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Fernando G.

Vázquez Ramos e Andréa de Oliveira Tourinho | O Ensaio sobre a arquitetura, de Marc-Antoine Laugier: um tratado da simplicidade

O Ensaio sobre a arquitetura,


de Marc-Antoine Laugier:
um tratado da simplicidade.
The Essay on the architecture, from Marc-Antoine Laugier:
a treaty of simplicity.
Fernando G. Vázquez Ramos* e Andréa de Oliveira Tourinho**

*Arquiteto (UNBA, 1979); no Centro de Preservação


Técnico em Urbanismo (INAP, Cultural da Universidade de Resumo Abstract
1988); Master em Estética São Paulo (2013-2014). Coor-
y Teoria de las Artes (IETA, denadora do Grupo de Pes- O artigo apresenta uma aproximação ao pensa- The paper presents an approach to Abbot Marc-
1990); Doutor em Arquitetura quisa Patrimônio Cultural e mento do Abade Marc-Antoine Laugier, pensa- -Antoine Laugier thoughts. The Abbot was a
(ETSAM-UPM, 1992). Desde Urbanismo: discursos e prá- dor francês do século XVIII que escreveu o que French thinker of the eighteenth century who
2010, é professor responsá- ticas. Foi Diretora da Divisão pode ser considerado o mais importante trata- wrote what can be considered the most im-
vel no curso de Arquitetura de Preservação (2008-2009) do do período ilustrado. As observações, ainda portant treaty or the enlightenment period. The
e Urbanismo e no Programa do Departamento de Patri- que gerais, pretendem incitar o leitor a procurar approach, although general, aim to incite the
de Pós-graduação da USJT. mônio Histórico de São Pau- trabalhos sobre este importante autor. Para tan- reader to seek work on this important author.
Desde 2011, é coeditor da lo (2004-2009). Doutorado
to, este artigo apresenta, ao final, uma tradução Therefore, this article presents a translation of
do “Prefácio” do Essai sur l’Architecture, o mais the “Foreword” of the Essai sur l’Architecture,
revista eletrônica arq.urb. em Arquitetura e Urbanismo
importante livro escrito pelo Abade, assim como the most important book written by the Abbot,
**Desde 2014 é Docente do (FAUUSP, 2004); mestrado uma transcrição do texto original, retirado do livro as well as a transcription of the original text,
Curso de Graduação e do em Estética y Teoría de las publicado em Paris em 1753. O artigo apresenta taken from the book published in Paris in 1753.
Programa de Pós-graduação Artes (Instituto de Estética y também uma pequena bibliografia sobre o tema The article also presents a small bibliography on
Stricto Sensu em Arquitetura Teoría de las Artes, Univer- indicando outras traduções com a finalidade de the subject identifying other translations in order
e Urbanismo da Universidade sidad Autónoma de Madrid, possibilitar o leitor a leituras comparadas. to enable the reader compared readings.
São Judas Tadeu. Ministrou 1991); graduação em arquite-
cursos sobre as relações en- tura e urbanismo (Universida- Palavras-chave: Tratados de Arquitetura. Teoria Keywords: Architecture treaties. Theory of Architec-
tre Patrimônio e Urbanismo de Mackenzie, 1985). da Arquitetura. Iluminismo. ture . Enlightenment

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Fernando G. Vázquez Ramos e Andréa de Oliveira Tourinho | O Ensaio sobre a arquitetura, de Marc-Antoine Laugier: um tratado da simplicidade

Inclui uma tradução ao português do “Prefácio” do


Essai sur l’Architecture, 1753, a cargo de Fernando
G. Vázquez Ramos e Andréa de Oliveira Tourinho.
Inclui uma transcrição do texto original da edição
de 1753, especialmente preparada para este artigo
seguindo a grafia original.

O Ensaio sobre a arquitetura, de Marc-Antoine


Laugier: um tratado da simplicidade.

