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Tharcius Bespian
Tárciûs Bêspiam
Cília Bespian
Cíliá Bêspiam
Ulian Bened
Úliâm Bênedi
Lyia Oma’thu
Liá Ômah-tú
Edon Gha’nami
Êdom Guâ-namí
Belar
Bêlar
Tenar
Tênár
Ésper
Ésper
Impla
Ímpla
Quaarsar
Quázar
Colossus
Colôssús
No começo, não havia nada além de trevas e abismo. Mas então...
Tic
Tac.
O Primeiro entre os Primeiros emergiu do vazio.
E Ele entendeu que era o princípio e o fim, bem como tudo aquilo
que, um dia, viria a se manifestar. O tecido no qual costuravam-se as
estrelas. O alimento da vida. O destino.
Era tudo aquilo de mais sagrado que poderia existir, mas Seu
significado se perdeu em meio ao egoísmo, e Seu nome foi transformado em
algo comum.
Uma medida sem importância.
Algo feito para desperdiçar, tão pequeno quanto um ponteiro.
Mas Ele jamais se esqueceu.
E já passara o momento de fazer com que todos se lembrassem.
Elya repousou os olhos sobre o brilho incandescente de um
desavisado meteoro que adentrava na atmosfera de Belar e, depois de assisti-
lo despedaçar-se, levou as mãos junto ao peito para fazer um desejo,
exatamente como quando criança.
Daquela vez, porém, em vez de desperdiçar a sorte com projetos
pueris de uma mente infantil, desejou algo mais complexo e que talvez
poucos compreendessem de fato.
Desejou ser livre.
Tão de repente quanto surgiu, a cintilante rocha espacial desapareceu
de sua vigília, cedendo lugar ao familiar céu de primavera eterna de Belar,
com Tenar e Ésper, as duas luas enamoradas, e uma infinidade de
constelações pulsantes pintando o crepúsculo ainda rubro.
Era bonito.
Lindo, na verdade.
Belar era o planeta mais belo de todo o Sistema Exterior, e ninguém
que pousasse os olhos sobre as montanhas do mais puro cristal ou os riachos
límpidos onde criaturas delicadas moravam ousaria negar. O tamanho e o
grau de inclinação, além da distância até a estrela que orbitava — a
incendiária Gautan —, garantiam que a vida crescesse farta e abundante no
mais perfeito equilíbrio.
No entanto, apesar de toda aquela beleza, Elya não se via mais capaz
de sentir-se em casa no planeta em que, como um raro botão, vencera a
tensão da superfície e desabrochara. Isso, porque no instante que Gautan
mergulhasse no horizonte e Tenar e Ésper iniciassem seus reinados pela
noite, Elya faria vinte ciclos.
Vinte dolorosos ciclos.
Não que fosse capaz de esquecer, já que a chegada de sua maioridade
e da bênção das Soberanas era um assunto que a acompanhava desde
sempre, mas a lembrança repentina da escassez de tempo deixou nela uma
marca profunda.
Deslizando pelos degraus de pedra branca, como se a noite clamasse
por ela, desceu em direção aos jardins que pouco a pouco ganhavam vida.
Sob a luz de Tenar e Ésper, que ascendiam lentamente em direção ao ponto
mais alto do céu, flores desabrochavam e difundiam perfumes suaves pelo
ar. Pequeninas criaturas bioluminescentes erguiam-se entre as raízes das
árvores, levitando como se saudassem a penumbra, e a relva macia
regozijava-se com o orvalho que carinhosamente a banhava.
Elya, contudo, só sabia remoer a própria infelicidade, uma vez que a
noite lhe traria algo muito diferente: para toda mulher em Belar, aquela era a
idade de apresentação diante do Conselho Conubial, ou melhor dizendo, a
idade de ser forçada a casar com um homem praticamente estranho para
garantir uma prole perfeita.
Seguiu mais para dentro das árvores, que por sobre ela derramaram
copas frondosas, como antigas confidentes. Permitiu que as folhas lhe
tocassem os braços desnudos de forma terna, uma carícia que apenas a
natureza sabia verdadeiramente fazer, antes de parar em frente a um tronco
áspero, mais antigo que a própria terra úmida debaixo de seus pés.
— Sei que não deveria, mas vim pedir-lhes hoje novamente —
sussurrou, tão baixo que nem o próprio vento poderia ouvir suas
confidências. — Não tenho mais a quem recorrer.
A magnífica copa dourada que o tronco sustentava se agitou,
reluzindo como se feita de ouro puro. Certa de que aquele era o sinal que
esperava para prosseguir, Elya se aproximou ainda mais, de modo que seus
lábios tocaram a madeira muito suavemente, em um beijo de amante que ela
jamais conheceu.
Nunca fora do tipo resignada, tampouco dócil ou submissa como
esperado de uma dama belariana, para desespero dos pais, mas, naquele
momento e pela primeira vez, via-se obrigada a aceitar a realidade. O tempo
alimentara a rebeldia, mas ela já não o possuía mais.
— Soberanas, eu humildemente imploro que ouçam a minha súplica
— murmurou, o que não passou de um suspiro cansado. — Sei que deveria
reconhecer meu lugar e que nem mesmo fui abençoada ainda, mas não
permitam que eu seja combinada e me case sem amor...
A voz morreu no fundo da garganta conforme lágrimas quentes
manchavam suas bochechas angulosas, e ela deixou que escorressem até
secarem sozinhas e a tristeza virasse apenas memória do que, em primeiro
lugar, a fizera a chorar.
Folhas delicadas como estrelas desprenderam-se da árvore anciã e,
carregadas pelo vento, desceram por sobre Elya como um presságio, embora
não soubesse dizer se bom ou ruim. Ela as pegou com os dedos, encantada
com o brilho que exibiam, agora feito de prata líquida, e abraçou-se como se
soubesse que, embora sua fé nas Soberanas fosse inabalável, àquela altura
nada mais poderia salvá-la da tradição que se perpetuava há muitos e muitos
ciclos.
Os belarianos, tão inebriados pela prosperidade e superioridade
autoproclamadas das quais gozavam desde que o planeta adentrara em sua
Era de Ouro, desenvolveram uma verdadeira obsessão pela ordem e pela
perfeição que a garantia.
O casamento forçado — embora sequer cogitassem denominá-lo de
forma tão ultrajante — era apenas um dos meios de conservar esta perfeição
que estimavam acima de qualquer vontade ou pessoa. Chegar à maioridade
significava, portanto, ser combinada para garantir uma prole perfeita em
todos os sentidos e cumprir seu dever perante a sociedade.
Era tudo o que esperavam dela, o motivo pelo qual tinha nascido.
Elya, no entanto, preferia morrer a se casar com um desconhecido
apenas porque alguma autoridade assim determinou, pois ousava pensar que
o casamento deveria ser mais que uma combinação genética próspera.
Não deveria?
Ela não tinha muita certeza, pelo menos não tanto quanto gostaria, já
que quase todo o conhecimento que possuía sobre relacionamentos baseava-
se nas desventuras amorosas de sua secretária pessoal e melhor amiga, Lyia,
que parecia ser — pelo menos naquele aspecto — tudo o que os belarianos
mais abominavam em uma mulher: livre para se relacionar com quem
quisesse, quando quisesse e como quisesse.
Lyia, todavia, era implaviana e, apesar de viver em Belar há muitos
ciclos, sujeitava-se apenas aos costumes do próprio planeta no que dizia
respeito aos relacionamentos. Elya Bespian, por sua vez, era belariana em
cada célula e cada respiração. Única filha mulher de Tharcius Bespian CVII,
da honrosa casa de Governadores que comandava o planeta há… Vejamos…
Mais de setecentos ciclos.
A mais perfeita entre as perfeitas.
A ungida.
A prometida.
A que traria o futuro.
Desconhecia quem havia revelado a profecia aos pais e lhe imposto
tamanho infortúnio, tampouco porque escolheram acreditar que a filha seria
ainda mais perfeita em um mundo onde a perfeição tornara-se regra, mas
desde criança carregava a obrigação de ser um exemplo de conduta para um
planeta inteiro e representar seu sobrenome ancestral de forma digna.
Era um fardo pesado.
Por isso, lutar pelo amor não seria nada fácil, já que Belar há muito
negligenciava tal sentimento, considerando-o supérfluo perante a obrigação
social de submeter-se às decisões do Conselho Conubial, que garantia uma
combinação completamente harmônica entre os parceiros.
Por onde começar a procurar pelo amor, então?
Nos bailes ou passeios, seu pai sempre garantia que nenhum homem
chegasse perto demais dela e mesmo diante da mais inocente conversa a
censurava, fazendo questão de lhe lembrar que carregava toda a reputação da
família.
Entretanto, em algumas noites, quando Tenar e Ésper estavam tão no
alto do céu que quase chegavam a se tocar, Elya pegava-se observando as
estrelas e pensando que talvez já tivesse encontrado o amor nos olhos de um
jovem belariano, que fazia seu coração perder uma batida sempre que
esboçava um sorriso travesso.
Ele a atraía tanto quanto as duas luas se puxavam desesperadamente
no firmamento, mas jamais retribuiu seu interesse muito além da cortesia e
da educação que um cavalheiro deveria demonstrar a uma dama ou de
algumas provocações banais, tão comuns entre jovens.
Balançou a cabeça, como se quisesse manter o mais longe possível a
lembrança dos olhos dourados dele, e fez o possível para expulsar o fogo que
começou a lhe queimar quando recordou a voz que tantas vezes sussurrou
em seus ouvidos nos corredores escuros entre os salões de baile.
Ele não a queria, e, mesmo que quisesse, seu destino era ser
combinada com algum estranho que ela provavelmente acabaria por
desprezar, como sempre vira a mãe fazer com o próprio pai.
— Elya! — Ouviu Lyia chamar ao longe, com uma suavidade
calculada na voz aquosa. — Sei que queria ficar sozinha, mas sua mãe pediu
que eu viesse chamá-la. Ordenou, para ser mais exata — complementou,
com o tom repleto de um desagrado quase palpável. — Você precisa se
preparar.
Elya afastou-se da árvore sagrada com uma despedida silenciosa e
logo avistou a implaviana de pele esverdeada, lutando para desgrudar folhas
caídas e cascalho dos tentáculos sobre os quais se mantinha em pé. A forma
dela assemelhava-se à dos extintos polvos, embora não vivesse
exclusivamente na água.
— Não vai reclamar por eu estar “nos jardins me martirizando de
novo”? — indagou, com ironia, sinalizando as próprias aspas.
Lyia arregalou os três olhos escuros e penetrantes. Com apenas um
deles, sinalizou sugestivamente em direção às escadas que conectavam o
interior da residência àquele jardim, de modo que somente uma implaviana
conseguiria sem causar a si mesma uma terrível dor de cabeça.
Seguindo o gesto com o olhar, Elya logo identificou a impetuosa
Cília, parada entre duas colunas enormes e rígida como uma escultura de
pedra; uma parte daquele enorme palácio. Sua mãe.
Temendo as feições esculpidas à perfeição, que lhe mediam desde o
topo da cabeça até a ponta dos pés como se procurasse por um defeito,
endireitou as costas e tomou o caminho para dentro sem demora.
Cília rolou os olhos, impaciente, quando Elya finalmente se juntou a
ela na ampla varanda de pedra branca. Sua mãe era alta e esguia, com dedos
e pescoço compridos e um rosto anguloso totalmente simétrico. Tinha uma
longa cabeleira acinzentada, que quase encostava no chão, além de olhos
prateados cortantes como as lâminas das facas que usavam no jantar para
fatiar frutos tenros. No geral, era uma mulher seca e formal que, como tantas
outras belarianas, tratava a maternidade como um dever.
A filha não se identificava em absolutamente nada com ela.
— Teve um dia agradável? — a mãe perguntou, colocando-se em
movimento para que percorressem os corredores na penumbra, lado a lado.
Elya acenou com a cabeça, imaginando que Cília não desejava, de
fato, saber de nenhuma anedota sobre seu dia ou seus sentimentos.
— Você ainda não foi abençoada e não tem o direito de pedir favores
às Soberanas. — A censura veio logo em seguida, com desaprovação
crescente em cada palavra, como se a mãe houvesse esperado o dia todo
apenas para dizer aquilo. — Sequer deveria ter ousado chegar perto da
árvore sagrada, em respeito às tradições.
A filha lutou contra um riso amargo diante da palavra que usavam
para justificar tudo em Belar. Apesar de não ter sido ainda abençoada,
pensara ter todo o direito de conversar com Tenar e Ésper, não importava o
que dissessem as tradições, uma vez que era tão filha de Belar quanto a mãe
ou qualquer outra pessoa.
Se as Soberanas não gostaram de ouvir suas súplicas, então que
encontrassem uma forma ainda pior de castigá-la. A condenação já imposta
sobre sua vida era suficiente.
— Você, a mais perfeita entre as perfeitas, deve encontrar a maior
das honras em estar perante o Conselho Conubial. — Cília deteve-se diante
de uma passagem abobadada, toda entalhada em pedra branca, e fez sinal
para que a seguisse. — Faça o que de você foi prometido.
Elya sentiu o desespero apertar sua garganta com a menção ao título
pelo qual insistiam em chamá-la e com o fato de que, aos olhos da mãe e de
muitos outros, ela não era uma pessoa, mas sim uma promessa.
A profecia viva.
Quase cega pelas próprias emoções, seguiu a mãe à revelia enquanto
imaginava se o Conselho Conubial ainda a consideraria a mais perfeita entre
as perfeitas caso empurrasse Cília escadaria abaixo conforme desciam e
desciam, Lyia sempre alguns passos atrás. Foi só quando os degraus se
abriram para o ar livre, que se deu conta de onde estava.
Para onde quer que olhasse, água quente jorrava através de fendas
nas pedras imaculadas que compunham uma enorme bacia de borda infinita,
projetada de forma semelhante a antigos banhos romanos terrestres. Cascatas
finas como véus de noiva evaporavam com a atmosfera quente, deixando o
ar inebriado com a doce seiva do crepúsculo. Incensários enfincados em
rochas tão brancas, que só poderiam ter vindo de outros planetas,
queimavam óleos essenciais que misturavam-se à bruma e enevoavam a
grandiosa estrutura que desafiava a gravidade, levitando muito acima do
chão.
O céu bordado por constelações era a única testemunha daquela que
era a noite mais longa do ciclo lunar, e, no centro do firmamento, Tenar e
Ésper resplandeciam sozinhas, como se os outros astros houvessem se
retirado para apreciar o iminente espetáculo, pois qualquer um seria capaz de
sentir o ar impregnado de magia antiga e fundamental.
— Deixe-nos — Cília instruiu Lyia, que aguardava silenciosa e
obediente ao final da escadaria. — Este ritual não é para seus olhos
estrangeiros.
Elya sentiu-se enjoar com a prepotência, mas seu mal-estar
certamente era muito mais causado pela própria covardia, uma vez que
jamais havia se imposto diante daquele tipo de situação, que sabia estar
errada. Quisera ter a coragem necessária para se insurgir...
— Você está prestes a ocupar seu lugar de direito em nossa sociedade
— a mãe prosseguiu quando ficaram sozinhas, desatando os nós que
prendiam suas vestes, como se fosse apenas mais uma das tarefas habituais
que realizava, a despeito de nunca se tocarem. Passou por cima de seus
pensamentos; sequer pediu permissão. — Não poderíamos estar mais
orgulhosos — complementou, com palavras carregadas de vaidade.
Não acreditou nelas, pois onde caberia apenas orgulho para a mãe,
sabia que caberia simplesmente felicidade para o pai, e aqueles conceitos
não poderiam ser mais distintos.
Quando o tecido finalmente caiu, a filha se aproximou da água,
sentindo a textura grosseira das rochas da escadaria esculpida fazer cócegas
nas solas de seus pés delicados.
— Lave-se da inocência das crianças, querida filha, pois você agora
deve ser uma mulher — ordenou a mãe, imbuída de uma autoridade que fez
a névoa subitamente abrir passagem.
Elya segurou a respiração e submergiu entre as bolhas até
desaparecer por completo. No fundo da banheira, onde tudo era calmaria e
silêncio, pequenos cardumes bioluminescentes mordiscaram as pontas de
seus dedos, e ela abriu os olhos, distinguindo Tenar e Ésper que, mesmo
distorcidas pela água, lhe sorriam como duas confidentes.
