Você está na página 1de 356

Copyright © 2022 por Marina Saggiori Dutra

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/02/1998.


Nenhuma parte desta obra pode ser armazenada ou estocada em sistema de banco de dados
ou processo similar, tampouco reproduzida total ou parcialmente em qualquer formato ou meio, sem a
expressa permissão dos detentores dos direitos autorais.
Classificação indicativa 16+ | contém linguagem sexual acentuada.
Ilustração e design de capa: @todamarela
Betagem: @quemececi @universo.da.giu @esterzp @matt.books
Revisão: @arquelanalivros
Diagramação: @coliveiraportfolio
Para aqueles que já ousaram quebrar tradições.
“O tempo é uma ilusão.”
Albert Einstein
Guia de Pronúncia
PRÓLOGO
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
37
38
39
40
41
42
43
44
45
46
47
EPÍLOGO
Agradecimentos
Belar é o ponto no espaço e no tempo onde minha inevitável
imperfeição e meu desejo por perfeição se encontraram e fizeram nascer
uma história sobre ser quem somos de verdade; sobre não ter medo de falhar.
É claro que eu poderia passar longas horas aqui te contando todos os
motivos pelos quais essa obra é especial para mim, e o quanto ela me ajudou
— como escritora e ser humano — a ser melhor, mas prefiro simplesmente...
Te mostrar.
Antes, no entanto, quero fazer um pedido muito especial: não se
esqueça de avaliar esse livro na Amazon com estrelas e, se não for pedir
demais, com um pequeno texto com as suas impressões. Só assim para o Tio
Bezos entender que você realmente gostou, e indicá-la para outras pessoas
também.
E se você quiser falar comigo sobre o que achou, estou sempre lá no
Instagram @mamadutralivros e vou adorar conversar. É sério, vou mesmo.
Também acho importante te pedir para ler esse livro com consciência
a respeito dos gatilhos e conteúdos mais sensíveis: insinuação sexual,
abandono parental (não explícito), violência (não explícito), ideação suicida
(não explícito), supremacia e trauma psicológico.
Passados os avisos sérios, vamos para a parte boa. Esse livro tem
uma playlist pensada especialmente para te ajudar a entrar no clima, e os
nomes das músicas dão muito spoilers — muitos mesmo — a respeito da
história:

Agora, espero que me permita te apresentar a Belar, o planeta da


perfeição.
Vamos quebrar algumas tradições no caminho, se você não se
importar.
Elya Bespian
Élia Bêspiam

Tharcius Bespian
Tárciûs Bêspiam

Cília Bespian
Cíliá Bêspiam

Ulian Bened
Úliâm Bênedi

Lyia Oma’thu
Liá Ômah-tú

Edon Gha’nami
Êdom Guâ-namí

Belar
Bêlar

Tenar
Tênár

Ésper
Ésper

Impla
Ímpla

Quaarsar
Quázar

Colossus
Colôssús
No começo, não havia nada além de trevas e abismo. Mas então...
Tic
Tac.
O Primeiro entre os Primeiros emergiu do vazio.
E Ele entendeu que era o princípio e o fim, bem como tudo aquilo
que, um dia, viria a se manifestar. O tecido no qual costuravam-se as
estrelas. O alimento da vida. O destino.
Era tudo aquilo de mais sagrado que poderia existir, mas Seu
significado se perdeu em meio ao egoísmo, e Seu nome foi transformado em
algo comum.
Uma medida sem importância.
Algo feito para desperdiçar, tão pequeno quanto um ponteiro.
Mas Ele jamais se esqueceu.
E já passara o momento de fazer com que todos se lembrassem.
Elya repousou os olhos sobre o brilho incandescente de um
desavisado meteoro que adentrava na atmosfera de Belar e, depois de assisti-
lo despedaçar-se, levou as mãos junto ao peito para fazer um desejo,
exatamente como quando criança.
Daquela vez, porém, em vez de desperdiçar a sorte com projetos
pueris de uma mente infantil, desejou algo mais complexo e que talvez
poucos compreendessem de fato.
Desejou ser livre.
Tão de repente quanto surgiu, a cintilante rocha espacial desapareceu
de sua vigília, cedendo lugar ao familiar céu de primavera eterna de Belar,
com Tenar e Ésper, as duas luas enamoradas, e uma infinidade de
constelações pulsantes pintando o crepúsculo ainda rubro.
Era bonito.
Lindo, na verdade.
Belar era o planeta mais belo de todo o Sistema Exterior, e ninguém
que pousasse os olhos sobre as montanhas do mais puro cristal ou os riachos
límpidos onde criaturas delicadas moravam ousaria negar. O tamanho e o
grau de inclinação, além da distância até a estrela que orbitava — a
incendiária Gautan —, garantiam que a vida crescesse farta e abundante no
mais perfeito equilíbrio.
No entanto, apesar de toda aquela beleza, Elya não se via mais capaz
de sentir-se em casa no planeta em que, como um raro botão, vencera a
tensão da superfície e desabrochara. Isso, porque no instante que Gautan
mergulhasse no horizonte e Tenar e Ésper iniciassem seus reinados pela
noite, Elya faria vinte ciclos.
Vinte dolorosos ciclos.
Não que fosse capaz de esquecer, já que a chegada de sua maioridade
e da bênção das Soberanas era um assunto que a acompanhava desde
sempre, mas a lembrança repentina da escassez de tempo deixou nela uma
marca profunda.
Deslizando pelos degraus de pedra branca, como se a noite clamasse
por ela, desceu em direção aos jardins que pouco a pouco ganhavam vida.
Sob a luz de Tenar e Ésper, que ascendiam lentamente em direção ao ponto
mais alto do céu, flores desabrochavam e difundiam perfumes suaves pelo
ar. Pequeninas criaturas bioluminescentes erguiam-se entre as raízes das
árvores, levitando como se saudassem a penumbra, e a relva macia
regozijava-se com o orvalho que carinhosamente a banhava.
Elya, contudo, só sabia remoer a própria infelicidade, uma vez que a
noite lhe traria algo muito diferente: para toda mulher em Belar, aquela era a
idade de apresentação diante do Conselho Conubial, ou melhor dizendo, a
idade de ser forçada a casar com um homem praticamente estranho para
garantir uma prole perfeita.
Seguiu mais para dentro das árvores, que por sobre ela derramaram
copas frondosas, como antigas confidentes. Permitiu que as folhas lhe
tocassem os braços desnudos de forma terna, uma carícia que apenas a
natureza sabia verdadeiramente fazer, antes de parar em frente a um tronco
áspero, mais antigo que a própria terra úmida debaixo de seus pés.
— Sei que não deveria, mas vim pedir-lhes hoje novamente —
sussurrou, tão baixo que nem o próprio vento poderia ouvir suas
confidências. — Não tenho mais a quem recorrer.
A magnífica copa dourada que o tronco sustentava se agitou,
reluzindo como se feita de ouro puro. Certa de que aquele era o sinal que
esperava para prosseguir, Elya se aproximou ainda mais, de modo que seus
lábios tocaram a madeira muito suavemente, em um beijo de amante que ela
jamais conheceu.
Nunca fora do tipo resignada, tampouco dócil ou submissa como
esperado de uma dama belariana, para desespero dos pais, mas, naquele
momento e pela primeira vez, via-se obrigada a aceitar a realidade. O tempo
alimentara a rebeldia, mas ela já não o possuía mais.
— Soberanas, eu humildemente imploro que ouçam a minha súplica
— murmurou, o que não passou de um suspiro cansado. — Sei que deveria
reconhecer meu lugar e que nem mesmo fui abençoada ainda, mas não
permitam que eu seja combinada e me case sem amor...
A voz morreu no fundo da garganta conforme lágrimas quentes
manchavam suas bochechas angulosas, e ela deixou que escorressem até
secarem sozinhas e a tristeza virasse apenas memória do que, em primeiro
lugar, a fizera a chorar.
Folhas delicadas como estrelas desprenderam-se da árvore anciã e,
carregadas pelo vento, desceram por sobre Elya como um presságio, embora
não soubesse dizer se bom ou ruim. Ela as pegou com os dedos, encantada
com o brilho que exibiam, agora feito de prata líquida, e abraçou-se como se
soubesse que, embora sua fé nas Soberanas fosse inabalável, àquela altura
nada mais poderia salvá-la da tradição que se perpetuava há muitos e muitos
ciclos.
Os belarianos, tão inebriados pela prosperidade e superioridade
autoproclamadas das quais gozavam desde que o planeta adentrara em sua
Era de Ouro, desenvolveram uma verdadeira obsessão pela ordem e pela
perfeição que a garantia.
O casamento forçado — embora sequer cogitassem denominá-lo de
forma tão ultrajante — era apenas um dos meios de conservar esta perfeição
que estimavam acima de qualquer vontade ou pessoa. Chegar à maioridade
significava, portanto, ser combinada para garantir uma prole perfeita em
todos os sentidos e cumprir seu dever perante a sociedade.
Era tudo o que esperavam dela, o motivo pelo qual tinha nascido.
Elya, no entanto, preferia morrer a se casar com um desconhecido
apenas porque alguma autoridade assim determinou, pois ousava pensar que
o casamento deveria ser mais que uma combinação genética próspera.
Não deveria?
Ela não tinha muita certeza, pelo menos não tanto quanto gostaria, já
que quase todo o conhecimento que possuía sobre relacionamentos baseava-
se nas desventuras amorosas de sua secretária pessoal e melhor amiga, Lyia,
que parecia ser — pelo menos naquele aspecto — tudo o que os belarianos
mais abominavam em uma mulher: livre para se relacionar com quem
quisesse, quando quisesse e como quisesse.
Lyia, todavia, era implaviana e, apesar de viver em Belar há muitos
ciclos, sujeitava-se apenas aos costumes do próprio planeta no que dizia
respeito aos relacionamentos. Elya Bespian, por sua vez, era belariana em
cada célula e cada respiração. Única filha mulher de Tharcius Bespian CVII,
da honrosa casa de Governadores que comandava o planeta há… Vejamos…
Mais de setecentos ciclos.
A mais perfeita entre as perfeitas.
A ungida.
A prometida.
A que traria o futuro.
Desconhecia quem havia revelado a profecia aos pais e lhe imposto
tamanho infortúnio, tampouco porque escolheram acreditar que a filha seria
ainda mais perfeita em um mundo onde a perfeição tornara-se regra, mas
desde criança carregava a obrigação de ser um exemplo de conduta para um
planeta inteiro e representar seu sobrenome ancestral de forma digna.
Era um fardo pesado.
Por isso, lutar pelo amor não seria nada fácil, já que Belar há muito
negligenciava tal sentimento, considerando-o supérfluo perante a obrigação
social de submeter-se às decisões do Conselho Conubial, que garantia uma
combinação completamente harmônica entre os parceiros.
Por onde começar a procurar pelo amor, então?
Nos bailes ou passeios, seu pai sempre garantia que nenhum homem
chegasse perto demais dela e mesmo diante da mais inocente conversa a
censurava, fazendo questão de lhe lembrar que carregava toda a reputação da
família.
Entretanto, em algumas noites, quando Tenar e Ésper estavam tão no
alto do céu que quase chegavam a se tocar, Elya pegava-se observando as
estrelas e pensando que talvez já tivesse encontrado o amor nos olhos de um
jovem belariano, que fazia seu coração perder uma batida sempre que
esboçava um sorriso travesso.
Ele a atraía tanto quanto as duas luas se puxavam desesperadamente
no firmamento, mas jamais retribuiu seu interesse muito além da cortesia e
da educação que um cavalheiro deveria demonstrar a uma dama ou de
algumas provocações banais, tão comuns entre jovens.
Balançou a cabeça, como se quisesse manter o mais longe possível a
lembrança dos olhos dourados dele, e fez o possível para expulsar o fogo que
começou a lhe queimar quando recordou a voz que tantas vezes sussurrou
em seus ouvidos nos corredores escuros entre os salões de baile.
Ele não a queria, e, mesmo que quisesse, seu destino era ser
combinada com algum estranho que ela provavelmente acabaria por
desprezar, como sempre vira a mãe fazer com o próprio pai.
— Elya! — Ouviu Lyia chamar ao longe, com uma suavidade
calculada na voz aquosa. — Sei que queria ficar sozinha, mas sua mãe pediu
que eu viesse chamá-la. Ordenou, para ser mais exata — complementou,
com o tom repleto de um desagrado quase palpável. — Você precisa se
preparar.
Elya afastou-se da árvore sagrada com uma despedida silenciosa e
logo avistou a implaviana de pele esverdeada, lutando para desgrudar folhas
caídas e cascalho dos tentáculos sobre os quais se mantinha em pé. A forma
dela assemelhava-se à dos extintos polvos, embora não vivesse
exclusivamente na água.
— Não vai reclamar por eu estar “nos jardins me martirizando de
novo”? — indagou, com ironia, sinalizando as próprias aspas.
Lyia arregalou os três olhos escuros e penetrantes. Com apenas um
deles, sinalizou sugestivamente em direção às escadas que conectavam o
interior da residência àquele jardim, de modo que somente uma implaviana
conseguiria sem causar a si mesma uma terrível dor de cabeça.
Seguindo o gesto com o olhar, Elya logo identificou a impetuosa
Cília, parada entre duas colunas enormes e rígida como uma escultura de
pedra; uma parte daquele enorme palácio. Sua mãe.
Temendo as feições esculpidas à perfeição, que lhe mediam desde o
topo da cabeça até a ponta dos pés como se procurasse por um defeito,
endireitou as costas e tomou o caminho para dentro sem demora.
Cília rolou os olhos, impaciente, quando Elya finalmente se juntou a
ela na ampla varanda de pedra branca. Sua mãe era alta e esguia, com dedos
e pescoço compridos e um rosto anguloso totalmente simétrico. Tinha uma
longa cabeleira acinzentada, que quase encostava no chão, além de olhos
prateados cortantes como as lâminas das facas que usavam no jantar para
fatiar frutos tenros. No geral, era uma mulher seca e formal que, como tantas
outras belarianas, tratava a maternidade como um dever.
A filha não se identificava em absolutamente nada com ela.
— Teve um dia agradável? — a mãe perguntou, colocando-se em
movimento para que percorressem os corredores na penumbra, lado a lado.
Elya acenou com a cabeça, imaginando que Cília não desejava, de
fato, saber de nenhuma anedota sobre seu dia ou seus sentimentos.
— Você ainda não foi abençoada e não tem o direito de pedir favores
às Soberanas. — A censura veio logo em seguida, com desaprovação
crescente em cada palavra, como se a mãe houvesse esperado o dia todo
apenas para dizer aquilo. — Sequer deveria ter ousado chegar perto da
árvore sagrada, em respeito às tradições.
A filha lutou contra um riso amargo diante da palavra que usavam
para justificar tudo em Belar. Apesar de não ter sido ainda abençoada,
pensara ter todo o direito de conversar com Tenar e Ésper, não importava o
que dissessem as tradições, uma vez que era tão filha de Belar quanto a mãe
ou qualquer outra pessoa.
Se as Soberanas não gostaram de ouvir suas súplicas, então que
encontrassem uma forma ainda pior de castigá-la. A condenação já imposta
sobre sua vida era suficiente.
— Você, a mais perfeita entre as perfeitas, deve encontrar a maior
das honras em estar perante o Conselho Conubial. — Cília deteve-se diante
de uma passagem abobadada, toda entalhada em pedra branca, e fez sinal
para que a seguisse. — Faça o que de você foi prometido.
Elya sentiu o desespero apertar sua garganta com a menção ao título
pelo qual insistiam em chamá-la e com o fato de que, aos olhos da mãe e de
muitos outros, ela não era uma pessoa, mas sim uma promessa.
A profecia viva.
Quase cega pelas próprias emoções, seguiu a mãe à revelia enquanto
imaginava se o Conselho Conubial ainda a consideraria a mais perfeita entre
as perfeitas caso empurrasse Cília escadaria abaixo conforme desciam e
desciam, Lyia sempre alguns passos atrás. Foi só quando os degraus se
abriram para o ar livre, que se deu conta de onde estava.
Para onde quer que olhasse, água quente jorrava através de fendas
nas pedras imaculadas que compunham uma enorme bacia de borda infinita,
projetada de forma semelhante a antigos banhos romanos terrestres. Cascatas
finas como véus de noiva evaporavam com a atmosfera quente, deixando o
ar inebriado com a doce seiva do crepúsculo. Incensários enfincados em
rochas tão brancas, que só poderiam ter vindo de outros planetas,
queimavam óleos essenciais que misturavam-se à bruma e enevoavam a
grandiosa estrutura que desafiava a gravidade, levitando muito acima do
chão.
O céu bordado por constelações era a única testemunha daquela que
era a noite mais longa do ciclo lunar, e, no centro do firmamento, Tenar e
Ésper resplandeciam sozinhas, como se os outros astros houvessem se
retirado para apreciar o iminente espetáculo, pois qualquer um seria capaz de
sentir o ar impregnado de magia antiga e fundamental.
— Deixe-nos — Cília instruiu Lyia, que aguardava silenciosa e
obediente ao final da escadaria. — Este ritual não é para seus olhos
estrangeiros.
Elya sentiu-se enjoar com a prepotência, mas seu mal-estar
certamente era muito mais causado pela própria covardia, uma vez que
jamais havia se imposto diante daquele tipo de situação, que sabia estar
errada. Quisera ter a coragem necessária para se insurgir...
— Você está prestes a ocupar seu lugar de direito em nossa sociedade
— a mãe prosseguiu quando ficaram sozinhas, desatando os nós que
prendiam suas vestes, como se fosse apenas mais uma das tarefas habituais
que realizava, a despeito de nunca se tocarem. Passou por cima de seus
pensamentos; sequer pediu permissão. — Não poderíamos estar mais
orgulhosos — complementou, com palavras carregadas de vaidade.
Não acreditou nelas, pois onde caberia apenas orgulho para a mãe,
sabia que caberia simplesmente felicidade para o pai, e aqueles conceitos
não poderiam ser mais distintos.
Quando o tecido finalmente caiu, a filha se aproximou da água,
sentindo a textura grosseira das rochas da escadaria esculpida fazer cócegas
nas solas de seus pés delicados.
— Lave-se da inocência das crianças, querida filha, pois você agora
deve ser uma mulher — ordenou a mãe, imbuída de uma autoridade que fez
a névoa subitamente abrir passagem.
Elya segurou a respiração e submergiu entre as bolhas até
desaparecer por completo. No fundo da banheira, onde tudo era calmaria e
silêncio, pequenos cardumes bioluminescentes mordiscaram as pontas de
seus dedos, e ela abriu os olhos, distinguindo Tenar e Ésper que, mesmo
distorcidas pela água, lhe sorriam como duas confidentes.
Passara a infância toda ouvindo as histórias sobre aquela bênção e o
que significava para seu povo, preparando-se para aquele exato momento
assim como toda criança que nascera belariana.
Em Belar, acreditava-se que Tenar e Ésper já caminharam sobre a
superfície um dia, como Deusas tão apaixonadas que quase destruíram o
mundo quando um obstáculo ameaçou separá-las. Temendo o poder e a força
que possuíam quando estavam juntas, foram presas no firmamento por seus
irmãos celestiais, os deuses antigos, incapazes de reunirem-se outra vez para
todo o sempre.
Amantes, ou eternas enamoradas.
A cada noite, procuravam-se no céu e, quando estavam tão próximas
que era possível sentir sua atração até em Belar, eram obrigadas por Gautan,
o guardião, a separarem-se.
Mas não naquela noite.
Naquela noite, a mais longa do ciclo, as Soberanas por um breve
instante tocavam-se e, quando estavam perto o suficiente para colapsar e
tragar o mundo em fome e desejo, liberavam em Belar um último lampejo de
poder celestial, que era recebido por seus filhos e filhas na forma de uma
bênção, antes de se afastarem novamente.
Inspirada pela história, Elya emergiu para respirar com água
pingando dos longos cílios, incapaz de refrear as palavras que já lhe
deixavam os lábios:
— Mãe, você o ama? O papai. Você já o amou algum dia?
A princípio, Cília fingiu não ouvir, talvez pensando que a filha
jamais dirigiria uma pergunta tão ousada a ela. Depois, não escondeu o
quanto ficou desgostosa.
— Tudo indica que meus genes nada tinham de bom a oferecer nesta
união, já que você é igualzinha a seu pai na aparência e nos conceitos
absurdos — respondeu por fim. — O amor não tem a ver com o dever ou a
honra envolvidos em um casamento; é um conceito que torna as pessoas
voláteis. Considero o dever com meus semelhantes muito mais nobre e
poderoso do que o amor — desdenhou, com um brilho estranho crescendo
nas írises prateadas.
Aquela resposta era exatamente o tipo de coisa que Cília diria, e Elya
não soube por que, em primeiro lugar, se deu ao trabalho de buscar o
conselho dela.
— E Tenar e Ésper? — insistiu, voltando os olhos com esperança em
direção ao céu. — Não é em nome do amor delas que estamos aqui hoje?
Você não acredita nisso?
A mãe dirigiu-lhe um olhar cortante, como se tivesse acabado de
ouvir a maior das heresias.
— Não diga bobagens. Nossas Soberanas não devem ser
desmerecidas apenas porque você tão claramente reluta em aceitar o próprio
papel na sociedade — advertiu, curvando-se para as luas com toda a
deferência esperada. — Todo amor que já conheci transformou-se em
egoísmo, e é isso que a história nos ensina. Agora venha — disse,
estendendo-lhe uma das mãos como se desse o assunto por encerrado. — O
momento se aproxima.
Elya dispensou a ajuda, temendo que mesmo um simples toque de
Cília pudesse contaminar seu espírito com frieza. Uma brisa suave beijou
sua pele quente, causando-lhe arrepios, e sua atenção foi imediatamente
requisitada por um pequenino espelho incrustado na beirada do banho, quase
perto demais do vácuo acima do qual flutuavam. Ele teria passado
despercebido pelo resto da noite se não tivesse começado a brilhar como
uma estrela caída naquele momento.
Se a mãe notou sua curiosidade, nada disse. Deu-lhe as costas e
ergueu os braços esguios, adornados por pulseiras delicadas que tilintaram, e
entoou em transe uma convocação silenciosa, passada de geração em
geração.
Com os olhos escuros embebidos em expectativa, Elya mirou o céu e
ouviu o ar zunir e sussurrar quando Tenar e Ésper primeiro cruzaram-se no
alto e eclipsaram-se, incendiando a noite com um fulgor tão forte que, por
um momento, quase pareceu dia. Animais e plantas, assim como tudo o que
era vivo à noite, recolheram-se em busca de algum refúgio na terra. Mesmo
a mais suave das brisas ocultou-se atrás das árvores, pois não havia nem no
ar, nem no céu, lugar senão para as amantes.
A gravidade prendia as luas no firmamento — sua punição por terem
tentado queimar o mundo. Porém nem mesmo a lei universal foi capaz de
impedir o instante em que o tempo deixou de ser senhor e parou, como
humilde vassalo, para contemplar as Soberanas em todo o seu poder
entregarem-se uma à outra depois de tanta espera.
As luzes que refletiam e lhes eram tão características — a dourada de
Tenar e a prateada de Ésper — convergiram, incidindo sobre a superfície
reflexiva do pequeno espelho que, como se encantado, direcionou de
imediato o feixe para Elya. E quando aquela sagrada centelha a atingiu,
lágrimas de torpor turvaram sua visão.
Destituída de qualquer força para resistir, o que possuía de mais
íntimo emergiu das profundezas da própria alma, transformando sua
aparência para revelar o que de verdade carregava no coração, e ela sentiu
que dentro do corpo, bem no fundo, algo se acendia e nunca mais deixaria de
queimar.
Febril, sua mente perdeu-se em um momento eterno, que talvez não
tenha durado mais que um breve instante, enquanto os cabelos antes pretos
tornavam-se, da raiz às pontas, castanhos e quentes, depois amarelos e por
fim puros como ouro, e as írises eram tomadas pela mesma cor líquida e
incandescente, derramada das forjas de um ferreiro celestial.
Elya reluziu, como a mais preciosa das pedras.
Incandesceu, como a mais ardente das brasas.
E, então, estava feito.
Levou as mãos ao peito nu e caiu de joelhos, arfante, entregue à
exaustão, enquanto as luzes recolhiam-se em direção ao alto e o manto do
céu retomava sua coloração habitual, com milhares de pontos brilhando na
imensidão escura do espaço entre as nebulosas.
À sua frente, Cília se curvou em uma reverência profunda, quase
tocando a testa no chão, e com olhos marejados exclamou com um tom
respeitoso e deferente que ecoou, talvez, por todo Belar:
— Elya Bespian, Tenar a reclamou!
Elya deixou-se ficar de joelhos no pavimento grosseiro por tanto
tempo que, quando finalmente sentiu os tentáculos de Lyia a erguerem do
chão, pensou que não teria força nas pernas para sustentar o próprio peso.
A implaviana amarrou uma túnica simples às pressas ao seu redor e
amparou seus membros fragilizados enquanto sussurrava palavras que seu
cérebro desarranjado se recusou a processar. Ela cheirava a mar. Calmo,
constante, mas também revolto. O mar de um outro mundo.
Apesar de não ser capaz de sentir nem mesmo o dedo mindinho dos
pés, o que quase a fez tombar duas vezes entre passadas descoordenadas, foi
escoltada escadaria acima e através de um longo labirinto de pedras brancas.
Cruzou pontes e distâncias inimagináveis, até chegar às portas de cristal que
reconheceu como as do próprio quarto.
Cansada, jogou-se no assento acolchoado da cadeira em frente à
penteadeira, que exibia uma impressionante coleção de fragrâncias de todo
Belar e, sem saber se estava alucinando, enxergou-se na superfície reflexiva
como uma estátua de ouro puro.
Piscou, agora já mais atenta, e inclinou-se em direção ao espelho.
Com a compreensão dos acontecimentos da noite quebrando como
ondas na praia, seus dedos compridos percorreram a pele sensível do
pescoço, braços e barriga, explorando o próprio corpo como se não mais o
reconhecesse ou pertencesse a outra pessoa.
Estava feito. Mas por que ainda ardia e queimava como se mal
tivesse começado?
Incapaz de quebrar a conexão magnética com o próprio reflexo,
pegou-se analisando a “mais perfeita entre as perfeitas” como não fazia há
muito tempo.
Por incontáveis vezes, ouvira que sua beleza exprimia tudo o que se
desejava para o futuro de Belar e que seu rosto era um verdadeiro encanto,
tão perfeito em simetria que sequer haveria critérios na Academia para medi-
lo e se tornaria o novo parâmetro.
Com os dedos ainda trêmulos, agarrou a própria mandíbula elegante
e virou o rosto de um lado para o outro, procurando por ao menos um
detalhe que a ajudasse a entender por que todos enxergavam nela paz,
enquanto entrevia em si mesma apenas angústia.
Não era nada fácil carregar todas as expectativas do mundo em um
semblante.
Baixou as mãos e deixou que os cabelos compridos e ondulados
escorregassem pelas costas, já quase totalmente secos, apreciando os tons
intrincados de dourado que tomavam cada fio, e sentiu certa satisfação
pessoal.
Se seu destino era um casamento sem amor ou esperança, que ao
menos tivesse a bênção calorosa de Tenar para consolá-la, e não a apatia
indiferente de Ésper.
Um singelo sorriso quis nascer de seus lábios com o pensamento,
mas morreu assim que cruzou os olhos com os de Cília, que a encarava do
outro lado do aposento.
— Com o tempo, você sequer se lembrará de como costumava ser
antes da bênção — a mãe disse, contra todas as suas expectativas, embora
ainda mantivesse a expressão fria. Não costumava ser o tipo de pessoa que
oferecia conselhos, ainda mais de modo tão generoso. — Tenar preencherá
todas as suas necessidades, e você sentirá como se tivesse nascido assim,
completa.
Elya encarou novamente o próprio rosto no espelho, incapaz de dizer
se de fato se sentia mais completa ou preenchida do que no começo da noite,
mas estava certa de que seu pesar não havia diminuído, uma vez que o
Conselho Conubial a aguardava assim que Gautan raiasse. Queria acreditar
que ainda havia tempo para encontrar uma saída daquele destino, porém, a
cada mecha que era desembaraçada pela escova de cerdas macias, ou a cada
fio que era preso em uma intrincada rede de tranças, mais opaca tornava-se a
centelha de esperança.
— Você está bem? — Lyia sussurrou, enquanto supervisionava não
muito impressionada o autômato que decorava seu penteado com pequenas
pedras preciosas alaranjadas.
Cília andava impaciente pelo quarto amplo, dando ordens cada vez
mais sem sentido aos robôs, e parecia prestes a perder a calma assustadora
que fazia dela uma estátua de prata sempre no limite da apatia.
— Definitivamente o oposto disso — respondeu, também baixinho,
aproveitando a distração para falar livremente.
A implaviana fez um gesto com os tentáculos, como se dissesse para
deixar de ser tão dramática.
— O mundo não vai acabar só por causa de um casamento — falou,
soando amargurada. — Acredite, já me casei mais vezes do que deveria ser
permitido por causa de um grande e enorme par de...
— Pelas Soberanas, não ouse terminar essa frase — Elya
interrompeu, empalidecendo.
— Eu ia dizer “tentáculos”. Um grande e enorme par de tentáculos
— esclareceu, com um sorriso travesso se formando no canto da fenda sem
lábios que chamava de boca.
Elya sentiu-se tentada a rir, agradecida por ter ao menos uma amiga
que se arriscaria a dizer coisas obscenas e proibidas, que despertariam a
cólera de todo um planeta, apenas para arrancar-lhe um sorriso em um
momento de desesperança.
— Só está dizendo isso porque, em Impla, você não foi obrigada a
casar com alguém que não escolheu — lamuriou-se.
— Nem você — ela retrucou, baixinho, curvando-se em sua direção.
— Não ainda, e talvez nem seja. Já pensou na possibilidade de que talvez o
Conselho e a combinação não sejam assim tão ruins, menina teimosa?
— Vão me obrigar a casar com um estranho, a ter filhos com ele! —
exclamou, erguendo a voz e arrependendo-se no mesmo instante. Damas
belarianas não se alteravam. — Ou ainda pior: vão me obrigar a casar com
alguém que conheço e não tolero — complementou, fazendo o possível para
se recompor.
A implaviana acariciou sua testa com ternura, em uma intimidade
antiga, antes de dizer:
— Eu a conheço melhor que ninguém, Elya Bespian, e sei que está
com medo. E tudo bem se sentir assim, desde que não transforme o medo em
desculpa. O futuro não se curva a ninguém — complementou, não em
belariano, mas no próprio dialeto, que arduamente ensinava a Elya desde que
se conheceram. As palavras eram fluídas como água, apesar de enrolarem
um pouco na língua, mas soaram claras o bastante para que compreendesse
que nelas havia um enigma.
— Você sabe de alguma coisa que eu não sei — Elya afirmou,
embora pudesse ter sido uma pergunta.
Os três olhos da melhor amiga se arregalaram, e a pele gelatinosa e
moluscular quase chegou a trocar de cor, empalidecendo.
— Pegue o vestido, Lyia, ela já deveria estar pronta — a voz de Cília
interrompeu-as, sempre contida e cadenciada. — E restrinja-se ao belariano
quando em serviço.
Lyia fez um gesto respeitoso com a grande cabeça de molusco,
murmurando um pedido de desculpas, e se afastou. Quando retornou, trazia
com o auxílio dos autômatos um traje belariano tradicional completo. Elya já
havia visto centenas (milhares) de trajes como aquele desfilando durante a
noite mais longa de cada ciclo desde que nascera, elegantemente envolvendo
belarianas reclamadas por Tenar ou Ésper nos bailes do Conúbio. Entretanto,
naquela noite mais longa do ciclo, tudo parecia...
Maior.
Mais imponente. Prestigioso. Espalhafatoso.
Estava nos gestos cada vez mais destemperados da mãe, e nos
segredos do pai. Nos planos dos quais ela não podia participar, nas conversas
interrompidas toda vez que se aproximava...
E embora a sociedade belariana prezasse pela equidade, manifestada
na forma da mais absoluta equivalência de condições, oportunidades e
riquezas para todos, não conseguia afastar o pensamento de que os Bespian
haviam encontrado uma forma de transformar sua maioridade em um
espetáculo.
Deixou-se ser vestida como uma boneca inanimada com o corpete
apertado, que pouco lhe deixava respirar, e as saias de delicada constituição,
formadas por inúmeras camadas de tecido negro como a noite sem estrelas,
que se sobrepunham de modo a imitar o desabrochar de uma flor abaixo da
cintura. Em cada uma das mãos, vestiu luvas que lhe chegavam até muito
acima dos cotovelos, feitas para impedir qualquer toque íntimo em público
agora que se tornara mulher.
Desceram por sua cabeça a última camada do traje, abotoada nas
costas, e posicionaram a extensa cauda, bordada lindamente com os
símbolos das Soberanas em quase total eclipse.
Ouviu quando Cília deixou escapar uma pequena exclamação de
contentamento, o que a fez despertar do transe no qual forçou-se a entrar.
Mirou-se no espelho.
— Pronta para servir ao seu propósito? — a mãe perguntou, como se
recitasse um discurso ensaiado; como se entre elas não houvesse nenhum
outro laço, a não ser o do dever.
Elya quis responder que não. Quis responder que renunciaria a tudo,
apenas para ser deixada em paz. Contudo, apenas assentiu da forma mais
delicada que podia, enquanto uma ideia lhe invadia cada pensamento e cada
respiração.
Se o futuro não se curvava para ninguém, ela também não se
curvaria.
Nenhum belariano jamais soube quem ou o que era exatamente o
Conselho Conubial.
Por lógica, não poderia tratar-se senão de uma instituição composta
por anciãos muito sábios, versados na língua do tempo e que previam, com
alta taxa de acerto, acontecimentos futuros desde sua mais infinitesimal
variação.
Ainda que esta fosse a teoria mais aceita pela sociedade científica —
pois a ideia de videntes, oráculos e todo tipo de adivinhos era bem difundida
no Sistema Exterior —, residia nela um problema fundamental que nenhum
estudioso, nem mesmo os filósofos da Academia, conseguira solucionar:
nunca se viu homem ou mulher entrar ou sair do Conúbio, a bela construção
onde o Conselho reunia-se para decretar suas sempre surpreendentes
combinações. Lá tampouco era ou um dia fora, desde que se tinha registro,
requisitado o trabalho de autômatos ou outros seres vivos para garantir o
bom funcionamento e a ordem, nem qualquer sorte de recurso orgânico ou
energético.
O Conselho operava de forma independente e não respondia ou se
reportava a ninguém, nem mesmo ao Governador Bespian. As decisões e
previsões eram apenas comunicadas e tornavam-se lei.
Ao amanhecer da noite mais longa do ciclo lunar, as portas abriam-se
para receber as mulheres — somente mulheres — abençoadas por Tenar e
Ésper. Ao fim da combinação, voltavam a se fechar, impenetráveis, até que
tudo recomeçasse no ciclo seguinte.
Sua pequena nave de viagem interna sobrevoava a península banhada
por um mar calmo e límpido, onde erguia-se o imponente Conúbio, tal qual
uma cornucópia divina esquecida em terra firme por descuido. Na espuma
das águas, criaturas com rabos luminosos dançavam ao som de uma música
própria, regozijando-se com o suave embalar das ondas em eterna crista, e
chegavam o mais perto que podiam da terra, como se impelidas pela curiosa
bruma que, vagarosamente, encobria tudo. Mas, alheia a essa calmaria, Elya
torcia nervosamente as mãos junto ao colo, achando difícil respirar.
Cília estava acomodada no assento logo à frente, com os membros
longos esparramados de forma teatral, perdida em pensamentos. Não
trocaram uma só palavra durante todo o percurso — o que, no começo,
pareceu excelente, mas passou a incomodar a filha. Para qualquer reclamado
por Tenar, a frieza dos filhos de Ésper era dolorida como uma ferida que
nunca cicatrizava, e, para Elya, cujo fogo da bênção ainda queimava, a
aflição era uma inquietante agonia com a qual não sabia lidar.
Sendo honesta consigo mesma, ainda não sabia lidar com muitas
coisas; afinal, no começo da noite, era considerada criança, e fora
transformada em mulher apenas por um capricho celestial. Seus cabelos e
olhos poderiam ter mudado — talvez até mesmo algo em seu íntimo, que
ainda não tivera a oportunidade de perceber —, porém continuava a se sentir
a mesma menina.
Havia perguntado à mãe o que esperar do Conselho Conubial muito
antes daquela terrível sombra aproximar-se tão definitivamente de sua vida,
bem como a uma ou outra amiga que já havia passado pela experiência, em
busca de pelo menos um pouco de consolo, porém as respostas sempre eram
vagas e inexatas.
Não se recordavam da experiência em quase nada.
Tudo havia sido como um sonho há muito esquecido, do qual restara
apenas um nome, um rosto ou uma sensação…
Sentiu vontade de perguntar novamente, uma vez que não havia nada
nem ninguém além delas e dos elegantes painéis da nave que piscavam de
forma ininteligível a seus olhos leigos, mas o medo da resposta a impediu.
O conselho em implaviano de Lyia repetia-se no fundo de sua mente,
como se gravado em cada célula. Ela queria ser capaz de mudar o próprio
futuro, mas mesmo de suas mãos de longos dedos escorria a oportunidade —
ou talvez a possibilidade.
Remexeu-se, pensativa, entre todas as camadas de tecido que a
embrulhavam, e voltou a atenção novamente para as janelas e o mundo do
lado de fora, tão irreal e, ainda assim, o único que conhecia bem o bastante
para amar e até mesmo odiar.
Nada era longe demais quando se estava a bordo das elegantes e
eficientes naves belarianas, e o trajeto logo terminou quando se viu rodeada
por naves quase idênticas a sua, que cruzavam o céu silenciosamente vindo
de todas as direções do grande continente, convocadas pela tradição e pelo
dever.
A altitude baixou, e uma plataforma foi delicadamente estendida e
inflada, atingindo a consistência de um tubo de vidro cristalino, ligando o
interior ao mundo lá fora. Mãe e filha ergueram-se para cumprir os papéis
que lhe haviam sido determinados.
Elya mordeu as bochechas por dentro e cerrou os punhos, segurando
a fúria que queimava e queimava em seu cerne, cada vez mais alimentada
pela proximidade da combinação que, por tanto tempo, abominou. Seus
olhos dourados mantiveram-se fixos nos prateados de Cília enquanto entrava
no tubo, em desafio. De repente, a mãe abriu a boca, parecendo que, pela
primeira vez, iria dizer-lhe algo importante de verdade, em vez de discursos
ensaiados sobre honra ou tradição.
Algo espontâneo.
A expectativa do momento preencheu o espaço, enquanto os traços
sempre duros e sem emoção transformavam-se, abandonando a máscara. Por
um breve instante, a verdadeira Cília surgiu, em enorme tormento, porém os
lábios logo tornaram a se fechar e a sua apatia habitual retornou ao rosto.
Elya percebeu que ela havia desistido; não naquele momento, mas há muito
tempo.
Renunciado a toda e qualquer verdade que viesse do coração.
Por isso, para poupar ambas de mais embaraço e decepções, como
claramente eram uma para a outra, deixou-se levitar em baixa gravidade em
direção ao chão, enquanto assistia Gautan nascer e seus primeiros raios
rubros atravessarem as nuvens.
A bola incandescente e alaranjada do magnífico guardião preencheu
todo o céu, tão próxima que fez seus olhos arderem, e as criaturas da manhã
ergueram-se entre as folhagens e sobre os picos das montanhas, batendo
graciosas asas de plumas.
Voar em direção a Gautan significaria ruína, porém por natureza não
conseguiriam evitar. Quando entraram em contato com as fagulhas,
desfizeram-se em cintilas, que brilharam como estrelas fora do próprio
tempo.
E então Elya perguntou-se por que todos os seres acabavam atraídos
por aquilo que os destruiria.
Um passo.
As portas do Conúbio não pareciam abertas — ao menos, não da
forma como as imaginara. — Eram como grandes placas partidas, e, no
entremeio das rachaduras, damas belarianas vestidas com o traje típico
passavam, uma após a outra. Eram todas concebidas e nascidas na mesma
noite que Elya. Não por coincidência, mas por determinação.
Dois passos.
Como tudo no planeta da perfeição, cada detalhe fora
cuidadosamente planejado e executado para garantir o resultado esperado.
Há mais de mil e quinhentos ciclos não acontecia um nascimento fora
daquele dia, que sucedia a noite mais longa.
Três passos.
A procissão de abençoadas seguiu silenciosa, em uma dança de
cabelos dourados e prateados recém-adquiridos e camadas de tecido, com
ordem e calma, coordenadas por algum tipo de recepção imaginária que
indicava o que fazer.
Quatro passos.
Estavam sozinhas na península, onde nem pai, nem mãe, nem irmãos
eram autorizados a descer no dia da combinação. Do interior escuro da
construção, nada era possível divisar, senão uma névoa mística que as
engolia, sem deixar escapar luz ou som.
Cinco passos.
Sua presença foi logo percebida, apesar do nervosismo e euforia que
carregavam a atmosfera de egoísmo. Ela era a profetizada; a luz e esperança
do futuro. Seu rosto impossível de esquecer — ou evitar.
Seis passos.
Suas vestes foram tocadas por muitos dedos, e logo ficou evidente
que, como suspeitara, elas eram em muito mais opulentas e elaboradas que
as das demais belarianas, mesmo que todas viessem de famílias tão grandes
em riqueza quanto a sua. Mas não era a riqueza que lhe impunha o direito,
tampouco a obrigação, de ser a Messias que todo Belar ansiava. Era o título.
A mais perfeita entre as perfeitas.
Sete passos.
Seus olhos encheram-se de lágrimas, porém nelas não havia nem um
resquício de emoção ou orgulho, como esperava-se que sentisse por ter sido
agraciada com tamanha honraria.
Oito passos.
Determinada a não demonstrar ainda mais sua fragilidade, voltou as
írises para cima, incapaz de reconhecer a própria nave em meio a tantas
outras que pairavam. Soube que Cília a assistia e que não poderia fugir da
tradição sem tornar-se uma desgraça para si mesma e para sua família.
Nove passos.
As portas elaboradas e repletas de adornos estavam bem à sua frente,
imponentes em toda a sua complexidade simplista, como se esculpidas para
deuses.
Dez passos.
Um mar de vestidos recuou, deixando livre a passagem para Elya.
E ela sumiu dentro da névoa.
A escuridão dentro do Conúbio era densa, tão ausente de vida que
parecia sequer existir, e embora Elya tivesse a certeza de que as pernas ainda
se moviam, o eco de seus passos era incessantemente engolido, de modo que
não sabia se marchava no mesmo lugar ou seguia em frente.
Com a sensação de que estava deixando algo essencial passar
despercebido, tentou falar e chamar pelas outras garotas, perguntar se
entendiam o que era esperado delas, mas suas palavras foram silenciadas
antes mesmo de deixarem a ponta da língua.
Aflita, esforçou-se ao máximo para parar e organizar os
pensamentos, porém os pés seguiram em frente, como se não dependessem
mais de seus comandos.
Incapaz de agir de outra forma, prosseguiu assim por um tempo que
não saberia medir, pois nem uma coisa, nem outra, existia naquela estranha
dimensão, e foi somente quando a exaustão ameaçou baixar por sobre ela e
vencer o pouco de resistência ao exercício que seu gênio ainda impunha que
a névoa se dissipou.
Paredes de uma pedra branca e imaculada apareceram, formando um
longo corredor obscuro cujo fim ou começo pareceu-lhe impossível de
identificar à pouca luz. A bruma densa acomodou-se junto aos cantos,
tomando forma de longas e rudimentares tochas, cujo uso e nocividade havia
apenas ouvido falar em aulas de história.
Seu olfato foi tomado por aromas tão incomuns em Belar que, por
um instante, imaginou-se em outro planeta, na antiga Terra de seus
antepassados, tocando com a ponta dos dedos enormes campos de sândalo e
agulhas de pinheiro, enquanto o mar, salgado, quebrava em encostas
escarpadas. Depois, sentiu o cheiro úmido das florestas, onde criaturas vis
cresciam ao lado de criaturas belas e onde morte e vida uniam-se em uma
dança de iguais.
Tais conceitos, imagens e nomes eram quase alienígenas para ela,
nascida milhares de ciclos depois que a humanidade se lançou no espaço e
colonizou mundos como Belar, o planeta da perfeição, onde não existia
decomposição nem morte, e tudo era centelha de luz.
Com as sensações fazendo as mãos latejarem e uivos de animais
estranhos ecoando através das pedras, que por vezes tomavam a forma de
troncos de árvores cobertos de musgo, cruzou o corredor estreito com
desconfiança. Ao seu redor, o ar frio e salgado queimando suas bochechas
estalou e crepitou como fogo, e palmas e passos ressoaram em uma
coreografia cujos passos desconhecia. Ela rodopiou contra a vontade, feito a
marionete de um Deus mais antigo que Tenar, Ésper ou Gautan.
À sua frente, uma porta surgiu conjurada por névoa, entalhada em
madeira putrefata, e abriu-se com um ranger dolorido, convidando-a a entrar.
Elya esperou que os pés a impelissem para frente, como haviam feito por
toda a jornada, porém nem um único passo foi dado contra sua vontade.
A mensagem era clara: a decisão era dela.
Movida pela curiosidade de saber o que havia além da fresta escura,
atravessou-a, apenas para encontrar-se encerrada no interior de uma sala
coberta de espelhos, que refletiam os milhares de milhões de Elyas que
poderia vir a ser diante da menor das variantes. Seu futuro estava ali
completamente desvelado, sem qualquer mistério. Se esticasse as mãos,
poderia tocá-lo.
Piscou diversas vezes, perdida em meio a tantas versões de si mesma,
até que uma Elya em particular lhe chamou atenção: um reflexo perfeito de
sua aparência, porém estranhamente feliz; preenchida com um sentimento
que sempre lhe parecera inalcançável.
Seus olhos dourados fixaram-se nos exibidos pelo reflexo, muito
mais brilhantes e repletos de propósito. Não era ela de verdade, não se
deixaria enganar, mas naquele momento desejou que fosse, pois nem todas
as riquezas e os luxos de um planeta perfeito conseguiram satisfazê-la.
O que queria não possuía preço, não poderia ser comprado, nem
concedido.
Precisava ser conquistado.
Aproximou-se alguns passos da superfície reflexiva, que foram
imitados pela versão exibida no espelho, e a conexão entre elas tornou-se tão
intensa que fez tudo se estilhaçar em milhares de pedaços. Temendo o que o
impacto dos fragmentos poderia causar-lhe, ela ergueu os braços para
proteger o rosto e se curvou. Contudo, a chuva de estilhaços jamais a atingiu,
pois havia sido transformada em fumaça antes mesmo de chegar ao chão.
Completamente atônita, olhou ao redor sem mais reconhecer a sala,
pois não havia mais reflexos, tampouco espelhos ou portas estranhas para
observar. Estava no centro de um grande salão de baile, enfeitado por
imponentes colunas de pedra branca e lustres que desabrochavam do teto
como flores. Ao seu redor, casais rodopiavam, felizes e corados pelo esforço.
Uma melodia melancólica ecoava, mais distante, do pianoncelo
disposto ao fundo do salão, que um aldaviano dedilhava de forma impecável
— nenhuma outra raça, com menos braços, seria capaz de tamanho feito. Ao
redor do instrumento, minúsculos seres bioluminescentes flutuavam em
espiral, como um cardume. Cada vez que se impulsionavam para frente com
as pequenas asas — ou nadadeiras —, deixavam escapar um tilintar que
acompanhava as sutilezas da harmonia.
Elya passeou pelo salão de forma cautelosa, fitando rostos que,
curiosamente, lhe eram muito conhecidos. Viu os Bart, os Berk e os Barar.
Viu suas amigas, Lilith e Prya, acenando uma para a outra alegremente da
pista de dança, e os trigêmeos Alur, Asbec e Ather, que a reverenciaram em
um gesto quase coreografado, com os cabelos compridos brilhando em prata
liquefeita.
— Elya Bespian — chamou uma voz, cortando o ar e causando-lhe
dolorosos arrepios. Carregava o crepitar das fogueiras, a brisa doce dos
campos e o cheiro úmido das florestas. A madeira, o ferro e o sangue.
O futuro, que jamais se curvava, e o passado, que jamais se
alcançava.
Uma voz familiar.
Tão familiar, que soava estranha.
— Tudo em breve mudará, mas seu coração permanecerá o mesmo
— a voz prosseguiu, como se estivesse não apenas dentro de sua cabeça,
mas em toda parte, pulsando junto às paredes com o ribombar do sangue em
seus ouvidos. — Respeite-o. Ouça-o. Dentro dele encontram-se todas as
respostas de que precisa. E segure a mão daquele que a estende sem temer,
assim nunca estará sozinha.
Então se foi.
Elya absorveu as palavras e as repetiu, na própria cabeça, incontáveis
vezes. Imaginou que, após um tempo remoendo a revelação, o prenúncio
estranho, as coisas começariam a fazer algum sentido.
Não fizeram.
A valsa de Belar ecoou pelo salão e, ao redor da pista, homens e
mulheres se alvoroçaram, convidando parceiros para executar a tão
tradicional dança. Os instrumentos aceleraram o ritmo, crescendo no
compasso, e ela odiou-se por não ser capaz nem mesmo de entender a
sentença que era imposta sobre sua vida.
Foi quando um pigarro a sobressaltou.
— Srta. Bespian — chamou uma voz masculina e tímida. —
Permita-me dizer, se não for muita ousadia, que sua beleza estonteia meus
sentidos e me tira o sono. — Sem esperar qualquer sinal da parte dela,
continuou: — O dourado lhe cai muitíssimo bem. Me concederia a honra
desta dança?
Elya apertou os olhos, um tanto quanto surpresa, e virou-se para
encarar o rosto que lhe fazia tão indecoroso e aberto elogio. Era Ather
Boglian, um dos trigêmeos.
— Você ouviu essa voz? — adiantou-se, ignorando por completo o
convite, enquanto apontava para cima e para todos os lados. Deveria parecer
uma completa louca. — Ouviu o que disse?
A expressão de Ather tornou-se confusa por um momento, porém
antes mesmo que pudesse formular uma resposta, foi interrompido por outro
convidado não anunciado.
— Ora, Boglian, chegou mesmo a considerar que uma criatura tão
perfeita e rara como a srta. Bespian dançaria a valsa de Belar com um tipo
como você? — desdenhou Erik Bart. — Srta. Bespian, o dourado lhe cai
bem — repetiu a cordialidade. — É uma honra estar em sua presença e me
sentiria ainda mais honrado se me concedesse...
— Para trás, Bart — advertiu Anders Berk, com certa ferocidade no
olhar. Suas famílias eram antigas antagonistas, embora coisas como
violência não existissem em Belar e discussões ou joguetes fossem
reservadas aos inflamados espíritos jovens. — Não vê que está desagradando
a delicada dama com essa sua cara feia? — Ele se voltou para ela. — Srta.
Bespian, o dourado lhe cai bem, e sua beleza é fascinante. Me ponho aqui,
como um eterno servo, a seus pés. Me concederia a honra desta dança?
Elya não compreendia o que estava acontecendo. Perdida, olhou para
o mar de casais ao seu redor, que se estendia pelo salão a perder de vista,
pela primeira vez reparando nas damas vestidas com o traje belariano típico,
como o seu, e nos sussurros, muitas vezes apaixonados, de “o dourado lhe
cai bem” ou “o prateado lhe cai bem”.
Não poderia ser outro senão o Baile do Conúbio, em que damas e
cavalheiros eram apresentados pela primeira vez à sociedade belariana como
filhos de Tenar ou Ésper, passado o ritual, e o laço da combinação decretada
pelo Conselho Conubial aflorava na forma de um chamado fulminante que
unia os casais em perfeição.
— O dourado lhe cai bem, srta. Bespian — outro cavalheiro saudou-
a, já com a mão estendida para convidá-la para valsar. Foi levemente
empurrado para o lado por outro trigêmeo Boglian, que se aproximou com
um sorriso presunçoso demais, até para um belariano.
Os olhos prateados do filho de Ésper não escondiam a expectativa, e
Elya subitamente deu-se conta do motivo pelo qual todos os cavalheiros não
comprometidos do salão pareciam acotovelar-se para chegar até ela:
esperavam ser sua combinação.
Afinal, que homem não gostaria da honra de ser combinado com a
mais perfeita das perfeitas? O futuro de Belar entrelaçava-se também com o
seu; residia em seu ventre, que geraria os filhos do progresso. Não havia um
só belariano que pudesse se conter com a possibilidade de participar de tal
concepção.
Elya sentiu que os pulmões se comprimiam sob o espartilho apertado
e que os seios acabariam pulando do decote por serem tão descaradamente
encarados conforme os convites para a valsa multiplicavam-se. Viu-se presa
e sufocada em meio a tantos pedidos e mãos estendidas que, ignorando as
tradições, ameaçavam tocá-la.
Não sabia onde estavam os pais, nem Lyia, e tentou gritar para que
todos se afastassem, mas a voz não deixou a garganta. As paredes de pedras
fecharam-se ao seu redor, diminuindo e diminuindo, até que estivesse, ela
própria, bem pequena em um mundo que começava a escurecer.
É apenas um sonho. É apenas um sonho. É apenas um sonho.
Sentia-se caindo, afundando na própria consciência e na respiração
acelerada, quando subitamente uma mão enluvada quebrou a barreira e se
estendeu bem à sua frente, sem apresentação nem saudação.
Elya não sabia a quem pertencia, nem com que intuito lhe era dada,
porém ela a segurou com mais força do que jurou possuir e de forma
decidida foi puxada para fora da armadilha de corpos, protestos e pedidos.
Então ela o viu, e foi como se...
O tempo parasse.