O sacerdote jesuíta Marc-Antoine Laugier critos no século XVIII e, certamente, o mais


(1713-1769) foi um dos mais importantes pensa- influente deles. Os historiadores do século
dores franceses do século XVIII que se debruçou XX, desde Emil Kaufmann (1974) até Alan Col-
sobre a problemática da arquitetura como disci- quhoun (2004), mas também Manfredo Tafuri
plina do pensamento. Escreveu duas importantes (1985 e 1979) e Colin Davies (2011), encontram
obras dedicadas a esta disciplina, sendo a pri- em Laugier um dos pontos de referência para
meira o Essai sur l’Architecture (Ensaio sobre a a construção do pensamento moderno e no
Arquitetura), publicada como obra anônima em Essai sua mais coerente manifestação raciona-
1753 (Fig. 1), mas que, pelo seu sucesso, foi ra- lista. Ainda que se tratasse de um racionalis-
pidamente publicada com sua autoria numa se- mo filtrado pela teologia, o que era lógico para
gunda edição em 1755. O segundo livro publica- um pensador religioso como Laugier, o vínculo
do por Laugier foi Observations sur l’architecture com a ciência é evidente nesse tratado. A bus-
(Observações sobre a Arquitetura), que, embora ca constante do pensador francês se faz por
menos difundido que o anterior, foi muito impor- evidências das leis fixas que guiem a produção,
tante pois nele o autor realizou uma admirável como projeto e como construção, mas tam-
defesa do estilo gótico, dando sustentação aos bém na procura pelo prazer que a arquitetura
trabalhos de retomada desse estilo durante o ar- é capaz de oferecer como experiência física e
refecimento dos revivals no século XIX. vivificante. Assim, para Laugier era a Arquite-
tura, como disciplina, uma ciência e, enquanto
Figura 1. Capa interior da primeira edição do Essai sur
l’Architrecture, Paris: Duchesne, 1753. Disponível em: https://archi-
O Essai, apesar de seu nome, é considerado obra, isto é, como objeto vivível e contemplá-
ve.org/details/essaisurlarchite00laug. Acessado em: 23 Nov. 2014. um dos poucos tratados sobre Arquitetura es- vel, uma causa de prazer (RUBIO, 1999, p. 7).

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Um racionalismo direto (KAUFMANN, 1974, p. torna Laugier um pensador moderno, capaz de


166) que questionava a legitimidade impositiva entender que os procedimentos de projeto não
dos exemplos do passado, ao mesmo tempo são simples consequência do seguimento de
em que exigia, como já tinha feito Alberti ou normas tradicionais, mas o respeito a uma serie
Michelangelo, os voos da imaginação (BLUNT, de preceitos universais que justificam uma forma
2001, p. 103). precisa de fazer arquitetura, que respeita a “sim-
ples natureza”, ao mesmo tempo em que evolui
Misturam-se no texto de Laugier tanto o racio- pelo impulso da imaginação criadora.
nalismo francês como o empirismo inglês, o
que fará dele um dos pensadores mais lidos e Laugier luta assim contra a arbitrariedade da ar-
respeitados pelos arquitetos mais avançados quitetura, não só a arquitetura barroca defendida
de sua época e do século XIX, como por exem- por Charles-Etienne Briseaux (1680-1754), mas
plo, Jacques-Germain Soufflot (1713-1780), também a arquitetura clássica, geometricamente
John Soane (1753-1837) ou Jacques-François concebida, que não é capaz de entender as leis
Blondel (1705-1774), e também Claude-Nicolas que regem a arte de construir, produzindo apenas
Ledoux (1736-1806), John Nash (1752-1835) e cópias das obras antigas. Cópias que desvirtuam
Pierre Patte (1723-1814). as formas mais puras e originais, transformando,
por exemplo, colunas em pilastras, o que dete-
Contudo, o Essai segue a tradição dos tratados riora o entendimento da essência da disciplina.
franceses do século XVII, principalmente os de Sua defesa da cabana primitiva, constituída por
Jean-Louis de Cordemoy (1655-1714) e de Char- colunas, feitas de troncos de árvores, com um te-
les Perrault (1628-1703), que são citados por lhado triangular, feito de galhos, que ficou eterni-
Laugier como pensadores que influenciaram sua zado na gravura de Charles Eisen e que servia de
obra. Mas, o trabalho do Abade era muito mais frontispício para a 2ª edição de seus Essai (Fig.
crítico da tradição e enfrentava a cópia das obras 2), identifica os princípios imutáveis e, também, as
antigas, que era norma na Academia francesa, leis geradoras, que permitem pensar e fazer arqui-
Figura 2. Gravura de Charles Eisen. Frontispício para: Es- depois da famosa Querelle des Anciens et des tetura. Bem diferentes dos modelos simplificados
sai sur l’Architecture, 2ª edição, Paris: Duchesne, 1755. Moderne (Nicolas Boileau vs. Charles Perrault), dos tratados de Vitrúvio (desde o Vitruvius Teuts-
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/campobae-
za/8134650044. Acessado em: 23 nov. 2014. com uma postura que se assemelhava mais ao ch [1548] até os publicados na França e Inglaterra
dos futuros românticos que a dos seguidores no século XVIII), ou ainda os modelos construtivos
tradicionais do classicismo em voga. É essa ma- de Perrault e Francesco Milizia (1725-1798), ou até
neira de enfrentar a problemática da concepção os sofisticados modelos “clássicos” de Blondel ou
arquitetônica, entre racional e emocional, que William Chambers (1613-1688).

