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JULIO BENTIVOGLIO

KELLY ALVES ANDRADE

O USO DE OBRAS LITERÁRIAS COMO FONTES HISTÓRICAS

EDITORA MILFONTES
História &
Literatura
Copyright © 2023, Julio Bentivoglio & Kelly Alves Andrade.
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Julio Bentivoglio
Kelly Alves Andrade

História & Literatura


o uso de obras literárias como fontes históricas

Editora Milfontes
Vitória, 2023
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Lucas Bispo Fiorezi

Impressão e Acabamento
Maxi Gráfica e Editora

Dados Internacionais de Catalogação


na Publicação (CIP)
B651h BENTIVOGLIO, Julio; ANDRADE, Kelly Alves.
História & Literatura: o uso de obras literárias como
fontes históricas/ Kelly Alves Andrade; Julio Bentivoglio
Vitória: Editora Milfontes, 2023.
128 p.: 18 cm.

ISBN: 978-65-5389-070-1

1. História 2. Literatura 3. Fontes históricas I.


ANDRADE, Kelly Alves; BENTIVOGLIO, Julio.
II. Narrativa III. Pesquisa em História

CDD 907
Sumário
Apresentação ..................................................................7
Um inventário de lugares e de estranhamentos ..10
O problema da narrativa e o reencontro entre a
História e a Literatura ..............................................17
Um campo de possibilidades e de questões ........21
Na base de tudo, a palavra ........................................24
Historicidade como chave analítica ........................27
A materialidade das obras literárias ........................29
A pré-história ou pré-existência da obra ..............35
Alguma metodologia de análise do conteúdo das
obras literárias ...........................................................37
O laboratório da criação literária: o autor, sua
cabeça e suas leituras.................................................40
No chão de toda literatura e de toda história está a
ficção ............................................................................42
Interesses, valores e perspectivas.............................46
A criação literária, a tradição e o cânone............48
Para que serve a Literatura? ....................................50
Realidades refletidas, ruídos e estranhamentos...56
Um pouco de crítica literária não faz mal a
ninguém .......................................................................61
Coerência e organicidade da abordagem ..............66
Minha pátria, minha língua ....................................71
Literatura como problema e não como solução ..73
Até onde a ficção pode (nos) levar? .......................76
Borrando a fronteira dos textos ficcionais............80
O tempo, a História e a Literatura .......................84
A fonte fecunda .........................................................90
Possibilidades e itinerários analíticos ...................94
Em cena, a mímesis ...................................................101
Ginzburg, Sthendal e Durval Albuquerque Jr 106
Considerações Finais.................................................111
Referências Bibliográficas ......................................117
Apresentação
Este livro pretende ser uma breve
introdução para quem deseja estudar
História usando como fonte obras literárias.
Afastando-se de discussões mais teóricas,
embora localize algumas questões desta
natureza em linhas mais gerais, fazendo
referência a alguns autores, problemas e obras
de forma bastante pontual, ele se destina a
apresentar instrumental analítico mínimo e
aspectos essenciais que podem ser úteis para
se explorar obras de ficção em pesquisas de
natureza histórica. Ele procura responder a
uma questão muito simples: de que maneira
posso usar um romance como fonte histórica?
A título de ilustração, ele se destina a mostrar
de que maneira livros como Capitães de areia de
Jorge Amado (Palamartchuk, 1998) ou O gato
preto de Edgar Allan Poe (2010) poderiam ser
pensados para se estudar o passado ou alguma
questão histórica particular.
Ao longo de sua leitura serão
levantados alguns aspectos da criação
literária, da ficcionalidade e da narrativa seja
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História & Literatura

na História, seja na Literatura. É razoável


pensar que descomplicar algo que parece
difícil e complexificar o que parece simples
nas obras ficcionais e literárias seriam
ambições louváveis e necessárias para uma
proposta semelhante a esta, afinal não são
poucos os autores e autoras que indicam
uma certa dificuldade em se utilizar fontes
literárias em estudos históricos ou jovens
pesquisadores inseguros e ansiosos em
relação a isso. Não desconsiderando tal
fato, sublinhamos o caráter mais elementar
de nossa proposta, cujas reflexões aqui
alinhavadas não possuem a ambição de
esgotar o assunto ou examinar em minúcias
ou à exaustão todos aspectos envolvidos. Até
porque, mesmo estudos mais exaustivos nem
sempre atingem ou atendem em plenitude
objetivos ou interesses mais plurais e
heterogêneos dos leitores. Acreditamos
que os estudos existentes tomando as obras
literárias como fonte histórica oferecem
um conjunto mínimo de apontamentos que
nos permitem estabelecer algumas linhas
de orientação mais gerais para interessados
e interessadas em investigar determinadas
temáticas e problemas históricos a partir de
textos ficcionais, especialmente romances,
novelas, contos ou crônicas.
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Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Não seria ocioso lembrar a


inconveniência de reflexões pontuais
se insinuarem como um manual, afinal
não levantam, tampouco discutem em
completude o conjunto de problemas
relacionados com a Literatura, com as obras
literárias – sua história, suas características,
suas transformações –, com a narrativa
ficcional ou ainda com seu uso como
fontes para a História. Realizamos aqui
um exercício de prospecção de questões,
alinhavando um pequeno inventário de
possibilidades analíticas que não se pretende
definitivo, tampouco se apresentar como
um modelo metodológico de aplicação geral
e irrestrita para qualquer pesquisa baseada
em quaisquer gênero literário. Serão
considerados alguns aspectos e indicado
um repertório mínimo de questões úteis
para pensar o uso de romances, novelas,
crônicas ou contos em pesquisas históricas.
Mencionamos estas obras e não poemas,
pois usar uma poesia como fonte histórica
traria dificuldades adicionais que talvez
exijam ferramentas e reflexões teóricas e
metodológicas específicas relacionadas com
sua forma que não teríamos condições plenas
de alinhavar. Isso não impede a aplicação de
uma e outra consideração levantadas neste
livro para extrair um pouco de história de
poemas e até mesmo de letras de músicas.
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História & Literatura

O divórcio entre a história e a literatura


fez, durante muito tempo, com que muitos
historiadores e muitas historiadoras deixassem
de ler romances, poemas, contos ou crônicas,
considerando-os como fontes históricas. A
exigência do ofício e a quantidade de leituras
de obras históricas retirava-lhes o tempo, mas
também o interesse para ler a literatura. Não
conseguiam, desse modo, perceber a utilidade
que romances, por exemplo, podiam ter em
sua vida profissional. Isso tem mudado muito.
Para auxiliar nesse renovado interesse pelas
obras literárias, esse livro tentará fazer coro
com Dominick LaCapra (1991) perguntando
como devem ser lidos os romances em
História.

Um inventário de lugares e de estranhamentos


Sempre que se pensa o lugar que as
obras literárias poderiam ter na História,
invariavelmente, a historiografia profissional
assume duas posturas mais gerais. Na primeira,
ela reconhece, laconicamente, romances e
obras literárias como fontes históricas, mas,
como se fossem uma criação singular ou um
tipo de documento especial mais elaborado
e complexo que, por exemplo, uma carta, um
inventário ou um mapa, e, por conta disso, sua

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Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

análise seria dificultada para os historiadores


diante de sua natureza particular. Na segunda,
a historiografia profissional procura ignorar
esta dimensão mais pragmática relacionada
com o uso obras literárias, convertendo-a
em uma reflexão teórica, substancialmente
consagrada no já bastante conhecido binômio
História e Literatura, voltando-se, nesta linha
de pensamento, para discussões em torno do
problema da mímesis, das representações, da
ficcionalidade, da narrativa ou do discurso
com frequência (Cardoso, 1997, Carr, 1986).
Ao longo da história da História, é
possível inferir que o divórcio entre a História
e Literatura iniciado a partir da segunda
metade do século XVIII e consubstanciado
com o surgimento da ciência histórica
durante o século XX, em solo europeu, foi
responsável por um distanciamento do que
desde então viriam a se tornar dois campos
ou áreas específicas do conhecimento: a
História e as Letras. Não é novidade que até
aquele momento a História era vista como um
gênero literário menor, parte integrante das
Belas Letras ao lado da poesia ou da tragédia,
por exemplo, e cujos textos deveriam tratar
de eventos que aconteceram, além de possuir
eloquência e arte. O rompimento, contudo,
de ambas, representou para a história uma
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História & Literatura

fissura sensível, haja vista que era comum para


os historiadores do século XIX interessarem-
se tanto pela história quanto pela literatura,
enveredando-se pela história da literatura
ou ainda da poesia pátria, ao mesmo tempo
em que se voltavam para o passado nacional
de seus países. Em outras palavras, aqueles
historiadores escreviam, ao mesmo tempo,
sobre os grandes vultos históricos e seus
feitos nas Letras, nas Artes ou na História.
E também arriscavam suas próprias poesias
e obras literárias. Foi comum, no Brasil do
Oitocentos, historiadores escreveram obras
literárias, histórias literárias, poesias e,
também, obras históricas e isso prosseguiu até
meados do século XX. No resto do mundo,
sobretudo em solo europeu, o divórcio estava
dado.
O século XIX estabeleceu as formas de
uma cartografia da escrita que se tornou,
doravante, clássica. Esse mapa-mundi é
ocupado pela ficção realista, domínio
do romance, e pelo texto dissertativo,
aquele reino do não-texto acadêmico.
O romancista escreve, mas não enuncia
a verdade sobre o mundo; o acadêmico
não escreve, mas explica o social. Desde
então, podemos dizer que o romancista
escreve sobre o que não é real, ao passo
que o pesquisador é o não-escritor do
real. Eu proponho, por outro lado,
escrever o real (Jablonka, 2017).

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Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Ao longo do século XIX e no século XX


textos literários, como poesias, peças de teatro
ou romances passaram a ser objeto de estudo
e reflexão por parte dos Estudos Literários,
no interior dos cursos de Letras, enquanto a
História passou a dedicar-se de outros tipos
de documentos, registros e objetos do passado,
ocupando-se de um manancial praticamente
inesgotável de fontes ainda inexploradas em
arquivos, cartórios ou paróquias. Não que o
uso de obras literárias tenha sido abandonado
por parte dos historiadores, mas ele se tornou
cada vez mais marginal, sendo muitas vezes
adotado como um artifício retórico, seja para
trazer epígrafes, seja para buscar expressões
mais vivas ou literárias, seja para trazer
compreensões mais gerais do espírito de uma
época e seu contexto que efetivamente como
um registro a ser explorado como uma fonte
que pudesse trazer informações verdadeiras
ou confiáveis sobre o passado (Barros, 2010).
Era como se os romances, tão imbricados às
práticas e à tradição histórica no passado, se
tornassem, a partir do século XIX, objetos
anômalos e incômodos no interior das oficinas
da História. Para muitos historiadores não seria
possível acreditar neles ou nas informações
que traziam. Essa atitude de desconfiança
foi generalizada e fez com que o uso de obras
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História & Literatura

literárias se tornasse bastante insular nos


estudos históricos. Excesso de imaginação e
escassez de lastro referencial provavelmente
são os dois fundamentos responsáveis pelo
afastamento dos historiadores das obras
literárias naquela altura.
Diante do exposto, constata-se
que, seguindo por caminhos distintos, os
estudos literários e a História tomaram para
si a tarefa de se erigirem enquanto saberes
cientificamente orientados, devotando cada
vez maior empenho teórico e metodológico
além de controle sobre suas fronteiras
disciplinares e seus objetos particulares
de investigação, embora compartilhassem
a ficção como um fundamento comum. À
literatura couberam as obras literárias e
sua feitura como um fazer privilegiado e à
História o passado e sua investigação como
trabalho essencial. Uma especialização que se
tornou cada vez mais radical, praticamente
produzindo uma interdição aos historiadores
que ousassem atravessar a fronteira e se
interessar pela literatura, ainda que tenham
existido exceções.
Não foram poucos os problemas
surgidos desse entrincheiramento dos dois
campos. O maior investimento técnico e
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Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

metodológico da História resultou em um


grande desinteresse pela escrita da história, ou
seja, pelo ato de escrever sobre o passado. O
trabalho nos arquivos e a crítica documental
se tornaram preocupações hegemônicas,
deixando de lado a elaboração escrita e suas
implicações na apresentação dos resultados das
pesquisas. Ademais, privou aos historiadores
o conhecimento dos avanços e das realizações
da literatura, de seus debates em torno do
realismo, da mímesis, da ficcionalidade ou da
própria narrativa.
Este processo de distanciamento foi
longo, atravessando praticamente todo o
século XIX e alcançando a primeira metade
do século XX. Nesse ínterim, os manuais de
História devotavam centenas de páginas para
apresentarem a natureza da história e de
seu objeto, sua tarefa, a crítica documental,
quadros teóricos e caminhos metodológicos
existentes reservando duas ou três páginas para
o problema da apresentação ou representação
do passado por meio da escrita. Ou seja, pouco
se interessavam sobre o modo como se deveria
escrever a História. E praticamente nenhum
investimento conferiram à questão. Tomou-
se, em linhas gerais, a narrativa ou a escrita
como algo natural, que deveria ser adquirido

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História & Literatura

na formação escolar; bem como a escrita


da história como algo alheio à formação e à
educação históricas.
À esse abandono, junte-se a
convicção mais ou menos ingênua havida
na transparência do texto e da linguagem
produzidos pelos historiadores, como se
fossem autorreferentes em sua capacidade de
narrar o passado. Enquanto isso, a Literatura
galgava e experimentava possibilidades,
galgando patamares diferenciados de ordem
técnica, reflexiva e representacional; sem
contar que as próprias obras literárias
conheceram avanços significativos. Enquanto
os teóricos da literatura enfrentavam o
problema da opacidade ou dos referentes na
construção de significados e signos literários,
os historiadores ignoravam tais problemas.
Isso tudo era acompanhado por intensas
transformações da ficção e do romance
contemporâneos, com provas suficientes
e robustas da amplitude do problema da
ficcionalidade e da narrativa, explorando
ângulos e perspectivas de construção e
representação mais e mais refinados e
complexos (Cf. Malerba, 2016). Estas
mudanças se refletiram na produção textual:
Para Jablonka, ao longo do século XX
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Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

um novo continente, cuja cartografia


ainda mal distinguimos, timidamente
emergiu: investigações, livros de viagem,
explorações do distante ou do banal,
uma literatura-pesquisa indissociável
dos fatos a serem estabelecidos, as
fontes que a atestam e a forma pela
qual elas são relatadas; um conjunto de
textos bastardos, entre cães e lobos, sem
cartas de nobreza (...) um novo espaço
que permite inscrever o verdadeiro em
formas renovadas” (Jablonka, 2017, p.
51)

O problema da narrativa e o reencontro da


História com a Literatura
Embora não tivesse abandonado
completamente o diálogo com a Literatura, o
fato é que é muito recente maior preocupação
da História com o problema da escrita e,
provavelmente, foi essa reaproximação com
suas raízes entranhadas na ficcionalidade que
permitiram um reencontro da História com
as obras literárias (Harlan, 2000; Stone, 1990;
White, 1991; Hobsbawm, 1999; Hartog, 1994).
A lembrança, em alguns casos incômoda, e o
reconhecimento de que a história é também
uma narrativa fez com que historiadores
e historiadoras passassem a investigar esta
questão a partir da segunda metade e, de forma
mais intensa, no último quartel do século XX,
familiarizando-os, instrumentalizando-os e
17
História & Literatura

atraindo-os, novamente, ao reconhecimento e


à utilidade que a aproximação com as obras
literárias poderia trazer não somente para a
análise histórica como também para o estudo
do passado. Essa redescoberta da narrativa na
escrita da história atravessa diversos caminhos,
alguns mais e outros menos conhecidos, do
qual é possível relacionar alguns.
Em primeiro lugar, pode-se apontar
o debate sobre o caráter nomotético ou
nomológico da história travado em meados
dos anos 1940 e 1950 destacou o caráter
idiográfico e a importância da narrativa
como elemento fundamental do processo de
cognição, de compreensão e de explicação do
passado retratado, sobretudo, nas páginas da
revista norteamericana History & Theory (Cf.
Gallie, 2016; Dray, 2016; Mink, 2015).
Em segundo lugar a discussão travada
no interior do pós-estruturalismo francês e a
emergência da teoria semiótica que passaram
a problematizar o caráter discursivo do
pensamento e com isso, o próprio discurso
da história foi questionado por figuras
como Roland Barthes (1999) ou Michel
Foucault (1981; 2000, 2012). Algo que teve
desdobramentos nos estudos de Paul Veyne
(1989) e Michel de Certeau (2002) por exemplo.
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Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Em terceiro lugar os estudos sobre


a mímesis ou a representação figurativa da
realidade que ocuparam estudiosos como
Eric Auerbach (1987). Um conjunto de
reflexões que não passou despercebido por
historiadores, como demonstra o trabalho
de Hayden White que se dedicou a examinar
o caráter ficcional e figurativo presente nas
narrativas históricas (1991, 1995, 2014).
Em quarto lugar o debate hermenêutico
tematizando a relação entre textualidade
e sentido, entre discurso e compreensão,
preconizado por figuras como Hans-Georg
Gadamer (1999). Quer queiramos ou não, um
dos desdobramentos das questões levantadas
por aqueles autores versa sobre a presença, um
tanto incômoda, da linguagem e os problemas
adjascentes criados para a representação
do real. Um problema que, evidentemente,
interessava e interessa a historiadores e
ficcionalistas.
Em quinto lugar a reflexão
fenomenológica de Paul Ricoeur (1994)
discutindo a relação entre tempo e narrativa
como um espaço de produção do conhecimento
histórico. Sua teoria sobre a mímesis é um
capítulo decisivo na teoria da história e
do narrativismo. Por meio dela o filósofo

