e cooperação. Não existe um poeta,
mas uma miríade de escritores poéticos; nenhum Colombo,
mas centenas de capitães com lunetas astronómicas,
barómetros, sopa concentrada e pemmican(52); nenhum
Demóstenes, nenhum Chatham(53), mas inúmeros retóricos
parlamentares e ardilosos; nenhum profetas ou santo, mas
faculdades de teologia; nenhum homem culto, mas sociedades
instruídas, imprensa barata, salas de leitura e clubes literários
sem fim. Nunca houve tal miscelânea de factos. O mundo
estende-se a si mesmo como o comércio americano. Olhamos
a vida grega ou romana, a vida na Idade Média como um tema
simples e inteligível, no entanto, a vida moderna aparece-nos
como um sem-número de coisas, o que é perturbador.
Goethe foi o filósofo desta multiplicidade; centímano, de
olhar vigilante, competente e satisfeito por lidar com esta
miscelânea giratória de factos e de os usar com à-vontade,
graças à sua própria versatilidade; uma mente viril, segura de
si perante as várias camadas de convenção com que a vida foi
incrustada, perfeitamente capaz de as atravessar com a sua
subtileza e de extrair a sua força da natureza com a qual vivia
em plena comunhão. Igualmente estranho é o facto de ter
vivido numa pequena cidade, num Estado insignificante, num
Estado derrotado e num tempo em que a Alemanha não
desempenhava nenhum papel de liderança em questões de
âmbito mundial, a ponto de inchar o peito dos seus filhos de
um qualquer orgulho metropolitano, como seria do agrado de
um francês, de um inglês ou, outrora, de um romano ou ático.
Porém, não parece haver traço algum de limitação provinciana
na sua musa. Não está em dívida para com a sua posição, mas
nasceu com um génio livre e dominador.
A Helena, ou a segunda parte do Fausto, é uma filosofia da
literatura posta em poesia, a obra de alguém que se descobriu
mestre de histórias, mitologias, filosofias, ciências e literaturas
nacionais, investigando, ao estilo enciclopédico conforme à
erudição moderna com o seu intercâmbio internacional de toda
a população da Terra, a arte indiana, etrusca e todas as artes
ciclópicas, geologia, química, astronomia, assumindo cada um
destes reinos um certo carácter etéreo e poético por causa da
sua diversidade. Olhamos um rei com reverência, mas se nos
fosse dada a oportunidade de assistir a um congresso de reis, o
olhar tomaria liberdades dadas as particularidades de cada um.
Estas não são canções selvagens miraculosas, mas formas
elaboradas às quais o poeta confiou os resultados de oitenta
anos de observação. Esta sabedoria reflexiva e crítica faz do
poema verdadeiramente a flor deste tempo. Data-se a si
mesmo. Não obstante, é ainda um poeta — poeta de uma
glória mais orgulhosa do que qualquer outra dos seus
contemporâneos —, que, sob esta praga de microscópios
(porquanto parece ver de cada poro da sua pele), toca a harpa
com a força e graça do herói.
O milagre deste livro é a sua inteligência superior. No
mênstruo do talento deste homem, o tempo passado e presente
e as suas religiões, políticas e modos de pensamento
dissolvem-se em arquétipos e ideias. As novas mitologias que
vogam pela sua cabeça! Os Gregos disseram que Alexandre
foi tão longe que alcançou o Caos; ainda no outro dia, Goethe
foi igualmente longe, correndo o risco de poder dar um passo a
mais em falso, e trouxe-se de volta são e salvo.
Existe uma liberdade animadora na sua especulação. O
imenso horizonte que viaja connosco empresta a sua majestade
a insignificâncias e a questões de conveniência e necessidade
como a atuações solenes e festivas. Ele foi a alma do seu
século. Se este século foi um de erudição e se tornou, graças à
população e a uma organização compacta e ao exercício dos
talentos, numa grande expedição exploratória, acumulando um
excesso de factos e resultados tão rapidamente que impediria
qualquer cientista até então de os classificar, a mente deste
homem tinha amplas divisões para os recolher. Tinha o poder
de unir novamente os átomos separados pela sua própria lei.