Passara a infância toda ouvindo as histórias sobre aquela bênção e o
que significava para seu povo, preparando-se para aquele exato momento
assim como toda criança que nascera belariana.
Em Belar, acreditava-se que Tenar e Ésper já caminharam sobre a
superfície um dia, como Deusas tão apaixonadas que quase destruíram o
mundo quando um obstáculo ameaçou separá-las. Temendo o poder e a força
que possuíam quando estavam juntas, foram presas no firmamento por seus
irmãos celestiais, os deuses antigos, incapazes de reunirem-se outra vez para
todo o sempre.
Amantes, ou eternas enamoradas.
A cada noite, procuravam-se no céu e, quando estavam tão próximas
que era possível sentir sua atração até em Belar, eram obrigadas por Gautan,
o guardião, a separarem-se.
Mas não naquela noite.
Naquela noite, a mais longa do ciclo, as Soberanas por um breve
instante tocavam-se e, quando estavam perto o suficiente para colapsar e
tragar o mundo em fome e desejo, liberavam em Belar um último lampejo de
poder celestial, que era recebido por seus filhos e filhas na forma de uma
bênção, antes de se afastarem novamente.
Inspirada pela história, Elya emergiu para respirar com água
pingando dos longos cílios, incapaz de refrear as palavras que já lhe
deixavam os lábios:
— Mãe, você o ama? O papai. Você já o amou algum dia?
A princípio, Cília fingiu não ouvir, talvez pensando que a filha
jamais dirigiria uma pergunta tão ousada a ela. Depois, não escondeu o
quanto ficou desgostosa.
— Tudo indica que meus genes nada tinham de bom a oferecer nesta
união, já que você é igualzinha a seu pai na aparência e nos conceitos
absurdos — respondeu por fim. — O amor não tem a ver com o dever ou a
honra envolvidos em um casamento; é um conceito que torna as pessoas
voláteis. Considero o dever com meus semelhantes muito mais nobre e
poderoso do que o amor — desdenhou, com um brilho estranho crescendo
nas írises prateadas.
Aquela resposta era exatamente o tipo de coisa que Cília diria, e Elya
não soube por que, em primeiro lugar, se deu ao trabalho de buscar o
conselho dela.
— E Tenar e Ésper? — insistiu, voltando os olhos com esperança em
direção ao céu. — Não é em nome do amor delas que estamos aqui hoje?
Você não acredita nisso?
A mãe dirigiu-lhe um olhar cortante, como se tivesse acabado de
ouvir a maior das heresias.
— Não diga bobagens. Nossas Soberanas não devem ser
desmerecidas apenas porque você tão claramente reluta em aceitar o próprio
papel na sociedade — advertiu, curvando-se para as luas com toda a
deferência esperada. — Todo amor que já conheci transformou-se em
egoísmo, e é isso que a história nos ensina. Agora venha — disse,
estendendo-lhe uma das mãos como se desse o assunto por encerrado. — O
momento se aproxima.
Elya dispensou a ajuda, temendo que mesmo um simples toque de
Cília pudesse contaminar seu espírito com frieza. Uma brisa suave beijou
sua pele quente, causando-lhe arrepios, e sua atenção foi imediatamente
requisitada por um pequenino espelho incrustado na beirada do banho, quase
perto demais do vácuo acima do qual flutuavam. Ele teria passado
despercebido pelo resto da noite se não tivesse começado a brilhar como
uma estrela caída naquele momento.
Se a mãe notou sua curiosidade, nada disse. Deu-lhe as costas e
ergueu os braços esguios, adornados por pulseiras delicadas que tilintaram, e
entoou em transe uma convocação silenciosa, passada de geração em
geração.
Com os olhos escuros embebidos em expectativa, Elya mirou o céu e
ouviu o ar zunir e sussurrar quando Tenar e Ésper primeiro cruzaram-se no
alto e eclipsaram-se, incendiando a noite com um fulgor tão forte que, por
um momento, quase pareceu dia. Animais e plantas, assim como tudo o que
era vivo à noite, recolheram-se em busca de algum refúgio na terra. Mesmo
a mais suave das brisas ocultou-se atrás das árvores, pois não havia nem no
ar, nem no céu, lugar senão para as amantes.
A gravidade prendia as luas no firmamento — sua punição por terem
tentado queimar o mundo. Porém nem mesmo a lei universal foi capaz de
impedir o instante em que o tempo deixou de ser senhor e parou, como
humilde vassalo, para contemplar as Soberanas em todo o seu poder
entregarem-se uma à outra depois de tanta espera.
As luzes que refletiam e lhes eram tão características — a dourada de
Tenar e a prateada de Ésper — convergiram, incidindo sobre a superfície
reflexiva do pequeno espelho que, como se encantado, direcionou de
imediato o feixe para Elya. E quando aquela sagrada centelha a atingiu,
lágrimas de torpor turvaram sua visão.
Destituída de qualquer força para resistir, o que possuía de mais
íntimo emergiu das profundezas da própria alma, transformando sua
aparência para revelar o que de verdade carregava no coração, e ela sentiu
que dentro do corpo, bem no fundo, algo se acendia e nunca mais deixaria de
queimar.
Febril, sua mente perdeu-se em um momento eterno, que talvez não
tenha durado mais que um breve instante, enquanto os cabelos antes pretos
tornavam-se, da raiz às pontas, castanhos e quentes, depois amarelos e por
fim puros como ouro, e as írises eram tomadas pela mesma cor líquida e
incandescente, derramada das forjas de um ferreiro celestial.
Elya reluziu, como a mais preciosa das pedras.
Incandesceu, como a mais ardente das brasas.
E, então, estava feito.
Levou as mãos ao peito nu e caiu de joelhos, arfante, entregue à
exaustão, enquanto as luzes recolhiam-se em direção ao alto e o manto do
céu retomava sua coloração habitual, com milhares de pontos brilhando na
imensidão escura do espaço entre as nebulosas.
À sua frente, Cília se curvou em uma reverência profunda, quase
tocando a testa no chão, e com olhos marejados exclamou com um tom
respeitoso e deferente que ecoou, talvez, por todo Belar:
— Elya Bespian, Tenar a reclamou!
Elya deixou-se ficar de joelhos no pavimento grosseiro por tanto
tempo que, quando finalmente sentiu os tentáculos de Lyia a erguerem do
chão, pensou que não teria força nas pernas para sustentar o próprio peso.
A implaviana amarrou uma túnica simples às pressas ao seu redor e
amparou seus membros fragilizados enquanto sussurrava palavras que seu
cérebro desarranjado se recusou a processar. Ela cheirava a mar. Calmo,
constante, mas também revolto. O mar de um outro mundo.
Apesar de não ser capaz de sentir nem mesmo o dedo mindinho dos
pés, o que quase a fez tombar duas vezes entre passadas descoordenadas, foi
escoltada escadaria acima e através de um longo labirinto de pedras brancas.
Cruzou pontes e distâncias inimagináveis, até chegar às portas de cristal que
reconheceu como as do próprio quarto.
Cansada, jogou-se no assento acolchoado da cadeira em frente à
penteadeira, que exibia uma impressionante coleção de fragrâncias de todo
Belar e, sem saber se estava alucinando, enxergou-se na superfície reflexiva
como uma estátua de ouro puro.
Piscou, agora já mais atenta, e inclinou-se em direção ao espelho.
Com a compreensão dos acontecimentos da noite quebrando como
ondas na praia, seus dedos compridos percorreram a pele sensível do
pescoço, braços e barriga, explorando o próprio corpo como se não mais o
reconhecesse ou pertencesse a outra pessoa.
Estava feito. Mas por que ainda ardia e queimava como se mal
tivesse começado?
Incapaz de quebrar a conexão magnética com o próprio reflexo,
pegou-se analisando a “mais perfeita entre as perfeitas” como não fazia há
muito tempo.
Por incontáveis vezes, ouvira que sua beleza exprimia tudo o que se
desejava para o futuro de Belar e que seu rosto era um verdadeiro encanto,
tão perfeito em simetria que sequer haveria critérios na Academia para medi-
lo e se tornaria o novo parâmetro.
Com os dedos ainda trêmulos, agarrou a própria mandíbula elegante
e virou o rosto de um lado para o outro, procurando por ao menos um
detalhe que a ajudasse a entender por que todos enxergavam nela paz,
enquanto entrevia em si mesma apenas angústia.
Não era nada fácil carregar todas as expectativas do mundo em um
semblante.
Baixou as mãos e deixou que os cabelos compridos e ondulados
escorregassem pelas costas, já quase totalmente secos, apreciando os tons
intrincados de dourado que tomavam cada fio, e sentiu certa satisfação
pessoal.
Se seu destino era um casamento sem amor ou esperança, que ao
menos tivesse a bênção calorosa de Tenar para consolá-la, e não a apatia
indiferente de Ésper.
Um singelo sorriso quis nascer de seus lábios com o pensamento,
mas morreu assim que cruzou os olhos com os de Cília, que a encarava do
outro lado do aposento.
— Com o tempo, você sequer se lembrará de como costumava ser
antes da bênção — a mãe disse, contra todas as suas expectativas, embora
ainda mantivesse a expressão fria. Não costumava ser o tipo de pessoa que
oferecia conselhos, ainda mais de modo tão generoso. — Tenar preencherá
todas as suas necessidades, e você sentirá como se tivesse nascido assim,
completa.
Elya encarou novamente o próprio rosto no espelho, incapaz de dizer
se de fato se sentia mais completa ou preenchida do que no começo da noite,
mas estava certa de que seu pesar não havia diminuído, uma vez que o
Conselho Conubial a aguardava assim que Gautan raiasse. Queria acreditar
que ainda havia tempo para encontrar uma saída daquele destino, porém, a
cada mecha que era desembaraçada pela escova de cerdas macias, ou a cada
fio que era preso em uma intrincada rede de tranças, mais opaca tornava-se a
centelha de esperança.
— Você está bem? — Lyia sussurrou, enquanto supervisionava não
muito impressionada o autômato que decorava seu penteado com pequenas
pedras preciosas alaranjadas.
Cília andava impaciente pelo quarto amplo, dando ordens cada vez
mais sem sentido aos robôs, e parecia prestes a perder a calma assustadora
que fazia dela uma estátua de prata sempre no limite da apatia.
— Definitivamente o oposto disso — respondeu, também baixinho,
aproveitando a distração para falar livremente.
A implaviana fez um gesto com os tentáculos, como se dissesse para
deixar de ser tão dramática.
— O mundo não vai acabar só por causa de um casamento — falou,
soando amargurada. — Acredite, já me casei mais vezes do que deveria ser
permitido por causa de um grande e enorme par de...
— Pelas Soberanas, não ouse terminar essa frase — Elya
interrompeu, empalidecendo.
— Eu ia dizer “tentáculos”. Um grande e enorme par de tentáculos
— esclareceu, com um sorriso travesso se formando no canto da fenda sem
lábios que chamava de boca.
Elya sentiu-se tentada a rir, agradecida por ter ao menos uma amiga
que se arriscaria a dizer coisas obscenas e proibidas, que despertariam a
cólera de todo um planeta, apenas para arrancar-lhe um sorriso em um
momento de desesperança.
— Só está dizendo isso porque, em Impla, você não foi obrigada a
casar com alguém que não escolheu — lamuriou-se.
— Nem você — ela retrucou, baixinho, curvando-se em sua direção.
— Não ainda, e talvez nem seja. Já pensou na possibilidade de que talvez o
Conselho e a combinação não sejam assim tão ruins, menina teimosa?
— Vão me obrigar a casar com um estranho, a ter filhos com ele! —
exclamou, erguendo a voz e arrependendo-se no mesmo instante. Damas
belarianas não se alteravam. — Ou ainda pior: vão me obrigar a casar com
alguém que conheço e não tolero — complementou, fazendo o possível para
se recompor.
A implaviana acariciou sua testa com ternura, em uma intimidade
antiga, antes de dizer:
— Eu a conheço melhor que ninguém, Elya Bespian, e sei que está
com medo. E tudo bem se sentir assim, desde que não transforme o medo em
desculpa. O futuro não se curva a ninguém — complementou, não em
belariano, mas no próprio dialeto, que arduamente ensinava a Elya desde que
se conheceram. As palavras eram fluídas como água, apesar de enrolarem
um pouco na língua, mas soaram claras o bastante para que compreendesse
que nelas havia um enigma.
— Você sabe de alguma coisa que eu não sei — Elya afirmou,
embora pudesse ter sido uma pergunta.
Os três olhos da melhor amiga se arregalaram, e a pele gelatinosa e
moluscular quase chegou a trocar de cor, empalidecendo.
— Pegue o vestido, Lyia, ela já deveria estar pronta — a voz de Cília
interrompeu-as, sempre contida e cadenciada. — E restrinja-se ao belariano
quando em serviço.
Lyia fez um gesto respeitoso com a grande cabeça de molusco,
murmurando um pedido de desculpas, e se afastou. Quando retornou, trazia
com o auxílio dos autômatos um traje belariano tradicional completo. Elya já
havia visto centenas (milhares) de trajes como aquele desfilando durante a
noite mais longa de cada ciclo desde que nascera, elegantemente envolvendo
belarianas reclamadas por Tenar ou Ésper nos bailes do Conúbio. Entretanto,
naquela noite mais longa do ciclo, tudo parecia...
Maior.
Mais imponente. Prestigioso. Espalhafatoso.
Estava nos gestos cada vez mais destemperados da mãe, e nos
segredos do pai. Nos planos dos quais ela não podia participar, nas conversas
interrompidas toda vez que se aproximava...
E embora a sociedade belariana prezasse pela equidade, manifestada
na forma da mais absoluta equivalência de condições, oportunidades e
riquezas para todos, não conseguia afastar o pensamento de que os Bespian
haviam encontrado uma forma de transformar sua maioridade em um
espetáculo.
Deixou-se ser vestida como uma boneca inanimada com o corpete
apertado, que pouco lhe deixava respirar, e as saias de delicada constituição,
formadas por inúmeras camadas de tecido negro como a noite sem estrelas,
que se sobrepunham de modo a imitar o desabrochar de uma flor abaixo da
cintura. Em cada uma das mãos, vestiu luvas que lhe chegavam até muito
acima dos cotovelos, feitas para impedir qualquer toque íntimo em público
agora que se tornara mulher.
Desceram por sua cabeça a última camada do traje, abotoada nas
costas, e posicionaram a extensa cauda, bordada lindamente com os
símbolos das Soberanas em quase total eclipse.
Ouviu quando Cília deixou escapar uma pequena exclamação de
contentamento, o que a fez despertar do transe no qual forçou-se a entrar.
Mirou-se no espelho.
— Pronta para servir ao seu propósito? — a mãe perguntou, como se
recitasse um discurso ensaiado; como se entre elas não houvesse nenhum
outro laço, a não ser o do dever.
Elya quis responder que não. Quis responder que renunciaria a tudo,
apenas para ser deixada em paz. Contudo, apenas assentiu da forma mais
delicada que podia, enquanto uma ideia lhe invadia cada pensamento e cada
respiração.
Se o futuro não se curvava para ninguém, ela também não se
curvaria.
Nenhum belariano jamais soube quem ou o que era exatamente o
Conselho Conubial.
Por lógica, não poderia tratar-se senão de uma instituição composta
por anciãos muito sábios, versados na língua do tempo e que previam, com
alta taxa de acerto, acontecimentos futuros desde sua mais infinitesimal
variação.
Ainda que esta fosse a teoria mais aceita pela sociedade científica —
pois a ideia de videntes, oráculos e todo tipo de adivinhos era bem difundida
no Sistema Exterior —, residia nela um problema fundamental que nenhum
estudioso, nem mesmo os filósofos da Academia, conseguira solucionar:
nunca se viu homem ou mulher entrar ou sair do Conúbio, a bela construção
onde o Conselho reunia-se para decretar suas sempre surpreendentes
combinações. Lá tampouco era ou um dia fora, desde que se tinha registro,
requisitado o trabalho de autômatos ou outros seres vivos para garantir o
bom funcionamento e a ordem, nem qualquer sorte de recurso orgânico ou
energético.
O Conselho operava de forma independente e não respondia ou se
reportava a ninguém, nem mesmo ao Governador Bespian. As decisões e
previsões eram apenas comunicadas e tornavam-se lei.
Ao amanhecer da noite mais longa do ciclo lunar, as portas abriam-se
para receber as mulheres — somente mulheres — abençoadas por Tenar e
Ésper. Ao fim da combinação, voltavam a se fechar, impenetráveis, até que
tudo recomeçasse no ciclo seguinte.