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História & Literatura

francês conseguiu evidenciar as relações entre


experiência e identidade, entre narrativa e
história, iluminando a compreensão sobre
como a temporalidade e o real são significados
por meio a consciência histórica (ver também
Ankersmit, 2013).
Em sexto lugar é possível localizar nos
estudos da Teoria Crítica, especialmente em
Walter Benjamin (1995), cuja obra representou
uma renovação e um exercício fecundos sobre
diferentes modos pelos quais seria possível
utilizar obras literárias para se compreender
o passado e o presente. Antes dele a figura de
Lukács que não pode ser esquecida, ou ainda
do linguista Bakhtin. Ainda no âmbito do
marxismo, é preciso destacar a importância
da Nova Esquerda inglesa, notadamente, os
estudos de Christopher Hill, Eric Willians
e Edward P. Thompson, de pensar os textos
ficcionais ou não e sua importância para a
compreensão cultural (Cf. Santos, 1999).
Recentementeno Brasil, observa-se o
uso do conceito de representações de Roger
Chartier (1990) para se investigar algumas
obras literárias sob uma perspectiva histórica.
Muitos estudos, como os de Valdeci Rezende
Borges (2012) atestam a viabilidade de se
acessar determinados problemas históricos
por meio de obras literárias.
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Um campo de possibilidades e de problemas
Este amplo e variado leque de leituras
sobre a História, a linguagem e a Literatura
trouxeram à superfície o problema da
opacidade da narrativa e a importância de
seu estudo, produzindo grande repercussão
no interior dos estudos históricos. E um
desdobramento direto foi a renovação do
interesse da História pela Literatura, pela
análise de obras literárias e a retomada da
preocupação com o problema da escrita e da
ficcionalidade nas representações produzidas
sobre o passado. Outro resultado foi a
aproximação com a crítica literária e o contato
de historiadores e historiadoras com avanços
recentes da literatura contemporânea. Isso
não desengessou a escrita da história ou a
estrutura dos textos produzidos por eles em
suas pesquisas, mas chamou a atenção para
a presença da ficção na História (White,
2010; White 1991, White 2011). Um enorme
incentivo para que obras literárias voltassem
a interessar historiadores e historiadoras
profissionais (Hollanda, 2017).
Pode-se inferir ainda que tanto
o negacionismo quanto as fakenews que
ganharam as mídias e as redes digitais a
partir do século XXI também alertaram sobre
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História & Literatura

os riscos que narrativas mal-intencionadas


podem ter no interior da História. A
análise de sua construção, disseminação
e de seu conteúdo trouxeram novas luzes
sobre o problema da ficcionalidade e da
representação em narrativas históricas, tanto
produzidas por profissionais, quanto por não-
especialistas. Os usos políticos e ideológicos
do passado e destas narrativas despertaram
tanto um alerta sobre a importância não
somente da disputa de narrativas e da criação
de mecanismos de controle e denúncia de
falácias ou mentiras históricas, quanto um
cuidado nos usos de protocolos de checagem
das fontes, metodologia de obtenção de
dados e, por fim e não menos importante,
sobre a verificação das análises contidas nas
narrativas. Ampliou-se o entendimento sobre
o que seriam consideradas verdades históricas,
bem como sobre a natureza da ficção, até
então entendida por muitos historiadores e
historiadoras profissionais como mentira ou
simples invenção.
O reconhecimento das verdades
ou do conhecimento contidos na ficção e,
por conseguinte, em obras literárias, apesar
destes avanços, não são um fenômeno recente.
Durante muito tempo romances e poemas
eram um instrumento de formação intelectual
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Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

nos indivíduos. Educava-se e aprendia-se com


a Literatura. Após um breve hiato em meados
do século XIX e início do século XX, reativou-
se a potência da literatura sobre a vida. Sua
validade e ação sobre o mundo trouxeram
frescor a uma diálogo interditado há bastante
tempo no interior da História de uma forma
mais ampla e geral, haja vista que, no passado
alguns historiadores, como Johann G. Droysen
(2009) ou Marc Bloch (2019) por exemplo,
nunca deixaram de apontar a importância
de se considerar a literatura, mas também
mentiras e falácias, como problemas sensíveis
para a investigação histórica, artefatos que
deveriam ser examinados com seriedade.
Mesmo antes deles, Voltaire também advertia
sobre a necessidade da História considerar
mitos, lendas e fábulas como parte da história,
algo reiterado por Ernst Cassirer ou Jean-
Pierre Vernant no século XX. François Hartog
devotou páginas e páginas para mostrar como
a ficcionalidade presente na Ilíada e na Odisseia
revelavam vestígios e elementos do passado
histórico da Grécia Antiga em Homero
(1989). Para citar alguns exemplos bastante
pontuais de como a literatura esteve em
diferentes momentos, no radar da História.
Resultado da retomada desse
diálogo em muitas vertentes do pensamento
23
História & Literatura

histórico recente com maior rigor foi a


presença comum das expressões História e
Literatura (Cf. Santos 2009), Narrativa e
História, que revelam o renovado interesse
pela ficcionalidade e pela narrativa. Eles
aparecem em nomes de artigos, de dossiês
em revistas, teses, dissertações e nomearam
muitas disciplinas ofertadas em cursos de
graduação e pós-graduação em História a
partir dos anos 1990. E, no interior desses
estudos, encontramos não somente debates
teóricos, mas também, embora de forma
mais incipiente, a presença da literatura, de
obras literárias, poemas, romances, histórias
em quadrinhos, entre outros exemplos, de
artefatos utilizados em pesquisas de História.

Na base de tudo, a palavra


Para início de conversa, acreditamos
que a palavra pode ser o fundamento e o
ponto de partida tanto das ficções literárias
quanto das ficções em História, de modo que é
imprescindível ver como elas são mobilizadas
pelos autores. A escolha das palavras em
títulos, subtítulos, nomes de personagens,
lugares, mas também sua disposição e arranjo
ao longo do texto, apontam que cada palavra
é uma seleção, resultado de algum tipo de

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Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

raciocínio e de algum trabalho de construção.


Ou seja, antes de mais nada, as palavras são
a base essencial na qual se constituem os
caminhos e a disposição feita pelos autores,
o uso de uma e não de outra, como uma
escolha na qual se informam horizontes
distintos e se sinalizam finalidades diversas.
O nome disso é cálculo. Obras literárias não
são, portanto, resultado de talento ou de
genialidade, elas são o resultado de pesquisa,
reflexão e trabalho – tudo feito com tirocínio.
E, invariavelmente, na base de tudo, sintaxe,
semântica, pragmática, mas também do estilo,
do gênero ou do tema está lá a incontornável
palavra. Em torno das palavras todo texto
ganha vida: começa, desenvolve-se e termina.
A escolha de palavras é determinada
pela linguagem falada e, evidentemente pelo
vocabulário que se domina, da extensão de
vocábulos conhecidos. Um autor é o resultado
daquilo que leu e que foi capaz de pensar, usar
e também imaginar. Daquilo que, em última
instância, conseguiu colocar em palavras.
Maior o vocabulário maior será a extensão
e a qualidade possível de construções de
frases, orações, sentenças obtidas. Maior
conhecimento sobre elas e seu uso, maior a
possibilidade e o poder de construir escritos.
Os autores literários que se destacam ou se
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História & Literatura

projetam são, não raro, exímios na arte de


manusear as palavras. Então é necessário
considerar que o cálculo e a escolha das
palavras se dá mediante um universo ou
repertório existente que é explorado pelos
autores. Ao mesmo tempo os autores podem e
devem transitar ou dialogar com experiências
e obras literárias de diversas tradições e não
exclusivamente a de sua região ou país. Muitos
autores foram, também, tradutores.
Obras literárias são construídas por
palavras e inseridas em formatos textuais
consagrados, quiçá específicos: conto, poema,
romance, novela ou peça de teatro, para citar
alguns mais conhecidos. Cada um destes tipos
de obras literárias tem sua história e suas
convenções. Porque não é possível entender
uma obra literária somente pelo conteúdo.
A forma adotada implica em regras, em
experiências em possibilidades. Os autores
sabem disso quando procuram moldar seus
textos em algum formato específico, seja
para os encaixar, seja para os desafiar. Cada
uma destas posturas é importante, ou seja,
tanto a submissão à formatos e gêneros
canônicos, quanto seu questionamento ou
tentativa de flexibilização. Isso nos conduz a
dois vetores essenciais: o da historicidade das
obras e o dos gêneros literários existentes.
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Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Mas também a um outro horizonte que não


deve ser menosprezado, relacionado com
os contextos históricos e com a existência
de um universo de autores, mas também
de leitores ou público a que se destinavam
(Jauss, 1979). Lembrando que a forma
romance não é atemporal. Os romances são
criados na modernidade. Da mesma forma o
gênero crônica. Ou ainda os contos. Todos
tem uma história que é preciso conhecer.

Historicidade como chave analítica


Assim como a história pode ser
vista como um gênero literário, com
sua historicidade, suas características,
convenções, transformações, finalidades,
entre outros aspectos, todos os outros tipos de
obras literárias acompanham a história nesse
inventário responsável por sua constituição,
ou para as tornarem aquilo que se tornam.
Lembrando que as fronteiras são permeáveis,
que as formas são conspurcadas muitas vezes
pelos autores. Mas existem os modelos e os
textos tomados como canônicos pelos autores,
na História ou na Literatura. E isso nos conduz
ao problema da tradição, da angústia ou do
desejo consciente dos autores de segui-la, de
ultrapassá-la, de transgredi-la ou de rompê-

27
História & Literatura

la. Toda obra se relaciona criticamente em


relação à tradição.
A palavra e, por conseguinte
as obras narrativas, são uma forma de
conhecimento, de compreensão e de
expressão. Ambas se subsumem a um
conjunto de atividades e relações humanas
que marcam vidas e suas experiências. E
que lhes acentuam suas condições. Não por
acaso são dinâmicas, morfológica, sintática
e semanticamente falando. Então, pensar
a comunicação humana também pode ser
um ponto de partida interessante para
pensar o objeto, ou seja, a fonte literária.
Toda obra passou por um processo de
criação, de imaginação, de pesquisa, de
reflexão, de experimentação e em seguida
de confecção, produção e circulação. E elas
surgem de autores e autoras que também
têm uma história. Portanto a historicidade
do autor, da obra, do contexto de ambos e
do público leitor são fundamentais (Jauss,
1979). Compreender como se constituem e
o porquê de construírem suas expressões de
um dado modo e não de outro. Em outras
palavras, é importante analisar a maneira
como foram construídos no seu tempo e
repensados ou descritos em outros tempos
e lugares. Analisar as relações políticas,
28
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

sociais, religiosas, culturais, materiais,


simbólicas, etc., que os envolviam.
Uma perspectiva que pode ser bastante
útil para ajudar a compreender a literatura vem
da semiótica. Ela nos oferece um quadro no
qual se constitui toda comunicação formado
por emissor, mensagem, veículo/forma,
código ou linguagem, receptor, contexto
temporal e espacial. É no interior desse
quadro que devemos considerar o surgimento
e a circulação das obras literárias. Elas devem
ser pensadas imersas na temporalidade –
carregando e atravessando o tempo – e em
diferentes olhares, no modo como dialogam
com a tradição, com os pares, com os leitores,
com seu tempo. Estas marcas da historicidade
seguramente deixarão vestígios ou ruínas no
interior dos textos ficcionais. E não se deve
desprezar o autor, seu lugar social (Certeau,
2002), sua biografia, tampouco o destinatário
ou destinatários do texto, além dos aspectos
voltados para o formato/gênero em questão e,
evidentemente, o próprio conteúdo.

A materialidade das obras literárias


Mas ficar nisso seria apenas um
primeiro passo. Em seguida é preciso
vislumbrar um sistema mais amplo. Dado
29
História & Literatura

que podemos compreender a produção e


circulação de um tipo particular de artefato,
que é o literário em diferentes patamares ou
círculos. Sua realização em espaços no interior
da sociedade. Isso nos conduz à existência
ou ao reconhecimento da possibilidade de
existência de um campo, o campo literário,
com suas hierarquias, regras, convenções,
lógica, estrutura, habitus, enfim, conforme o
modelo bourdieuano. Mas, mesmo no interior
desse sistema compreender a presença de
um conjunto numeroso de insumos e figuras
para sua consubstanciação, movimento e
circulação.
A existência da língua e da linguagem
em primeiro lugar, a língua nacional ou
não, as contaminações ou hibridismos, os
estrangeirismos, esse é um primeiro ponto.
Pensar como se dá a aparição da literatura, seja
ela oral, escrita ou impressa. Cada uma dessas
possibilidades nos conduz a outras cadeias de
relações. Verificar os atores envolvidos nesse
processo, identificando figuras, agências e
instituições.
No caso da literatura que é imprensa,
temos a figura do livro, do pergaminho
ou do papel, da produção da commoditie
celulose, dos tipos e preços do papel ou
30
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

pergaminhos; de seu comércio, mas também


o de produção e comercialização da tinta,
da impressão – com suas máquinas e suas
técnicas –; considerando-se ainda a linha, a
agulha, a costura, a cola, a encadernação, as
caixas, o transporte, a venda, a fiscalização
– houve um tempo que livros eram
submetidos à censura. E ver também as
livrarias, as bibliotecas, enfim toda uma
cadeia envolvendo atores, técnicas, artefatos
e processos até chegarmos aos leitores. A
leitura depende desse amplo sistema e dessa
materialidade. E nessa cadeia a presença dos
tipos humanos, o papeleiro, o diagramador, o
capista, o editor, o encadernador, o livreiro,
o transportador, etc., tudo pode ser relevante
e oferecer pistas para se compreender o
objeto livro, ou ainda o objeto leitura e,
evidentemente, sua compreensão. Como se
vê, são tantas variáveis em curso, que nem
o preço, a tiragem, a distribuição ou o lucro
podem ser desprezados. As fontes literárias
também podem ser estudadas historicamente
mediante esta chave. Ela aponta para questões
que colocam em cena a materialidade, o lado
mercadológico e comercial e capitalista, que
poderia expressar a produção e circulação
de livros na contemporaneidade. Pensar que
o livro é, para autores e comerciantes um
31
História & Literatura

negócio econômico, mas também de natureza


política e social.
Não se deve esquecer do espaço
virtual e das publicações feitas na internet na
atualidade. Examinar sites, patrocinadores,
criadores, diagramadores, provedores, formato
digital escolhido, para citar alguns aspectos
também podem ser informações decisivas para
compreender a natureza ou o significado destes
escritos na contemporaneidade. Publicações
em sites ou blogs independentes, em revistas
digitais de literatura, em páginas pessoais,
mas também em suportes como o Kindle são
elementos que ajudam a compreender e, não
raro, a explicar dinâmicas e conteúdos de
diferentes publicações digitais.
Uma questão importante é também
verificar se o livro é produzido por iniciativa
própria, uma autopublicação, ou se financiado
por algum mecenas, apoiado por alguma
editora, de alguma instituição ou fruto de
vitória em algum edital. Se integra alguma
coleção, solicitado por encomenda ou é
iniciativa pessoal do autor. Tudo isso altera
bastante sua gênese, circulação ou consumo.
Antes de escrever, todo autor foi e é um
leitor. Então é preciso entender as práticas e o
universo de leitura pré-existente e existente. E
32
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

também se este cenário foi alterado em anos,


décadas ou séculos posteriores. Uma coisa
é a publicação da Ilíada na Grécia Antiga,
outra Lancelot ou o Cavaleiro da Carreta de
Chrétien de Troyes na Idade Média, outra A
hora da estrela de Clarice Lispector e, por fim
O professor arrogante de Bianca Pohndorf, um
dos mais vendidos no Kindle atualmente.
Isso nos conduz ou universo do
autor mas também aos círculos de leitores
e de leituras em contextos históricos e
formatos específicos. Algo que exige verificar
quais são suas obras favoritas, e as que
circulavam naquele momento, seus livros de
formação e cabeceira, seus diálogos, alianças,
rompimentos. Seus cânones, suas preferências.
Se esteve envolvido em polêmicas e debates
ou não. Avaliar em que tipo bibliotecas liam e
suas obras seriam consultadas. Se se tratavam
de bibliotecas particulares, públicas ou de
alguma instituição. Em tempos modernos o
surgimento das editoras e das livrarias, o lado
comercial da produção literária. Livros têm
sua história, autores têm sua história, editoras
também, até os contextos têm uma história
no interior da historiografia. Portanto, é
preciso repetir que historicidade é a palavra-
chave: devemos colocar os livros e os autores