Vestiu a nossa existência moderna com poesia. Entre a
pequenez e o pormenor, detetou o Génio da vida, o velho e
ardiloso Proteu, aninhando-se logo atrás de nós, e mostrou-nos
que o marasmo e prosaísmo que atribuímos à época era tão-
somente mais uma das suas máscaras — «A sua fuga é em si
uma presença disfarçada» — que teria vestido, em vez de um
uniforme alegre, uma roupa de trabalho, não demostrando
menor vivacidade ou riqueza em Liverpool ou na Haia do que,
noutros tempos, em Roma ou Antioquia. Procurou-o nas
praças públicas e ruas principais, por avenidas e hotéis, e, no
meio dos mais sólidos reinos da rotina e da sensualidade,
revelou-nos o latente poder demoníaco, um fio de mitologia e
fábula que se tece a ele próprio nas ações rotineiras, e isto ao
identificar a genealogia de cada costume e prática, de cada
instituição, utensílio e meios até à sua origem na estrutura do
homem. Não tinha paciência para conjeturas e retórica:
«Bastam-me as minhas suposições; se um homem escreve um
livro, que ponha por escrito apenas aquilo que sabe.» Escreve
com o tom mais simples e familiar, omitindo muito mais do
que escreve e cada palavra diz sempre uma coisa. Explicou a
distinção entre o espírito e a arte antigos e modernos. Definiu
a arte, o seu intento e leis. Ninguém escreveu melhor sobre a
natureza do que ele. Tratou-a como os filósofos antigos, como
os sete sábios, e o que for que se perca com a classificação e
dissecção francesas, a poesia e a humanidade ficam connosco,
possuindo um certo saber doutoral. Os olhos são, em geral,
melhores do que telescópios ou microscópios. Fez contributos
fundamentais em muitas áreas da natureza, por meio de uma
rara viragem na sua mente para a unidade e simplicidade. Foi
assim que Goethe sugeriu a ideia dominante da botânica
moderna, de que a folha, ou o rebento da folha, constitui a
unidade da botânica e que as partes da planta não são mais do
que a folha transformada numa nova condição e que, variando
as condições, uma folha pode muito bem converter-se num
outro órgão qualquer, e um outro órgão, numa folha. Da
mesma maneira, na osteologia, afirmou que uma vertebra da
espinha pode ser considerada a unidade do esqueleto: a cabeça
não passava da vertebra superior transformada. «A planta
desenvolve-se de nó em nó, terminando, por fim, com a flor e
a semente. Deste modo, a ténia, a lagarta desenvolve-se de nó
em nó e termina na cabeça. O homem e os animais superiores
formam-se em torno das vertebras, com os poderes
concentrados na cabeça.» Na ótica, rejeitou uma vez mais a
teoria artificial das sete cores e considerou que cada cor
resultava da mistura de luz e escuridão segundo novas
proporções. Na verdade, pouco importa o tópico sobre o qual
escreve. Ele vê por todos os poros e gravita em torno da
verdade. Compreende tudo o que possais dizer. Odeia que o
enganem e forcem a repetir uma e outra vez fábulas de velhas
amas que tomaram posse da fé dos homens por milhares de
anos. Ele poderá muito bem verificar por si próprio se é
verdade. Examina-a com minúcia. Estou aqui, diria, para ser a
medida e o juiz destas coisas. Deverei aceitá-las apenas com
base na confiança? E, por esse motivo, o que diz da religião,
da paixão, do casamento, do comportamento, da propriedade,
do dinheiro, dos períodos de crença, dos presságios, da sorte
ou do que quer que seja recusa ser esquecido.