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O modelo proposto por Laugier assume a ale- para defender a arquitetura nacional francesa
gação a favor da arquitetura grega frente à ro- de origem gótica.
mana, o que aproxima seu pensamento ao de
Johann Joachim Winkelman (1717-1768) e o Uma leitura atenta dos escritos de Marc-An-
separa do de Giovanni Battista Piranesi (1720- toine Laugier será sempre necessária para se
1778), mas por diferentes razões que as do ale- ter um melhor entendimento dos processos
mão ou as do italiano. Laugier aponta a arqui- teóricos que permitiram evoluir a arquitetura
tetura grega como fonte primeira da arquitetura de uma disciplina prática, preocupada pela
ocidental, como origem verdadeira da arquite- execução de obras seguindo a orientação de
tura clássica, e fundamentalmente como sím- manuais que se multiplicaram no século XVIII,
bolo da simplicidade roussoniana da arte primi- para uma arte teórico-conceitual que foi capaz
tiva. Uma forma artística, que por ser primitiva, de uma vivacidade criativa gigantesca durante
e feita à imagem e semelhança da arquitetu- o século XIX, seguida de uma conscientização
ra de madeira da cabana rústica, simbolizava intelectual acirrada durante o século XX. A ar-
uma evolução direta dos preceitos essenciais quitetura moderna deve a esses pensadores
que tinham formado a arquitetura grega (a ori- da Ilustração, em especial ao Abade Laugier,
gem das formas das construções de madeira muito dos conceitos e das ideias que forma-
para a arquitetura de pedra desenvolvida pe- ram a maneira de ser da disciplina nos últimos
los gregos, que Winkelman defendia). E, nesse 200 anos.
sentido, uma arquitetura mais verdadeira que a
romana, que com suas pesadas massas, com Apresentamos, em seguida, o “Prefácio” da
seus arcos e pilastras, tinha esquecido a “leve- 1ª edição do Essai sur l’Architecture, em uma
za” e a “elegância”, em definitiva, a “graça” da tradução direta do original (1753), como uma
verdadeira arquitetura. pequena amostra do penetrante pensamento
deste importante autor. Para tanto, anexamos
Estes novos conceitos estéticos, que são apre- também uma transcrição do texto original,
sentados no tratado de Laugier, representam onde mantivemos a grafia original para deixar
uma importante evolução no pensamento sobre o sabor da leitura do século XVIII. Finalmente,
arquitetura em particular, e sobre arte em geral. na bibliografia indicamos outras traduções e
Foram esses os argumentos para defender não alguns textos específicos sobre Laugier que
a arquitetura clássica, mas a arquitetura gótica possam servir como textos comparativos
que pensadores como Eugène Emannuel Viol- para verificar e completar a visão que aqui
let-le-Duc (1817-1879) utilizaram no século XIX apresentamos.