33
História & Literatura

em movimento e em perspectiva, no interior


de temporalidades plurais para capturar seus
sentidos e os significados produzidos sobre
eles. Escrever é agência. Autoria é também
resultado de agenciamentos. Obras são
resultados da ação humana, relacionada com
a criação textual. Como foi o letramento,
ou qual foi a formação literária do autor ou
autora?
Notem que falamos destes aspectos
que poderíamos chamar de elementares
ou práticos para pensar as obras literárias.
Pois somente o conhecimento deles no
interior de sistemas de concepção, produção,
comunicação, circulação e recepção é que
podemos compreender pontos importantes
de um constructo indissociável de qualquer
obra literária: a forma-conteúdo. Toda obra
ou artefato literário encerra uma forma-
conteúdo que é historicamente produzida.
Fruto de relações humanas que expressam
o pensamento e a comunicação num dado
momento em espaços determinados. Autores
e livros não existem suspensos ou isolados no
tempo e no espaço. Não são fruto de geração
espontânea, tampouco nascem em árvores.
São o resultado de agência humana realizada
em uma época e em um lugar determinados.
34
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Que se valem das ferramentas e dos circuitos


existentes para materializar seu trabalho. Mas,
que também podem criar novas ferramentas
ou espaços.

A pré-história ou pré-existência da obra


Antes de obras serem escritas é
preciso entender o que os autores tinham à
mão e como desenvolveram as habilidades
para produzir seus textos. Onde estudaram,
quem foram seus mestres, que livros leram, o
que escreveram antes, que tipo de ferramenta
usaram para escrever? Pedra? Tinteiro?
Máquina de escrever? Computador? Tudo isso
faz uma diferença enorme, porque é preciso
saber onde obtinham isso tudo. E como foi
dito anteriormente, se eram financiados
por alguém, se dependiam de bibliotecas
ou de terceiros. Mas, para além disso, o que
os motivou a escrever? Qual o motivo ou
intenção que os levou a produzir uma obra?
Quando surgiu a ideia inicial? Discutiram isso
em correspondências? Deixaram registrado
em alguma entrevista? Isso aparece no próprio
livro, na introdução ou prefácio? Dispunham
de bibliotecas pessoais ou familiares ou
dependiam de algum tipo de biblioteca
pública ou privada. Eram laicas ou religiosas?
35
História & Literatura

Como qualquer outra fonte é preciso


fazer crítica interna e externa da obra literária
tomada como objeto de análise. De um lado
saber de suas origens, seus dados elementares,
tempo de redação, revisões, existência de
manuscritos, de impressos revisados, tiragem,
formato da obra, origens e características da
editora, cidade em que foi escrito e impresso,
quem era seu editor; além dos já citados
tamanho, tipo de papel, gramatura, fonte
utilizada, espaçamento, uso de capitulares ou
de ilustrações, dimensão, se possui tabelas,
qual seu preço de venda, se foi distribuído
gratuitamente ou comprado e distribuído por
alguma instituição.
De outro lado pensar o processo
de fabricação, compreender esse making
of, ou os bastidores da criação literária,
tentar compreender a mente do autor,
seu planejamento, seus esboços, tudo é
importante. Antes de escrever, todo escritor
pensa em algum problema, algum tema, e
perde algum tempo refletindo sobre isso.
Muitos fazem extenso planejamento antes de
escrever. Coletam dados, informações, fazem
um planejamento. E também podem produzir
várias versões e revisões que podem ter sido
preservadas. Os editores também costumam

36
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

intervir no texto. Correspondências ou


entrevistas podem trazer estes bastidores à
tona.

A metodologia de análise do conteúdo das obras


literárias
Vejam, até aqui nada se falou sobre
como analisar o conteúdo da obra. Porque isso
vai depender de qual será o quadro teórico ou
conceitual escolhidos para a investigação. Um
romance pode ser estudado historicamente,
como um objeto de história sob as mais
variadas abordagens e metodologias.
Quantitativa ou qualitativamente, em
uma perspectiva eminentemente literária
relacionada com escolas ou com uma
vertente da crítica literária, ou sob outras
perspectivas, examinando-se questões
sociais, políticas, culturais, econômicas,
religiosas, dentre outras, relacionadas com a
obra, sua produção, circulação ou leitura. E,
evidentemente, em relação ao seu conteúdo.
Nas mais variadas preocupações ou objetos,
tomando temas mais gerais como por exemplo
gênero, infância, trauma, cidade, imaginário,
ideologia, a realeza, amor, mulher, justiça,
religiosidade, e assim por diante. Isso tanto
pode ser pesquisado através de um banco

37
História & Literatura

de dados relacionando palavras-chave,


conceitos, categorias, etc., presentes, mas
também a quantidade de uma determinada
figura de estilo muito utilizada. Pode-se
pensar as cores mobilizadas em determinadas
cenas, a referência à objetos, nomes. Enfim
praticamente qualquer coisa pode ser
quantificada e isso trazer respostas a uma
determinada pergunta. Mas também podem
ser analisadas determinadas expressões, ou
ainda a referência a eventos, figuras ou dados
históricos (Cf Perlatto, 2017). Sentimentos,
vestuário, gestos, qualquer ato, diálogo, cena
ou pensamento podem ser explorados.
Enfim qualquer tema ou objeto pode
ser mobilizado para ajudar a compreender
historicamente alguma questão tomando
como objeto de análise um texto literário.
Para isso, basta ver se a obra traz ou tem
alguma relação com o tema escolhido. Com
um arsenal de abordagens ou metodologias,
o método indiciário, a análise de conteúdo,
a análise de discurso, a semiologia, as
representações, o discurso, a epistème, a
história conceitual. Enfim, qual sua teoria
da história predileta? O marxismo? Então é
só pegar algumas ferramentas analíticas do
materialismo histórico e de alguma vertente
da crítica literária marxista e dar asas à
38
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

imaginação. Prefere história das ideias, na


vertente da escola de Cambridge com Pocock
ou Skinner. Então basta enquadrar sua análise
nesta perspectiva, extraindo daqueles autores
os conceitos ou ferramentas de análises
que ajudaram a responder alguma questão
histórica levantada.
Como qualquer fonte, é preciso
conhecer a história da própria fonte, a
historiografia daquele tipo de texto, a
linguagem ou as técnicas empregadas naquele
objeto, alguma corrente teórico-metodológica
que será utilizada. Peguemos um exemplo.
Vamos supor que o objeto de investigação
seja um conto de Machado de Assis. É preciso
conhecer Machado de Assis e sua história,
seu estilo, ler biografias sobre Machado,
críticas literárias sobre Machado, a história
da literatura especialmente sobre a época ou
a corrente ou correntes a qual ele se vinculava
ou buscava romper, em seguida é preciso ler
sobre teoria literária, sobre o que é Literatura
em geral, como era literatura e as práticas
literárias no tempo de Machado (Schwartz,
1990), tudo isso antes de se analisar o
conteúdo do conto. Em seguida é preciso ler
sobre a forma ou gênero conto, sua história,
suas características, o que é um conto, teorias
sobre o conto (Cf. (Piglia, 2004), como eram
39
História & Literatura

os contos no tempo de Machado e, por fim,


como são os contos de Machado de Assis
(Cf. Chalhoub, 2003, 2005). Em seguida,
familiarizar-se com um pouco de crítica
ou de teoria literária mais específica, que
se pretende utilizar. Só depois disso é que é
preciso ler e submeter o conto pretendido
à análise, à luz de um referencial teórico-
metodológico que pode ser da própria história,
como a história conceitual koselleckeana ou as
representações chartiernianas, entre outros,
mas também de áreas vizinhas, ou seja, pode-
se buscar instrumental analítico na filosofia,
na antropologia, na psicologia, na biologia, na
política, enfim, onde se quiser. O diferencial
será sempre o enquadramento histórico, a
perspectiva historicamente orientada do
estudo. Isso tornará a pesquisa um estudo de
História. Deve-se, contudo, ter em mente, que
as fronteiras entre as áreas do saber hoje em dia
são mais, ainda bem, fluídas e permeáveis (Cf.
Vasconcelos, 1997). Assim, os estudos podem
e deve ser mais multi e interdisciplinares.

O laboratório da criação literária: o autor, sua


cabeça e suas leituras
Autores de ficção, que produzem ou
têm a ambição de escreverem obras literárias,
posto serem leitores ávidos, desenvolvem
40
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

preferências, estabelecem diálogos críticos


com a tradição literária. Procuram se inserir
nela de alguma maneira. Então é possível
detectar alguma intertextualidade ou o eco
da voz de outros autores ou objetos artísticos
– não necessariamente literários – em suas
obras.
Além da inspiração pela leitura, o
olhar é fundamental para a construção de
escritores. Eles criam cenas, personagens,
imagens em seus textos. Portanto, além
das obras literárias, a realidade próxima da
casa, do bairro, da cidade, do mundo, das
pessoas, mas também as pinturas, o cinema,
a fotografia, as histórias em quadrinhos, a
música, o teatro, a dança, tudo pode oferecer
subsídios para a criação literária. Autores
de ficção estão atentos a isso tudo, não raro,
são observadores atentos e têm sempre uma
caderneta de anotações à mão. A presença das
imagens que lhe são familiares ou estranhas
podem estar implícitas ou explícitas nos
textos que criam. Não é fácil entrar na cabeça
dos autores. Mas, dialogar com eles, ou tentar
entender seu processo criativo é um desafio a
ser enfrentado, mesmo se não houver êxito
notável como resultado do esforço (Cf.
Sevcenko, 1994).

41
História & Literatura

Autores de ficção, a partir desse


laboratório ou de suas experiências de leitura
e observação, encontram motivos ou ideias
para escreverem. Pensam em algum tema,
então alguns se colocam a escrever, outros
iniciam uma pesquisa preliminar que pode
ser genérica ou bastante ampla e detalhada
para projetar sua obra. Alguns se apegam a
cada detalhe, dos espaços aos personagens,
dos temas em suas determinações filosóficas,
sociais, políticas ou existenciais; outros apenas
desenham linhas gerais, começando logo a
verter suas ideias no papel. É provável que
existam pistas desse processo prévio de criação
e pesquisa e que elas tenham sobrevivido. Em
totalidade ou em vestígios. Mas também no
interior de cartas, em rascunhos, prefácios ou
entrevistas. Isso pode ser bastante útil para a
compreensão do fundo histórico e dos laços
com a realidade ou o vivido no interior das
obras literárias. E também sobre como foi seu
processo de construção.

No chão de toda literatura e de toda história está


a ficção
Há enorme discussão relacionada com
o conceito de literatura. Como uma prática
histórica humana, deve-se conceber que seu

42
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

entendimento está relacionado com o modo


pelo qual diferentes sociedades e indivíduos,
historicamente, em diferentes épocas e
lugares exercitam o trabalho de produção de
linguagem e de expressão, reconhecendo o
lugar das palavras – impressas ou faladas – e
seu estatuto, classificando e hierarquizando-
as, produzindo uma prática, um campo e suas
convenções. Este livro dedica-se, em especial,
à literatura que pode ser encontrada em textos
impressos, nas obras escritas e vazadas no
formato de livros, pensando especialmente
nos romances. Afinal, romance é o gênero no
qual a linguagem está a serviço do realismo,
ao lado das crônicas, contos e novelas, isto é,
da apresentação corriqueira da vida cotidiana.
Tanto história quanto literatura partem do
real, de suas leituras e constroem discursos ou
narrativas sobre ele, a partir de sua lógica e de
suas ferramentas de trabalho.
O romance coincide com o aparecimento
de um público leitor já não pertencente
aos círculos aristocráticos. O romance
tornou-se o herói principal no drama
do desenvolvimento literário de nosso
tempo precisamente porque é o que
melhor reflete as tendências de um novo
mundo ainda em feitura; é, em suma, o
único gênero nascido neste mundo novo
e em total a unidade com ele. (Bakhtin.
M.: 1975, 7)

43
História & Literatura

Tendo como fundamento a


ficcionalidade, entendida aqui, de forma mais
genérica, como a capacidade de converter
o mundo ou a realidade e sua compreensão
em linguagem e textualidade, e sendo ambas,
filhas da imaginação – na História submetida
ao controle e na Literatura possuindo maior
liberdade, o que poderia distinguir os dois
campos seria a questão do referente. Porque
enquanto o referente da literatura seria da
ordem do possível e não do provável, abarcando
outras realidades e não exatamente a realidade
do mundo em que vivemos em si; além de que,
em relação ao manejo da linguagem, enquanto
a Literatura permite-se seu uso mais livre,
metafórico e conotativo com vistas à produção
de um artefato estético-literário, a História
procura manter-se próxima do descritivo e do
denotativo criando textos mais pragmático-
retóricos. Os estudos históricos dependem
muito da ordem do provável, daquilo que se
consegue provar e demonstrar e menos daquilo
que podem, livremente, criar ou interpretar
sem a devida confirmação na empiria, nos
documentos ou na realidade. A História
é um conhecimento e uma prática textual
cientificamente orientados. A literatura, por
seu turno, é um tipo de conhecimento e prática
textual artística ou esteticamente orientados.
44
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

O fato é que não devemos tomar


livros históricos ou obras literárias
como um aqui e agora, mas como objetos
que carregam a temporalidade. E sua
factibilidade. São artefatos dinâmicos. Que
tiveram um tempo de produção e de vida,
atravessando o tempo, portando significados
e historicidade particulares ao longo do
tempo. São artefatos literários (H. White),
portadores de ficcionalidade (mímesis e
poiesis), constantemente ressignificados,
tanto as obras literárias quanto históricas,
estas últimas aparentemente parecem
sofrer menos o peso das interpretações e
ressignificações.
A suposta maior abertura semântica
dos textos literários tem a ver com sua natureza
metafórica, estética e inventiva. Eles carregam
estas marcas como uma de suas origens, trazida
desde suas intenções iniciais marca indelével de
sua própria racionalidade. Autores literários
têm consciência disso. E trabalham com maior
liberdade criativa e expressiva, ao contrário
de historiadores, que permanecem atrelados a
disciplinas e a convenções metodológicas mais
estritas. História carrega consigo o peso da
cientificidade, não que não possa ser criativa
ou que não permita movimentos livres, mas,
ao fim e ao cabo, deve estabelecer diálogos
45
História & Literatura

no interior de seu próprio cânone segundo


protocolos disciplinares um tanto quanto
rígidos. Estes, fixados ao longo de séculos, são
bastante diferentes do cânone literário. Não
obstante, ambas, obras literárias ou históricas,
sofrem com a alteração em sua recepção, posto
que mentalidade e consciência histórica sejam
dinâmicas, vivendo mudanças e passando por
transformações ao longo do tempo e ao longo
de gerações.