Sua pequena nave de viagem interna sobrevoava a península banhada
por um mar calmo e límpido, onde erguia-se o imponente Conúbio, tal qual
uma cornucópia divina esquecida em terra firme por descuido. Na espuma
das águas, criaturas com rabos luminosos dançavam ao som de uma música
própria, regozijando-se com o suave embalar das ondas em eterna crista, e
chegavam o mais perto que podiam da terra, como se impelidas pela curiosa
bruma que, vagarosamente, encobria tudo. Mas, alheia a essa calmaria, Elya
torcia nervosamente as mãos junto ao colo, achando difícil respirar.
Cília estava acomodada no assento logo à frente, com os membros
longos esparramados de forma teatral, perdida em pensamentos. Não
trocaram uma só palavra durante todo o percurso — o que, no começo,
pareceu excelente, mas passou a incomodar a filha. Para qualquer reclamado
por Tenar, a frieza dos filhos de Ésper era dolorida como uma ferida que
nunca cicatrizava, e, para Elya, cujo fogo da bênção ainda queimava, a
aflição era uma inquietante agonia com a qual não sabia lidar.
Sendo honesta consigo mesma, ainda não sabia lidar com muitas
coisas; afinal, no começo da noite, era considerada criança, e fora
transformada em mulher apenas por um capricho celestial. Seus cabelos e
olhos poderiam ter mudado — talvez até mesmo algo em seu íntimo, que
ainda não tivera a oportunidade de perceber —, porém continuava a se sentir
a mesma menina.
Havia perguntado à mãe o que esperar do Conselho Conubial muito
antes daquela terrível sombra aproximar-se tão definitivamente de sua vida,
bem como a uma ou outra amiga que já havia passado pela experiência, em
busca de pelo menos um pouco de consolo, porém as respostas sempre eram
vagas e inexatas.
Não se recordavam da experiência em quase nada.
Tudo havia sido como um sonho há muito esquecido, do qual restara
apenas um nome, um rosto ou uma sensação…
Sentiu vontade de perguntar novamente, uma vez que não havia nada
nem ninguém além delas e dos elegantes painéis da nave que piscavam de
forma ininteligível a seus olhos leigos, mas o medo da resposta a impediu.
O conselho em implaviano de Lyia repetia-se no fundo de sua mente,
como se gravado em cada célula. Ela queria ser capaz de mudar o próprio
futuro, mas mesmo de suas mãos de longos dedos escorria a oportunidade —
ou talvez a possibilidade.
Remexeu-se, pensativa, entre todas as camadas de tecido que a
embrulhavam, e voltou a atenção novamente para as janelas e o mundo do
lado de fora, tão irreal e, ainda assim, o único que conhecia bem o bastante
para amar e até mesmo odiar.
Nada era longe demais quando se estava a bordo das elegantes e
eficientes naves belarianas, e o trajeto logo terminou quando se viu rodeada
por naves quase idênticas a sua, que cruzavam o céu silenciosamente vindo
de todas as direções do grande continente, convocadas pela tradição e pelo
dever.
A altitude baixou, e uma plataforma foi delicadamente estendida e
inflada, atingindo a consistência de um tubo de vidro cristalino, ligando o
interior ao mundo lá fora. Mãe e filha ergueram-se para cumprir os papéis
que lhe haviam sido determinados.
Elya mordeu as bochechas por dentro e cerrou os punhos, segurando
a fúria que queimava e queimava em seu cerne, cada vez mais alimentada
pela proximidade da combinação que, por tanto tempo, abominou. Seus
olhos dourados mantiveram-se fixos nos prateados de Cília enquanto entrava
no tubo, em desafio. De repente, a mãe abriu a boca, parecendo que, pela
primeira vez, iria dizer-lhe algo importante de verdade, em vez de discursos
ensaiados sobre honra ou tradição.
Algo espontâneo.
A expectativa do momento preencheu o espaço, enquanto os traços
sempre duros e sem emoção transformavam-se, abandonando a máscara. Por
um breve instante, a verdadeira Cília surgiu, em enorme tormento, porém os
lábios logo tornaram a se fechar e a sua apatia habitual retornou ao rosto.
Elya percebeu que ela havia desistido; não naquele momento, mas há muito
tempo.
Renunciado a toda e qualquer verdade que viesse do coração.
Por isso, para poupar ambas de mais embaraço e decepções, como
claramente eram uma para a outra, deixou-se levitar em baixa gravidade em
direção ao chão, enquanto assistia Gautan nascer e seus primeiros raios
rubros atravessarem as nuvens.
A bola incandescente e alaranjada do magnífico guardião preencheu
todo o céu, tão próxima que fez seus olhos arderem, e as criaturas da manhã
ergueram-se entre as folhagens e sobre os picos das montanhas, batendo
graciosas asas de plumas.
Voar em direção a Gautan significaria ruína, porém por natureza não
conseguiriam evitar. Quando entraram em contato com as fagulhas,
desfizeram-se em cintilas, que brilharam como estrelas fora do próprio
tempo.
E então Elya perguntou-se por que todos os seres acabavam atraídos
por aquilo que os destruiria.
Um passo.
As portas do Conúbio não pareciam abertas — ao menos, não da
forma como as imaginara. — Eram como grandes placas partidas, e, no
entremeio das rachaduras, damas belarianas vestidas com o traje típico
passavam, uma após a outra. Eram todas concebidas e nascidas na mesma
noite que Elya. Não por coincidência, mas por determinação.
Dois passos.
Como tudo no planeta da perfeição, cada detalhe fora
cuidadosamente planejado e executado para garantir o resultado esperado.
Há mais de mil e quinhentos ciclos não acontecia um nascimento fora
daquele dia, que sucedia a noite mais longa.
Três passos.
A procissão de abençoadas seguiu silenciosa, em uma dança de
cabelos dourados e prateados recém-adquiridos e camadas de tecido, com
ordem e calma, coordenadas por algum tipo de recepção imaginária que
indicava o que fazer.
Quatro passos.
Estavam sozinhas na península, onde nem pai, nem mãe, nem irmãos
eram autorizados a descer no dia da combinação. Do interior escuro da
construção, nada era possível divisar, senão uma névoa mística que as
engolia, sem deixar escapar luz ou som.
Cinco passos.
Sua presença foi logo percebida, apesar do nervosismo e euforia que
carregavam a atmosfera de egoísmo. Ela era a profetizada; a luz e esperança
do futuro. Seu rosto impossível de esquecer — ou evitar.
Seis passos.
Suas vestes foram tocadas por muitos dedos, e logo ficou evidente
que, como suspeitara, elas eram em muito mais opulentas e elaboradas que
as das demais belarianas, mesmo que todas viessem de famílias tão grandes
em riqueza quanto a sua. Mas não era a riqueza que lhe impunha o direito,
tampouco a obrigação, de ser a Messias que todo Belar ansiava. Era o título.
A mais perfeita entre as perfeitas.
Sete passos.
Seus olhos encheram-se de lágrimas, porém nelas não havia nem um
resquício de emoção ou orgulho, como esperava-se que sentisse por ter sido
agraciada com tamanha honraria.
Oito passos.
Determinada a não demonstrar ainda mais sua fragilidade, voltou as
írises para cima, incapaz de reconhecer a própria nave em meio a tantas
outras que pairavam. Soube que Cília a assistia e que não poderia fugir da
tradição sem tornar-se uma desgraça para si mesma e para sua família.
Nove passos.
As portas elaboradas e repletas de adornos estavam bem à sua frente,
imponentes em toda a sua complexidade simplista, como se esculpidas para
deuses.
Dez passos.
Um mar de vestidos recuou, deixando livre a passagem para Elya.
E ela sumiu dentro da névoa.
A escuridão dentro do Conúbio era densa, tão ausente de vida que
parecia sequer existir, e embora Elya tivesse a certeza de que as pernas ainda
se moviam, o eco de seus passos era incessantemente engolido, de modo que
não sabia se marchava no mesmo lugar ou seguia em frente.
Com a sensação de que estava deixando algo essencial passar
despercebido, tentou falar e chamar pelas outras garotas, perguntar se
entendiam o que era esperado delas, mas suas palavras foram silenciadas
antes mesmo de deixarem a ponta da língua.
Aflita, esforçou-se ao máximo para parar e organizar os
pensamentos, porém os pés seguiram em frente, como se não dependessem
mais de seus comandos.
Incapaz de agir de outra forma, prosseguiu assim por um tempo que
não saberia medir, pois nem uma coisa, nem outra, existia naquela estranha
dimensão, e foi somente quando a exaustão ameaçou baixar por sobre ela e
vencer o pouco de resistência ao exercício que seu gênio ainda impunha que
a névoa se dissipou.
Paredes de uma pedra branca e imaculada apareceram, formando um
longo corredor obscuro cujo fim ou começo pareceu-lhe impossível de
identificar à pouca luz. A bruma densa acomodou-se junto aos cantos,
tomando forma de longas e rudimentares tochas, cujo uso e nocividade havia
apenas ouvido falar em aulas de história.
Seu olfato foi tomado por aromas tão incomuns em Belar que, por
um instante, imaginou-se em outro planeta, na antiga Terra de seus
antepassados, tocando com a ponta dos dedos enormes campos de sândalo e
agulhas de pinheiro, enquanto o mar, salgado, quebrava em encostas
escarpadas. Depois, sentiu o cheiro úmido das florestas, onde criaturas vis
cresciam ao lado de criaturas belas e onde morte e vida uniam-se em uma
dança de iguais.
Tais conceitos, imagens e nomes eram quase alienígenas para ela,
nascida milhares de ciclos depois que a humanidade se lançou no espaço e
colonizou mundos como Belar, o planeta da perfeição, onde não existia
decomposição nem morte, e tudo era centelha de luz.
Com as sensações fazendo as mãos latejarem e uivos de animais
estranhos ecoando através das pedras, que por vezes tomavam a forma de
troncos de árvores cobertos de musgo, cruzou o corredor estreito com
desconfiança. Ao seu redor, o ar frio e salgado queimando suas bochechas
estalou e crepitou como fogo, e palmas e passos ressoaram em uma
coreografia cujos passos desconhecia. Ela rodopiou contra a vontade, feito a
marionete de um Deus mais antigo que Tenar, Ésper ou Gautan.
À sua frente, uma porta surgiu conjurada por névoa, entalhada em
madeira putrefata, e abriu-se com um ranger dolorido, convidando-a a entrar.
Elya esperou que os pés a impelissem para frente, como haviam feito por
toda a jornada, porém nem um único passo foi dado contra sua vontade.
A mensagem era clara: a decisão era dela.
Movida pela curiosidade de saber o que havia além da fresta escura,
atravessou-a, apenas para encontrar-se encerrada no interior de uma sala
coberta de espelhos, que refletiam os milhares de milhões de Elyas que
poderia vir a ser diante da menor das variantes. Seu futuro estava ali
completamente desvelado, sem qualquer mistério. Se esticasse as mãos,
poderia tocá-lo.
Piscou diversas vezes, perdida em meio a tantas versões de si mesma,
até que uma Elya em particular lhe chamou atenção: um reflexo perfeito de
sua aparência, porém estranhamente feliz; preenchida com um sentimento
que sempre lhe parecera inalcançável.
Seus olhos dourados fixaram-se nos exibidos pelo reflexo, muito
mais brilhantes e repletos de propósito. Não era ela de verdade, não se
deixaria enganar, mas naquele momento desejou que fosse, pois nem todas
as riquezas e os luxos de um planeta perfeito conseguiram satisfazê-la.
O que queria não possuía preço, não poderia ser comprado, nem
concedido.
Precisava ser conquistado.
Aproximou-se alguns passos da superfície reflexiva, que foram
imitados pela versão exibida no espelho, e a conexão entre elas tornou-se tão
intensa que fez tudo se estilhaçar em milhares de pedaços. Temendo o que o
impacto dos fragmentos poderia causar-lhe, ela ergueu os braços para
proteger o rosto e se curvou. Contudo, a chuva de estilhaços jamais a atingiu,
pois havia sido transformada em fumaça antes mesmo de chegar ao chão.
Completamente atônita, olhou ao redor sem mais reconhecer a sala,
pois não havia mais reflexos, tampouco espelhos ou portas estranhas para
observar. Estava no centro de um grande salão de baile, enfeitado por
imponentes colunas de pedra branca e lustres que desabrochavam do teto
como flores. Ao seu redor, casais rodopiavam, felizes e corados pelo esforço.
Uma melodia melancólica ecoava, mais distante, do pianoncelo
disposto ao fundo do salão, que um aldaviano dedilhava de forma impecável
— nenhuma outra raça, com menos braços, seria capaz de tamanho feito. Ao
redor do instrumento, minúsculos seres bioluminescentes flutuavam em
espiral, como um cardume. Cada vez que se impulsionavam para frente com
as pequenas asas — ou nadadeiras —, deixavam escapar um tilintar que
acompanhava as sutilezas da harmonia.
Elya passeou pelo salão de forma cautelosa, fitando rostos que,
curiosamente, lhe eram muito conhecidos. Viu os Bart, os Berk e os Barar.
Viu suas amigas, Lilith e Prya, acenando uma para a outra alegremente da
pista de dança, e os trigêmeos Alur, Asbec e Ather, que a reverenciaram em
um gesto quase coreografado, com os cabelos compridos brilhando em prata
liquefeita.
— Elya Bespian — chamou uma voz, cortando o ar e causando-lhe
dolorosos arrepios. Carregava o crepitar das fogueiras, a brisa doce dos
campos e o cheiro úmido das florestas. A madeira, o ferro e o sangue.
O futuro, que jamais se curvava, e o passado, que jamais se
alcançava.
Uma voz familiar.
Tão familiar, que soava estranha.
— Tudo em breve mudará, mas seu coração permanecerá o mesmo
— a voz prosseguiu, como se estivesse não apenas dentro de sua cabeça,
mas em toda parte, pulsando junto às paredes com o ribombar do sangue em
seus ouvidos. — Respeite-o. Ouça-o. Dentro dele encontram-se todas as
respostas de que precisa. E segure a mão daquele que a estende sem temer,
assim nunca estará sozinha.
Então se foi.
Elya absorveu as palavras e as repetiu, na própria cabeça, incontáveis
vezes. Imaginou que, após um tempo remoendo a revelação, o prenúncio
estranho, as coisas começariam a fazer algum sentido.
Não fizeram.
A valsa de Belar ecoou pelo salão e, ao redor da pista, homens e
mulheres se alvoroçaram, convidando parceiros para executar a tão
tradicional dança. Os instrumentos aceleraram o ritmo, crescendo no
compasso, e ela odiou-se por não ser capaz nem mesmo de entender a
sentença que era imposta sobre sua vida.
Foi quando um pigarro a sobressaltou.
— Srta. Bespian — chamou uma voz masculina e tímida. —
Permita-me dizer, se não for muita ousadia, que sua beleza estonteia meus
sentidos e me tira o sono. — Sem esperar qualquer sinal da parte dela,
continuou: — O dourado lhe cai muitíssimo bem. Me concederia a honra
desta dança?
Elya apertou os olhos, um tanto quanto surpresa, e virou-se para
encarar o rosto que lhe fazia tão indecoroso e aberto elogio. Era Ather
Boglian, um dos trigêmeos.
— Você ouviu essa voz? — adiantou-se, ignorando por completo o
convite, enquanto apontava para cima e para todos os lados. Deveria parecer
uma completa louca. — Ouviu o que disse?
A expressão de Ather tornou-se confusa por um momento, porém
antes mesmo que pudesse formular uma resposta, foi interrompido por outro
convidado não anunciado.
— Ora, Boglian, chegou mesmo a considerar que uma criatura tão
perfeita e rara como a srta. Bespian dançaria a valsa de Belar com um tipo
como você? — desdenhou Erik Bart. — Srta. Bespian, o dourado lhe cai
bem — repetiu a cordialidade. — É uma honra estar em sua presença e me
sentiria ainda mais honrado se me concedesse...
— Para trás, Bart — advertiu Anders Berk, com certa ferocidade no
olhar. Suas famílias eram antigas antagonistas, embora coisas como
violência não existissem em Belar e discussões ou joguetes fossem
reservadas aos inflamados espíritos jovens. — Não vê que está desagradando
a delicada dama com essa sua cara feia? — Ele se voltou para ela. — Srta.