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Ensaio sobre a Arquitetura


Marc-Antoine Laugier

PREFÁCIO
(Tradução ao português a cargo de Fernando G.
Vázquez Ramos e Andréa de Oliveira Tourinho)
LAUGIER, Marc-Antoine. Prefácio. In: _____. Es-
sai sur L’Architecture. Paris: Duchesne, 1753, p.
III-XIV. [publicado anônimo]

Nós temos vários tratados de arquitetura que ous avons divers Traités d'Architecture
desenvolvem com bastante exatidão as me- qui développent avec affez d'exactitude
didas e as proporciones [arquitetônicas], que les mefures & les proportions; qui entrent dans
entram nos pormenores das diferentes ordens le détail des différens ordres, qui fourniffent des
e que fornecem modelos para todas as distin- modéles pour toutes les manieres de bâtir. Nous
tas maneiras de construir. Nós não temos ain- n'avons point encore d'ouvrage qui en établiffe
da nenhuma obra que estabeleça solidamente folidement les principes, qui en manifefte le vé-
os princípios [da arquitetura], que manifeste o ritable efprit, qui propofe des regles propres à
[seu] verdadeiro espírito e que proponha regras diriger le talent & à fixer le goût. Il me femble que
próprias para dirigir o talento e definir o gosto. dans les arts qui ne font pas purement mécha-
Entendo que, nas artes que não são puramen- niques, il ne fuffit pas que l’on fache travailler, il
te mecânicas, não basta com saber trabalhar, importe fur-tout que l'on appren-
importa sobretudo aprender a pensar. É preciso (iv)
que um artista possa dar a si mesmo razão de ne à penfer. Il faut qu'un Artifte puiffe fe rendre
tudo o que faz. Para isto, necessita princípios fi- raifon à lui-même de tout ce qu'il fait. Pour cela
xos que determinem seu juízo e justifiquem suas il a befoin de principes fixes qui déterminent fes
escolhas, de modo que possa dizer que uma jugemens, & qui juftifient fes choix; de telle forte
coisa está bem ou mal, não tão simplesmente qu'il puiffe dire qu'une chofe eft bien ou mal, non
por instinto, mas por raciocínio e [como] homem point fimplement par inftinct, mais par raifonne-
instruído nos caminhos do belo. ment & en homme inftruit des routes du beau.

Os conhecimentos avançaram muito em qua- Les connoiffances ont été pouffées bien loin
se todas as Artes Liberais. Um grande núme- dans prefque tous les Arts Libéraux. Une foule