Ulian Bened, o primogênito de sua casa, a encarava com certo


divertimento selvagem, o que jamais se esperaria de um belariano. Atônita,
Elya agarrou-se aos braços decididos, que a seguravam pela cintura como se
jamais fossem soltá-la, e deixou ser rodopiada em direção à pista de dança,
alheia aos olhares que todo o Belar lançava ao homem que parecia ter levado
o prêmio mais alto do Baile do Conúbio.
O corpo queimava através do tecido no ponto que os dedos dele a
tocavam, e tudo passou como um borrão. Mal viu quando ele se aproximou,
impondo o corpo alto mais para junto do seu e invadindo-a com um aroma
característico de terra e orvalho, o que poderia ser considerado um escândalo
em qualquer outro baile, não estivessem todos em tão grande expectativa.
Será que a mais perfeita entre as perfeitas havia enfim sido
combinada?
Ombros largos bloquearam sua vista, e, quando Ulian se abaixou, a
primeira coisa que Elya identificou foi a boca sorridente, que ele levou para
perto da orelha dela antes de sussurrar com um tom rouco que lhe causou
arrepios:
— Vejo que Tenar a reclamou. — Fez uma pausa, e ela quase pôde
senti-lo umedecendo os lábios com a ponta da língua. — O dourado cai bem
em todas as outras, mas em você eu diria que chega a ser desonesto, Elya
Bespian.
Elya teve certeza de que iria desfazer-se bem ali. Suas bochechas
queimaram; seu corpo inteiro queimou, e não só pelo toque que quase nunca
compartilhavam, mas pela forma como seu nome foi pronunciado por aquela
boca tão perfeita.
Íntima, como um segredo que apenas os dois dividiam.
Ele se afastou, seguindo os movimentos da dança, e os olhos
dourados dele reluziram como se o ouro que os compunha houvesse acabado
de sair da forja, incandescente em seu mais puro estado.
Ela o conhecia melhor do que poderia conhecer qualquer outro
homem, pois, apesar das tradições e das constantes interrupções de seu pai
ao longo dos ciclos, Ulian era um bom amigo, tão inclinado a desprezar os
costumes quanto ela própria.
Ele tampouco parecia sempre arrebatado por seu rosto, o mais
perfeito entre os perfeitos, ou impressionado com seu profético papel na
sociedade Belariana. Diferente dos outros, não exibia sorrisos cheios de más
intenções quando a via desfilar pelos salões de baile, com os vestidos que,
desesperadamente, escolhia apenas para impressioná-lo.
— O Conselho Conubial a proibiu terminantemente de falar quando
decretou sua combinação ou o eleito foi tão impressionante que a deixou
sem palavras? — Ulian indagou, com o rosto anguloso sendo tomado por
uma emoção que ela não soube identificar.
Os cabelos encaracolados dele caíram por sobre os olhos, dourados e
quentes, e Ulian os afastou com um gesto tão delicado que fez Elya invejá-
los, pois tudo o que mais almejava era ser tocada também por aqueles dedos.
— Desculpe — ela balbuciou, fixando o olhar nos próprios pés para
não errar os passos. — Agradeço a saudação, filho de Tenar.
Ulian abriu um sorriso que poderia fazer o continente inteiro
florescer. Nas orelhas, brincos de ouro e pedras raras tilintaram, presos por
delicados fios que atravessavam a hélice, derramavam-se em direção ao
pescoço como estrelas cadentes. Eram um sinal claro de rebeldia, pois
belarianos jamais adornavam seus corpos de modo permanente, uma vez que
eram templos de perfeição.
— Ora, Bespian, não há necessidade de tanta formalidade.
Elya também sorriu, lembrando-se de que ele era o único em todo o
Belar que não a chamava por senhorita e que sempre sustentava um tom de
desafio em cada pergunta, como se quisesse levá-la aos limites, só para ver o
que aconteceria depois.
Ao menos se soubesse que ele era faísca, e ela a brasa pronta para
transformá-los em cinzas...
— Não me culpe por estar surpresa. Não esperava que, de todos em
Belar, fosse ser justamente você quem me convidaria para a valsa. Você não
gosta de dançar, Bened — devolveu, fazendo questão de também chamá-lo
pelo sobrenome.
Ele gargalhou, tão lindo e tão perfeito que chegava a doer.
— Não suportaria que pensasse mal de mim, Bespian, por isso
asseguro que o fiz porque você parecia estar prestes a ser engolida por estes
cavalheiros cheios de hormônios. — Gesticulou ao redor, como para provar
seu ponto. — E tenho um dever cívico de fazer tudo em meu alcance para
manter o respeito às tradições como um cidadão belariano.
Quem gargalhou foi Elya, que sentiu os músculos relaxarem com a
condução fácil e a presença conhecida. Impelida pelo fogo que a estava
quase levando à loucura, levou delicadamente as mãos enluvadas até o
próprio pescoço, chamando a atenção para o colo acentuado pelo traje, e
encarou-o com intensidade medida.
— Eu os culpo pela falta de decoro, mas não tanto pela ardência dos
desejos — falou, com doçura. — De certa forma, eu os compreendo.
A expressão de Ulian tornou-se uma incógnita, e ela percebeu o
esforço que ele fazia para não ceder à tentação de estudá-la por inteiro com
os olhos astutos.
Só as Soberanas sabiam o quanto queria que ele cedesse.
— Ainda me lembro do dia em que nos conhecemos e de como você
era pequena e incontrolável. Sempre uma força da natureza... — ele
confessou, ignorando por completo a música e se aproximando um passo
silencioso.
— Eu já sou bem crescida agora, Ulian — Elya murmurou,
pronunciando o nome dele como a um apelo.
O pomo dele subiu e desceu, porém os olhos não vacilaram uma
única vez.
E ali estava a verdade que ela sempre soube, e da qual não poderia
nunca se esquecer a despeito de todas as provocações: ele era o único que
não a queria.
Sempre mantendo-se distante. Sempre respeitoso demais.
— Parece que sim — Ulian respondeu, um tanto quanto
desconcertado, estendendo-lhe a mão. — Mais uma dança antes que eu me
arrependa?
Ela encarou a mão estendida e, subitamente, lembrou-se do porquê
havia sido levada até ali. A profecia havia sido materializada e ecoava,
cristalina como água, invadindo cada um de seus pensamentos:
Tudo em breve mudará, mas seu coração permanecerá o mesmo.
Respeite-o. Ouça-o. Dentro dele encontram-se todas as respostas de que
precisa. E segure a mão daquele que a estende sem temer, assim nunca estará
sozinha.
Nervosa, tirou as luvas, e os dedos cobertos de anéis venceram a
distância, timidamente, naquele que era o gesto mais íntimo que um casal
poderia exibir em público, pois marcava o aceite da combinação.
Ainda que para o toque não houvesse nenhum obstáculo, seus dedos
penderam, inertes e incapazes de alcançar o intangível, mergulhados em ar e
incompreensão.
Diante de seus olhos, o imponente salão de baile da residência dos
Bespian, com todos os luxos e convidados, desfez-se pedra a pedra em
bruma pesada, e bem no meio dela uma passagem imensa se abriu, brilhando
em ametista, ao alcance de poucos passos.
Se ousasse dá-los.
Piscou, sentindo os cílios fazerem cócegas nas bochechas, e encarou
o vazio onde antes Ulian representara sua maior esperança e seu maior
desejo, combinados em uma intrincada e dolorosa alucinação perfumada de
ruína. Talvez pudesse gritar, praguejar, esbravejar, até mesmo amaldiçoar —
o que seria imperdoável em Belar — por terem-no roubado dela, da mesma
forma que ambos roubaram tempo, palavras e toques. Mas de que adiantaria,
se tudo não passara de ilusão?
Inspirando profundamente para calar os soluços que ameaçavam
rasgar-lhe o peito, forçou os pés a levarem-na para fora, onde a suave brisa
de Belar a recebeu carinhosa e quente, como uma amiga. Estaria
completamente sozinha se não fosse por Tenar e Ésper, redondas, enormes e
pontilhadas por crateras, e por uma solitária nave reluzente que ainda
flutuava no céu, com o tubo de gravidade baixado junto à terra, em
expectativa.
Cília a aguardava no interior da nave com uma expressão
indistinguível assombrando os olhos prateados e perspicazes quando Elya
subiu, e, ao falar, a voz parecia muito menos severa do que de costume:
— Dizem que o maior enigma do Conselho Conubial é, na verdade, a
arrasadora clareza com a qual enxerga dentro de nós. — Ela tocou com os
dedos pontiagudos um painel metálico, que se abriu para revelar diversas
provisões. — Confusa com a combinação que foi apresentada?
Um copo fumegante, contendo uma bebida forte e aromática, foi
servido, e Elya a virou em um único gole, sem nem mesmo saborear as notas
doces e melancólicas da seiva. Limpou com o dorso da mão uma gota que
escorreu pelo canto da boca, algo que uma dama jamais faria, e não se
importou com qualquer olhar perturbado ou julgamento.
Estava confusa, não poderia deixar de admitir, porém seria
certamente equivocado dizer que a fonte de sua desorientação era a
combinação apresentada, pois, de alguma forma, sentia que a mensagem do
Conselho Conubial havia sido muito clara: era Ulian Bened.
Sempre fora, é claro. Desde a mais tenra idade e a cada novo ciclo,
enquanto o via crescer e de menino passar a homem — enquanto ela crescia
e entendia melhor os próprios sentimentos. — Mas não era recíproco; não
era o amor que tanto almejara, livre e desimpedido, pois ele não a queria.
E existia um abismo entre eles que, por mais que Elya tentasse
superar com pontes, jamais cedia.
— Não compreendo como… — As palavras morreram.
Cília sorriu, não abertamente como os calorosos filhos de Tenar, mas
em um rápido lampejo sinuoso como Ésper, e devolveu o copo vazio para o
compartimento, que silenciosamente se fechou.
— Estou certa de que compreendeu, embora possa não aceitar. O
Conselho não se equivoca; não existe tal coisa como “engano” quando uma
combinação é decretada.
Elya recostou-se no próprio assento, encarando as Soberanas pela
grande janela como se pudessem, de alguma forma, ajudá-la apenas a
entender o significado do que aconteceu no Conúbio, já que não ofereceram
grande ajuda com todo o resto. Estava desapontada, sim, mas o que a
dominava por completo naquele momento era medo.
Encaminharam-se para o Baile do Conúbio, onde as combinações
seriam seladas e o futuro de Belar, por mais um ciclo, garantido. Ulian
estaria lá, apesar de desprezar as tradições, e ela morreria no interregno entre
contar a ele sobre o que fora decretado e o aceite que antecederia uma vida
de servidão e obediência para os dois.
Jamais conhecera outra forma de viver, na verdade, pois existia para
servir ao sobrenome e ao título de mais perfeita entre as perfeitas, assim
como para obedecer às tradições e fazer sua parte como cidadã. Contudo,
aquilo era diferente. Tornara-se diferente no instante em que o Conselho
Conubial lhe tirara a possibilidade de dizer “não”, pois como negaria aquele
que amava? Se fosse qualquer outro, ela poderia encontrar forças para
resistir, para se rebelar. Entretanto, como viveria o resto dos dias odiando o
homem com quem seria obrigada a partilhar o corpo, os descendentes e a
vida, se o que nutria por ele era o oposto da aversão?
Uma mão tocou seus ombros expostos muito suavemente, como o
sopro fresco de primavera, e Elya sobressaltou-se quando viu a mãe em pé,
ao seu lado, alisando o vestido que a cobria em franjas cintilantes.
— Seu coração saberá reconhecer a verdade — aconselhou de forma
enigmática no mesmo instante em que a porta da nave se abriu, revelando
uma escadaria de pedra branca e imaculada, iluminada pela luz das
Soberanas.
Elya reconheceu os balaústres e colunas monumentais, erguidos
como um antigo templo romano terráqueo há muito olvidado por aquele que
lhe dera nome ou escolhera o estilo — não parecia adequado que seus
antepassados nutrissem tanto apreço por aquela civilização esquecida da
Terra, pois aprendera em suas aulas de história que Roma era um Império
rico e próspero, mas que perecera como todos os outros...
Seguiu, degrau por degrau, distinguindo cada pétala e cada folha a
farfalhar no vento. O palácio, branco como uma miragem, bruxuleava contra
o tom ametista do céu, e os autômatos, polidos e brilhantes, enfileiravam-se
sempre à espera de um desejo para atender.
Estava em casa, no salão de baile dos Bespian.
Sem lhe dar nem mais um momento, a mãe chamou dois autômatos
para que estendessem a longa cauda bordada de seu vestido e, com vigor,
alisou as camadas do traje para que não houvesse um único vinco a
desmerecer a perfeição da filha em público.
Miraram-se nos olhos por um demorado e inconstante momento; um
choque dourado e prateado entre pessoas tão diferentes.
— Somos as últimas a chegar? — Cília questionou a um dos
autômatos.
— Sim, sra. Bespian.
— Anunciem-na como manda a tradição, então — ordenou,
encaminhando-se para as sombras, como se temesse que mesmo ela pudesse
representar um obstáculo para a mais perfeita entre as perfeitas. — E não se
esqueçam do título.
Uma voz metálica cortou a noite, fazendo calar o burburinho de
dentro do salão enquanto as portas arrastavam-se, macias, para permitir sua
entrada:
— Apresentando, no Baile do Conúbio, a srta. Elya Bespian,
primeira e única de seu nome. Filha de Tenar, a dourada. A mais perfeita
entre as perfeitas!
Elya deixou que o ar escapasse dos pulmões lentamente conforme
deslizava pelo piso lustroso e intrincado do salão em um turbilhão de
ansiedade, medo e tecido esvoaçante. Embora desejasse poder sair correndo
e esconder-se nos próprios aposentos, ou fugir para os confins dos jardins
onde nem Cília nem Lyia teriam coragem de segui-la, manteve as feições
relaxadas, como era esperado dela, e uniu as mãos placidamente para exibir
as luvas, que simbolizavam sua pureza de corpo e espírito.
Recebeu com cortesia os cumprimentos educados de todos os
belarianos que, com o maior decoro que conseguiam sustentar,
acotovelavam-se para ter um vislumbre da mais perfeita entre as perfeitas
em seu ápice de juventude e beleza. Por mais que já estivesse acostumada,
era sempre surpreendente e desagradável presenciar o efeito que seu rosto
causava naqueles que o encaravam: os olhos arregalavam-se e as feições
relaxavam, como se estivessem sob o efeito de um poderoso feitiço —
feitiço esse que Elya não sabia como anular e que sempre a fazia sentir como
se a vissem não pelo que verdadeiramente era, mas pelo que desejavam, no
mais íntimo, que ela fosse.
Lutou contra a própria curiosidade que a impelia a varrer o ambiente
atrás de um par de olhos dourados e brincos de estrelas, e encaminhou-se
como a mais bela e perfeita oferenda até o centro do grandioso salão de
baile. Uma melodia melancólica ecoava, mais distante, e ela se deu conta,
com certa comoção, de que já a havia ouvido...
Então um pigarro a sobressaltou.
— Srta. Bespian — chamou uma voz masculina e tímida, e Elya
reconheceu as palavras de Ather Boglian antes mesmo de se virar para
encará-lo.
Era estranha a sensação de estar revivendo um momento, e seus
passos a guiaram mais para perto dele enquanto procurava, de forma
minuciosa, por qualquer diferença ou mesmo semelhança entre a ilusão
vivida no Conselho Conubial e aquilo que se apresentava como realidade.
Mas seria difícil dizer, pois o rapaz jamais fora objeto de sua atenção.
Talvez em razão da proximidade ou da forma como atentamente o
examinava, Ather se animou e abriu um sorriso frio. Pareceu que diria algo,
porém, antes mesmo que pudesse articular qualquer frase, foi interrompido
por outro convidado não anunciado:
— Ora, Boglian, uma criatura tão perfeita e rara como a srta. Bespian
jamais poderia ser vista valsando com um tipo como você. — Erik Bart. O
mesmo tom orgulhoso de antes.
Ela estava alucinando, senão no Conselho Conubial, então agora.
Não estava?
— Você não perdeu tempo, não é mesmo, Bart? — Anders Berk se
aproximou com ferocidade. — Sequer conseguiu deixar a dama respirar...
Elya, contudo, mal os ouviu, perdida no mar de casais ao seu redor
que se estendia a perder de vista, e em todas as damas vestidas com o traje
belariano típico. Observou-lhes as expressões, notando que algumas
pareciam apaixonadas e felizes enquanto selavam a combinação que lhes
fora apresentada, ao passo que outras o faziam com profunda ausência de
emoção, talvez encontrando conforto no fato de honrarem as tradições de
Belar.
Ninguém descobriria se mentissem, pois tradicionalmente as
profecias do Conselho Conubial eram reveladas apenas às mulheres que lá
entravam. Ainda assim, Elya acreditava que nenhuma dama belariana jamais
tivera a coragem de dissimular ou negar a combinação, pois a honestidade
era tão estimada quanto a beleza.
— O dourado lhe cai bem, srta. Bespian — outro cavalheiro saudou-
a, já com a mão estendida para sinalizar a pretensão de convidá-la para
valsar, e naquele momento sua primeira impressão pareceu se confirmar.
A ilusão do Conselho Conubial se repetia — Ou seria a realidade que
a imitava? — à medida que todos os cavalheiros ainda não comprometidos
do salão rivalizavam para chegar até ela.
Obviamente não faziam ideia de que Elya já detinha toda a certeza de
quem era sua combinação, e que dentro do peito seu senso de dever travava
uma árdua luta contra a rebeldia que desejava repeli-los da maneira mais
grosseira possível, só para que parassem de despi-la com os olhos.
Onde estava Ulian?
Educadamente, declinou todos os convites que recebeu, porém os
pedidos multiplicaram-se ao seu redor de forma opressora, e, apesar de seus
esforços muito diplomáticos, mãos começaram a se aproximar, ameaçando
sua virtude e reputação como se sequer se importassem com as tradições.
Queriam pegá-la, tomá-la, reclamá-la como um objeto.
Em meio ao sentimento sufocante de que não havia como escapar da
armadilha, seu coração encheu-se de esperança quando se lembrou de Ulian,
embora a memória do que viveu no Conselho Conubial parecesse cada vez
mais distante e embaçada.
Ulian. Ulian Ulian. Agarrou-se ao nome e à sensação do toque dele.
Teria de encará-lo e confessar a combinação apresentada, mas ao
menos poderia ter mais um vislumbre daqueles olhos profundos e lábios
selvagens que só as Soberanas sabiam o quanto queria beijar.
Certa de que tudo logo ficaria bem, ela o procurou pela multidão, em
desespero.
Mas a mão enluvada não veio salvá-la.
Ao revés do socorro esperado, recebeu apenas toques nas camadas de
tecido que compunham sua elaborada saia e pisadas na cauda bordada que,
por pouco, não a desequilibraram.
— Deixem-me — murmurou, encontrando uma parede de corpos. —
Com licença, cavalheiros — pediu, um pouco mais alto, com os olhos
turvos.
Alguns olhares finalmente a perceberam, mas, qualquer que fosse o
mundo, homens nunca aceitavam de bom grado os desejos de uma mulher.
Não se moveram, contando com a intimidação ou com a força para fazê-la
ceder.
Ficou claro que teria de salvar a si mesma.
— Saiam de perto de mim! — encontrou autoridade para gritar, a
despeito do corpo todo tremer, sobressaltando os que estavam perto demais.
Passos lentos e confusos foram dados para os lados, e Elya abriu
caminho pela fileira com os próprios ombros, escandalizando a todos
enquanto disparava pelo gigantesco salão à procura da única convidada em
quem poderia confiar.
Os olhares e cochichos a seguiram conforme agarrava a barra das
saias e corria até a implaviana que, instalada confortavelmente em uma
longa chaise, tomava uma bebida, como se não tivesse preocupação alguma
na vida.
Os três olhos redondos e profundos arregalaram-se ao mesmo tempo
quando viu Elya completamente transtornada e esbaforida.
— Onde Ulian está? — perguntou, quase aos berros, sentindo o
controle esvaindo-se junto ao resto da sanidade. Ela arfava, com o peito
subindo e descendo violentamente, ameaçando romper os delicados pontos
que seguravam o decote no lugar.
— Que Ulian? — a amiga perguntou de volta, como se estivessem
falando idiomas diferentes. — Pelos deuses, Elya, acalme-se. Você parece
possuída.
— Ulian Bened — pronunciou o nome com toda a calma que
conseguiu. — Brincos nas orelhas, sempre me provocando por aí. Aquele
Ulian Bened.
Lyia fez um gesto de reconhecimento, como se mal pudesse acreditar
que havia se esquecido de quem era aquele Ulian Bened.
— Tudo bem, vamos nos acalmar enquanto eu vejo o que posso fazer
a respeito — pediu, apaziguadora, colocando o copo que antes segurava nas
mãos de Elya com firmeza. Puxou o dispositivo comunicador e, depois de
alguns toques e leituras, tornou a guardá-lo em um bolso escondido na
própria túnica. — Ele não está presente.
A terra abaixo dos pés de Elya pareceu tremer e, então, ceder.
— Como poderia não estar? — indagou, mais para si mesma do que
para Lyia, tomando um dos lugares à mesa antes que as pernas a traíssem. —
É o Baile do Conúbio, ele não deixaria de vir. Não poderia, em nome das
mais sagradas tradições. — Os olhos embaçaram, anunciando lágrimas. —
É o meu baile. Como ele poderia não ter vindo? Ele não faria isso.
A implaviana abaixou-se até que pudesse olhá-la nos olhos. A
expressão dela era um mistério, pois a diferença de traços e constituição não
revelava muito do que estava sentindo ou pensando.
— A presença dele foi requisitada pelo Conselho Científico do
Sistema Exterior, e endossada em moção pelo nosso Governador junto ao
Conselho de Cidadãos, para uma missão fora de Belar. Esta é toda a
informação que localizei.
A delicada taça de cristal que antes seus dedos seguravam estilhaçou-
se no chão, atraindo ainda mais olhares para a cena, até que pareceu que todo
o Belar assistia à queda da mais perfeita entre as perfeitas. — Não — Elya
balbuciou, incapaz de acreditar. — Não acredito; não pode ser. Olhe de
novo.
Uma tristeza sem nome a corroeu, e pareceu que tudo no salão de
baile dos Bespian perdeu um pouco do encanto enquanto uma solitária
lágrima abria caminho sobre suas maçãs proeminentes, ardendo tanto quanto
as chamas em seu coração. Não queria tê-la derramado; era um sinal de
fraqueza, mas o desespero venceu até mesmo sua força de vontade.
Um lenço lhe foi oferecido, e, quando ergueu os olhos
desesperançosos, encontrou as írises prateadas de Cília, faiscando tanto que
pareciam querer ganhar vida.
— Você entende agora? — sua mãe indagou em um sussurro, não
com a rigidez e a apatia de sempre, mas com uma serenidade cansada que
não lhe cabia. — Há uma escolha em toda combinação, e por quanto mais
importantes nos tomam, de mais teremos que abrir mão.
Elya sobressaltou-se, como se houvesse levado um choque, e, no
semblante daquela que a trouxe ao mundo e com quem sempre jurou em
nada se identificar, reconheceu a si mesma. Os mesmos medos e as mesmas
esperanças.
— Cabe a você rejeitar a visão mostrada pelo Conselho Conubial ou
fazer o que for necessário para concretizá-la — prosseguiu Cília. — Não
podemos ajudá-la, pois só você sabe das alegrias ou pesares que ela lhe trará,
mas, em ambos os casos, haverá um preço.
— Rejeitar? — A confusão e o espanto certamente ficaram
estampados em suas feições. — Como eu poderia? Não se contesta o
Conselho Conubial.
— Você pode, porém a renúncia ao amor não será desfeita, ainda que
se arrependa.
A filha ergueu-se em meio ao baile e aos casais que, como ela há
pouco, acreditavam que a combinação era um decreto eterno do qual não
havia escapatória, a não ser através da vergonha e da desgraça.
— Amor? — A palavra encheu-lhe a boca como um néctar amargo.
— O que isso tem a ver com amor?
— Quem melhor para saber do amor que já existe, ou daquele que
vai nascer, do que os que podem vislumbrar o futuro? O Conselho sabe de
tudo, e é necessário que se deposite amor em tudo que se deseja que floresça.
— Mas você mesma disse que o amor só me traria desonra...
— Se não fui verdadeira em algum momento, foi por querer o seu
bem, por achar que assim a protegia, minha filha.
Elya a encarou com um misto de desconfiança e tristeza, sentindo-se
traída. Ao redor, os passos, as risadas e as conversas ecoavam pelo salão
como se o tempo houvesse desacelerado; o baile havia retomado o próprio
ritmo, assim como as pessoas que, desinteressadas em dramas familiares,
voltaram suas atenções para as combinações que eram seladas em todos os
cantos.
— Eu me lembro muito bem de minha própria combinação e dos
segredos que eu guardava e me foram expostos pelo Conselho Conubial,
como se me olhasse no espelho — a mãe prosseguiu, quase nostálgica,
depois de olhar para os lados furtivamente. — Tudo ali, no reflexo. Tudo
exposto. O amor seria minha ruína. Já havia me arruinado, na verdade, e eu
jamais poderia permitir que minhas transgressões fossem conhecidas.
Mas Elya já não podia mais ouvi-la.
Passara a vida acreditando que a combinação era a morte do amor
honesto e espontâneo e, todas as vezes que via a forma como Cília agia perto
dela e de seu irmão mais novo ou de seu pai, crescia em seu peito a certeza
de que, para os belarianos, as uniões eram conveniências inevitáveis.
Durante a bênção, na noite anterior, a mãe havia lhe dito exatamente
aquilo, reafirmado que a maioridade traria apenas uma vida de servidão às
tradições, independentemente da forma como poderia se sentir. No entanto,
ao acaso, escolhera fazer ruir a base sobre a qual assentara suas convicções e
que ela própria havia ajudado a construir.
Sua mãe havia mentido.
O fogo dentro dela ardeu, e não conseguiu parar de pensar que, se o
Conselho sempre considerava o amor, a combinara com Ulian Bened não
apenas porque sabia como ela se sentia, mas porque também sabia o que ele
sentia, ou viria um dia a sentir. Ele a amaria, e aquela certeza apenas tornou
a ausência dele ainda mais desesperadora.
Erguendo-se com elegância, Cília lhe lançou um último olhar
dolorido antes de aconselhar:
— Eu escolhi o orgulho, e isso me levou muito longe, mas por um
caminho solitário. Seu pai seria o Governador e, portanto, não me deixaria
faltar nada, em especial a honra. Para jamais ser questionada outra vez, para
jamais sentir o peso do julgamento e a vergonha da minha profanação; para
não desgraçar meu sobrenome, eu o escolhi. Agora é a sua vez, então só
posso desejar que escolha bem.
No começo dos tempos, milhares de ciclos atrás, o universo era um
lugar de calma e ordem profundas. Em meio ao vácuo, ausentes todo som e
toda vida, a maioria das raças encontrava prosperidade e satisfação no
interior dos próprios planetas. O comércio fluía, livre e desimpedido, assim
como as viagens e a diplomacia, e através dos cinturões e das supernovas as
naves deslizavam em segurança, certas de que o mundo para o qual
retornariam, depois de partir, permaneceria imutável.
Mas então veio a grande cisma.
O nome foi dado ao evento cataclísmico levou um pequeno e
insignificante planeta azul, localizado no braço de Orion, a pouco mais de
sete parsecs de distância do centro da Via-Láctea, a quase fragmentar-se por
inteiro quando sua lua despedaçou-se e caiu dos céus, após a implosão de
seu portal. Ninguém teria dado muita atenção ao fato — já que tudo que
brilha e reluz um dia perece em decadência — se não fosse pela persistência
da raça natal da Terra que, com ganas de sobreviver, se lançou ao espaço
com foguetes ultrapassados em busca de um novo lar.
Naquele dia, todas as raças espalhadas pelo universo se depararam
com uma verdade crua que mudou a realidade que conheciam: um humano
obstinado era capaz de fazer qualquer coisa.
Antes da chegada dos humanos errantes em Belar, o planeta perfeito
abrigava apenas vida simples. Era fácil compreender, portanto, que os
belarianos modernos eram descendentes daqueles imperfeitos e ignorantes
terráqueos. Em última análise, Elya era tão humana quanto seus ancestrais e
provavelmente ainda mais teimosa.
Muito mais teimosa.
A despeito dos pedidos desesperados de Lyia, que implorou para que
ouvisse a razão e se afastasse da histeria, Elya deixou o Baile do Conúbio
muito antes do esperado e com ambas as luvas esticadas e intocadas nos
braços delgados.
Um verdadeiro escândalo.
Ela, a mais perfeita entre as perfeitas, estava destinada a dar exemplo
ou, quem sabe, um mínimo vislumbre da promessa que trouxera do berço e
cruzara o céu no momento de seu nascimento. Da primogênita Bespian, era
esperada nada menos que uma combinação fulminante, capaz de fazer
acender a noite com a esperança de uma nova era.
Mas todas as bocas só souberam falar, no momento que seus passos a
levaram para fora do grande salão sozinha, que Elya Bespian não havia sido
combinada com ninguém.
Era uma inverdade dolorosa e sustentá-la em silêncio feria não o
orgulho de Elya, ao qual jamais dera grande importância, mas o de seu
sobrenome ancestral. E pela forma como o pai evitava encará-la, acomodado
na enorme cadeira atrás da mesa de trabalho, podia ver com clareza a
decepção velada e a tragédia não anunciada que se abatiam sobre aquele
espírito sempre tão alegre, típico dos reclamados por Tenar, patrona dos
gentis.
— Não é culpa sua — ele repetiu, com a voz embotada. — Havemos
de encontrar uma explicação, minha menina.
Elya o encarou repleta de culpa, pois sentia que o traía. Logo ele, que
sempre lhe oferecera conforto e carinho, que fora seu refúgio em um mar de
grandes expectativas incompreendidas... Havia uma explicação, que queria
poder confessar, porém em grande parte não era sua para dar, e a lembrança
da confissão da mãe a corroeu por dentro, tal qual faria um veneno.
Tharcius percorreu o espaço que os separava com passos que mal
faziam barulho, sustentando um sorriso afável nos lábios. Os cabelos
dourados e os olhos grandes eram naquele momento exatamente iguais aos
dela, e a filha percebeu que herdara dele muitas outras características.
Eu escolhi o orgulho, e isso me levou muito longe, mas por um
caminho solitário.
Elya entendia. Entendera antes mesmo do que pensara ser capaz,
durante a noite que passara em claro entre os lençóis sedosos da cama,
enquanto o fogo em seu interior ardia como um chamado.
Seu pai seria o Governador e, portanto, não me deixaria faltar nada,
em especial a honra.
Cília poderia ter escolhido outro caminho quando o Conselho
Conubial lhe apresentou uma combinação, muitos ciclos atrás. Ainda que
reclamada por Ésper, poderia ser mais calorosa e mais gentil, se houvesse
respeitado os desejos do próprio coração. Mas o amor representaria para ela
uma confirmação das próprias transgressões que, embora não houvesse
nomeado, a filha bem imaginava a qual natureza pertenciam.
Para jamais ser questionada outra vez, para jamais sentir o peso do
julgamento e a vergonha da minha profanação; para não desgraçar meu
sobrenome, eu o escolhi.
Era por isso que estavam todos eles, os Bespian, unidos pela escolha
que Cília fez: a honra acima de tudo.
E seu pai não sabia. Sequer suspeitava, ao que tudo indicava.
Conforme ele se afastava e retornava para trás da mesa de trabalho,
depois de um último afago paternal em suas bochechas, as memórias de
infância — e outras nem tão antigas assim — voltaram, e ela lembrou-se de
todas as vezes que o vira se esforçar para arrancar da mãe um sorriso ou
mesmo uma simples palavra de contentamento.
Talvez ele a amasse. Sim, ele deveria amá-la, pois ninguém poderia
conhecer melhor o amor do que um filho de Tenar, e era uma terrível
lástima.
Cília, por sua vez, o desprezava com uma intensidade que chegava a
queimar como uma estrela.
— Não peço para que me conte nenhum de seus segredos, minha
menina, tampouco os que o Conselho Conubial lhe confiou, porém, como
seu pai, peço apenas o favor da sua verdade: você recebeu uma combinação?
Elya prendeu a respiração e, em um momento de insegurança, torceu
o tecido das saias. O olhar dourado demorou-se nas colunas imponentes que,
em pares, sustentavam o teto alto do escritório, assim como nos delicados e
riquíssimos afrescos de outras eras que adornavam as abóbadas de cristal.
— Sim — confessou, quase como um pedido de desculpas, sentindo
o corpo todo estremecer.
Talvez fosse um erro terrível deixar que ele soubesse que fora, sim,
combinada, pois o tempo não lhe era favorável: as combinações precisavam
ser seladas dentro dos anoiteceres seguintes ao baile, quando a magia das
Soberanas estava ainda em seu ápice, de modo a garantir o sucesso e a
compatibilidade.
Entretanto, a reação de Tharcius lhe passou despercebida, uma vez
que o pai não fez nenhum movimento ou som enquanto pensava. Quando ele
voltou a falar, a voz em nada se alterou da constante tranquilidade:
— Não tema, filha querida. Vamos consertar tudo, eu prometo.
Ela não soube o que ele quis dizer com aquilo, porém havia tamanha
honestidade no tom que não ousou perguntar, para não o alarmar.
Entendendo que havia sido dispensada, virou-se para sair.
Não pôde deixar, contudo, de dirigir ao pai uma última questão que
esperava que ele entendesse melhor do que ninguém:
— Você também sente queimar, papai?
Os olhos dourados e amáveis dele encontraram os seus, e, por um
instante, o rosto confiável relaxou, encantado pelo feitiço da mais perfeita
entre as perfeitas, sangue de seu sangue.
— Nunca vai parar, minha menina — foi tudo o que disse antes de
sorrir e voltar para os próprios afazeres, muito mais distintos e relevantes,
esperava ela, que a questão de seu casamento.
Lyia a estava esperando do lado de fora quando as portas se fecharam
silenciosamente às suas costas. Sua amiga estava parcialmente adormecida,
agarrada com os tentáculos a uma coluna de pedra, como se mal se
aguentasse em pé.
Era uma cena dramática, típica dela.
Pensei que ainda estivesse na cama — falou, ao passo que a amiga
abriu lentamente os três olhos escuros e desprendeu-se, ventosa a ventosa.
— Eu gostaria de estar — a implaviana respondeu, alisando a túnica
amassada. — Mas sou sua secretária, e meu dever é te seguir por aí nos mais
inconvenientes momentos do dia ou da noite.
Elya revirou os olhos.
— Não consegui dormir — confessou, abaixando um pouco o tom de
voz para que o eco das paredes não carregasse suas palavras. — Cada vez
que me lembro de que ele está por aí, em uma missão em um lugar qualquer
do Sistema Exterior, e eu aqui presa em Belar, sinto vontade de...
— Roubar uma nave e ir atrás dele? — Lyia completou, com o mais
próximo de um sorriso na fenda entre os lábios que conseguia para o quanto
parecia cansada.
— Pelas Soberanas, não sei como minha mãe ainda não conseguiu te
mandar para bem longe, pela má influência. — Elya praguejou, agarrando o
primeiro tentáculo que alcançou e puxando-a para que deslizasse um pouco
mais depressa. — Não diga uma coisa dessas em voz alta.
Dessa vez, foi a implaviana que rolou os olhos.
— Ela tentou, posso garantir, mas meus talentos e o benefício da
minha presença são maiores que qualquer absurdo que saia da minha boca.
Atravessaram longos corredores e pontes de cristal em suspensão,
abaixo das quais se estendia uma camada fofa de nuvens rubras como os
raios de Gautan, até finalmente chegarem à ala residencial. No conforto de
seus tapetes macios e cortinas sedosas, Elya derramou-se sobre a enorme
cama de dossel de cristal, enfeitada com belíssimas flores que, quando tinha
sonhos alegres, desabrochavam em cores nunca vistas. Como há muitas
noites não dormia, nem sonhava, os botões estavam fechados.
— Fui combinada com um homem que talvez esteja longe, muito
longe — disse, encarando o teto —, e tenho apenas algumas noites até o
poder da magia das Soberanas diminuir e a força dessa combinação se perder
para todo o sempre. Há alguma forma disso não ser um erro terrível?
Lyia deitou-se ao seu lado e remexeu-se até ficar mais perto.
— Ontem, você reclamava porque não queria ser combinada, e hoje
não vê o momento de selar a combinação que recebeu. Que menina mais...
Teimosa.
Elya fez uma careta.
— Você o ama? — a amiga questionou, sem nenhuma brincadeira ou
sarcasmo. Era uma pergunta honesta, entre confidentes.
— Sim — respondeu, e foi como se o fôlego tivesse sido roubado
com a confissão que fazia pela primeira vez desde que entendeu a razão pela
qual seu coração batia mais rápido toda vez que Ulian Bened sorria. — Eu o
amo desde o primeiro momento em que o vi. Eu o amo tanto que a
possibilidade de não tê-lo me dói e me destrói. Se não selarmos logo a
combinação, ela se perderá e ele... Se afastará de mim.
Tentáculos seguraram suas mãos, frios e fortes, em solidariedade.
— Então não me parece um erro. Dizem por aí que amar é um risco...
— …Que apenas os imperfeitos correm — Elya complementou o
ditado, com certo pesar. — Existe uma forma de contatá-lo? De pedir que
volte? Ou talvez... Talvez seja eu quem deva ir?
— Por que não contar a seu pai? Seria muito mais fácil se ele, o
Governador, se envolvesse no assunto.
— Não, Lyia, ele não entenderia. Tentaria intervir ou, pior, me
impedir.
— Isso é apenas uma suposição. Sua mãe contou a você a história
sobre dever e amor, portanto, se existe alguém neste planeta que te
compreenderia, aposto que este alguém seria seu pai.
Elya balançou a cabeça.
— Em Belar, o casamento é um dever. Os que pensam nele como
amor são grandes tolos, como eu. — Suspirou. — Devo partir e arriscar a
honra daqueles que amo ou ficar e terminar por comprometer a minha? Por
qual escolha devo sofrer, se ambas partem meu coração?
A Academia de Ciências era a maior construção pública de Belar, e,
mesmo de sua longínqua varanda no interior do planeta, Elya conseguia
avistá-la sem esforço. O prédio todo era feito de cristal, com pináculos
banhados em metais cuja liga fora descoberta ali mesmo, e reluzia com os
raios rubros da manhã como uma joia. Alguns talvez assim o considerassem,
pois belarianos em muito estimavam as façanhas que davam testemunho de
sua superioridade como raça.
Havia por fim decidido arriscar a honra de seu sobrenome ancestral e
ir atrás de Ulian, onde quer que estivesse, se assim fosse necessário, mas
prometera a Lyia que, antes de tomar qualquer medida que arruinasse a si
mesma e todos que amava, tentaria uma solução menos extrema: encontrar
uma forma de contatar a expedição e conversar com o pai sobre a
combinação.
Embora a contragosto, reconhecia a sensatez do pedido. Ainda era
uma dama não desposada e, portanto, permanecia proibida de deixar seu
planeta em qualquer hipótese, tradição tão esculpida em rocha quanto
qualquer outra, apesar de não fazer sentido algum se aplicada apenas às
mulheres: que formas uma dama encontraria de arruinar-se que já não
existissem no próprio planeta, entre os salões de bailes e seus cantos
escuros repletos de más intenções?
— Deixe-me fazer isso em seu nome — a implaviana insistiu, do
canto mais afastado do aposento. — Sou sua secretária; é a premissa da
minha função.
Já haviam tido aquela conversa, e Lyia, mais do que ninguém,
deveria saber que Elya não era o tipo de pessoa que podia ser facilmente
dissuadida a abandonar uma ideia, por mais tola que pudesse parecer.
— Sou belariana e tenho todo o direito de sair em público,
combinada ou não — respondeu, resoluta. — Também tenho o direito de me
dirigir à Academia Belariana e de pedir por uma breve audiência, se
possível, para questionar o paradeiro de outro cidadão.
A implaviana rolou os olhos e alisou a própria túnica, como se
quisesse ficar mais apresentável e formal, como esperado da secretária
pessoal de Elya Bespian. Outros belarianos a consideravam uma mácula para
a perfeição de qualquer ambiente, mas Elya a amava ainda por ser diferente.
— Não há motivos para se expor aos olhos e palavras da sociedade
dessa forma, Elya. Eles não te compreendem; jamais poderiam.
— O que houve no Baile jamais será motivo de vergonha para mim.
— Você diz isso agora, do conforto e segurança do seu lar, menina
teimosa. Mas os olhares cruéis vão te machucar, sei que vão. Eu conheço o
seu coração.
— Tenho que fazer isso, Lyia — repetiu, como se necessitasse
fortalecer a própria convicção. — Com meus próprios pés e força de
vontade, tenho que ir até lá, fazer as perguntas eu mesma. Falar com ele eu
mesma. Será que não entende como ele é importante para mim?
— Eu estou aqui para ser seus pés e força de vontade quando
necessário, ou já se esqueceu? — Lyia sorriu daquele jeito alienígena dela,
com uma careta completamente adorável. — Se algum dia eles lhe
faltassem, eu daria todos os meus tentáculos de bom grado, só para te ver
feliz.
— Não seja tola, o que eu faria com tentáculos? — Elya respondeu,
sorrindo em provocação enquanto lutava contra teimosas lágrimas que
umedeciam seus cílios. — Acompanhe-me até a Academia se quiser, mas
não me impeça.
A contragosto, a implaviana assentiu com uma singela reverência,
transitando entre o papel de amiga e de secretária com certa relutância.
— Qual justificativa devo dar para sua saída? — indagou, sem se
olvidar do protocolo que vigorava na residência dos Bespian e por todo o
Belar: uma dama não desposada não poderia sair de casa sem permissão. —
Falar sobre a Academia Belariana e Ulian Bened certamente despertaria um
interesse indesejado nesse momento. Daria informações demais caso você
tenha que... Bem, apenas acho arriscado.
— Não peça. — Desesperou-se, imaginando o que aconteceria se o
pai descobrisse o que planejava antes que conversassem; o que aconteceria
se qualquer belariano imaginasse que fora combinada com um homem que
não estava no planeta. — Podemos apenas... Ir.
A expressão de Lyia manteve-se uma incógnita, embora, de alguma
forma, os olhos reluzissem com o levante de rebeldia.
— Quer quebrar as regras, Elya Bespian? — O tom era sarcasmo
puro.
— De que importa quebrá-las neste instante ou amanhã? As
consequências só me alcançariam um pouco mais devagar — afirmou,
dirigindo-se ao portal. — Vou descobrir onde Ulian Bened está e então
encontrar uma forma de fazê-lo voltar para mim.
Contudo, antes que pudesse dar um passo para fora, uma força
invisível a empurrou de volta. Por sua vez, a implaviana, que seguia a seu
lado, atravessou a barreira sem qualquer empecilho e encarou-a do outro
lado. Sob o portal que as separava, o reflexo dos fortes raios de Gautan
revelou centenas — milhares — de filamentos translúcidos, e naquele breve
instante em que cruzaram os olhares, perceberam que Elya estava
encarcerada no interior dos próprios aposentos.
— Lyia — chamou, sem bem entender. — O que é isso? — Tentou
atravessar mais uma vez, sem sucesso. — Eu estou...
Antes que pudesse concluir, o painel de comunicação acoplado à
porta se acendeu, emitindo um aviso em cores delicadas que mancharam
suas retinas:
Por determinação de nosso Governador, Tharcius Bespian CVII, e do
Conselho de Cidadãos, Elya Bespian não poderá sair de seus aposentos
enquanto carregar a mácula da ausência de combinação. Esta proclamação
ficará em vigor até que se emita outra em sentido contrário.
Aquilo não deveria ser um golpe tão magistral em sua confiança no
pai, pois era esperado que tomasse medidas para conter o escândalo que sua
ausência de combinação gerou para o nome de família, mas, ainda assim,
Elya não conseguiu acreditar e correu para o outro lado da sacada; o peito
subia e descia com força.
Ele não faria aquilo com ela, faria?
Uma parede invisível e macia colidiu contra seu ombro, impedindo
que fosse muito além dos jardins, e a mesma cena repetiu-se
independentemente da direção tomada, provando sua teoria.
Estava presa.
Lyia, que podia atravessar a barreira livremente, voltou para o seu
lado e suspirou por hábito — ela não tinha nariz, afinal.
— Se você tem alguma esperança de encontrar Ulian Bened e selar
essa combinação a tempo, precisa considerar fazer algo abominável para os
padrões belarianos. Elya Bespian, você precisa aprender a mentir.