Bespian, o dourado lhe cai bem, e sua beleza é fascinante. Me ponho aqui,
como um eterno servo, a seus pés. Me concederia a honra desta dança?
Elya não compreendia o que estava acontecendo. Perdida, olhou para
o mar de casais ao seu redor, que se estendia pelo salão a perder de vista,
pela primeira vez reparando nas damas vestidas com o traje belariano típico,
como o seu, e nos sussurros, muitas vezes apaixonados, de “o dourado lhe
cai bem” ou “o prateado lhe cai bem”.
Não poderia ser outro senão o Baile do Conúbio, em que damas e
cavalheiros eram apresentados pela primeira vez à sociedade belariana como
filhos de Tenar ou Ésper, passado o ritual, e o laço da combinação decretada
pelo Conselho Conubial aflorava na forma de um chamado fulminante que
unia os casais em perfeição.
— O dourado lhe cai bem, srta. Bespian — outro cavalheiro saudou-
a, já com a mão estendida para convidá-la para valsar. Foi levemente
empurrado para o lado por outro trigêmeo Boglian, que se aproximou com
um sorriso presunçoso demais, até para um belariano.
Os olhos prateados do filho de Ésper não escondiam a expectativa, e
Elya subitamente deu-se conta do motivo pelo qual todos os cavalheiros não
comprometidos do salão pareciam acotovelar-se para chegar até ela:
esperavam ser sua combinação.
Afinal, que homem não gostaria da honra de ser combinado com a
mais perfeita das perfeitas? O futuro de Belar entrelaçava-se também com o
seu; residia em seu ventre, que geraria os filhos do progresso. Não havia um
só belariano que pudesse se conter com a possibilidade de participar de tal
concepção.
Elya sentiu que os pulmões se comprimiam sob o espartilho apertado
e que os seios acabariam pulando do decote por serem tão descaradamente
encarados conforme os convites para a valsa multiplicavam-se. Viu-se presa
e sufocada em meio a tantos pedidos e mãos estendidas que, ignorando as
tradições, ameaçavam tocá-la.
Não sabia onde estavam os pais, nem Lyia, e tentou gritar para que
todos se afastassem, mas a voz não deixou a garganta. As paredes de pedras
fecharam-se ao seu redor, diminuindo e diminuindo, até que estivesse, ela
própria, bem pequena em um mundo que começava a escurecer.
É apenas um sonho. É apenas um sonho. É apenas um sonho.
Sentia-se caindo, afundando na própria consciência e na respiração
acelerada, quando subitamente uma mão enluvada quebrou a barreira e se
estendeu bem à sua frente, sem apresentação nem saudação.
Elya não sabia a quem pertencia, nem com que intuito lhe era dada,
porém ela a segurou com mais força do que jurou possuir e de forma
decidida foi puxada para fora da armadilha de corpos, protestos e pedidos.
Então ela o viu, e foi como se...
O tempo parasse.
— Ulian?
A voz que o chamava era uma brisa. Um sopro.
— Ulian? Acorde.
Suas pálpebras descolaram-se com muito custo, e ao alcance da visão
embaçada surgiu Elya, ajoelhada e com uma expressão preocupada nos
traços do rosto.
Com o retorno da consciência, seu corpo todo pesou e reclamou,
dolorido, e ele se deu conta de que havia adormecido sentado junto à porta e
com os braços cruzados, que, naquele momento, estavam dormentes. E o
mais importante: deu-se conta de que os eventos da noite anterior não foram
um sonho.
— Elya — murmurou em reconhecimento.
As feições dela se iluminaram, como uma manhã beijada pelos
quentes raios de Gautan, e ela tomou suas mãos em um gesto totalmente
inesperado e inapropriado.
Mas talvez já houvessem cruzado aquela linha.
— Sim, sou eu — falou, tão doce que poderia mergulhar em seu
timbre e nunca mais emergir. — Você ficou aí sentado a noite toda?
Meneou a cabeça em sinal positivo, ainda confuso.
Não queria que ela soubesse, uma vez que havia planejado ter
despertado muito antes, porém jamais teria uma noite tranquila se a deixasse
sozinha, ao alcance de qualquer olhar curioso que cedesse à tentação de abrir
a porta para dar uma boa espiada na tão misteriosa dama belariana. A virtude
dela era o que de mais caro possuía, ali, para defender.
Ela se surpreendeu e levou as mãos à boca, levando também o fogo
que dançava na ponta de seus dedos, onde haviam se tocado.
— Me desculpe, eu não queria... Estava muito cansada, e você
demorou, então decidi me deitar só um pouco... A verdade é que não durmo
há muitas noites — confessou, abaixando os olhos, como se estivesse
envergonhada. — A criogenia não conta, pois não é verdadeiramente um
descanso...
Ulian moveu o corpo e instintivamente inclinou-se na direção dela,
dirigindo-lhe um olhar inquisitivo. Uma faísca os conectou, ameaçando
iniciar um incêndio, quando finalmente indagou:
— Por que você está aqui, Elya?
Mas, no instante em que as palavras lhe deixaram os lábios, desejou
jamais tê-las pronunciado, pois uma teoria se formava no fundo de sua
mente, e Ulian temia, como jamais temera algo na vida, de que estivesse
correta.
Tinha medo de que, no instante em que soubesse a razão pela qual
Elya Bespian estava em Colossus, precisasse mandá-la embora.
— Vieram chamá-lo — ela desconversou, dando-lhe as costas com a
mesma graça fluída que exibia em cada movimento. — Bateram algumas
vezes e disseram algo sobre leituras, o que parecia importante. Isso faz
algum sentido?
Ele também se colocou em pé, e, por um momento, encararam-se em
silêncio. Então, os olhos grandes e dourados dela aumentaram ainda mais de
tamanho quando se focaram em seus ombros e desceram para o peito e a
barriga com uma intensidade desconcertante, e Ulian teve a sensação de que
a estava expondo a algo indecente ao dar-se conta de que estava vestido
apenas da cintura para baixo.
— Desculpe, Bespian, mas você tomou minha única camisa
confortável — justificou-se, com a voz vacilando, enquanto se apressava em
direção ao compartimento. Sua tentativa de ser engraçado soara fraca até
mesmo para ele.
Pegou dependurada uma camisa de gola tão alta que chegava a seus
angulosos maxilares — talvez não muito confortável para um dia de trabalho
em campo, mas, desesperado como estava para se cobrir, pouco se importou
com o bem-estar.
— Não consegui encontrar seu traje ontem, sinto muito —
acrescentou, evitando encará-la. — Pegue o que mais desejar entre as
minhas roupas, e prometo voltar no fim do turno da escavação com mais
tempo para procurar.
Não recebeu nenhuma resposta.
O silêncio pareceu estranho e pesado, mas enquanto se vestia
agradeceu por não precisar falar mais nada. Foi só quando se afastou do
compartimento que descobriu que Elya o mirava com intensidade e viu-se
obrigado a ceder à gravidade das írises douradas e abrasadoras. Como se
houvesse se passado algo entre eles que lhe escapara naquele instante, os
traços suaves dela se endureceram, inacessíveis, e a distância que se
impunha de repente pareceu muito maior do que aquela que poderia tolerar.
— Por que perdeu o meu baile? — ela indagou, e pôde sentir toda a
profundidade amarga da pergunta lhe invadindo. Ela estava triste e
magoada. — Você sabia da minha maioridade e, ainda assim, aceitou vir
para essa expedição. Você sabia, Ulian. Você sabia.
Uma acusação justa, para a qual jamais poderia oferecer explicação,
pois como confessar que era covarde e havia, simplesmente, fugido?
— Você não respondeu minha pergunta, então me sinto no direito de
também não receber a sua — foi tudo o que conseguiu dizer antes que a
garganta se apertasse e a voz sumisse, acovardando-se da mesma forma que
naquela noite em Belar. Ele pigarreou. — Vou lhe mostrar como as coisas
funcionam aqui antes de sair para as escavações.
Ela virou-se em uma cascata reluzente de cabelos dourados. As írises
estavam em chamas.
— É claro, não desejo atrapalhar nenhum de seus planos.
Ulian engoliu em seco, sentindo-se levado à beirada de um abismo,
porém fez o possível para focar-se no trabalho que precisaria realizar
naquele dia — a verdadeira razão de estar em Colossus —, e não nos
humores dela.
Elya era um acontecimento fortuito, um acaso passageiro.
Eventualmente, retornaria à Belar e a seu lugar de mais perfeita entre as
perfeitas, deixando-o sozinho, como sempre fora. As escavações e os dados
— sua pesquisa —, por outro lado, permaneceriam.
Dormira demais e, certamente, um dos companheiros da expedição
teria assumido seu turno, para que a exploração não fosse comprometida
com os acontecimentos inesperados; por isso, imaginara encontrar o
refeitório, onde reuniam-se para fazer as principais refeições, completamente
vazio.
Ao adentrar no amplo salão, contudo, deu-se conta de que a
curiosidade científica era de fato forte demais para ser ignorada,
independentemente da raça em questão, pois muitos ainda estavam ali,
esperando para ter apenas um vislumbre da misteriosa dama belariana.
Talvez já muito acostumada a receber tanta atenção, Elya em nada
pareceu se afligir e, com descabida doçura, juntou as mãos na frente do
corpo, bateu as pestanas e, simplesmente, sorriu. Sorriu como se fosse uma
estrela, um centro de gravidade. A matéria da qual todas as coisas foram
criadas e para a qual todas as coisas retornariam.
E ele repreendeu-se por sentir que ela detinha uma parte tão grande
de si próprio.
Exclamações foram seguidas de um desordenado empurrar de
cadeiras, até que Ulian deu-se conta de que ela havia sido cercada por
homens afoitos que, ignorando todo o bom-senso, esticavam mãos,
tentáculos e antenas em cumprimentos de boas-vindas.
— Pelas Soberanas, parem com isso! — disse, com o timbre
poderoso reverberando pelas paredes de liga metálica. — Uma dama
belariana não deve ser tocada por mãos masculinas, a não ser as de seu
próprio pai, irmão ou marido — recitou, odiando-se por ter invocado com
tanta facilidade uma tradição que desprezava.
Seus companheiros murmuraram muitos pedidos de desculpas no
idioma universal que compartilhavam na expedição, assim como em seus
próprios dialetos. Por fim, acabaram se encaminhando para as funções
designadas, satisfeitos por constatarem que a belariana era ainda mais
magnífica do que imaginaram, mas infelizes por não poderem reivindicá-la,
como fariam com uma descoberta. Elya, todavia, apenas o encarou com as
írises douradas faiscando com intensidade e, delicadamente, aceitou os
suplícios sem quebrar o contato visual nem por um ínfimo instante.
Certo de que aquela atenção iria levá-lo à ruína, Ulian afastou-se e
pediu aos autômatos dispostos junto às paredes por refeições preparadas com
os néctares e frutos belarianos enviados exclusivamente para sua dieta,
sequer lembrando-se de que tudo havia sido provisionado com exatidão para
durar até o fim da expedição. Quando duas tigelas de cristal foram
depositadas na mesa, ao lado de dois copos repletos de um chá espesso e
fumegante, ela finalmente concentrou-se em comer, e ele pôde relaxar.
Ulian sabia e sempre temera essa única verdade: quanto mais dela
tinha, mais dela queria.
Ulian queria mentir para si mesmo e acreditar que o dia passado em
campo havia sido um deleite para qualquer cientista e que os achados em
Colossus, ligados às variações temporais, eram talvez a maior descoberta de
seu tempo, caso conseguisse dar a eles algum sentido.
Mas quem esperava enganar?
A verdade é que apenas conseguia pensar em Elya, e até mesmo a
mais empolgante revelação acabou perdendo o brilho quando lembrou-se
dela, tão longe de tudo o que conhecia e sozinha em uma enfermaria apática,
aos pés de uma cama médica.
Ao fim de seu turno, que perpassou como se o tempo houvesse
decidido se esticar e tornar-se ainda mais lento à mercê do buraco negro no
horizonte, retornou à nave acidentada, como prometido, para vasculhar
câmaras e compartimentos ainda não vistoriados. Quando finalmente
encontrou dependurado um traje branco tipicamente belariano, acompanhado
por sapatos de finas tiras, além de luvas sedosas e um par de brincos
brilhantes que se derramavam como estrelas, foi tomado por uma
desproporcional felicidade.
Ele os conhecia muito bem: os havia escolhido especialmente para
ela. Um presente tão simplório... Jamais imaginou que ela os usaria.
Temendo contaminar com poeira vermelha os pertences preciosos,
colocou-os dentro de um saco hermético com todo cuidado para levá-los de
volta à base da expedição, assim como algumas provisões que não haviam
perecido no momento do impacto. Quando seus olhos vislumbraram a tenda
fortemente iluminada, o coração teimou em acelerar, repleto de expectativa.
Foi recebido pelos colegas que transitavam pelos corredores com
empolgação e parabenizado de modo enfático pela importância das
descobertas feitas. Enquanto discutiam dados de forma casual, quase foi
capaz de esquecer que havia uma mulher belariana em seu alojamento,
deitada em sua cama e vestida com suas roupas.
Seu corpo, entretanto, se lembrava muito bem.
Assim que encontrou uma brecha nas conversas, pediu licença, sob o
pretexto de se lavar, e subiu as rampas, odiando-se, a cada passo, por dar
mais importância ao que Elya pensaria de seu esforço em encontrar as
roupas dela do que a seus próprios achados científicos.
Com o fôlego cada vez mais escasso, descalçou os sapatos e alisou o
macacão empoeirado antes de bater à porta.
— Entre.
— Elya — cumprimentou, ao cruzar o portal, que se fechou às suas
costas.
— Ulian — ela replicou, sentada na beirada da cama e com o corpo
enrolado nos lençóis e os cabelos dourados pingando, como se houvesse sido
surpreendida saindo do banho.
Certo de que a perspectiva de nudez o deixava cada vez menos
desconfortável e que aquela intimidade era senão um erro terrível, esticou o
pacote com os pertences dela, como se fizesse uma oferta de paz após os
acontecimentos da manhã.
Era um homem racional, repetiu para si mesmo.
Um homem de moral irrenunciável, reforçou.
— Como prometi.
Elya arregalou os olhos, surpresa, e seus lábios curvaram-se em um
sorriso grandioso e sincero. Com toda a determinação que possuía, Ulian
tentou não os encarar, e quando os olhos, a muito custo, obedeceram, sentiu-
se vitorioso. Costumava deter aquele tipo de controle sobre o próprio corpo e
pretendia retomá-lo a todo o custo.
— Oh, obrigada! — ela agradeceu, rodopiando pelo pequeno espaço
livre do aposento como se valsasse. — Estava aflita, me perguntando se
precisaria cortar todas as suas roupas para que coubessem em mim.
Ulian coçou a cabeça, confuso.
— Como assim “todas”? Você já cortou alguma?
O sorriso dela alargou-se.
— Não se preocupe, só estou implicando com você. — Os longos
cílios dourados bateram nas bochechas coradas de modo tímido. — Soube
que fez uma grande descoberta hoje. Me disseram que você é físico. É
verdade.
Ele assentiu.
— Parece uma ocupação importante... Seus colegas o estimam muito,
por aqui. Se eu fosse você, me lavaria e colocaria um traje à altura dos salões
de Baile de Belar, pois parece que estão todos ansiosos para comemorar.
Novamente a confusão o tomou e talvez tenha ficado muito evidente
em seu semblante, pois ela continuou:
— Foi seu amigo quaarsariano quem me disse — esclareceu. —
Edon, certo? Ele é um tipo muito curioso, mas nunca havia conhecido um
quaarsariano antes, então posso estar apenas um pouco impressionada com
todo aquele... — Mordiscou o lábio, pensativa. — Tamanho.
Aquelas palavras, na boca dela, soavam como uma deliciosa
obscenidade, mas Ulian apenas concordou com a cabeça, indagando-se
silenciosamente em qual momento Elya e Edon haviam encontrado tempo
para interagir.
— Eu vou...
Ela ergueu as sobrancelhas, esperando que continuasse.
— Me lavar — finalizou, com uma deixa.
— Aproveite o banho — Elya desejou, de uma forma que soou quase
cruel para alguém tão delicada.
Será que sabia do que havia feito pensando nela?
Ele seguiu para o lavabo e engoliu em seco quando a porta se fechou.
Encarando o próprio reflexo, reconheceu o sofrimento e o esforço nos
contornos dos olhos. Ao menos estava sozinho.