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ro de pessoas com talento dedicou-se a nos de gens à talent, fe font appliqués à nous en
fazer sentir suas sutilezas. Escreveu-se muito faire fentir toutes les fineffes. On a écrit três-
sabiamente sobre Poesia, sobre Pintura, sobre favamment de la Poëfie, de la Peinture, de la
Música. Os mistérios destas artes engenho- Mufique. Les myfteres de ces arts ingénieux ont
sas foram tão aprofundados que restam pou- été fi bien approfondis, qu'il refte à leur égard
cas descobertas a fazer neste campo. Temos peu de découvertes à faire. Nous avons des
preceitos refletidos e críticas ponderadas que préceptes réfléchis & des critiques judicieu-
determinam suas reais belezas. A imaginação (v)
tem guias que a colocam no caminho e freios fes, qui en déterminent les vraies beautés.
que a retém nos limites. Apreciamos com exati- L'imagination a des guides qui la mettent fur
dão tanto o mérito de suas excelências como a la voie, & des freins qui la retiennent dans les
desordem de seus extravios. Se carecemos de bornes. On apprécie au jufte, & le mérite de fes
bons Poetas, bons Pintores, ou bons Músicos, faillies, & le defordre de fes écarts. Si nous man-
não será em absoluto por falta de teoria, senão quions de bons Poëtes, de bons Peintres, ou de
por falta de talento. bons Muficiens, ce ne feroit point faute de théo-
rie, ce feroic défaut de talent.
A própria arquitetura foi abandonada, até
agora, ao capricho dos artistas, que estabe- La feule Architecture a été abandonnée jufqu’à
leceram seus preceitos sem discernimento. préfent au caprice des Artiftes, qui en ont don-
Eles fixaram as regras ao azar, [com base] né les préceptes fans difcernement. Ils ont fixé
unicamente no exame dos edifícios antigos. les regles au hafard, fur la feule infpection des
Eles copiaram seus defeitos com tanto es- édifices anciens. Ils en ont copié les défauts,
crúpulo quanto suas belezas: sem princípios avec autant de fcrupule que les beautés: man-
para fazer essa diferenciação, eles impuse- quant de principes pour en faire la différence, ils
ram a obrigação de confundi-los; servis imi- fe font impofé l'obligation de les confondre: fer-
tadores, tudo o que os exemplos permitiram (vi)
foi declarado como legítimo; limitando todas viles imitateurs, tout ce qui s'eft trouvé autorifé
suas pesquisas a consultar o fato, eles con- par des exemples, a été déclaré légitime: bor-
cluíram equivocadamente sua validade, e, nant toutes leurs recherches à confulter le fait,
deste modo, suas lições não foram mais que mal-à-propos ils en ont conclu le droit, & leurs
uma fonte de erros. leçons n’on tété qu'une fource d'erreurs.

Vitrúvio, na realidade, só nos ensinou o que Vitruve ne nous a proprement appris que ce qui

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se praticava no seu tempo; embora escapem fe pratiquoit de fon tems [sic]; & quoiqu'il lui
dele fulgores que anunciam um gênio capaz échappe des lueurs qui annoncent un génie ca-
de penetrar nos verdadeiros mistérios de sua pable de pénétrer dans les vrais myfteres de fon
arte, não tenta em absoluto rasgar o véu que art, il ne s'attache point à déchirer le voile qui
os cobre e, afastando-se sempre dos abis- les couvre, & s'éloignant toûjours des abyfmes
mos da teoria, nos conduz pelos caminhos da de la théorie, il nous mene par des chemins de
prática, que mais de uma vez nos desviam da pratique, qui plus d'une fois nous égarent du
meta. Todos os modernos, à exceção do Sr. de but. Tous les modernes, à l'exception de M. de
Cordemoy, limitam-se a comentar Vitrúvio e a Cordemoi, ne font que commenter Vitruve, & le
segui-lo com confiança em todos seus erros. fuivent avec confiance dans tous fes égare-
Digo à exceção do Sr. de Cordemoy, pois este (vii)
autor, mais profundo que os outros, percebeu mens. Je dis à l exception de M. de Cordemoi; cet
a verdade que se lhes ocultava. Seu tratado de auteur plus profond que la plûpart des autres, a
arquitetura é muito curto, mas contem princí- apperçu la vérité qui leur étoit cachée. Son Traité
pios excelentes e pontos de vista extremamen- d'Architeture eft extrèmement court: mais il ren-
te refletidos. Ele poderia, desenvolvendo-os ferme des principes excellens, & des vûes extrè-
um pouco mais, extrair conclusões que teriam mement réfléchies. Il pouvoit, en les développant
iluminado as obscuridades desta arte e banido un peu davantage, en tirer des conféquences qui
a fastidiosa incerteza que fazem as regras pa- auroient répandu un grand jour fur les obfcurités
recerem arbitrárias. de fon art, & banni la fâcheufe incertitude qui en
rend les regles comme arbitraires.
É, então, de se desejar que algum grande Arqui-
teto tente salvar a Arquitetura da excentricidade Il eft donc à fouhaiter que quelque grand Archi-
das opiniões, em nós descobrindo as leis fixas tecte entreprenne de fauver l’Architecture de la
e imutáveis. Toda arte, toda ciência, tem um ob- bifarrerie des opinions, en nous en découvrant
jeto determinado. Para chegar a este objeto, to- les loix fixes & immuables. Tout art, toute fcience
dos os caminhos não são igualmente bons; só a un objet déterminé. Pour parvenir à cet ob-
há um que leva diretamente ao objetivo, e é este (viii)
o único caminho que se deve conhecer. Em to- jet, toutes les routes ne fauroient être également
das as coisas só há uma maneira de fazer bem. bonnes; il n'y en a qu'une qui mené directement au
Que é a arte, senão esta maneira assentada so- but; & c'eft cette route unique qu'il faut connoître.
bre princípios evidentes, e colocados em prática En toutes chofes, il n'y a qu'une maniere de bien
mediante preceitos invariáveis? faire. Qu'eft - ce que l'art? Sinon cette maniere