Tome-se o exemplo mais óbvio que nos pode ocorrer desta
tendência para analisar todos os termos de uso popular. O
Diabo desempenhou um papel importante na mitologia de
todos os tempos. Goethe não usava um termo que não
apontasse para uma coisa. A mesma medida continuará a
servir: «Nunca ouvi falar de um crime que não tivesse
cometido.» Salta, assim, à garganta deste diabinho. Será real,
será moderno, será europeu, vestirá como um cavalheiro e
aceitará os costumes, passeará pelas ruas e estará familiarizado
com a vida em Viena e Heidelberg, em 1820; ou não será. Em
conformidade, despiu-o do aparato mitológico, dos cornos, das
patas bifurcadas, da cauda em forma de arpão, do enxofre e do
fogo azul e, em lugar de o buscar em livros e imagens,
procurou-o na sua própria mente, em todas as tonalidades de
frieza, egoísmo e descrença, que, no meio da multidão, ou na
solidão, ensombram o pensamento humano, notando que o
retrato ganhava realidade e terror sempre que acrescentava ou
removia alguma coisa. Constatou que este demónio, que
pairou, desde que existem homens, sobre as suas habitações,
era puro intelecto aplicado — como sempre que há uma
tendência — ao serviço dos sentidos e atirou para a literatura,
com o seu Mefistófeles, a primeira figura orgânica em épocas
e que sobreviverá tanto tempo quanto Prometeu.
Não tenho intenção alguma de fazer aqui uma análise dos
seus inúmeros trabalhos. Eles consistem em traduções, crítica,
peças dramáticas, lírica e todo o tipo de poemas, diários
literários e retratos de homens notáveis. No entanto, não posso
deixar de destacar Wilhelm Meister.
Wilhelm Meister é um romance em todos os sentidos da
palavra, o primeiro do seu género, considerado pelos seus
admiradores o único esboço da sociedade moderna — como se
outros romances, os de Scott, por exemplo, falassem de
vestuário e estatuto social e este do espírito da vida. É um livro
ainda com alguns véus por afastar. É lido por pessoas muito
inteligentes com espanto e deleite. Alguns preferem-no a
Hamlet como obra de génio. Suponho que nenhum livro deste
século se possa comparar com ele na sua doçura encantadora,
tão novo, tão provocador para a mente, gratificando-a com
tantos e tão sólidos pensamentos, intuições certeiras sobre a
vida, os comportamentos e caracteres; tantas alusões úteis
sobre a conduta de vida, tantos vislumbres inesperados de uma
esfera mais elevada e nunca um vestígio de retórica e aridez.
Um livro muito estimulante para a curiosidade de jovens de
génio, mas um muito insatisfatório. Os amantes de leituras
ligeiras, os que o procuram pelo entretenimento que encontram
numa novela romântica ficarão desiludidos. Por outro lado,
aqueles que o iniciam com a elevada expectativa de ler uma
história digna de génio e merecedora de sucesso pelos seus
esforços e rejeições também terão razões para se lamentar. Há
não muito tempo, tivemos aqui um romance inglês que
professava encarnar a promessa de uma nova era e concretizar
a esperança política do partido chamado «Jovem Inglaterra»,
para o qual a única recompensa da virtude é um lugar no
Parlamento e o pariato. O romance de Goethe conclui-se de
uma forma tão pouco convincente como imoral. George Sand,
no Consuelo e na sua continuação, traçou um quadro mais
verídico e digno. Ao longo da história, as personagens do
herói e da heroína expandem-se a um ritmo que estilhaça o
tabuleiro de xadrez de porcelana da convenção aristocrática:
abandonam a sociedade e hábitos da sua classe, perdem a sua
fortuna, tornam-se servidores das grandes ideias e dos mais
generosos objetivos sociais, até que, por fim, o herói, que é o
centro e origem de uma associação de promoção dos mais
elevados benefícios para a raça humana, já não responde pelo
seu título; ele soa estranho e remoto ao seu ouvido. «Sou
apenas um homem», diz, «respiro e trabalho para o homem», e
isto na pobreza e sacrifícios extremos. O herói de Goethe, pelo
contrário, possui tantas fraquezas e impurezas, frequenta tão
más companhias que o sóbrio público inglês, quando o livro
foi traduzido, ficou enojado. E, não obstante, está tão atulhado
de sabedoria, de conhecimento do mundo e de conhecimento
das leis, as personagens desenhados com tal subtileza, em tão
poucas pinceladas e sem usar uma palavra a mais, que o livro
se mantém sempre novo e inesgotável, tendo nós de o deixar
seguir o seu caminho e estar dispostos a obter de si o bem que
conseguirmos, seguros de que apenas iniciou o seu ministério
e tem ainda milhões de leitores para servir.