Interesses, valores e perspectivas


Antes de examinarmos qualquer
documento, literário ou não, é preciso ter em
mente que não existe obra ou autor neutro –
todo texto é posicionado e tem um interesse,
uma pretensão. Carrega consigo as tensões
dos valores sociais e ideológicos de seu tempo.
Como nascem de relações históricas e sociais
particulares, carregam relações de força,
expressam práticas e jogos de poder. Assim,
seria impossível desconsiderar a relação
existente entre texto e contexto, afinal, os
autores escrevem de algum lugar, em algum
momento. Eles também precisam sobreviver,
pagar contas, respirar.
As práticas literárias se inserem em
universos históricos e são parte de um imenso
46
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

sistema ou contexto que as envolvem. E ao


se diferenciarem, assim como diferenciam
os textos que a constituem, estabelecem
convenções, regras e dispositivos. Formam
espaços e instituições nas quais circulam. Ou
seja, performam o campo literário (Bourdieu)
– uma estrutura estruturante e estruturada
em diferentes sociedades. Grupos de poder
e interesse se formam, alimentando disputas
que tornam o campo dinâmico. E dentro dele
podemos encontrar regularidades e rupturas,
escolas literárias, outsiders e vanguardas. As
disputas ou o conformismo explicitam práticas
literárias e podem ajudar a compreender obras
literárias, tendo em vista que surgem em meio
a relações de poder.
É preciso insistir que, não seria
possível pensar o teor ou os problemas
internos das obras literárias sem desconsiderar
sua materialidade no interior de sociedades
hierarquizadas e marcadas por relações de
poder. O texto precisa existir fisicamente,
antes de mais nada. E fazer o livro surgir
tem um preço. Exige colocar em curso um
conjunto de técnicas, indivíduos, mas também
de suprimentos e materiais que dispendem
tempo, energia e valor. Todo livro é o resultado
de uma luta de seu autor consigo mesmo e
com o mundo exterior para lhe trazer à vida.
47
História & Literatura

Mas, a obra literária não poderia


ser pensada apenas como o discurso de uma
ideologia, uma mercadoria ou mero artefato
material, pois o literário não somente é uma
coisa – ele é também função. Ele assume um
valor simbólico, carregando gradientes de
fetichização ou não. Vislumbrando símbolos,
imaginários, mitos, arquétipos e alegorias.
Isto reforça o fato de que tanto a obra, quanto
a definição do que é literário é uma relação
– é um pacto entre determinados grupos ou
pessoas, e não algo natural no interior das
sociedades. Ademais, livros podem ser aceitos
ou contestados. Ou podem ser adorados e
seguidos em um determinado momento e
rechaçados em outros, dentro de uma mesma
sociedade.

A criação literária, a tradição e o cânone


Transformar a realidade comum
da linguagem tem sido um dos objetivos de
muitas obras literárias. Ou revela-la, nua e
crua. De forma direta e sem firulas. Revelar
saberes e conhecimentos relacionados com
a humanidade, com o mundo, com as coisas.
Esse trabalho com a forma, nos conduz à
dimensão estética (extesia – sentimentos) da
criação textual. Ela gera e existe na fruição.
48
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Em outras palavras: no consumo. Ou seja,


a literatura também nos conduz à reflexão
sobre o belo e suas formas. Usando artifícios,
retardamentos, movimentos, surpresa. É a
transfiguração de um lugar comum, como
diria Arthur Danto.
Qualquer linguagem em uso consiste
em uma variedade muito complexa de
discursos, diferenciados segundo a classe,
região, gênero, situação etc., os quais de
forma alguma podem ser simplesmente
unificados em uma única comunidade
linguística homogênea (Eagleton, 2010).

Estudar literatura no passado era


causerie (conversa informal) – especulação,
informal, casual, desprovida de metodologia
científica. Falta de precisão, de método,
de orientação teórica. Hoje tornou-se algo
bastante rigoroso e ordenado em diferentes
perspectivas analíticas no interior da teoria e
da crítica literárias.
Literário ou literatura é algo
construído no interior das sociedades,
um campo ou atributo reconhecido pelos
indivíduos, seja porque estabelecido por
alguma autoridade, seja resultado de um
consenso, seja porque socialmente aceito.
Isso depende do gosto? Em certa medida sim,
posto que juízos estéticos envolvem tanto a
49
História & Literatura

percepção quanto a afirmação da literatura.


Ela depende de uma educação dos sentidos e
da percepção. Razão e emoção. Prazer, gozo e
fruição. O gosto é historicamente construído.
A beleza feminina entre os séculos XIII e
o século XVIII na Europa da pele clara e do
corpo curvilíneo (obeso) eram objeto de culto
e desejo. Camponesas trabalham, comiam
pouco e sua pele tendia a escurecer como a de
africanos e árabes, logo, não eram vistas como
algo que remetesse ao belo. Beleza no século
XIX e XX, pelo menos no Ocidente, mudam
um pouco, pele clara e corpo magro; por
causa da ciência do regramento e da economia
do desperdício, em outras palavras, comer
menos alimentos e de mais qualidade. Evitar
o sol. E sua existência se consubstancia na
relação indissociável entre forma-conteúdo.
A literatura não tem uma essência ou um
sentido único e essencial.

Para que serve a Literatura?


Para Roman Jakobson, o processo
comunicativo é composto por seis
componentes estruturais que realizam seis
respectivas funções: emissor e a função
emotiva ou expressiva, receptor e a função
conativa ou apelativa, código e a função

50
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

metalinguística, mensagem e a função poética,


canal e a função fática e, por fim, o referente e
a função referencial ou denotativa (Jakobson,
2010). Uma das seis funções é sempre a
função dominante em um texto e geralmente
relacionada ao tipo de texto. Na poesia, a
função dominante é a função poética: o foco
está na própria mensagem.
As três ideias principais de Jakobson
em linguística desempenham um papel
importante no campo até hoje: tipologia
linguística, marcação e universais linguísticos.
Os três conceitos estão fortemente
interligados: a tipologia é a classificação
das línguas em termos de características
gramaticais compartilhadas em oposição à
origem compartilhada, a marcação é, em linhas
gerais, um estudo de como certas formas de
organização gramatical são mais otimizadas
do que outras, e os universais linguísticos
correspondem ao estudo das características
gerais das línguas no mundo.
Roman Jakobson associa literatura
a usos específicos e a funções constituídas
a partir da linguagem, inclusive criou a
chamada função poética. Isso nos leva a
perguntar o que põe a literatura movimento.
E são, sem dúvida alguma, as conexões com o
51
História & Literatura

mundo social exterior, em outras palavras, a


realidade histórica responsáveis por tornar a
literatura em algo dinâmico. Ainda segundo
Jakobson, os artifícios usados pela literatura
que incluíam som, imagens, ritmo, sintaxe,
métrica, rima, técnicas narrativas. Na
verdade eles incluem um amplo estoque de
elementos literários tidos como formais. E
o que todos esses elementos têm em comum
quando manuseados literariamente é a
produção do efeito de estranhamento ou de
desfamiliarização em relação às experiências
na vida cotidiana (Jakobson, 2010). É como
se a vida comum ganhasse novas cores, que
coisas triviais revelassem uma grandeza
desapercebida. Evidentemente que pensar a
literatura no interior desse quadro formal é
problemático, afinal, o que um é norma, para
outro poderia ser visto como desvio.
Os formalistas russos, portanto,
referiam-se aos textos subsumindo-os
à norma culta, à literatura formal da
gramática, do dicionário. O problema é que
a distância histórica pode fazer com que
mesmo o texto mais prosaico do século XV
possa nos parecer como poético e sublime
aos olhos do presente, devido ao seu arcaísmo
(Cf. Eagleton). Conhecer o contexto e a
historicidade recuperam a forma e a função
52
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

originais. O fato é que textos literários


costumam ser tomados por esse caráter
distintivo, incomum, invariavelmente
servindo-se de recursos poéticos (metáforas,
quebras, ritmo, etc).
A literariedade, como toda definição
de Literatura, compromete-se, na realidade,
com preferências extraliterárias, ou, em
outras palavras, com as políticas do campo.
Definir literatura é sempre algo arbitrário, um
preconceito sobre uma universalidade, que
significa usar a linguagem a fim de produzir
uma desfamiliarização, ou seja, fazer um uso
criativo da língua. Barthes fala da distinção
entre o legível (realista) e o escriptível
(desfamiliarizante) (Barthes, 1988). Ao mesmo
tempo, podemos dizer que a literatura é
um campo e sua autoconsciência. Com suas
políticas, suas disputas, suas hierarquias e
suas regras. Um campo dinâmico. Um campo
rizomático e não mais hierárquico como no
século XIX e início do XX. O estudo literário
não poderia ser qualquer discurso sobre esses
textos, mas deverá ser aquele cuja finalidade é
atestar, ou contestar, sua inclusão na literatura.
Um dado importante é que a
historicidade nos permite ver como alguns
textos já nascem literários, enquanto
53
História & Literatura

outros atingem essa condição de literários,


posteriormente. Em muitos casos, o autor
literário usa e pensa o contexto como sendo
a própria literatura, ou seja, faz com que sua
obra dialogue não com o mundo exterior, mas
com a própria literatura. Isso é muito comum,
sobretudo na poesia, em poemas específicos,
que dialogam mais consigo mesmo ou com
a tradição poética que efetivamente com o
mundo. Esse tipo de produção literária ou
artística, que dialoga consigo mesma ou com
a tradição, exercitando inclusive a polifonia
ou a metalinguagem mantém a pertinência do
uso da expressão: arte pela arte. Mas nem toda
produção literária ou artística é assim.
Outro questão é ver como alguns
autores são canônicos em determinados
momentos e em outros não. Em como são
vistos como vanguarda em certa época e
depois podem cair em completo descrédito,
vistos como objetos arcaicos, problemáticos
ou preconceituosos sendo abandonados
ou totalmente esquecidos. Entretanto há
figuras que, provavelmente, jamais deixarão
o cânone, como Shakespeare ou Cervantes,
afinal suas realizações dificilmente poderão
ser desprezadas pelas gerações futuras,
independente das mudanças de gosto ou
de tradição. Isso, contudo, não significa
54
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

que a recepção das obras sejam extáticas ou


imutáveis. A recepção também é dinâmica.
Há várias compreensões de Machado de
Assis ao longo do tempo. Muitos intérpretes
e interpretações podem surgir a partir dos
textos do célebre escritor de Cosme Velho.
Outro ponto importante diz respeito
ao juízo estético. Ele emana de um lugar, de
uma circunstância. Assim como literatura.
A interpretação pode modificar o sentido
da obra ou de partes dela – mas não abala
sua verdade ou suas realizações. E, é preciso
ainda lembrar que é possível interpretar
de forma errada, atentando-se para o
cuidado em relação à isso. Fatos e ficções
são construídos histórica e humanamente.
Portanto, os sentidos construídos, entre o
literário e o histórico, podem ser capturados
na historicidade das relações humanas e
compreendidos com o auxílio da História.
Isso nos conduz à arbitrariedade contida na
definição das coisas. Afinal, são resultantes de
relações de força. Fixar sentidos implica deter
algum poder. E essas relações estabelecem as
funções, de modo que a estrutura dos juízos
pode ser avaliada através das ideologias ou
posicionamentos políticos. Vinculam-se a
uma ordem, a um status quo. Esse aspecto,
por exemplo, nos permite compreender o
55
História & Literatura

porquê de críticas ao racismo presente em


obras de Monteiro Lobato ou de misoginia em
Machado de Assis atualmente.
De qualquer modo, podemos
concordar com Anatol Rosenfeld quando diz
que cada época tem um zeitgeist, um espírito
do tempo, um imaginário e uma mentalidade
coletivos e que existe uma interdependência
dos romances em relação a isso. Não somente
a literatura expressa essa imaginação no
tempo, com seus desejos e utopias, medos
e preocupações, mas também o cinema,
os quadrinhos, a pintura, enfim, outras
manifestações artísticas.

Realidades refletidas, ruídos e estranhamentos


Tanto nos romances quanto na
pintura podemos verificar uma história
bastante simpática ao realismo, uma tentativa
de copiar ou representar a realidade de forma
mais ou menos fiel. Com o tempo passam a
querer negá-la ou à ultrapassá-la (Rosenfeld,
2009). Isso conduziu a um processo de
desrealização no romance e na pintura, que
pode ser observado no paulatino abandono ou
questionamento da realidade do realismo em
busca de realidades dissolvidas, alternativas
ou abstratas.
56
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

O realismo foi, durante muito tempo,


traduzido como verossimilhança, mímesis
e como uma escola estética no singular.
Mas é preciso pensá-lo como um conjunto
heterogêneo de práticas na pintura e na
literatura e que o famoso “retrato do real”
tinha dissidentes. Se pintura o realismo seria
o decalque do que vemos com os olhos. Mas
e na literatura? Uma metáfora ou metonímia
é mais realista que outra? Os tropos tornam
os objetos mais sensíveis e nos ajudam a vê-
lo, compreendê-lo melhor. Realismo só no
plural, movimento heterogêneo, relativo,
historicizável. Para Dostoievski tingir,
exagerar aproxima mais o leitor do real. Cria
nele efeito mais realista. Walter Scott introduz
o realismo em seus romances.
A antiga função da mímesis de
representar o real mantendo-se próxima a ele
vai sendo lentamente abandonada por uma
nova forma de representar e ficcionalizar
o mundo, inclusive questionando-o com
a negação da realidade, ou a tentativa
de ultrapassá-la. E ao mesmo tempo
procurando tirar o homem de sua condição de
centralidade. Do mesmo modo, eliminando
a estrutura temporal, desfazendo a ordem
sequencial de passado, presente e futuro,

57
História & Literatura

bem como embaralhando espaço e tempo, de


mundo interior e realidade exterior. A ficção
científica, mas também o caminho para o
abstracionismo ou o surrealismo na primeira
metade do século XX, por exemplo, são
indicativos nesta direção.
Não é somente em relação às alegorias
ou aos símbolos mobilizados que o Realismo
foi colocado em questão. Na verdade, a
própria estrutura dos textos literários e,
sobretudo, dos romances, que começou a
mudar estrutural e formalmente a partir do
século XIX e, sobretudo ao longo do século
XX. As maneiras e técnicas de representar a
experiência e a condição humana por meio
da narrativa sofreram grande transformação.
A subjetividade do tempo e da memória por
exemplo em Proust, as afinidades eletivas em
Goethe, o fluxo de consciência em Joyce, a
angústia em Graciliano Ramos. A consciência
do narrador e do próprio romance se
convertem em um universo caótico em
movimento permanente desde o final do
século XIX e a virada para o XX. Depois das
duas Guerras Mundiais, travadas sobretudo
em solo europeu, o experimentalismo e as
inovações não deixaram de cessar, gerando
várias correntes ou movimentos literários.

58
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Para usar romances como fontes


é preciso conhecer estas questões. Saber
diferenciar o discurso indireto livre, que é a
apresentação das falas exatas das personagens
inseridas dentro do discurso do narrador, que
permite que os acontecimentos e as falas das
personagens sejam narrados simultaneamente;
do monólogo interior, que é um diálogo do
personagem consigo mesmo e, por fim, do fluxo
de consciência, que transcreve o complexo
processo de pensamento de um personagem,
com seu raciocínio lógico sendo misturado
com impressões pessoais momentâneas,
ações externas, falas de terceiros, exibindo os
processos de associação de ideias, memórias,
sonhos, desejos, fantasias ganhou mais e mais
espaços. Aliás, é possível pensar qualquer
texto literário como um lugar de memória
(Gagnebin, 1997, Nora, 1994). Se você quer
usar alguma obra ou texto literário como fonte,
precisa conhecer técnicas da criação literária.
Além deste há outros recursos e técnicas muito
utilizados pelos autores, como o uso de figuras
de linguagem, como a repetição, a sinédoque,
a ironia, para citar algumas. Autores literários
buscam efeitos, reações, entendimentos.
Espaço, tempo e causalidade são
desmascarados no romance moderno,
como aparências exteriores, como formas
59
História & Literatura

epidérmicas, assim como o ser humano também


foi fragmentado e decomposto. O Clube da
Luta, tanto o romance de Chuck Pallaniuk,
quanto o filme dirigido por David Fincher é
um exemplo nesta direção. O herói é revelado
como uma ilusão ou convenção, estilhaços
dele, de suas memórias, falas e pensamentos
se misturam, irrompendo simultaneamente.
Desaparece a certeza da posição ingênua
e divina do indivíduo no romance. E não
só dele, há uma fragmentação do próprio
narrador em curso. Em outras palavras,
vislumbra-se uma desmontagem do relato,
com a emergência do perspectivismo, do jogo,
do acaso e da desrazão. Alguns denominariam
estas características de pós-modernas, mas,
independentemente do rótulo, são traços
presentes no romance contemporâneo.
Pensando em termos radicais, rompe-
se a perspectiva do homem e do mundo
projetado. Não há homem e nesse mundo não
há regras plausíveis da realidade. Vide o filme
Matrix. Só há a mente, ou cacos e fragmentos
da realidade. Os romances representam,
ora os cacos de real, ora os fluxos da mente.
A perspectiva da distância maior ou menor
que separava o homem do mundo é rompida.
Não há ponto de fuga, apenas angústia e
fragmentação.
60
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Estamos falando aqui de características


que surgem na narrativa, que se revelam na
escrita, por meio de traços e convenções. O
autor contemporâneo faz uso dessa linguagem
e dessas técnicas novas, mediante escolhas
tendo em vista um efeito desejado. Sua
criação preserva essas marcas, que podem
ser reconhecidas pelo público, de modo que
o instrumental ou a estrutura da narrativa se
funde com o ornamental ou o estilo adotado
pelo escritor (Cf. Gay, 1989). Retirar essas
camadas seria aproximar desse grau zero da
escritura. A criação é um trabalho de lapidação
da escrita, de construção de formas e efeitos.
Ou seja, acompanhando Barthes, não há escrita
sem regras ou sem cálculo (Barthes, 1988).
Desnaturalizar a linguagem literária implica,
por conseguinte, revelar o labor autoral
com a linguagem, a presença de elementos
retóricos e a base linguística ou vocabular
mais elementar de todo texto, subtraindo-lhe
qualquer mistério ou mistificação.