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Até que alguém, muito mais capacitado do établie fur des principes évidens, & appliquée à
que eu, se encarregue de ordenar o caos das l'objet par des préceptes invariables.
regras da Arquitetura, para que não subsista
nenhuma à qual não seja possível dar uma En attendant que quelqu'un, beaucoup plus
razão sólida, eu vou tentar jogar um pouco habile que moi, fe charge de débrouiller le ca-
de luz sobre ela. Ao observar atentamente hos des regles de l'Architecture, pour qu'il n'en
nossos maiores e mais belos edifícios, minha fubfifte deformais aucune dont on ne puiffe
alma experimentou sempre diversas impres- rendre une folide raifon; je vais tâcher d'y porter
sões. Algumas vezes, o encanto era tão in- un léger rayon de lumiere. En confidérant avec
tenso que produzia em mim um prazer mes- attention nos plus grands & nos plus beaux
clado de arrebato e de entusiasmo. Outras, édifices, mon ame a toûjours éprouvé diverfes
sem me sentir tão vigorosamente levado, impreffions. Quelque-
sentia-me pleno de uma maneira fascinante, (ix)
era um prazer menor, mas, no entanto, um fois le charme étoit fi fort qu'il produifoit en moi
verdadeiro prazer. Frequentemente perma- un plaifir mêlé de tranfport & d'enthoufiafme.
necia completamente insensível; frequen- D'autres fois, fans être fi vivement entraîné,
temente, também, sentia-me desgostoso, je me fentois occupé d'une maniere fatisfai-
chocado, revoltado. Refleti durante muito fante, c'étoit un plaifir moindre, mais pourtant
tempo sobre todos estes diferentes efeitos. un vrai plaifir. Souvent je demeurois tout-à-fait
Repeti minhas observações até me assegu- infenfible; fouvent auffi j'étois dégoûté, choqué,
rar que os mesmos objetos sempre causavam révolté. J'ai refléchi long-tems fur tous ces dif-
em mim as mesmas impressões. Consultei o férens effets. J'ai répété mes obfervations juf-
gosto de outros e, submetendo-os ao mes- qu'à ce que je me fois affûré que les mêmes
mo julgamento, reconheci neles todas minhas objets faifoient toûjours fur moi les mêmes im-
sensibilidades, mais ou menos vivazes, de- preffions. J'ai confulté le goût des autres, & en
pendendo do que sua alma tinha recebido da les mettant à une pareille épreuve, j'ai reconnu
natureza com maior ou menor intensidade. dans eux toutes mes fenfibilités plus ou moins
Disso, concluí: 1º. Que havia na Arquitetura vives, felon que leur ame avoir reçû de la nature,
belezas essenciais, independente dos hábi- un degré de chaleur plus ou moins fort, De-là
tos das pessoas ou das convenções dos ho- (x)
mens. 2º. Que a composição de um elemento j'ai conclu, 1°. qu'il y avoit dans l'Architecture des
arquitetônico era, como [acontece] em todas beautés effentielles, indépendantes de l'habitude
as obras do espírito, suscetível de frialdade des fens, ou de la convention des hommes. 2º.