O tema consiste na passagem de um democrata para a
aristocracia, empregando ambos os termos no seu sentido mais
elevado. E esta passagem faz-se sem maldade ou servilismo,
mas pela porta grande. A natureza e o carácter estão presentes
e a posição social é tornada real pelo sentido e probidade nos
nobres. Não há jovem generoso que não sinta este encanto de
realidade no livro, sendo, por isso, altamente estimulante para
o intelecto e valentia.
O fogoso e santo Novalis caracterizou o livro como:
[A]bsolutamente moderno e prosaico; o romântico está
completamente balanceado, assim como a poesia da
natureza, o maravilhoso. O livro aborda apenas as coisas
triviais dos homens: é uma história poetizada cívica e
doméstica. O maravilhoso nela é tratado expressamente
como ficção e devaneio apaixonado.
E, contudo, algo também característico, Novalis regressaria
depressa a este livro, que se manteve como a sua leitura
preferida até ao fim da sua vida.
O que distingue Goethe para os leitores franceses e ingleses
é uma qualidade que partilha com a sua nação: a habitual
referência à verdade interior. Em Inglaterra e na América, as
pessoas respeitam o talento e o público fica satisfeito quando
ele é empregado na defesa, ou na oposição constante, a um
qualquer interesse ou partido reconhecido ou coerente. Em
França, retira-se ainda um prazer maior no brilhantismo
intelectual por si mesmo. Além disso, em todos estes países, os
homens de talento escrevem apoiando-se no talento. Para eles,
é bastante ocupar o entendimento, propiciar o gosto com umas
tantas crónicas, por umas quantas horas, passadas de um modo
vivaz e credível. O intelecto alemão deseja a jovialidade
francesa, a compreensão prática refinada do inglês e o espírito
de aventura do americano, mas possui uma certa probidade
que nunca se fica por uma ação superficial, perguntando
sempre: para que fim? O público alemão exige o domínio da
sinceridade. Há aqui atividade do pensamento, mas para quê?
Que quer o homem dizer? De onde vêm todos estes
pensamentos?
Não basta talento para gerar um escritor. Tem de existir um
homem atrás do livro, uma personalidade que, por nascença e
qualidade, se comprometeu com as doutrinas que expôs e que
exista para ver e afirmar as coisas de uma maneira e não de
outra, expressando coisas por serem coisas. Se não consegue
expressar-se corretamente hoje, a mesma coisa subsistirá e
abrir-se-á amanhã. Na sua mente, repousa um peso — o peso
da verdade por declarar — mais ou menos compreendido, e a
sua tarefa e vocação no mundo será a de ver esses factos por
completo, dando-os a conhecer. Que interessa se tropeça ou
gagueja, se a sua voz é áspera ou sibilante, se o seu método ou
os seus tropos são inadequados? A mensagem encontrará um
método e imaginário, expressão e melodia. Fosse ele mudo,
falaria. Se não, se no homem não existisse nenhuma voz de
Deus, que importância tem para nós se é muito hábil, fluente
ou brilhante?
Faz uma grande diferença à força de uma frase, haver ou
não um homem atrás dela. No diário douto, no jornal influente,
não distingo forma alguma, apenas uma sombra irresponsável,
amiúde alguma empresa endinheirada, ou algum pau-mandado
que espera, atrás da máscara e traje do seu parágrafo, passar
por alguém. Porém, em cada oração e em parte do discurso de
um bom livro, vejo os olhos do mais determinado dos homens:
a sua força e terror inundam cada palavra, as vírgulas e
travessões estão vivos, de sorte que a escrita é atlética e ágil,
pode chegar longe e ter vida longa.