Enquanto a implaviana seguia para a Academia de Ciências com o


intuito de, em seu nome, obter informações mais específicas a respeito da
localização de Ulian Bened e, se possível, contatá-lo, Elya encarava-se no
espelho sem nada enxergar senão uma grande decepção.
Ela, a mais perfeita entre as perfeitas, nascera para ser a luz do futuro
de Belar, mas simplesmente não sabia como fazer para parar de lançar
sombras sobre o presente.
Com repulsa, encarou o próprio rosto pelo máximo de tempo que
conseguiu antes de desviar os olhos dourados do reflexo.
Teria de decepcioná-los.
Sim, teria que desgraçar tudo o que amava se quisesse encontrar a
chance de ser amada, e ela o faria sem hesitar, pois o amor era tudo que
podia desejar. O único sentimento que poderia ajudá-la a mudar as coisas.
Talvez fosse sua ruína, mas não poderia ser pior do que um
casamento por dever.
Ela não era Cília. O amor prevaleceria, não o dever.
— Digam a meu pai, seu Governador, que desejo falar com ele —
disse, em voz alta, certa de que os autômatos retransmitiriam a mensagem ao
destinatário. — Digam que desejo falar sobre minha combinação.
Se ela representava o futuro, então precisaria deixar o passado
morrer, como as grandes estrelas no firmamento que, lentamente,
consumiam a si mesmas na vastidão escura antes que viesse a supernova.

Tharcius estava sentado em uma larga e macia poltrona perto das


grandes janelas do cômodo que usava para se reunir com o Conselho de
Cidadãos, perdido nos próprios pensamentos e completamente sozinho,
quando ela entrou.
Entre a mobília sofisticada e as luzes baixas, ele era o oposto de tudo
o que Cília fora, era e um dia seria. Filho de Tenar, como Elya o era agora.
Afetuoso e protetor. Compreensivo, assim como uma infinidade de outras
características que a filha sempre admirara. Tão iguais...
E, ainda assim, naquele momento montanhas os separavam.
— Pai — chamou, incapaz de retirar da voz o peso de pronunciar
aquela palavra que, por toda sua vida, fora um sinal de carinho e verdadeira
devoção.
Ela era devota a ele, sempre fora — motivo pelo qual não o chamava
de Governador, como os outros faziam —, mas depois de ter sido
aprisionada nos próprios aposentos, começava a pensar que a devoção dele
residia no sobrenome ou em Belar, o planeta que jurou proteger e guiar. Não
nela.
Os olhos dele se ergueram, cansados e com o dourado quase apagado
demais, e Elya percebeu quando cada traço de resistência cedeu à sua
imagem, entregue à beleza e esperança.
— Minha menina! — O pai se ergueu e segurou suas mãos enluvadas
com carinho. — Perdoe-me pela proibição, mas saiba que a decisão foi
tomada junto a nossos cidadãos, e, a mim, não caberia nada mais, senão
cumpri-la.
Ela não soube o que dizer. Talvez que Tharcius deveria ter lutado
mais por sua liberdade, quando era tudo o que restara dentro de uma
sociedade que exigia demais dela o tempo todo. No entanto, limitou-se a
perguntar:
— Seria possível o Conselho Conubial se equivocar?
O pai negou com a cabeça, não parecendo pensar que era uma
descrente ou menos digna do título que carregava apenas por externalizar
uma dúvida, coisa que a mãe, certamente, faria se tivesse a oportunidade —
embora não soubesse mais o que esperar dela depois da confissão feita no
Baile.
— Jamais. O Conselho é sábio e compreende todos os desígnios de
nossas Soberanas para Belar. Veja só você, a mais perfeita entre as perfeitas,
fruto de uma combinação.
A filha sentiu a raiva e a vergonha emergirem, desejosas por
sobrepor todas as suas emoções. Contudo, manteve-se firme, com o intuito
de honrar a palavra dada à Lyia e, ao menos, tentar explicar sua situação
antes de decidir destruir tudo o que tinham ali.
Precisava saber que havia ao menos tentado.
— E se ele... — começou, com timidez. — E se ele não estivesse
aqui?
— Ele?
— O cavalheiro com quem fui combinada. E se ele não estivesse em
Belar?
Tharcius a encarou em silêncio por um instante, como se de fato
precisasse pensar em muitas variáveis para ser capaz de responder, porém,
quando finalmente falou, o fez com a confiança de quem sempre soubera a
explicação:
— Ora, então não haveria combinação. É a tradição. — Os dedos
dele tocaram o queixo dela muito suavemente. — Como alguém que
despreza as determinações do Conselho Conubial poderia ser perfeito? Não
importa se escolheu ou foi forçado a não estar presente, seus genes não
mereceriam ser passados adiante.
Elya sentiu a aspereza da garganta quando engoliu à seco, desejosa
por ter coragem de confrontá-lo e dizer que estava errado. Ele, no entanto,
afagou seu rosto, e o toque a queimou, abriu um buraco na pele.
— Não me parece justo, muito menos certo.
Uma risada.
— Qual é o motivo de todas essas suposições? Não há razão de temer
o casamento, minha querida. É sua chance de tomar seu lugar na sociedade e
enfim servir a um propósito.
A filha cerrou os olhos, entristecida, pois as palavras pesaram.
Mesmo ele, que amava e pensava que a entendia, por muitas vezes a
decepcionava e mostrava que, a despeito do que poderia pensar e fazer crer,
não era perfeito.
— É só esse o meu propósito, então?
O pai assentiu, carinhoso, sem nem imaginar que a estava
estilhaçando.
— Por qual outro motivo as Soberanas nos mandariam uma
primogênita mulher? Você carregará em seu ventre nosso futuro. Até mesmo
o futuro Governador Bespian, quem sabe.
Ele estava errado. Muito errado.
Pois se casar ou ter filhos não era seu propósito e jamais seria.
— Temos nossos papéis a cumprir — Tharcius a abraçou com
delicadeza e afagou seus cabelos, tomando o cuidado de não desmanchar o
penteado, alheio à nocividade das emoções que a tomavam. — Somos
Bespian e, acima de tudo, somos belarianos. Seguiremos unidos e fortes para
esta nova etapa de nossas vidas.
Elya tentou impedir os soluços, mas não foi capaz de afastá-los
quando vieram em ondas. Naquele momento, quase disse toda a verdade que
Cília revelara durante o Baile, esperançosa de que fizesse o pai mudar de
ideia: o Conselho Conubial também poderia combinar as pessoas por conta
do amor.
Lembrou-se, entretanto, que teria de explicar a história inteira da
mãe, que amava outro e, muito provavelmente, havia cometido algum ato
contra a própria honra — fato que a destruiria. Teria de revelar ao pai que a
mãe o escolhera apenas por conveniência e segurança; que ele fora usado a
vida inteira.
Mas as coisas eram assim mesmo, em Belar.
Honra e dever sempre cruzavam o caminho dos demais sentimentos,
dissimulando a verdade. Aqueles ausentes do planeta no momento da
combinação deveriam morrer sem deixar descendentes; o amor não
importava; mulheres deveriam apenas calar e consentir...
Elya não aguentava mais todas aquelas regras e tradições. Todas as
mentiras convenientes.
— Os Boglian me requisitaram uma audiência mais cedo — o pai
confessou, suave como alguém que não quer espantar uma criatura
assustada. — Não a chamei, pois pensei que o assunto a perturbaria, mas
saiba que eles disseram que Ather estivera certo no baile de que era sua
combinação. Ele não a culpa por ter se afastado, é um menino muito bom e
compreende a volatilidade das emoções femininas.
Elya mal pôde acreditar na prepotência de Ather Boglian, e sentiu
todo o corpo enrijecer. Estava com raiva, além de muito desapontada.
— Não há motivo para protelar mais o assunto, minha menina — ele
prosseguiu, sem esperar sua resposta. — O Conselho de Cidadãos considera
essa uma solução razoável para o impasse: iremos até a residência dos
Boglian e, com nossas famílias como testemunhas, vocês poderão selar a
combinação como se nada tivesse acontecido. Como se nada tivesse
mudado.
Mas Elya tinha mudado.
Lyia retornou da Academia com a informação que precisavam,
embora acompanhada por uma terrível confirmação: Ulian Bened estava a
caminho de Colossus, a maior lua do planeta Essiclan, que orbitava não
apenas uma estrela, mas um buraco negro massivo. Até que a nave da
expedição pousasse em local seguro, estaria incomunicável, em um induzido
sono criogênico.
Não havia forma de contatá-lo, tampouco de contar-lhe sobre a
combinação e pedir que voltasse para casa — para ela, e Elya é quem teria
de ir se quisesse casar com aquele que amava, em vez de ser entregue como
oferenda a um homem que não suportava.
Coisa que estava preste a acontecer.
A verdade, no entanto, é que soubera o tempo todo que seu destino a
levaria para longe, pois seus olhos sempre preferiram as estrelas aos rios e
picos de seu planeta natal, por mais perfeitos e belos que fossem.
Não houve tempo nem preparativos para a jornada que se impunha, e
ela logo viu-se parada diante do hangar com as írises douradas sendo
queimadas pelos raios rubros de Gautan. A implaviana a guardava de um
lado, com os tentáculos cruzados de forma profissional, apresentando-se
como secretária e não amiga, e Cília do outro, impassível e ilegível, rígida
tal qual uma estátua de prata. Ambas foram convocadas pelo pai para
integrar a comitiva que iria até a residência dos Boglian.
Elya queria dizer à mãe que tudo tinha se desenrolado muito mal,
contudo Cília nada captou de suas expressões ou olhares — o que já era
esperado, afinal, não se conheciam bem, tampouco eram íntimas o suficiente
para falar de outra forma que não usando a linguagem verbal e explícita. —
Ainda assim, esperava que ela compreendesse sua escolha.
Seu coração caloroso jamais poderia optar pelo dever em detrimento
do amor, independentemente do que isso lhe custasse. Já estava cansada de
sofrer em silêncio, e de ser a dama perfeita — a filha perfeita.
A nave do Governador reluziu como cristal depois de ser içada até o
pavimento de embarque, contrastando em muito com as antigas pedras
brancas que equivaliam em antiguidade o que ela exibia de moderno. Era a
mais veloz e completa de Belar, equipada até mesmo para viagens de longo
alcance espaço profundo adentro.
Os braços mecânicos e pistões silenciaram-se quando o nariz foi
alinhado para a decolagem, e, respondendo a um comando mudo, a porta de
entrada abriu-se, revelando um interior artificialmente à meia-luz.
Seus olhos encontraram os de Lyia, e, diferentemente do que
aconteceu com Cília, a implaviana soube ler e interpretar até as menores
nuances de suas expressões. Como se em resposta, com todo o corpo
moluscular e até com o ar que a envolvia, disse-lhe algo que também soube
compreender: seja corajosa, você não está sozinha.
Elya cerrou as mãos em punho, fazendo o possível para não deixar o
sorriso delicado vacilar, e caminhou em direção à passagem, como já havia
feito tantas outras vezes, quando não possuía nada a esconder a não ser a
ousadia de alguns poucos pensamentos. Não se apressou e usou cada ínfimo
instante para acalmar a respiração e pensar, pensar, pensar.
Seguindo o costume, Lyia a acompanhou, obediente como uma
secretária faria, e, ao arrastar de tentáculos dela, seguiu-se o caminhar de
Cília, constante e sem pressa, como se estivesse ganhando tempo para que
fizessem algo. O pai seguiu por último, como mandava o costume belariano
— era a pessoa mais importante a embarcar.
A nave ficou cada vez mais próxima, encobrindo o brilho de Gautan,
e Elya sentiu o corpo todo tremer de medo e impotência. O que poderia
fazer? Gritar que não iria? Que odiava os Boglian e recusaria aquela união
fantasiosa? Tinha dado apenas alguns passos vacilantes para o interior
quando, subitamente, uma corrente elétrica cruzou a passagem às suas
costas, chamuscando piso e painéis.
A mãe tombou para trás, ainda do lado de fora, os cabelos prateados
arrepiados pela proximidade com a corrente, e foi amparada por um Tharcius
perplexo enquanto a filha, do lado de dentro, tropeçava nos próprios pés. A
porta de entrada se fechou com um deslizar macio e as luzes do corredor se
apagaram, separando-a dos pais.
Um grito agudo de susto lhe escapara, por reflexo, mas o calou assim
que percebeu que a implaviana estava parada com os tentáculos enfiados no
painel de controle, agarrando um punhado de fios partidos que ainda
fagulhavam.
— Não tive tempo de planejar! — Foi tudo o que Lyia disse antes de
segurar Elya pelos punhos e puxá-la, aos tropeços, mais para dentro. —
Venha, rápido! Só consegui trancá-los para fora com esse pequeno curto,
mas não vai durar muito. Logo irão assumir o controle da nave remotamente;
talvez até fechem o portal de Belar.
Elya não entendeu o que ela quis dizer com aquilo. Na verdade, havia
entendido as palavras, porém o sentido lhe escapara conforme alcançava a
ponte e se afundava em uma poltrona.
Ela estava roubando a nave?
Não, não. Elas estavam roubando a nave.
Por não mais que um instante — que pareceu durar muito mais —,
assistiu a Lyia acomodar com sofrimento o corpo em forma de barril à
cadeira do piloto. Os tentáculos esverdeados e repletos de ventosas
moveram-se com rapidez por diversos comandos e botões, e o interior da
cabine chacoalhou enquanto Elya via, através das enormes janelas, Tharcius
estender os braços em sua direção, confuso.
As palavras que o pai gritou perderam-se em meio ao som de ignição
dos elegantes propulsores, porém a emoção que tomou os olhos dourados
quando decolaram a assombraria para todo o sempre.
Desapontamento.
Mas, para regressar, ela precisaria primeiro partir.

— Você não me parece bem — Lyia disse depois do que pareceu um


longo e interminável estado de absoluto silêncio.
Haviam acabado de passar pelo portal, uma elegante construção
ovalada e reluzente que gravitava contra o tecido escuro do espaço, e Tenar e
Ésper pareciam ter lhe dado uma última bênção para que partisse em paz.
Eram tão lindas, lá do alto.
Elya virou a cabeça para encará-la sem, contudo, afastar a
confortável manta que havia sido colocada sobre seu corpo em algum
momento, pois, além de sereno, descobriu que o vácuo era também muito
frio.
— É porque não me sinto nada bem — respondeu, estranhando um
pouco o som da própria voz dentro da cabine, envolta apenas pelo negro e
misterioso tecido em que as estrelas e planetas haviam sido costurados. Um
cinturão de asteroides passava ao lado, com rochas cobertas de gelo maiores
do que alguns picos de cristal que conhecia. A paisagem era tão bela quanto
desesperadora. — Pensei que, talvez...
— Teria mais tempo? — a implaviana completou com um certeiro
palpite, acomodando-se ao seu lado.
Confirmou com a cabeça.
— Nossa existência é uma luta constante contra ele, o único e
verdadeiro senhor dos destinos. — Os tentáculos da amiga envolveram suas
mãos de forma carinhosa. — Tudo abunda, tudo sobra, tudo basta, menos o
tempo. Jamais o tome por garantido.
Elya ergueu-se, segurando a manta firme contra os ombros gelados, e
colocou-se de frente para a janela que ocupava grande parte da lateral da
cabine. Ao redor, distribuíam-se alguns assentos elegantes, uma mesa sólida
para reuniões e paredes que ocultavam diversos painéis de provisões.
— Nunca haveria tempo suficiente para se preparar para algo assim,
se serve de algum consolo — Lyia prosseguiu, interpretando bem seu
silêncio. — Se a oportunidade surgisse, eu seria a primeira a pedir por um
pouco mais desse recurso tão escasso.
— Dentro de uma vida implaviana cabe pelo menos um par de
belarianas, e, ainda assim, desejaria ter mais tempo? — Elya indagou.
A amiga torceu as feições em um sorriso que logo desapareceu
enquanto perdia-se em pensamentos próprios.
— Tenho arrependimentos que me assombram e, para me ver livre
deles, precisaria de muito mais que os ciclos de vida estimados de um
implaviano — confessou, por fim. — O tempo passa, e, embora possa nos
fazer esquecer algumas transgressões, para muitos serve apenas como o
combustível que alimenta a mágoa.
— Me conte algo sobre você que eu ainda não saiba — Elya pediu,
correndo os dedos por sobre um dos painéis de provisões que se abriu
suavemente para revelar líquidos, frutos e diversos ingredientes típicos da
dieta belariana. — Me conte sobre todos os seus arrependimentos, e eu
talvez não precise passar o resto dessa viagem falando sobre os meus.
Escolheu pegar um fruto redondo e arroxeado que crescia nas raízes
de uma árvore muito bonita. Mordeu a superfície tenra com vontade,
sentindo o néctar doce inundar a boca. Tinha gosto de casa.
— Acredite, nem mesmo essa viagem nos daria tempo suficiente
para falar sobre todos.
— Então fale sobre como chegaremos até Ulian Bened. Nos
prendemos nessa nave e fizemos com que decolasse, mas nem mesmo sei
onde, no Sistema Exterior, fica essa... Colossus. — Lambeu as pontas dos
dedos, algo que deixaria Cília escandalizada. — Fale qualquer coisa que me
faça esquecer o que fiz. — Suas palavras tornaram-se sussurros: — Que me
faça esquecer o olhar de papai.
A implaviana serviu-se de um pouco de água, não para beber, mas
para mergulhar as pontas dos tentáculos eletrocutados.
— Se estamos aqui, é porque a conversa entre vocês não tomou o
melhor dos rumos...
— Ele disse que meu único propósito na sociedade era me casar e ter
filhos — revelou, amargurada.
Lyia fez uma careta.
— Pelos deuses!
— Sim, mas não me faça falar sobre isso, por favor — pediu,
sentindo um pouco de pena de si mesma. — Me distraia com os detalhes
dessa... Viagem.
A palavra certa seria “fuga”, porém não teve coragem de pronunciá-
la.
— A nave da expedição do Conselho Científico pousará no décimo
terceiro quadrante de Colossus, a maior lua de Essiclan. Eles possuem laços
diplomáticos com todos os planetas que formam a expedição, inclusive
Belar, por isso não devemos ter problemas em passar pelo portal. Pelo
menos não enquanto seu pai não se der conta de que você está atrás de Ulian
Bened e mandar uma mensagem para nos barrar...
— Duvido que ele se dê conta. Duvido que saibam, verdadeiramente,
qualquer coisa sobre mim além da profecia e do título. — As palavras foram
quase uma acusação.
— Você constantemente subestima as pessoas, menina teimosa —
Lyia a advertiu, com uma pontada de desapontamento na voz. — Pensei que
a tivesse ensinado melhor.
Elya rolou os olhos, emulando desprendimento apenas para esconder
quão apertados o coração e a garganta estavam e o quanto os olhos queriam
debulhar-se em lágrimas.
— Em quanto tempo chegaremos?
Silêncio.
— Lyia?
O corpo verde e moluscular virou-se em sua direção, espalhando
tentáculos pelo chão lustroso.
— São apenas algumas noites de viagem — revelou, sem olhá-la nos
olhos. — Mais noites, no entanto, do que você poderia desejar. Talvez a
força das Soberanas já tenha se perdido, quando chegarmos. — Ela pareceu
pensativa. — Será que isso importaria, de qualquer modo? Suas luas não
serão deusas aonde vamos.
Elya deixou o corpo cair sobre o assento fofo que antes ocupava.
— Se estaremos tão longe, talvez a força da combinação realmente se
perca e eu tenha que contar só com a minha própria — conjecturou.
— Você nasceu mulher, Elya. Cedo ou tarde teria que aprender a
contar só consigo mesma.
Um suspiro aquebrantado.
— Sua companhia é a que mais aprecio, provavelmente até mais que
minha própria, mas não sei se consigo aguentar nem mais uma noite dentro
dessa nave, sendo constantemente relembrada do que fiz — revelou,
sentindo o peso dos últimos atos descer sobre seu peito.
— Isso podemos resolver com o bolsão de criogenia — Lyia sugeriu.
— Alimentei o sistema de navegação com as coordenadas de nosso destino
que consegui na Academia, e não haverá nenhum problema em dormir um
pouco até chegarmos.
Fugir de seus pensamentos e ações não era algo que Elya costumava
fazer, porém o desespero de seus últimos atos a empurrara em direção ao
abismo da covardia. Não podia pensar nos olhos do pai, tampouco em sua
expressão de decepção. Enquanto estivesse ausente, condenaria a si mesma e
toda a sua família à desgraça e à ruína social, que apenas se resolveriam
quando retornasse casada e desse aos belarianos a garantia de que o futuro
de todos estava seguro.
Assim, não se importou quando a implaviana desfez, com os
tentáculos frios, a coroa de tranças que lhe enfeitava a cabeça, tampouco
quando a despiu das luvas e do traje e a auxiliou a entrar na câmara
silenciosa, dentro da qual um fluído azul levitava, brincando com a
gravidade.
— A criogenia ajudará com sua hidratação? — Elya perguntou,
incapaz de ignorar a questão. — Está equipada para as suas necessidades?
Você poderia desmaiar sem que eu soubesse, enquanto durmo. Eu me
preocupo.
— O bolsão suspende todas as funções corporais de qualquer
criatura; não sou exceção. Agora vá dormir um pouco, você está horrível —
a amiga complementou, com uma piscadela de um só olho.
— Espero que não mais que o habitual — ironizou, dando o último
passo que a separava do bolsão.
No instante em que seus pés descalços tocaram o líquido, Elya foi
envolvida por um abraço frio que logo a fez cair em um sono sem sonhos. Se
houvesse fechado os olhos um instante mais tarde, teria percebido a boca
moluscular da amiga esboçar o mais próximo de um sorriso que conseguia,
antes de retornar ao painel de controle, na ponte.
A energia gravitacional emitida pelo buraco negro orbitado por
Essiclan e Colossus era tão forte que mesmo os avançados e precisos
sistemas de correção daquela nave não seriam capazes de contorná-la, e seria
necessário que um piloto experiente se mantivesse na cabine o tempo todo.
Elya não sabia pilotar, o que reduzia as opções. Ela tampouco sabia
ou interessava-se sobre distâncias, e sequer imaginara que a viagem não
duraria apenas alguns anoiteceres, como a implaviana dissera para poupar-
lhe de um sofrimento ainda maior, e sim uma crescente completa.
Caberia a Lyia, portanto, garantir que chegariam a Colossus. Seu
destino há muito havia sido decidido pelos deuses, antes da combinação do
Conselho Conubial e da maioridade. Antes que Elya sequer soubesse andar
ou falar.
Antes que Elya pudesse imaginar que a implaviana, que pedira
refúgio em Belar, o planeta da perfeição, e se tornou sua secretária e depois
uma amiga, havia feito uma previsão.
Uma profecia.
Muitos eram seus arrependimentos, mas esperava que, com aquele
último ato de entrega, pudesse se redimir deles ao menos um pouco.
Elya era o futuro de Belar, não ela.
Elya precisava chegar a Colossus, não ela.
Ulian realizava uma cuidadosa varredura no substrato recém-
escavado do quinto quadrante da expedição, que progredia muito bem sob
seu tão minucioso olhar, quando um inesperado chamado do controle tirou
sua concentração.
Gotas de suor — algo que, de certo, causaria repulsa em qualquer
belariano — lhe desceram pela fronte quando terminou de arrastar-se para
fora do túnel onde haviam sido alocados os medidores, e ele apenas pensou
em enxugá-las com o dorso das mãos quando tivesse a oportunidade, com
toda a simplicidade de quem repetia um gesto corriqueiro. Até que gostava
delas, pois faziam-no lembrar-se, tanto quanto a poeira ou a tempestade, de
que a perfeição era apenas um estado insípido, incapaz de se sustentar.
O meio, jamais o fim.
— Estou em campo, Edon — atendeu, elevando a voz por sobre o
barulho metálico do equipamento de perfuração que incessantemente
lacerava o leito rochoso. — Há algo de errado com as leituras?
Por hábito, levou os olhos ao céu, quase desejoso por vislumbrar o
brilho ascendente de Tenar e Ésper ao cair da tarde e a infinidade de
familiares constelações que bordavam o firmamento de seu planeta natal.
A luz do poente tangenciou a superfície do escudo translúcido que
lhe protegia a cabeça, e a visão que o recebeu arrancou-lhe um suspiro de
admiração: de um lado, uma enorme estrela alaranjada e quente,
parcialmente encoberta por Essiclan e sua atmosfera repleta de grandes
redemoinhos gasosos; do outro, a ruína de toda matéria, corporificada em
um massivo buraco negro que, em vórtices, sugava até mesmo a pouca luz
que ousava se achegar.
Era belo.
Muito mais do que qualquer vista que Belar já pudesse ter lhe
oferecido, pois estava em constante e inevitável mudança.
— Acabamos de receber um chamado de uma nave belariana —
informou Edon, um companheiro de expedição e seu amigo mais antigo, ou
talvez seu único amigo, um quaarsariano enorme de pele alaranjada. —
Solicitaram no portal de Essiclan as coordenadas da expedição para pousar e
disseram que estão trazendo uma carga preciosa para Ulian Bened.
— Carga preciosa? — Ulian repetiu, confuso.
Naquele exato instante, uma nave belariana grande e brilhante em
forma de gota cruzou o céu escuro, rápida demais para uma aterrisagem
segura.
— Pelas Soberanas, o que o piloto pensa que está fazendo? —
exclamou, sobressaltado, forçando-se a seguir em direção ao iminente
desastre.
Colossus era o maior satélite natural conhecido em todo o Sistema
Exterior e, portanto, o mais intrigante. Orbitava Essiclan, um planeta
agigantado que, por sua vez, dividia-se entre a gravidade exercida por uma
estrela já no fim do ciclo de queima de elementos e um buraco negro
supermassivo denominado Cronos — um trocadilho muito bem elaborado
por seus ancestrais humanos, que o chamavam de titã do tempo, qualquer
que fosse o significado daquilo.
Assim, um piloto que recebesse a árdua incumbência de pousar
naquele satélite deveria levar em consideração que a atmosfera era de
tamanha densidade que, em tese, um objeto voando permaneceria no céu
para sempre, motivo pelo qual a descida teria muito mais aceleração. Sem
contar o fato inevitável de que, se uma manobra fosse executada de maneira
incorreta, não seria possível corrigi-la.
E era exatamente aquilo que parecia ocorrer conforme Ulian assistia,
impotente, ao nariz de perfeita aerodinâmica inclinar vertiginosamente em
direção ao solo.
A um quadrante de distância, no local onde o pouso certamente se
transformaria em queda, a nave se chocou contra o solo, abrindo um buraco
profundo nas rochas estranhamente macias de Colossus, que, com um
gemido, cederam sobre as bordas e a engoliram.
— Colisão! — Ulian gritou no comunicador, arfante, enquanto lutava
contra a gravidade e corria (ou mais se arrastava), em direção ao desastre. Os
músculos das coxas reclamaram, estirando-se com o esforço muito superior
ao que podiam suportar, mas ele não sucumbiu.
Ignorando qualquer risco, pulou sobre os destroços esbraseantes e
retirou do cinto uma ferramenta pequena de corte. Com o feixe condutor,
escavou um buraco perto o suficiente das travas para que a porta de cristal
belariano cedesse e, com um pouco mais de força física, abrisse uma
passagem suficientemente grande para que entrasse.
— Olá? Aqui é Ulian Bened! Vocês estão bem? — indagou, ao
alcançar o corredor desenergizado. Apenas a iluminação de emergência
permanecia acesa, em aviso ao comprometimento da integridade não só do
casco, como da respirabilidade.
A atmosfera de Colossus não era das mais gentis.
Quando se deu conta de que não receberia resposta alguma, afastou
do rosto a poeira que invadia em pequenos flocos avermelhados o ambiente
antes estéril e prosseguiu entre as poltronas vazias e os painéis parcialmente
abertos.
Ao alcançar a cabine de pilotagem, uma massa disforme capturou seu
olhar perto do assento de comando, e ele logo exclamou de surpresa ao
entender que se tratava do corpo de uma implaviana, caído em uma posição
que, a qualquer bípede, pareceria grotesca demais. Com todo o cuidado,
caminhou até a forma moluscular e, como apenas um cientista saberia fazer,
checou se ainda possuía batimentos nos tentáculos certos, agradecido por
nunca ter recusado nenhum aprendizado enquanto frequentava a Academia.
Os três corações dela não batiam, mas isso também não significava
que a vida havia determinantemente se esvaído. Se dependesse dele, não iria.
— Temos uma implaviana ferida — falou no comunicador, afoito
pela situação inesperada. — Tragam os equipamentos de resgate o mais
rápido que puderem!
— Estamos fazendo o possível! — Edon informou, igualmente
ofegante, ao que se ouviu no fundo uma grande comoção. — Maldita
gravidade!
Ulian acomodou melhor o corpo da implaviana e, sem hesitar, retirou
do traje surrado o próprio escudo protetor, que rapidamente tomou a forma
de uma bolha para envolver a cabeça viscosa e moluscular. Apesar de o
equipamento ter sido projetado para preservar os cientistas da poeira que
poderia colapsar qualquer sistema respiratório, serviria para isolá-la da
composição da atmosfera — desde que o resgate não demorasse demais.
Ele podia se virar bem só com o próprio respirador.
Convicto de que havia feito o melhor pela implaviana, dadas as
circunstâncias, saiu para percorrer o interior da nave, na tentativa de
encontrar outros passageiros, além de algum sinal da misteriosa “carga
preciosa” à qual haviam se referido.
Estava tudo vazio, no entanto.
Cada divisão de cabine e câmara, em que pese a evidente confusão
causada pela queda, pareciam intocadas. Sequer havia dróides de serviço a
bordo, como esperado para uma nave que viajou aquela distância
considerável em espaço aberto, o que serviu apenas para aumentar sua
confusão. Prestes a considerar a busca nada mais do que perda de tempo, deu
de encontro com a porta selada da câmara de suspensão, que, pelas frestas,
deixava perpassar uma forte claridade azulada.
Ao entrar, o brilho o cegou por um instante, mas assim que seus
olhos se acostumaram com a repentina mudança de luz foi capaz de notar,
com surpresa, que em um sono criogênico tranquilo e despreocupado no
centro do bolsão flutuava uma única mulher, completamente nua.
— Ulian, está tudo bem? — chamou Edon, perto o suficiente para
que pudesse ouvi-lo em ecos, talvez no corredor adjacente. — Estamos com
a implaviana. Encontrou mais algum ferido?
— Estou bem — respondeu, quase engasgado com as próprias
palavras que saíram repletas de aspereza. — Não há feridos aqui —
apressou-se em complementar, certo de que não deveria estar olhando para a
mulher daquela forma, e ainda mais certo de que não seria correto deixar que
ninguém mais a visse em tão indecorosa situação. — Já estou saindo.
Afastar-se, contudo, parecia impossível.
— O tremor que essa queda causou deve ter enlouquecido os
sensores — o companheiro comentou. — Imagino que isso vá nos atrasar…
— Sim, sim — falou, culposamente desinteressado pelo destino da
pesquisa, enquanto fechava a porta pela qual havia acabado de passar,
incapaz de ignorar o nervosismo que o dominava ao dar-se conta de que o
tom rosa-escuro da pele daquela mulher lhe era tão familiar quanto a
implaviana no comando. — Podem voltar para a base, eu já vou.
Talvez a poeira estivesse lhe dando alucinações.
Empregando toda a virtude que possuía, contornou o fluído
criogênico até o painel de controle sem levantar o olhar nenhuma vez e deu
alguns comandos para que o sistema de filtragem estabilizasse o ar,
pulverizando qualquer partícula não respirável. Quando enfim os
instrumentos lhe mostraram que era seguro, deu o comando que tiraria a
mulher da suspensão.
O líquido azul desfez-se em inúmeras partículas, que evaporaram
com a abrupta mudança de estado. Quando os pés dela finalmente tocaram o
chão, foi de forma tão suave que poderia ter feito brotar verdejantes campos
em terra infértil. Mechas dos longos cabelos ondularam em belas nuances de
dourado, mel e marrom conforme a ventilação funcionava, e no instante em
que as pestanas subiram delicadamente, revelando írises feitas do mais puro
ouro dos filhos de Tenar, o coração de Ulian perdeu uma batida — embora
um cientista belariano jamais ousasse utilizar uma expressão tão fisicamente
incorreta —, pois era ela que se apresentava como o produto de seus mais
impronunciáveis sonhos.
A mais perfeita entre as perfeitas.
Elya Bespian.
Encarando aquele rosto tão belo que, muitas vezes, já o fizera sentir-
se tentado a tomá-lo nas mãos, a despeito de qualquer tradição, Ulian
percebeu que Elya parecia não compreender quem estava vendo, tampouco
onde estava. E mesmo que não quisesse registrar cada pequeno movimento
ou fôlego, notou que ela apertou os olhos grandes, como costumava fazer
quando ficava confusa. Depois, sorriu com os lábios cheios e rosados, que já
o haviam enlouquecido em diversas oportunidades, e correu em sua direção.
Então Elya Bespian, completamente nua, o abraçou.
Como se houvesse levado uma descarga elétrica, Ulian se manteve
imóvel, embora cada terminação do corpo e músculo teimassem em
responder ao toque por reflexo, já que o decoro que o impedia de tocar uma
dama belariana residia apenas em sua mente, não em sua fibra.
Ele resistiu tanto quanto pode, convicto de que aquela tradição não
poderia transgredir nem mesmo por rebeldia, já que envolvia uma honra que
não era a sua própria. Contudo, o doce aroma de flores selvagens e néctar
que ela exalava o preencheu, como o mais inebriante dos perfumes, e aquele
fogo um tanto quanto adormecido dentro de seu peito rugiu, pronto para
fazer tudo ao redor arder.
Ser filho de Tenar significava nunca deixar de queimar, mas se
ousasse transformar-se em brasa, acabariam os dois por serem consumidos.
— Elya — chamou, ouvindo a própria voz mais rouca e ávida do que
se lembrava de ter ouvido. — O quê...? Por que você...? — Interrompeu-se,
certo de que jamais conseguiria formar uma única sentença que fizesse
sentido enquanto a tivesse ali, a tão pouca ou quase nenhuma distância. —
Perdoe-me por essa situação tão imprópria — falou, espremendo-se para
fora do abraço com os olhos fechados, bem apertados. — Eu não fazia ideia
quando entrei, mas dou minha palavra de que jamais contarei a alguém e de
que sua honra permanecerá inquestionável.
Instantes de silêncio se passaram sem que soubesse como ela reagira
às palavras, porém quando a ouviu exclamar em espanto e a sentiu se afastar
ainda mais, imaginou que houvesse finalmente compreendido a gravidade da
situação.
— Minhas roupas — ela murmurou, com o tom calmo como uma
brisa de entardecer. — Lyia. Onde está Lyia?
Ulian apertou as mãos, repreendendo-se, pois mesmo de olhos
fechados era capaz de perceber todas as nuances da confusão de Elya, e
mesmo imaginar cada traço do rosto esculpido.
— Ela está ferida — revelou, com todo o cuidado, desejoso de que
jamais tivesse que ser portador de notícias ruins. — Aconteceu um acidente
no momento do pouso.
Imaginou que a informação a abateria, porém ela era imprevisível,
como uma força da natureza — coisa que, por mais inoportuno que fosse,
admitia que muito apreciava —, e apenas um instante se passou até que ela
perguntasse, de forma decidida e até mesmo pragmática:
— Sabe onde posso encontrar meu traje e outros pertences?
Àquele ponto do desenrolar dos eventos, Ulian já havia percorrido
toda a nave sem que tivesse visto sequer uma única peça de vestimenta,
razão pela qual sentiu-se seguro para responder:
— Sinto muito, mas não sei. Não trouxe bagagem para a viagem?
— Infelizmente, não.
Arriscando-se a encarar os próprios pés e a estender a visão para os
joelhos depois de se dar conta de que Elya estava às suas costas, analisou o
próprio macacão empoeirado que, naquele dia de trabalho, havia
fortuitamente vestido por cima de roupas comuns.
Fosse qualquer outra dama belariana, sua oferta teria sido um ultraje,
mas ela não era como as outras — nunca fora — e, por isso, quando ele
ofereceu a peça com a mão vacilante, sentiu o momento em que ela a pegou
até mesmo agradecida. Seus dedos roçaram-se muito suavemente, ou talvez
nem tivessem se encostado, mas chegaram perto o bastante para que as
terminações sensíveis de Ulian pinicassem.
Queria sair da câmara e deixá-la ter privacidade para se vestir,
porém, com o rompimento do casco, o ar que circulava pela nave não estava
mais respirável a não ser naquela sala e, por isso, não poderia abrir a porta
antes de prepará-la para entrar em contato com a atmosfera mortal. Enquanto
pensava em uma forma de explicar tudo isso, um comentário carregado de
humor e acidez o fez retornar à estranha realidade:
— Imagine só o que pensariam de toda essa sujeira em Belar, Bened.
Ulian não pôde evitar e virou-se. Elya já estava vestida, com as
barras da calça e mangas enroladas sem um único vinco para adaptar melhor
o tamanho da peça ao dela. Vê-la usando algo impregnado com sua essência
causou-lhe uma sensação totalmente nova.
Quase como se pudesse senti-la debaixo da própria pele.
Incapaz de refrear-se ou lutar contra o mais animal dos instintos que
tencionava a superfície de sua moral, abriu um sorriso largo — o mesmo que
lançava sempre que a surpreendia em um corredor ou no meio de uma valsa,
quando se tornava insuportável demais vê-la rodopiar dentro de um mar de
tecido e pedras preciosas em braços que não fossem os seus.
Elya Bespian nunca precisara de adornos, títulos ou sequer de uma
luz favorável para ser um acontecimento onde quer que estivesse. Mesmo
ali, vestida com trajes exploratórios dentro de uma nave acidentada,
irradiava uma magia própria que parecia ter sido tecida especialmente para
arrebatá-lo.
— Nada mal, Bespian — disse, esperando não soar tão malicioso,
apesar da sede. — O dourado lhe cai bem — complementou, sem se
esquecer da tradição, como uma ligeira mesura.
Então ela também sorriu.
Elya se acendeu, como uma estrela ao redor da qual Ulian passaria a
vida orbitando. Relampejou, como o céu repleto de estática antes que a
tempestade caísse, e o impacto foi sentido até mesmo em seus ossos, que a
ela queriam responder.
E ele podia jurar que se deixaria arrebatar todas as vezes.

