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Luiz Roberto Tommasi, professor livre-docente Luiz Roberto Tommasi

do Instituto O ceanográfico da USP.

Ecologia marinha
Os oceanos cobrem cerca de 72% da superfí­ Muitos estuários são bordejados por mangue-
cie da terra. É por isso que já se disse que o nome zais, por bancos de gramíneas aquáticas (marismas)
deste planeta deveria ser água e não Terra! Apesar que fornecem às suas águas inúmeros detritos or­
disso, apenas 7 a 8% da proteína consumida pelo gânicos que servem de alimento para muitos animais
homem provêm dos oceanos. aquáticos comedores dos mesmos. Infelizmente, en­
tre nós, os manguezais têm sido encarados apenas
A pesca costeira é hoje muito cara, devido ao
como criadouros de mosquitos, como lodaçais féti­
alto custo dos combustíveis, lubrificantes, salários,
dos, como áreas propícias à expansão urbana e in­
reparos, etc. A pesca de alto-mar é então muito mais
dustrial. Poucos reconhecem a importância dessas
cara ainda. Além disso, vários produtos da pesca são
formações vegetais à consolidação do solo, à prote­
considerados nobres, isto é, destinados apenas a ção das costas, à criação de inúmeras espécies de
classes mais elevadas da sociedade, dado seu alto
peixes, crustáceos, moluscos, como fonte de alimen­
preço, como é o caso dos camarões, das lagostas,
to, como componente estético de extraordinária im­
lagostins e de várias espécies de peixes. Já peixes
portância e beleza cênica.
como a sardinha são destinados às classes mais
pobres. Esses complexos, estuários, manguezais, ma­
rismas, se constituem em fontes importantíssimas
É por tudo isso que o grande futuro do ocea­
de alimento ao homem.
no como fonte de proteínas, cada vez mais, não es­
tá na pesca, mas sim na aquacultura, na criação de A outra área produtiva dos oceanos é a de res­
peixes, ostras, mariscos, camarões, algas, etc. Um surgência. São regiões onde águas de profundida­
fato que ressalva essa perspectiva é que os oceanos de, ricas em nutrientes, atingem a superfície,
estão longe de serem extremamente ricos como fertilizando-a e permitindo o desenvolvimento de
muitos pensaram no passado — o inesgotável futuro densas populações de microvegetais que nutrem
celeiro da humanidade. Em realidade, apenas duas densas populações de peixe. Estes, por sua vez, são
regiões oceânicas são efetivamente produtivas, a dos alimentos para muitas aves marinhas, cujos excre­
estuários e as de ressurgência. mentos se acumulam em linhas e regiões costeiras,
Os estuários são regiões onde a água dos rios formando ricos depósitos de fosfato, o guano.
se misturam e dissolvem nas águas do oceano. São
regiões onde o oceano recebe grande carga de nu­ Infelizmente, as ressurgências ocorrem em
trientes como nitratos, fosfatos, silicatos, trazidos pe­ apenas algumas regiões dos oceanos, especialmen­
los rios e resultantes da erosão das rochas, dos so­ te na costa oeste dos continentes, como na costa do
los, da decomposição dos vegetais. Por isso, essas Peru e na costa sudoeste da África; no Brasil há uma
regiões apresentam alta densidade de microorganis­ pequena ressurgência em Cabo Frio (RJ), não ten­
mos vegetais (o fitoplâncton) que serve de alimen­ do porém, a mesma importância daquelas duas, re­
to para microanimais, os quais por sua vez são co­ lacionadas como produtoras de alimentos. Há, na
midos por peixes. Há nos estuários grandes popu­ costa da Venezuela, uma ressurgência que produz
lações de ostras, mariscos e muitas espécies de pei­ importante produção de sardinha.
xes, de crustáceos. Muitos países como o Brasil possuem inúme­
ros deltas, estuários, lagunas costeiras, muito pro­ nógrafos, geógrafos, dificilmente poderemos expli­
dutivos, mas não possuem áreas de ressurgências, car os processos ecológicos que se desenrolam nos
ou as que existem têm pequena expressão como oceanos.