Em Inglaterra e na América, é possível ser adepto do estilo
literário de um poeta grego ou latino sem nenhum gosto ou
ímpeto poético. Que um homem passe anos a ler Platão e
Proclo, isso não permite supor que terá opiniões heroicas ou
que subestime as modas da sua cidade. No entanto, a nação
alemã tem a mais ridícula boa-fé nestas questões: o estudante,
uma vez fora da sala de aula, cisma ainda nas suas lições, e o
professor não consegue desfazer-se da fantasia de que as
verdades da filosofia podem de certa forma ser aplicadas em
Berlim e Munique. Este fervor torna-os capazes de melhor
detetar homens de muito mais talento. Desta forma, quase
todas as distinções que são correntes em conversas mais cultas
saíram da Alemanha. Apesar disso, ao passo que os homens
que se notabilizam pelo talento e erudição, em Inglaterra e
França, abraçam o seu estudo e o seu partido com uma certa
leveza, estando implícito que não se comprometem
profundamente, por motivos de carácter, com o tópico ou o
lado que perfilham; Goethe, a cabeça e corpo da nação alemã,
não fala a partir do talento, mas faz a verdade brilhar: ele é
muito sábio, ainda que o seu talento oculte muitas vezes a sua
sabedoria. Por excelente que seja a sua frase, ele tem algo
melhor em vista. Desperta a minha curiosidade. Possui a
espantosa independência que nasce do convívio com a
verdade; quer o ouçais quer não, a sua realidade permanece, e
o vosso interesse no escritor não se confina à sua narrativa,
nem a sua memória é posta de parte após ter cumprido a sua
tarefa honrosamente, como o padeiro após cozer o seu pão;
contudo, o seu trabalho é a menor parte dele. O velho Génio
Eterno que criou o mundo confidenciou mais a este homem do
que a qualquer outro. Não me atrevo a dizer que Goethe
ascendeu aos mais elevados recintos de onde o génio falou.
Não prestou culto à unidade suprema; é incapaz de render-se
ao sentimento moral. Em poesia, há acordes mais nobres do
que aqueles que fez soar. Existem escritores com menos
talento cujo tom é mais puro e que toca mais o coração.
Goethe nunca será querido dos homens. A sua devoção nem
sequer é à verdade pura, mas à verdade por amor da cultura.
As suas aspirações não são nada menos do que a conquista
pessoal da natureza universal, da verdade universal; é um
homem que não consente ser subornado, enganado ou
intimidado, um homem de um autodomínio e abnegação
estoicos, com uma só questão para todos os homens: que tens
para me ensinar? É este o critério com que aprecia todos os
bens: posição social, privilégios, saúde, tempo, ser ele próprio.
Ele é o modelo de homem da cultura, o amador de todas as
artes e ciências e acontecimento; artístico, mas não artista;
espiritual, mas não espiritualista. Não havia nada que não se
sentisse no direito de conhecer; não há arma no arsenal do
génio universal que não tomasse para si, mas com a perentória
cautela de que não devia, nem por um momento, ser
prejudicado pelos seus instrumentos. Projeta um raio de luz
sobre cada facto, e entre ele próprio e a sua qualidade mais
querida. Dele nada era ocultado, nada lhe era negado. Os
demónios à espreita sentam-se com ele, bem como o santo que
via os demónios, e os elementos metafísicos tomam forma. «A
piedade em si não é um fim, mas apenas um meio pelo qual,
através da paz interior mais pura, podemos atingir a mais
elevada cultura.» A sua capacidade de perscrutar todos os
segredos das belas-artes tornará Goethe ainda mais
monumental. Os seus afetos ajudam-no, como as mulheres de
Cícero para arrancar os segredos dos conspiradores.
Inimizades, não tem. Podeis ser inimigo dele — se for o caso,
deveis ensinar-lhe algo que a vossa boa vontade não permite,
quanto mais não seja a experiência que deriva da vossa ruína.