— Precisei abrir passagem à força para entrar, e isso comprometeu


ainda mais a integridade do casco da nave — Ulian esclareceu, para impedir
que Elya saísse andando como se ainda estivesse em casa, como parecia
pretender. — A atmosfera em Colossus não é respirável para nós.
Ela apertou os olhos dourados como se avaliasse a veracidade de
suas palavras, o que lhe pareceu estranho e desconexo: ambos eram
belarianos e, portanto, reconheciam a importância da verdade acima de
qualquer outra virtude.
— Mas você está respirando — constatou, direta.
Imaginando que seria muito mais fácil se mostrasse logo a ela como
os respiradores funcionavam, afastou um punhado de cachos dourados do
rosto, exibindo a testa. Bem ao lado da sobrancelha direita, como um adorno
singelo, um ponto metálico se distinguia.
— Um respirador universal, desenvolvido em nossa Academia —
explicou, acompanhando as írises de ouro líquido estudarem seu rosto com
evidente concentração. — Permite ao cérebro assimilar os elementos que
compõe a maioria das atmosferas e, consequentemente, fazer os ajustes
necessários nas funções respiratórias.
Elya pareceu fascinada.
— É permanente, como seus brincos? — indagou, para a total
surpresa de Ulian.
A cautela dela era justificada, mas ainda sentiu-se um tanto quanto
decepcionado, enquanto refletia sobre o questionamento. Ela era, afinal, a
mais perfeita entre as perfeitas e carregava todo o futuro de Belar no
semblante. Uma marca no rosto, por menor que fosse, seria um descrédito,
uma chaga impossível de esconder sob a luz de um constante escrutínio.
— Não deixará cicatrizes ou marcas quando removido, se é sua
preocupação — garantiu, com uma pontada de ressentimento.
— E vai doer?
— Foi inventado em Belar, e sabe que não conhecemos nem
toleramos a dor.
Elya o encarou tão fixamente e com tanta concentração que foi difícil
desprender-se da energia que irradiava e, finalmente, compreender que ela
havia virado a cabeça e lhe oferecido o lado direito, em uma silenciosa
autorização para que prosseguisse.
Como se estivesse prestes a executar um ritual sagrado, Ulian
aproximou-se no espaço pequeno que a câmara oferecia e parou a uma
distância que julgou respeitosa, embora nada conveniente. Pediu que ela
retirasse do bolso lateral de seu macacão de trabalho um estojo, dentro do
qual havia um dispositivo respirador acompanhado por um aplicador em
êmbolo. A base era idêntica ao seu: um ponto metálico muito diminuto que,
se fosse mais brilhante, passaria por uma joia exótica. A diferença, contudo,
residia na série de filamentos de cristal afixados à base, mais finos que um
fio de cabelo.
Pegou um pequeno pedaço de tecido, que embebeu em fluído
esterilizante, e, tomando o cuidado de não a tocar diretamente, passou-o por
toda a extensão direita do rosto, incapaz de impedir as mãos de agirem como
se a acariciassem. Com a respiração presa em concentração, aproximou os
filamentos que, ganhando resistência quando o êmbolo foi acionado,
perfuraram a pele rosada.
Atento, esperou que Elya vacilasse ao menos por reflexo, porém nada
se passou. Nada além de uma sutil aproximação, que se tornou aparente
quando o aroma dela o invadiu, tão doce e suave, enquanto ela se esticava
para ser capaz de sussurrar em seu ouvido, como se ali depositasse um
segredo:
— Todos conhecem a dor, mas poucos conseguem tolerá-la por
tempo suficiente para fingir, de forma convincente, que é estranha.
As palavras o atingiram com força, e Ulian questionou-se sobre o
quanto verdadeiramente conhecia de Elya Bespian e o quanto ela
verdadeiramente conhecia do mundo doloroso e corrompido que existia além
das fronteiras de um planeta que, de forma tão soberba, se considerava
perfeito. Ela era alguns ciclos mais nova, e a idade de separação os alcançara
rápido demais, impedindo que passassem muito tempo juntos, que
conversassem livremente ou se tocassem. Contudo, algumas coisas jamais
haviam escapado de seu olhar atencioso, principalmente a tristeza que
sempre se abatia sobre aquele rosto belo que sustentava as atenções e
expectativas de toda uma era.
Não fazia ideia de como era ser a mais perfeita entre as perfeitas, mas
imaginava o peso da obrigação e compreendia, portanto, o porquê ela havia
confiado aquela verdade a ele.
Quisera poder contar-lhe que também estava muito familiarizado
com um tipo de dor que todos fingiam que não existia, mas não encontrou
coragem para fazê-lo.
Não ainda. Talvez nunca.
O segredo estava bem enterrado.
— Há alguma carga na nave? — Não pôde deixar de indagar,
enquanto a guiava para fora da sala e pelos corredores até o lado de fora dos
escombros. — Recebemos uma transmissão, imagino que de Lyia,
informando sobre uma carga que estariam trazendo de Belar para mim.
O corpo de Elya se retesou, e, mesmo debaixo do macacão grande
demais para seu porte delicado, foi possível ver o desconforto e a surpresa
que a pergunta causou.
— Não sei nada a respeito de cargas — ela disse, a voz não mais que
um sopro, enquanto as bochechas preenchiam-se de cor. — Lyia, certamente,
poderá explicar tudo.
— Mas por qual motivo a Academia e o Conselho autorizaram esta
viagem? O que disseram, quando pediram que viesse? Ou por acaso você se
ofereceu? Precisavam de um representante? — Interrompeu-se, quase sem
ar. — Isso é algum problema diplomático? De certo é... Por acaso violamos
alguma lei interplanetária? Precisamos avisar o controle da missão depressa.
Toda a atenção daqueles olhos voltou-se novamente para ele,
brilhando com lágrimas ainda não derramadas.
— Por favor, me deixe ver Lyia; é a única coisa que pedirei. — Um
suspiro pesado, cansado, escapou por entre os lábios. — Prometo que depois
lhe explicarei tudo.
Ulian assentiu, subitamente sem reação, e não porque estivesse
satisfeito com a promessa antes da verdade, mas porque, para ele, era
impossível sequer imaginar que Elya estivesse em tamanha aflição, que se
permitiria prantear em público.
Em Belar, lágrimas deviam ser derramadas longe da luz, pois eram
evidente sinal de fraqueza de espírito.
E fraqueza era imperfeição.
Sem trocarem mais nenhuma palavra, seguiram até a passagem que
Ulian havia aberto no casco junto à porta removida pelos colegas de
expedição, muito provavelmente durante o resgate da Implaviana. Ele a
instruiu a colocar as mãos perto dos olhos quando saíssem, para evitar o
choque entre o interior mal iluminado da nave e a radiação alaranjada que se
alastrava pelas planícies, e, ao lado dela, caminhou sobre os painéis
amassados e os grandes blocos de terra remexida, sempre atento.
Seu comunicador chiou, e a voz de Edon logo soou novamente:
— Ulian, está tudo bem aí?
A estrela que possibilitava a vida naquele satélite natural já estava
baixa no horizonte, o que significava que, muito em breve, aquelas mesmas
formas de vida começariam a surgir aos montes para mastigar qualquer coisa
movida à energia que ainda estivesse mal protegida. Portanto, Ulian colocou
Elya montada sobre o transporte de três rodas que havia sido deixado nas
proximidades. Era um veículo projetado para apenas uma pessoa e, por isso,
precisou se espremer em frente a ela — o mais separadamente que a física
permitiu — para que enfim se colocassem em movimento.
— Já estou voltando — respondeu.
Enquanto o transporte avançava, os substratos revolvidos dos
quadrantes já escavados passaram de ambos os lados como borrões,
misturados com o brilho das luzes induzidas que haviam sido instaladas no
perímetro para manter as criaturas longe dos sensíveis equipamentos, além
dos grandes redemoinhos de poeira, que ousava se acumular em qualquer
superfície e assolava ainda mais os campos já estéreis.
Desacostumada às intempéries, Elya tossia, curvando todo o corpo de
encontro ao seu para esconder a boca e o nariz das nuvens avermelhadas que
ameaçavam engoli-los. Ulian fez o possível para desviar-se delas e absorver
a maior parte do impacto com os grãos, temeroso de que a poeira fizesse mal
a ela. Foi somente quando a base da expedição apareceu como um farol
contra a noite vindoura, interrompendo a solidão da planície, que Ulian
permitiu-se afastar.
A base era uma enorme tenda rígida de dois andares, com ângulos
suaves e muitos compartimentos, que se estendia por todas as direções,
construída em liga metálica e cristal belariano, o que fazia dela
extremamente leve para carregar em uma viagem de longa distância e
resistente a qualquer tipo de intempérie, até mesmo as que haviam ido
estudar ali: as tempestades temporais.
Grandes equipamentos a rodeavam, envoltos por luzes
incandescentes que afastavam as criaturas selvagens. Apesar da
simplicidade, aquela construção projetada pelas aguçadas mentes de Belar
ainda transmitia uma inequívoca sensação de beleza. Na entrada fortificada,
o portal imune à poeira vermelha abriu passagem para Ulian, reconhecendo
sua assinatura de carbono. Após alguns comandos, a entrada de Elya foi
também permitida.
Ela, contudo, não se moveu, parecendo perdida enquanto mirava
Cronos, o titã, que, como senhor regente de tudo naquele ambiente de
delicado equilíbrio, extinguia a luz do fim do dia com irrefreável fome.
E em que pese a inescapável atração que o buraco negro exercia, o
objeto de suas atenções era senão aquela mulher incompreensível, fatal astro
dominante em seu céu.
— Sou o único belariano enviado nesta expedição — disse, sem bem
saber por que as palavras lhe escaparam, mas feliz por tê-lo feito quando viu
a expressão de alívio que tomou cada traço das feições da mais perfeita entre
as perfeitas. — Mas outros homens estão aqui, e acredito que a maioria deles
jamais tenha estado na presença de uma dama belariana ou saiba como se
portar de forma apropriada.
Os lábios dela se curvaram em um sorriso franco que só fez atiçar o
fogo que ardia de forma constante em seu peito.
— Melhor que os ensinemos, então.
Ele poderia ter ficado perdido naqueles lábios não fosse o próprio
senso de pudor, além da prudência analítica que cada vez lhe dizia mais alto
e mais forte que Elya Bespian estava ali para lhe causar problemas.
Belarianos não eram uma raça muito inclinada à empatia, mas para
Ulian foi fácil colocar-se no lugar de Elya enquanto percorriam, ainda a uma
distância regimentada um do outro, os corredores da extensa base. Ela, uma
dama, jamais havia saído do planeta natal; portanto, seria natural que
exibisse curiosidade até sobre a mais insignificante das coisas, motivo pelo
qual não a apressou.
À sua frente, as pontas sedosas dos cabelos dourados dela oscilavam,
acompanhando o balançar delicado dos quadris e, envolvido naquela dança,
ocorreu a Ulian que, ao deixar Belar para estar naquela expedição, havia
deixado também muitas das certezas que detinha. Consequentemente, tudo
poderia ter mudado, inclusive o status marital dela.
Como se afundando em um oceano glacial, sentiu as terminações
pinicarem, incomodadas, enquanto um fluxo de pensamentos o invadia.
Era incontestável que Elya fora reclamada por Tenar, pois a prova
estava em seus fios e olhos, bem como em sua atitude — Ulian podia notar o
fogo dos filhos dourados queimando nela, ainda abrasador. E por ser a mais
perfeita entre as perfeitas, além de uma Bespian, Ulian assumia ainda que ela
comparecera ao Baile do Conúbio, como determinava a tradição, porém todo
o ocorrido dali em diante não passava de especulação.
De forma involuntária, seus dedos longos fecharam-se em punho, tão
apertados que as mãos, em determinado momento, começaram a formigar. O
simples imaginar de como os eventos teriam se desenrolado no Baile o levou
à mais profunda cólera, já que detinha a certeza de que todos os jovens
cavalheiros teriam se jogado sobre ela, competindo como animais por um
único instante de atenção.
Não os culpava, de fato, pois sabia bem como era desejar ser notado
por Elya Bespian, como era ansiar por mesmo um vislumbre de seus raros
sorrisos. Sempre pensara não ser um tolo, como os demais, mas a atenção
dela era como um tóxico para seu espírito, e não podia fazer nada além de
sempre desejar por um pouco mais.
E por mais impossível que parecesse, aquela mesma Elya Bespian
estava à sua frente, em Colossus, tão preciosa que a natureza da realidade
daquele lugar infértil parecia dobrar-se para envolvê-la, talvez esperando
absorver um pouco da beleza que tão facilmente lhe excedia.
Enquanto a observava, os lábios fartos e rosados, delicados como
pétalas de flores, entreabriram-se, e ele apenas conseguiu pensar em invadi-
los com toda a força e intenção que possuía. O cenário do Baile, no entanto,
relampejou por sua consciência, assim como uma cena imaginada das luvas
que cobriam a pele quente e suave dos braços dela sendo retiradas para que
os dedos pudessem se entrelaçar aos de outro homem, selando a combinação
determinada pelo Conselho Conubial. Seu sangue ferveu.
Pois de que outra forma, se não desposada, poderia Elya Bespian
estar ali?
— Ulian, você está bem? — ouviu-a chamar distante, de forma
carinhosa, como a brisa noturna que adentrava por suas janelas em Belar. —
Estou no caminho certo?
Ulian piscou algumas vezes e, em tentativa praticamente inútil de
recompor-se física e moralmente, estendeu os braços ao longo do corpo, em
uma postura impecavelmente rígida que detestava, porém que o inspirava
alguma ordem. Quase não se lembrou de aonde a estava levando enquanto
lutava contra as labaredas que o lambiam.
— Continue um pouco mais à frente — disse, notando a rouquidão
que se apossara novamente do timbre, antes de pigarrear.
Havia sido reclamado por Tenar já há alguns ciclos e julgara ter
aprendido bem, neste interregno, a lidar com aquele abrasador e incendiário
desejo que enchia de paixão cada instante da vida dos filhos dourados.
Entretanto, Elya era como um combustível que se jogava sobre a fogueira de
seu coração, alimentando incansavelmente as chamas. E era exatamente por
isso que ela precisava ir embora o mais rápido possível.
Quando a passagem que levava até a enfermaria surgiu, um
indescritível alívio o tomou e, mais que depressa, a incentivou a prosseguir
sozinha, sob o pretexto de que assim poderia ter um pouco mais de
privacidade com Lyia.
O que desejava, no entanto, era um mísero instante de lucidez para
conseguir se controlar.
Ele era Ulian Bened, o primogênito de sua família, único de seu
nome, um homem racional. Mesmo o desprezo pelas tradições e rebeldia
exibidos em Belar — até mesmo os escandalosos furos permanentes em suas
orelhas — eram resultados do total domínio de emoções. Com prudência.
A sensatez era, senão, sua maior virtude, mas ainda assim ali estava
ele, acuado atrás de uma parede e com medo de uma mulher que sempre lhe
fora intocável, esforçando-se para acalmar os batimentos do próprio coração
e cessar os pensamentos que lhe causavam alucinações.
Aquilo era um erro terrível, e não conseguia extrair sentido algum do
fato de a terem mandado até Colossus, fosse qual fosse o motivo, pois
nenhum homem são na Academia teria aprovado a viagem da mais perfeita
entre as perfeitas — do futuro de Belar — para um sistema onde o tempo se
passava de forma tão distinta.
Todos saberiam dos efeitos do buraco negro; afinal, tinham formado
aquela expedição para estudá-los.
A não ser...
— O que houve com ela? — ouviu Elya perguntar, ao que, após
alguns instantes de silêncio, percebeu que a questão só poderia ser para ele,
pois a enfermaria estava vazia quando se atreveu a adentrá-la. — Ela me
disse que ficaria em sono criogênico também, então como poderia ter se
machucado tanto, quando nada se passou comigo?
Cauteloso, Ulian aproximou-se da cama médica dentro da qual a
implaviana repousava, envolta em um líquido borbulhante. Um painel exibia
os procedimentos e rotinas de cura aplicados, e, apesar de não ser um
médico no sentido mais estrito da palavra, ele detinha conhecimento
suficiente para entender que a situação não parecia boa.
— Sei pouco mais que você sobre as condições do pouso e não teria
como explicar o que exatamente aconteceu — optou por esta linha de
argumentação, com toda a gentileza, guardando para si as infindáveis
perguntas que desejava que fossem respondidas. — Mas posso garantir que
aqui ela será muito bem cuidada.
Elya desviou os olhos dourados novamente para a amiga acidentada
— o que, honestamente, foi verdadeiro alívio para seus sentidos — e tocou a
superfície de cristal com a ponta dos dedos, como se estivesse se
comunicando em uma linguagem não verbal que apenas as duas
compartilhavam.
— Obrigada — articulou, com tanta doçura que a determinação e
força de vontade de Ulian se esvaíram assim que as sílabas deslizaram por
seus ouvidos.
Não era apropriado, em especial diante de tudo o que renunciara
quando decidiu partir naquela expedição, mas ainda assim ele pensou que
faria quase qualquer coisa para ver Elya Bespian feliz.
— Posso levá-la ao meu alojamento e oferecer roupas limpas? —
indagou, imaginando que ela, uma dama belariana, deveria ansiar por um
pouco de conforto e tirar aqueles trajes sujos em farrapos. — Depois, retorno
à nave em busca das suas.
— É claro — respondeu, com as pestanas batendo nas maçãs do
rosto angulosas e coradas.
— Preciso esclarecer antes disso que tudo em uma viagem espacial
de longo alcance é calculado para ter o tamanho e peso exatos — explicou,
enquanto a guiava pelo labirinto de corredores de baixa iluminação. —
Todos os alojamentos estão ocupados, e não tenho como oferecer nada
exclusivamente seu — finalizou, indicando a porta, e ciente de que em Belar
a mera insinuação de que ocupariam o mesmo quarto faria com que a
reputação de todas as gerações dos Bespian, passadas e futuras, fosse
arruinada.
Os passos descalços de Elya, que já faziam pouco ou quase nenhum
barulho, deixaram de ecoar pelo pavimento de cristal, e, ao sinal de que ela
já não mais o acompanhava, Ulian virou-se, apenas para se deparar com um
par de olhos dourados incandescentes que o encaravam.
Já a havia observado muitas vezes, mais até do que seu pudor
permitiria admitir, porém aquele olhar pareceu-lhe novo. Ela, a mais perfeita
entre as perfeitas por direito, constantemente aparentava batalhar entre quem
era e quem deveria ser. Mas não com ele.
Às vezes, pensava que era o único que a enxergava verdadeiramente,
e, em seus mais insensatos sonhos, ela também era capaz de enxergá-lo e
compreender toda a dor que guardava dentro de si. Naquele instante,
entretanto, Ulian não conseguiu interpretá-la e sentiu-se à deriva.
— Não vejo como isso poderia ser um problema, Bened — foi tudo o
que Elya disse, carregando a pronúncia de seu sobrenome com uma deliciosa
intenção dúbia, que, em um primeiro momento, não pareceu combinar com
tão delicada criatura. No entanto, aí residia o verdadeiro fascínio que Elya
Bespian exercia sobre ele: ela não era nada do que parecia.
O interior de um alojamento na base da expedição não era digno de
nota, pois o espaço destinava-se às necessidades mais básicas de qualquer
cientista: dormir e lavar-se. Por isso, quando a porta deslizou e as luzes se
acenderam, não revelaram nada além de paredes de liga metálica em ângulos
suaves delimitando um quadrilátero perfeito, uma cama de bom tamanho,
grande o bastante para acomodar raças de porte avolumado como os
quaarsarianos, uma singela estação de trabalho e uma segunda porta, que
levava ao diminuto lavabo.
Por um instante breve — mas não o suficiente —, Ulian e Elya
encararam-se, desconfortáveis, uma vez que jamais estiveram em um espaço
tão apertado ao mesmo tempo e ainda mais sozinhos.
— Caso queira, aqui você pode se lavar — explicou, indicando o
lavabo e, depois que as luzes deste também se acenderam, a ducha afixada
ao teto. — Há um sensor que fará a água correr quando estiver lá dentro, e
cessar assim que sair ou se atingir um tempo de banho muito longo. A água
não é um recurso infinito aqui — acrescentou, sem graça, correndo a mão
pelos cabelos.
Ela concordou com a cabeça e deu alguns passos em direção ao
lavabo, porém parou, como se estivesse perdida ou não soubesse bem como
proceder.
Talvez jamais houvesse visto uma ducha, pois as residências
belarianas exibiam apenas grandes banhos ou banheiras. Ou, ainda, jamais
houvesse se banhado por conta própria, sem que autômatos lhe esfregassem
a pele macia com óleos e néctares que a faziam irradiar como uma estrela.
Os pensamentos a respeito de Elya Bespian se banhando rapidamente
o levaram a imagens ainda mais inapropriadas e, apesar dos lábios terem se
curvado involuntariamente, repletos de uma malícia alimentada pelo fogo
que ameaçava descontrolá-lo, esforçou-se para não transparecer nada além
da cordialidade.
Pelas Soberanas!
— Vou até a nave — esclareceu, já com metade do corpo para fora, e
saiu do alojamento antes que ela sequer tivesse a chance de responder ou
pedir-lhe qualquer coisa.
Ao dobrar o corredor, recostou a testa junto à parede fria e respirou
profundamente.
Aquilo não deveria estar acontecendo.
Havia escolhido a Academia e o caminho das ciências para ver-se
livre das classicistas tradições belarianas, pois jamais acreditara que a
perfeição existisse de fato. Sabia que não existia. E, durante toda a vida,
rejeitara a mera hipótese de casar-se apenas para perpetuar uma espécie tão
egoísta, pacientemente aguardando por uma oportunidade de deixar Belar
em uma expedição como aquela, que o permitisse estar tão longe de tudo o
que conhecia que a perfeição pareceria nada além de um absurdo conceito
inventado.
Mas ali estava a ruína de sua força de vontade, materializada na
figura de uma mulher.
Ulian riu com escárnio, certo de que as Soberanas, o misterioso deus-
criatura que habitava o Conúbio ou até mesmo os deuses antigos brincavam
com ele ou vingavam-se por ter-lhes dado as costas e ousado renegar as
tradições com tamanha rebeldia.
Tão longe quanto jamais poderia ter sonhado em ir, ainda assim eles
conseguiram mandar-lhe a única criatura capaz de abalar seu espírito. A
única capaz de testar-lhe a moral e tencionar a superfície de sua
racionalidade o suficiente para chegar ao seu coração.
Irado, afastou-se da parede tomado por uma nova determinação.
Não lhes daria a satisfação e não permitiria que Elya Bespian o
afetasse.
Não mais do que já fazia
Ulian revistou a nave da forma mais minuciosa que pôde à iminência
do anoitecer, mas quando os uivos famintos das criaturas começaram a ecoar
na planície, recebeu-os como um aviso, abandonou a tarefa e retornou o mais
rápido possível para a base da expedição.
Coberto em poeira e com os músculos das pernas doloridos pelo
esforço feito mais cedo, muito superior ao que estava acostumado, arrastou-
se pelos corredores na penumbra em direção ao próprio alojamento,
ignorando as perguntas dos colegas a respeito de uma suposta mulher
belariana, sobrevivente do acidente, que estaria escondendo de todos.
Certamente uma cortesia de Edon, que com uma frequência aviltante
se metia em sua vida pessoal.
Nunca fora dado a violência, que considerava a ruína completa da
moral, porém os comentários desrespeitosos sobre Elya o deixaram feroz, ao
passo que praticamente rosnou para que jamais ousassem repetir tais
palavras outra vez enquanto vivessem. Não queria culpá-los pela ignorância,
pois sabia que não poderiam compreender quão profundo era o respeito que
um homem belariano possuía pela virtude e reputação de uma dama e quão
forte era a necessidade, ensinada desde a mais tenra idade, de proteger esses
dois conceitos tão ambíguos e, ao mesmo tempo, tão objetivos.
E Elya não era apenas uma dama belariana qualquer: era preciosa, e
o orgulho de Ulian não permitiria que, nem mesmo em pensamento, a
desmerecessem.
Quando finalmente parou em frente à porta do próprio alojamento, os
colegas já o haviam deixado em paz e ido cuidar das próprias tarefas.
Precisavam reportar o acidente, mas conforme os comentários que ouviu, a
janela de comunicação havia se fechado.
Pelo menos ele teria algum tempo para descobrir, com Elya, o motivo
de estarem ali antes de ter que se explicar com os superiores.
Repleto de expectativa, bateu suavemente algumas vezes. Sem
resposta, abriu uma fresta e, graças às suaves luzes incandescentes do
corredor, vislumbrou o contorno da mais perfeita entre as perfeitas
esparramada em sua cama, dormindo profundamente.
Dividido entre a necessidade de se lavar, o desejo de deixá-la
descansar, a própria fadiga e a magnética curiosidade de observá-la, deixou
as botas pesadas do lado de fora e adentrou o aposento sem fazer qualquer
ruído.
Notou que ela havia encontrado, no pequeno compartimento perto da
mesa de trabalho, uma das camisas sedosas dele, que a cobria até o meio das
coxas, e a visão da pele rosada exposta e embolada tão tranquilamente junto
de seus lençóis o fez atrapalhar-se com a respiração, pois parecia...
Certa.
Ardendo em brasas, abriu a porta do lavabo com menos graça do que
jamais julgara ser capaz, sendo um belariano educado para a mais rígida
perfeição gestual, e se atirou debaixo da ducha sem se incomodar em tirar as
roupas. Quando a água o atingiu, deixou que caísse em grandes gotas até o
coração retomar os batimentos usuais. Só então desabotoou a camisa e
retirou um braço de cada vez. Depois tirou as calças, sentindo os músculos
das pernas agradecerem.
Alcançou os óleos que trouxera consigo do planeta natal e, com
vigor, esfregou a pele encardida até que voltasse a exibir a coloração
profundamente azul com a qual fora presenteado ao nascer. Seus olhos
involuntariamente fecharam-se, cansados, e o peso das mãos se suavizou.
O aroma dos néctares invadiu o ambiente enevoado e, de repente,
não eram seus dedos que lhe envolviam os músculos, mas os de Elya. Ela o
percorria com toda a delicadeza, palmo a palmo, e Ulian podia até mesmo
sentir seu fôlego próximo o suficiente para que, naquele instante, dois corpos
quebrassem as leis da física e ocupassem o mesmo espaço.
Um som de satisfação deixou seus lábios.
Então a água parou de correr, e Ulian foi obrigado, com surpresa, a
abrir os olhos famintos e dar-se conta de que estava completamente sozinho.

— Ulian?
A voz que o chamava era uma brisa. Um sopro.
— Ulian? Acorde.
Suas pálpebras descolaram-se com muito custo, e ao alcance da visão
embaçada surgiu Elya, ajoelhada e com uma expressão preocupada nos
traços do rosto.
Com o retorno da consciência, seu corpo todo pesou e reclamou,
dolorido, e ele se deu conta de que havia adormecido sentado junto à porta e
com os braços cruzados, que, naquele momento, estavam dormentes. E o
mais importante: deu-se conta de que os eventos da noite anterior não foram
um sonho.
— Elya — murmurou em reconhecimento.
As feições dela se iluminaram, como uma manhã beijada pelos
quentes raios de Gautan, e ela tomou suas mãos em um gesto totalmente
inesperado e inapropriado.
Mas talvez já houvessem cruzado aquela linha.
— Sim, sou eu — falou, tão doce que poderia mergulhar em seu
timbre e nunca mais emergir. — Você ficou aí sentado a noite toda?
Meneou a cabeça em sinal positivo, ainda confuso.
Não queria que ela soubesse, uma vez que havia planejado ter
despertado muito antes, porém jamais teria uma noite tranquila se a deixasse
sozinha, ao alcance de qualquer olhar curioso que cedesse à tentação de abrir
a porta para dar uma boa espiada na tão misteriosa dama belariana. A virtude
dela era o que de mais caro possuía, ali, para defender.
Ela se surpreendeu e levou as mãos à boca, levando também o fogo
que dançava na ponta de seus dedos, onde haviam se tocado.
— Me desculpe, eu não queria... Estava muito cansada, e você
demorou, então decidi me deitar só um pouco... A verdade é que não durmo
há muitas noites — confessou, abaixando os olhos, como se estivesse
envergonhada. — A criogenia não conta, pois não é verdadeiramente um
descanso...
Ulian moveu o corpo e instintivamente inclinou-se na direção dela,
dirigindo-lhe um olhar inquisitivo. Uma faísca os conectou, ameaçando
iniciar um incêndio, quando finalmente indagou:
— Por que você está aqui, Elya?
Mas, no instante em que as palavras lhe deixaram os lábios, desejou
jamais tê-las pronunciado, pois uma teoria se formava no fundo de sua
mente, e Ulian temia, como jamais temera algo na vida, de que estivesse
correta.
Tinha medo de que, no instante em que soubesse a razão pela qual
Elya Bespian estava em Colossus, precisasse mandá-la embora.
— Vieram chamá-lo — ela desconversou, dando-lhe as costas com a
mesma graça fluída que exibia em cada movimento. — Bateram algumas
vezes e disseram algo sobre leituras, o que parecia importante. Isso faz
algum sentido?
Ele também se colocou em pé, e, por um momento, encararam-se em
silêncio. Então, os olhos grandes e dourados dela aumentaram ainda mais de
tamanho quando se focaram em seus ombros e desceram para o peito e a
barriga com uma intensidade desconcertante, e Ulian teve a sensação de que
a estava expondo a algo indecente ao dar-se conta de que estava vestido
apenas da cintura para baixo.
— Desculpe, Bespian, mas você tomou minha única camisa
confortável — justificou-se, com a voz vacilando, enquanto se apressava em
direção ao compartimento. Sua tentativa de ser engraçado soara fraca até
mesmo para ele.
Pegou dependurada uma camisa de gola tão alta que chegava a seus
angulosos maxilares — talvez não muito confortável para um dia de trabalho
em campo, mas, desesperado como estava para se cobrir, pouco se importou
com o bem-estar.
— Não consegui encontrar seu traje ontem, sinto muito —
acrescentou, evitando encará-la. — Pegue o que mais desejar entre as
minhas roupas, e prometo voltar no fim do turno da escavação com mais
tempo para procurar.
Não recebeu nenhuma resposta.
O silêncio pareceu estranho e pesado, mas enquanto se vestia
agradeceu por não precisar falar mais nada. Foi só quando se afastou do
compartimento que descobriu que Elya o mirava com intensidade e viu-se
obrigado a ceder à gravidade das írises douradas e abrasadoras. Como se
houvesse se passado algo entre eles que lhe escapara naquele instante, os
traços suaves dela se endureceram, inacessíveis, e a distância que se
impunha de repente pareceu muito maior do que aquela que poderia tolerar.
— Por que perdeu o meu baile? — ela indagou, e pôde sentir toda a
profundidade amarga da pergunta lhe invadindo. Ela estava triste e
magoada. — Você sabia da minha maioridade e, ainda assim, aceitou vir
para essa expedição. Você sabia, Ulian. Você sabia.
Uma acusação justa, para a qual jamais poderia oferecer explicação,
pois como confessar que era covarde e havia, simplesmente, fugido?
— Você não respondeu minha pergunta, então me sinto no direito de
também não receber a sua — foi tudo o que conseguiu dizer antes que a
garganta se apertasse e a voz sumisse, acovardando-se da mesma forma que
naquela noite em Belar. Ele pigarreou. — Vou lhe mostrar como as coisas
funcionam aqui antes de sair para as escavações.
Ela virou-se em uma cascata reluzente de cabelos dourados. As írises
estavam em chamas.
— É claro, não desejo atrapalhar nenhum de seus planos.
Ulian engoliu em seco, sentindo-se levado à beirada de um abismo,
porém fez o possível para focar-se no trabalho que precisaria realizar
naquele dia — a verdadeira razão de estar em Colossus —, e não nos
humores dela.
Elya era um acontecimento fortuito, um acaso passageiro.
Eventualmente, retornaria à Belar e a seu lugar de mais perfeita entre as
perfeitas, deixando-o sozinho, como sempre fora. As escavações e os dados
— sua pesquisa —, por outro lado, permaneceriam.
Dormira demais e, certamente, um dos companheiros da expedição
teria assumido seu turno, para que a exploração não fosse comprometida
com os acontecimentos inesperados; por isso, imaginara encontrar o
refeitório, onde reuniam-se para fazer as principais refeições, completamente
vazio.
Ao adentrar no amplo salão, contudo, deu-se conta de que a
curiosidade científica era de fato forte demais para ser ignorada,
independentemente da raça em questão, pois muitos ainda estavam ali,
esperando para ter apenas um vislumbre da misteriosa dama belariana.
Talvez já muito acostumada a receber tanta atenção, Elya em nada
pareceu se afligir e, com descabida doçura, juntou as mãos na frente do
corpo, bateu as pestanas e, simplesmente, sorriu. Sorriu como se fosse uma
estrela, um centro de gravidade. A matéria da qual todas as coisas foram
criadas e para a qual todas as coisas retornariam.
E ele repreendeu-se por sentir que ela detinha uma parte tão grande
de si próprio.
Exclamações foram seguidas de um desordenado empurrar de
cadeiras, até que Ulian deu-se conta de que ela havia sido cercada por
homens afoitos que, ignorando todo o bom-senso, esticavam mãos,
tentáculos e antenas em cumprimentos de boas-vindas.
— Pelas Soberanas, parem com isso! — disse, com o timbre
poderoso reverberando pelas paredes de liga metálica. — Uma dama
belariana não deve ser tocada por mãos masculinas, a não ser as de seu
próprio pai, irmão ou marido — recitou, odiando-se por ter invocado com
tanta facilidade uma tradição que desprezava.
Seus companheiros murmuraram muitos pedidos de desculpas no
idioma universal que compartilhavam na expedição, assim como em seus
próprios dialetos. Por fim, acabaram se encaminhando para as funções
designadas, satisfeitos por constatarem que a belariana era ainda mais
magnífica do que imaginaram, mas infelizes por não poderem reivindicá-la,
como fariam com uma descoberta. Elya, todavia, apenas o encarou com as
írises douradas faiscando com intensidade e, delicadamente, aceitou os
suplícios sem quebrar o contato visual nem por um ínfimo instante.
Certo de que aquela atenção iria levá-lo à ruína, Ulian afastou-se e
pediu aos autômatos dispostos junto às paredes por refeições preparadas com
os néctares e frutos belarianos enviados exclusivamente para sua dieta,
sequer lembrando-se de que tudo havia sido provisionado com exatidão para
durar até o fim da expedição. Quando duas tigelas de cristal foram
depositadas na mesa, ao lado de dois copos repletos de um chá espesso e
fumegante, ela finalmente concentrou-se em comer, e ele pôde relaxar.
Ulian sabia e sempre temera essa única verdade: quanto mais dela
tinha, mais dela queria.
Ulian queria mentir para si mesmo e acreditar que o dia passado em
campo havia sido um deleite para qualquer cientista e que os achados em
Colossus, ligados às variações temporais, eram talvez a maior descoberta de
seu tempo, caso conseguisse dar a eles algum sentido.
Mas quem esperava enganar?
A verdade é que apenas conseguia pensar em Elya, e até mesmo a
mais empolgante revelação acabou perdendo o brilho quando lembrou-se
dela, tão longe de tudo o que conhecia e sozinha em uma enfermaria apática,
aos pés de uma cama médica.
Ao fim de seu turno, que perpassou como se o tempo houvesse
decidido se esticar e tornar-se ainda mais lento à mercê do buraco negro no
horizonte, retornou à nave acidentada, como prometido, para vasculhar
câmaras e compartimentos ainda não vistoriados. Quando finalmente
encontrou dependurado um traje branco tipicamente belariano, acompanhado
por sapatos de finas tiras, além de luvas sedosas e um par de brincos
brilhantes que se derramavam como estrelas, foi tomado por uma
desproporcional felicidade.
Ele os conhecia muito bem: os havia escolhido especialmente para
ela. Um presente tão simplório... Jamais imaginou que ela os usaria.
Temendo contaminar com poeira vermelha os pertences preciosos,
colocou-os dentro de um saco hermético com todo cuidado para levá-los de
volta à base da expedição, assim como algumas provisões que não haviam
perecido no momento do impacto. Quando seus olhos vislumbraram a tenda
fortemente iluminada, o coração teimou em acelerar, repleto de expectativa.
Foi recebido pelos colegas que transitavam pelos corredores com
empolgação e parabenizado de modo enfático pela importância das
descobertas feitas. Enquanto discutiam dados de forma casual, quase foi
capaz de esquecer que havia uma mulher belariana em seu alojamento,
deitada em sua cama e vestida com suas roupas.
Seu corpo, entretanto, se lembrava muito bem.
Assim que encontrou uma brecha nas conversas, pediu licença, sob o
pretexto de se lavar, e subiu as rampas, odiando-se, a cada passo, por dar
mais importância ao que Elya pensaria de seu esforço em encontrar as
roupas dela do que a seus próprios achados científicos.
Com o fôlego cada vez mais escasso, descalçou os sapatos e alisou o
macacão empoeirado antes de bater à porta.
— Entre.
— Elya — cumprimentou, ao cruzar o portal, que se fechou às suas
costas.
— Ulian — ela replicou, sentada na beirada da cama e com o corpo
enrolado nos lençóis e os cabelos dourados pingando, como se houvesse sido
surpreendida saindo do banho.
Certo de que a perspectiva de nudez o deixava cada vez menos
desconfortável e que aquela intimidade era senão um erro terrível, esticou o
pacote com os pertences dela, como se fizesse uma oferta de paz após os
acontecimentos da manhã.
Era um homem racional, repetiu para si mesmo.
Um homem de moral irrenunciável, reforçou.
— Como prometi.
Elya arregalou os olhos, surpresa, e seus lábios curvaram-se em um
sorriso grandioso e sincero. Com toda a determinação que possuía, Ulian
tentou não os encarar, e quando os olhos, a muito custo, obedeceram, sentiu-
se vitorioso. Costumava deter aquele tipo de controle sobre o próprio corpo e
pretendia retomá-lo a todo o custo.
— Oh, obrigada! — ela agradeceu, rodopiando pelo pequeno espaço
livre do aposento como se valsasse. — Estava aflita, me perguntando se
precisaria cortar todas as suas roupas para que coubessem em mim.
Ulian coçou a cabeça, confuso.
— Como assim “todas”? Você já cortou alguma?
O sorriso dela alargou-se.
— Não se preocupe, só estou implicando com você. — Os longos
cílios dourados bateram nas bochechas coradas de modo tímido. — Soube
que fez uma grande descoberta hoje. Me disseram que você é físico. É
verdade.
Ele assentiu.
— Parece uma ocupação importante... Seus colegas o estimam muito,
por aqui. Se eu fosse você, me lavaria e colocaria um traje à altura dos salões
de Baile de Belar, pois parece que estão todos ansiosos para comemorar.
Novamente a confusão o tomou e talvez tenha ficado muito evidente
em seu semblante, pois ela continuou:
— Foi seu amigo quaarsariano quem me disse — esclareceu. —
Edon, certo? Ele é um tipo muito curioso, mas nunca havia conhecido um
quaarsariano antes, então posso estar apenas um pouco impressionada com
todo aquele... — Mordiscou o lábio, pensativa. — Tamanho.
Aquelas palavras, na boca dela, soavam como uma deliciosa
obscenidade, mas Ulian apenas concordou com a cabeça, indagando-se
silenciosamente em qual momento Elya e Edon haviam encontrado tempo
para interagir.
— Eu vou...
Ela ergueu as sobrancelhas, esperando que continuasse.
— Me lavar — finalizou, com uma deixa.
— Aproveite o banho — Elya desejou, de uma forma que soou quase
cruel para alguém tão delicada.
Será que sabia do que havia feito pensando nela?
Ele seguiu para o lavabo e engoliu em seco quando a porta se fechou.
Encarando o próprio reflexo, reconheceu o sofrimento e o esforço nos
contornos dos olhos. Ao menos estava sozinho.
Com medo de repetir a alucinação da noite anterior, cuidadosamente
retirou o macacão e entrou debaixo d’água com ambos os olhos bem abertos.
Esfregou-se sem nenhum cuidado ou delicadeza; ainda assim, seus dedos
teimaram em confundir-se com os dela e, desesperado para livrar-se da
sensação de Elya Bespian junto de si, enxugou-se mais que depressa.
Abriu uma fresta da porta, temeroso do que encontraria, mas, ao se
dar conta de que o aposento estava vazio, respirou com alívio e largou a
toalha sobre a cama, aproveitando a privacidade que, tão de repente, lhe fora
tirada.
Vestiu uma camisa esvoaçante, que evidenciava o pescoço longo e o
peitoral, e calças justas e escuras. Por fim, cuidadosamente abriu um
embrulho onde repousava um de seus brincos compridos, decorado com
estrelas douradas, que passou com habitualidade pelos furos feitos na orelha.
Os tecidos ricos e macios, assim como o peso tão familiar da joia,
fizeram-no sentir em Belar, mas foi somente ao vislumbrar Elya Bespian no
refeitório que ele, finalmente, sentiu-se em casa.