Um pouco de crítica literária não faz mal a


ninguém
Toda obra literária pode ser entendida
como um signo e um símbolo. Basta ver
a evolução do romance na modernidade.
Narrador onisciente, visão tridimensional.
61
História & Literatura

O personagem caminhava num tempo, em


um cenário, com uma perspectiva temporal
e biográfica, enfrentava um antagonismo
bem caracterizado. O narrador impunha
uma ordem marcada pela presença de um
eu. Essa figura do eu, personificada na figura
do protagonista e em seguida do narrador
governou a literatura ocidental durante
muito tempo. Esse eu foi borrado por autores
como Marcel Proust, James Joyce ou Virginia
Wolf. Em seguida, nova mudança, o narrador
começa a mergulhar no fundo da consciência
das personagens, fundindo-se com elas ou
então revela sua impotência de penetrar
em sua alma, conseguindo apenas descrever
comportamentos ou ações exteriores. Em
Hemingway ou Kafka, os personagens são
projetos inacabados. Abandonando as visões
panorâmicas e a onisciência, o narrador
contemporâneo passa a se dissolver na vida
microscópica.
Você pode me dar um minuto?, disse
um estranho numa tarde em que uma
discussão era travada sobre a definição
maior do ser humano e seu caráter
sempre duvidoso. Como dar uma coisa
que eu não tinha? Nem Cronos, nem
Zeus, reles mortal, como subtrair um
minuto do Cosmo insondável para lhe
dar. Tinha cartão no bolso, dinheiro
nenhum. Mas o tempo, que era sagrado,

62
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

mesmo que fosse meu, jamais lhe daria.


Em um minuto (por uma lista infinita
de coisas que acontecem (Hemingway
Apud: Rosenfeld, 1990).

Há pouco, mencionamos a
importância da crítica literária. Antoine
Compagnon em O demônio da teoria (2014)
revela que a teoria literária francesa era
inexistente até meados dos anos 1970, com
exceção de esforços pontuais, como o curso de
Poética de Paul Valery de 1936 ou o livro de
Jean Paulhan de 1941. Foi então que surgiu a
teoria literária de Wellek e Warren, em 1971.
Até então havia um peso enorme da tradição
literária, do positivismo, da explicação quase
escolar dos textos, verdadeiro entraves à teoria
literária mais elaborada. Deve-se lembrar
que, enquanto isso, do outro lado do Reno,
na Alemanha, proliferavam estudos sobre a
filosofia da linguagem ou a hermenêutica, sem
contar os estudos filológicos presentes desde
o século XIX, como vetores significativos da
leitura, tradução e interpretação de obras
literárias, inicialmente da tradição clássica
greco-romana e, em seguida, acompanhando
a evolução da literatura como um todo, não
somente germânica, mas europeia.
A partir dos anos 1970 a nova crítica,
em grande medida informada pelo pós-
63
História & Literatura

estruturalismo e a semiótica se tornaram dois


movimentos decisivos para a análise literária.
Termos como heterodiegético, iterativo,
focalização interna e externa se tornaram
muito usados. Naquele momento, ficava
claro que a crítica literária francesa se servia,
fundamentalmente, de duas ferramentas: a
narratologia e a poética. Naquele momento
Roland Barthes foi canonizado. A crítica
genética dominou e, lentamente houve o
retorno da história literária. Esta última foi
sempre uma das principais manifestações da
crítica literária brasileira. Somente nos anos
1980 é que passou-se a disseminar no Brasil
outras vertentes da teoria literária sobretudo
francesa (Compagnon, 2014).
A rigor, a história da teoria literária
ou da crítica literária, europeia ou brasileira,
nunca deixou de se importar com questões
mais elementares. Ou seja, no modo como
se deve compreender uma passagem, o que
o autor quis dizer, em localizar onde está a
beleza de um determinado trecho ou imagem,
em qual é a originalidade daquela obra ou
ainda que lição tiramos dela. Ao fim e ao
cabo a teoria literária não consegue se livrar
de conceitos básicos como literatura, obra,
autor, intenção, sentido, interpretação,

64
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

representação, conteúdo, valor, originalidade,


história, influência, período, estilo.
Somente depois de Barthes,
Canguilhem, Blanchot ou de Foucault é
que a teoria começou a voltar-se contra ela
mesma. Passando a valorizar a desconstrução
e a indisciplinarização contra um sistema
tradicional que buscava encaixotar o
texto em fórmulas prontas, buscando o
reconhecimento de modelos, na tentativa de
transformar a literatura em uma ciência ou
coisa sob controle. Pode-se dizer que a crítica
literária, que surge sobretudo no século XIX
com o Romatismo, que propôs uma definição
do que é o belo e estipular um valor estético
para as obras literárias durou bastante tempo.
E desde então perdurou a dúvida se o valor
literário residiria na forma ou no conteúdo
das obras. A teoria literária derivada desse
paradigma foi a base epistemológica para a
polícia das Letras. A aparente neutralidade no
julgamento das obras literárias escondia uma
ideologia, uma visão de mundo do crítico.
Valorizava-se então, sobretudo, a gramática de
seu funcionamento. Suas regras, jogos, lógica
e sentido. De forma extática sem considerar
a historicidade ou o tempo em que as obras
haviam sido escritas.

65
História & Literatura

Atualmente é possível apontar dois


caminhos muito utilizados para a análise
das obras literárias. O primeiro deles é a
crítica, que se constitui em um discurso sobre
as obras literárias que avalia seu sentido
histórico que os textos exercem sobre a leitura
e os leitores. É um tipo de exame que avalia,
preponderantemente, os textos. O segundo
é a história literária, que para Antoine
Compagnon, é um discurso sobre fatores
externos à leitura (2009). Estuda a recepção e
a transmissão das obras. Não sua construção,
recaindo, portanto, mais sobre a autoria e a
materialidade das obras e, sobretudo, em
torno do contexto. Aquele autor, contudo,
desconsidera a fabricação ou o processo de
construção do artefato literário, ou seja, sua
escrita.

Coerência e organicidade da abordagem


Para quem deseja usar obras literárias
como fonte histórica é preciso ter em mente
que existem várias teorias literárias e muitas
vertentes da crítica literária e que é importante
permanecer no interior de tradição analítica.
E que esta escolha pode ser condicionada ou
estar à serviço do problema histórico que se
pretende analisar e da obra escolhida. Isso

66
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

não significa que, para examinar O evangelho


segundo Jesus Cristo de José Saramago, que era
um autor comunista, deva-se exclusivamente
usar a crítica literária marxista, europeia
ou portuguesa. Outras correntes podem ser
utilizadas, mas é importante permanecer no
interior de um quadro analítico de pensamento
e dialogar com sua própria tradição.
Em suma, ou se abraça a teoria francesa,
ou a americana, ou a alemã e assim por diante.
O que não se deve fazer é usar, aleatoriamente
autores de diferentes tradições intelectuais.
Nada de querer juntar referenciais teóricos
ou metodológicos distintos, antagônicos ou
de escolas de pensamento diversas. A menos
que estejam conectados por algum debate, ou
dialoguem diretamente entre si. Aí as pontes
são bem-vindas, do contrário é salutar evitar
excessos ou ecletismo.
Sempre é possível fazer pontes, por
exemplo, assumindo uma vertente crítica
embasada na hermenêutica pode-se, por
exemplo, usar autores como Gadamer (1999)
ou Koselleck (2006) e mesmo brasileiros como
Sérgio Buarque de Holanda em seu Cobra de
vidro (1978) para esboçar um quadro analítico
que faça sentido dentro de uma vertente de
pensamento de forma homogênea – no caso
67
História & Literatura

o historicismo. Conectar uma tradição ou um


problema em seus intérpretes estrangeiros e
brasileiros, mas que entre eles existam relações,
ou que estas possam ser comprovadas. Outro
caminho, caso se opte por um enquadramento
à luz da história cultural francesa, é usar
autores como Roger Chartier, Robert
Darnton (1986) ou Carlo Ginzburg (2007) e
a brasileira Sandra Jatahy Pesavento (1998).
Teoria é escolha, é profissão de fé e não seria
recomendável acender uma vela à Deus e outra
ao Diabo ao mesmo tempo.
Coerência, diálogo e conexão entre
os autores da forma mais direta e clara
possível, imaginando uma rede ou uma árvore
genealógica que os vincule. Isso confere força
e rigor à análise, envolvendo a fonte literária
e a discussão historiográfica de forma mais
orgânica, evitando-se o ecletismo. Abraçar
uma teoria ou paradigma ou corrente analítica
ou metodologia é importante porque essas
ferramentas podem eliminar inseguranças,
dúvidas, bem como matam a ingenuidade
que existe em leitores inexperientes. Ao
mesmo tempo compreender que literatura é
posicionamento, que autores não são neutros.
Colocar, portanto, fim à ilusão linguística de
que a língua e a literatura são evidentes em
si mesmas, e que o código não afeta, interfere
68
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

e modifica sentidos e formas, trazendo-lhes


inquietações e ruídos.
Ao mesmo tempo é preciso ter em
mente como os autores e como você mesmo
definem o que é a literatura, para ver a
distância existente que os separa, evitando-
se anacronismos ou pré-julgamentos. Depois
analisar como o autor gostaria de enquadrar
sua obra, qual o espaço e a mensagem que ele
gostaria que os leitores entendessem. Depois,
compreender que tipo de realismo existe no
interior da obra para, por fim, examinar suas
realizações no âmbito da linguagem.
Em se tratando de Literatura, existem
sempre cinco elementos fundamentais a
se considerar: autor, texto, leitor, língua e
referente (Compagnon, 2014) A esses cinco
elementos, podemos acrescentar mais dois: a
história literária, indispensável para pensar o
contexto e o grau de originalidade ou mérito da
obra, em outras palavras, seu valor no mercado
das outras obras existentes antes e em seu
próprio tempo. Em outras palavras, poder-
se-ia dizer que o sistema literário é composto
pelos seguintes aspectos: literariedade,
intenção, representação, recepção, estilo,
história e valor literário. Mas a gente pode
substituir isso tudo e perguntar: é literatura
quando, para quem e por quê?
69
História & Literatura

Segundo Antoine Compagnon, a


teoria da literatura é uma lição de relativismo,
não de pluralismo; colocando em outros
termos: várias respostas são possíveis, não
compossíveis; aceitáveis, mas não compatíveis.
Ao invés de se somarem numa visão total e
mais completa, elas se excluem mutuamente,
porque não chamam de literatura, não
qualificam como literária a mesma coisa;
não visam a diferentes aspectos do mesmo
objeto, mas a diferentes objetos (Compagnon,
2014). Ou seja, se acentuo o papel do autor,
é possível que não dê tanta importância à
língua; se insisto na literariedade, minimizo o
papel do leitor; se destaco a determinação da
história, diminuo a contribuição autoral. Esse
conjunto de escolhas é solidário.
Não é por acaso que a discussão
sobre as obras literárias se resumam a duas
posições analíticas mais gerais, sobre a forma
ou o conteúdo. Elas resumem dois pontos de
vista possíveis e mais gerais para a crítica: o
contextual – histórico, psicológico, sociológico
e institucional – e ponto de vista textual ou
lingüístico. Verdade seja dita, a literatura
sempre esteve atrelada a uma abordagem
histórica: textos literários são sempre um
documento de uma dada cultura, inscrito no
interior de práticas particulares.
70
Minha pátria, minha língua.
Outro aspecto significativo é o
tratamento pátrio associado às literaturas. Os
obras costumam ser integradas na literatura
nacional ou então em regionalidades; literatura
brasileira, ou literatura capixaba, literatura
amazonense, por exemplo. Convenções que
revelam comunidades imaginárias e que
expressam determinadas políticas em relação
aos autores e aos textos. É preciso ficar atento
a isso. A crítica literária do século XIX e
XX buscava as intenções do autor em um
quadro de referências espacial. Em outras
palavras, ela interpretava a obra de arte como
um artefato de um tempo e de uma nação,
lendo-a como uma chave para a compreensão
de outras épocas e culturas daquele país.
Muitos autores ao escrever, estão a falar dos
problemas que o cercam. De sua própria terra.
Ou de sua condição de desterrado, apontando
comparações entre onde viviam e onde
passaram a viver.
Ao lado das obras modelares ou
exemplares, inscritas na tradição e no
cânone de leituras consagradas, que é uma
lista mais ou menos estável, observamos o
esforço permanente de diálogo com elas e
suas convenções. Quase sempre no interior
71
História & Literatura

de uma linhagem ou tradição. Afinal,


escritores e escritoras estão dialogando, mais
diretamente, com seus conterrâneos. Com
os falantes de sua língua. É evidente que
podem e devem se referir a obras e autores
de outras tradições, direta ou indiretamente.
Mas o fazem consoante seu pertencimento ou
estranhamento à natalidade.
Os autores buscam sempre um diálogo
crítico, uma aceitação de pertencimento
ou então a tentativa de quebrar regras e
impor o novo, desafiando ou reinventando
gêneros, formatos e regras em seu país.
Enquanto a integração do mercado editorial
se globalizava a passos lentos, à partir,
sobretudo, do século XVI, a fusão de gêneros
nativos com estrangeiros caminhou a passos
lentos. Maior integração se deu a partir do
século XIX e especialmente após o advento da
internet, quando a compra e o acesso a obras
de qualquer parte do mundo se tornaram mais
acessíveis. A partir de então cânones regionais
e nacionais se tornaram mais e mais abertos
a novos contágios e a novas descobertas,
redescobertas, inserção e reinserções de
autores anteriormente excluídos.