Inimigo e bem-vindo, mas inimigo nos melhores termos. Não
é capaz de odiar; o seu tempo é por demais valioso. Certos
antagonismos temperamentais podem ser tolerados, mas como
lutas de imperadores, que combatem dignamente através dos
reinos.
A sua autobiografia, com o título Da Minha Vida: Poesia e
Verdade (Dichtung und Wahrheit), é expressão da ideia —
agora familiar ao mundo através do espírito alemão, mas uma
novidade para a Inglaterra, nova e velha, quando o livro
apareceu — de que o homem existe para a cultura; não pelo
que pode realizar, mas pelo que pode realizar em si mesmo. A
reação das coisas no homem é o único resultado digno de nota.
Um homem intelectual sabe ver-se a si mesmo na terceira
pessoa; as suas falhas e ilusões interessam-lhe, portanto, tanto
quanto os seus êxitos. Embora tenha vontade de prosperar nas
coisas práticas, tem um desejo maior de conhecer a história e o
destino do homem, ao passo que nuvens de egoístas que
pairam acima dele apenas se interessam por êxitos vulgares.
É esta ideia que governa o Dichtung und Wahrheit e orienta
a seleção dos incidentes, e de modo nenhum a importância
externa dos acontecimentos, o estatuto social das personagens
ou o tamanho da fortuna. É claro que o livro contém escasso
material para o que poderia ser considerado uma «Vida de
Goethe»: poucas datas, nenhuma correspondência, ausência
completa de detalhes sobre cargos ou empregos, nenhuma luz
sobre o seu casamento, e um período de dez anos, que terá
sido o mais ativo da sua vida, após o seu estabelecimento em
Weimar, afunda-se no silêncio. Entretanto, alguns casos
amorosos, que deram em nada, como se diz, assumem uma
importância estranha; inunda-nos com pormenores, opiniões
excêntricas, cosmogonias e religiões da sua própria larva, e,
em particular, as suas relações com mentes notáveis e com
épocas críticas do pensamento — tudo isto ele magnifica. O
seu «Diário e Anuário», a sua Viagem a Itália, a sua
«Campanha em França» e a parte histórica da sua Teoria das
Cores têm o mesmo interesse. Nesta última, dá brevemente
conta de Kepler, Roger Bacon, Galileu, Newton, Voltaire, etc.,
residindo o encanto desta parte do livro no reconhecimento
mais despretensioso da sua relação com as grandes figuras da
história científica europeia, um mero traçar de linhas entre
Goethe e Kepler, Goethe e Bacon, Goethe e Newton. O traçar
de linhas representa, para o tempo e para a pessoa, uma
solução para um problema tremendo, ao mesmo tempo que
nos dá prazer quando Ifigénia e Fausto não dão, sem nenhum
valor de invenção comparável ao de Ifigénia e Fausto.
Este legislador da arte não é um artista. Terá sido porque
sabia demasiado, porque a sua visão era microscópica e
interferia com a perspetiva certa, a visão do todo? Ele é
fragmentário, um escritor de poemas ocasionais e uma
enciclopédia de frases. Quando se senta para escrever uma
peça dramática ou um conto, recolhe e seleciona as suas
observações de cem lugares, combinando-as num corpo o mais
ajustadamente possível. Uma grande parte recusa-se a ser
incorporada; isto, ele adiciona livremente, como cartas das
várias personagens, folhas dos seus diários ou coisas similares.
Uma grande parte fica ainda de lado sem encontrar lugar. A
isto só o encadernador pode dar coesão e, assim, não obstante
o carácter solto dos seus trabalhos, temos volumes inteiros de
parágrafos isolados, aforismos, xénias(54), etc.