Elya estava recostada despreocupadamente em uma poltrona, e tão


avassaladora era sua beleza que mesmo os companheiros de expedição,
vindos de mundos com padrões atrativos tão distintos dos de Belar,
gravitavam ao redor dela, presos em um fatal encanto.
As pernas longas estavam cruzadas, revelando panturrilhas enfeitadas
com as tiras brilhantes dos sapatos que subiam, cruzando-se, em direção às
coxas. E enquanto as observava, Ulian teve uma estranha visão de si mesmo
de joelhos, beijando-as.
Certo de que o fogo que o queimava com intensidade o faria de fato
cair como um tolo, virou o rosto na esperança de não denunciar os
pensamentos tão insanos e impróprios que, de certo, o tornariam uma
criatura indigna. Porém nem mesmo toda a sua determinação reunida foi
capaz de obrigar os olhos a ficarem longe, pois quando seu nome foi
pronunciado por aqueles lábios que ele sabia serem rosados, eles a
procuraram, famintos e prontos para devorá-la.
— Bened — Elya cumprimentou, com as bochechas ainda mais
rosadas que a pele sedosa. Usava os brincos reluzentes, que tilintaram com o
menor dos movimentos e, pelas Soberanas, como ficavam lindos nela.
— Bespian — devolveu, com um apelo grave, pronto para implorar
que deixasse de torturá-lo quando vislumbrou o decote profundo que
acomodava os seios, assim como as demais curvas do corpo desenhado que
se acomodavam junto ao tecido quase translúcido.
— Edon— saudou uma terceira voz, gutural e com um sotaque
carregado de ironia, como se mal pudesse conter o quanto se divertia diante
da situação.
Obrigado a virar-se em direção ao quaarsariano que lhe roubara o
momento chamando o próprio nome, conduziu o amigo aos tropeços até os
autômatos, enquanto as pernas subitamente não resistiam ao peso do próprio
corpo e ameaçavam derrubá-lo.
— Você esteve com Elya — Ulian acusou aos sussurros, fazendo o
possível para não soar possessivo, mas surpreendeu-se com o tom
animalesco da própria voz.
Edon curvou as feições endurecidas em uma expressão confusa,
exibindo rachaduras na couraça.
Seus outros colegas da expedição agora abarrotavam o refeitório,
conversando animadamente no mais próximo de uma “festa” que poderiam
ter ali, e alguns cumprimentos foram trocados antes que o quaarsariano
esclarecesse:
— Sim, na enfermaria — esclareceu, depois de colocar as mãos
enormes sobre os ombros de Ulian. — E preciso dizer, Bened, que espero de
verdade que saiba o que está fazendo com a moça. Estou surpreso que tenha
se permitido deixar as coisas chegarem a esse ponto. Você a come com os
olhos.
Ulian enfureceu-se e cerrou os punhos em um movimento
involuntário. O quaarsariano a conhecia apenas pela metade de um dia,
enquanto Ulian a conhecia a vida inteira. Por qual motivo Edon pensara ter o
direito de aconselhá-lo a como agir com uma dama belariana?
Principalmente com aquela dama belariana?
Sob o toque pesado e constante que parecia afundá-lo, entretanto,
relaxou. Em Belar, nunca alguém o compreendeu — com exceção de Elya,
mas ela não era exatamente uma confidente. Edon, por sua vez, era alguém
em quem poderia confiar; alguém que não o julgaria mais do que sua própria
consciência.
Um amigo, enfim.
— Não faço ideia do que estou fazendo — confessou, rendido ao
próprio fracasso. — Não sei o que está acontecendo comigo. — Os dedos
pressionaram as têmporas. — É como se eu estivesse sem ar, com sede e
com fome, tudo isso ao mesmo tempo, enquanto queimo...
O quaarsariano abriu um sorriso de presas afiadas, maldoso e
carinhoso ao mesmo tempo, quase paradoxal. Depois gargalhou por um bom
tempo, divertindo-se às suas custas.
— Só conheço duas causas para esse efeito — revelou, fixando os
olhos amarelados no fundo dos seus. — Paixão e amor. E parece que você,
meu amigo, está completamente afundado nas duas coisas. Senti o cheiro do
seu sofrimento de longe, e acredite quando digo: só há uma forma de se
livrar disso.
As palavras e o tom maliciosos pegaram Ulian desprevenido, mas ele
balançou a cabeça negativamente, bagunçando os cachos que insistiram em
acomodar-se de modo perfeito mesmo assim.
— Você é simplesmente o maior e o pior libertino que já conheci em
toda a minha vida.
Edon lançou-lhe uma piscadela.
— Eu não sou libertino, apenas livre para amar quando e como
quero. E por isso mesmo você deveria me ouvir. Se entregue a seus
sentimentos e deixe de ser um belariano chato. Você não odeia as tradições?
Não despreza todas as regras? — Os dedos grandes do quaarsariano tocaram
seus brincos, que tilintaram. — Por que ainda resiste a ela, Ulian?
Aquelas palavras eram absurdas, e Ulian fez todo o possível para
repeli-las. Não precisou de muito esforço, contudo, pois logo os
companheiros trouxeram canecas transbordando um néctar escuro e
aromático que, sabia, bebiam quando desejavam entorpecer a mente. Tal
comportamento não detinha equivalência em Belar e, certamente, seria
muito condenado.
Foi por isso mesmo que, com os olhos fixos em Elya, ergueu uma
delas e bebeu, sedento para que o líquido escorresse por sua garganta como
um anestésico. Algumas gotas lhe escaparam, e ele as capturou com o dorso
das mãos sem quebrar o contato visual. Arfante, sentiu quando os membros
começaram a pinicar, envolvidos pelo fogo que se alastrava sem controle
desde seu centro.
Do outro lado do salão, a mais perfeita entre as perfeitas repetiu o
gesto depois de erguer o próprio copo do qual bebericava algo muito mais
inocente, em um brinde silencioso, levando um dos polegares ao canto dos
lábios vastos e percorrendo-os em uma lenta carícia até que estivessem
completamente manchados com o líquido.
E ele desejou ser aquele dedo.
A boca.
E a carícia.
O quarto não estava abafado, pois tal coisa seria impossível em uma
instalação científica constantemente controlada como aquela base, mas Ulian
podia jurar que o tecido das roupas lhe grudava na pele, como se as paredes
de liga metálica houvessem passado o dia expostas aos implacáveis raios de
Gautan.
Talvez sua compleição física fosse distinta demais da de seus
companheiros, mas o fato era que nenhuma quantidade de bebida fora capaz
de entorpecer seus sentidos — ou sentimentos — e, portanto, estava tão
sóbrio e atento à presença de Elya Bespian quanto antes.
O suor era a única indicação de que havia consumido algo diferente,
mas talvez derivasse apenas de... Nervosismo.
Suas terminações pinicavam enquanto ela, silenciosa, soltava uma a
uma as tranças que prendiam a cabeleira dourada em uma intrincada coroa
no alto da cabeça, como se protelasse o momento.
— Pode me ajudar, se quiser — ela disse, e Ulian percebeu que Elya
o estudava pelo reflexo do pequeno espelho afixado em uma das paredes
com uma intensidade inexplicável.
Ele não deveria, é claro, aproximar-se ainda mais dela, em hipótese
alguma. Igualmente não deveria tocá-la, nem mesmo em um daqueles fios de
cabelo, se nutrisse o mínimo respeito pela honra da família Bespian e pelo
radiante futuro profetizado para a mais perfeita entre as perfeitas.
Ainda assim, viu-se subitamente traído pelas mãos, que se ergueram
para pegar a base de uma trança, com se lidassem com um raro e quebradiço
mineral. Os pés traiçoeiros também o levaram para mais perto, e, quando se
deu conta, já estava imaginando como seria enroscar aqueles fios entre os
dedos e trazer Elya para junto de si. Como seria senti-la em seu peito. Ouvi-
la respirar.
Suspirar.
Arfar.
Que as Soberanas o ajudassem.
— Vou dormir no corredor — comunicou com certa rispidez,
afastando-se como se houvesse sido eletrocutado pelas próprias alucinações
inapropriadas, sem ter contribuído em nada para livrá-la do penteado. — É o
mais lógico a se fazer, é claro.
Simplesmente não podiam mais ficar juntos daquela forma. Era
escandaloso e, embora não nutrisse qualquer senso de honra pelo próprio
nome, era o dela que seu coração ansiava por proteger. Não porque era a
mais perfeita entre as perfeitas — coisa que em nada lhe importava ou
influenciava, uma vez que acreditava apenas no constante estado de
imperfeição das coisas —, mas porque era ela.
Era Elya.
E ele não suportaria nem mesmo a ideia de contribuir para sua
desgraça.
— No corredor? — Ela pareceu surpresa. — Mas não há conforto
algum lá, e você tem passado os dias dedicado a tarefas que certamente
exigiram muito esforço. Vejo como parece cansado...
— Vou ficar bem — garantiu, já apanhando uma troca de roupas no
compartimento, antes que a doçura dela contaminasse sua capacidade de ser
racional.
— Mas eu não — ela sussurrou repentinamente, com os olhos
expressivos tomados pelo brilho de lágrimas ainda não derramadas. — Por
favor, não vá.
A prece tão asperamente honesta fez sua determinação fraquejar e,
ainda que houvesse comandado o corpo a mover-se, não fora capaz de fazer
nem mesmo o menor dos músculos obedecer, pois estavam todos à mercê
dela.
Não podia. Não devia.
Era escandaloso.
Desastroso.
E, ainda assim, respondeu com facilidade:
— Tudo bem.
Em silêncio e ainda abalado pela própria tolice, esperou que Elya se
trocasse no lavabo, atenciosamente estudando cada sombra que escapava
pela fresta da porta, e assim que ela saiu e deitou-se, Ulian apagou as luzes.
Sob o manto da escuridão, quando a respiração dela se aprofundou e
acreditou que havia adormecido, finalmente puxou a camisa pela cabeça
para ficar mais confortável. O brinco foi a única coisa que fez questão de
manter, pois o ajudava a lembrar-se mais do Ulian do qual se orgulhava.
O Ulian que precisava ser.
Por fim, acomodou-se no chão, sobre o lençol que Elya insistiu que
usasse e que, para seu desespero, estava impregnado com o aroma dela.
Piscou.
Nada daquilo era certo e sabia que estavam arriscando muito.
Piscou.
Seus olhos já se acostumavam à escuridão e os ângulos perfeitamente
suaves das paredes e dos poucos móveis apareceram com mais nitidez.
Piscou.
Seus desejos eram irrelevantes, em especial porque havia feito uma
promessa a si mesmo. Uma promessa inquebrável e irremediável que
sustentava suas crenças e, portanto, tudo o que ele era. O único Ulian que
conhecia e que lhe pertencia de fato.
Piscou.
Então Elya Bespian apareceu ajoelhada a sua frente.
Ao assimilar a distância tão curta em que se encontravam, sua
primeira reação foi se afastar, em nome de um decoro e de um senso de
dever cada vez mais vacilantes. Contudo, as mãos dela repousaram sobre seu
peito desnudo, e as labaredas o consumiram, incendiando tudo o que
encontraram pela frente desde aquele ponto de contato.
Os olhos dela capturavam até mesmo as poucas partículas de luz que
escapavam pelas frestas da porta, e mesmo envolto em penumbra Ulian foi
capaz de reconhecer cada nuance de dourado reluzindo, como um mapa a lhe
revelar constelações e sistemas inteiros.
Pele contra pele, Ulian transformou-se em desejo em sua forma mais
pura. Suas mãos também agiram, agarrando habilmente os ombros delicados
dela e trazendo-a para tão perto que seus fôlegos se confundiram enquanto
os corações pulsavam em um só ritmo dentro do abraço.
— Por que você está aqui, Elya? — insistiu, certo de que precisava
ouvir de uma vez por todas aquela resposta e fazer o que deveria ter feito no
momento em que a nave belariana caiu em meio à escavação.
— Fui reclamada por Tenar — ela murmurou, vacilante, enterrando
as unhas em sua pele. — Recebi uma combinação do Conselho Conubial.
Não.
Não.
Não.
— Fui combinada com você, Ulian — ela finalizou.
Sua realidade cedeu sob o peso de tão improvável acontecimento, e
ele teve a certeza de que estava, de fato, sendo punido. Voltou a ser o menino
que, com alegria, ouviu o choro de uma pobre criatura rejeitada e o silêncio
sepulcral que se seguiu.
Foi o único que lhe dera nome e que não lhe negara o direito de
existir e ser exatamente como era, tão pequena e tão imperfeita.
O esboço do rebelde que se tornara.
Do transgressor.
Pedaços de um coração partido.
Partes de uma promessa.
Ódio puro e dor.
Tanta dor.
— Impossível — revelou, em um tom que não passou de um sussurro
ferido enquanto se lembrava de todas as promessas que fizera. —
Impossível, pois jurei jamais me casar seguindo as tradições elitistas de
Belar.
A dor era o instrumento de poder mais cruel já inventado pelos
deuses.
Não. Não a dor.
O amor.
Pois o amor levava à ruína, e Ulian já havia sido arruinado uma vez.
Não mais.
Por Alicia, nunca mais.
Elya não lhe dirigira uma única sílaba após aquela noite, e não
poderia condená-la pelo silêncio. Era mera consequência por ter negado a
combinação decretada pelo Conselho Conubial, e reconhecia a magnitude da
própria transgressão.
Se estivesse em Belar, jamais poderia ter falado livremente ou
expressado a rejeição que nutria pela tão abominável tradição dos
casamentos arranjados, destinada exclusivamente a perpetuar uma raça cruel
que nada tinha de perfeita. Caso houvesse insistido, sua reputação e de sua
família teriam sido destruídas e seus bens tomados pelo Governador e pelo
Conselho de Cidadãos. Seu nome seria considerado impronunciável e sua
sentença decretada de forma irrevogável: exílio para ele, seus antepassados e
seus descendentes, enquanto Tenar e Ésper permanecessem no firmamento.
Não que se importasse.
Os Bened mereciam ser punidos por seus crimes.
Ali em Colossus, entretanto, não poderia sofrer nenhuma sanção
senão as que ela havia imposto ou o martírio que se autoinfligia a cada vez
que seus olhares se cruzavam e se dava conta do quanto a fizera — e fazia
— sofrer.
Sempre soube que a mais perfeita entre as perfeitas era infeliz.
Apesar do título e de tudo o que dela era esperado por ser a
profetizada, no rosto sempre carregava uma aflição que nenhum belariano
parecia capaz de entrever, mas que a ele sempre fora evidente. E por isso
jamais conseguiu não ser atraído por e para ela, que detinha o poder — e
dever — de ser a mais perfeita, porém que não escondia a própria
infelicidade e incompletude.
Ele também era infeliz e incompleto.
Mas apesar daquela apatia tão profundamente enraizada em cada
fôlego, Elya sempre lhe parecera a estrela mais brilhante em um céu repleto
de constelações.
Sua rejeição, contudo, a havia transformado em um buraco negro
mais potente que Cronos, ou talvez que todos os buracos negros conhecidos
do Sistema Exterior juntos, pois a mais perfeita entre as perfeitas tornara-se
um poço de escuridão profunda, pronta para tragar tudo até que nada mais
restasse, e os humores dela começaram a afetar até mesmo o de seus
companheiros de expedição. Eles a rodeavam como se necessitassem da
energia caótica que irradiava, bebiam da fonte, e, como se absorvessem toda
aquela cólera com o mesmo intuito que fora gerada, voltaram-se contra ele
sem piedade.
Não demorou para que, após algumas noites, estivessem totalmente
convencidos de que havia causado um mal irreparável a Elya Bespian, a
criatura mais perfeita e doce que os deuses já haviam criado em um universo
amaldiçoado, e de que deveria ser isolado como um animal ferido, rejeitado
pela fraqueza de espírito. Até mesmo Edon ficou ao lado dela, recusando sua
amizade e procurando a dela, e o golpe lhe doeu.
Ulian não cederia, contudo. Não poderia voltar atrás, tampouco dizer
a ela todas as coisas que gostaria de confessar e que pesavam em seu peito.
Portanto, escolheu não fazer nem dizer nada a respeito, pois como
poderia censurá-la, uma vez que cometera o ato repulsivo de negar a
combinação que deveria uni-los pelo resto de suas vidas e para além das
vidas de seus descendentes? Queria poder lhe dizer que a vergonha era toda
sua e que já presenciara um crime ainda pior; tão abominável, que não
poderia ignorar nem mesmo em nome de qualquer fosse aquele sentimento
que o fazia queimar e arder sempre que a via. Assim, se não pudesse ter o
amor dela, que tivesse ao menos a cólera.
Até aquela noite.
Naquela noite, encontrava-se desperto antes mesmo que os raios da
estrela ao redor da qual orbitavam pudessem subjugar a escuridão profunda
de Cronos. Todo o seu corpo parecia elétrico; cada terminação respondia a
um estímulo que os olhos não eram capazes de enxergar, mas que se
aproximava, sussurrando pelos dutos.
Com cada palmo de pele pinicando, ergueu-se nos cotovelos para
encarar os corredores na penumbra, com os ângulos suaves que faziam
incidir a luz simulada perfeitamente. Havia feito daquelas paredes metálicas,
projetadas para servir apenas como passagem, uma habitação permanente
após deixar Elya sozinha no alojamento que costumava ser seu.
Não era confortável deitar-se no chão após os longos turnos de
escavação e os ainda mais longos relatórios que precisava redigir quando
retornava, e seus cachos estavam tão desgrenhados que chegou a pensar que
assumiriam aquela forma definitivamente, porém não ousou reclamar nem
uma única vez.
Em breve, a órbita de Colossus combinada com a de Essiclan os
colocaria, finalmente, em posição de comunicação com o Conselho
Científico e a Academia belariana, e o acidente poderia ser relatado.
Mandariam uma nave de resgate, e Elya retornaria a Belar, onde pertencia,
deixando-o sozinho, como pensara ser seu destino.
O corredor permanecia deserto, contudo, a sensação que não se
calava tomou conta de seus ossos e o colocou em pé. As costas reclamaram
quando as esticou, assim como o pescoço longo, que chegou a estalar, e o
brinco longo que lhe adornava a orelha tilintou.
Com os pés descalços, caminhou de um lado para o outro, esperando
espantar a insônia, porém quando a sensação se tornou um nó em sua
garganta, foi levado a fazer a única coisa da qual, muito provavelmente, se
arrependeria logo de imediato: entreabrir uma fresta da porta de seu
alojamento.
Não esperava encontrar nada demais, se precisasse ser honesto, e foi
exatamente aquela a visão que o recebeu depois de processar o que os olhos
capturavam com a baixa iluminação: no interior do alojamento restavam
apenas lençóis revirados e o inconfundível aroma dos doces néctares
belarianos.
Elya não estava.
Enquanto perguntava-se onde a mais perfeita entre as perfeitas
poderia estar, toda a base da expedição acendeu-se. As luzes incandesceram
em um tom alaranjado, o que descompassou sua respiração, e antes mesmo
que os alertas sonoros tomassem os corredores colocou-se a percorrê-los em
uma marcha frenética.
Quando chegou à enfermaria, já estavam todos fora das camas e
completamente alarmados pelo aviso de uma massiva tempestade temporal
que, segundo os instrumentos, formara-se não muito distante do local em
que se encontravam. Lyia repousava ainda inconsciente, sendo tratada sem
descanso, mas não havia nem mesmo sinal de Elya, o que causou em Ulian
uma indescritível sensação de desespero.
Ela não saberia o significado daquilo. Não era cientista, mas uma
dama acostumada a um mundo perfeito.
Os colegas de expedição assumiram postos na instrumentação,
aprontando-se para registrar as maravilhas que a natureza daquele mundo
hostil era capaz de produzir, porém Ulian apenas sabia correr e chamar por
Elya.
Os alertas se intensificaram quando a tempestade colossal se
aproximou, e pelas inúmeras telas dispostas ao longo da base todos puderam
ver a imagem de um redemoinho ametista se arrastando pela atmosfera,
envolto em um relampejo que cortava e revolvia o solo avermelhado,
fazendo-o tremer por grande extensão.
A tempestade era como uma massa em fusão, feita de elementos
desconhecidos pela maioria dos cientistas ali presentes e incompreendida por
um número ainda maior deles. Tinha um centro escuro, dentro do qual
parecia pulsar um coração, e braços formados por descargas elétricas que
atingiam tudo o que encontravam pela frente, brincando, como uma Deusa,
com as criações que ali habitavam desprotegidas.
A única forma de evitar seus efeitos era ficar dentro daquela
construção, ou de alguns outros pontos de apoio espalhados perto da base,
todos projetados para agir como um ponto imutável no tecido temporal.
Com a iminente colisão antecipada pelos sistemas, o protocolo de
isolamento da base foi acionado, e Ulian sentiu as labaredas dos filhos de
Tenar o envolverem, como se fosse todo feito de fogo e ímpeto.
Precisava assumir a própria posição e exercer o papel de cientista que
lhe fora concedido naquela expedição como a mais alta das honrarias;
contudo, as chamas não permitiram que ignorasse o único e verdadeiro
desejo de seu coração: encontrar Elya.
Foi então que uma comoção tomou a instrumentação, e primeiro
uma, depois outra, depois todas as telas passaram a exibir a imagem de uma
mulher do lado de fora da tenda, com os longos cabelos dourados
balançando à mercê da fúria da tormenta, que se aproximava descarregando
uma quantidade mortal de eletricidade.
Ela era pequena, tão pequena, frente à besta faminta que se
aproximava...
Ulian não saberia dizer como percorreu tão rapidamente a distância
até o portal de entrada da base, que ainda não havia sido selado, mas, de
alguma forma, os músculos ganharam força e, quando alcançou o lado de
fora, quase cego pela poeira avermelhada que a tempestade arrancava do
solo em grandes blocos, impeliram-no para frente como se soubessem o
caminho.
Esforçou-se muito além do próprio limite, incapaz de sequer pensar
que não conseguiria chegar até ela, e quando os dedos finalmente a
encontraram paralisada, os braços se fecharam com potência ao redor do
corpo esguio, como se pudessem protegê-la de todo mal que havia no
universo, e mesmo por sobre o barulho de destruição e dos uivos raivosos
das criaturas, foi capaz de ouvi-la soluçar.
O choro.
A criança.
As memórias do corredor de sua residência belariana, iluminado pela
abençoada luz celestial das Soberanas, surgiram, mas ele as obrigou a
voltarem para o canto escuro e inacessível onde as guardava.
Não estavam longe da base, a distância era de apenas uma curta
caminhada, porém a mancha obscura moveu-se ainda para mais perto com
impressionante velocidade, e sua força era tamanha que, por um instante,
começou a acreditar que não conseguiriam. Ao redor deles a atmosfera
crepitou, carregada de eletricidade, e quando as descargas caíram como
chuva Ulian jogou-se com Elya em direção à entrada onde, a muito custo,
podia escutar seus nomes sendo chamados em gritos de evidente desespero.
Uma nuvem de poeira invadiu suas narinas e boca, fazendo-o tossir
compulsivamente, contudo nem assim ousou desistir. Um veículo de
escavação operado à distância se colocou entre eles e a tempestade, abrindo
uma brecha, e usando as últimas centelhas do fogo dos filhos dourados que
queimavam em seu peito, Ulian a tirou do chão como se existissem apenas
os dois, trazendo-a junto ao peito, enquanto os raios lambiam suas botas,
saboreando uma presa.
Elya o encarou com os olhos grandes e dourados reluzindo.
Ainda triste e, por isso mesmo, perfeita.
Não a mais perfeita entre as perfeitas, porém a mais perfeita para
ele.
O momento roubado não perdurou, e a fúria da tempestade logo os
alcançou, atingindo o veículo com tanta violência, que este foi chacoalhado
e arremessado para longe. Ulian, no entanto, já se lançava para dentro da
base, absorvendo com o próprio corpo o peso de ambos quando as portas,
por fim, foram seladas.
Silêncio.
E então ele sorriu.
Riu.
Tossiu.
E chorou..
Não esperava que a explosão viesse naquele momento, enquanto
ainda estavam rodeados por cientistas preocupados, com tanta atenção e
incerteza, mas não foi capaz de refrear as palavras quando elas lhe subiram
pela garganta e deixaram a boca com um gosto terrível de terra e metal:
— Qual é o seu problema, Bespian? — As mãos se fecharam em
punhos. Os músculos se retesaram debaixo da pele, e o coração bateu tão
forte que pôde senti-lo quase saindo do peito. — Por que faria algo tão
estúpido?
Aquela era a primeira vez que olhava abertamente para ela fora da
ilusão criada pela tormenta, e apesar de estar claramente abalada, conservava
a perfeição imaculada de sempre. Os cabelos dourados pareciam
emaranhados, as roupas estavam perdidas em poeira, e os olhos eram
manchados por lágrimas que escorriam livremente, desenhando caminhos na
pele suja.
— Eu não... Eu não sabia. — A voz dela não passou de um suspiro.
— Sinto muito, não queria causar nenhum transtorno.
— Estamos em uma expedição científica de alta complexidade, e o
mundo real não é belo, perfeito e seguro como Belar — prosseguiu, tomado
pelo fogo que voltava a se alastrar. — Você não pode sair por aí assim,
andando por onde quiser! — Apontou em direção à porta de entrada, como
se quisesse provar seu ponto. — Você simplesmente não deveria estar aqui!
Está atrapalhando todos nós.
— Eu não... Me desculpe — ela prosseguiu, em evidente desespero;
uma ferida aberta.
— Isso foi um erro — continuou, incapaz de conter-se. — Você ter
vindo até aqui... Toda essa história de Conselho Conubial e combinação foi
um erro, e creio já ter passado o momento de admitir.
Elya o encarou com aquelas lindas írises douradas como ouro
fundido, parecendo terrivelmente frágil. Ela mirou os próprios pés, com os
ombros delicados caídos, mas logo em seguida pareceu encher-se com uma
determinação que a fez irradiar como a estrela brilhante que era. E o mesmo
fogo que queimava dentro dele queimou nela quando ergueu o queixo e
disse, com a voz sempre tão doce tomada por um tom mais cortante que
cristal estilhaçado:
— Eu me arruinei por você. — Era uma acusação, pronunciada de
forma tão fria que poderia se passar por uma filha de Ésper. — Arruinei todo
o legado dos Bespian apenas por você. Menti. Roubei uma nave. Fugi de
Belar. Como pode dizer uma coisa dessas? Como pode... — Ela parou, como
se procurasse a palavra certa para amaldiçoá-lo. — Como pode ser tão
egoísta?
Egoísta.
Haviam passado muito do ponto e, por isso, Ulian se aproximou até
que todo o corpo a cobrisse como uma sombra. Detestava a cólera e não se
acharia um homem de tão alta moral caso a sentisse com frequência.
Entretanto, naquele momento, dela bebia como se fosse um néctar do qual
necessitava para viver.
Havia um doce entorpecimento na violência, e a palavra cuspida
pelos lábios macios da mais perfeita entre as perfeitas foi a fagulha de um
incêndio.
— Não pedi que fizesse nenhuma dessas coisas — pronunciou,
sentindo a eletricidade que fluía entre ambos talvez em volume ainda maior
do que a liberada pela tempestade do lado de fora.
Crepitava tanto quanto e parecia ainda mais destrutiva.
Ela também se aproximou, esticando-se inteira para olhá-lo bem nos
olhos da forma que apenas a mais perfeita entre as perfeitas sabia como.
Avassaladora, capaz de consumi-lo apenas com a força do querer.
E ele queria. Pelas Soberanas, como odiava-se por querer!
— Não pedi que viesse. — Ele cerrou os punhos e repetiu aquela
frase como se precisasse convencer a si mesmo. Repetiu até que as sílabas se
tornassem afiadas e lhe rasgassem o interior. Até que acreditasse nelas. —
Não desejo nada disso. Nunca desejei.
— E eu gostaria de nunca ter vindo! — Elya acrescentou, aos berros.
— Gostaria de nunca ter posto os olhos sobre você, de nunca ter pensado
que era um amigo! — Ela parecia à beira de um colapso. — O Conselho
Conubial certamente se equivocou, pois tenho certeza de que não somos e
nunca seremos compatíveis em nada.
Ulian sentiu quando as brasas saíram do controle, sussurrando em
meio ao fogo para que revidasse, para que a fizesse sentir dor.
Um tipo doce de dor.
Mas ele não o fez. Não tinha a coragem.
— Também estou certo de que não combinamos em nada e de que o
Conselho Conubial errou, pois eu jamais... Eu jamais...
O que desejava dizer, naquele momento, era que jamais poderia se
unir a uma mulher como Elya Bespian, a mais perfeita entre as perfeitas. Sua
língua, entretanto, reconheceu a aspereza da mentira e recusou-se a
pronunciá-la.
Pois o Conselho Conubial poderia ser desprezível e estar equivocado
quanto a muitas coisas, mas certamente seu coração não estava.
Elya, contudo, não esperou que desenvolvesse melhor o raciocínio e
disse em alto e bom som, calando o burburinho que os cercava:
— Eu o odeio.
E foi tudo antes de, altiva, dar-lhe as costas e desaparecer na curva de
um corredor, deixando-o com um gosto amargo na boca.
Alguns companheiros da expedição lhe deram tapinhas nas costas,
um sinal universal de solidariedade, antes de se retirarem para suas
respectivas funções na instrumentação, uma vez que a tempestade estava
longe de terminar e o chão abaixo de todos ainda chacoalhava com fúria.
Certo de que não retomaria o controle das próprias faculdades
enquanto não dissesse para Elya tudo o que pensava que ela precisava, ou ao
menos deveria, ouvir — em especial um discurso sobre como jamais
confirmaria a combinação ou se casaria apenas para satisfazer aos desejos de
uma sociedade hipócrita que condenava tudo o que era diferente —, saiu
para procurá-la, seguindo o rastro de poeira deixado nos corredores.
Só as Soberanas sabiam o quanto queria gritar que a odiava também
e ver se conseguia provocar alguma reação diversa de beleza naqueles traços
esculpidos à perfeição. Contudo, assim que se aproximou da passagem para
a enfermaria, ouviu os soluços dela e quedou-se inerte do lado de fora,
surpreso pela vulnerabilidade que tão de repente substituíra a atitude
combativa.
Não pretendia observá-la em um momento tão íntimo, nem ser
indecoroso, porém aquela mesma gravidade o atraiu e logo viu-se inclinado
em direção ao portal, perto o suficiente para vislumbrá-la, abraçada à cama
médica onde Lyia repousava.
Pranteava copiosamente, sem preocupar-se em demonstrar fraqueza
ou imperfeição, como haviam sido ensinados em Belar, e foi a coisa mais
honesta e bela que ele já presenciara.
— Ele não me quis — ela repetia, entre um soluço e outro, que se
encravam no peito de Ulian como lâminas, roubando seu ar, a cada vez que
se lembrava que os havia causado. — Ele não me quis, Lyia. Nós viemos até
aqui, e ele não me quis... Ele não me quis... Ele não me quis...
Ulian cerrou os olhos dourados com pesar. Toda a raiva foi
subitamente extinta junto à sua determinação, pois Elya Bespian nunca
estivera tão errada na vida.
Afinal, ele a queria mais que tudo, e já fazia muito tempo.
A queria desde a primeira vez que a viu, quando ainda eram apenas
crianças e sequer conheciam todos os significados que aquela palavra
poderia assumir. A queria desde que a idade da separação os alcançou. A
queria desde a primeira vez que sussurrou ao ouvido dela e sentiu o doce
aroma dos néctares que fez todo o seu corpo arder, clamando pela faísca que
os incendiaria.
A queria desde que percebeu que ela era a mais imperfeita das
criaturas e que não parecia temer essa verdadeira natureza dos seres,
tampouco as suas — muitas — imperfeições.
Ulian desesperadamente a queria, porém jamais poderia pronunciar
tal coisa, pois sua convicção era firme, e ele jurara não compactuar com o
elitismo de Belar, muito menos aceitar a decisão do Conselho Conubial
quando chegasse o momento, nem deixar descendentes que honrassem o
sobrenome Bened, pois sua família era uma desgraça.
E a perfeição, uma mentira.
Deram-lhe relatórios para compilar enquanto a base da expedição era
sacudida pela revoltosa tempestade, que descarregava cada vez mais raios na
planície e modificava todo o horizonte conhecido, porém quando se tornou
evidente que suas aptidões básicas de assimilação e cálculo estavam
prejudicadas pelos recentes acontecimentos, os colegas gentilmente
mandaram-no descansar e pediram para que retornasse apenas ao amanhecer.
A tormenta não iria a lugar algum, disseram-lhe, solidários.
Ulian não gostou de ser afastado da única coisa que realmente
pensara ser bom em fazer — e que havia ido até ali fazer —, mas não
discutiu e, arrasado em corpo e mente, arrastou-se pelos corredores como se
houvessem se passado muitos anoiteceres desde que a nave belariana se
acidentara em Colossus e tudo, tão repentinamente, mudara.
A cada passada, todos os seus músculos reclamavam — alguns dos
quais possuía apenas vaga lembrança —, pedindo por um banho fumegante e
uma boa noite em uma cama. Não pudera prometer-lhes nem uma coisa nem
outra, entretanto, pois o chão duro do corredor era a única certeza que
detinha naquele momento.
Bateu à porta do próprio alojamento algumas vezes e, quando não
recebeu resposta, imaginou, aliviado, que Elya não se encontrava. Não seria
capaz de encará-la, tampouco de passar pelo escrutínio daqueles olhos feitos
do mais puro ouro e não se entregar aos sufocantes sentimentos que vinha
tentando esconder há tantos ciclos. Pensar sobre eles e deixar que viessem à
tona, como havia feito quando a viu tão vulnerável na enfermaria, havia sido
um erro terrível; um erro ainda mais terrível do que tocá-la, ou permitir-se
ser tocado, uma vez que aquele tipo de emoção era violenta e irremediável.
Terminaria por consumi-lo, se não tomasse cuidado.
Incapaz de sustentar os braços acima da cabeça por muito tempo,
retirou a camisa com movimentos duros e a jogou no chão do lavabo, vendo
a poeira avermelhada ser sugada pelos dutos. Repetiu os movimentos
desajeitados com a calça e enfiou-se embaixo da ducha, na esperança de que
a água tivesse força o suficiente para limpar não apenas seu corpo, mas sua
alma.
Deixou-se ficar ali por tanto tempo que, em meio às nuvens de vapor,
sequer conseguiu enxergar as próprias mãos quando as esticou para alcançar
os óleos e espalhá-los pelos cachos dourados e a pele azulada. Desenhou o
contorno dos músculos, sentindo a dor recompensante do esforço ser
aliviada pela pressão dos dedos, e quando a água finalmente parou de escoar
vermelha, ele saiu para se secar.
Conjurada como se nunca houvesse sido vítima de uma tempestade
temporal e corrido risco de vida, Elya estava reluzentemente sentada na
beirada da cama, perfumada e vestida com sua camisa de mangas
esvoaçantes que reivindicara desde a primeira noite.
Ela era toda pele e luz, e olhá-la tão de perto chegava a doer.
Cansado de sustentar o decoro belariano, já que não faria mais
diferença alguma tentar proteger a reputação dela depois de ter recusado a
combinação e tomado conhecimento de todas as coisas que ela própria
fizera, não se esforçou para cobrir o peitoral nu ou ocultar a toalha que lhe
envolvia o quadril estreito.
Por um instante, apenas se fitaram com honestidade pura, e Ulian
deixou que os olhos transmitissem todo o pesar que a boca, acovardada,
jamais conseguiria pronunciar.
Sentia muito por tê-la desapontado. Sentia muito que o Conselho a
tivesse combinado com um homem tão indigno.
O que os grandes e hipnóticos olhos dela transmitiram-lhe, contudo,
não foi amargura, pesar ou arrependimento. Foi, na verdade, algo no
espectro oposto daqueles sentimentos — o único que jamais pensara que
Elya poderia nutrir por alguém como ele.
Era gentil e pacífico e, principalmente, intoxicante.
— Eu menti — ela disse, com aqueles lábios inchados e suaves,
desabrochando como as pétalas de uma flor. — Menti para todos que já
amei.
Ulian engoliu em seco, sentindo as gotas de água escorrerem dos
cabelos e caírem a seus pés descalços, marcando o tempo que desacelerava
entre eles, novamente como se quisesse conceder-lhes um momento longe da
realidade.
— Eu também — confessou, repleto de pesar, engolindo em seco.
— Eu menti para você — Elya prosseguiu, descruzando as pernas
longas e colocando-se em pé em um movimento fluído.
— Eu também — confidenciou, percebendo que o tom ganhava cada
vez mais rouquidão e profundidade e que não podia fazer nada para escondê-
lo.
— Não me importo com o Conselho Conubial, nem com o que
decretaram. Não me importo com nenhuma profecia, nem em ser a mais
perfeita entre as perfeitas. Só me importo com você. — A voz dela tornou-se
um sussurro delicado e morno, e aquelas palavras...
Deliciosas de ouvir.
O peito de Ulian subiu e desceu, arfante, conforme a confissão o
invadia como o mais doce dos venenos, e ele apertou os olhos, em uma
tentativa simplória de controlar-se. O coração acelerou, descompassado, e o
rosto esquentou junto de outras partes do corpo.
— Viria mesmo se não nos tivessem combinado, Ulian, porque amo
você — Elya finalizou, no sussurro que desfez todas as suas barreiras. —
Nenhum outro. Apenas você.
E ali estava o fogo, mas, dessa vez, não havia nada para contê-lo, e as
labaredas alastraram-se livremente, rugindo e fazendo cada palmo de sua
pele arder, de uma forma que nunca havia sentido antes.
Era doloroso, mas, pelas Soberanas, como era bom.
Poucos passos os separavam, e ele os deu vagarosamente, incapaz de
esconder a luxúria arraigada em cada osso e em cada músculo que revelavam
suas mais escusas intenções. Chegou tão perto que seu corpo a cobriu por
inteiro, uma sombra aderindo à outra, e como já havia feito tantas vezes nos
salões de baile, Ulian umedeceu os lábios antes de inclinar-se para sussurrar
ao ouvido dela:
— Diga de novo — pediu, como o mesmo tipo de tolo que, tantas
vezes, jurou que nunca seria.
O arrepio que a perpassou pôde ser sentido em sua própria pele, e ele
adorou experimentar o poder de ser a pessoa capaz de causar nela aquele
tipo de sensação.
Porque ele queria fazer muito mais.
Elya arfou, abrindo e fechando a boca como se as palavras faltassem,
ou mesmo como se jamais as houvesse aprendido, e ele deslizou
carinhosamente o dorso de um único dedo sobre as maçãs angulosas dela,
saboreando o momento como uma escassa memória a ser guardada quando a
ilusão se extinguisse.
Era pouco, no entanto, e de repente apenas aquele ponto de contato
não era mais o suficiente, uma vez que o fogo de Tenar tomara o controle.
Então o dedo logo tornou-se uma mão inteira, que deslizou pelo pescoço
desenhado da mais perfeita entre as perfeitas e se entrelaçou aos cabelos
ondulados e macios, encaixando-se na curva de sua nuca como se tivesse
sido feita especialmente para ele.
O toque a desfez, e Elya voltou as írises de ouro para as suas, tão
faminta quanto ele próprio e feita de desejo incandescente.
A faísca e a brasa.
— Eu amo você — Elya falou, como se cada sílaba fosse um
banquete quando pronunciada em alto e bom som. Como se a fizessem
salivar e as quisesse manter consigo para sempre. — Eu amo você —
repetiu, como se estivesse presa no prazer da confissão. — Eu amo você. Eu
amo você.
Ulian sabia o que precisava fazer; no entanto, reconhecia também a
própria fraqueza e, por todos aqueles motivos, não foi capaz de negar o que
sentia e tudo o que disse era:
— Nem sei desde quando, mas já faz muito tempo que eu também a
amo.
Então seus lábios se encostaram, e foi como o encontro de dois astros
celestes que, desde a criação do universo, sempre estiveram em rota de
colisão, atraindo-se inevitavelmente para um fim massivo e brilhante.
Não havia doçura no gesto, como imaginou que seria tomá-la, e
saboreou com pressa a boca úmida que ela lhe ofereceu, como se provasse
de um fruto maduro, correndo a língua como se aquilo não fosse um beijo,
mas uma prece.
E ele se ajoelharia para rezar, se ela pedisse.
Suas mãos a trouxeram para perto, enroscando-se nos fios de cabelo
comprido e dourado, contudo foram as dela que venceram a resistência final
e depositaram-se em seu peitoral. As palmas se encaixaram, como se
também houvessem sido feitas para estar ali, e deslizaram em uma lenta e
viciante carícia que lhe causou um doloroso arrepio.
Ulian a envolveu pela cintura e a apertou contra si, desesperado por
sentir mais. As respirações confundiram-se quando a segurou pelas coxas,
estremecendo em deleite ao perceber que Elya as abrira, envolvendo seu
quadril e atendendo a um desejo silencioso. Naquele momento ela não
pesava nada em seus braços, sequer lembrava-se de que instantes atrás
estava cansado, e ele queria mais, mais e mais.
Entre beijos cada vez mais longos, foram os dois jogados em direção
à parede quando a estrutura da base balançou e as luzes piscaram, vítimas da
tempestade. A violência, no entanto, não os incomodou, pois naquele frenesi
de paixão havia muito mais selvageria do que qualquer tormenta poderia
conjurar, e eram eles próprios duas forças em rota de destruição.
Impelido apenas pelo instinto, pois eram ambos inexperientes, os
dedos e os longos beijos de Ulian dedicaram-se ao colo dela, tocando todos
os lugares com os quais havia apenas sonhado, e a mais perfeita entre as
perfeitas deixou escapar um som que o fez pulsar junto de todo o aposento,
carregado com estática.
— Você está acabando comigo — se ouviu dizer.
Elya o apertou entre as pernas, os cílios longos batendo contra as
bochechas coradas, e Ulian realmente chegou a pensar que poderia morrer
bem ali, enterrado naquelas coxas macias e naqueles lábios inchados que lhe
apresentavam mistérios ainda ocultos.
Mas ele os desvendaria, um por um. E tomaria seu tempo.
Caíram os dois sobre a cama, e entre os lençóis desarrumados
impregnados com o cheiro dela, Ulian conseguiu prendê-la entre os joelhos,
em uma armadilha da qual esperava que jamais escapasse. Queria fazer dela
uma Deusa.
Para servir e adorá-la.
Suas bocas separaram-se por um breve instante e, ainda que não
houvesse mais como parar, comunicou pelos olhos que encontraria uma
forma de fazê-lo, arrancar-se daquele alojamento e da vida dela para sempre,
se assim Elya desejasse.
Porque não importava o que fizesse: ela sempre estaria no comando.
Bastava um olhar para desmanchá-lo, um único dedo para transformá-lo em
faíscas, e ele a amava. Ah, como amava, amava, amava.
A reposta foi clara, mesmo que nenhuma palavra tenha sido
pronunciada:
Não pare.
Então ele não parou — nunca mais pararia. No controle daquela doce
ilusão, dedilhou cada costela e cada curva, contornou cada monte e cada