Com medo de repetir a alucinação da noite anterior, cuidadosamente
retirou o macacão e entrou debaixo d’água com ambos os olhos bem abertos.
Esfregou-se sem nenhum cuidado ou delicadeza; ainda assim, seus dedos
teimaram em confundir-se com os dela e, desesperado para livrar-se da
sensação de Elya Bespian junto de si, enxugou-se mais que depressa.
Abriu uma fresta da porta, temeroso do que encontraria, mas, ao se
dar conta de que o aposento estava vazio, respirou com alívio e largou a
toalha sobre a cama, aproveitando a privacidade que, tão de repente, lhe fora
tirada.
Vestiu uma camisa esvoaçante, que evidenciava o pescoço longo e o
peitoral, e calças justas e escuras. Por fim, cuidadosamente abriu um
embrulho onde repousava um de seus brincos compridos, decorado com
estrelas douradas, que passou com habitualidade pelos furos feitos na orelha.
Os tecidos ricos e macios, assim como o peso tão familiar da joia,
fizeram-no sentir em Belar, mas foi somente ao vislumbrar Elya Bespian no
refeitório que ele, finalmente, sentiu-se em casa.
Lyia detinha um conhecimento que, para ela, valia mais que qualquer
metal ou pedra preciosa. Mais que frotas estelares inteiras, tronos ungidos
em glórias, títulos ou magias antigas e fundamentais.
Ela sabia sobre o futuro. E o que seria mais raro e mais difícil de
obter do que um vislumbre de um tempo ainda oculto e que não pertencia a
nada nem ninguém, senão à vontade dos deuses?
A vida em Belar era confortável e repleta de uma opulência sem
esforço, e Lyia não podia negar que deixara-se levar por aquela amálgama de
perfeição até que a própria realidade se enfraquecesse, e o ódio que sentia
pelo oráculo que habitava em si fosse dissolvido em esperança.
Não raro, no entanto, os pensamentos traiçoeiros invadiam seus
momentos de paz, como se fossem ramos venenosos, crescendo em
espinhos, talvez para impedir que se esquecesse de quem era e,
principalmente, do que fizera. E quando as lembranças vinham, recordava-se
de que aquele presente era uma verdadeira maldição, pois se nem mesmo em
Impla, onde os oráculos haviam nascido, acreditava-se mais em suas visões,
por qual motivo outros o fariam?
Ainda assim, uma ideia formava-se em sua mente enquanto Elya a
levava para fora da base da expedição pela primeira vez e a apresentava às
planícies áridas de Colossus. O momento de revelar seu maior segredo
aproximava-se, e não precisava de visões ou prenúncios para assim
determinar. Simplesmente sentia.
Permanecer dentro da construção não lhe parecera agradável
inicialmente, mas bastou um olhar para a estéril lua, e ela soube que jamais
deveria ter saído. Para qualquer direção que olhasse, redemoinhos eram tudo
o que podia registrar e, apesar da bolha protetora que os cientistas a fizeram
colocar em volta da cabeça, condição inegociável para o que chamaram de
“passeio”, constantemente tinha a sensação de que suas brânquias seriam
arruinadas para sempre com aquela quantidade de poeira.
Tentáculo após tentáculo, deslizou em direção a um veículo
estacionado próximo ao portal, incapaz de desviar a atenção da grande massa
no horizonte que extinguia toda partícula de luz em uma espiral
incandescente e a fazia ignorar até mesmo a voz delicada da melhor amiga.
Cronos.
Jamais vira um buraco negro tão de perto, e mesmo que soubesse que
ainda levaria muito tempo até que aquela lua árida e o planeta que orbitava
fossem finalmente devorados pela bocarra esfomeada, algo no interior de
Lyia se inquietou por estar na presença daquele deus.
Com uma ligeira reverência, subiu no veículo murmurando uma
prece, apenas por precaução, e assistiu aos campos revolvidos por máquinas
passarem de ambos os lados, até que um objeto à distância destoou da visão
enfadonha. Conforme se aproximaram, a coisa entrou em foco e, com
espanto, finalmente entendeu que se tratava de uma nave belariana, reluzente
em ângulos suaves.
— A nossa nave — Elya indicou, maravilhada por motivos que lhe
eram desconhecidos, tão alegre e corada que sequer parecia a sombra da
mulher magoada e machucada de antes.
Será que ela havia batido a cabeça durante a queda e ninguém
percebera?
Lyia franziu o cenho — se é que tal expressão facial era possível para
sua compleição implaviana — e demorou-se não mais que um instante a
estudar o belo transporte que se erguia, imponente, entre as areias desérticas.
Aquela não era e nem poderia ser a nave do Governador que roubaram em
Belar, e tinha razões consistentes para assim concluir.
Primeiro, porque quando chegaram perto da órbita de Colossus, ela
estava já muito debilitada, e nem suas habilidades delirantes com os
comandos, nem os sistemas automáticos da nave foram capazes de corrigir a
aceleração descontrolada, o que resultou em uma terrível queda. Aquela
nave, entretanto, não tinha um único arranhão e estava belamente pousada,
os trilhos acoplados no solo repletos de poeira e grânulos. Segundo, porque o
modelo era completamente diferente, embora soubesse que Elya não detinha
tal conhecimento.
— Considerando o que você me contou sobre a queda e que esse é
um modelo bem mais antigo, é impossível que seja nossa nave — respondeu,
chegando mais perto, como se apontasse o óbvio. — Ela não deveria passar
de destroços deformados.
A belariana abriu um sorriso que fez até mesmo a estrela ao redor da
qual orbitavam perder um pouco do brilho.
— Eu sei — disse. — Mas é a nossa nave.
Elya certamente havia batido a cabeça.
— Você está soando como uma louca, coisa que tenho quase certeza
de que não é, menina teimosa.
A amiga sorriu ainda mais à menção de tão carinhoso apelido e
caminhou até o portal de entrada. Após alguns instantes, o cristal belariano
do qual era feito cedeu e abriu passagem, revelando um interior à meia-luz
que parecia totalmente funcional, para sua descrença.
— Esta é e não é a nossa nave. É uma versão dela, por assim dizer.
Uma que foi transportada para o passado — acrescentou, com uma
piscadela, desaparecendo no interior.
Lyia a encarou sem saber dizer se aquela conversa era uma
brincadeira ou não. Depois, pensou bem e lembrou-se de que belarianos
simplesmente não tinham senso de humor.
Os tentáculos trataram de seguir a melhor amiga enquanto
resmungava consigo mesma. Os menores, que para criaturas bípedes
pareceriam mãos, tocaram a superfície de cristal, e as ventosas absorveram
as impressões até das mínimas ranhuras, logo reconhecendo o local
reservado ao painel de controle, que na fuga de Belar ela havia
desesperadamente inutilizado. Estava em perfeito estado e funcionamento.
Confusa, seguiu pelos corredores e quando chegou à cabine
principal, com as poltronas acolchoadas e o assento de comando, admitiu
que ou estava delirando, ou Elya estava certa.
Tudo havia mudado.
Embora a disposição de cada móvel e objeto desse a entender que
belarianos não eram assim tão criativos, pois tudo era muito semelhante ao
modelo que usaram para viajar até Colossus, a diferença era nítida entre esta
nave e, bem... A outra nave. Os tecidos eram distintos, ainda luxuosos, mas
em padrões que atualmente seriam ultrapassados. Os materiais também não
eram tão refinados, tampouco os ângulos tão suavizados.
Elya estava recostada em uma das poltronas largas e macias com
uma taça de cristal na mão, como se estivesse em casa; as pernas longas e
cruzadas em exibição por um vestido que Lyia não reconhecera.
Ah, pelos Deuses, não era um vestido, mas uma camisa!
E podia muito bem imaginar a quem pertencia.
Resistiu ao instinto de rolar os três olhos de uma só vez e ainda mais
à vontade de enchê-la de perguntas e comentários maliciosos que a fariam
corar. Precisava ser uma boa amiga e dar-lhe o tempo que parecia necessitar
para, por conta própria, abordar o assunto.
— Enquanto você estava em tratamento, houve uma tempestade
temporal — ela esclareceu, levando o líquido marrom-escuro aos lábios com
delicadeza. — É isso que eles estão estudando aqui. Elas acontecem o tempo
todo nessa lua.
Acomodando-se no assento à frente, Lyia esticou os tentáculos para
que a belariana compartilhasse a taça e levou-a à boca. O néctar, doce e
forte, a deixou mais desperta.
— Não sabem dizer ainda o que as está causando, nem prever com
muita antecedência quando uma vai acontecer. Supõem que o buraco negro
seja o responsável. Mas estão estudando os efeitos, na esperança de poder
controlá-los. Querem ser os primeiros a viajar no tempo.
— Brincar com o tempo é perigoso — advertiu, talvez mais para si
mesma.
Estava parecendo uma velha amargurada, mas se Elya percebeu o
ressentimento em seu tom, não comentou sobre.
— Quando essas tempestades acontecem, tudo o que estiver do lado
de fora da base muda; viaja para o passado ou para o futuro. Às vezes o
equivalente a um anoitecer, às vezes a um ciclo inteiro.
Lyia apertou os olhos, e ordenou que cada um esquadrinhasse uma
direção distinta, como se para confirmar a própria teoria.
— A última tempestade levou tudo muitos ciclos para o passado.
Então, na verdade, estamos sentadas em uma nave que pertenceu a um dos
meus antepassados — a amiga concluiu.
— Poderia pertencer, hipoteticamente — interrompeu uma voz
gutural e oca, que logo revelou ser de um enorme quaarsariano que
adentrava pela ponte. Nunca havia confraternizado com nenhum, mas os
conhecia pela tonalidade alaranjada da pele e os olhos negros ausentes de
írises. — Lembre-se de que a tempestade não foi até Belar roubar nenhuma
nave de seu avô. — Ele sorriu, confiante, mostrando uma fileira de presas
escuras que deveriam assustar, mas que pareceram simpáticas. — Perdoem-
me se eu estiver me intrometendo.
— Vocês, homens, não resistem à tentação de interromper uma
mulher — Lyia pegou-se dizendo, antes mesmo de ser capaz de pensar nas
palavras, ou de segurá-las dentro da fenda que chamava de boca.
Tensão desceu sobre a cena, fazendo a nave subitamente parecer
ocupada para além da capacidade.
— Concordo, por isso gosto de manter suas bocas ocupadas sempre
que tenho a oportunidade — ele respondeu, sem parecer abatido, afiando o
olhar com um sentimento quase cruel, embora brilhasse divertidamente em
desafio.
Lyia se engasgou, sentindo que todo o ar do ambiente não seria
suficiente enquanto os tentáculos ousavam rebelar-se ao seu redor, porém o
quaarsariano prosseguiu com qual fosse a tarefa que precisava realizar, como
se elas nem mesmo estivessem ali. Com os três corações batendo muito
acelerados, ela estudou as costas dele, largas como montanhas que mal
cabiam dentro do macacão empoeirado da expedição, e sentiu-se inquieta,
desacostumada a ser desafiada ou rebatida com tanta rapidez e,
principalmente, malícia.
— Me chamo Edon — apresentou-se, como se sentisse seu olhar e
este lhe perfurasse. — E você é Lyia, não é? Confesso que ouvi muito a seu
respeito, mas pessoalmente espero que seja tão interessante quanto Elya me
prometeu. E ela me prometeu muito.
À sua frente, a belariana sorriu como se estivesse constrangida, e
Lyia finalmente lembrou-se da presença dela. Elya murmurou, sem esconder
o sorriso que tomava os lábios:
— Edon é muito gentil, e você quase conseguiu magoar meu
primeiro amigo de verdade fora de Belar.
— Pensei que eu fosse sua primeira amiga de verdade — murmurou
de volta, simulando estar ofendida para tentar encobrir a vergonha que dela
se apoderava pela primeira vez em muito tempo.
— Você não é minha amiga — Elya estabeleceu. — Você é muito
mais.
Como se quisesse assegurar a mais completa destruição de sua
dignidade, o quaarsariano Edon permaneceu na nave realizando tarefas de
todos os tipos, com os mais diversos instrumentos, enquanto conversava com
Elya, como se fossem velhos conhecidos. Ele era de tamanha gentileza que,
em momento algum, pareceu incomodado com a interação inicial que
tiveram, mas Lyia estava um tanto quanto mortificada e simplesmente não
sabia como agir. Estava certa de que seu nervosismo a levaria a
complicações com as quais não poderia lidar.
Apesar dos olhares dúbios que o cientista vez ou outra lhe lançava e
dos comentários ácidos e repletos de duplo sentido que uma jovem belariana
era inocente demais para compreender, ele esclareceu muitas de suas dúvidas
a respeito das tempestades temporais, o que foi verdadeiramente útil.
Elya não estava maluca, no fim das contas, quando lhe contara sobre
o poder que as tormentas tinham. Sobre viagens ao futuro ela entendia bem,
embora nenhum deles desconfiasse que estava na presença de um oráculo,
mas era a possibilidade de viajar ao passado que verdadeiramente a
intrigava.
Era quase heresia retornar ao que já se perdera.
As tempestades, segundo haviam descoberto não naquela expedição,
mas em muitas atrás, eram causadas pela interação entre as camadas mais
fundas do substrato de Colossus e a fúria do buraco negro que lhe reclamava
a órbita. Vinham sem aviso, formadas nas areias, e despejavam raios que
podiam transportar qualquer coisa para qualquer ponto no tempo.
Até então, as experiências conduzidas observavam apenas o que era
natural, em especial os animais e a parca vegetação nativos; contudo, o que
houve com a nave belariana era um fato inédito que, desde então, os
pesquisadores se debruçavam para estudar.
— Isso explica por que vocês ainda não podem pegar a nave e sair
daqui — disse-lhe Edon, com uma piscadela para Elya, que, à menção de
deixarem Colossus, pareceu murchar no assento.
— Imagino que o controle da missão e a Academia não permitiriam
que um objeto científico com tanta importância simplesmente saísse voando
por aí — Lyia arriscou, tecendo uma armadilha para que ele lhe entregasse a
informação de que precisava. — Mandarão algum outro transporte? Talvez
uma nave diplomática, seria o protocolo...
— Eles ainda não sabem da queda — respondeu o quaarsariano,
fazendo anotações no ar como se escrevesse em uma prancheta invisível. —
Nossos comunicadores precisam alinhar a trajetória com a nave da
expedição, que está orbitando Essiclan, para transmitir à longa distância. E
com a tempestade, nós perdemos a janela de contato. Daqui a alguns
amanheceres, se o velho Cronos permitir, estaremos novamente em posição.
— Ora, mas e se acontecer alguma emergência?
— Os satélites de Essiclan gravam nossa atividade dia e noite. Em
uma situação de emergência que não possa esperar pela janela de
comunicação direta, temos como enviar um sinal.
— E nossa queda não foi uma situação de emergência?
— Sem feridos correndo risco de vida, e com um objeto de estudo
tão relevante quanto esta nave que nos trouxeram — Edon deu tapinhas no
casco com as mãos enormes —, na verdade, não.
Embora pudesse evitar se fizesse ao menos um pouco de esforço,
Lyia deixou que a boca estalasse em deleite e formasse algo próximo a um
sorriso: ninguém fora da expedição tomara conhecimento, ainda, de que
estavam ali.
Finalmente o Tempo estava ao seu lado, mas não deveria abusar.
As areias da sorte sempre mudavam de direção com o vento.
Quando retornaram à base e se livraram de toda a poeira, Lyia
caminhou ao lado de Elya em direção ao salão de refeições, já acostumada
aos corredores. Até teria feito alguma menção ao costume de se lavarem
primeiro ou oferecido ajuda à mais perfeita entre as perfeitas para se
arrumar, mas a forma como ela andou decidida até o portal deu a indicar que
estava resoluta.
Menina teimosa.
No entanto, bastou ver Ulian Bened acomodado junto a uma das
mesas, parecendo perfeito em todo o seu miserável esplendor enquanto
remexia desinteressado no próprio prato, para que Lyia entendesse a
situação. Embora não pudesse afirmar, passara aqueles dias estudando-o com
atenção, ou ao menos em toda oportunidade em que se encontravam no
mesmo cômodo, certa de que havia algo de errado.
Pois ele simplesmente parecia ter se esquecido de tudo que
conversaram em Belar, de tudo o que havia lhe contado.
E era por esse motivo que Lyia acreditava existir um mistério ainda
oculto em suas visões sobre o futuro de Elya, o que não seria assim tão
surpreendente: os prenúncios de oráculo nem sempre eram completos, muito
menos oniscientes.