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e de vivacidade, de precisão e de desordem. Que la compofition d'un morceau d'Architecture


3º. Que [se] devia ter para esta arte, como étoit comme tous les ouvrages d'efprit, fufcep-
para todas as outras, um talento que não se tible de froideur & de vivacité, de jufteffe & de de-
adquire, uma capacidade de gênio que a na- fordre. 3º. Qu'il devoit y avoir pour cet art comme
tureza outorga, e que esse talento, esse gê- pour tous les autres, un talent qui ne s'acquiert
nio tinham, no entanto, a necessidade de ser point, une mefure de génie que la nature donne, &
submetidos e cativados pelas leis. que ce talent, ce génie avoient befoin cependant
d'être affujettis & captivés par des loix.
Meditando cada vez mais sobre as diversas
impressões que me causavam as diferentes En méditant toûjours davantage fur les diverfes
composições arquitetônicas, quis penetrar na impreffions que faifoient fur moi les différentes
causa de seu efeito. Eu me perguntei sobre compofitions d'Architecture, j'ai voulu péné-
meus próprios sentimentos. Quis saber por trer la caufe de leur effet. Je me fuis demandé
que uma coisa causava um prazer extremo compte de mes
e outra só me agradava, esta não tinha para (xi)
mim nenhum encanto e aquela me resultava fentimens à moi-même. J'ai voulu favoir pour-
insuportável. Esta busca não me ofereceu, no quoi telle chofe me raviffoit, telle autre ne fai-
início, mais que escuridão e incertezas. Não foit que me plaire; celle-ci étoit pour moi fans
desanimei; fundei o abismo até que eu acre- agrémens; celle-là m'étoit infupportable. Cette
ditei descobrir o fundo, não deixei de pergun- recherche ne m’a préfenté d'abord que des té-
tar à minha alma até que ela me deu uma res- nebres & des incertitudes. Je ne me fuis point
posta satisfatória. De repente minha visão se rebuté: j'ai fondé l'abyfme jufqu'à ce que j'aye
iluminou. Vi objetos diferentes onde antes só cru em découvrir le fond; je n'ai ceffé d'inter-
percebia nuvens e neblina: apoderei-me des- roger mon ame jufqu'à ce qu'elle m'ait rendu
tes objetos com ardor e, fazendo uso de sua une réponfe fatisfaifante. Tout à coup il s'eft
luz, vi pouco a pouco desaparecer minhas fait à mes yeux un grand jour. J'ai vu des objets
incertezas e se desvanecer minhas dificulda- diftincts où je n'appercevois auparavant que
des; vim até poder demonstrar a mim mesmo, des brouillards & des nuages: je les ai faifis ces
através de princípios e consequências, a ine- objets avec ardeur, & en faifant ufage de leur
vitabilidade de todo os efeitos cujas causas lumiere, j'ai vu peu à peu mes incertitudes dif-
ignorava. paroître, mes difficultés s'évanoüir; & j'en
(xii)
Eis aqui o caminho que percorri para me sa- fuis venu jufqu’à pouvoir me démontrer a moi-