vale, como se ainda fosse o cientista e explorador a descobrir um mundo
novo. E completamente arrebatado, assistiu-a contorcer-se debaixo de si,
reagindo ao toque como se ainda houvesse alguma distância entre eles para
diminuir.
— Elya — deixou escapar, com a voz totalmente transformada em
um apelo rouco e faminto, quando as mãos dela alcançaram a toalha que
ainda o cobria e foram um pouco mais adiante.
Ela sorriu e o agarrou pelos cachos da nuca, trazendo-o perto o
bastante para sussurrar:
— Diga de novo. — Mas não foi um pedido.
E ele simplesmente estremeceu, quase pensou que não fosse mais
aguentar.
— Elya — murmurou, perdido em si mesmo. — Elya. — E o som do
nome dela em sua boca era como uma canção esquecida. Um néctar doce do
qual nunca se cansaria. Uma profecia.
Uma promessa.
Ah, sim. Uma promessa de tudo o que ele ainda faria com ela.
Sentindo-se afundar, Ulian a assistiu despir-se com confiança até não
sobrar nada, e seus olhos não foram rápidos o bastante para absorver todos
os detalhes daquela visão, pois Elya era como um desenho feito pelas mãos
mais habilidosas dos deuses, forjada em curvas esguias, e em sua imensidão
ele queria mergulhar até se afogar.
Não havia vergonha na nudez, ao menos não daquela vez. Olhar para
ela como viera ao mundo era, provavelmente, a coisa mais certa que já fizera
e, não encontrando as palavras certas para dizê-lo, decidiu mostrar o quanto
havia pensado nela, e somente nela, durante todos aqueles ciclos.
Inclinando-se, descansou os antebraços no colchão, pele contra pele,
e quase pôde sentir as labaredas alcançarem o teto em resposta a todos os
devaneios disfarçados de sonhos que passaram por sua cabeça quando a
sentiu, expondo seu desejo há muito suprimido.
Conforme os ciclos passavam e eles cresciam juntos, os sentimentos
que tinha por Elya tornavam-se cada vez mais difíceis de disfarçar, e Ulian
se pegava constantemente em agonia, temeroso de que o corpo simplesmente
demonstrasse as palavras que se impedia de dizer.
Conformou-se em ser apenas um amigo, prometeu que cuidaria dela,
e que sempre lhe daria um motivo para sorrir. Mas depois de um tempo,
tornou-se impossível não cobiçá-la toda para si. Cada pedacinho, desde os
dedos dos pés até aquela boca que não lhe dava descanso.
Elya. Elya. Elya.
Tão doce, que ele a devoraria.
Pois Ulian não era verdadeiramente um cavalheiro. Nem um
cientista. Muito menos um homem de moral inquestionável.
Não, não.
Ele era apenas um tolo que desejava beijá-la até fazê-la dizer seu
nome, até fazê-la implorar. Gritar de um modo rouco e satisfeito.
— Eu contei às estrelas sobre você — disse, tão arfante que as
palavras eram quase indistintas das trovoadas do lado de fora. Seu coração
as acompanhava, pulsando apressado.
Elya afastou-se apenas o suficiente para também ser capaz de
perguntar, enquanto concentrava toda a força das írises douradas nas suas:
— E o que elas disseram?
A distância era insuportável, e ele murmurou contra o pescoço dela,
sorvendo do aroma tanto quanto pôde para acalmar o frenesi:
— Que já a conheciam.
Seus beijos desceram, cobiçosos, e ele refez com a boca o caminho
que os dedos já haviam desbravado. Provou do gosto dela, verdadeiro néctar
dos deuses, sabendo que jamais seria o mesmo quando o amanhecer
chegasse.
E assim que Elya se desfez debaixo dele e chamou seu nome pela
primeira vez, enchendo seus ouvidos com um doce sofrimento, Ulian
transformou-se em estrelas e transbordou. Queria ficar perdido com ela até
que todos os astros caíssem do céu, até que não restasse nada mais entre eles,
nem mesmo um palmo de pele não reivindicado.
Pois, na vida, não haveria prazer maior do que brincar com fogo.
Ulian despertou sem compreender por que o gosto de Elya estava em
sua boca e arraigado em cada respiração exausta. Remexeu-se, muito mais
dolorido do que esperava, sentindo um peso incomum afundar ligeiramente a
cama, e então abriu os olhos. Um corpo esguio se aconchegava ao seu, tão
próximo que pareciam compartilhar a mesma pele.
Elya.
A compreensão do porquê ela estava ali o atingiu de uma só vez, e
ele sentiu-se enrijecer por inteiro debaixo dos lençóis, dividido entre
desesperar-se pelo que haviam feito e entorpecer-se ainda mais com a
preciosidade do momento.
A mais perfeita entre as perfeitas ainda dormia, tão serena que
poderia ter feito um campo inteiro florescer. Os dedos rosados repousavam
sobre seu abdômen, suaves como uma carícia que nunca terminara, e ao vê-
la tão confortável não pôde refrear o pensamento de que estavam ambos
exatamente onde deveriam.
Por isso, antes que a realidade se abatesse sobre eles, permitiu-se
abraçá-la com delicadeza, fazendo o possível para registrar cada ponto de
contato, assim como a sensação de seus pés enroscados, dos seios macios
pressionando suas costelas e dos corações que batiam no mesmo ritmo.
Deixou-se sorver o que aquele ínfimo momento na eternidade poderia
oferecer, pois, enquanto a paixão era uma tormenta revolta, o amor era a
calmaria.
E ele jamais sentira-se tão em paz.
Um sorriso moldou seus lábios, porém logo perdeu a força. Se o
mundo onde viviam fosse diferente, poderia deixar-se ficar ali, sonhando…
Mas esse era o problema com os sonhos: em algum momento, ele precisava
acordar. Infelizmente, já estava bem desperto.
Despedindo-se da sensação gravada a fogo em sua alma, correu as
mãos sobre os cabelos dourados, que se esticavam pela cama como rios de
ouro. Elya resmungou algo, apesar da expressão suave não ter se dissolvido,
e ele estendeu o carinho pelas maçãs do rosto, o que só a fez se achegar
ainda mais.
— Elya — chamou baixinho, não querendo sobressaltá-la.
A mais perfeita entre as perfeitas subiu lentamente as longas
pestanas, revelando írises em brasa, e depois lhe lançou um sorriso tão
honesto e feliz que teria feito qualquer espírito se sentir indigno.
Não havia ali nem sombra da tristeza que sempre a acompanhava,
tampouco de vergonha pelo que haviam feito.
— Ulian. — Ela reconheceu com um sussurro, e, pelas Soberanas, o
som de seu nome naquela boca o fez fraquejar enquanto lembrava-se de
como ela o havia pronunciado como uma egrégora até o amanhecer, em
murmúrios abafados que teceram um encanto do qual Ulian não conseguiria
libertar-se nem se quisesse, pois dele fora vítima de bom grado.
Elya ergueu o corpo e, em resposta, toda a sua pele eriçou-se.
Depois, ela esticou uma mão em sua direção e, como se o tempo
desacelerasse, ele a viu ganhar o espaço que os separava até os dedos
tocarem seus cachos com tanta intimidade, que jamais teria parecido um
erro.
Talvez ela pudesse ajudá-lo a esquecer de tudo que o fazia sofrer, a
curar as feridas ainda abertas de um coração partido, a abandonar o ódio.
Talvez ela pudesse entender, se contasse a história...
Elya chegou ainda mais perto e passou um joelho por cada lado do
quadril de Ulian, sem nada que os impedisse de habitar a mesma pele a não
ser sua força de vontade cada vez mais exaurida, e encostou os lábios macios
nos seus.
— Elya... — tentou dizer, porém suas palavras ficaram presas na
ponta da língua quando a mais perfeita entre as perfeitas se moveu
lentamente, convidando-o a perder-se uma vez mais não com a malícia dos
amantes, mas com o carinho dos companheiros.
Ele não deveria. Já a havia arruinado o suficiente.
Mas não podia lutar contra, pois seu corpo respondia ao dela como se
já conhecesse o caminho e soubesse exatamente aonde levá-los.
— Está tudo bem — ela disse, como se sentisse sua hesitação.
— Eu amo você — Ulian pegou-se sussurrando livremente, enquanto
distribuía beijos pelo pescoço dela, arfante com a dor e mergulhado no
prazer a cada vez que confessava o que, por tanto tempo, tentara esconder.
Ela devolveu cada um deles com a mesma intensidade, passando as
unhas longas por suas costas e encaixando-se de uma vez só.
Os dois arfaram.
— Ah, Bespian, eu jamais teria o bastante disso — disse tão perigoso
e cego, consumido pelo desejo, trazendo-a cada vez mais para perto. Mais e
mais fundo.
Talvez ela pudesse ajudá-lo a arruinar a si mesmo, para variar.
Elya curvou as costas, entregue à mercê de suas vontades, e chamou
seu nome baixinho.
Ah, ele apostava que sim.
— Eu o aceito e me entrego — a mais perfeita entre as perfeitas
pronunciou, com os dedos entrelaçados em seus cachos. — Somos um agora,
e as Soberanas testemunham nossa união.
E então Ulian viu-se obrigado a parar, petrificado com aquelas
palavras e o vago significado que carregavam, ainda nublado pelo torpor do
momento.
A criança.
O choro.
O corredor vazio, e o nome jamais pronunciado.
Não poderia.
Por Alicia, havia prometido.
Nunca seria combinado, e nunca aceitaria uma combinação.
Renegaria a perfeição belariana.
E, para isso, precisaria renegar Elya Bespian.
— Não — falou, segurando os pulsos dela, enquanto a dor no prazer
tornava-se apenas dor, sufocante e destrutiva.
Talvez ela pudesse ajudá-lo, porém Ulian estava muito além daquele
ponto.
A criança não voltaria, tampouco ele voltaria atrás na promessa.
— Você fez isso de propósito? — A voz dele era pura acusação. —
Se entregou apenas para me obrigar a casar? Planejou estilhaçar, de forma
tão cruel, cada pedaço de mim?
Como se emergisse de um intenso estupor, Elya demorou a focar seu
rosto, e a expressão que a tomou era de completa confusão. As maçãs do
rosto ganharam ainda mais cor, e os lábios tremeram à meia-luz.
— Não, Ulian...
— Me diga a verdade. Por favor, só dessa vez, Elya. Não minta para
mim.
Ela desviou os olhos dos seus, e muito tempo passou em silêncio.
— Estávamos destinados não pelo Conselho, mas pelo amor —
confessou, ao passo que o lugar onde seus corpos se encostavam queimou
não em desejo, mas no desespero ácido da verdade. — Você foi o primeiro e
único que já amei, como pode não entender? Pertencemos unidos. A
separação é impossível, e eu só queria te mostrar...
— Não vou me casar — repetiu, interrompendo-a antes que fosse
tarde demais, como se necessitasse do som da promessa para fortalecê-la.
— Mas Ulian...
Ele não queria mais ouvir, entretanto.
Não podia mais, porque a dor era tudo o que restara.
— Não vou gerar descendentes. — Ele a afastou com ódio de si
mesmo, com repulsa da própria ingenuidade, e virou o rosto para não revelar
a máscara que lhe deformava os traços. — Não vou perpetuar o elitismo e as
mentiras de Belar.
A faísca e a brasa consumiram-se, enfim.
E, do encontro, só restaram cinzas.
O universo era um lugar grande e deveras estranho.
Lar de mistérios nascidos em vísceras feitas de matéria escura,
abrigava formas de vida muito distintas entre si, com as mais diversas
crenças a suportar, porém nem mesmo as mais avançadas em ciências
haviam sido capazes de solucionar o enigma do denominador comum da
vida.
Teria sido uma centelha colocada sob pressão, cozida em metais
incandescentes e resfriada em eras glaciais? Ou nada além do sopro de um
Criador superior? Acaso, sorte ou propósito?
Apesar de inexistir consenso para tal pergunta, havia uma verdade
universal da qual não ousariam discordar nem os ancestrais que há tanto
dominavam os segredos do espaço, nem as crianças que ainda engatinhavam
para fora de seus mundos originários: quando se estava à beira da morte,
toda a vida passava diante dos olhos.
Implavianos eram uma das raças mais antigas que habitavam o
Sistema Exterior. Seu planeta, uma esfera ovalada pelas intempéries de um
cinturão de asteroides — ou por capricho de deuses antigos há muito
esquecidos —, era uma massa formada por profundezas abissais, quase
completamente coberta por água salobra e lodosa e renegada por
conquistadores que não conseguiram enxergar a verdadeira riqueza por baixo
da superfície.
Pois Impla abundava em algo que outros mundos jamais poderiam
compreender, nem mesmo valorizar: tempo.
Talvez o tempo dado aos implavianos fosse um presente — podiam
apenas esperar que não fosse uma maldição —, porém o fato era que
possuíam expectativas de vida longínquas, em geral passando dos
quatrocentos anos, em contagem universal, o que era bem mais perto da
eternidade que a maioria das raças poderia sequer sonhar.
E foi por esse motivo que Lyia jamais imaginara que sua
retrospectiva pré-morte fosse ser tão curta. Afinal, tinha apenas 159 anos.
Conforme as imagens desenrolavam-se em sonhos feitos de barro e
sal, o rosto de Elya era o único a repetir-se de forma clara, sempre triste e
sufocado pelo peso da profecia, mas irradiando uma inextinguível luz que
era tão característica daquela inocente garota, que não se permitiria
confundir.
Lyia a amava profundamente com cada um dos corações; a amava
com toda a sua fibra e toda a sua verdade. Contudo, não poderia arrepender-
se de amaldiçoá-la com uma profecia, pois aprendera, da forma mais cruel,
que as visões sempre encontrariam uma forma de se concretizar. Não porque
eram destino, mas o futuro.
E nem mesmo uma implaviana seria capaz de impedir o avançar
implacável do tempo. Poderia vê-lo, como já o fizera tantas vezes. Poderia
viajar e transportar-se para eras distantes, assim como nelas viver uma vida
inteira, se desejasse. No entanto, jamais poderia alterar o futuro escrito pelas
forças da criação, cujas mãos invisíveis eram sentenças, e as palavras, meras
executoras celestiais.
Afinal, Lyia era um oráculo, não uma deusa.
A compreensão de sua própria condição custara-lhe um preço alto
demais que, se fosse um pouco mais sábia, talvez tivesse escolhido não
pagar, pois o Tempo... Ah, o Tempo sempre cobrava.
Como se seguissem um caminho já determinado e conhecido, suas
memórias levaram-na a lugares onde o barro tornara-se sangue, e o sal, ferro;
momentos de podridão e profundeza abissal que desejava poder esquecer, e,
quanto mais mergulhava neles, mais evidentes ficavam as cidades
subterrâneas, entremeadas em florestas de algas, repletas de vidas tiradas.
Casas.
Sua casa.
Estampidos.
Gritos.
Era ela quem gritava?
Sim, era sempre ela.
Quando as visões começaram, Lyia não as compreendia, e a dor de
conhecer o futuro muitas vezes lhe turvava os sentidos e a razão. Era quase
enlouquecedor para uma criança, ainda inocente a respeito de muitas coisas.
Não havia oráculos em sua família há gerações, embora a linhagem
da dinastia Oma’thu — os Verdadeiros — fosse de sangue puro; portanto,
ninguém poderia lhe instruir e ajudar a suportar o fardo de conhecer o
começo, o meio e o fim — principalmente o fim — de todas as coisas.
Nem sempre fora daquela forma, é claro.
Houve uma época em que Impla era tomado por oráculos,
abençoados com a dádiva e a responsabilidade de prever o futuro. O tempo
era um recurso acessível a todos — bastava esticar os tentáculos e agarrá-lo
—, e aquelas inúmeras visões compartilhadas levaram o planeta a uma era
de abundância e riquezas.
Os Imperadores, contudo, permitiram que a cobiça corrompesse o
presente dado de tão bom grado pelo Deus dos Deuses, Senhor sobre a Vida
e a Morte. Em vez de compartilhá-lo e permitir que se espalhasse livremente,
decretaram que as visões eram propriedade única e exclusiva do Império,
assim como os oráculos que as tinham, transformados em escravos do tempo
que, antes, lhes garantia liberdade além de qualquer limite.
Palácios foram cobertos de metais brilhantes, e trajes, adornados com
pedras preciosas, enquanto aqueles que se recusavam a cooperar com a
cobiça eram atirados às bestas das profundezas, suas vozes ecoando em uma
maldição poderosa pelos vales submersos. Os que sobreviveram ao período
de tamanha crueldade viveram longas vidas como servos da ganância, e não
demorou até que todo oráculo nascido no planeta tivesse ligação direta com
a dinastia Oma’thu, pois os Imperadores não se importavam de espalhar
sementes à força.
Ignorantes para o fato de que o Tempo cobrava seu preço, contudo.
Entre todos os deuses, talvez fosse o único que não se deixava
enganar ou compadecer, que nunca esquecia ou perdoava. Ele, todo-
poderoso, às vezes podia tardar, mas jamais falhar.
E foi por isso que os oráculos, simplesmente, deixaram de nascer.
Ano após ano, era após era, o presente esvanecia quando morria um
oráculo. As visões rareavam, as profecias prenunciavam cada vez menos
longe, até tornarem-se memórias amargas, e as memórias, apenas lendas de
um passado repleto de glórias que jamais voltariam.
A infância de Lyia, entretanto, não tivera nenhuma semelhança com
as glórias antigas.
Ela era a filha mais nova do Imperador, uma Oma’thu de sangue
diluído pela idade senil do progenitor, preterida em tudo pela longa fila de
irmãos e irmãs mais velhos que apenas sabiam desejar a morte e a guerra em
sua busca pelo trono e riquezas.
Sua presença e participação no Palácio eram insignificantes, muitas
vezes até indesejadas, e aqueles com quem compartilhava o sangue faziam
questão de dizer — quando se davam ao trabalho de dirigir-lhe a palavra —
que o pouco que lhe era concedido já era demais, pois saíra do quinhão que a
eles caberia.
Lyia não compreendia aquilo, evidentemente. Era apenas uma
criança, doce e cheia de sonhos, que brincava entre as imensas estalactites
que se erguiam das profundezas quando nadar tornava-se tedioso. Uma
menina inocente, que nada entendia sobre quinhões, tesouros ou posições na
corte, mas que logo seria empurrada em direção a todas aquelas coisas,
quisesse ou não.
Ao tempo de sua primeira visão, nutriram um desejo mais que
evidente de livrarem-se dela, a mais frágil e sem influência da linhagem, e os
relatos que ela fez do frenesi e da dor excruciante a partir do vislumbre de
um futuro turvo pela inexperiência tornaram-se a desculpa perfeita para
alegarem que era louca. Ou pior: que desejava chamar a atenção do
Imperador e ser considerada para a sucessão cada vez mais próxima, pois
nada seria mais atraente a um soberano do que a promessa de um raro e
inestimável oráculo.
O banimento do Palácio não era algo simples de conseguir quando se
tratava de uma herdeira legítima, mas, ainda assim, os irmãos e irmãs
encontraram uma forma de fazê-lo sem que fosse necessário um decreto ou
uma grande comoção: mandaram-na para longe da Capital, destituída de
qualquer pertence ou valor e totalmente desacreditada. Acompanhara-lhe
apenas a ama menos afável que encontraram e, apesar de não poderem
retirar-lhe o título — direito garantido pelo sangue —, renegaram-na à vida
do pior dos súditos.
Depois do abandono, entre delírios de fome e frio, culpara as visões
pelo próprio infortúnio, pois parecia uma opção melhor e aliviava mais sua
consciência do que acreditar que os irmãos e irmãs tinham feito aquilo por
pura crueldade.
Não, eles não podiam ser assim tão ruins; a culpa tinha de ser dela.
Era a única explicação.
Por isso, quando o frenesi das revelações irrompia do fundo de sua
consciência, como um clamor de milhões de vozes que queriam revelar-lhe
os segredos de um tempo ainda vindouro, ela o expulsava, como se tolhesse
um pedaço de si mesma. Renegava-as como fora renegada, parte por parte.
Sofria.
Agonizava.
E dissociava-se de tudo aquilo que era, como se aplicasse a si mesma
um merecido castigo, pois de tudo o que lhe haviam ensinado, aquela era a
única lição arraigada em suas entranhas: ela merecia.
Toda dor, não importava quanto fosse, ela a merecia.
Então, sempre que as visões irrompiam, preferia não as conhecer, até
que a dor e a revolta que se acumulavam em sua alma tornaram-se tão
grandes, que os prenúncios de oráculo deixaram de ser a causa de seu
sofrimento. Não poderia livrar-se deles, pois eram como uma coceira a qual
às vezes cedia, em especial quando a realidade se tornava cruel demais para
suportar, porém entendeu que poderia conviver e apenas esperar que a
deixassem em paz por tempo suficiente para que aprendesse a viver a própria
vida miserável.
E eles a deixaram, assim como ela aprendera a roubar. A mentir.
Até mesmo a matar.
Pois a vida, muitas vezes, era a única coisa de valor que alguém
possuía para ser tomada.
Mas Lyia não poderia renegar a linhagem Oma’thu para sempre,
como desejava em seus sonhos mais loucos, tampouco o presente jamais
solicitado. Era um oráculo, abençoada pelo Tempo, e o sangue que fluía em
seus vasos era uma marca e um estigma.
A ponta da flecha, o fio da lâmina.
Sempre encontraria o alvo.
E quando a mais vil das visões a atingiu, foi posta diante de uma
escolha...
Estava descendo ainda mais, conforme a lembrança a dominava. Tão
fundo, que sua consciência se tornara diluída em meio às trevas das
entranhas de Impla. Abaixo do véu, onde nem mesmo as bestas ousavam
mergulhar, apenas as piores das criaturas subsistiam. Eram seres ancestrais
que se alimentavam dos dejetos da civilização, de ódio e de crimes, e
enquanto os olhos cegos dos corpos liquefeitos voltavam-se todos para ela,
soube que não a atacariam, pois a reconheciam como igual.
Ali era o seu lugar, e naquele dia, quando foi visitada pelo frenesi e
então pela visão, o Senhor dos Senhores mostrou-lhe algo terrível.
A queda da dinastia dos Verdadeiros.
A morte do Imperador.
A batalha entre os irmãos e irmãs e a inevitável guerra que se
seguiria, causada por usurpadores de outro planeta que cobiçavam as
relíquias preciosas do Império e se aproveitariam da instabilidade causada
pelo vácuo de poder.
Seu povo, queimado mesmo debaixo d’água, como se valesse menos
que metais raros e pedras.
Retornou do vislumbre do futuro ainda ardendo nas brasas dos
corpos dos implavianos, ciente de que chegaria o momento em que aquele
prenúncio se tornaria verdade.
E Lyia nada fizera, tomada por um impronunciável desejo de
vingança.
Mesmo quando o Imperador foi encontrado morto em seus
aposentos, e o planeta entoou cânticos de luto e passagem, ela nada fizera.
Que os deuses recebam o Verdadeiro Imperador.
Ainda quando os irmãos e irmãs transformaram o Palácio em um
banho de sangue pelo trono, caindo um após o outro, até que sobrasse apenas
um, ela nada fizera.
Por qual motivo se daria ao trabalho?
Que os deuses salvem o Verdadeiro Imperador coroado.
Foi apenas quando as naves mergulharam nas águas salobras e as
estalactites implodiram desde a superfície, derramando-se sobre cidades
inteiras, que Lyia se deu conta de que deveria ter feito algo.
Mas já era tarde demais, e o Tempo cobrava.
Por isso, quando sentiu-se ser sugada para longe daquelas memórias,
não resistiu nem lutou.
Estava cansada de lutar. Em algum momento, todos se cansavam.
Resignada, apenas aceitou a punição que os deuses pudessem ter lhe
reservado e, com toda a verdade e toda a intenção, pediu ao único e
verdadeiro Senhor do Universo que ouvisse sua prece. A mais honesta e
talvez a última que lhe permitiriam fazer.
A ele, Lyia Oma’thu, a última de seu nome, Imperadora de Impla por
sangue e por direito, pediu...
Por mais tempo.
Lyia abriu um olho lentamente, e logo os demais o seguiram. Os
tentáculos movimentaram-se ao seu redor, curiosos para entender por
completo o ambiente, e flutuaram como se tivessem vida própria.
Comunicavam-se em sinapses independentes, muitas vezes diretamente uns
com os outros, sem que ela nem mesmo participasse do que falavam.
A primeira coisa que reconheceu ao recobrar a consciência foi o
próprio corpo. A pele esverdeada como as florestas de algas de Impla
completamente rajada em tons de marrom, tão invariavelmente equivocados,
que sequer parecia mesmo sua.
Depois foi a limpidez da água, salobra, mas sem uma única partícula
de lodo em suspensão. Sem cinza, ou trevas. Não era a água das fossas que,
momentos antes, chegou a acreditar que se transformariam em seu sepulcro.
Confusa, sentiu a enfermidade que se espalhava por cada terminação
e o cansaço arraigado até mesmo na menor das ventosas. Eram fortes e a
puxavam de volta ao mundo abissal, para um pesadelo eterno. Seus
tentáculos, contudo, eram mesmo criaturinhas curiosas e, por conta própria,
forçaram-na para cima, como se soubessem que precisava de um incentivo.
Nada conseguiram, evidentemente, a não ser fazerem-na bater a
cabeça em algo duro como cristal belariano — na verdade, o barulho era
exatamente o de cristal Belariano, o que a sobressaltou pela familiaridade.
Forçou a visão, que lhe mostrava apenas um longo espectro entre o
amarelo, o marrom, o azul e o verde, e Lyia finalmente entendeu que
repousava debaixo de uma redoma. Gotas se condensavam do lado de
dentro, pingando como fariam estalactites, mas foi o suficiente para que a
realidade da própria condição a atingisse.
Estava em uma cama médica.
Seus pensamentos foram rápidos, e por meio deles navegou de volta
à nave belariana roubada, à atração forte do buraco negro que chamavam de
Cronos e aos extensos dias de viagem em condições inadequadas às
necessidades de sua raça. À fraqueza e, por fim, ao fracasso.
A nave caiu, e não fora capaz de impedir o desastre.
Falhara.
— Elya! — gritou, em um lamento doloroso conforme os tentáculos
acertavam o cristal desesperadamente, procurando por uma forma de sair da
contenção.
As fossas surgiram como enormes bocas abertas, prontas para engoli-
la, e ela continuou batendo e batendo, gritando e gritando, até que o barulho
da confusão fosse mais alto que o de seu desespero interior.
Não queria ter mentido para sua amiga mais querida — sua única
amiga — e ocultado a duração da viagem ou os perigos que poderiam
enfrentar no espaço, muito menos — e principalmente — o sacrifício que
viria logo em seguida. No entanto, Elya era uma criatura doce e empática, e
Lyia constantemente pensava o quanto lhe doía ser a mais perfeita entre as
perfeitas não pelo peso da profecia que a obrigava a carregar as expectativas
de todo um planeta, mas justamente por não ser capaz de fazê-lo.
No coração dela, cabia muito mais que um mundo.
Ela sentia tudo intensamente demais, e nunca teria permitido que
Lyia ficasse na cabine para guiar a nave se soubesse que as noites de viagem
eram, na verdade, uma crescente inteira. Certamente teria criado empecilhos,
preocupada com sua saúde e desidratação, ou mesmo desistido da viagem, e
então não chegariam a tempo em Colossus e a visão não se cumpriria.
A visão precisava se cumprir.
Elya precisava encontrar Ulian, pois Lyia a vira, radiante como as
manhãs em Belar quando os primeiros raios de Gautan incidiam sobre a
relva molhada de orvalho, fazendo estrangeiros, como ela, se perguntarem
como era possível um lugar daqueles realmente existir em um universo tão
feio e cruel.
Em seu pior momento, quando os crimes que acumulava já haviam
ultrapassado em muito as visões que tivera, e sua vida era apenas uma
existência miserável e violenta, a visão daquela menina abençoada foi
substituída pelo prenúncio da mulher crescida e feita. Feliz.
E no sorriso dela, Lyia se perdeu. Agarrou-se nas migalhas, louca e
talvez até mesmo febril, certa de que garantiria que aquela menina nunca
conhecesse o mesmo sofrimento que a invadia.
Lyia profetizou, sim, mas principalmente moldou Elya à figura de
seus mais belos sonhos.
A mais perfeita entre as perfeitas.
A ungida.
A que traria o futuro.
As palavras lhe escaparam antes mesmo que soubesse o que
significavam, além de uma garantia perpétua de que Elya Bespian teria tudo
o que ela jamais teve e seria tudo o que ela jamais pôde ser.
Alguém naquele universo amaldiçoado merecia ser feliz.
Por esse motivo, aquele seu prenúncio de oráculo foi o único, em
toda a miserável existência, que se esforçou para concretizar.
Pois ele a fizera sentir... Preenchida.
Não de ódio, raiva, dor ou vingança, os únicos sentimentos que
conhecia, mas de algo muito mais leve, que a aquecia nas noites frias e
escuras de Impla. Um guia e um farol feito da mais cintilante luz.
Não tinha família, tampouco amores. Suas relações todas
fracassaram, pois nenhum implaviano, em qualquer ponto do espectro de
sexualidade, havia permanecido depois de vislumbrar mesmo que uma
pequena parte das trevas de sua alma, e os deuses testemunharam que havia
tentado de tudo para ser outra pessoa. Alguém capaz de amar e de ser amada.
Todos se foram, exceto a belariana.
Por ela, Lyia faria qualquer coisa, e o que mais a assustava era pensar
que o sentimento era recíproco.
O que Elya faria se descobrisse suas mentiras e engodos? Será que a
odiaria?
Lyia não poderia suportar sequer a ideia.
Interrompendo seus pensamentos, o domo de cristal subitamente se
ergueu, expondo suas brânquias a uma porção infindável de ar, enquanto
braços delicados — apenas um par deles — a envolviam com uma urgência
dolorida.
— Lyia — disse Elya, e teria reconhecido aquele tom meigo em
qualquer idioma ou tempo. — Graças às Soberanas, você voltou para mim.
Alívio tomou Lyia por inteiro, causando-lhe até mesmo espasmos, e
ela sentiu que podia respirar novamente.
— Elya — respondeu, usando todos os tentáculos para afastá-la e
poder observá-la, temerosa de que a encontraria machucada pela queda da
nave e de que teria de acrescentar mais um arrependimento à sua enorme
lista.
A mais perfeita entre as perfeitas, contudo, ainda conservava a beleza
que lhe garantira o título, a despeito de Lyia, como implaviana, considerá-la
terrivelmente horrorosa. Vestia o mesmo traje branco que usava quando
deixaram Belar, com os sapatos de longas tiras serpenteando ao redor das
pernas e os cabelos esticados para trás, sem um único fio fora do penteado.
Os olhos, todavia, não escondiam as cicatrizes recentes que haviam
sido feitas não no exterior, onde todos podiam enxergar, mas bem lá no
fundo.
Elya sangrava em dourado.
— Quem fez isso com você? — perguntou, e o tom que sua voz
aquosa assumiu foi perturbador e íntimo. De repente, já não existia mais
ninguém além delas, e seus tentáculos a procuraram em uma reação familiar,
como se tivessem sido feitos para consolá-la. — O que aconteceu?
A belariana nada respondeu, apertando em uma linha dura os lábios
acostumados a sorrir com facilidade, mesmo quando estava triste. Rugas
minúsculas surgiram na fronte, e os cantos dos olhos tremeram antes que
uma pequena lágrima traidora se derramasse pela bochecha.
Foi o suficiente.
Com um ímpeto forjado em fúria, Lyia ergueu-se e saltou — ou ao
menos tentou — para fora da cama médica, quase cega pelas luzes
incandescentes do pequeno cômodo, fortes demais se comparadas com a
completa escuridão de sua própria consciência.
Seus tentáculos não responderam tão rapidamente quanto deveriam,
talvez por estarem pensando em outras coisas — ou ocupados apalpando
tudo o que encontravam pela frente, os monstrinhos —, e escorregaram no
cristal liso. Antes que atingisse o chão de forma ridícula, entretanto, mãos
grandes e sólidas a seguraram no lugar.
— Srta. Lyia — disse o dono delas, afastando-se logo em seguida,
como se o toque entre eles houvesse sido um imperdoável lapso de caráter.
— Não se adiante, pois ainda está sob o efeito de muitos fármacos. — Um
pigarro. — A fraqueza é inevitável, mas deve passar dentro de algumas
noites.
Ela o reconheceu antes mesmo de vê-lo. Ulian Bened.
Tantos ciclos em Belar a haviam tornado experiente em distinguir o
padrão de beleza belariano, e por isso estava segura de que aquele homem
era como uma pedra preciosa bem lapidada para os seus. Da altura ao
formato das maçãs angulosas, ele era como um desenho suave; o único sinal
de rebeldia que o fazia destacar-se estava nos lóbulos atravessados por
brincos de fios de ouro puro.
No futuro, seriam bons amigos, lembrou a si mesma, mas naquele
instante... Bem, naquele instante ela gostaria de esbofetear a face
perfeitamente azul dele.
Com os três olhos escuros o fitou de modo aberto e cheio de
expectativa, desejando que notasse as perguntas que dançavam neles ou que
reconhecesse ao menos o brilho dos próprios segredos.
Como ousava ter deixado Elya depois de tê-lo ajudado tanto?
O belariano, todavia, empertigou-se de maneira quase antipática,
muito embora incapaz de ser descortês, e pareceu desconsertado com sua
presença e, principalmente, insistência.
Havia algo de estranho nele, muito embora Lyia pudesse apenas
teorizar. Arriscaria dizer que era um tolo, sim, e um menino teimoso. Mas,
principalmente, que era ignorante quanto ao papel que representava naquela
trama tecida de modo tão cuidadoso pelas mãos dos deuses.
Quase certa de que aquele ainda não era o Ulian que procurava — o
que teria de ser colocado à prova depois — o estudou junto de Elya, como se
fosse capaz de extrair todo e qualquer segredo que buscassem ocultar,
perscrutando até mesmo a menor das emoções exibidas nos rostos que, tão
estranhamente, complementavam-se como duas metades.
Já os havia visto juntos em muitos bailes, pois o sr. Bened era um
admirador nada discreto de sua querida amiga e o único capaz de fazê-la
sorrir verdadeira e consistentemente o bastante para que não o enxotasse por
conta própria, como muitas vezes fizera com pretendentes de menos sorte.
Daquela vez, contudo, parecia haver entre eles mais do que o
habitual. Eram como corpos celestes, atraindo-se pelo ambiente mesmo que
tudo indicasse que desejavam intensamente se repelir, e Lyia percebeu que
mesmo ela, uma implaviana, não conseguia escapar da atração fatal que,
juntos, exerciam.
Aquilo deveria ser bom, mas não era.
— Quanto tempo? — perguntou sem ter um interlocutor em mente,
certa de que, não fosse seu sangue frio por concepção natural, estaria à beira
de um colapso. — Quanto tempo desde que chegamos?
— Aqui ou em Belar? — devolveu Ulian Bened, enrijecendo o
corpo.
Ah, então ele sabia.
Lyia suspirou, desaprovando a própria ingenuidade. É claro que ele
saberia; era um cientista e havia ido até aquela lua estranha muito ciente de
tudo o que abdicava em Belar. Restava-lhe descobrir o quanto ele sabia.
— Aqui — prosseguiu, notando a forma como Elya parecia presente
apenas de corpo.
Teria de esclarecer tudo a ela e pedir perdão, mas não ainda.
— Onze dias desde o acidente, em contagem universal.
Onze dias.
O número desastroso repetiu-se em sua mente irresoluta.
Onze voltas de um planeta em torno de sua estrela, sob a influência
do buraco negro que, fosse coincidência ou péssimo humor por parte dos
deuses, ali chamavam de Cronos, o titã do tempo.
Onze dias em Colossus que, em Belar, teriam se transformado em
muitos ciclos.
E um tempo roubado que jamais teriam de volta.
Suas vestes estavam lavadas e muito cuidadosamente dobradas sobre
a cama do pequeno alojamento que, conforme dizia a placa de liga metálica
afixada à porta, pertencia a Ulian Bened. A perfeição dos ângulos e a
inexistência de vincos eram uma demonstração muito clara de que o trabalho
havia sido realizado por um belariano, porém a gentileza do gesto era como
uma marca inconfundível que o diferenciava dos demais: apenas Elya a
imprimia em tudo o que fazia.
Ela não era como os outros, e Lyia soube disso desde a primeira vez
que a vislumbrou nos prenúncios do oráculo: uma menina nascida na noite
mais longa do ciclo de um planeta com duas luas, que irradiava uma luz tão
forte que foi capaz de tirar das trevas do sofrimento até mesmo uma
implaviana repleta de culpa.
Elya provara-se a mais perfeita entre as perfeitas sem esforço, a
Messias responsável por uma nova era, e muito provavelmente assim teria
acontecido mesmo sem sua intervenção, pois a menina era como um farol.
Cobriram-na com o peso de um futuro que não cabia a uma criança
carregar e, ainda assim, ela tudo suportou com gentileza, sem jamais se
deixar apagar, e Lyia viu-se completamente cativada por aquele coração
puro.
Nos olhos de Elya encontrou, pela primeira vez, o verdadeiro
significado de uma palavra da qual apenas ouvira falar, embora em Belar não
fosse assim também tão pronunciada.
Amor.
Lyia a seguiria para onde fosse, quando quer que necessitasse ir.
Seria uma rocha, sólida, mas também um riacho maleável e tudo o mais que
precisasse. Ela a pouparia de toda a dor e sofrimentos que pudesse, atraindo-
os para si mesma. Mentiria. Enganaria. Até mesmo mataria.
De Ulian Bened, contudo, não poderia protegê-la, pois o amor era
senão um risco que apenas quem sentia deveria escolher correr.
— Entre — disse, quando uma batida suave à porta interrompeu seus
devaneios.
A mais perfeita entre as perfeitas surgiu na penumbra, e seus
tentáculos ergueram-se por vontade própria, ansiando por abraçá-la. Foi um
alívio quando a amiga devolveu o gesto, e deixaram-se ficar nos braços uma
da outra por um momento infinito e pacífico.
— Pelas Soberanas, Lyia, o que aconteceu com você? — Elya enfim
perguntou, encarando-a com tanta intensidade, que foi difícil sustentar o
olhar, e, um por um, seus olhos baixaram-se com o peso dos próprios
segredos. — Por que não estava em sono criogênico, como me prometeu?
— Não prometi nada, caso não se lembre das palavras exatas. —
Limpou a garganta. — Eu disse que o bolsão suspenderia todas as funções
corporais de qualquer criatura, mas não que entraria nele.
Elya cruzou os braços e rolou os olhos, parecendo cansada.
— Não se faça de desentendida. Por que se arriscou dessa forma? Eu
quase perdi você, não compreende a gravidade disso? — Os ombros
baixaram, pesados. — Nenhuma combinação no mundo valeria isso, Lyia.
Tem tão pouca estima assim pela própria vida, ou não faz nem ideia do que
significa para mim?
Lyia suspirou, o que era um comportamento belariano adquirido pela
força do hábito, pois em Impla ninguém faria coisa tão estranha — ela
sequer possuía narinas.
Ouvir Elya falar aquelas coisas era como jogar sal sobre antigas
feridas.
— Fiz o que era necessário para que chegássemos até aqui. E
chegamos, não foi? Está tudo resolvido, e os fins justificaram os meios.
— Você mentiu.
Era uma acusação. As palavras podiam ser doces, e a gentileza ainda
estava presente nelas, mas não deixavam de ser uma acusação carregada de
angústia.
— Nunca escondi minhas inclinações, Elya. Você sabe quem eu sou.
Outra mentira. Elya não fazia nem ideia de quem Lyia realmente era
além da máscara que mostrava.
— Mas você mentiu para mim. — As írises dela brilharam,
magoadas. — Pensei que não fizéssemos tal coisa uma para a outra e que
pudéssemos dizer toda a verdade.
Toda a verdade, pensou consigo mesma, amargurada.
Se aquela belariana ao menos imaginasse a quantidade de mentiras
que já havia contado ou como elas lhe fluíam com facilidade pela boca...
Bem, se imaginasse, então saberia que Lyia era uma hipócrita.
A visão, a profecia, o peso que se abatia sobre a vida dela e, naquele
momento, as consequências que a viagem a Colossus traria — verdades
demais para confessar que pesavam, mas ela precisava continuar tecendo,
pois os deuses deixaram o fio do futuro sob seus cuidados. E o futuro
chegaria, quer ela o ajudasse a seguir o curso correto ou não.
— Você teria me impedido se soubesse da verdadeira duração da
viagem, admita — defendeu-se.
— Ora, é claro que eu teria! Lyia, você é a pessoa mais importante
para mim! — As mãos dela agarraram seus tentáculos. — Você importa mais
do que tudo e qualquer coisa!
Seus corações se apertaram, e a voz aquosa subitamente embargou.
— Mas então... Então... — Não podia ceder, não ainda, e engoliu os
próprios sentimentos. — Então nada do que fizemos em Belar se justificaria,
e você teria se arruinado e magoado seus pais por nada. Não faria sentido
desistir.
— Antes tivéssemos desistido... — O tom saiu estilhaçado como
cristal belariano, e as rachaduras enfim apareceram.
— Me diga em que confusão você se meteu — Lyia pediu, sem
rodeios, feliz por mudar um pouco a direção da conversa. — O que
aconteceu enquanto eu estava desacordada?
Elya a encarou com os olhos dourados que lhe eram ainda um pouco
estranhos, tendo tão recentemente substituído os escuros que havia levado
uma vida inteira para conhecer, e transmitiu sem emitir som algum a
essência do que havia se passado.
Muito resumidamente: não era nada bom.
— Não esconda, nada. Nada mesmo. Me conte todos os detalhes. —
Principalmente os sórdidos, desejou dizer, porém não o fez. Não seria nem
um pouco adequado de sua parte.
— Nem sei por onde começar a narrar essa tragédia...
A belariana recostou-se ao seu lado na cama, acariciando os lençóis
sedosos como se os conhecesse bem.
— Pelo começo é sempre a melhor opção — incentivou, com a
piscadela de um olho.
— Contei tudo a ele. Tudo — explicou, ao passo que as lágrimas
começaram a umedecer os longos cílios. — Contei sobre o Conselho e a
combinação. Contei que o amava e que teria vindo ainda que não nos
tivessem combinado. Contei até mesmo sobre o roubo da nave e expus
minha desgraça…
A voz dela sumiu, quase enforcada dentro das paredes da própria
garganta.
— E ele não a quis — Lyia complementou, concluindo o que seria
mais lógico.
Todavia, a belariana balançou a cabeça, negando.
— Pelo contrário.
Então tudo fez sentido.
A forma como Elya agarrava os lençóis, não apenas como se os
conhecesse, mas como se sentisse falta deles, ou de algo vivido ali. A
maneira como o aroma doce dos néctares que era tão característico da mais
perfeita entre as perfeitas estava presente em cada canto do ambiente,
entrelaçando-se a um mais profundo, que só poderia ser de Ulian Bened.
E, principalmente, o modo como eles se evitaram na enfermaria,
como se fosse insuportável estarem tão próximos não porque desejavam que
algo acontecesse, mas porque algo já havia acontecido e se partido.
— Elya... — começou a dizer, cheia de pesar.
— Eu me entreguei a ele, mas ele disse que jamais se casará — a
amiga revelou. Os soluços irromperam do peito como uma tempestade. —
Que jamais aceitaria nada que viesse do Conselho, que jamais deixará
descendentes, que jamais retornará a Belar.
Onze voltas de um planeta em torno de sua estrela...
Esperava que não fosse tarde demais.