Ela via quadros, jamais a paisagem inteira.
Ao seu lado, a amiga cruzou o salão da mesma forma que já a havia
visto, muitas vezes, cruzar os salões de baile no planeta natal: com confiança
e sinuosidade, reivindicando o chão onde pisava. Os ângulos do rosto
reluziam, mesmo sob as luzes artificiais, como um chamado na mais densa
escuridão, um feitiço.
Lyia remexeu a cabeça moluscular, não desejando ser envolvida
também no encanto que descia como uma névoa, e, ao voltar a encarar o
belariano, deu-se conta de que o pobre Bened não tinha nenhuma chance.
Pôde vê-lo lutar contra os instintos, apertando os talheres até que os nós dos
dedos azuis clareassem com o esforço, na tola esperança de não erguer os
olhos dourados dos abençoados por Tenar.
Os dois estavam em guerra — ou, ao menos, o mais próximo de um
embate que dois belarianos poderiam chegar —, e ficou de repente muito
claro quem iria perder.
Ninguém podia contra a mais perfeita entre as perfeitas.
Um sorriso ameaçou manchar sua boca, mas Lyia o conteve. Em
verdade, a cena a fez compadecer-se dele, sabendo de tudo o que havia se
passado, mas não durou mais que um instante, pois se aquele belariano era
tolo o bastante para lutar contra a força da natureza que era Elya Bespian, se
era tolo para lutar contra o amor, então que pagasse o preço.
No futuro, ele se arrependeria de cada instante passado longe, de
cada vez que colocou a razão na frente das emoções mais cruas e verdadeiras
que borbulhavam na superfície.
Mas ele não sabia ainda que o Tempo sempre cobrava.
Naquela noite, com as luzes apagadas, Elya lhe confiou pela primeira
vez que desejava retorna à Belar e à família. Com a voz embargada em dor e
remorso, confessou que estava arrependida e que bastava de se humilhar em
Colossus. Queria corrigir os próprios erros e só poderia fazê-lo quando
voltasse para casa.
— Meu pai me perdoará, sei que ele fará. Quanto aos outros
belarianos, não ousarão renegar aquela que trará o futuro — conjecturou,
perdida nos próprios pensamentos de certo desesperados, uma vez que se
utilizava do título que tanto odiava como escudo para se defender. — Ainda
há tempo, Lyia. Nem toda a minha esperança se perdeu.
Lyia compreendia. Ah, não havia ninguém que conhecesse tão bem
quanto ela o desejo de reparar aquilo que um dia fora quebrado, mas
simplesmente não podia permitir que acontecesse.
Ao menos, não ainda.
A amiga estava cega pelo próprio coração partido e, principalmente,
não era oráculo. Não sabia ainda de todas as alegrias que a esperavam no
futuro; portanto, era dever de Lyia assumir o controle da situação e usar de
um último segredo que vinha guardando há muito tempo.
Tudo fazia sentido, embora parecesse loucura.
O tempo era um círculo, e a ela caberia fechá-lo.
Por isso, depois de embalá-la com cantigas de sua própria infância,
algumas das quais abriam antigas feridas, e garantir que dormia
profundamente, deixou o alojamento na ponta dos tentáculos, arrastando-se
com todo o cuidado, e selou a porta depois de passar.
Havia dado a Ulian Bened todas as chances de fazer a coisa certa, de
procurá-la e explicar-se, na esperança de que não tivesse de intervir naquele
momento de catarse, porém sua paciência havia se esgotado — e o tempo
também.
Sua visão era muito mais funcional no escuro, e locomoveu-se pelos
corredores com facilidade, a despeito de achá-los todos iguais. Logo
encontrou, no meio do caminho, a massa formada por pernas compridas,
tronco exposto e antebraço dobrado atrás da cabeça. Os olhos dourados
estavam bem abertos e se arregalaram quando finalmente perceberam sua
aproximação.
— Sr. Bened — cumprimentou.
Era tempo de passar a história a limpo.
O belariano se ergueu nos cotovelos, o que fez saltarem em todas as
partes músculos que Lyia, uma raça moluscular, particularmente achava
muito estranhos. Ele cobriu-se com um lençol fino que, se precisasse ser
honesta, não a impedia de ver nada caso verdadeiramente desejasse.
— Srta. Lyia — Ulian respondeu, com aparente confusão. — Perdoe-
me pela falta de decoro, não sabia...
— Vamos nos poupar das amenidades? — ela indagou, com o tom
mais gentil foi capaz a despeito das palavras duras. A voz aquosa foi
carregada pelas paredes, e ela fez o possível para controlar o próprio tom. —
Não sou belariana, tampouco uma dama, e não estamos mais em Belar.
Os traços dele foram dominados por um misto de expressões, que
transitavam entre a vergonha, a descrença e o estupor, mas por fim assentiu
cordialmente, como era mesmo esperado que fizesse.
— Vejo que não estava mesmo dormindo, então penso que não
achará nenhum problema me acompanhar até o salão de refeições para um
lanche noturno. Ainda não estou muito habituada ao caminho — dissimulou,
deixando bem claro que a recusa não era uma opção.
Ulian ergueu-se como um muro à sua frente, e Lyia não se lembrava
de ele ser tão alto. O belariano vestiu a camisa apressado e aprumou-se antes
de concordar.
— É claro. — Fez uma mesura com a mão. — Depois de você, srta.
Lyia.
Ela deslizou pelos corredores como se já tivesse feito o trajeto por
incansáveis vezes, sem se preocupar em errar uma ou outra entrada,
tampouco de parecer perdida, para manter as aparências da desculpa
inventada. Queria mesmo que ele se assustasse, e parecia estar funcionando:
belarianos eram educados demais para evitar ser dominados.
Quando chegaram ao salão, pediram aos autômatos que preparassem
duas bebidas quentes e sentaram-se um de frente para o outro. Os copos
foram depositados pelas pinças mecânicas no tampo da mesa, soltando
vapor.
Lyia levou o seu à boca, tomando cuidado com a temperatura, e
depois tornou a baixá-lo. Havia escondido a verdade por tanto tempo, que
sequer sabia como começar a contá-la.
Escolheu pelo começo e com a simplicidade.
— Sr. Bened, já que estamos sendo muito francos hoje, permita-me
dizer que não gosto nem um pouquinho de você — disse, como se estivesse
apenas falando sobre um assunto trivial como o clima.
Do outro lado da mesa, ele se engasgou com a bebida e começou a
tossir.
— Não é que eu jamais vá gostar, não me entenda mal — tratou de
emendar, apaziguadora e teatralmente exagerada. — Mas, neste exato
momento, simplesmente não consigo compreender o que se passa nessa sua
cabeça, que imagino ser muito inteligente, já que é o mais jovem cientista
admitido na Academia.
Ulian parecia um tolo, encarando-a com tanta incredulidade que, por
um instante, chegou a pensar que os neurônios dele haviam entrado em
combustão espontânea, restando apenas uma sombra do homem que há tanto
a confrontara e conquistara seu respeito.
— Eu... — ele balbuciou, tentando formar uma frase.
— Nós dois sabemos que Elya é única, e acho que também podemos
concordar que é dona de um coração mais precioso que qualquer riqueza de
qualquer mundo — prosseguiu, sem esperar por uma reação. — Se estamos
de acordo nesse assunto, me diga, em nome dos Deuses, seus ou meus, por
que você fez o que fez.
O belariano era de um azul profundo, o que Lyia podia reconhecer
com facilidade, mas naquele instante empalideceu como se fosse perder os
sentidos. Todo o brilho que ainda podia sustentar desapareceu, e os olhos
mergulharam em um abismo.
— Isso é extremamente pessoal...
— Deixou de ser no momento que você a tocou — interrompeu,
cheia de fúria, embora o tom em nada tenha se alterado. Os tentáculos
ergueram-se, como dedos enormes e acusatórios. — Elya não precisaria ter
me dito uma única palavra para que eu soubesse o que fizeram. Sou mais
velha do que vocês dois juntos e, meu querido, já fiz coisas que você sequer
imaginaria.
Ulian se empertigou na cadeira, e o vislumbre do inafastável orgulho
belariano finalmente surgiu em seus traços angulosos.
— Não fiz nada que Elya não desejasse, embora reconheça o terrível
erro de atentar contra a honra e a virtude dela — defendeu-se, os brincos
tilintando nas orelhas conforme os dedos longos os tocavam repetidamente.
— Eu deveria ter sido um homem melhor, ter sido mais digno, porém…
Lyia soltou um riso de escárnio que o interrompeu.
— Não seja tolo, já disse que não estamos em Belar. Você poderia ter
atentado contra o que quisesse, se ela assim lhe desse permissão para
continuar, desde que aceitasse o casamento. Você a tomou e, de forma
leviana, a destruiu.
Ele se levantou de forma violenta demais para um belariano, e o
ímpeto de fúria foi a primeira emoção genuína que pareceu quebrar a
superfície rasa, ensinada a jamais deixar as ondas se formarem.
— Não vou me casar e já disse isso a ela — ouviu-o repetir, como se
pronunciasse uma prece de proteção contra si mesmo e contra tudo aquilo
que poderia desejar. — Não posso, e vocês não entenderiam. Simplesmente
não acredito que ela a mandou até aqui para tentar me convencer...
— Elya não faz a menor ideia dessa nossa conversa e, por favor,
sente-se. Você não vai sair daqui até que eu termine — pediu, com um aceno
cansado.
Ficou evidente a luta interna dele entre a cordialidade ensinada em
Belar e a vontade de sair a grandes passadas, mas, por fim, a educação não
falhou, e ele se sentou.
— Sei muito bem por que acha que não pode se casar.
— Você não faz ideia de meus motivos. — Ulian levou a bebida até a
boca, fazendo algo próximo à uma careta, pois certamente já estava fria.
— Ah, Ulian, eu faço, sim — pronunciou o primeiro nome dele
como se sentisse um gosto amargo. — Acha que não entendi assim que ela
me disse que você não queria se casar? Além de você, sou a única que sabe
e, em nome dos grandes amigos que nos tornaremos no futuro, peço que
ouça meu conselho. Você não merece se punir, nem ser infeliz e deixar
outras pessoas infelizes por algo que aconteceu há tanto tempo e que jamais
pode ser mudado. Você não teve culpa.
Os olhos dele marejaram, algo que Lyia sabia ser uma grande
demonstração de instabilidade emocional.
Coragem, Ulian. Pensou consigo mesma. Estamos quase lá.
— Você não sabe o que está dizendo — repetiu, abalado e trêmulo.
Verdadeiro e, principalmente, inocente. — Não poderia fazer.
Seu palpite estivera certo. Naquele momento, ela soube.
Tentou manter a calma, e esvaziou a mente de todas as perguntas que
desejava fazer a ele, pois os desígnios do Tempo eram misteriosos e,
principalmente, perigosos.
Chegará o dia em que me contará um segredo, mas para que isso
aconteça, preciso contar o meu primeiro.
Lembrava-se das palavras como se houvessem sido pronunciadas há
pouco, e, embora ainda não fosse capaz de lhes dar o exato sentido, estava
certa do efeito que precisava causar. Ela sabia o segredo e, por isso,
levantou-se e tornou-se a sentar mais perto dele.
— Já ouviu as histórias sobre os oráculos de Impla? — indagou,
igualmente trêmula pela iminência da revelação, mas ciente de que precisava
dar-lhe algo em troca.
Era um acordo feito há muito, embora ele ainda não soubesse disso.
— Lendas espalhadas pelos Imperadores e contadas para crianças —
respondeu-lhe.
— Lendas são verdades esquecidas — Lyia esclareceu, encarando a
massa de tentáculos que, por conta própria, tentava encontrar as mãos dele.
Não havia forma melhor de fazer aquilo, a não ser dizer de uma só vez. —
Descobri que era um oráculo mais ou menos com a mesma idade que você
tinha quando perdeu sua irmã — pronunciou, com tanta delicadeza que mal
sentiu quando as palavras deixaram a boca.
Mas elas o atingiram como um tapa.
Ou uma faca.
Eram lâminas contra aquele coração já tão machucado e repleto de
rancor, e Ulian sangrou bem ali, diante de seus três olhos, conforme as
lágrimas escorriam pelas faces não do homem, mas do menino.
— Como? — balbuciou, entre soluços. — Como sabe a respeito
dela?
Não poderia dizer-lhe.
— Quando ainda vivia em Impla, tive uma visão, um prenúncio
vívido e claro como a manhã, de uma menina nascida em um planeta com
duas luas no firmamento. Ela me tirou das mais absolutas trevas, e por essa
menina atravessei o Sistema Exterior até Belar, incerta quanto ao que
encontraria quando chegasse.
— Elya.
Lyia assentiu.
— Sobre ela eu profetizei. A que traria o futuro.
— Você? — Entendimento o tomou.
— Sim. Eu a vi sentada na cadeira do Governador ou, usando da
linguagem correta, da Governadora, abençoada por suas Soberanas e por
todo o povo. Eu a vi dar à luz três meninas, e o nome da primogênita, creio
que vai reconhecer, era Alicia.
Ulian escorregou e por fim caiu de joelhos, destituído de todas as
lições ou amarras belarianas, e chorou toda a sua dor de uma forma crua e
imperfeita.
Humano, afinal, como seus antepassados.
— Eles a mataram — sussurrou em desespero profundo, cuspindo as
palavras como se fossem farpas ou cacos de cristal. — Eles a mataram
porque era imperfeita, porque mancharia o nome ancestral dos Bened. Fui o
único que lhe deu um nome e o único a chorar sua perda.
— Eu sei — Lyia assentiu, compartilhando daquele pesar e tentada a
afagar os cachos dourados dele. — O que foi feito, foi feito; o passado não
pode ser alterado. A única coisa que podemos fazer é aprender com ele, e
você não será menos infeliz se arruinar sua única chance com Elya.
— Não posso. — Ele abraçou-se, como se tentasse juntar os próprios
pedaços que mantivera colados por todo aquele tempo a muito custo. —
Prometi à minha irmã, minha querida Alicia, que jamais me casaria. Que a
ancestralidade dos Bened morreria comigo. Que eu a vingaria.
— Entendo por que sentiu que deveria fazer essa promessa, e não o
culpo...
— Como poderia entender?
Os olhos dourados dele eram poços profundos que poderiam sugá-la
em dor e pesar, mas Lyia manteve-se firme.
— Porque eu também já vi coisas terríveis, Ulian, e minha família é
ainda mais criminosa do que a sua.
A confissão lhe custara um pouco da própria sanidade, porém Lyia
não cedeu e não se deixou levar de volta àquele abismo em Impla. O Tempo
a havia presenteado com uma única chance de fazer a diferença, de corrigir
seus erros, e ela iria até o fim.
— Não mudará o que foi feito à sua irmã agindo dessa forma, nem se
negando a amar e ser amado.
— O amor destrói...
Lyia olhou para o belariano, transformado no mais imperfeito dos
seres pela dor e pela angústia. Seu peito pesou, e os três corações bateram,
cansados.
Se ele ao menos soubesse...
— O amor, como o avançar do tempo, é a única força que não pode
ser impedida. Não lute contra ele, ou vai acabar se afogando.
Elya nunca, em toda a vida, havia sido recusada.
A beleza impossível de evitar com a qual fora presenteada indicara-
lhe o caminho para conquistar qualquer coração, pois sempre sabia o que
dizer, o que fazer e como sorrir. Portanto, a rejeição era para ela um conceito
abstrato e deveras incompreensível, senão impossível de alcançar.
Afinal, ela era o que os belarianos possuíam de mais próximo com o
divino.
E no planeta da perfeição, jamais houve um único cavalheiro ou
dama que não se regozijassem com sua presença ou não almejassem sua
atenção.
Ao menos, costumava ser assim antes de Ulian Bened.
Em seu peito, o coração se contraiu com a lembrança dele, por mais
que se empenhasse para evitá-la a cada anoitecer, quando o silêncio recaía
sobre a base da expedição e a confusão em sua mente tornava-se
ensurdecedora demais para suportar.
Incapaz de encarar de volta a penumbra que a envolvia, baixou as
pestanas no instante em que cada palmo de pele ansiou pelo calor abrasador
e reconfortante que a havia feito queimar, mas, muito mais do que isso,
ansiou pela calma e pela certeza que os olhos dourados de Ulian transmitiam
toda vez que a miravam, pois a faziam ser e existir, não como a mais perfeita
entre as perfeitas, mas como Elya.