72
Literatura como problema e não como solução
Uma leitura mais estreita ou
tradicional da literatura, costumava apresentar
os textos literários como artefatos que
funcionavam mediante o encontro essencial
e quase indissociável entre a forma estética e
função emotiva ou catarse, que seriam traços
distintivos essenciais dos textos literários.
Atualmente, valoriza-se não somente as
intencionalidades ou realizações do autor em
relação ao constructo forma-conteúdo, mas,
sobretudo, os significados e as disposições
produzidos pelos leitores.
De fato, ficção é resultante de uma
elaboração de forma e de conteúdo. A
linguagem vertida para o papel em formatos
literários em si já traduz realidades e sentidos.
Todo texto é um exercício mimético de
realidades, reais, possíveis ou imaginadas
contendo em seu interior o muthos ou a
disposição do enredo e sua intriga. A substância
do conteúdo aparece no tema, nos motivos,
nas cenas, nas personagens, no contexto da
história – que não necessariamente é o do
autor. Há uma ordenação dos significados, da
expressão, das palavras. Pelo menos em tese,
tudo é selecionado, pensado e escolhido pelo
autor. E como as escolhas são feitas com o que
73
História & Literatura

ele tem à mão naquele momento e naquele


lugar, há história e historicidade nisso. O
acaso existe, o insight também, mas para além
disso é só trabalho e polimento. Cálculo
e exercício. Suor. Um esforço exaustivo e
estético de procurar a melhor expressão. E
todo esse processo deixa vestígios, carregando
consigo as marcas da temporalidade.
Na base de tudo, como já dito, está
a ficcionalidade, que é o motor secreto
que move a literatura. Depois disso novas
transformações e inovações surgem na
literatura, então a substância do conteúdo
passa a ser produzida no manuseio ou
habilidade técnica e na composição do texto,
gerando um convite para se mergulhar no
texto em si. E sobre isso há uma novidade:
deve-se fugir do lugar comum que estabelece
uma distinção entre a linguagem literária e
linguagem comum. Não raro a linguagem
literária é a própria linguagem do cotidiano,
comum. Nem sempre ela foi retórica ou uma
tipo de afetamento artificial e gongórico. Ou
ainda produzida consoante uma perspectiva
elitista que defende que linguagem literária
é mais sistemática, organizada, coerente,
densa e complexa que a de uso cotidiano.
Até poderíamos pensar que o uso cotidiano
da linguagem costuma ser mais referencial e
74
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

pragmático, enquanto o uso literário da língua


é mais criativo e estético. Ou que a Literatura
seria a transposição da linguagem cotidiana
para o museu-laboratório da Literatura. Sim,
até existem Duchamps na Literatura. O uso
da linguagem segue dinâmico, é complexo e
inventivo nos dias que correm (Cf. Sousa,
2011, p. 88). O antigo mistério da conversão
de uma mensagem verbal em obra de arte foi
desvelado pela crítica contemporânea. A voz
ou dicção dos autores, seu estilo em outras
palavras, é uma construção, em parte natural
porque expressa sua visão de mundo e da
técnica literária, em parte artificial porque é
exercício calculado meticuloso.
Se durante um tempo vigorou a
fórmula da arte pela arte, da mistificação do
processo criativo e de culto ao gênio literário;
os formalistas russos, por exemplo, se opunham
à definição de literatura como documento,
ou à sua definição de representação do real;
hoje em dia a crítica modificou-se bastante.
A arbitrariedade que procurava distinguir a
linguagem literária da linguagem não literária
ou cotidiana não tem feito muito sentido. Para
eles, a linguagem literária era compreendia
como motivada (e não arbitrária), autotélica (e
não linear) e auto-referencial (e não utilitária).
E seu efeito principal seria a desfamiliarização
75
História & Literatura

provocada pelo texto literário, ou seja,


seu distanciamento da linguagem comum.
Remetiam a um uso, digamos, artístico da
linguagem.
Jakobson foi, dentre todos, o que mais
insistiu nessa direção. Ele, então, denominou
poética uma das seis funções que distinguia no
ato de comunicação. As outras funções seriam:
a emotiva localizada no uso da primeira
pessoa que tenta ganhar adesão, a poética
localizada no discurso literário, a conativa que
se vale do verbo imperativo para convencer
o interlocutor, a referencial utilizada para
descrever ou informar, a metalinguística
quando a linguagem fala sobre si mesma e a
fática que procura manter o contato e prender
a atenção do leitor; como se a literatura ou
o texto poético abolissem as cinco outras
funções às quais eram geralmente ligadas. A
saber, o locutor, o destinatário, o referente, o
código e o contato. Isso foi feito para insistir
unicamente na mensagem em si mesma e não
mais naquilo que fosse exterior ao texto.

Até onde a ficção pode (nos) levar?


Reiterando: não resta dúvida, que
autores com ambições literárias procedem a
uma organização e a um trabalho de lapidação
76
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

de seus textos, procurando retirá-los de


um lugar comum para os colocar em outro
patamar. Mas há tentativas que vão na direção
contrária. De conversão do suposto patamar
literário a uma escrita mínima e de absoluta
simplicidade. Que a tornasse comum e
passível de ser lida por qualquer leitor. Poetas
como João Cabral de Melo Neto ou Carlos
Drummond de Andrade fizeram isso.
Toda obra pode ser vista como um
emblema ou grande metáfora produzida por
seu autor ou autora. É preciso se perguntar
sobre qual é o lugar que almejam. Que
reconhecimento buscavam e por quem. Por
quem desejavam ser lidos. Na atualidade,
desnorteada de sua referencialidade e daqula
ânsia de realismo modernista, a literatura tem
trilhado caminhos plurais. Seu esforço, não
raro, é semelhante ao de Duchamp, procurando
implodir o ordinário e o comum, convertendo-o
em uma alegoria sobre a natureza da própria
arte e ensejando um novo tipo de comunicação
com críticos e leitores. Extrair algo do que é
banal, do dia a dia e convertê-lo em uma obra –
não exatamente em arte, mas que, é subsumida
a isso – provocando reflexão e crítica. Fazer
literatura seria, portanto, como pegar a roda da
bicicleta e coloca-la em um museu. A bicicleta
é o texto e o museu é o público-alvo. Ou
77
História & Literatura

seja, a “ausência de marca é, ela mesma, uma


marca, que o cúmulo da desfamiliarização é a
familiaridade absoluta”.
Um dos riscos de proceder à análise
do conteúdo das obras literárias é enfatizar
somente a dicção, que traz consigo o poético e
o estético; ou então a ficção que se volta para
a narrativa e suas razões. Não obstante, como
diria Jean Genette, “a literariedade, sendo um
fato plural, exige uma teoria pluralista”. Para
ele, o “contexto de origem restituí o texto à
não-literatura, revertendo o processo que
fez dele um texto literário (relativamente
independente de seu contexto de origem)”.
Para mim este é um caminho muito positivo
para o historiador usar a fonte literária.
Literatura é trabalho com a palavra, portanto
a história pode e deve investigar a fabricação
do texto, sua origem em seus contextos e
sua história na dinâmica da historicidade e
dos diálogos intra e extraculturais. Atentar
para a norma, mas também para o desvio, à
sincronia e à diacronia, à forma e ao conteúdo.
E, evidentemente, escolher aquilo que vai ser
privilegiado ou não. O problema de pesquisa,
o objeto ou objetos a serem investigados
devem ser pensados em relação ao tempo e
aos recursos disponíveis. Eles devem ditar os
limites e o tamanho das ambições analíticas.
78
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Uma palavra-chave para quem


pretende usar obras literárias como fonte
histórica é o conceito de transposição. Todo
autor transpõe realidades para o texto,
imaginadas ou históricas. Isso leva cálculo, leva
verossimilhança e tem em conta a urdidura do
enredo e o tipo de enunciação. Toda escrita
é resultante de reflexão, mas também de
investigação, de si e do mundo, da tradição e
da própria escritura.
Ao falar sobre qualquer coisa todo
escritor está ao mesmo tempo falando sobre
si mesmo e sobre seu tempo. Lembrando
ainda que o escritor ou autor, na literatura,
é diferente do narrador. Pensar nisso é
fundamental. Narradores são personagens
em um romance. Que terá algum lastro ou
algum vestígio do biográfico, mas autor e
narrador não podem se confundir. Em toda
história há algo de biográfico, da própria
vida do autor. Mas o narrador raramente
será o próprio autor. Na autoficção moderna
talvez, onde memórias pessoais se misturam
com o romance. Vemos isso em Roberto
Bolaño, Annie Ernaux, mas também em
Chico Buarque.

79
Borrando a fronteira dos textos ficcionais
Não resta dúvida de que o texto
histórico, como o literário, são artefatos
histórico-linguísticos. A ficção testa os
limites entre o real e o possível. Tanto
uma como a outra representam, pensam e
imaginam a realidade criando simulacros
do real. Para Hayden White, quando um
romancista descreve Londres em meados de
1920, a obra trará consigo uma história e sua
época. Toda obra literária é um testemunho
sobre seu tempo. A Auschwitz de Primo Levi
é real e verdadeira, seu conteúdo da verdade
é, aparentemente, inquestionável, muitos
concordam com o realismo presente em sua
representação (Cf. Ankersmit, 2012). Para
Hayden White isso ocorre porque não há
conflito entre a função referencial e as funções
emotiva e poética em seu texto. Apesar
disso é possível encontrar historiadores que,
como Ranke romantizam ou dramatizam a
história, procurando representar o passado tal
como aconteceu, vinculando-se, portanto ao
realismo, semelhantemente ao literário, mas
impondo limites à livre imaginação (White,
1995). Exemplo disso é que historiadores
não podem inventar personagens ou eventos.
É como se a História tivesse domesticado a
imaginação e a realidade, controlando-as. Fica
80
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

nítida a dificuldade e existência de barreiras


ou limites da linguagem em alcançar o real,
e os limites do vestígio e as técnicas de o
analisarem de alcançarem a verdade. Mas
a História, como a Literatura, coloca em
funcionamento uma disposição entre mímesis,
muthos e aletheia.
Ivan Jablonka ao analisar as
características e aproximações entre textos
literários e históricos aponta a existência
de um terceiro continente. Segundo ele há
o continente da literatura (marcado pela
liberdade, pelo imaginário e pela fruição),
o continente cinzento dos textos utilitários
(marcado pela disciplina e busca pelo real e
pelo verídico) como é o caso da História, e
um outro continente, que escritores outsiders,
que não pertencem nem a um, nem a outro
integram. Na Argentina, Rodolfo Walsh; nos
Estados Unidos, Truman Capote, Norman
Mailer, Tom Wolfe, Gay Talese, Joan
Didion, Janel Malcom e David F. Wallace;
na Suíça, Nicolas Bouvier; na Polônia,
Ryszard Kapuściński; na Itália, Primo Levi
e Nuto Revelli; na União Soviética, Varlam
Chalamov, Alexandre Soljenitsyn e Svetlana
Alexievitch; na França, Joseph Kessel, Georges
Perec, Annie Ernaux e Emmanuel Carrère. No
Brasil Dráusio Varella, Daniela Arbex, Eliane
81
História & Literatura

Brum, Fernando Morais e Felipe Charbel


entre outros. Segundo Jablonka
Qualquer um que venha a ler estes
autores sentirá, além da força do seu
impacto literário e cognitivo, seu caráter
inclassificável. Eles são, certamente,
praticantes de um gênero, mas qual? A
mínima, todos estes textos formam uma
literatura – investigação, reportagem,
narrativa de vida, testemunho,
autobiografia, jornal, relato de viagem –
que contribui para a inteligibilidade do
mundo (Jablonka, 2017).

As reflexões de Jablonka são muito


úteis para pensarmos as relações entre os
textos históricos e os textos literários. Ele
indica que em meados de 1820, Chateaubriand
e Walter Scott subverteram a maneira de
escrever história, evidentemente por conta da
tentativa de dar vida à uma época ou a seus
personagens, potencializando o realismo em
seus textos. Depois disso, entre a Monarquia
de Julho e a Primeira Guerra Mundial, os
romancistas começaram a escrever sobre a
vida cotidiana, as classes sociais, os costumes,
a sexualidade e a morte, num momento em que
a sociologia ainda não exista e os historiadores
privilegiavam a política e a atividade
diplomática. Essas preocupações seriam
absorvidas pela geração dos Annales como um
dos objetivos para suas novas pesquisas.
82
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Ivan Jablonka também nos ajuda a


compreender o porquê de romances serem
documentos históricos significativos. Para
ele, o romance ajuda a esclarecer a realidade
não porque ele é um registro documentado
realístico ou verossímil, mas porque ele é
como um espelho ou estrada que nos conduz
a universos e a experiências sensíveis. Ou seja,
para ele, a questão não é tanto a mímesis, o
realismo ou a representação, mesmo quando
os romances apresentem retratos muito
bem construídos sobre uma determinada
sociedade, mas sua abordagem. Ou seja, o
modo como os autores narram e abordam
determinadas questões.
Vale dizer ainda que o romance segue
forte em nossa cultura, como um artefato
histórico importante e continua se atualizando
e atingindo experimentações. Este é o caso de
obras, por exemplo, como O mez da gripe de
Valêncio Xavier, S. de J. J. Abrams ou ainda A
mandíbula de Caim de Edward Powys Mathers.
Vai usar como fonte histórica algum romance
mais contemporâneo? É bom conhecer essas
transformações e as características destes
novos romances. Na verdade, não há segredo.
Se vai estudar algum romance nos anos 1960,
deve-se estudar o nouveau romain francês, a
terceira geração do modernismo brasileiro e
83
História & Literatura

as experiências da literatura ocidental naquele


contexto. Se a fonte for algum romance
japonês, então é o caso, mas pensando a
literatura oriental.

O tempo, a História e a Literatura


Além da ficcionalidade, o tempo ou
a temporalidade é outro elemento de base na
História e na Literatura. Ambas nos ajudam
a compreender experiências humanas no
tempo, pois, ela pode ser uma ferramenta
sensível para capturar sensibilidades, temores,
desejos, angústias, utopias, paixões e ódios, a
construção de identidades e muitas outras
coisas. Tudo se torna humano quando narrado,
inclusive o próprio tempo, diz Paul Ricoeur.
O tempo da história, assim como o
tempo da narrativa literária é um tempo
suspenso no ar, que escapa e cria seu
próprio tempo, fugindo da marcação
habitual, que acompanha o tempo dos
relógios ou dos calendários. Paul Ricoeur
indica que a narrativa se constrói a partir
da ordenação temporal da ação humana,
segundo três estágios da mímesis: o da
pré-figuração, o da elaboração narrativa
e o da reconstituição por meio da
leitura. E sublinha também que ela pode
ser sintetizada no triângulo composto
pelo muthos (narrativa), pela mise en
intrigue (enredo – intriga) e pela leitura
(Ricoeur, 1994).
84
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

A leitura de textos literários faz com


que sua narrativa transcorra em um tempo
diferenciado, especial. E a despeito disso, no
próprio interior do que se lê, presenciamos a
temporalidade, um tempo dentro do tempo,
ou seja, todo texto literário encerra sobre
si múltiplas temporalidades a coexistir.
Paul Ricoeur denomina essa temporalidade
de terceiro tempo da narrativa, que é um
tempo suspenso, fora do nosso tempo real e
cronológico (Ricoeur, 1994).
Um aspecto importante é considerar
as múltiplas historicidades envolvidas no
tempo de vida do autor, de escrita de seu livro,
de sua publicação, e de suas sucessivas leituras
no futuro. Outro é considerar que o tempo
de qualquer narrativa literária não é igual ao
tempo cronológico. Em toda narrativa existe:
tempo, espaço e ação. E entre eles deve haver
unidade, integração. Como o tempo é um dos
fundamentos da narrativa, deve-se localizá-
lo em palavras, frases, orações, parágrafos.
São esses elementos que, organizados pelo
narrador emularão uma temporalidade e suas
durações. Outro ponto que deve ser objeto de
atenção: o uso dos tempos verbais: presente,
passado e futuro. Eles podem trazer muitos
significados não exatamente manifestos.