Lyia detinha um conhecimento que, para ela, valia mais que qualquer
metal ou pedra preciosa. Mais que frotas estelares inteiras, tronos ungidos
em glórias, títulos ou magias antigas e fundamentais.
Ela sabia sobre o futuro. E o que seria mais raro e mais difícil de
obter do que um vislumbre de um tempo ainda oculto e que não pertencia a
nada nem ninguém, senão à vontade dos deuses?
A vida em Belar era confortável e repleta de uma opulência sem
esforço, e Lyia não podia negar que deixara-se levar por aquela amálgama de
perfeição até que a própria realidade se enfraquecesse, e o ódio que sentia
pelo oráculo que habitava em si fosse dissolvido em esperança.
Não raro, no entanto, os pensamentos traiçoeiros invadiam seus
momentos de paz, como se fossem ramos venenosos, crescendo em
espinhos, talvez para impedir que se esquecesse de quem era e,
principalmente, do que fizera. E quando as lembranças vinham, recordava-se
de que aquele presente era uma verdadeira maldição, pois se nem mesmo em
Impla, onde os oráculos haviam nascido, acreditava-se mais em suas visões,
por qual motivo outros o fariam?
Ainda assim, uma ideia formava-se em sua mente enquanto Elya a
levava para fora da base da expedição pela primeira vez e a apresentava às
planícies áridas de Colossus. O momento de revelar seu maior segredo
aproximava-se, e não precisava de visões ou prenúncios para assim
determinar. Simplesmente sentia.
Permanecer dentro da construção não lhe parecera agradável
inicialmente, mas bastou um olhar para a estéril lua, e ela soube que jamais
deveria ter saído. Para qualquer direção que olhasse, redemoinhos eram tudo
o que podia registrar e, apesar da bolha protetora que os cientistas a fizeram
colocar em volta da cabeça, condição inegociável para o que chamaram de
“passeio”, constantemente tinha a sensação de que suas brânquias seriam
arruinadas para sempre com aquela quantidade de poeira.
Tentáculo após tentáculo, deslizou em direção a um veículo
estacionado próximo ao portal, incapaz de desviar a atenção da grande massa
no horizonte que extinguia toda partícula de luz em uma espiral
incandescente e a fazia ignorar até mesmo a voz delicada da melhor amiga.
Cronos.
Jamais vira um buraco negro tão de perto, e mesmo que soubesse que
ainda levaria muito tempo até que aquela lua árida e o planeta que orbitava
fossem finalmente devorados pela bocarra esfomeada, algo no interior de
Lyia se inquietou por estar na presença daquele deus.
Com uma ligeira reverência, subiu no veículo murmurando uma
prece, apenas por precaução, e assistiu aos campos revolvidos por máquinas
passarem de ambos os lados, até que um objeto à distância destoou da visão
enfadonha. Conforme se aproximaram, a coisa entrou em foco e, com
espanto, finalmente entendeu que se tratava de uma nave belariana, reluzente
em ângulos suaves.
— A nossa nave — Elya indicou, maravilhada por motivos que lhe
eram desconhecidos, tão alegre e corada que sequer parecia a sombra da
mulher magoada e machucada de antes.
Será que ela havia batido a cabeça durante a queda e ninguém
percebera?
Lyia franziu o cenho — se é que tal expressão facial era possível para
sua compleição implaviana — e demorou-se não mais que um instante a
estudar o belo transporte que se erguia, imponente, entre as areias desérticas.
Aquela não era e nem poderia ser a nave do Governador que roubaram em
Belar, e tinha razões consistentes para assim concluir.
Primeiro, porque quando chegaram perto da órbita de Colossus, ela
estava já muito debilitada, e nem suas habilidades delirantes com os
comandos, nem os sistemas automáticos da nave foram capazes de corrigir a
aceleração descontrolada, o que resultou em uma terrível queda. Aquela
nave, entretanto, não tinha um único arranhão e estava belamente pousada,
os trilhos acoplados no solo repletos de poeira e grânulos. Segundo, porque o
modelo era completamente diferente, embora soubesse que Elya não detinha
tal conhecimento.
— Considerando o que você me contou sobre a queda e que esse é
um modelo bem mais antigo, é impossível que seja nossa nave — respondeu,
chegando mais perto, como se apontasse o óbvio. — Ela não deveria passar
de destroços deformados.
A belariana abriu um sorriso que fez até mesmo a estrela ao redor da
qual orbitavam perder um pouco do brilho.
— Eu sei — disse. — Mas é a nossa nave.
Elya certamente havia batido a cabeça.
— Você está soando como uma louca, coisa que tenho quase certeza
de que não é, menina teimosa.
A amiga sorriu ainda mais à menção de tão carinhoso apelido e
caminhou até o portal de entrada. Após alguns instantes, o cristal belariano
do qual era feito cedeu e abriu passagem, revelando um interior à meia-luz
que parecia totalmente funcional, para sua descrença.
— Esta é e não é a nossa nave. É uma versão dela, por assim dizer.
Uma que foi transportada para o passado — acrescentou, com uma
piscadela, desaparecendo no interior.
Lyia a encarou sem saber dizer se aquela conversa era uma
brincadeira ou não. Depois, pensou bem e lembrou-se de que belarianos
simplesmente não tinham senso de humor.
Os tentáculos trataram de seguir a melhor amiga enquanto
resmungava consigo mesma. Os menores, que para criaturas bípedes
pareceriam mãos, tocaram a superfície de cristal, e as ventosas absorveram
as impressões até das mínimas ranhuras, logo reconhecendo o local
reservado ao painel de controle, que na fuga de Belar ela havia
desesperadamente inutilizado. Estava em perfeito estado e funcionamento.
Confusa, seguiu pelos corredores e quando chegou à cabine
principal, com as poltronas acolchoadas e o assento de comando, admitiu
que ou estava delirando, ou Elya estava certa.
Tudo havia mudado.
Embora a disposição de cada móvel e objeto desse a entender que
belarianos não eram assim tão criativos, pois tudo era muito semelhante ao
modelo que usaram para viajar até Colossus, a diferença era nítida entre esta
nave e, bem... A outra nave. Os tecidos eram distintos, ainda luxuosos, mas
em padrões que atualmente seriam ultrapassados. Os materiais também não
eram tão refinados, tampouco os ângulos tão suavizados.
Elya estava recostada em uma das poltronas largas e macias com
uma taça de cristal na mão, como se estivesse em casa; as pernas longas e
cruzadas em exibição por um vestido que Lyia não reconhecera.
Ah, pelos Deuses, não era um vestido, mas uma camisa!
E podia muito bem imaginar a quem pertencia.
Resistiu ao instinto de rolar os três olhos de uma só vez e ainda mais
à vontade de enchê-la de perguntas e comentários maliciosos que a fariam
corar. Precisava ser uma boa amiga e dar-lhe o tempo que parecia necessitar
para, por conta própria, abordar o assunto.
— Enquanto você estava em tratamento, houve uma tempestade
temporal — ela esclareceu, levando o líquido marrom-escuro aos lábios com
delicadeza. — É isso que eles estão estudando aqui. Elas acontecem o tempo
todo nessa lua.
Acomodando-se no assento à frente, Lyia esticou os tentáculos para
que a belariana compartilhasse a taça e levou-a à boca. O néctar, doce e
forte, a deixou mais desperta.
— Não sabem dizer ainda o que as está causando, nem prever com
muita antecedência quando uma vai acontecer. Supõem que o buraco negro
seja o responsável. Mas estão estudando os efeitos, na esperança de poder
controlá-los. Querem ser os primeiros a viajar no tempo.
— Brincar com o tempo é perigoso — advertiu, talvez mais para si
mesma.
Estava parecendo uma velha amargurada, mas se Elya percebeu o
ressentimento em seu tom, não comentou sobre.
— Quando essas tempestades acontecem, tudo o que estiver do lado
de fora da base muda; viaja para o passado ou para o futuro. Às vezes o
equivalente a um anoitecer, às vezes a um ciclo inteiro.
Lyia apertou os olhos, e ordenou que cada um esquadrinhasse uma
direção distinta, como se para confirmar a própria teoria.
— A última tempestade levou tudo muitos ciclos para o passado.
Então, na verdade, estamos sentadas em uma nave que pertenceu a um dos
meus antepassados — a amiga concluiu.
— Poderia pertencer, hipoteticamente — interrompeu uma voz
gutural e oca, que logo revelou ser de um enorme quaarsariano que
adentrava pela ponte. Nunca havia confraternizado com nenhum, mas os
conhecia pela tonalidade alaranjada da pele e os olhos negros ausentes de
írises. — Lembre-se de que a tempestade não foi até Belar roubar nenhuma
nave de seu avô. — Ele sorriu, confiante, mostrando uma fileira de presas
escuras que deveriam assustar, mas que pareceram simpáticas. — Perdoem-
me se eu estiver me intrometendo.
— Vocês, homens, não resistem à tentação de interromper uma
mulher — Lyia pegou-se dizendo, antes mesmo de ser capaz de pensar nas
palavras, ou de segurá-las dentro da fenda que chamava de boca.
Tensão desceu sobre a cena, fazendo a nave subitamente parecer
ocupada para além da capacidade.
— Concordo, por isso gosto de manter suas bocas ocupadas sempre
que tenho a oportunidade — ele respondeu, sem parecer abatido, afiando o
olhar com um sentimento quase cruel, embora brilhasse divertidamente em
desafio.
Lyia se engasgou, sentindo que todo o ar do ambiente não seria
suficiente enquanto os tentáculos ousavam rebelar-se ao seu redor, porém o
quaarsariano prosseguiu com qual fosse a tarefa que precisava realizar, como
se elas nem mesmo estivessem ali. Com os três corações batendo muito
acelerados, ela estudou as costas dele, largas como montanhas que mal
cabiam dentro do macacão empoeirado da expedição, e sentiu-se inquieta,
desacostumada a ser desafiada ou rebatida com tanta rapidez e,
principalmente, malícia.
— Me chamo Edon — apresentou-se, como se sentisse seu olhar e
este lhe perfurasse. — E você é Lyia, não é? Confesso que ouvi muito a seu
respeito, mas pessoalmente espero que seja tão interessante quanto Elya me
prometeu. E ela me prometeu muito.
À sua frente, a belariana sorriu como se estivesse constrangida, e
Lyia finalmente lembrou-se da presença dela. Elya murmurou, sem esconder
o sorriso que tomava os lábios:
— Edon é muito gentil, e você quase conseguiu magoar meu
primeiro amigo de verdade fora de Belar.
— Pensei que eu fosse sua primeira amiga de verdade — murmurou
de volta, simulando estar ofendida para tentar encobrir a vergonha que dela
se apoderava pela primeira vez em muito tempo.
— Você não é minha amiga — Elya estabeleceu. — Você é muito
mais.
Como se quisesse assegurar a mais completa destruição de sua
dignidade, o quaarsariano Edon permaneceu na nave realizando tarefas de
todos os tipos, com os mais diversos instrumentos, enquanto conversava com
Elya, como se fossem velhos conhecidos. Ele era de tamanha gentileza que,
em momento algum, pareceu incomodado com a interação inicial que
tiveram, mas Lyia estava um tanto quanto mortificada e simplesmente não
sabia como agir. Estava certa de que seu nervosismo a levaria a
complicações com as quais não poderia lidar.
Apesar dos olhares dúbios que o cientista vez ou outra lhe lançava e
dos comentários ácidos e repletos de duplo sentido que uma jovem belariana
era inocente demais para compreender, ele esclareceu muitas de suas dúvidas
a respeito das tempestades temporais, o que foi verdadeiramente útil.
Elya não estava maluca, no fim das contas, quando lhe contara sobre
o poder que as tormentas tinham. Sobre viagens ao futuro ela entendia bem,
embora nenhum deles desconfiasse que estava na presença de um oráculo,
mas era a possibilidade de viajar ao passado que verdadeiramente a
intrigava.
Era quase heresia retornar ao que já se perdera.
As tempestades, segundo haviam descoberto não naquela expedição,
mas em muitas atrás, eram causadas pela interação entre as camadas mais
fundas do substrato de Colossus e a fúria do buraco negro que lhe reclamava
a órbita. Vinham sem aviso, formadas nas areias, e despejavam raios que
podiam transportar qualquer coisa para qualquer ponto no tempo.
Até então, as experiências conduzidas observavam apenas o que era
natural, em especial os animais e a parca vegetação nativos; contudo, o que
houve com a nave belariana era um fato inédito que, desde então, os
pesquisadores se debruçavam para estudar.
— Isso explica por que vocês ainda não podem pegar a nave e sair
daqui — disse-lhe Edon, com uma piscadela para Elya, que, à menção de
deixarem Colossus, pareceu murchar no assento.
— Imagino que o controle da missão e a Academia não permitiriam
que um objeto científico com tanta importância simplesmente saísse voando
por aí — Lyia arriscou, tecendo uma armadilha para que ele lhe entregasse a
informação de que precisava. — Mandarão algum outro transporte? Talvez
uma nave diplomática, seria o protocolo...
— Eles ainda não sabem da queda — respondeu o quaarsariano,
fazendo anotações no ar como se escrevesse em uma prancheta invisível. —
Nossos comunicadores precisam alinhar a trajetória com a nave da
expedição, que está orbitando Essiclan, para transmitir à longa distância. E
com a tempestade, nós perdemos a janela de contato. Daqui a alguns
amanheceres, se o velho Cronos permitir, estaremos novamente em posição.
— Ora, mas e se acontecer alguma emergência?
— Os satélites de Essiclan gravam nossa atividade dia e noite. Em
uma situação de emergência que não possa esperar pela janela de
comunicação direta, temos como enviar um sinal.
— E nossa queda não foi uma situação de emergência?
— Sem feridos correndo risco de vida, e com um objeto de estudo
tão relevante quanto esta nave que nos trouxeram — Edon deu tapinhas no
casco com as mãos enormes —, na verdade, não.
Embora pudesse evitar se fizesse ao menos um pouco de esforço,
Lyia deixou que a boca estalasse em deleite e formasse algo próximo a um
sorriso: ninguém fora da expedição tomara conhecimento, ainda, de que
estavam ali.
Finalmente o Tempo estava ao seu lado, mas não deveria abusar.
As areias da sorte sempre mudavam de direção com o vento.
Quando retornaram à base e se livraram de toda a poeira, Lyia
caminhou ao lado de Elya em direção ao salão de refeições, já acostumada
aos corredores. Até teria feito alguma menção ao costume de se lavarem
primeiro ou oferecido ajuda à mais perfeita entre as perfeitas para se
arrumar, mas a forma como ela andou decidida até o portal deu a indicar que
estava resoluta.
Menina teimosa.
No entanto, bastou ver Ulian Bened acomodado junto a uma das
mesas, parecendo perfeito em todo o seu miserável esplendor enquanto
remexia desinteressado no próprio prato, para que Lyia entendesse a
situação. Embora não pudesse afirmar, passara aqueles dias estudando-o com
atenção, ou ao menos em toda oportunidade em que se encontravam no
mesmo cômodo, certa de que havia algo de errado.
Pois ele simplesmente parecia ter se esquecido de tudo que
conversaram em Belar, de tudo o que havia lhe contado.
E era por esse motivo que Lyia acreditava existir um mistério ainda
oculto em suas visões sobre o futuro de Elya, o que não seria assim tão
surpreendente: os prenúncios de oráculo nem sempre eram completos, muito
menos oniscientes.
Ela via quadros, jamais a paisagem inteira.
Ao seu lado, a amiga cruzou o salão da mesma forma que já a havia
visto, muitas vezes, cruzar os salões de baile no planeta natal: com confiança
e sinuosidade, reivindicando o chão onde pisava. Os ângulos do rosto
reluziam, mesmo sob as luzes artificiais, como um chamado na mais densa
escuridão, um feitiço.
Lyia remexeu a cabeça moluscular, não desejando ser envolvida
também no encanto que descia como uma névoa, e, ao voltar a encarar o
belariano, deu-se conta de que o pobre Bened não tinha nenhuma chance.
Pôde vê-lo lutar contra os instintos, apertando os talheres até que os nós dos
dedos azuis clareassem com o esforço, na tola esperança de não erguer os
olhos dourados dos abençoados por Tenar.
Os dois estavam em guerra — ou, ao menos, o mais próximo de um
embate que dois belarianos poderiam chegar —, e ficou de repente muito
claro quem iria perder.
Ninguém podia contra a mais perfeita entre as perfeitas.
Um sorriso ameaçou manchar sua boca, mas Lyia o conteve. Em
verdade, a cena a fez compadecer-se dele, sabendo de tudo o que havia se
passado, mas não durou mais que um instante, pois se aquele belariano era
tolo o bastante para lutar contra a força da natureza que era Elya Bespian, se
era tolo para lutar contra o amor, então que pagasse o preço.
No futuro, ele se arrependeria de cada instante passado longe, de
cada vez que colocou a razão na frente das emoções mais cruas e verdadeiras
que borbulhavam na superfície.
Mas ele não sabia ainda que o Tempo sempre cobrava.
Naquela noite, com as luzes apagadas, Elya lhe confiou pela primeira
vez que desejava retorna à Belar e à família. Com a voz embargada em dor e
remorso, confessou que estava arrependida e que bastava de se humilhar em
Colossus. Queria corrigir os próprios erros e só poderia fazê-lo quando
voltasse para casa.
— Meu pai me perdoará, sei que ele fará. Quanto aos outros
belarianos, não ousarão renegar aquela que trará o futuro — conjecturou,
perdida nos próprios pensamentos de certo desesperados, uma vez que se
utilizava do título que tanto odiava como escudo para se defender. — Ainda
há tempo, Lyia. Nem toda a minha esperança se perdeu.
Lyia compreendia. Ah, não havia ninguém que conhecesse tão bem
quanto ela o desejo de reparar aquilo que um dia fora quebrado, mas
simplesmente não podia permitir que acontecesse.
Ao menos, não ainda.
A amiga estava cega pelo próprio coração partido e, principalmente,
não era oráculo. Não sabia ainda de todas as alegrias que a esperavam no
futuro; portanto, era dever de Lyia assumir o controle da situação e usar de
um último segredo que vinha guardando há muito tempo.
Tudo fazia sentido, embora parecesse loucura.
O tempo era um círculo, e a ela caberia fechá-lo.
Por isso, depois de embalá-la com cantigas de sua própria infância,
algumas das quais abriam antigas feridas, e garantir que dormia
profundamente, deixou o alojamento na ponta dos tentáculos, arrastando-se
com todo o cuidado, e selou a porta depois de passar.
Havia dado a Ulian Bened todas as chances de fazer a coisa certa, de
procurá-la e explicar-se, na esperança de que não tivesse de intervir naquele
momento de catarse, porém sua paciência havia se esgotado — e o tempo
também.
Sua visão era muito mais funcional no escuro, e locomoveu-se pelos
corredores com facilidade, a despeito de achá-los todos iguais. Logo
encontrou, no meio do caminho, a massa formada por pernas compridas,
tronco exposto e antebraço dobrado atrás da cabeça. Os olhos dourados
estavam bem abertos e se arregalaram quando finalmente perceberam sua
aproximação.
— Sr. Bened — cumprimentou.
Era tempo de passar a história a limpo.
O belariano se ergueu nos cotovelos, o que fez saltarem em todas as
partes músculos que Lyia, uma raça moluscular, particularmente achava
muito estranhos. Ele cobriu-se com um lençol fino que, se precisasse ser
honesta, não a impedia de ver nada caso verdadeiramente desejasse.
— Srta. Lyia — Ulian respondeu, com aparente confusão. — Perdoe-
me pela falta de decoro, não sabia...
— Vamos nos poupar das amenidades? — ela indagou, com o tom
mais gentil foi capaz a despeito das palavras duras. A voz aquosa foi
carregada pelas paredes, e ela fez o possível para controlar o próprio tom. —
Não sou belariana, tampouco uma dama, e não estamos mais em Belar.
Os traços dele foram dominados por um misto de expressões, que
transitavam entre a vergonha, a descrença e o estupor, mas por fim assentiu
cordialmente, como era mesmo esperado que fizesse.
— Vejo que não estava mesmo dormindo, então penso que não
achará nenhum problema me acompanhar até o salão de refeições para um
lanche noturno. Ainda não estou muito habituada ao caminho — dissimulou,
deixando bem claro que a recusa não era uma opção.
Ulian ergueu-se como um muro à sua frente, e Lyia não se lembrava
de ele ser tão alto. O belariano vestiu a camisa apressado e aprumou-se antes
de concordar.
— É claro. — Fez uma mesura com a mão. — Depois de você, srta.
Lyia.
Ela deslizou pelos corredores como se já tivesse feito o trajeto por
incansáveis vezes, sem se preocupar em errar uma ou outra entrada,
tampouco de parecer perdida, para manter as aparências da desculpa
inventada. Queria mesmo que ele se assustasse, e parecia estar funcionando:
belarianos eram educados demais para evitar ser dominados.
Quando chegaram ao salão, pediram aos autômatos que preparassem
duas bebidas quentes e sentaram-se um de frente para o outro. Os copos
foram depositados pelas pinças mecânicas no tampo da mesa, soltando
vapor.
Lyia levou o seu à boca, tomando cuidado com a temperatura, e
depois tornou a baixá-lo. Havia escondido a verdade por tanto tempo, que
sequer sabia como começar a contá-la.
Escolheu pelo começo e com a simplicidade.
— Sr. Bened, já que estamos sendo muito francos hoje, permita-me
dizer que não gosto nem um pouquinho de você — disse, como se estivesse
apenas falando sobre um assunto trivial como o clima.
Do outro lado da mesa, ele se engasgou com a bebida e começou a
tossir.
— Não é que eu jamais vá gostar, não me entenda mal — tratou de
emendar, apaziguadora e teatralmente exagerada. — Mas, neste exato
momento, simplesmente não consigo compreender o que se passa nessa sua
cabeça, que imagino ser muito inteligente, já que é o mais jovem cientista
admitido na Academia.
Ulian parecia um tolo, encarando-a com tanta incredulidade que, por
um instante, chegou a pensar que os neurônios dele haviam entrado em
combustão espontânea, restando apenas uma sombra do homem que há tanto
a confrontara e conquistara seu respeito.
— Eu... — ele balbuciou, tentando formar uma frase.
— Nós dois sabemos que Elya é única, e acho que também podemos
concordar que é dona de um coração mais precioso que qualquer riqueza de
qualquer mundo — prosseguiu, sem esperar por uma reação. — Se estamos
de acordo nesse assunto, me diga, em nome dos Deuses, seus ou meus, por
que você fez o que fez.
O belariano era de um azul profundo, o que Lyia podia reconhecer
com facilidade, mas naquele instante empalideceu como se fosse perder os
sentidos. Todo o brilho que ainda podia sustentar desapareceu, e os olhos
mergulharam em um abismo.
— Isso é extremamente pessoal...
— Deixou de ser no momento que você a tocou — interrompeu,
cheia de fúria, embora o tom em nada tenha se alterado. Os tentáculos
ergueram-se, como dedos enormes e acusatórios. — Elya não precisaria ter
me dito uma única palavra para que eu soubesse o que fizeram. Sou mais
velha do que vocês dois juntos e, meu querido, já fiz coisas que você sequer
imaginaria.
Ulian se empertigou na cadeira, e o vislumbre do inafastável orgulho
belariano finalmente surgiu em seus traços angulosos.
— Não fiz nada que Elya não desejasse, embora reconheça o terrível
erro de atentar contra a honra e a virtude dela — defendeu-se, os brincos
tilintando nas orelhas conforme os dedos longos os tocavam repetidamente.
— Eu deveria ter sido um homem melhor, ter sido mais digno, porém…
Lyia soltou um riso de escárnio que o interrompeu.
— Não seja tolo, já disse que não estamos em Belar. Você poderia ter
atentado contra o que quisesse, se ela assim lhe desse permissão para
continuar, desde que aceitasse o casamento. Você a tomou e, de forma
leviana, a destruiu.
Ele se levantou de forma violenta demais para um belariano, e o
ímpeto de fúria foi a primeira emoção genuína que pareceu quebrar a
superfície rasa, ensinada a jamais deixar as ondas se formarem.
— Não vou me casar e já disse isso a ela — ouviu-o repetir, como se
pronunciasse uma prece de proteção contra si mesmo e contra tudo aquilo
que poderia desejar. — Não posso, e vocês não entenderiam. Simplesmente
não acredito que ela a mandou até aqui para tentar me convencer...
— Elya não faz a menor ideia dessa nossa conversa e, por favor,
sente-se. Você não vai sair daqui até que eu termine — pediu, com um aceno
cansado.
Ficou evidente a luta interna dele entre a cordialidade ensinada em
Belar e a vontade de sair a grandes passadas, mas, por fim, a educação não
falhou, e ele se sentou.
— Sei muito bem por que acha que não pode se casar.
— Você não faz ideia de meus motivos. — Ulian levou a bebida até a
boca, fazendo algo próximo à uma careta, pois certamente já estava fria.
— Ah, Ulian, eu faço, sim — pronunciou o primeiro nome dele
como se sentisse um gosto amargo. — Acha que não entendi assim que ela
me disse que você não queria se casar? Além de você, sou a única que sabe
e, em nome dos grandes amigos que nos tornaremos no futuro, peço que
ouça meu conselho. Você não merece se punir, nem ser infeliz e deixar
outras pessoas infelizes por algo que aconteceu há tanto tempo e que jamais
pode ser mudado. Você não teve culpa.
Os olhos dele marejaram, algo que Lyia sabia ser uma grande
demonstração de instabilidade emocional.
Coragem, Ulian. Pensou consigo mesma. Estamos quase lá.
— Você não sabe o que está dizendo — repetiu, abalado e trêmulo.
Verdadeiro e, principalmente, inocente. — Não poderia fazer.
Seu palpite estivera certo. Naquele momento, ela soube.
Tentou manter a calma, e esvaziou a mente de todas as perguntas que
desejava fazer a ele, pois os desígnios do Tempo eram misteriosos e,
principalmente, perigosos.
Chegará o dia em que me contará um segredo, mas para que isso
aconteça, preciso contar o meu primeiro.
Lembrava-se das palavras como se houvessem sido pronunciadas há
pouco, e, embora ainda não fosse capaz de lhes dar o exato sentido, estava
certa do efeito que precisava causar. Ela sabia o segredo e, por isso,
levantou-se e tornou-se a sentar mais perto dele.
— Já ouviu as histórias sobre os oráculos de Impla? — indagou,
igualmente trêmula pela iminência da revelação, mas ciente de que precisava
dar-lhe algo em troca.
Era um acordo feito há muito, embora ele ainda não soubesse disso.
— Lendas espalhadas pelos Imperadores e contadas para crianças —
respondeu-lhe.
— Lendas são verdades esquecidas — Lyia esclareceu, encarando a
massa de tentáculos que, por conta própria, tentava encontrar as mãos dele.
Não havia forma melhor de fazer aquilo, a não ser dizer de uma só vez. —
Descobri que era um oráculo mais ou menos com a mesma idade que você
tinha quando perdeu sua irmã — pronunciou, com tanta delicadeza que mal
sentiu quando as palavras deixaram a boca.
Mas elas o atingiram como um tapa.
Ou uma faca.
Eram lâminas contra aquele coração já tão machucado e repleto de
rancor, e Ulian sangrou bem ali, diante de seus três olhos, conforme as
lágrimas escorriam pelas faces não do homem, mas do menino.
— Como? — balbuciou, entre soluços. — Como sabe a respeito
dela?
Não poderia dizer-lhe.
— Quando ainda vivia em Impla, tive uma visão, um prenúncio
vívido e claro como a manhã, de uma menina nascida em um planeta com
duas luas no firmamento. Ela me tirou das mais absolutas trevas, e por essa
menina atravessei o Sistema Exterior até Belar, incerta quanto ao que
encontraria quando chegasse.
— Elya.
Lyia assentiu.
— Sobre ela eu profetizei. A que traria o futuro.
— Você? — Entendimento o tomou.
— Sim. Eu a vi sentada na cadeira do Governador ou, usando da
linguagem correta, da Governadora, abençoada por suas Soberanas e por
todo o povo. Eu a vi dar à luz três meninas, e o nome da primogênita, creio
que vai reconhecer, era Alicia.
Ulian escorregou e por fim caiu de joelhos, destituído de todas as
lições ou amarras belarianas, e chorou toda a sua dor de uma forma crua e
imperfeita.
Humano, afinal, como seus antepassados.
— Eles a mataram — sussurrou em desespero profundo, cuspindo as
palavras como se fossem farpas ou cacos de cristal. — Eles a mataram
porque era imperfeita, porque mancharia o nome ancestral dos Bened. Fui o
único que lhe deu um nome e o único a chorar sua perda.
— Eu sei — Lyia assentiu, compartilhando daquele pesar e tentada a
afagar os cachos dourados dele. — O que foi feito, foi feito; o passado não
pode ser alterado. A única coisa que podemos fazer é aprender com ele, e
você não será menos infeliz se arruinar sua única chance com Elya.
— Não posso. — Ele abraçou-se, como se tentasse juntar os próprios
pedaços que mantivera colados por todo aquele tempo a muito custo. —
Prometi à minha irmã, minha querida Alicia, que jamais me casaria. Que a
ancestralidade dos Bened morreria comigo. Que eu a vingaria.
— Entendo por que sentiu que deveria fazer essa promessa, e não o
culpo...
— Como poderia entender?
Os olhos dourados dele eram poços profundos que poderiam sugá-la
em dor e pesar, mas Lyia manteve-se firme.
— Porque eu também já vi coisas terríveis, Ulian, e minha família é
ainda mais criminosa do que a sua.
A confissão lhe custara um pouco da própria sanidade, porém Lyia
não cedeu e não se deixou levar de volta àquele abismo em Impla. O Tempo
a havia presenteado com uma única chance de fazer a diferença, de corrigir
seus erros, e ela iria até o fim.
— Não mudará o que foi feito à sua irmã agindo dessa forma, nem se
negando a amar e ser amado.
— O amor destrói...
Lyia olhou para o belariano, transformado no mais imperfeito dos
seres pela dor e pela angústia. Seu peito pesou, e os três corações bateram,
cansados.
Se ele ao menos soubesse...
— O amor, como o avançar do tempo, é a única força que não pode
ser impedida. Não lute contra ele, ou vai acabar se afogando.
Elya nunca, em toda a vida, havia sido recusada.
A beleza impossível de evitar com a qual fora presenteada indicara-
lhe o caminho para conquistar qualquer coração, pois sempre sabia o que
dizer, o que fazer e como sorrir. Portanto, a rejeição era para ela um conceito
abstrato e deveras incompreensível, senão impossível de alcançar.
Afinal, ela era o que os belarianos possuíam de mais próximo com o
divino.
E no planeta da perfeição, jamais houve um único cavalheiro ou
dama que não se regozijassem com sua presença ou não almejassem sua
atenção.
Ao menos, costumava ser assim antes de Ulian Bened.
Em seu peito, o coração se contraiu com a lembrança dele, por mais
que se empenhasse para evitá-la a cada anoitecer, quando o silêncio recaía
sobre a base da expedição e a confusão em sua mente tornava-se
ensurdecedora demais para suportar.
Incapaz de encarar de volta a penumbra que a envolvia, baixou as
pestanas no instante em que cada palmo de pele ansiou pelo calor abrasador
e reconfortante que a havia feito queimar, mas, muito mais do que isso,
ansiou pela calma e pela certeza que os olhos dourados de Ulian transmitiam
toda vez que a miravam, pois a faziam ser e existir, não como a mais perfeita
entre as perfeitas, mas como Elya.
Apenas Elya.
E aquela era, estranhamente, o bastante.
Sabia que não deveria se apoiar em memórias, pois se existia uma
verdade que não ousaria ignorar, era a de que o tempo não voltava, e o que
estava feito estava feito.
Contudo, ela sempre se pegava rememorando os olhos dele,
manchados com uma tristeza sem fim que nunca pôde compreender por mais
que se esforçasse, e mergulhava ainda mais profundamente no mistério de
momentos há muito perdidos.
Pois se lembrava de tudo e de cada detalhe, quando identificou
aquele sentimento vil e corrosivo nos olhos de Ulian pela primeira vez.
Antes mesmo que pudesse reconhecê-lo dentro de si mesma.
Tenar e Ésper reinavam no firmamento, Soberanas por direito,
lançando raios ternos pelos jardins suspensos da residência dos Bespian que
Elya, outrora, chamara de casa com facilidade. Os arcos haviam sido
enfeitados com flores lindamente coloridas e aromáticas, e os autômatos
enfileiravam-se, lustrosos, para receber a família Bened: Ianer, Eleonor e
Ulian.
Elya foi banhada, penteada e vestida com esmero para ser
devidamente apresentada, e os visitantes a presentearam com tudo de mais
luxuoso e raro que poderia existir em Belar. Dedicaram-lhe canções
dedilhadas em liras de ouro. Contudo, somente muitos ciclos depois ela
compreendeu que não era a Elya Bespian que dirigiam as homenagens, mas
ao que representava.
O destino deles.
O destino de Belar.
Pois a mais perfeita entre as perfeitas era uma serva e um receptáculo
para o futuro de todos. Um instrumento, somente. Formas na madeira, tensão
na corda.
Jamais a música.
Em meio às conversas estranhas do mundo dos adultos, que
representava ainda um mistério para sua tão pouca idade — apenas seis
ciclos completos —, Elya perdeu-se nas cores e sedas da família visitante.
Como muitos outros que haviam passado por sua casa desde que os pais lhe
disseram que ela era especial, os Bened tinham cabelos e olhos prateados,
pele pálida e expressões agradavelmente belas, porém vazias, iguais à sua
mãe.
Exceto o menino.
Ulian era mais velho que ela, porém não o suficiente para que a idade
de separação os houvesse alcançado, e, diferentemente dos pais, tinha a pele
azul e os cabelos alvos. Mas o que mais o diferenciava de qualquer belariano
que tivesse conhecido eram os olhos.
Eles ardiam.
Abriam buracos em seu coração cada vez que a miravam mesmo que
de passagem, e o sentimento que brilhava no fundo deles era como um
chamado através do tempo e do espaço. Ecoava entre os ramos das árvores e
os pedúnculos das flores, arraigado no ar que respirava, convocando-a tal
qual a um semelhante.
E Elya viu-se obrigada a responder.
Guiada até a beirada de uma fonte esculpida em cristal, deparou-se
com o menino debruçado sobre as bordas, como se estivesse pronto para
mergulhar, soluçando dolorosa e profundamente. Por mais nova que fosse,
Elya já compreendia que aquela era uma terrível e censurável demonstração
de fraqueza, pois Cília encarregara-se pessoalmente de tal ensinamento.
Fraqueza era imperfeição, e a imperfeição era a ruína de um
belariano.
Recitava a lição mesmo em seus sonhos, porém as lágrimas de Ulian
eram grandes como as gotas da chuva e translúcidas como o beijo do orvalho
que caía ao crepúsculo. Límpidas como a água das fontes que alimentavam
os riachos gorgolejantes onde Lyia à levava para ensinar as palavras duras do
próprio idioma, esperando que a suave correnteza as embalasse. Eram parte
do todo e a linguagem da natureza.
E por isso mesmo em nada lhe pareceram imperfeitas.
Vacilante, se aproximou pela relva, na esperança de que o menino
reconhecesse sua presença, mesmo temendo que ele pedisse que o deixasse
só.
A mãe a advertira sobre aquilo, e as lições dela eram tão duras
quanto a rocha fria na qual Ésper esculpia o coração de seus filhos: ela era a
mais perfeita entre as perfeitas, abençoada pelas Soberanas e regada com o
sangue dos deuses antigos; não deveria jamais se deixar contaminar, pois seu
futuro era também o futuro de Belar.
Entretanto, a uma criança o futuro parecia algo deveras distante, e
sua curiosidade sempre fora o motor de sua alma, motivo pelo qual Elya
simplesmente não foi capaz de evitá-la. Ergueu as mãos para tocar as
lágrimas que escorriam pelas faces do estranho, e as recolheu com a ponta
dos dedos, como se fossem dádivas preciosas.
Ele estava sofrendo, e ela se compadecia. Queria livrá-lo e vê-lo
sorrir.
Foi então que o garoto a olhou verdadeiramente pela primeira vez, e
Elya soube. Não compreendeu, tampouco analisou, conforme sentia-se
atravessada e exposta, pois era pequena demais para tais coisas.
Simplesmente soube, bem lá no fundo, onde sobrevivia o mais
ancestral dos instintos, que Ulian Bened era alguém com quem queria estar.
Para sua infelicidade, entretanto, nem mesmo a mais perfeita entre as
perfeitas provou-se imune ao capricho dos deuses, e Ulian não apenas não
queria estar com ela...
Ele a odiava.
Enquanto Lyia, na cama ao seu lado e com as pontas dos tentáculos
mergulhadas em bacias repletas de água, fazia estranhos barulhos com a
fenda que chamava de boca, Elya suspirou pesarosamente. Não havia
sentimento melhor que o de tê-la de volta em segurança, pois era importante
demais, significava demais.
Mas Lyia não era belariana, nem tinha olhos dourados que a faziam
fraquejar. Era moluscular e molhada; uma criatura das profundezas. E filhos
de Tenar não gostavam de frieza.
Levando os joelhos em direção ao peito, Elya abraçou-se como se
pudesse fazer aquela sensação terrível que a corroía ir embora. Deixou que
as lágrimas descessem livremente e molhassem os lençóis, o que não lhe
trouxe alívio algum.
A quem queria enganar, vitimizando-se?
Era tudo culpa sua.
Havia destruído a si mesma e provavelmente arruinado para sempre a
própria família, apenas por algo tolo e insípido como amor. A despeito das
palavras da mãe e dos próprios sentimentos ingênuos, naquele momento
compreendia que o amor era, de fato, algo volúvel. Um conceito de outrora
que não cabia mais no mundo, e que os belarianos estavam, de fato, melhor
sem ele.
Em algumas noites, também chegava a pensar que o odiava.
Depositava na figura dele toda a sua frustração e tristeza. Toda a sua
decepção. Porém, não tardava a lembrar-se de que ele não carregava
nenhuma culpa, de fato, senão a de ceder aos próprios desejos, uma vez que
havia sido escolha dela roubar uma nave e fugir, procurá-lo, declarar-se e
unir-se a ele em espírito e carne mesmo sem nenhuma garantia de
reciprocidade.
Havia sido escolha dela ir até Colossus determinada a fazê-lo ceder.
A conseguir dele todas aquelas coisas impronunciáveis que tiravam seu sono
à noite e que a faziam arder nas mais insensatas brasas.
Estava claro o preço a pagar.
Tudo arruinado.
Sua reputação. Sua honra. Sua virtude.
Seu coração.
— Elya, você está na órbita de outra estrela?
Ela balançou a cabeça, desviando os olhos da camisa de mangas
esvoaçantes que escorria entre seus dedos, a única outra peça de vestimenta
que possuía em Colossus. Já a havia usado tantas vezes, que o aroma de
Ulian havia se entrelaçado ao seu e, por fim, se perdido para sempre.
Habitava, portanto, apenas dentro dela, em suas mais dolorosas lembranças.
— Desculpe, eu me perdi em pensamentos. — Suspirou, buscando se
recompor. — Do que estávamos falando?
Lyia bufou, exatamente como um belariano faria, e soltou o lençol
que estendia pela cama.
— Eu sei. — Os tentáculos trataram de segurar as mãos de Elya e
enrolaram-se nos antebraços de forma afetuosa; cada ventosa era como um
beijo suave a lhe fazer cócegas. — Mas que bem isso traz, menina teimosa?
Uma lágrima ameaçou irromper, mas Elya a conteve antes que
denunciasse a verdadeira natureza dos pensamentos que a tomavam, apesar
de suspeitar que a implaviana conhecesse-os bem.
— Estou fazendo tudo o que posso.
Já estava cansada de chorar como uma criança tola.
— Vá para o banho e lave suas preocupações — Lyia insistiu,
retomando eficientemente o trabalho de preparar a cama. — Deixe que a
água purifique seu pesar, e sei que vai se sentir um pouco mais aliviada
depois.
Elya sorriu de forma triste e deixou que a amiga a ajudasse a se
despir.
— Isso já a ajudou alguma vez? — quis saber, passando a cabeça
através da longa gola do traje.
— Nenhuma.
— Mas Impla não é um planeta submerso?
— O que posso dizer? — Os tentáculos se agitaram no ar,
expressivos, ao redor da dona. — Acho que minhas preocupações também
eram feitas de água.
Elya rolou os olhos, sentindo uma pontada de divertimento, e,
silenciosamente, agradeceu a existência daquela implaviana insolente e de
pensamento afiado que tornava sua vida um pouco melhor.
— Seus conselhos são os piores, Lyia.
— É por isso que os distribuo a você de graça. Devo cobrar por
melhores?
Sim, talvez devesse, uma vez que não conseguia pensar por qual
motivo a amiga se sujeitaria a uma vida quase de servidão aos Bespian,
quando poderia viver em mundos muito mais amigáveis a estrangeiros.
Não que Belar fosse hostil — o simples pensamento já teria sido uma
afronta a seu povo, tão dado à diplomacia. Mas o planeta da perfeição não
admitia muito bem nada, nem ninguém, que fosse diferente demais. Por isso,
ela sempre se perguntou por qual razão Lyia ainda insistia em acompanhá-la
como uma secretária, quando poderia ser livre e conquistar muito mais em
um lugar que verdadeiramente a valorizasse.
— Você nunca fala sobre si mesma — pontuou, correndo os dedos
pelos longos e dourados cabelos em frente ao pequeno espelho à procura de
algum nó, embora soubesse que não encontraria nenhum.
A expressão da implaviana permaneceu indecifrável.
— E por que eu falaria? Você já tem preocupações demais, caso não
tenha se dado conta.
— Porque gostaria de saber mais sobre a sua vida e seus problemas.
— Minha vida e meus problemas te entediariam, posso garantir.
— Tenho quase certeza de que está mentindo...
— E eu, alguma vez, já menti para você, menina teimosa?
Elya se retraiu um pouco, lembrando-se de que sim, a amiga já havia
mentido para ela naquela viagem.
— Queria ser capaz de dizer que não, em nome do seu ego.
Lyia riu, mas a emoção não chegou aos olhos escuros.
— Assim você realmente me magoa. E a troco de quê?
— Só queria poder ajudá-la com algo, em retribuição ao quanto já
me ajudou.
A amiga deslizou pelo espaço que as separava de forma silenciosa,
talvez esboçando um sorriso.
— Você já fez mais por mim do que imagina.
— Lyia.
— Elya.
— Estou falando muito sério. — Elya suspirou, imaginando que não
teria a menor chance de ganhar aquela discussão. — Nós viemos até aqui e
arriscamos tudo, mas não é justo quando você sempre parece ter mais a
perder.
A implaviana de fato sorriu. A fenda se abriu de forma adorável, e a
feição moluscular e esverdeada reluziu.
— Nada como a superioridade belariana.
— Oh! — Ela levou as mãos ao peito, e apressou-se em fazer um
gesto apaziguador. — Me perdoe, não foi isso que quis dizer...
— Só estou implicando com você, Elya — a amiga apaziguou. —
Não tenho nada a perder, a não ser sua amizade, que para mim é o que de
mais precioso existe. Tudo o que já fiz e ainda virei a fazer foi em nome
desse sentimento, e espero que nunca se esqueça disso.
— Como eu poderia?
— Talvez um dia se sinta tentada. — Lyia pareceu, de repente,
distante e fria. — Agora vá logo se banhar, estou cansada e quero dormir.
Você me exauriu com todos aqueles passeios lá fora, no meio de poeira
mortal, menina teimosa.
Não tão teimosa quanto você, Elya sentiu vontade de responder.
Limitou-se, entretanto, a fechar a porta do lavabo, fazendo o que esperava
ser uma careta.
Quando a água começou a correr, pensou que não seria assim tão
ruim ser lavada de toda aquela angústia. Havia passado dias agradáveis a
bordo da nave belariana que a tempestade temporal trouxera do passado, ou
transformara em uma versão do passado — os detalhes estritamente
científicos ainda eram um tanto quanto confusos —, mas, se fosse honesta
consigo mesma, admitia que sentia falta... De casa.
Pensava nos pais com frequência — principalmente em Tharcius —,
assim como no irmão mais novo, que herdaria a confiança que os belarianos
haviam depositado no primeiro Governador Bespian quando chegasse à
idade certa. E, com ainda mais regularidade, pegava-se pensando no que
teria se passado com eles durante sua ausência: se desesperavam-se por não
saberem onde estava, nem porque havia partido.
Se sua família havia caído em desgraça.
Os jatos da ducha cessaram sob seu comando, e ela deixou que as
gotas corressem pela pele rosada, obedecendo à gravidade. Apenas mais
alguns anoiteceres, dissera-lhe Edon, e estariam em posição para contatar o
Conselho e a Academia.
Apenas mais alguns anoiteceres, e ela saberia o que suas ações
impensadas haviam causado. Poderia pedir perdão. Poderia, ao menos, tentar
começar a explicar. Até lá, no entanto, não havia nada a ser feito a não ser
esperar.
O problema é que Elya Bespian era impaciente.
Assombrada pelas terríveis consequências dos próprios atos, enrolou-
se na toalha macia e abriu a porta, liberando a fumaça aromática que turvava
sua visão para todo o pequeno alojamento.
Quando a névoa roliça desceu, Elya deu-se conta, contudo, que não
era a melhor amiga quem a aguardava, mas um homem alto e esguio de
feições suaves e perfeitas, desenhadas pelas mãos dos deuses.
Sua respiração tornou-se mais curta.
Um homem que desesperadamente queria ser capaz de não amar.
— Perdoe-me, jamais teria entrado se soubesse. — Ulian enrubesceu,
tão desconcertado quanto na primeira vez que a vira nua, na nave, logo após
o acidente. Aquilo parecia ter se passado há tanto tempo... Em outra vida,
talvez. — Mas a srta. Lyia... Bem, ela me disse que já estavam indo se deitar,
me empurrou para dentro e praticamente me trancou aqui.
Elya assentiu, encolhendo-se contra a toalha o tanto quanto pôde,
temendo que a quantidade de pele descoberta expusesse, também, seu
coração despedaçado.
— Parece que você está sempre se desculpando, quando eu mesma
nunca fiz tal coisa — murmurou, mais para si mesma do que para ele.
De um modo que pensara jamais tê-lo visto fazer, Ulian a encarou
com seriedade, sem nada que delatasse a atitude rebelde que empregava
quando estavam juntos. Caía bem na compleição respeitável de homem das
ciências, Elya admitiu com certo embaraço, enquanto sentia a respiração
pesar mais e mais.
— Elya, eu...
Ao som de seu nome, ela sorriu. Simplesmente viu-se incapaz de
evitar, tampouco de censurar a tola esperança que florescera entre os
estilhaços em seu peito assim que as sílabas foram articuladas não como um
segredo, como tantas vezes já o havia visto fazer, nem na forma de uma
prece, como em meio ao torpor do doce sofrimento que compartilharam
entre aquelas mesmas paredes.
Mas como uma súplica.
E aquilo a destruiu.
Sempre houvera algo faltando dentro dela, um espaço que nada nem
ninguém fora capaz de preencher, com exceção de Ulian, que o integrava
sem parecer fazer qualquer esforço, como se o detivesse por direito.
Como se uma parte dela fosse dele.
Fosse ele.
— Me perdoe — Elya pegou-se dizendo, incapaz de controlar as
palavras enquanto a faziam desabar sobre si mesma.
Não planejara aquilo, embora houvesse imaginado muitas vezes qual
efeito um pedido de desculpas teria. A despeito de qualquer expectativa,
entretanto, o pedido que lhe deixara com um gosto amargo nos lábios era
fruto de seu mais profundo desespero, e não esperava conseguir nada com
ele a não ser aliviar um pouco a própria consciência.
Por um instante, que pareceu durar muito mais que uma eternidade
distorcida pelo buraco negro que orbitavam, nada se ouviu dentro do
aposento. O silêncio acomodou-se em cada um dos ângulos perfeitos e
suaves das paredes, deitou-se na cama há pouco arrumada e ali fez morada.
Quando Elya já estava convencida de que sua humilhação não
poderia ser pior, escutou um passo, depois outro, aproximando-se. Na
duração de uma batida descompassada de seu coração, Ulian ajoelhou-se e,
com a pouca distância entre eles, sua pele eriçou-se, reconhecendo a atração
gravada à fogo no fundo da alma.
— Não guardo esperanças de que nada mais aconteça entre nós, por
isso não quero que pense que esse é o motivo do meu pedido — Elya
prosseguiu, temendo que ele se afastasse e partisse a qualquer momento, sem
ouvir tudo o que tinha para confessar. — Minhas ações foram egoístas;
pensei apenas na desgraça de minha família e de meu sobrenome, mas
jamais pensei que você se sentiria uma vítima das minhas maquinações.
Então por isso, Ulian, me perdoe.
Ali estava toda a verdade, enfim.
Ela o amava, mas o usara como um instrumento e, além das
lembranças, restara-lhe apenas a vergonha.
— Eu não poderia perdoá-la — ele respondeu com um tom baixo e
melancólico.
Naquele instante, ela realmente sentiu o coração parar de bater. Uma
besta invencível irrompeu de seu peito e a devorou sob o peso de um amor
não correspondido, mais destrutivo que qualquer arma já inventada.
Elya curvou-se, entregue à dor que a tocava com a gentileza de um
amigo, ao revés da esperada cólera de um rival. Foi embalada com ternura
em braços descarnados, como se demonstrasse que sabia bem qual era o
sentimento e em quais partes ele a quebrava e lacerava.
Soluços irromperam de seu peito como espinhos, florescendo em
pétalas feias e putrefatas, e ela foi arrastada para o centro de uma tormenta
monstruosa que destruiria tudo. Mas antes que pudesse se afundar no
turbilhão, uma mão tocou sua cintura, devolvendo o calor de Tenar para sua
fibra e, principalmente, para sua alma.
Ele a fez lembrar-se de quem era e, principalmente, do que era feita.
— Não poderia perdoá-la, quando quem deve ser perdoado sou eu —
sussurrou Ulian, como se as palavras pesassem nos lábios macios e
adocicados.
Um tremor percorreu o corpo de Elya, que sentiu os espinhos
recolherem-se enquanto o toque a trazia mais e mais para perto de si mesma.
— Em meu individualismo, tudo enxerguei e ouvi; tudo planejei,
menos você — ele prosseguiu. — Mas antes que decida se pode me perdoar,
tenho algo a contar. Receio que me abomine ainda mais depois que souber
que sou uma vergonha e, certamente, indigno do seu amor.
Não havia para onde fugir, senão mais para dentro do incêndio.