Apenas Elya.
E aquela era, estranhamente, o bastante.
Sabia que não deveria se apoiar em memórias, pois se existia uma
verdade que não ousaria ignorar, era a de que o tempo não voltava, e o que
estava feito estava feito.
Contudo, ela sempre se pegava rememorando os olhos dele,
manchados com uma tristeza sem fim que nunca pôde compreender por mais
que se esforçasse, e mergulhava ainda mais profundamente no mistério de
momentos há muito perdidos.
Pois se lembrava de tudo e de cada detalhe, quando identificou
aquele sentimento vil e corrosivo nos olhos de Ulian pela primeira vez.
Antes mesmo que pudesse reconhecê-lo dentro de si mesma.
Tenar e Ésper reinavam no firmamento, Soberanas por direito,
lançando raios ternos pelos jardins suspensos da residência dos Bespian que
Elya, outrora, chamara de casa com facilidade. Os arcos haviam sido
enfeitados com flores lindamente coloridas e aromáticas, e os autômatos
enfileiravam-se, lustrosos, para receber a família Bened: Ianer, Eleonor e
Ulian.
Elya foi banhada, penteada e vestida com esmero para ser
devidamente apresentada, e os visitantes a presentearam com tudo de mais
luxuoso e raro que poderia existir em Belar. Dedicaram-lhe canções
dedilhadas em liras de ouro. Contudo, somente muitos ciclos depois ela
compreendeu que não era a Elya Bespian que dirigiam as homenagens, mas
ao que representava.
O destino deles.
O destino de Belar.
Pois a mais perfeita entre as perfeitas era uma serva e um receptáculo
para o futuro de todos. Um instrumento, somente. Formas na madeira, tensão
na corda.
Jamais a música.
Em meio às conversas estranhas do mundo dos adultos, que
representava ainda um mistério para sua tão pouca idade — apenas seis
ciclos completos —, Elya perdeu-se nas cores e sedas da família visitante.
Como muitos outros que haviam passado por sua casa desde que os pais lhe
disseram que ela era especial, os Bened tinham cabelos e olhos prateados,
pele pálida e expressões agradavelmente belas, porém vazias, iguais à sua
mãe.
Exceto o menino.
Ulian era mais velho que ela, porém não o suficiente para que a idade
de separação os houvesse alcançado, e, diferentemente dos pais, tinha a pele
azul e os cabelos alvos. Mas o que mais o diferenciava de qualquer belariano
que tivesse conhecido eram os olhos.
Eles ardiam.
Abriam buracos em seu coração cada vez que a miravam mesmo que
de passagem, e o sentimento que brilhava no fundo deles era como um
chamado através do tempo e do espaço. Ecoava entre os ramos das árvores e
os pedúnculos das flores, arraigado no ar que respirava, convocando-a tal
qual a um semelhante.
E Elya viu-se obrigada a responder.
Guiada até a beirada de uma fonte esculpida em cristal, deparou-se
com o menino debruçado sobre as bordas, como se estivesse pronto para
mergulhar, soluçando dolorosa e profundamente. Por mais nova que fosse,
Elya já compreendia que aquela era uma terrível e censurável demonstração
de fraqueza, pois Cília encarregara-se pessoalmente de tal ensinamento.
Fraqueza era imperfeição, e a imperfeição era a ruína de um
belariano.
Recitava a lição mesmo em seus sonhos, porém as lágrimas de Ulian
eram grandes como as gotas da chuva e translúcidas como o beijo do orvalho
que caía ao crepúsculo. Límpidas como a água das fontes que alimentavam
os riachos gorgolejantes onde Lyia à levava para ensinar as palavras duras do
próprio idioma, esperando que a suave correnteza as embalasse. Eram parte
do todo e a linguagem da natureza.
E por isso mesmo em nada lhe pareceram imperfeitas.
Vacilante, se aproximou pela relva, na esperança de que o menino
reconhecesse sua presença, mesmo temendo que ele pedisse que o deixasse
só.
A mãe a advertira sobre aquilo, e as lições dela eram tão duras
quanto a rocha fria na qual Ésper esculpia o coração de seus filhos: ela era a
mais perfeita entre as perfeitas, abençoada pelas Soberanas e regada com o
sangue dos deuses antigos; não deveria jamais se deixar contaminar, pois seu
futuro era também o futuro de Belar.
Entretanto, a uma criança o futuro parecia algo deveras distante, e
sua curiosidade sempre fora o motor de sua alma, motivo pelo qual Elya
simplesmente não foi capaz de evitá-la. Ergueu as mãos para tocar as
lágrimas que escorriam pelas faces do estranho, e as recolheu com a ponta
dos dedos, como se fossem dádivas preciosas.
Ele estava sofrendo, e ela se compadecia. Queria livrá-lo e vê-lo
sorrir.
Foi então que o garoto a olhou verdadeiramente pela primeira vez, e
Elya soube. Não compreendeu, tampouco analisou, conforme sentia-se
atravessada e exposta, pois era pequena demais para tais coisas.
Simplesmente soube, bem lá no fundo, onde sobrevivia o mais
ancestral dos instintos, que Ulian Bened era alguém com quem queria estar.
Para sua infelicidade, entretanto, nem mesmo a mais perfeita entre as
perfeitas provou-se imune ao capricho dos deuses, e Ulian não apenas não
queria estar com ela...
Ele a odiava.
Enquanto Lyia, na cama ao seu lado e com as pontas dos tentáculos
mergulhadas em bacias repletas de água, fazia estranhos barulhos com a
fenda que chamava de boca, Elya suspirou pesarosamente. Não havia
sentimento melhor que o de tê-la de volta em segurança, pois era importante
demais, significava demais.
Mas Lyia não era belariana, nem tinha olhos dourados que a faziam
fraquejar. Era moluscular e molhada; uma criatura das profundezas. E filhos
de Tenar não gostavam de frieza.
Levando os joelhos em direção ao peito, Elya abraçou-se como se
pudesse fazer aquela sensação terrível que a corroía ir embora. Deixou que
as lágrimas descessem livremente e molhassem os lençóis, o que não lhe
trouxe alívio algum.
A quem queria enganar, vitimizando-se?
Era tudo culpa sua.
Havia destruído a si mesma e provavelmente arruinado para sempre a
própria família, apenas por algo tolo e insípido como amor. A despeito das
palavras da mãe e dos próprios sentimentos ingênuos, naquele momento
compreendia que o amor era, de fato, algo volúvel. Um conceito de outrora
que não cabia mais no mundo, e que os belarianos estavam, de fato, melhor
sem ele.
Em algumas noites, também chegava a pensar que o odiava.
Depositava na figura dele toda a sua frustração e tristeza. Toda a sua
decepção. Porém, não tardava a lembrar-se de que ele não carregava
nenhuma culpa, de fato, senão a de ceder aos próprios desejos, uma vez que
havia sido escolha dela roubar uma nave e fugir, procurá-lo, declarar-se e
unir-se a ele em espírito e carne mesmo sem nenhuma garantia de
reciprocidade.
Havia sido escolha dela ir até Colossus determinada a fazê-lo ceder.
A conseguir dele todas aquelas coisas impronunciáveis que tiravam seu sono
à noite e que a faziam arder nas mais insensatas brasas.
Estava claro o preço a pagar.
Tudo arruinado.
Sua reputação. Sua honra. Sua virtude.
Seu coração.
— Elya, você está na órbita de outra estrela?
Ela balançou a cabeça, desviando os olhos da camisa de mangas
esvoaçantes que escorria entre seus dedos, a única outra peça de vestimenta
que possuía em Colossus. Já a havia usado tantas vezes, que o aroma de
Ulian havia se entrelaçado ao seu e, por fim, se perdido para sempre.
Habitava, portanto, apenas dentro dela, em suas mais dolorosas lembranças.
— Desculpe, eu me perdi em pensamentos. — Suspirou, buscando se
recompor. — Do que estávamos falando?
Lyia bufou, exatamente como um belariano faria, e soltou o lençol
que estendia pela cama.
— Eu sei. — Os tentáculos trataram de segurar as mãos de Elya e
enrolaram-se nos antebraços de forma afetuosa; cada ventosa era como um
beijo suave a lhe fazer cócegas. — Mas que bem isso traz, menina teimosa?
Uma lágrima ameaçou irromper, mas Elya a conteve antes que
denunciasse a verdadeira natureza dos pensamentos que a tomavam, apesar
de suspeitar que a implaviana conhecesse-os bem.
— Estou fazendo tudo o que posso.
Já estava cansada de chorar como uma criança tola.
— Vá para o banho e lave suas preocupações — Lyia insistiu,
retomando eficientemente o trabalho de preparar a cama. — Deixe que a
água purifique seu pesar, e sei que vai se sentir um pouco mais aliviada
depois.
Elya sorriu de forma triste e deixou que a amiga a ajudasse a se
despir.
— Isso já a ajudou alguma vez? — quis saber, passando a cabeça
através da longa gola do traje.
— Nenhuma.
— Mas Impla não é um planeta submerso?
— O que posso dizer? — Os tentáculos se agitaram no ar,
expressivos, ao redor da dona. — Acho que minhas preocupações também
eram feitas de água.
Elya rolou os olhos, sentindo uma pontada de divertimento, e,
silenciosamente, agradeceu a existência daquela implaviana insolente e de
pensamento afiado que tornava sua vida um pouco melhor.
— Seus conselhos são os piores, Lyia.
— É por isso que os distribuo a você de graça. Devo cobrar por
melhores?
Sim, talvez devesse, uma vez que não conseguia pensar por qual
motivo a amiga se sujeitaria a uma vida quase de servidão aos Bespian,
quando poderia viver em mundos muito mais amigáveis a estrangeiros.
Não que Belar fosse hostil — o simples pensamento já teria sido uma
afronta a seu povo, tão dado à diplomacia. Mas o planeta da perfeição não
admitia muito bem nada, nem ninguém, que fosse diferente demais. Por isso,
ela sempre se perguntou por qual razão Lyia ainda insistia em acompanhá-la
como uma secretária, quando poderia ser livre e conquistar muito mais em
um lugar que verdadeiramente a valorizasse.
— Você nunca fala sobre si mesma — pontuou, correndo os dedos
pelos longos e dourados cabelos em frente ao pequeno espelho à procura de
algum nó, embora soubesse que não encontraria nenhum.
A expressão da implaviana permaneceu indecifrável.
— E por que eu falaria? Você já tem preocupações demais, caso não
tenha se dado conta.
— Porque gostaria de saber mais sobre a sua vida e seus problemas.
— Minha vida e meus problemas te entediariam, posso garantir.
— Tenho quase certeza de que está mentindo...
— E eu, alguma vez, já menti para você, menina teimosa?
Elya se retraiu um pouco, lembrando-se de que sim, a amiga já havia
mentido para ela naquela viagem.
— Queria ser capaz de dizer que não, em nome do seu ego.
Lyia riu, mas a emoção não chegou aos olhos escuros.
— Assim você realmente me magoa. E a troco de quê?
— Só queria poder ajudá-la com algo, em retribuição ao quanto já
me ajudou.
A amiga deslizou pelo espaço que as separava de forma silenciosa,
talvez esboçando um sorriso.
— Você já fez mais por mim do que imagina.
— Lyia.
— Elya.
— Estou falando muito sério. — Elya suspirou, imaginando que não
teria a menor chance de ganhar aquela discussão. — Nós viemos até aqui e
arriscamos tudo, mas não é justo quando você sempre parece ter mais a
perder.
A implaviana de fato sorriu. A fenda se abriu de forma adorável, e a
feição moluscular e esverdeada reluziu.
— Nada como a superioridade belariana.
— Oh! — Ela levou as mãos ao peito, e apressou-se em fazer um
gesto apaziguador. — Me perdoe, não foi isso que quis dizer...
— Só estou implicando com você, Elya — a amiga apaziguou. —
Não tenho nada a perder, a não ser sua amizade, que para mim é o que de
mais precioso existe. Tudo o que já fiz e ainda virei a fazer foi em nome
desse sentimento, e espero que nunca se esqueça disso.
— Como eu poderia?
— Talvez um dia se sinta tentada. — Lyia pareceu, de repente,
distante e fria. — Agora vá logo se banhar, estou cansada e quero dormir.
Você me exauriu com todos aqueles passeios lá fora, no meio de poeira
mortal, menina teimosa.
Não tão teimosa quanto você, Elya sentiu vontade de responder.
Limitou-se, entretanto, a fechar a porta do lavabo, fazendo o que esperava
ser uma careta.
Quando a água começou a correr, pensou que não seria assim tão
ruim ser lavada de toda aquela angústia. Havia passado dias agradáveis a
bordo da nave belariana que a tempestade temporal trouxera do passado, ou
transformara em uma versão do passado — os detalhes estritamente
científicos ainda eram um tanto quanto confusos —, mas, se fosse honesta
consigo mesma, admitia que sentia falta... De casa.
Pensava nos pais com frequência — principalmente em Tharcius —,
assim como no irmão mais novo, que herdaria a confiança que os belarianos
haviam depositado no primeiro Governador Bespian quando chegasse à
idade certa. E, com ainda mais regularidade, pegava-se pensando no que
teria se passado com eles durante sua ausência: se desesperavam-se por não
saberem onde estava, nem porque havia partido.
Se sua família havia caído em desgraça.
Os jatos da ducha cessaram sob seu comando, e ela deixou que as
gotas corressem pela pele rosada, obedecendo à gravidade. Apenas mais
alguns anoiteceres, dissera-lhe Edon, e estariam em posição para contatar o
Conselho e a Academia.
Apenas mais alguns anoiteceres, e ela saberia o que suas ações
impensadas haviam causado. Poderia pedir perdão. Poderia, ao menos, tentar
começar a explicar. Até lá, no entanto, não havia nada a ser feito a não ser
esperar.
O problema é que Elya Bespian era impaciente.
Assombrada pelas terríveis consequências dos próprios atos, enrolou-
se na toalha macia e abriu a porta, liberando a fumaça aromática que turvava
sua visão para todo o pequeno alojamento.
Quando a névoa roliça desceu, Elya deu-se conta, contudo, que não
era a melhor amiga quem a aguardava, mas um homem alto e esguio de
feições suaves e perfeitas, desenhadas pelas mãos dos deuses.
Sua respiração tornou-se mais curta.
Um homem que desesperadamente queria ser capaz de não amar.
— Perdoe-me, jamais teria entrado se soubesse. — Ulian enrubesceu,
tão desconcertado quanto na primeira vez que a vira nua, na nave, logo após
o acidente. Aquilo parecia ter se passado há tanto tempo... Em outra vida,
talvez. — Mas a srta. Lyia... Bem, ela me disse que já estavam indo se deitar,
me empurrou para dentro e praticamente me trancou aqui.
Elya assentiu, encolhendo-se contra a toalha o tanto quanto pôde,
temendo que a quantidade de pele descoberta expusesse, também, seu
coração despedaçado.
— Parece que você está sempre se desculpando, quando eu mesma
nunca fiz tal coisa — murmurou, mais para si mesma do que para ele.
De um modo que pensara jamais tê-lo visto fazer, Ulian a encarou
com seriedade, sem nada que delatasse a atitude rebelde que empregava
quando estavam juntos. Caía bem na compleição respeitável de homem das
ciências, Elya admitiu com certo embaraço, enquanto sentia a respiração
pesar mais e mais.
— Elya, eu...
Ao som de seu nome, ela sorriu. Simplesmente viu-se incapaz de
evitar, tampouco de censurar a tola esperança que florescera entre os
estilhaços em seu peito assim que as sílabas foram articuladas não como um
segredo, como tantas vezes já o havia visto fazer, nem na forma de uma
prece, como em meio ao torpor do doce sofrimento que compartilharam
entre aquelas mesmas paredes.
Mas como uma súplica.
E aquilo a destruiu.
Sempre houvera algo faltando dentro dela, um espaço que nada nem
ninguém fora capaz de preencher, com exceção de Ulian, que o integrava
sem parecer fazer qualquer esforço, como se o detivesse por direito.
Como se uma parte dela fosse dele.
Fosse ele.
— Me perdoe — Elya pegou-se dizendo, incapaz de controlar as
palavras enquanto a faziam desabar sobre si mesma.