85
História & Literatura

Em toda obra literária a ação se divide


em partes no interior da narrativa, envolvendo
a ação dos personagens, seu pensamento e
o pensamento do narrador. O narrador e os
personagens dão movimento à narrativa,
colocando-a em funcionamento. Para
compreender a ação é necessário dividi-la em:
sua estrutura central, que é o enredo, marcado
pela existência de um conflito com suas partes
constitutivas, ou seja, a história dividida
em vários acontecimentos ou cenas. Ação é
movimento que foi produzido e o movimento
é duração, ou seja, quanto tempo ela durou.
Entre o começo e o fim de cada texto, há um
intervalo, uma duração com seu tamanho
ou extensão e entre um intervalo e outro há
sucessão de acidentes ou ocorrências. Tudo
isso pode ser examinado e ser representativo
de alguma intenção ou de questões históricas
particulares. O tempo linguístico é o tempo
construído por meio das palavras. E pode ser
também um tempo arquetípico.
Para Benedito Nunes, nos romances
podemos encontrar o tempo cronológico
(sequencial, dos relógios, dias, anos), mas
também um tempo psicológico (da memória,
que inverte, pula, salta) e também um
tempo metafísico (um elemento mítico
ou coletivo). Ou seja, ao invés de tempo,
86
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

devemos falar de tempos, no plural. Para ele,


o tempo do romance é inseparável do mundo
imaginário ou da linguagem de uma época,
de uma comunidade. Os acontecimentos
e as expressões temporais usadas partem
de convenções, de índices que podem ser
reconhecidos através das escolhas, do cálculo
e das intenções do narrador (Nunes, 1988).
A Literatura, como vimos
anteriormente, acaba por emular um tempo
próprio e sua sucessão, em um continuum
dentro da obra ou texto literário. Mas a
questão não para por aí. O tempo na narrativa
transcorre em três planos, o da história, com
seu conteúdo e que pode ser entendido em
quando ela se passa); o plano do discurso, que
é o a forma da expressão e ordenação das cenas
e o plano da narração, que é o tempo do narrar,
do ponto de vista ou da voz do narrador. Em
todo romance há uma ordenação das cenas,
que não obrigatoriamente coincide com a
ordenação da estória.
O uso do tempo pode ser explorado,
usando-se a anacronia; com um vai e vem
da história, do ponto de vista temporal,
retornando ao passado e voltando ao
presente ou ao futuro. Mas também a
analepse ou retrospecção e prolepse ou avanço/

87
História & Literatura

prospecção. Eles são os famosos flashback e


flasfoward respectivamente. O tempo pode
ser sumarizado na ficção, como na história,
por exemplo, quando se diz “cinco anos se
passaram”. Mas pode ser alongado; Ulisses
de James Joyce que você leva dias para ler,
narra acontecimentos passados em um só dia
na vida de Bloom. Ou seja, a própria leitura
da história não pode ser feita em 24 horas.
Outro recurso usado é a pausa, que nada mais
é que uma interrupção no tempo da história,
favorecendo o tempo do discurso, tratando-
se, pois, de uma anisocronia. No século XIX
e XX o uso do efeito suspensivo, suspender
uma ação e passar a outra para prender o
leitor, era comum. E em seguida retornar a
ele. Há também a elipse é omissão intencional
de códigos e/ou informações facilmente
identificáveis pelo contexto, por elementos,
códigos ou significados construídos por
sucessões de imagens sequenciadas, permitindo
que o leitor preencha as lacunas narrativas. Às
vezes, também identificada através do uso das
reticência. A elipse é usada para limpar o que
não agrega na narrativa. É possível também
encontrarmos representações de frequência
– hábito e costume, mediante a repetição de
uma mesma expressão, palavra, ideia (como
a anáfora) ou ainda da acronia, um presente
eterno.
88
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

A narrativa literária possibilita o uso


de simultaneidades temporais – muitas coisas
acontecem ao mesmo tempo, mas só vemos e
vivemos uma perspectiva, a dos nossos olhos
e consciência. O romance permite refigurar
essa simultaneidade, suspendendo o tempo e
revelando múltiplos planos ou passagens. O
famoso, enquanto isso – expressão bastante
adotada para indicar essa simultaneidade.
Mas há mais recursos passíveis de
serem usados. O perspectivismo, que é a visão
de cada personagem sobre um evento como em
Contraponto de Aldous Huxsley ou Os moedeiros
falsos de André Gide. Ou nos filmes Rashomon
de Akira Kurosawa ou Pulp Fiction de Quentin
Tarantino. A morte na alma de Jean-Paul Sartre
fala de diferentes situações em diferentes
lugares de forma simultânea, como na série da
Netflix Sense 8, ou no filme Lucy. Um exemplo
de quebra da sequência cronológica linear é
Lawrence Sterne. Ele zomba disso e promove
grandes saltos temporais. Isso pode ser útil
para reinventarmos as narrativas históricas.
Por fim, é preciso considerar se o
eixo mimético fundamental da narrativa
vai ser o tempo. A cronologia, ou a
consciência do narrador, como em alguns
romances contemporâneos. Afinal, como
89
História & Literatura

vimos anteriormente, a narrativa pode


expressar inclusive suspensões do tempo,
ou a ausência dele no pensamento, como no
fluxo de consciência, que retrata o chamado
tempo psicológico, uma duração interior,
uma vivência íntima dos personagens.
Nas narrativas o tempo parece ter apenas
existência semântica. Mas é preciso pensá-lo
também na sintaxe e na pragmática.

A fonte fecunda
Ao se referir aos textos e documentos
literários Antônio Celso Ferreira (2009) os
identifica como a fonte fecunda. Amparado
na História Cultural ele se pergunta sobre a
especificidade da fonte literária. E como bom
historiador não perde de vista a inserção nas
obras literárias de seu contexto histórico de
produção. Tampouco como se relaciona com
outras linguagens. Leituras como A fonte
fecunda evidenciam como uma infinidade de
caminhos e possibilidades analíticas podem
ser colocadas em movimento para analisar a
fonte literária e que podem ser escrutinadas
por diferentes metodologias.
Se pensarmos na tradição ou no
pensamento francês, pós-estruturalista ou
na história cultural de Roger Chartier e
90
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

congêneres veremos que a obra literária entra


como um testemunho, imerso em práticas e
códigos culturais particulares, construindo
imagens, sentidos e representações sobre o
passado. O romance, nessa abordagem, surge
como uma janela, mais do que como um retrato
ou uma fotografia. Entender essa mediação
produzida pela linguagem é algo decisivo em
nossa proposta. Na tradição germânica, por
outro lado, a obra literária é um registro e uma
expressão espiritual, cujos sentidos devem ser
buscados hermeneuticamente. O romance
seria um vestígio, um monumento, porta-voz
de significados historicamente construídos.
A consciência histórica e a compreensão de
suas expressões de vida se tornam tão ou mais
importantes que a linguagem.
Jean Starobinski dedicou algumas
reflexões sobre a fonte literária e seus usos por
parte da história na obra Faire de L´Histoire
de 1973, organizada por Pierre Nora. Ele
também recorda como a historiografia
marxista, sobretudo Raymond Williams
(1959), Gyorgi Lukács (2009), Marshal
Berman (1984) ou Walter Benjamin (1995)
examinaram os artefatos literários. Pensando
de forma mais vertical e esquemática, o exame
da literatura parte da reflexão sobre a mímesis,
em direção à textualidade, à ficcionalidade.
91
História & Literatura

Essa preocupação com os significados e


o funcionamento da própria linguagem
no interior da Literatura levará autores
simpáticos ao marxismo, como Deleuze,
Derrida (2006), mas também Mangueneau ou
Pecheaux a elaborarem ferramentas de análise
do discurso visando discutir a opacidade das
palavras e da própria narrativa sem perder de
vista seu papel ideológico ou de figuração em
meio a relações de força e de poder.
Em solo brasileiro, seria impossível
pensar os usos históricos que a literatura
oferece e não mencionar o nome de Antônio
Candido, para o qual as obras literárias são
uma forma de expressão e de conhecimento
(1981). Também o crítico uspiano
acreditava que elas expressavam ideologias
e práticas sociais. Historiadores culturais
acrescentariam que a literatura revela o
imaginário ou as mentalidades de uma época,
vide a literatura de cordel, os textos de Sade,
a literatura erótica, os romances da série Julia
ou Sabrina, por exemplo. Eles carregam esses
índices.
Ao fim e ao cabo, um clássico, como
qualquer obra literária que carrega consigo
algumas ambições autorais em relação a
uma cena literária é sempre o resultado de
92
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

conhecimento, cálculo, técnica, habilidade,


alguma agência e muito, muito trabalho.
Não se deve, jamais, defender que uma
obra literária é produto de talento, dom
ou genialidade. E retira-la de qualquer
tentativa de semelhante naturalização,
transcendência ou atemporalidade. Como já
foi dito anteriormente, é preciso historicizar
as obras, as práticas literárias, o campo
literário, as formas de legitimação de obras e
autores.
Outra advertência necessária é que
os gêneros literários, como os textuais,
não são puros, tampouco as convenções
literárias. Vivem de contágios, hibridismos,
polifonia. Atualmente, a força da literatura
também pode ser observada em duas bases
muito praticadas: o multiculturalismo e o
identitarismo. Evidentemente são expressões
da própria realidade história e temporal
dos círculos de leitores na atualidade. É
preciso dizer alguma coisa também sobre
o crescimento da metaficção ou autoficção
nos romances do presente, que também são
chamados por alguns de pós-modernos. Essa
nova literatura quer pensar o próprio fazer
literário e a própria consciência do autor-
narrador no interior de muitos dos textos
literários produzidos atualmente.
93
História & Literatura

Sobre estas questões, Antônio Celso


Ferreira alerta para o risco dos rótulos – escolas,
movimentos, correntes. E exorta a precaução
com as memórias produzidas no interior dos
próprios movimentos ou grupos, que costumam
ser autocomplacentes, hagiográficos e muitas
vezes inflados (Ferreira, 2009, p. 67).

Possibilidades e itinerários analíticos


Uma forma bastante útil de se
explorar a potencialidade da literatura é
colocá-la em relação a outras linguagens,
buscando exercitar a intertextualidade e o
dialogismo, avaliando como a pintura inspira
a literatura, ou os intercâmbios entre esta e o
cinema. Exemplo deste último aspecto seriam
os tipos de planos do cinema e como podem
servir para compreender melhor sua presença
em cenas no interior da literatura. Os planos
ou enquadramentos são sete: o plano geral
em que o corpo aparece por inteiro dos pés
à cabeça e toda a paisagem ao redor, o plano
americano que captura ¾ do corpo, o plano
médio que captura a metade do corpo, o
primeiro plano, o close e o detalhe ou plano
microscópico. É possível ver o uso deste
tipo de enquadramento descrito em várias
passagens de obras literárias.

94
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Provavelmente a melhor metodologia


para se analisar uma obra literária é aquela
que ajuda a responder de forma mais eficaz e
adequada o problema ou pergunta colocado
pela pesquisa. Lembrando, mais uma vez, que
todo texto carrega as convenções de seu tempo
e de seu lugar. Por que e para quem os autores
escreveram? Como seus livros circularam,
como foram lidos? Que tipo de recepção
tiveram? Essas são perguntas cujas respostas
podem trazer elementos significativos para
se compreender a prática literária e a própria
história envolvida no interior dela.
Autores como Robert Darnton (1986),
Carlo Ginzburg (2009), Jean Starobinski
(1986) e Roger Chartier (2006), por exemplo,
no interior da historiografia francesa, trazem
muitas contribuições para quem queira
estudar a literatura e suas relações com a
História. No neo-historicismo, destacam-se
Stephen Greenblatt (2011) ou Harold Veeser
(1989). Para este último, toda obra está
inserida em uma rede de práticas materiais
nas quais cada crítica ou avanço utiliza as
ferramentas que condena e corre o risco de
ser vítima da prática que denuncia. Para ele os
textos literários e não literários circulam lado
a lado auxiliando em sua compreensão mútua.
Ademais, nenhuma narrativa produz verdades
95
História & Literatura

únicas ou imutáveis e toda linguagem participa


da cultura e da economia na qual está inserida
(Cf. Veeser, 1989). Todos estes autores jamais
perdem de vista a existência de um sistema
de representações ou de imagens, o campo, os
insumos, os atores, as instituições, as regras
do literário, bem como as zonas de contato
entre a realidade histórica e as construções
literárias.
Nas páginas precedentes apresentamos
um inventário de possibilidades nessa direção.
Mas podemos acrescentar mais algumas
palavras a respeito. Para Gyorgy Lukács o
romance é uma criação burguesa, senão feita
por burgueses e para burgueses, sobretudo
homens. O primeiro romance, Dom Quixote
é sintomático nesse sentido. Mas a forma-
romance ampliou esse público, posto que
nobres, mulheres, mas também crianças se
tornaram leitores ou ouvintes da leitura
dos romances. Miguel de Cervantes foi
revolucionário. Segundo ele, seu livro não era
um romance ou uma novela. Ele o chamou
de história. Como uma fábula, mas, sem os
animais.
Há algo, no interior de todo romance,
que ativa sentimentos, mas também ações na
vida social (Cf. Berman, 1986). Ele envolve
96
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

seus leitores em quadros sociais e morais.


Fala de experiências, produz estranhamentos
e identificações. Ou seja, promove o
pensamento, ativa o conhecimento do que se
sabe e do que não se sabe. Amplia repertórios
e aprofunda linguagens. Traduz expectativas,
recusas, sonhos e críticas.
Neste sentido, obras literárias podem
ser artefatos perigosos, visto eventualmente
tocarem em problemas que dizem respeito
a indivíduos, grupos, épocas, países, ideias.
Giordano Bruno foi morto pela Inquisição.
Não poucos sublinham que a Literatura
costuma antecipar a política em suas
realizações. Tudo que é sonho, projeto ou
desejo na obra, enseja ações na realidade.
Caso emblemático nesta direção é A utopia
de Thomas Morus. Publicada em 1516, sua
crítica antecipou a crítica política e social que,
posteriormente ensejaria projetos políticos e
sociais em teorias sociológicas ou em sistemas
filosóficos. Obras literárias podem denunciar
opressões e regimes autoritários, desafiando
a moral e a ordem vigente, com vistas a
transformações no futuro.
Voltar-se para a leitura dos romances
implica ocupar-se da escrita ou da narrativa.
De imaginar estruturas ou formas de narrar
97
História & Literatura

que podem ser úteis para a História. Ao mesmo


tempo que nos conecta ao simbólico, ao
imaginário e às representações evidenciando
faces sublunares nas relações sociais ou na
materialidade da vida cotidiana. E isso pode
ser feito de forma realística, apelando-se
para estruturas narrativas mais trágicas ou
dramáticas, mas também por meio do humor,
ironia, paródia, autoparódia, alegoria, que
são modos de expressão importantes da vida
social. Ao fim e ao cabo, na literatura, como
na história, o social é, muitas vezes, o locus
definidor do significado.
Para Dominick LaCapra o romance
é capaz de representar a realidade com
outras tintas, interesses e objetos. Saindo do
usual e do comum ele promove a reflexão.
Para ele deve-se prestar atenção à figura ou
personagem do narrador. O modo como o
autor constrói seu narrador é algo decisivo
nas estórias. É provável, acompanhando seu
raciocínio, que narradores sejam resultado
de transferência ou de projeção de seus
autores (LaCapra, 1991). Eles preenchem
com sentimentos, desejos e impressões seus
personagens e suas histórias. E também
transferem o reprimido, o indesejável e o
inaceitável para seus textos. Uma obra é
um diálogo, uma ruminação de seu autor.
98
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Esse caminho psicanalítico, contudo, não


deve resvalar em uma análise superficial
das obras. Para Dominick LaCapra deve-se
evitar um uso empobrecido ou restritivo da
fonte literária. Para ele, a “literatura se torna
redundante quando o que nos informa pode
ser colhido em outras fontes documentais,
ou seja, quando confirma o que é corriqueiro
em outras fontes documentais”. Traduzindo,
quando chove no molhado.
Tratar da literatura implica em não
realizar apenas um exame formalista ou
somente contextualista do romance. Ou de
uma oposição binária entre forma e conteúdo
(Cf. White, 1987). Temos ao menos três
grandes possibilidades de exame: a escrita (o
autor, sua biografia, sua época), a recepção
(como são lidos e mobilizados), a leitura
crítica de seu conteúdo. O contexto histórico
em si não pode ser a explicação final de um
determinado livro. Esse determinismo é ruim.
Afinal o próprio contexto histórico não deixa
de ser uma construção histórica. Ele deve ser
útil para a compreensão de momentos dentro
da obra, de como uma situação histórica está
representada ali, mas jamais deveria dar a
palavra final sobre a análise. Isso permite
evitar que o papel da historiografia seja
apenas de fazer uma ultra-contextualização
99
História & Literatura

dos romances, demonstrando que estão


imersos em seu próprio tempo e lugar, que
não poderiam dizer nada além daquilo que
queremos que eles digam.
Dominick LaCapra levanta uma
advertência que não deixa de ser problemática
em relação à crítica feminista e marxista a
respeito do cânone literário e de autores e
autoras de um dado lugar ou país. Para ele
esta espécie de populismo profissional,
frequentemente, funciona como uma
forma metodológica de fazer da alta
cultura ou de seus portadores um bode
expiatório, pelo menos na historiografia.
Ela engendra um paradoxo vicioso
pelo qual um determinado grupo de
estudantes estabelece sua própria
hegemonia disciplinar, através de um
apelo vicário para os oprimidos do
passado (LaCapra, 1991).

O alerta, embora pertinente, talvez


não consiga alcançar a necessidade, em
sociedades desiguais e preconceituosas, como
a brasileira, de reexaminar com cuidado
apanágios literários e sua idolatria acrítica.
A voz dos leitores pode ser um parâmetro
para se reavaliar consensos ou hierarquias
naturalizados. E nos fazem ver que o erudito
e o popular, a alta e a baixa literatura, não
devem ser mistificadas. Sem contar que isso
não elide a consideração de que toda arte,
100
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

da modernidade ao presente, é um campo


mercantilizado, marcado por práticas
capitalistas em torno dele.
Reducionismo essa é a ameaça, seja de
internalistas, seja de externalistas, e Antonio
Candido nos oferece um bom antídoto. Para
ele a análise dialética das obras literárias,
pode mostrar que há nelas uma relação
inquebrantável entre contexto e conteúdo,
além do diálogo e da presença constante do
autor. Porque não se pode perder de vista que
inexiste distância entre verdade e ficção para
o romancista. Todo romance carrega uma
mensagem. Ele pode estar se insurgindo contra
algo. Denunciando alguma coisa. Declarando
sua posição contra algo. Todo romance é um
jogo. Como sublinha Luiz Costa Lima (1989,
2008), o real (ou a realidade) que aparece no
romance já é em si uma representação. De
qualquer modo a narrativa restitui um sentido
para o ser, conferindo-lhe uma identidade no
tempo. Os personagens centrais costumam ser
portadores dessa verdade e dessa identidade.