área produtiva. Infelizmente, porém, esses estuários
e lagunas costeiras estão entre as áreas mais degra­ Tanto a ecologia marinha (estudo das espécies
dadas de nosso litoral. Seus manguezais e marismas marinhas, de suas populações) como a oceanogra­
são derrubados pela especulação imobiliária, para fia biológica (estudo das cadeias tróficas, da popu­
expansão industrial; são aterrados, queimados; ser­ lação orgânica, das inter-relações entre a dinâmica
vem como depósito de lixo urbano, industrial e por­ dos oceanos e a ecologia das populações) e a pes­
tuário. Todo imenso e variado potencial dessas re­ ca (exploração dos recursos renováveis marinhos)
giões tem sido impunemente destruído. Mesmo são ciências fascinantes que oferecem inúmeras
quando não são derrubados, são comprometidos perspectivas tanto de estudos ecológicos como eco­
pelos poluentes expelidos pelas indústrias, pelos es­ nômicos. Mas não pense o leitor que tudo é belo e
gotos urbanos e domésticos e por derrames de pe­ fascinante como nos filmes de Jacques Cousteau
tróleo. Os seus peixes, ostras, mariscos passam a que são apresentados na televisão. A pesquisa no
acumular metais pesados como mercúrio, cádmio, oceano é árdua, complexa, requer muitos recursos,
chumbo, cobre, pesticidas como DDT, BHC, organis­ estudos longos, requer persistência e vigor físico dos
mos enteropatogênicos causadores de doenças co­ que a ela se dedicam, pois não é fácil trabalhar e re­
mo a cólera, a hepatite, microorganismos causado­ sistir ao mar num barco. Os conhecimentos neces­
res de desinterias como a Salmonella e Escherichia sários são multidisciplinares e profundos. Mas o re­
Coli patogênica, etc. sultado é sempre altamente compensador!

O que estamos fazendo, em realidade, é des­ Há vários centros importantes de estudos de


truir importantes recursos naturais litorâneos, ban­ ecologia marinha e de oceanografia biológica no Bra­
cos genéticos de inestimável valor, áreas de criação sil, como o Instituto Oceanográfico-IO da USP, a Ba­
de muitas espécies de interesse comercial ao ho­ se Oceanográfica Atlântica (Rio Grande, RS), o Ins­
mem. Defendemos muito a Floresta Amazônica e tituto de Pesquisa da Marinha-IPqM (Cabo Frio, RJ),
outras regiões, mas muito pouco nos preocupamos bem como departamentos ou institutos em univer­
com nossos estuários e com nossos manguezais. Pa­ sidades, como por exemplo, no Rio Grande do Sul,
ra poder defendê-los com eficiência devemos no Paraná, em São Paulo, em Minas Gerais, no Rio
estudá-los, conhecê-los profundamente, suas varia­ de Janeiro, na Bahia, em Pernambuco, no Ceará e
ções, sua dinâmica, seus potenciais. É essa a função na Paraíba.
da ecologia marinha, estudar as relações entre o am­
biente marinho e as espécies animais e vegetais, Um dos produtos marinhos de grande impor­
bem como as relações entre elas, como predação e tância à farmácia, à indústria, à agricultura, à pecuá­
competição. É importante conhecer o fluxo de ener­ ria, são as algas. Delas obtemos agar-agar, alginatos,
gia através de cadeia alimentar, os biogeociclos, a carrageno, como alimento (no Japão, por exemplo);
produção de matéria orgânica, os ciclos de vida das como fonte de calcário (algas calcárias), para corri­
espécies, suas migrações quer para alimentação, gir solos ácidos; como adubo, para a indústria de ci­
quer para reprodução. Toda essa variedade de estu­ mento. Muitas algas e outros organismos marinhos
dos compreende o que denominamos de oceano­ são produtores de antibióticos e de muitas outras
grafia biológica, especialmente, os aspectos tróficos, substâncias de grande interesse ao homem.