Não planejara aquilo, embora houvesse imaginado muitas vezes qual
efeito um pedido de desculpas teria. A despeito de qualquer expectativa,
entretanto, o pedido que lhe deixara com um gosto amargo nos lábios era
fruto de seu mais profundo desespero, e não esperava conseguir nada com
ele a não ser aliviar um pouco a própria consciência.
Por um instante, que pareceu durar muito mais que uma eternidade
distorcida pelo buraco negro que orbitavam, nada se ouviu dentro do
aposento. O silêncio acomodou-se em cada um dos ângulos perfeitos e
suaves das paredes, deitou-se na cama há pouco arrumada e ali fez morada.
Quando Elya já estava convencida de que sua humilhação não
poderia ser pior, escutou um passo, depois outro, aproximando-se. Na
duração de uma batida descompassada de seu coração, Ulian ajoelhou-se e,
com a pouca distância entre eles, sua pele eriçou-se, reconhecendo a atração
gravada à fogo no fundo da alma.
— Não guardo esperanças de que nada mais aconteça entre nós, por
isso não quero que pense que esse é o motivo do meu pedido — Elya
prosseguiu, temendo que ele se afastasse e partisse a qualquer momento, sem
ouvir tudo o que tinha para confessar. — Minhas ações foram egoístas;
pensei apenas na desgraça de minha família e de meu sobrenome, mas
jamais pensei que você se sentiria uma vítima das minhas maquinações.
Então por isso, Ulian, me perdoe.
Ali estava toda a verdade, enfim.
Ela o amava, mas o usara como um instrumento e, além das
lembranças, restara-lhe apenas a vergonha.
— Eu não poderia perdoá-la — ele respondeu com um tom baixo e
melancólico.
Naquele instante, ela realmente sentiu o coração parar de bater. Uma
besta invencível irrompeu de seu peito e a devorou sob o peso de um amor
não correspondido, mais destrutivo que qualquer arma já inventada.
Elya curvou-se, entregue à dor que a tocava com a gentileza de um
amigo, ao revés da esperada cólera de um rival. Foi embalada com ternura
em braços descarnados, como se demonstrasse que sabia bem qual era o
sentimento e em quais partes ele a quebrava e lacerava.
Soluços irromperam de seu peito como espinhos, florescendo em
pétalas feias e putrefatas, e ela foi arrastada para o centro de uma tormenta
monstruosa que destruiria tudo. Mas antes que pudesse se afundar no
turbilhão, uma mão tocou sua cintura, devolvendo o calor de Tenar para sua
fibra e, principalmente, para sua alma.
Ele a fez lembrar-se de quem era e, principalmente, do que era feita.
— Não poderia perdoá-la, quando quem deve ser perdoado sou eu —
sussurrou Ulian, como se as palavras pesassem nos lábios macios e
adocicados.
Um tremor percorreu o corpo de Elya, que sentiu os espinhos
recolherem-se enquanto o toque a trazia mais e mais para perto de si mesma.
— Em meu individualismo, tudo enxerguei e ouvi; tudo planejei,
menos você — ele prosseguiu. — Mas antes que decida se pode me perdoar,
tenho algo a contar. Receio que me abomine ainda mais depois que souber
que sou uma vergonha e, certamente, indigno do seu amor.
Não havia para onde fugir, senão mais para dentro do incêndio.
Elya o seguiu através dos jardins com os passos, antes tão confiantes,
desfeitos em incerteza, quase escondendo-se por completo atrás de sua
sombra. Ulian não se julgava tão bom em compreender as aflições alheias,
porém naquele momento, enquanto a relanceava, ousou pensar que sabia o
que ela mais ansiava, bem como o que mais temia. Afinal, retornar àquele
tempo também despertara nele um desconforto inato.
Era como olhar-se no espelho e ver seus maiores erros no reflexo,
sua própria covardia despida e crua.
— Passado, você disse? — ela questionou baixinho, conforme
aproximavam-se da residência e as paredes de pedra imaculada surgiam. —
Como uma coisa dessas poderia ser possível?
— Esperava que pudesse me dizer. Foi a sua vontade que nos trouxe
até aqui.
Elya encarou as palmas imundas das mãos como se não as
reconhecesse, ou como se esperasse vê-las brilhando com um poder que não
sabia dominar.
— Eu não entendo, Ulian...
Lágrimas penderam dos longos cílios, ameaçando derramarem-se, e
ele tratou de se aproximar, temeroso de que se ela quebrasse bem ali, não
seria capaz de reunir os cacos sozinho, Precisavam continuar até que
estivessem em um lugar seguro.
— Estive tentando descobrir em que ponto exato do passado
estamos, mas não consegui muitas informações. Quando despertou aqui,
você disse que encontrou você mesma, dormindo? — insistiu.
Ela assentiu.
— Há algum detalhe que tenha notado e que possa fazer sentido para
você? Algo nos seus aposentos ou em alguma conversa que possa ter ouvido,
que nos dê noção de quando estamos? Isso é realmente muito importante.
Elya fechou os olhos dourados como se estivesse muito cansada, e
pequeninas rugas formaram-se na testa conforme ela os apertava, pensativa.
— O cabelo, meu cabelo — disse, por fim — ainda era escuro.
— Antes da bênção de Tenar e da combinação, então.
— Me escondi debaixo da cama, não sabia mais para onde ir — Elya
continuou, como se sequer houvesse escutado sua interrupção. — E antes
que eu... Essa Elya saísse, ouvi Lyia comentando sobre um passeio na praia.
— Então os lábios rosados dela se abriram, em espanto. — Eu me lembro
desse dia, nós fomos ver o mar. — A voz era cautelosa, como se a memória
se revelasse para ela pouco a pouco. — Mas choveu, e as ondas... Nunca vi
nada assim em Belar. Retornamos muito depois do anoitecer, e minha mãe
disse coisas terríveis para Lyia por ter me exposto ao perigo.
Ulian mirou o céu e ergueu um braço, fazendo o possível para evitar
a radiação forte de Gautan: não parecia que iria chover. Na verdade, a estrela
envolta em nuvens fofas estava alta e límpida o bastante para que uma ideia
se formasse nos cantos escuros de sua mente.
Se a Elya daquele tempo ainda não havia sido abençoada e era
conhecida pelos cabelos e olhos escuros, qualquer aparição pública da sua
Elya se tornaria impossível, pois o dourado a denunciaria.
— Eu me lembro um pouco desse dia também, foi uma comoção na
Academia — ele revelou, ainda pensativo. — Mas, nesse caso, o inesperado
em muito nos ajuda. Teremos algum tempo para pensar no que fazer —
concluiu, segurando as mãos dela enquanto se esforçava para lembrar-se de
um caminho que nunca havia verdadeiramente percorrido. — Se a Elya
desse tempo saiu, seria melhor aproveitarmos para providenciar um banho e
roupas limpas para você. Depois, pensei que...
— Tudo abunda; tudo sobra; tudo basta, menos o tempo — ela o
interrompeu como se recitasse um conselho que recebera de outro. As
palavras soaram muito baixas, e Ulian quase não foi capaz de compreendê-
las.
— O que quer dizer? — indagou, virando-se.
Elya, entretanto, não estava mais ao seu alcance.
Silenciosa, havia lhe dado as costas, e o corpo inteiro tremia em dor
enquanto encarava a figura que desfilava vagarosamente no corredor
perpendicular ao que haviam tomado. Era um homem, e o porte denunciava
a importância não apenas que davam a ele, mas que conferia a si mesmo.
Tharcius Bespian, o Governador.
Ulian também tremeu assim que viu os lábios dela se entreabrirem, e
foi levado a pensar que seriam descobertos e a viagem no tempo se tornaria
conhecida, que a interferência causada pela presença deles no passado faria
tudo colapsar, criando paradoxos e destruindo o tempo contínuo.
Ela caiu de joelhos como se não tivesse mais forças para sustentar o
próprio peso, mas ao revés do grito que Ulian pensou que lhe escaparia,
apenas disse em um tom resignado:
— Eu não disse a ele que havia sido combinada com você.
A revelação o pegou de surpresa, e ele se aproximou com passos
cautelosos. Estendeu os dedos para tocá-la, reconhecendo o vazio nas írises
douradas como o mesmo sentimento que por tanto tempo o tomara. Era uma
pintura de arrependimento.
— Ele não teria acreditado. — Suspirou, cansado. — Eu não estava
aqui para ser combinado com você, e a tradição diz...
— Eu não queria contar que minha combinação era por amor, e não
dever — Elya novamente o interrompeu, sem ao menos piscar, ainda presa
na figura que lentamente desaparecia. — Acha que é por isso que ele não me
procurou?
— Só podemos imaginar os motivos dele.
— Sete ciclos, e ele não me procurou — Elya repetiu, como se nem o
tivesse escutado, afastando as mãos que buscaram erguê-la. — O que terá
acontecido em sete ciclos? — O queixo dela tremeu, e os olhos reluziram. —
Será que eles ao menos sentiram a minha falta como eu sinto a deles?
— Elya...
— Não, não devem ter sentido. Sete ciclos, e ele não me procurou...
Soluços irromperam do peito dela, como os relâmpagos da
tempestade temporal em Colossus haviam feito, atingindo tudo pelo
caminho. Eles eram ferocidade acumulada e retida. Eram a força do caos e
da mudança. A essência de um sentimento que não se poderia exprimir,
tampouco quantificar, pois sequer possuía nome.
E quando Elya finalmente chorou, algo se partiu.
Não dentro dela, nem dentro dele, que se desesperava por não saber
como alcançá-la naquele não lugar, mas algo na terra que sustentava seus pés
e permitia que a vida florescesse tão bela e fértil. Algo no núcleo e na
composição.
Ela era o futuro de Belar — o que quer que aquilo significasse —, e a
vida que a habitava se entrelaçava de uma forma inexplicável com a daquele
planeta. Por isso, quando ela chorou, a terra chorou junto, transbordou cada
riacho, rio e lago. Quebrou em ondas de violência na costa que nunca
conhecera nada além da crista e, pela primeira vez desde que se possuía
registro, choveu.
Não a garoa abençoada que fortalecia as flores e enternecia os frutos.
Não.
Choveu pesado e frio. Choveu gelo.
Choveu como em uma tormenta e depois...
Inundou.
Ulian lavava os cabelos de Elya com a ponta dos dedos, delicado e
meticuloso, enquanto ela abraçava os joelhos cada vez mais forte contra o
peito — ao menos, havia parado de tremer. Com as mangas enroladas até os
cotovelos e os antebraços mergulhados na espuma, sua energia e
concentração estavam voltadas para a tarefa de deixá-la limpa, e o corpo que
delineava com os óleos não era objeto de seus desejos, como pensara que
sempre seria, mas de suas preocupações.
As lágrimas doloridas dela haviam rolado por muito tempo, ainda
que ocultas pela torrente de água que caía impiedosa do céu, e foi apenas
quando o choro fez cessar a chuva — ou talvez tenha sido ao contrário? —
que puderam seguir até os aposentos da Elya daquele tempo, deixando
manchas de poeira vermelha pelo caminho.
Quando saíram da banheira, ele a secou com suavidade e a ajudou a
se vestir com um conjunto bordado de flores. Penteou os cabelos com
devoção, procurando por quaisquer nós que ousassem se ocultar entre os fios
preciosos, e a tomou nos braços como se não pesasse quase nada.
Quando ela finalmente adormeceu, foi até as janelas esculpidas na
pedra e espiou o céu que se integrava ao quarto silencioso, reconhecendo o
lento ascender das Soberanas enquanto, do lado oposto, Gautan cedia cada
vez mais espaço no firmamento. Caminhou pelo aposento, e deixou que os
olhos vagassem, curiosos para absorver mesmo o menor dos detalhes, pois
jamais estivera ali antes. Tudo parecia se integrar à personalidade dela, desde
o desenho intrincado dos tapetes até os raros botões que envolviam o dossel,
e ele correu os dedos pelas paredes e móveis, pelos tecidos e adornos.
Queria permanecer ali, em um lugar tão familiar e seguro para ela,
mas aquela opção não se sustentava, pois a Elya daquele tempo não deveria
demorar a voltar para casa e, muito provavelmente, seria levada à loucura
para sempre caso os visse.
Para onde iriam, então?
Belar possuía instituições hoteleiras de altíssimo nível, como era de
se esperar para um planeta tão perfeito, mas não era um mundo exatamente
amigável com turistas ou estrangeiros. Por isso, existiam políticas para coibir
que quartos fossem concedidos às pressas: era sempre necessário que se
fizesse uma reserva com larga antecedência.
Havia também a questão de ambos serem belarianos e, portanto,
seriam ainda mais perscrutados. Quais seus sobrenomes? Eles não tinham
casa? Por qual motivo desejavam ficar em um hotel? Perguntas demais
seriam feitas, e Ulian já estava cansado apenas por teorizar todas elas.
Tornou a sentar-se, e deixou o corpo escorregar.
Como se houvesse gritado seus pensamentos, uma mão suave
depositou-se em sua tez, acariciando o espaço entre as sobrancelhas e
desfazendo a tensão que se acumulava naquele ponto.
Elya abriu os olhos emoldurados pelos grandes cílios dourados, ainda
brilhantes de lágrimas, e o mirou como se em todo o universo existissem
apenas os dois e as estrelas. Ela estava quente, quase febril.
— O que o preocupa? — perguntou, doce.
Ele imaginou que talvez não valesse à pena preocupá-la também,
quando claramente precisava descansar, mas decidiu não esconder nada.
Estavam juntos naquela situação e, portanto, ela tinha todo o direito de saber
o que estava acontecendo.
Nunca mais mentiria.
— Não podemos ficar aqui, sua versão do passado não pode vê-la. E
eu... Bem, já pensei em dezenas de possibilidades e não faço ideia de para
onde podemos ir, nem de quanto tempo teremos de ficar. Para ser honesto,
não faço ideia de absolutamente nada, além de que estamos no passado,
presos antes da noite da bênção.
— Por que não pede ajuda à Lyia? — sugeriu, como se a ideia não
lhe tivesse custado nenhum esforço em meio aos delírios de uma
enfermidade impossível. Doenças não existiam em Belar, afinal. — Nossa
ala de hóspedes nunca é usada, minha mãe não gosta de abrigar estranhos.
Se pedir a Lyia por um quarto, ninguém ficará sabendo.
— Ela atentaria contra as ordens da sua mãe dessa maneira?
Elya sorriu, entristecida.
— Isso seria quase um esporte para ela. A deixaria de bom-humor
por muito tempo.
Ulian conjecturou por um instante, quase perdendo-se no calor dos
dedos que ainda o tocavam com delicadeza.
— E o que a faz pensar que a srta. Lyia me ajudaria? Estou quase
certo de que não estou em suas boas graças...
O que queria dizer, na verdade, era que estava certo de que a
implaviana o odiava.
— Ela sabe como me sinto a seu respeito já faz bastante tempo. Não
se negará.
Afundando-se na carícia, ele assentiu.
— Nesse caso, me comprometo a fazer todo o possível. Não é como
se eu tivesse a opção de falhar neste passado estranho.
Os lábios vastos e macios dela se abriram, e ele foi invadido por um
sentimento doce enquanto a ouvia suspirar.
— Foi ela quem o fez vir até mim, não foi? Naquela noite em que
você me contou tudo... Ela sabia sobre Alicia.
A menção ao inesperado nome o fez retesar os músculos por reflexo,
porém o modo carinhoso e reverente com o qual fora pronunciado tornou
mais fácil suportar o fardo que representava.
Não precisava mais carregá-lo sozinho.
— Sim, ela sabia — admitiu, virando o rosto quando sentiu as
bochechas queimarem. Ainda era nova a sensação de falar tão abertamente a
respeito do que acontecera, e por algum motivo ele ainda se envergonhava e
se responsabilizava todas as vezes que pensava na irmã. — Talvez tenha
visto em uma de suas visões. Ela disse que era um oráculo.
Ao seu lado, Elya remexeu-se com incômodo, e foi fácil perceber o
quanto ainda estava machucada pelos segredos que a implaviana guardara.
— Ou talvez você tenha contado — desconversou.
— Eu certamente me lembraria se tivesse contado.
— Não, Ulian. — Ela se ergueu, aproximando o rosto de tal modo
que suas respirações se entrelaçaram. — Não ele. Você. Já pensou nessa
possibilidade?
Então ele entendeu.
Não ele. Não o Ulian do passado.
Ele, o Ulian vindo do futuro.
Marina.
[1] Não Adentre a Noite Apenas com Ternura - Dylan Thomas