Suponho que o tom mundano dos seus contos tenha surgido
do seu autodidatismo. Representava a enfermidade de um
académico admirável, que amava o mundo por gratidão, que
sabia onde se encontravam as livrarias, galerias, arquitetura,
laboratórios, eruditos e lazer, e que não confiava cegamente
nas compensações da pobreza e do despojamento. Sócrates
amava Atenas; Montaigne, Paris, e a Madame de Staël disse
que só era vulnerável por esse lado (ou seja, Paris). Tem o seu
aspeto favorável. Os génios são normalmente tão
extravagantes e enfermiços que passamos o tempo a desejar
que estivessem noutro lugar. É raro encontrar alguém que não
se sinta desconfortável ou assustado por viver. Vê-se um leve
rubor de vergonha no rosto de homens bons e de homens com
aspirações, e uma pontinha de caricatura. Mas este homem
estava inteiramente em casa e feliz no seu século e no mundo.
Não houve ninguém mais apto à vida, que mais desfrutou do
jogo. É nesta aspiração à cultura, na qual reside o génio da sua
obra, que está o seu poder. A ideia de absoluto, verdade eterna,
sem referência ao meu próprio crescimento através de si, é
superior. A rendição à torrente de inspiração poética é
superior; mas, quando comparada aos motivos que presidem à
escrita de livros em Inglaterra e na América, é a própria
verdade, a qual possui a capacidade de inspirar que pertence à
verdade. Assim, devolveu ele ao livro algum do seu antigo
poder e dignidade.
Goethe, ao entrar num tempo e país supercivilizados, numa
altura em que o talento original era oprimido por toneladas de
livros e auxiliares mecânicos e por uma incómoda diversidade
de exigências, ensinou os homens a dispor desta gigantesca
miscelânea e a colocá-la ao serviço deles. Junto-o a Napoleão
como os dois representantes da impaciência e da reação da
natureza contra a morgue das convenções, dois teimosos
realistas que, com os seus académicos, cortaram
individualmente pela raiz a árvore do palavreado e da
falsidade, para este tempo e para todo o sempre. Este
trabalhador jovial, sem popularidade ou incentivo externo,
procurou a sua motivação e plano no próprio peito, tomou para
si a tarefa de um gigante e, sem relaxamento ou descanso,
exceto quando alternava as suas atividades, trabalhou durante
oitenta anos com a constância do seu primeiro entusiasmo.
A última lição da ciência moderna ensina que a maior
simplicidade de estrutura se produz não através de uns poucos
elementos, mas por via da maior complexidade. O homem é o
mais compósito de todas as criaturas; o percevejo, o Volvox
globator estão no outro extremo. Aprenderemos a obter rendas
e benefícios do imenso património de épocas antigas e
recentes. Goethe ensina a coragem e a equivalência de todos
os períodos, que as desvantagens de qualquer época existem
apenas para os pusilânimes. O génio plana, com a sua
claridade e música, próximo das eras mais negras e surdas.
Nenhuma hipoteca, nenhuma proscrição impedirá os homens e
as horas. O mundo é novo; os grandes homens de outro tempo
convocam-nos afetuosamente. Também nós devemos escrever
bíblias para unir novamente o Céu e o mundo terreno. O
segredo do génio é não tolerar que a ficção exista para nós, é
tomar consciência do que sabemos, no elegante refinamento da
vida moderna, nas artes, nas ciências, nos livros, nos homens,
exigir boa-fé, realidade e um propósito; e no princípio, no fim,
no meio e sem fim, honrar toda a verdade aplicando-a.
FIM
-
(52) Mistura rica em gordura e proteína, bastante usada como alimento energético
em viagens longas. [N. do T.]

(53) Referência a William Pitt (1708–1778), 1.º conde de Chatham. [N. do T.]

(54) Palavra usada por Goethe para designar uma série de pequenas composições
que serviram sobretudo de ataque aos seus inimigos literários. Inspira-se no
vocábulo grego xénia, que designa os presentes oferecidos pelos anfitriões aos
hóspedes da sua casa. [N. do T.]
Índice
I. Da utilidade dos grandes homens
II. Platão, ou o Filósofo Platão: Novas leituras
III. Swedenborg, ou o Místico
IV. Montaigne, ou o Cético
V. Shakespeare, ou o Poeta
VI. Napoleão, ou o Homem do Mundo
VII. Goethe, ou o Escritor

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