energéticos. Estuda ela o fluxo de energia provenien­ Infelizmente, cada vez mais, lançamos no ocea­
te da luz solar através das cadeias alimentares. Aliás, no resíduos oleosos, esgotos, poluentes industriais,
toda vida na terra, rios, oceanos, é basicamente mo­ aumentamos a turbidez das águas, reduzindo a pe­
vida pela energia da luz solar. netração da luz e a produção de matéria orgânica (fo-
tossíntese) pelos vegetais marinhos, provocando
Para se compreender bem todos os processos
problemas ecotoxicológicos, mortandade de peixes,
que citamos, é necessário conhecer perfeitamente
sobrepesca, comprometimento de qualidade dos
o cenário, o ambiente, onde eles se desenrolam. Daí
frutos do mar ao consumo humano.
a necessidade de se conhecer as propriedades físi­
cas e químicas da água, os sedimentos do fundo, as O mais grave é que estamos destruindo recur­
correntes oceânicas, as marés, o intercâmbio entre sos e potenciais não somente de nosso uso, como
a atmosfera e o oceano, entre o continente e o ocea­ também de nossas futuras gerações. Num país com
no, entre o fundo do mar e o oceano. Sem essa abor­ tantos problemas sociais, econômicos, não seria ter­
dagem multidisciplinar, integrada, que requer equi­ rível insensatez, destruir impunemente os recursos
pes de muitos tipos de pesquisadores, como biólo­ naturais do litoral, suas possíveis fontes de proteínas,
gos, físicos, químicos, geólogos, climatólogos, ocea- suas belezas naturais, criar riscos de contaminação
toxicológica, aos que usam nossas praias para lazer mo à oceanografia. Esperamos que possamos lhes
ou que se alimentam de frutos do mar? Comprome­ dar a oportunidade de realizarem essa sua nobre as­
ter o alimento básico de milhares de brasileiros que piração e com isso contribuir efetivamente, tanto pa­
vivem de peixes, moluscos, crustáceos, que diaria­ ra a preservação como para uma utilização correta
mente capturam nos estuários, manguezais, nas la­ de nossos recursos litorâneos.
gunas costeiras de nosso litoral? Para finalizar, gostariamos de relembrar os dois
pesquisadores que introduziram o estudo oceano-
A criação, em 1974, da Comissão Interminis-
gráfico no Brasil, Wladimir Besnard, que criou o Ins­
terial para os Recursos do Mar-CIRM, abriu grandes
tituto Oceanográfico da USP e o Vice-Almirante
perspectivas à preservação dos recursos naturais li­
(RRM) Paulo de Castro Moreira da Silva, que criou
torâneos e à ampliação dos conhecimentos sobre es­
olPqM, de cuja autoria recomendamos o livro Usos
tes que se traduziu no Plano Nacional de Ocea­
do Mar, publicado pela CIRM, em 1978. Foram es­
nografia.
ses dois extraordinários cientistas que abriram às ge­
Os oceanos têm sido empregados como via de rações de nossos estudiosos, esse maravilhoso cam­
navegação, para pesca comercial, esportiva, aqua­ po da oceanografia. O primeiro, inicialmente, mais
cultura, lazer, fonte de água doce, de produtos quí­ voltado às pesquisas estuarino-lagunares costeiras
micos, de sal, de petróleo. Mas exploramos seus re­ e o segundo, aos usos do mar e à pesquisa em mar
cursos conhecendo muito pouco de sua ecologia e alto. Suas instituições, respectivamente, o IO-USP,
da real amplitude de suas potencialidades biológi­ e o IPqM têm hoje projeção internacional tendo inú­
cas. Há, hoje, no Brasil, muitos jovens que desejam meros especialistas nos mais diversos campos da
fortemente se dedicar tanto à ecologia marinha co­ oceanografia.
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