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tisfazer. Pareceu-me que não seria inútil com- même par principes & conféquences, la nécef-
partilhar com o público o êxito de meus es- fité de tous les effets dont j'ignorois les caufes.
forços. A Arquitetura ganharia infinitamente Telle eft la route que j'ai fuivie pour me fatis-
só com o fato de eu incitar meus leitores a faire. Il m'a paru qu'il ne feroit pas inutile de
examinar se não me deixei enganar, a criticar faire part au Public, du fuccès qu'ont eû mes
severamente minhas decisões, a tentar por si efforts. Quand je ne ferois qu'engager mes Lec-
mesmos penetrar ainda mais no mesmo abis- teurs à examiner fi je n'ai point pris le change,
mo. Posso dizer, com sinceridade, que minha à critiquer féverement mes décifions, à effayer
principal intenção foi a de colocar o público, par eux-mêmes de pénétrer plus avant dans le
e principalmente os artistas, em via de duvi- même abyfme, l'Architecture y gagneroit infini-
dar, de conjecturar, de dificilmente se conten- ment. Je puis dire avec vérité, que ma princi-
tar: afortunado eu, se conseguisse levá-los a pale intention eft de mettre le Public, & fur-tout
fazer buscas que os colocassem em situação les Artiftes, en voie de douter, de conjecturer,
de encontrar minhas falhas e de corrigir mi- de fe contenter difficilement: trop heu-
nhas imprecisões, [assim como] ir além de (xiii)
meus raciocínios. reux, fi je les porte à faire des recherches qui leur
donnent lieu de me trouver en défaut, de corriger
Isto não é mais do que um ensaio, no qual não mes inexactitudes, d'enchérir fur mes raifonnemens.
faço mais do que propriamente indicar as coi-
sas e facilitar o caminho, deixando a outros o Ce n'eft ici qu'un effai, où je ne fais proprement
cuidado de dar a meus princípios toda sua ex- qu'indiquer les chofes & frayer la route, laiffant
tensão e toda sua aplicação, com uma inteli- à d'autres le foin de donner à mes principes,
gência e uma sagacidade das quais eu mesmo toute leur étendue & toute leur application, avec
não seria capaz. Nele digo o suficiente para for- une intelligence & une fagacité dont je ne fe-
necer aos arquitetos regras fixas de trabalho e rois pas capable. J'en dis affez pour fournir aux
meios infalíveis de [alcançar a] perfeição. Tentei Architectes, des regles fixes de travail, & des
me fazer inteligível, o mais que me foi possível. moyens infaillibles de perfection. J'ai tâché de
Não pude evitar usar com frequência termos me rendre intelligible le plus qu'il m'a été pof-
da arte. Quase todos são bastante conhecidos. fible. Je n'ai pû éviter d'employer fouvent des
Além do que, existem dicionários que explicam termes d'art. Ils font prefque tous affez connus.
o seu verdadeiro significado. Como meu princi- On trouve d'ailleurs des Dictionnaires qui en ex-
pal propósito é formar o gosto dos Arquitetos, (xiv)
evito todos os detalhes que se possam encon- pliquent le fens veritable. Comme mon principal

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trar em outro lugar e eu não precisei carregar deffein eft de former le goût des Architectes, j'évite
este pequeno livro de figuras, que poderiam tous les détails que l'on trouve ailleurs, & je n'ai pas
afligir e desgostar ao Leitor. befoin de charger ce petit ouvrage de figures, qui
pourroient peiner & dégoûter le Lecteur.

Referências

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1450-1600. São Paulo, Cosac & Naify, 2001. sai sur L’Architecture. Paris: Duchesne, 1753, p.
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COLQUHOUN, Alan. Modernidade e Tradição
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ture. Paris: Chez Duchesne [Rue S. Jacques, au
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cado anônimo]
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tración. Barcelona: Gustavo Gili, 1974. Esta transcrição foi copiada do texto original
digitalizado pelo Internet Archive, 2010, com
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correspondem às páginas do original. Disponível
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ris: Duchesne, 1755. 00laug. Acessado em: 19 abr. 2015]

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chesne, 1753. [publicado anônimo]

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__________. Teorias e história da arquitetura. Lis-
boa: Presença / São Paulo: Martins Fontes, 1979. (português)
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Além dos textos indicados nas Referências, o leitor ra / Marc-Antoine Laugier”. ArchDaily Brasil,
pode consultar a seguinte bibliografia complementar: 27 fev. 2014. Disponível em: http://www.archdai-
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FICHET, Françoise. La theorie architecturale a -marc-antoine-laugier. Acessado em: 23 ago.
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nismo en Europa. 1750-1960. Mari: Akal, 1991. podem ser consultados na Internet:

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York: Princeton Architectural Press, 1994. archive.org/details/essaisurlarchite00laug. Aces-
sados em: 23 nov. 2014.
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Traduções do Essai sur l’Architecture: http://digi.ub.uni-heidelberg.de/diglit/laugier176
5?sid=09276553513b0b4748946f50e033e6dc&
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