Em cena, a mímesis
A tese fundamental do livro Tempo
e Narrativa de Paul Ricoeur, é a de que a
narrativa desempenha um papel central na
101
História & Literatura

compreensão da experiência temporal e na


constituição da identidade humana. Para
Ricoeur, através da ficção, o narrador e o leitor
são convidados a refletir sobre a relação entre
a realidade, a verdade e a ficção. Em resumo,
a ficção ocupa um lugar central na narrativa
de Ricoeur, fornecendo uma dimensão
imaginativa, simbólica e social que vai além
da mera imitação da realidade. Ela permite a
exploração de significados mais profundos, a
reflexão sobre a condição humana e a abertura
para a interpretação e a compreensão das
experiências narrativas.
A vida e a realidade são uma sucessão
de eventos, conectados à temporalidade que
podem ser descritos. E ao serem narrados,
alcançam uma nova dimensão, posto que
precisam mobilizar nexos e conexões,
pensando em sua ordenação, sucessão, clímax,
acidentes, algo construído por meio da
organização do muthos que, em linhas gerais,
é a intriga ou enredo. Aí reside o ponto de
compreensão, onde é forjada a produção de
sentido.
O esquema ricoeuriano da mimesis é
um instrumento analítico para discutir o
problema da representação da realidade —
ou da realidade representada, tal como surge
102
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

também no subtítulo da obra clássica de


Auerbach (1987), sublinhada em diferentes
traduções. Um problema dinâmico, que
articula três estratos nocionais: a realidade
em si, que é resultante da observação; a
apreensão, que é a percepção ou compreensão
da realidade e; por fim, a expressão, fruto
da apresentação da realidade por meio do
tratamento literário, ou seja, do processo de
ficcionalização.
A mímesis, tal como formulada
por Eric Auerbach é um conceito e uma
metodologia que procura compreender toda
representação literária como resultante de um
processo que é particular em cada autor e ao
mesmo tempo universal, posto produzir o que
o crítico literário alemão chama de “estilo”.
Este pode ser reconhecido através dos níveis
e das formas de elocução, que concebem uma
imagem dinâmica da estória. Pode-se dizer
que a mímesis para Auerbach é o resultado
de um conjunto de processos representativos
ou de elocução que pressupõe vínculos de
dependência sucessivos (Auerbach, 1987).
Ou seja, há uma interdependência entre
a Ausdrucksform (forma de expressão),
a Sprachform (forma de linguagem) e as
Lebensformen (formas de vida). Uma conexão,
portanto, visceral entre a experiência
103
História & Literatura

histórica e as formas de a retratar por meio da


linguagem (Auerbach, 1987).
Uma obra literária, portanto, seria
sempre um esforço para sintetizar a expressão
mais perfeita, mais elaborada ou acabada de
uma realidade autoral, em outras palavras, o
modo como o autor representa a vida. Mímesis
não é, em suma, uma mera imitação do real,
nem somente sua representação, transposição
ou ficionalização pura e simples. Ela é o
resultado de um trabalho criativo realizado
com vistas a produzir um efeito, em parte
calculado, em parte aberto à interpretação e à
História.
Assim, podemos dizer de toda obra
de arte é determinada essencialmente por três
fatores: pela época de sua origem, pelo local
de sua produção e pela peculiaridade de seu
criador. Segundo Auerbach isto vale mais
para os romances e as novelas, eu acrescentaria
contos e crônicas, e menos nas tragédias ou
epopeias onde é um povo ou coletividade que
fala, através de seus mitos, adágios e tradições,
procurando questionar os deuses e o destino.
Por estar inserido em uma tradição,
que qualquer texto literário está em diálogo
com outros, anteriores ou contemporâneos.
Bakhtin chama isso de dialogismo. E a
104
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

referência pode ser obra bastante antiga.


A Divina comédia de Dante Aliguieri, por
exemplo, refigura a Eneida de Virgílio. Toda
obra carrega dentro de si a essência de uma
anterior. O crítico Harold Bloom ao tratar
desta tradição revela que em seu interior há
uma angústia da influência, ou seja, os herdeiros
da literatura possuem quadros de referência
de obras literárias anteriores cuja confecção
e acabamento geram imitações, reações ou
adaptações. Para o norte-americano, a obra de
Shakespeare e, sobretudo, seus personagens,
seriam modelares e canônicos na tradição
literária ocidental.
Ao falar da mímesis, Eric Auerbach,
por exemplo, compara a transposição do real
na Bíblia, que é imperceptível e deixa poucos
rastros com a da Odisseia de Homero. Na Bíblia,
há um apagamento intencional da realidade
efetiva. Em Homero tudo é mais perceptível,
as descrições do cotidiano, das roupas, das
comidas, dos lugares, do próprio tempo. Nele
a história só se desenvolve na classe senhorial,
com a construção de um retrato bastante fiel
da estrutura social. No Antigo Testamento
também há claras indicações da estrutura
social: faraós, servos, escravos. Em ambos,
o espaço do sublime, do cotidiano e dos
sentimentos, estão imbrincados. Mas, ao fim
105
História & Literatura

e ao cabo, o estilo grego antigo de representar


o real, com seu realismo característico é
diferente da mímesis presente nos textos
bíblicos. Neles o tempo se dilui. As descrições
costumam ser sumárias, com poucos detalhes.
O realismo, em um romance, é como um
espelho que o autor leva para passear em um
trajeto, ou como uma câmera, com a qual ele
registra o que vê e está em seu entorno.

Ginzburg, Sthendal e Durval Albuquerque Jr


O problema da representação da
realidade é central na obra de Auerbach,
assim como na de Ginzburg e tantos outros
estudiosos que se valem dos romances para
tentar analisar questões históricas, ou a
própria história. E todos eles se valem de
ferramentas e discursos interdisciplinares.
Apelam à Filosofia, à Economia, à Sociologia
e à Antropologia, por exemplo. A realidade é
complexa e plural, assim como a linguagem,
portanto, nada como submetê-las a leituras
plurais, a diferentes perspectivas analíticas.
O interesse pelo contexto histórico do
autor e da obra é o que na análise da linguagem
chamamos de pragmática. A tela ou quadro
mais geral que envolve a produção literária. E
os autores estão conectados a essa realidade.
106
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Ela transparece em suas obras, quando não


são sua base. Nas crônicas isso é uma realidade
constante. Em muitos romances também.
Sthendal, por exemplo, foi o precursor
de realismo sério e moderno. A realidade
histórica está em toda parte em sua obra.
Balzac também. Machado de Assis idem. Mas
há outros autores que conseguem diluir o peso
da realidade que os cerca em suas obras. As
epígrafes de O vermelho e o negro de Sthendal
usam trechos de Danton, como “a verdade, a
áspera verdade”, ou de Sainte-Beuve (“ela não
é bonita, não usa ruge”). O próprio subtítulo
escolhido para o livro foi: crônica de 1830. Isto
já deveria ser motivo para alguma reflexão por
parte de quem queira usar historicamente esta
fonte literária.
É possível analisar textos literários em
perspectivas mais amplas, tomando questões
mais gerais sobre a política, a sociedade ou a
economia em seu tempo. Estabelecendo linhas
interpretativas capazes de iluminar aspectos
mais gerais de uma época. Mas existem outros
caminhos. Um deles seria buscar em detalhes
ou elementos incidentais da narrativa a
compreensão de realidades do passado.
Fazendo com que um dado pontual possa ser
capaz de aludir a um todo maior. Uma lição
que a hermenêutica, de Schleiermacher a
107
História & Literatura

Gadamer nos ensinou: o todo ilumina as partes


e as partes podem iluminar ou remeter ao todo.
Também é possível ficar no nível da análise
das palavras, categorias, conceitos e discursos.
Ou avaliar sua dimensão retórica, ou o modo
como a enunciação se dá acompanhando
quadros de elocução e metaforização. Ou ainda
pensarmos nas alegorias ou imagens dialéticas
existentes nos textos literários. Não há dúvida
que qualquer um destes caminhos poderá
apresentar como um de seus resultados – ou
efeitos colaterais – a proposição de verdades.
Afinam, obras literárias constroem verdades.
Elas afirmam algo, fazendo proposições aos
seus leitores. Segundo Carlo Ginzburg, por
exemplo, em O vermelho e o negro Sthendal
procura nos convencer de que não há mais
paixões verdadeiras no século XIX e que o
tédio impera na França (Ginburg, 2009, p.
185).
Durval Muniz de Albuquerque Jr,
em seu História, a arte de inventar o passado
(2007) sublinha que História e Literatura são
práticas e campos distintos, com diferentes
abordagens e compreensões. Mas ambas
lidam com narrativas, ou antes, discursos
que constroem conhecimentos e o real. São
saberes que procurar dar conta das realidades
construídas. De modo que não há uma
108
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

realidade ou coisa em si sobre o qual falam.


Na verdade os discursos que produzem sobre
a realidade são práticas, são estratégias ou
dispositivos. Para ele, talvez
a diferença entre a História e a Literatura
seja mesmo uma questão de gênero.
Não apenas de gênero discursivo, pois
pertencem a ordens diversas do discurso,
seguem regras e normas diferenciadas;
mas de gênero (...). A História seria
discurso que fala em nome da razão,
da consciência, do poder, do domínio
e da conquista. A Literatura estaria
mais identificada com as paixões, com a
sensibilidade, com a dimensão poética e
subjetiva da existência,com a prevalência
do intuitivo, do epifânico (Albuquerque
Jr, 2007, p.47).

109
110
Considerações Finais
A reflexão sobre a narrativa histórica
permitiu à História contemplar sua própria
ficcionalidade. E promoveu seu reencontro
com a Literatura. Isso fez com que se tornasse
mais comum o uso de fontes literárias em
pesquisas históricas. Este livro pretendeu dar
uma pequena contribuição, ao introduzir
e ao familiarizar seus leitores e leitoras com
alguns pontos e ferramentas mais gerais para
poderem pesquisar história usando fontes
literárias. Ele defende que pensar o texto
ficcional como um objeto e não somente
como fonte implica reconhecer a utilidade
da teoria literária, como um corpo auxiliar e
um instrumental que ajuda na compreensão
da natureza de romances, crônicas ou contos,
por exemplo ao lado de outros conceitos e
categorias históricos.
Para Aristóteles (1989), a literatura
e a poesia residiam no poético, ou seja no
verso. Demais textos, em prosa, seriam textos
111
História & Literatura

menores. Então a tragédia, a epopeia e a


dramaturgia, nessa ordem, são considerados
por ele como superiores em relação à história
ou à comédia. Ou seja a tríade aristotélica dos
gêneros épico, dramático e lírico – dois em
prosa e o último em poesia – encontram-se
no sentido moderno da literatura no DNA do
romance, do teatro e da poesia. Esse modelo
tem seus limites e tem sido questionado ao
longo do tempo. Existe ainda como uma
referência clássica, mas não mais atende ou
explica as demandas atuais do campo.
O conjunto de preocupações ou de
tópicos explorados até aqui deve ter revelado
que não se pode fazer um uso ingênuo das
obras literárias. Ou seja, tomar um romance
como um fato, como uma evidência em si,
automática, de uma realidade histórica ou
como um documento portador de verdades
estabelecidas ou consensuais sobre uma época.
Textos literários são artefatos que carregam
sua historicidade, em conexões variadas e
plurais. Todo romance é uma janela, uma
perspectiva, uma visão, mas não a realidade
em si. Não é um texto que espelha, mas que
reconstrói ou reinventa aspectos de uma
realidade e, por conseguinte, de um dado
passado.

112
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Antes de concluirmos é preciso


destacar o modo como a leitura e análise da
literatura não pode se dar alheia aos processos
históricos que a envolvem. Às disputas e
relações de força existentes no tempo e
no espaço. Como nenhuma linguagem ou
literatura é neutra, toda obra pode e deve ser
submetida ao julgamento e ao escrutínio das
relações que ela estabelece com a realidade
retratada dentro de si, mas também com seu
contexto histórico de produção e os contextos
existentes no futuro, quando sua ficção é
novamente ativada pelas leituras e releituras.
Reconhecer que seja no passado,
no presente ou no futuro que cada texto
literário acaba por prestar conta dos cálculos,
intenções e enunciados que seu autor propõe
à sociedade. O pensamento é livre, a liberdade
de expressão é um direito, mas ela não se exime
dos comprometimentos éticos e políticos que
carrega, dos pactos implícitos ou explícitos
que efetiva. Ou seja, obras literárias carregam
também preconceitos e juízos de valor,
assumindo ou construindo representações que
ativam validações ou invalidações de sujeitos,
grupos, ideários. Não é o caso de levarmos
autores ao tribunal, embora o debate em torno
desse aspecto seja grande e ruidoso, mas que
não seria errado apontar equívocos ou defeitos
113
História & Literatura

como capacitismo, homofobia, racismo


ou misoginia em muitas obras literárias e
autores, independente da época em que foram
escritos. Intencionais ou não, seus discursos
e enunciados podem e devem ser avaliados
criticamente pela tradição. Uma coisa é a
avaliação estética e textual, relacionada com
a forma ou com as virtudes da elaboração
criativa da narrativa e do manejo das palavras,
outra as implicações ou comprometimentos
havidos em seu conteúdo. Também isso pode
e deve ser um caminho para o uso de fontes
literárias com vistas à análise e à pesquisa em
História.
Dito tudo isto uma pergunta de fundo
permanece: por que a literatura é uma fonte
histórica? É possível responder dizendo que
toda literatura, enquanto relato e narrativa é
um testemunho feito no tempo e no espaço
por alguém. Ela registra uma fala, no interior
de um campo específico, o literário, que se
conecta a outros campos, redes e agências
realizados ou percorridos por seu autor.
Então ela não é exclusivamente arte - ela é
materialidade, discurso e agência. Por conta
de tudo isso, não deixa de ser um artefato ou
criação humana portadora de historicidade,
visto carregar consigo temporalidades.

114
Julio Bentivoglio e Kelly Alves Andrade

Trazendo marcas e convenções do


tempo e da realidade exterior, toda obra
literária é também um registro humano,
imerso em determinados contextos históricos,
dialogando com linguagens específicas e que
reflete ou expressa o imaginário de sua época.
E seu conteúdo, posto configurar um relato,
narrativa ou testemunho, mesmo ficcional,
encerra experiências e também conhecimento.
Há ali palavras, visão de mundo, objetos,
pensamentos e emoções que são reconhecidas
pelos leitores do seu tempo e do futuro, o
que significa que podem ser interpretados
e analisados historicamente. Ou seja, dão
acessos à compreensão da experiência humana,
trazendo informações históricas e gerando
aprendizado.
Se a literatura ensina algo, se ela faz com
que tenhamos e reconheçamos experiências
humanas, identidades e diferencas de
ordem política, social, econômica, moral ou
religiosa ela pode ser compreendida historica
e criticamente, podendo servir como um
objeto para se acessar realidades e problemas
históricos em diferentes contextos político-
culturais. Exemplo disso são os quadros sociais
e morais contidos em muitos romances,
fixando representações, práticas e significados
para o amor, o sucesso, o casamento, as
115
História & Literatura

relações de gênero, o Estado, a justiça, etc.


Muitas das contradições que encontraríamos
em qualquer fonte histórica, também podem
ser encontradas nos textos literários. Eles
trazem os vestígios e as marcas de seu tempo,
independentemente de ser obra realística
ou futurista. Se se trata de um romance do
romantismo brasileiro de José de Alencar, por
exemplo, ou uma ficção distópica futurista
de Margareth Atwood. Independentemente
disso ambos falam sobre si mesmos, sobre seus
autores e sobre sua época, mediante diálogos
implícitos e explícitos, de forma simples
ou repletos de engenhosidade. Toda ficção
carrega a imagem de seu autor e é inevitável
que traga elementos autobiográficos (Alberti,
1991). Assim, os polos autor-obra, narrador-
narrativa, forma-conteúdo, indissociáveis,
são horizontes historicamente determinados
capazes de nos ensinar um pouco sobre o
passado e sobre a História.

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