Ambos se acomodaram sobre o colchão, distantes o bastante para


indicar que a intimidade que outrora compartilharam deveria ser ignorada,
não em nome de qualquer tradição belariana, mas do bem recíproco.
Ulian estava recostado à cabeceira, e, conforme Elya o estudava,
tornou-se mais evidente a apatia que, de alguma forma, perturbava o estado
nato de perfeição. Os cachos dourados ainda se avolumavam, enquadrando o
rosto anguloso, e os brincos tilintavam nas orelhas ao menor dos
movimentos. A camisa branca que envolvia o peitoral, entretanto, estava
levemente amarrotada, coisa que um belariano jamais admitiria, e os olhos
pareciam inchados, cansados demais para se manterem abertos.
Ela não pôde deixar de notar que aquela vulnerabilidade, tão honesta,
era a coisa mais bela e amável que já havia presenciado, pois aquilo era
Ulian.
Não o rebelde, nem o cientista — personagens que assumia.
Mas o verdadeiro Ulian Bened, que havia se despido de tudo para
mostrar-lhe a alma pela primeira vez.
— Você se lembra do dia em que nos conhecemos? — ele perguntou
de repente, com a atenção transitando entre as próprias mãos e as luzes
artificiais que deixavam o ambiente preguiçosamente na penumbra,
induzindo-os ao sono.
— É claro. — Queria poder admitir que vinha rememorando aquele
momento desesperadamente. — Você estava na fonte, chorando.
Ao seu lado, ele se remexeu e, quase imperceptivelmente, chegou
mais perto.
— E você secou minhas lágrimas.
Os lábios dele contraíram-se em um sorriso pesaroso, e logo a mesma
mão que Elya tão insistentemente encarava foi erguida no ar, atravessando o
espaço entre eles. Os dedos esticaram-se, como para alcançar o impossível, e
depositaram-se sobre as maçãs do rosto dela, em uma carícia delicada e
suave.
Seu coração se descompassou. Elya desceu as pestanas, dedicando-se
apenas a sentir aquele tão ansiado toque, e concordou com a cabeça
lentamente, aproveitando cada pequeno ponto de contato.
— Por quê? — A voz dele era baixa e harmoniosa; uma carícia por si
só.
Não importava.
Nada importava, senão aqueles dedos e aquela mão.
— Fiquei... Curiosa. — Deteve-se, aprofundando mais os
pensamentos. — Você estava chorando, e eu não sabia por quê. Não sabia
que sentimento era aquele, mas não parecia bom e, de alguma forma, eu
queria tirá-lo de você.
A respiração tranquila de Ulian silenciou, quando ele prendeu o
fôlego, e logo os dedos transformaram-se em uma palma completa que
envolvia seu rosto de maneira familiar.
— Elya, querida. — Ele inclinou-se e, sem aviso, recostou a testa na
sua.
Suas respirações entrelaçaram-se, e o ar foi invadido pelo aroma
profundo que a fazia revirar-se na cama.
— Seu coração é gentil, mas jamais poderia me libertar dessa dor.
A confissão saiu fluída e sem esforço, como se ele já houvesse
repetido aquelas palavras para si mesmo diversas vezes, e Elya não foi mais
capaz de sustentar a distância. Aproximou-se de corpo inteiro, afundando-se
no espaço entre o pescoço e os ombros dele que, de algum modo, pareciam
ter sido esculpidos para se encaixar nos contornos dela. Inspirou
profundamente, sentindo os botões e a relva a envolverem.
Sentindo-se em casa.
— O que aconteceu naquele dia? — questionou, mergulhando nos
olhos de ouro puro, como se pudessem lhe dar a resposta que buscava.
Sob seu toque, Ulian pareceu libertar-se das barreiras que havia
erguido dentro de si mesmo, completamente exposto. As írises preciosas
esfriaram, ganhando tons opacos, e pelas bochechas derramaram-se lágrimas
vítreas como diamantes. Então, embalado em seus braços, ele soluçou como
se houvesse sido ferido a ferro e fogo, e as cicatrizes ainda sangrassem em
dourado.
Não era uma ideia à qual Elya estivesse acostumada, pois, no planeta
da perfeição, palavras não ditas e sentimentos guardados eram as únicas
armas que alguém poderia brandir; contudo, quanto mais forte o abraçava,
mais sentia os cortes e lacerações, os cacos que, após tanto tempo fincados
no coração, transformaram-no em algo afiado.
— Eu já tive uma irmã — ele enfim sussurrou, tão baixo que ela
quase não o compreendeu. — Chamava-se Alicia, mas você não saberia
disso, pois fui o único que lhe deu um nome e que a reconheceu como uma
Bened.
Elya, de fato, jamais soubera daquilo, tampouco lembrava-se de já ter
ouvido o nome Alicia associado à genealogia dos Bened, que era tão pública
quanto a de qualquer outra família belariana.
— Mas nos registros...
— Os registros mentem. — Uma afirmação direta, cheia de
acusação. — Todos em Belar são mentirosos, de uma forma ou de outra.
O tom dele estava carregado não com dor e tristeza, sentimentos que
ela conhecia bem, mas com algo mais visceral e obscuro, capaz de começar
e manter guerras. Uma doença que contaminava de forma silenciosa e que
precisava apenas de um hospedeiro para propagar-se nas sílabas de um
sussurro ou na mira de um olhar...
Ódio.
— O que houve com ela? — perguntou, arrependendo-se assim que
Ulian abriu um sorriso frio e distante que não possuía qualquer vestígio de
felicidade.
— Meus pais descumpriram a tradição, e durante toda a gravidez
minha mãe se escondeu da vergonha de ter concebido fora do período
sagrado. Não pude vê-la, e em determinado momento quase me
convenceram de que tinha imaginado tudo. De que ela não estava grávida,
apenas muito doente — cuspiu e, por debaixo dos dedos, ela sentiu os
músculos dele se retesarem e tornarem rocha sólida. — Não sei quantas
outras mentiras esperavam contar para enganar os registros e explicar a
incongruência de datas, mas minha irmãzinha decidiu nascer cedo demais,
e... — Ele pareceu engasgado. O corpo todo tremia, os olhos estavam
arregalados. — Ela não era perfeita, então eles... Eles...
Elya o mirou no fundo dos olhos, surpresa com a súbita sensação de
enjoo que a tomava conforme a compreensão do que ele estava tentando
dizer assomava.
— Ulian — foi tudo o que se viu capaz de pronunciar enquanto o
abraçava ainda mais forte, segurando os próprios soluços para não
atormentá-lo. Piscou, sentindo as lágrimas frias descerem. — Pelas
Soberanas, eu sinto muito.
E de fato, sentia.
Por cada folha da árvore sagrada derrubada em resposta a um de seus
pedidos tolos e por cada sopro e cada brisa roubados por seu título, ela sentia
muito. Por ser a mais perfeita entre as perfeitas, o futuro, e ainda estar tão
cega para o mundo que verdadeiramente a cercava.
Diferentemente de muitas outras culturas, a morte em Belar não
envolvia sepulturas, velórios ou cerimônias fúnebres, muito menos tristeza.
Como estrelas, belarianos viviam até que se apagassem, devolvidos para a
matéria da qual tudo havia sido feito na forma de cintilas.
O que Ulian tentava lhe contar sobre a própria família era, portanto,
um crime indescritível e abominável. Uma chaga à sociedade e uma afronta
aos deuses antigos; verdadeira violação aos princípios mais primordiais que
instituíam o que era ser...
Pensante. Vivo.
Humano.
E os Bened o fizeram.
Não por ameaça, nem por necessidade.
Mas por vaidade.
— Sou um filho de assassinos, e o sangue mancha minhas mãos e
minha herança. — Ele mostrou as palmas, como se pudesse enxergar a
mácula na própria pele. — Esse sangue me seguirá aonde eu for, destruirá
tudo o que eu tocar. Você entende agora?
Elya assentiu.
— Não pude ajudá-la. Não sabia como, eu era só uma criança — ele
prosseguiu, como se retornasse ao passado. — Meus pais ordenaram meu
silêncio, e eu temia as consequências de desagradá-los. Quem acreditaria em
mim?
— Naquela noite, na fonte...
Não foi capaz de concluir a pergunta, mas ele a entendeu.
Sempre entendia.
— Eu chorava por ela — confirmou. — Alguém precisava chorar.
Ainda choro.
— Sinto muito por Alicia.
Era tudo o que podia dizer.
Ulian fungou e a puxou ainda mais para perto, diminuindo a distância
entre seus lábios até que se tocassem, e foi melancólico e doce.
Cília o chamara de fraco, quando enfim os encontrou no jardim e
ordenou que retornassem para dentro, naquela noite há tantos ciclos.
Ulian Bened, entretanto, nunca fora tal coisa.
Ulian estava deitado, encolhido em si mesmo, e quando Elya apurou
os sentidos foi capaz de notar os tremores que, esporadicamente, tomavam
de assalto o corpo esguio e interrompiam a respiração ritmada,
desestabilizando a inércia que os mantinha presos à cama.
— Você está dormindo? — ouviu ele sussurrar.
Por baixo dos lençóis, seus braços o alcançaram, e ela se achegou,
envolvendo-o como uma barreira, um escudo capaz de protegê-lo de tudo: de
Belar, do Conselho Conubial e da própria dor.
— Não consigo — confessou. — Fico pensando no que me disse
mais cedo.
Lentamente, porém sem se afastar da carícia, ele se virou até que
seus olhos se encontrassem na penumbra. O brilho de lágrimas presas nos
longos cílios era perceptível, e ela aproximou-se para beijá-las muito
delicadamente, reconhecendo a tristeza.
— Talvez tenha sido um erro envolvê-la nisso. — Os braços dele
também a enlaçaram, e no ponto de contato floresceu um ramo, depois outro,
depois mais um, até nascer todo um campo. — Mas eu não... — Um suspiro
entrecortado e trêmulo; inseguro. — Não quero mais estar sozinho, Elya.
Ela sorriu, sentindo o coração bater tão forte, que ameaçava escapar
pela garganta: também não queria.
Isso era egoísmo?
— Quando disse que o amava, não estava sendo leviana. — Fez
questão de rememorar, aproximando os dedos dos cachos. Envolveu-os,
sentindo a textura sedosa. — Mas entendo tudo o que me contou e entendo
que relacionar-se comigo depois do que aconteceu pode ser quase...
Não foi capaz de complementar a frase, entretanto, pois os lábios
dele tocaram os seus, abrindo-os com toda a delicadeza suave e pacífica que
ainda não haviam tido a chance de compartilhar.
Ela recebeu a língua quente dele, que derramou-se por sua garganta
com o mais doce dos néctares e o sal do pranto, profundo como um oceano,
antes de devolver o beijo com meiguice.
— Eu a amo desde aquela noite na fonte, embora fosse pequeno
demais para compreender — Ulian murmurou junto ao seus lábios, traçando
círculos em suas costas como se calculasse os mistérios do universo. O calor
dele fundiu-se ao seu, relaxando cada terminação, dissolvendo cada
preocupação. — E se não fosse por você, Elya Bespian, jamais teria sido
capaz de suportar os ciclos em Belar. Perdoe-me.
— Ulian...
Ela tentou falar, mas a complexidade dos sentimentos que dançavam
sob o olhar dele a calou.
— Perdoe-me, Elya, pois sem você as estrelas não queimam — ele
prosseguiu, impondo o corpo grande mais para perto, de modo que já não era
mais possível saber onde começava um e terminava o outro. — Jamais serei
digno de você, mas permita-me tentar ser o que precisa e o que merece.
Permita-me amá-la como sempre quis ser amada, até que os astros se
desprendam do firmamento e as Soberanas nos reclamem.
Ela o apertou contra si, sentindo a fusão de duas almas que, outrora
metades, haviam enfim encontrado a completude.
Não o recusaria jamais, qualquer que fosse a realidade ou o tempo.
Contudo, não compreendia como podiam ficar juntos quando ela era a mais
perfeita entre as perfeitas e, consequentemente, a representação de tudo o
que ele mais abominava depois do que fizeram a Alicia.
Ela própria se abominava, às vezes.
— Você tentou proteger seu coração, e por isso não é certo que peça
perdão. — Seu peito comprimiu-se, e o ar faltou. — Mas agora preciso ser
sincera e dizer que devo proteger o meu. Sabe que tenho de voltar a Belar.
Lá é meu lugar, enquanto o que temos aqui é só... Ilusão.
Ulian assentiu, e a verdade cravou-se como espinhos em ambos.
— Não escolhi o título que me impuseram e não conheço quem me
condenou a esse destino, mas nem mesmo depois de ouvir as coisas que me
contou posso renegar Belar. — Ela se perdeu entre os anseios e as
esperanças do próprio coração, envergonhada por compartilhá-los com
alguém pela primeira vez. Temeu que ele a achasse tola ou, muito pior,
ingênua. — Sempre disseram que eu era o futuro, e imaginei que em algum
momento esse futuro me encontraria. Agora, cada vez mais me pego
pensando que, talvez, ele tenha estado dentro de mim o tempo todo.
A expressão dele se enrijeceu por um breve momento, e Elya quase
pôde ouvir o barulho da mente incomparável de cientista trabalhando.
Qualquer que tenha sido o caminho pelo qual os pensamentos o levaram,
entretanto, escolheu não compartilhá-lo.
— A verdade é que não me importo com o Conselho, com as
tradições ou com o título — Ulian disse, por fim. Os dedos dele correram e
entrelaçaram-se em seus cabelos. — Fiz uma promessa, mas não posso mais
mentir sobre o que sinto. — Um suspiro. — Minha devoção entrego a você,
Elya Bespian, e somente a você. Faça com ela o que quiser. Destrua-me, se
quiser. Mas nunca mais se afaste de mim.
Ela não percebeu que estava chorando quando o abraçou, nem
quando percorreu, com os dedos inexperientes, cada traço, músculo, monte e
vala, motivada por um desejo incontrolável de tê-lo inteiro para si e gravar
os caminhos daquele corpo na própria alma.
Ulian, entretanto, segurou suas mãos, como se executasse um passo
de dança. Quadris se achegaram em sincronia perfeita, combinação
fulminante, e logo ficou claro que o ritmo que os unia era muito antigo, um
instinto reservado apenas aos animais, dos quais os belarianos tentavam tão
insistentemente se afastar, mas para os quais retornavam sempre que uma
pequena chama encontrava uma forma de vingar entre os corações
abençoados pelas Soberanas.
Pois para cada filho de Ésper, sempre haveria um filho de Tenar
disposto a queimar. E eles dois incendiariam o mundo, se pudessem.
Os lábios dele foram umedecidos com a ponta da língua, e a pouca
distância que ainda os separava tornou-se insuportável.
— Diga-me o que você quer, Bespian — sussurrou.
O tom rouco a fez ruborizar, e o calor que os fazia arder subiu através
da pele e da carne, incendiando.
— Ah, Bened, eu quero tantas coisas — encontrou forças para
responder, como se estivesse de volta aos salões de baile, na mira de muitos
olhares e aquilo não passasse de um jogo.
— Então me conte sobre o seu mais insensato desejo — ele pediu,
imprimindo em cada palavra uma intenção, ou um desafio, que a fez arfar.
As pernas tremeram com o significado não anunciado daquele pedido.
Elya sempre desejara dizer muito mais a Ulian do que as tradições,
ou o decoro belariano, permitiam. Seus pensamentos, caso fossem tornados
públicos, a condenariam à indecência.
— Quero que me tome nos seus braços e nunca mais me solte —
murmurou, lembrando a si mesma de que ali era Colossus. Longe, muito
longe, das regras que a sociedade outrora ditara para uma dama. — Quero
que sejamos um — prosseguiu, consciente de que olhos dourados a
devoravam pedaço a pedaço.
— Façamos do jeito certo — Ulian disse.
Ele a acomodou no próprio colo, e Elya tomou consciência de cada
ponto de contato. Da maciez da camisa esvoaçante que a cobria, do leve
arrepio que perpassou as coxas quando ele as tocou com a ponta dos dedos e
da maneira como ambos se encaixavam tão bem.
Sempre pensara que as írises dele eram janelas a mostrar belezas
desconhecidas que o mundo real guardava, longe da perfeição mantida com
sofrimento — e com sangue — em seu planeta natal, e por muito tempo Elya
fora feliz apenas contemplando-as atrás das esquadrias.
Naquele momento, entretanto, dera-se conta de que ele era a própria
imensidão desvelada. As supernovas e as nebulosas, cada estrela que já
queimara e se apagara.
— Eu a aceito e me entrego — o ouviu pronunciar sem aviso, com
toda a reverência de quem compreendia o significado ancestral das palavras
e o poder que possuíam de ligar duas vidas para todo o sempre. — Que as
Soberanas testemunhem nossa união, Elya Bespian, pois eu sou seu por toda
a eternidade. Não temo mais, não enquanto você segurar minha mão.
Mãos grandes e azuladas foram estendidas em sua direção.
Um convite.
Uma promessa.
Uma profecia.
Elya ficou confusa por um momento, mas por fim entendeu o que ele
queria e o presente que oferecia sem nada pedir em troca. Tremeu, com
medo de finalmente encontrar-se diante de seu maior anseio, porém, quando
seus dedos se entrelaçaram aos dele, reconheceu o decreto do Conselho
Conubial.
Então ele a beijou e, com vontade, a engoliu. A mergulhou em um
mar de fogo quando a tocou, iniciando um incêndio, e Elya nada pôde fazer,
senão pedir por mais.
Sua crença havia sido substituída, transformada em uma fé que não
se confiava a deuses, tampouco a ídolos. Era a fé que os indivíduos
escolhiam depositar uns nos outros, livremente e sem qualquer obrigação.
A fé dos imperfeitos.
— Somos um agora — completou, enquanto seus lábios se
encontravam e marcavam o nascimento de uma nova estrela no firmamento,
brilhante e massiva, e que jamais deixaria de queimar.
A esta fé, alguns chamariam de amor.
Pela manhã, Elya deixou o alojamento ao lado de Ulian. Sorrisos
cúmplices dançavam em seus lábios corados, e as mãos estavam próximas o
bastante para que os dedos quase se tocassem sem motivo, muito embora ela
bem soubesse onde os seus queriam estar.
Para sua surpresa e vergonha, entretanto, Lyia e Edon os esperavam
bem na curva do corredor, bloqueando o caminho, e a expressão nos rostos
deles denunciou que sabiam muito bem o que havia acontecido dentro das
paredes do alojamento.
— Graças a todos os deuses, novos e antigos, seus e meus, vocês
teimosos cederam ao instinto animal! — Lyia exclamou, erguendo aos céus
alguns dos pequenos tentáculos de modo terrivelmente teatral. A fenda
curvou-se em um sorriso evidente, cheio de malícia, e Elya sentiu o
estômago revirar.
— Não nos envergonhe assim — pediu, entredentes, separando-se de
Ulian alguns passos, enquanto as pernas tremiam sobre os saltos finos dos
sapatos.
Os brincos de Ulian tilintaram quando ele encarou os próprios pés
dentro das botas da expedição, e as bochechas e o pescoço exposto
esquentavam.
Era adorável, e ela o beijaria ali mesmo, se pudesse.
— Vejo que estão se dando bem — Ulian desconversou, com um
aceno de cabeça em direção ao quaarsariano, que estava escorado nas
paredes limpando as próprias unhas.
Edon ergueu os olhos escuros e sem írises, e sorriu da mesma
maneira alienígena que a Implaviana havia acabado de fazer: uma
constatação maldosa de presas afiadas que pareciam saborear uma presa
dócil e ingênua.
— Não tanto quanto vocês, obviamente. — Ele se desencostou da
parede, os ombros largos como grandes montanhas alaranjadas, e
espreguiçou o corpo. — Mas tivemos que unir forças para passar o tempo,
considerando que vocês, nossos amigos, sempre pareciam muito ocupados
lidando com desejo reprimido...
Lyia deixou o riso escapar, falhando miseravelmente em ser uma boa
amiga e secretária, e o quaarsariano a acompanhou. As gargalhadas
uníssonas logo preencheram o pequeno corredor com uma cacofonia gutural
e aquosa que quase chegava a ser melódica.
— Belarianos — a implaviana disse, agitando os tentáculos como se
fizesse uma piada cuja compreensão escapava a Elya e Ulian, perfeitos
exemplares de sua espécie.
Elya, no entanto, conhecia muito bem o humor ácido de sua melhor
amiga e tratou de dirigir a ela um olhar rígido que sinalizava sua vergonha e
descontentamento.
— Francamente, Edon — Ulian censurou o próprio amigo, cerrando
as mãos em punho. — Seu respeito por mim já se perdeu há muito tempo,
mas, por Elya, tenha um pouco de consideração.
— Por Elya, apenas — ele respondeu, não parecendo nem um pouco
arrependido. — Agora, se você já tiver encerrado suas “atividades pessoais”,
temos muito a fazer hoje. As leituras da noite chegaram e, pelo que pude ver,
estão excelentes.
Ulian endireitou a postura, e a feição dele suavizou e ficou mais
séria, mais solene. Os traços do rebelde, do amigo e do amante
desapareceram, substituídos por uma compleição circunspecta ilegível. Era o
cientista, o desbravador, e Elya o amou com ainda mais intensidade ao
perceber que ele tinha um propósito e o aceitava sem embaraços.
Qual seria o seu? Perguntou-se, em silêncio. Não podia acreditar que
era simplesmente ser o futuro, como dizia a profecia; afinal, o futuro jamais
poderia ser determinado pelas ações de um único indivíduo.
— Preciso do máximo de medições possíveis antes que a nova
tempestade chegue — ele falou, mais para si mesmo do que para os outros, a
conjecturar. — A fórmula ainda não está estável apenas com o que temos.
Os dois colegas se aproximaram, esquecendo a discussão leve de
antes. Alisaram as roupas, e Ulian removeu alguns grãos de poeira invisíveis
dos ombros, como se o fizessem ser menos assertivo. Podia tentar não ser
perfeito, porém a perfeição se agarrava a ele como um hábito.
— Isso significa que vão passar o dia todo fora? — Elya perguntou,
ansiosa, juntando as mãos na frente do corpo.
Sabia que, em meio àquela complexa expedição, não passava de uma
intrusa e que, portanto, jamais deveria ser preferida em presença ou atenção
quando comparada a assuntos científicos e profissionais. No entanto, seu
coração não poderia deixar de ficar ansioso.
Ulian retrocedeu alguns passos e, à sua frente, cada traço do rosto
perfeito se acomodou em uma expressão que não era nem um pouco
condescendente, mas apenas amorosa. Com a ponta dos dedos, tocou o
queixo dela, e Elya imaginou que se perderia na carícia enquanto o próprio
rosto era erguido.
Era com aquela devoção que ele a mirava todas as vezes, mesmo em
Belar?
Como pôde jamais ter percebido o carinho e pensado que ele não a
amava?
Tola. Tola. Tola.
— Se eu pudesse, a levaria comigo e ditaria o nome de cada estrela
que ainda resiste ao avanço de Cronos. Contaria sobre esse sistema e a força
da supernova que o engoliu. — As sobrancelhas douradas suavizaram a
expressão séria, que se tornou terna e sonhadora. — Mas esse satélite é
hostil, e vamos trabalhar com maquinário pesado, por isso preciso que fique
segura. Aqui.
— É claro, não se preocupe comigo, ficarei bem aqui com Lyia —
garantiu, com toda a doçura que pôde reunir dentro de si, completamente
envolvida no próprio afeto. — E estarei esperando quando retornar.
Ele sorriu e os olhos de ouro relampejaram uma fome que a fez
queimar. Em seguida, com uma reverência, começou a se afastar ao lado de
Edon.
— Oh, esperem! — ela pediu, lembrando-se de algo relevante demais
para esperar até o final do dia. — E sobre nosso contato com Belar, Edon?
— quis saber, reluzente de expectativa. — Já alinhamos a trajetória?
Não durou mais que um instante, e o movimento lhe teria passado
despercebido se não fosse o fato de que Ulian sempre evitava encarar Lyia,
como uma criança assustada faria com um adulto severo, porém notou
quando eles trocaram um olhar silencioso e desconfortável, comunicando-se
no cruzamento como se falassem idiomas distintos e, ainda assim, pudessem
se entender.
— Ao amanhecer... — Edon começou a dizer.
— Antes de pensar em falar com Belar, nós temos que conversar
sobre algumas coisas — a implaviana interrompeu, movendo o corpo
moluscular mais para perto. As feições dela ainda estavam ilegíveis, um
mistério que apenas a água saberia resolver.
— Ah...
— Sabe? Aquelas coisas...
Elya assentiu, compreendendo só em parte o que de implícito havia
na frase. Era evidente que precisavam conversar sobre Ulian, a combinação
e o casamento. E, principalmente, precisavam conversar sobre o que havia
acontecido no alojamento ao longo da noite e o que havia mudado na
situação anteriormente exposta.
Ela tinha selado a combinação, afinal. Proferido as palavras e se
entregado. Estava casada.
— É claro — falou, deixando que os cientistas desaparecessem na
curva de um corredor, gravando na memória o exato momento em que Ulian
se virou e acenou de modo acanhado. — Aposto que daria tudo pelos
detalhes sórdidos.
Lyia sorriu em uma careta adorável.
— Elya Bespian, você me conhece bem até demais.

A base da expedição era uma construção sólida e graciosa, como


tudo o que os belarianos erguiam, não com as próprias mãos, mas com suas
mentes capazes de conceber o impossível e materializar o belo, conceito
quase tão insípido quanto a perfeição.
Apesar das paredes de liga metálica que barravam até mesmo a fúria
de tempestades, havia um lugar onde a densidade dos materiais perdia-se em
meio à transparência dos cristais, e uma única e solitária janela se impunha,
não como um ponto vulnerável, porém como um lembrete: a hostilidade se
dobrava à perseverança.
Encarando a paisagem árida através da janela, Elya sorriu diante do
céu que se adiantava para além do deserto e dos grandes veículos e máquinas
de escavação. Embora a poeira rodopiasse incessantemente, o céu de
Colossus era um presente para aqueles que ousavam mirá-lo. Tudo era
ametista, denso e pontilhado por estrelas e, bem no meio delas, uma boca
imensa e faminta se erguia.
— Pensei que tivéssemos vindo até aqui para conversar — Lyia
disse, acompanhando seu olhar distante até a órbita de Essiclan, que aparecia
repleto de redemoinhos no horizonte. — Mas já estamos olhando por essa
janela há um bom tempo. É um jogo? Devemos começar a nos encarar agora
e ver quem pisca primeiro?
Elya deu de ombros.
— Tem algum lugar melhor para ir? — Indicou as dunas do lado de
fora.
A amiga sorriu, reconhecendo a inteligência da resposta.
— Você acredita que eu realmente seja a mais perfeita entre as
perfeitas, Lyia? — Elya questionou, acomodando-se no banco bem abaixo da
janela e dando as costas para a vista externa. À sua frente, prateleiras
repletas de plantas em crescimento surgiram, com lâmpadas simulando a
radiação de uma estrela. Estavam na estufa. — Acredita de verdade nessa
profecia?
A expressão da implaviana transformou-se em uma máscara
impassível. Em seguida, ela ocupou o lugar ao seu lado, com os tentáculos
inquietos agarrando-se a tudo que alcançavam.
— Por que pergunta uma coisa dessas?
Elya suspirou.
— Fui criada para ser o futuro, como se os desígnios já houvessem
sido escritos pelos deuses e eu devesse apenas seguir o caminho que as letras
traçaram na rocha. Seguir o destino. — Os dedos se contraíram, agarrando o
tecido da própria roupa. — Mas se eu realmente sou o futuro, não caberia a
mim tentar fazer algo diferente? Tentar fazer a diferença?
Um longo instante de silêncio recaiu profundamente sobre elas.
— Futuro e destino são diferentes — disse a melhor amiga, a voz não
passando de um sopro. — O destino é sina, mas também é acaso. Podemos
mudá-lo, se quisermos, pois ele reside em cada pequeno gesto e momento. É
seu, para fazer o que quiser. — Ela se interrompeu, voltando os três olhos
negros em sua direção, como se quisesse dizer mais. — Mas o futuro, Elya...
O futuro pertence ao Tempo, e ele não para nem muda de direção por
ninguém. Sempre adiante, sempre em frente. O futuro não se dobra.
Elya a observou com atenção, correndo os olhos por cada detalhe,
desde os traços lisos do rosto moluscular ao corpo esverdeado e os
tentáculos dispersos. Lyia era um enigma.
— As coisas estão erradas — Elya falou, como se aquela constatação
jorrasse de seu peito e não houvesse mais forma de estancá-la. — Aqui, tão
longe de Belar, finalmente sou capaz de enxergar e não posso aceitar esse
futuro que não se dobra. Pelo menos, não pelo caminho que nos leva. —
Ergueu-se, em um impulso de fúria e cansaço amargo. — A perfeição... —
As palavras pesaram em sua boca e quase a afundaram. — A perfeição é um
erro.
Os olhos de Elya arregalaram-se ao ouvir em alto e bom som a
própria confissão, que por tanto tempo havia carregado, e levou as mãos aos
lábios, tocando-os com a ponta dos dedos, como se esperasse que um veneno
cruel os corroesse pela ousadia.
Ela sabia — sempre soubera —, contudo jamais tivera a coragem de
se impor.
Pelas tradições.
Pelo decoro.
Pela honra.
Jamais ousara sequer pensar no assunto por muito tempo, com medo
de que suas conjecturas fossem descobertas, uma vez que não havia
nenhuma outra opção, a não ser o que diziam e interpretar aquele papel.
No entanto, Elya já não tinha mais medo.
Percebera que seu temor havia perdido a força no instante em que
roubaram a nave e partiram, cortando o tecido do espaço que mantinha os
astros juntos. Desaparecera nos braços de Ulian, quando se tornaram um
para todo o sempre.
A inércia não a prendia mais na escuridão.
— Fico feliz que tenha, enfim, percebido — foi tudo o que a
implaviana disse, soando cansada, como se houvesse chegado ao fim de uma
longa jornada. — Mas cuidado: não adentre a boa noite apenas com
ternura[1]. Seu coração gentil é sua arma, porém também será sua perdição.
— Não compreendo como a gentileza poderia ser algo ruim.
Os tentáculos se enrolaram em seus braços, trazendo-a mais para
perto com uma força que jamais vira a melhor amiga exibir — poderiam
partir ossos.
— Poucos desejarão mudança, quando o mundo em que vivem
parece tão bom.
— Você está querendo dizer... — Seus músculos retraíram-se, e o
orgulho belariano logo apareceu, ferido pela insinuação de violência.
— Você sempre foi o que queriam que fosse, e temo pela sua
bondade se ela a transformar em algo novo e inesperado, em algo que não
gostarão de encarar.
Um suspiro profundo.
— Sangue foi derramado em nome da perfeição — Elya confessou,
unindo as mãos delicadamente junto ao peito, que doía com o conhecimento
sobre o destino de Alicia. — A terra foi manchada, e as pessoas se tornaram
monstros feios e horríveis por baixo dos olhos brilhantes. Como alguém
decente e digno poderia tomar conhecimento de algo desse tipo e ainda
aceitar as tradições que nos empurram para o abismo? Se esse é o futuro,
então eu não o quero.
Lágrimas desceram por sua fronte, e a melhor amiga as secou com
habilidade, já acostumada às suas demonstrações de emoção.
— Toda essa história de mudança e perfeição tem algo a ver com
Ulian Bened, por acaso? Você mudou.
Lentamente, Elya assentiu.
— Aconteceu algo, no passado, que fez com que ele jurasse jamais
aceitar uma combinação do Conselho Conubial, ou se casar apenas para
perpetuar a perfeição belariana. Foi por isso que ele... Me rejeitou.
— E é por ele que você quer mudanças?
A pergunta a deixou surpresa, e Elya precisou mergulhar
profundamente em si mesma para, enfim, compreender que Ulian não era a
causa de nenhum efeito, apenas o catalizador.
Marcada para ser a mais perfeita entre as perfeitas, jamais houve um
só anoitecer em que não tivesse se perguntado por que, afinal, as Soberanas
e os deuses antigos a haviam escolhido. Por que ela, entre tantos?
A despeito da aparência, seu interior era tão quebradiço e temeroso
quanto o de qualquer um, e a ignorância e o egoísmo constantemente a
corroíam, coisa que jamais se esperaria daquela que nasceu para instituir
novos padrões.
O que ela tinha de diferente, então?
Era apenas uma menina tola, acostumada a ter tudo o que queria.
Alicia merecia justiça, e o coração de Ulian merecia descanso,
contudo, seus desejos não dependiam da história ou dos crimes dos Bened.
Eram maiores. Muito maiores.
A perfeição era um erro, e se ela nascera para trazer o futuro, era
então seu dever garantir que ninguém mais o cometesse.
— Sabe, você não respondeu a minha pergunta. — Encarou Lyia
com intensidade, desejando ser capaz de ler as írises escuras que lhe
devolveram a atenção. — Você acredita que eu seja a mais perfeita entre as
perfeitas? Acredita que eu seja aquela que trará o futuro? Que uma coisa
dessas realmente exista?
Nada além de um instante se passou antes que a implaviana
assentisse:
— Eu fui a primeira a acreditar.
Ulian havia retornado do turno de escavação muito empolgado,
envolto em uma grossa camada de poeira vermelha, e contou a Elya que
estavam cada vez mais perto de descobrir os segredos que se escondiam
naquela lua. Até mesmo mostrou-lhe um esboço da equação, esclarecendo
questões comuns entre os físicos, e ela o teria escutado falar por ciclos
inteiros, se pudesse. No entanto, logo após a ceia todos se retiraram para o
descanso da noite, e Lyia tratou de sumir de vista com Edon, deixando-os
sozinhos no alojamento.
Não haveria motivo para nervosismo, é claro, considerando que já
haviam compartilhado a cama e muitas outras coisas, porém algo parecia
diferente, e Elya, banhada, perfumada e penteada à perfeição, apenas poderia
esperar que ele também notasse como o ar estava carregado.
A porta do pequeno lavabo se abriu, e Ulian surgiu, macio e
reluzente. Uma visão azul. Os cabelos pingavam água, e os cantos dos lábios
grandes se curvaram em um sorriso inocente, que a teria enganado caso as
obscenidades que sussurrara em seus ouvidos ainda não lhe queimassem as
bochechas.
— Você está bem? — ele perguntou, talvez notando seu olhar
vidrado, e a voz soou como seda.
Concordou com a cabeça, agarrada aos lençóis da cama como se
pudessem lhe oferecer algum tipo de proteção. Pelas Soberanas, o que estava
havendo com ela?
Com os pés descalços, ele se aproximou sem fazer barulho e se
inclinou sobre a beirada do colchão. Deixou a toalha cair, e passou primeiro
uma perna, depois a outra, para dentro de uma calça escura enquanto
mantinha os olhos dourados fixos nos seus.
Ela fez o possível para não os baixar, mas foi quase impossível, e um
rubor terrível a denunciou.
— Tem certeza? — Ulian engatinhou habilmente para perto e
segurou suas mãos. Com um toque gentil, conseguiu fazer com que
soltassem o tecido e retomassem a coloração rosada habitual. — Você
parece... Nervosa. O que há de errado? — perguntou, trazendo-a mais para
perto.
Elya respirou com dificuldade quando o aroma de terra e orvalho a
invadiu, tão familiar e reconfortante que seria capaz de embalá-la entre as
árvores anciãs e o canto melódico das criaturas. Faria brotar ramos dela
própria.
— Essa é a primeira vez que ficamos juntos e... — Seu rosto
queimou com a confissão tola, e o corpo todo se afundou nas chamas. Era
uma menina ingênua. — Não estamos brigados, furiosos ou mesmo
desapontados. Não há nada para reconciliar, nada para esclarecer, e eu
talvez... Bem, eu talvez não saiba como agir. Nós estamos, afinal, unidos.
Casados.
Ele sorriu de modo adorável, retirando um cacho dos olhos
fascinantes dela. Deitou-se ao seu lado, acomodando a cabeça no travesseiro
macio.
— Venha até aqui — pediu, com simplicidade, esticando os braços
em sua direção, convidando-a.
Trêmula, Elya se acomodou no espaço junto ao peito quente e sentiu
cada ponto de contato onde sua camisa terminava. Os pés se entrelaçaram,
assim como os dedos.
Permaneceram abraçados em silêncio, e, diferentemente do que havia
pensado ou até mesmo temido, a quietude não pareceu fora de lugar,
tampouco incômoda. Talvez aquele fosse, enfim, o equilíbrio entre a ternura
e o desejo que tanto ansiava encontrar.
— Você consegue sentir meu coração? — Ulian indagou.
Ela cerrou as pestanas enquanto apurava os ouvidos, e logo foi
embalada pelo ressoar constante e tranquilo.
— Sim — murmurou, temendo partir a magia do momento.
— Então nunca se esqueça de que esse é o som da minha verdade,
casados ou não. Até que os astros se desprendam e as Soberanas nos
reclamem. Em qualquer tempo, em qualquer lugar. Quaisquer que fossem as
escolhas que me impusessem, eu sempre amaria você.
E nem mesmo os Deuses ousariam desafiar aquela promessa, pois o
amor nem sempre precisava incendiar tudo o que tocava.

A ausência do calor de Ulian foi sentida por seu corpo, e Elya se


perguntou se havia, por acaso, dormido demais quando abriu os olhos e
notou que ele não estava mais na cama, embora os contornos
permanecessem impressos no colchão macio.
Ainda sonolenta, caminhou até o pequeno lavabo e lavou o rosto, de
modo a fazer com que o frescor da água a despertasse. Era estranho pensar
que ali, em Colossus, não havia uma estrela forte o bastante para iluminar o
firmamento ao amanhecer e marcar a passagem do tempo de forma mais
simples, motivo pelo qual ela nunca sabia se havia dormido pouco ou muito.
Perguntando-se o que tinha impedido Ulian de acordá-la quando saiu,
bem como porque Lyia ainda não havia aparecido para atormentá-la com
perguntas indiscretas sobre sua intimidade, penteou os cabelos
cuidadosamente e calçou os sapatos.
Ao abrir a porta do pequeno alojamento, entretanto, sua confusão
tornou-se aparente: não era manhã. As luzes artificiais ainda brilhavam de
forma preguiçosa, simulando a madrugada, e os corredores estavam
estranhamente silenciosos, a não ser por um breve sussurro de vozes
distantes, quase ininteligível.
Será que algo terrível havia se passado?
Na ponta dos pés, seguiu o som ritmado, confiando apenas na
acuidade da própria audição, até que palavras surgiram na penumbra,
guiando-a até o lugar onde seus interlocutores as cuspiam com evidente
pressa, como se soubessem que a qualquer momento alguém poderia
surpreendê-los.
— Você não compreenderia meus motivos. — Era a voz de Lyia, em
um sussurro aquoso e fortemente carregado com sotaque implaviano, coisa
que acontecia apenas quando estava influenciada por emoções fortes.
— Seus motivos não importam diante dessa mentira que pode
destruir o coração de Elya — respondeu Ulian, ao que Elya se sobressaltou,
cobrindo a boca com as mãos e temendo que até mesmo a respiração
denunciasse sua presença.
Do que eles estavam falando?
— Não seja um tolo, menino — a melhor amiga chiou, e soltou uma
palavra terrível no próprio idioma que definitivamente não significava algo
bom. — Guardo e protejo Elya há ciclos, e você pensa que pode vir me dizer
o que é melhor para ela?
— Srta. Lyia, com todo o respeito, mas isso é inaceitável! — O tom
profundo e calmo de Ulian se alterou ainda mais, indicando que deveria estar
igualmente transtornado. — Se não contar a ela, será ainda pior. Falaremos
com o controle da missão amanhã, isso não pode ser negociado.
— Não ouse — ameaçou Lyia, e Elya teve a certeza de que os
tentáculos se agitavam em torno dela como armas pontiagudas. — Fiz tudo
isso para garantir que ela viesse até aqui e ficasse com você, belariano
ingrato.
— Não justifique seus atos usando a minha felicidade, ou mesmo a
de Elya, quando está bem claro que fez isso apenas para garantir que sua
visão se concretizasse.
Arriscando-se a chegar ainda mais perto, Elya deixou que as costas
escorregassem pela parede metálica e fria até que a curva suave do corredor
aparecesse, e as vozes estivessem quase ao seu lado.
— Agora você pensa que sabe mais sobre minhas motivações do que
eu mesma? Tolo, ingrato e prepotente! Creio que podemos acrescentar mais
essa definição à sua pessoa.
— Elya merece saber a gravidade da situação em que se colocaram.
— O orgulho belariano apareceu em cada sílaba.
— E de que isso adiantaria? Acha que aplacará a tristeza dela?
— Não sou oráculo como você, srta. Lyia, mas sei de uma única
coisa por experiência própria: retardar um sofrimento não fará com que doa
menos.
A escolha de palavras surpreendeu Elya, que se sentiu tentada a
revelar-se e exigir que lhe explicassem o que estava acontecendo. Com todo
um códex do qual poderia se servir, por qual motivo o belariano escolheria
se referir à Lyia como oráculo? Era um termo antigo, quase em desuso, que
se referia a seres que detinham o poder de vislumbrar o futuro e profetizar.
Uma história inventada pelos implavianos.
— Lidar com o sofrimento dela é trabalho meu — o tom da melhor
amiga a trouxe de volta.
— Não mais — Ulian se impôs. — Somos um agora, e a dor dela é a
minha dor. Vim para cá por escolha própria, sabendo do que abdicava em
Belar em razão da diferença temporal, mas ela não. Ela pensa que, quando
retornar, o mundo que deixou ainda será o mesmo.
Diferença temporal?
Elya apertou as mãos na frente do corpo, em aflição, perguntando-se
se já não bastava de cochichos e segredos.
— Deixe que pense, apenas por um pouco mais de tempo.
— Não temos mais tempo, srta. Lyia. Nossa trajetória se alinhou com
a de Essiclan, e o Conselho nos contatará assim que amanhecer. É nosso
dever, como homens da ciência e servos da verdade, reportar todos os
acontecimentos desde o acidente da nave.
— E a qual verdade você serve? — A voz da Implaviana se
aprofundou, pesada como um oceano que macerava o leito abaixo. — A dos
belarianos? Dos deuses antigos ou de suas novas deusas, Soberanas?
— À minha — respondeu Ulian, abandonando os sussurros e soando
distinto e resoluto. — E eu não a trairei mais.
Então os passos quase inaudíveis dele ecoaram pelo pavimento de
cristal, afastando-se de Lyia e aproximando-se cada vez mais de onde Elya
ainda permanecia parada, incapaz de decidir o que fazer. Desacostumada, na
verdade, ao fato de que as únicas pessoas em quem verdadeiramente
confiavam tinham seus próprios segredos.
Não teve mais tempo para pensar, no entanto, pois Ulian deu de
encontro com ela e, surpreso, arregalou os olhos.
— Não se atreva a dizer uma única palavra a ela! — Lyia bradou,
logo atrás. Quando notou sua presença, entretanto mergulhou igualmente em
desespero.
— Ouvi tudo, então é melhor que se expliquem — Elya pediu,
mesmo que o estômago se revirasse em meio ao enjoo. — Qual é a verdade
que devo saber e me escondem?
— Elya — ele murmurou, os olhos tremeluzindo em ansiedade. —
Eu devo... — Virou a cabeça e encarou a implaviana. — Devo deixá-las,
para que conversem. Isso é um assunto que precisa ser resolvido entre vocês.
Estarei na instrumentação, caso precisem de mim.
E Ulian se foi.
Elya fixou-se nos três olhos escuros da melhor amiga como se a visse
pela primeira, pois nunca havia notado que existia um abismo entre elas,
formado por um segredo lodoso e obscuro. Era uma sensação terrível e
solitária, mas se Lyia se explicasse, então tinha certeza de que poderia
entender.
— Conte-me — pediu, sentindo que o mundo que conhecia se abriria
debaixo dos pés.
— Elya, eu... — Os tentáculos lutaram para alcançá-la, como já
haviam feito muitas outras vezes, mas a implaviana os conteve. — Guardei
segredos, como todos guardam, mas não por motivos egoístas, como pode
ter parecido da conversa que ouviu.
— Então conte-me todos e depois me explique. — Sua dureza
enfraqueceu, e não demorou até que a pureza do ouro ficasse opaca,
tomando suas írises e seus cabelos. — Mas não minta. Eu suportaria tudo,
Lyia, menos a sua inverdade.
Um longo momento se passou sem que nenhuma das duas dissesse
nada, até que Lyia enfim se aproximou e pareceu desmoronar sobre si
mesma de uma maneira que Elya nunca a havia visto fazer antes.
— Não fui verdadeira sobre as consequências que enfrentaríamos
vindo até essa lua — confessou, com as palavras carregadas de luto e
sotaque. Eram como água turva, difíceis de compreender e ainda mais
difíceis de divisar. — De algum modo, pensava que poderia protegê-la disso,
mas fui prepotente. Ninguém vence o tempo.
O modo como pronunciou era reverente.
— Por favor... — Elya choramingou, sentindo as ondas da
tempestade quebrarem, com fúria, em seu coração. — Do que está falando?
Eu não entendo.
— O buraco negro distorce o tempo — Lyia por fim explicou, com o
corpo moluscular inteiro tremendo e vazando água. — Um anoitecer aqui
equivale a muitos em Belar. Considerando todo o tempo que permanecemos,
já devem ter se passado pelo menos sete ciclos inteiros...
Embora tenha ouvido cada sílaba, e as processado em sinapses
urgentes, Elya não foi verdadeiramente capaz de compreender o que aquela
declaração significava, pois era impossível que houvessem se passado tanto
tempo em seu planeta natal, quando em Colossus haviam sido não mais que
algumas noites.
Não era?
— Você está errada — murmurou, mais para si mesma do que para a
amiga.
— Não há erro algum. É apenas a ciência; uma lei natural, nua e
crua.
A melhor amiga aproximou-se para confortá-la, mas Elya, pela
primeira vez, se afastou.
— Minha família... — O choque pela compreensão do que aquilo
significaria a tomou de uma só vez, e as palavras deixaram os lábios em
soluços venenosos: — O que terá sido deles em sete ciclos inteiros?
— Sinto muito, Elya...
— Não diga que sente muito! — uivou, como um animal ferido. —
Como poderia, se me trouxe até aqui ciente disso?
— Você jamais teria vindo se eu dissesse a verdade.
— Não teria! E que mal isso me faria? — cuspiu, agarrando os
cabelos.
— Se você não viesse, não selaria a combinação com Ulian e não
teria um futuro feliz! — a implaviana gritou, ao passo que a voz aquosa
ecoou pelos corredores e algumas portas se abriram.
Embora os traços de Lyia não dessem muito a entender emoções,
pois possuía uma compleição muito distinta, o torpor e o desespero estavam
claros no modo como os olhos brilhavam.
— E o que você poderia saber sobre o meu futuro, Lyia?
Alguns cientistas saíram de seus alojamentos para o corredor, com os
rostos amassados pelo sono interrompido; contudo, Elya não se importou
que a vissem em seu mais imperfeito estado. Não se importou quando o
feitiço desmoronou e, por fim, deixou de ser tudo o que desejavam, nem
quando os rostos arrebatados foram tomados por expressões de pena quando
a verdadeira Elya Bespian finalmente emergiu na espuma das ondas.
Quebrada, como conchas.
— Eu sei tudo, Elya, porque eu vi. Sou um oráculo, amaldiçoada pelo
Senhor dos Senhores a ver o começo e o fim. — O corpo moluscular se
retraiu, e a curiosidade dos tentáculos morreu quando Lyia se apagou, a pele
gelatinosa e sempre profundamente verde assumindo um tom fosco de azul.
— Eu vi você, a mais perfeita entre as perfeitas. Aquela que traria o futuro.
Elya escorregou para o chão, perdendo a força nas pernas perante a
confissão daquela traição.
Eu fui a primeira a acreditar. As palavras ecoaram por sua mente,
ganhando um novo sentido.
— O autor da profecia... Foi você?
Um aceno positivo.
Durante toda a vida, Lyia sempre fora a única em quem pudera
confiar, aquela com quem não tinha nenhum segredo. Nunca a enxergara
como uma igual, pois sempre a teve na maior das estimas, e a implaviana
era, para ela, mais importante que seu próprio ser ou seu próprio orgulho.
Fora sua primeira amiga. Fora seu primeiro amor verdadeiro. Quem
lhe ensinara sobre a existência e o significado daquele sentimento tão
estranho a uma belariana.
Quem lhe deu esperanças.
E era por isso que a dor daquela traição era a mais cruel. Afogava-a
em uma tormenta pantanosa, da qual Elya soube que jamais conseguiria
emergir, visto que a pessoa que mais amava era também a que mais a fizera
infeliz.
Era a responsável por sua desgraça, ao menos indiretamente, por
incitá-la a deixar Belar e abandonar a família. Era a responsável por uma
vida inteira de tormentos, materializados em um título pelo qual jamais
pedira e que a havia condenado à solidão eterna, à despersonificação de si
mesma. Transformada em um símbolo.
Nunca o presente.
Nunca aqui.
Nunca agora.
Apenas o futuro.

Elya correu, aos tropeços, em direção à instrumentação, algo que


pareceria quase desconexo para uma belariana que aprendera a reivindicar o
chão onde pisava. Cada vez que ousava puxar o ar, os pulmões rígidos
reclamavam, como se houvesse inalado cristais pontiagudos ou mesmo a
poeira mortífera de Colossus, a respeito da qual Ulian uma vez a alertara.
Doía demais.
Cruzou o portal com a visão escurecida, quase completamente
perdida para a emoção, mas obrigou-se a seguir em frente em razão de um
sentimento que, talvez, alguns chamassem de instinto.
Ou insanidade.
— Elya!
O azul profundo da pele de Ulian perpassou como um borrão antes
que as conhecidas mãos calorosas a amparassem. Braços se fecharam ao seu
redor, como uma parede de proteção, e ela sentiu que todo o torpor e o pesar
simplesmente escoavam para fora na forma de lágrimas.
— Belar — disse, agarrando-se a ele como se estivesse à deriva e a
solidão fosse capaz de afogá-la. — Por favor, preciso falar com eles. Por
favor. Por favor — repetiu, em compulsão. — Preciso saber o que aconteceu
com eles, se ainda me esperam. Meus pais... Meu irmão… Por favor.
— Estamos faseando os sinais de comunicação — ele esclareceu,
com gentileza, enquanto afagava seu rosto de forma terna. Um beijo suave
foi plantado em sua fronte. — Precisaremos tratar de assuntos da missão
antes, como manda o protocolo. Você compreende? Temos deveres aqui, e
por mais que eu queira colocá-la em primeiro lugar, isso não seria admitido.
Ela assentiu, muito embora quase irracional.
— Como ela pôde fazer isso comigo? — choramingou, sentindo que
toda a força lhe esvaia. — Ela me amaldiçoou! — Afastou-se do abraço e
suas unhas longas cravaram-se na própria pele, como se quisesse arrancá-la.
— Esse título, o que fizeram de mim... Ela sempre soube o quanto eu sofria.
Como ela pôde nunca me contar? Como?
Ulian a acomodou em uma poltrona macia mais ao canto da sala,
afagando seus cabelos enquanto beijava a ponta de seus dedos.
— Uma história sempre tem dois lados — disse-lhe. — Você deveria
deixar ela se explicar; dar a ela a mesma chance que deu para mim.
— Eu não poderia, porque a amo muito mais e o que ela me fez foi
ainda pior.
Dilacerada, obrigou os olhos a focarem não nos cientistas presentes,
que a abanavam ou lhe ofereciam as próprias canecas com líquidos
fumegantes ou frios, mas na grande tela que tomava uma parede inteira e
mostrava um firmamento muito conhecido.
De um lado, Belar, a grande elipse em órbita de Gautan, desvelada
em meio à poeira cósmica das nebulosas. O continente único, verdejante e
circundado por um mar gentil. E as duas luas. Do outro, um orbe muito
distinto, brilhante e leitoso; uma estrela fulminante feita da mais pura luz,
orbitando sozinha em meio ao espaço profundo, pontilhado por constelações.
— Senhores, o faseamento está completo — ouviu alguém dizer, ao
passo que o ambiente tornou-se silencioso. — Criptografia recebida.
Postos foram assumidos atrás de mesas e telas inteiramente
preenchidas com fórmulas matemáticas, rodando em espirais ininterruptas.
As luzes se acenderam, refletindo nas paredes de liga metálica de modo
impecável.
— Entrar na conferência — respondeu Ulian, soltando suas mãos e
encaminhando-se para a frente da tela com a postura perfeita. Os braços,
cruzados atrás das costas, e o traje belamente alinhado apenas reforçavam
que era um espécime exemplar. Contudo, a rigidez nos traços não a
enganava.
Ele estava tenso e desconfortável.
Com o comando, as imagens de Belar e da outra estrela foram
substituídas por um momento de estática, que tomou a tela em milhares de
pontos, antes que todos se convergissem e, a partir do centro, formassem
uma nova imagem. De um lado, um felino cuja pelagem era tão negra quanto
a noite sem estrelas e os olhos, duas pedras preciosas cor de esmeralda,
vestido com uma capa branca de ombreiras imponentes, De outro, um
belariano de pele tão pálida quanto os cabelos prateados e os olhos astutos.
— Missão de Colossus, falando de Sirius pelo Conselho Científico
do Sistema Exterior, dr. Antaros — ressoou uma voz grave e poderosa, que
preencheu a sala com uma autoridade quase gentil demais. Pertencia ao
siriano da raça dos felinos. — Saudações, corajosos e estimados amigos.
— Missão, falando da Academia de Ciências de Belar, dr. Bifred —
apresentou-se o cientista do lado belariano, reverberando no próprio orgulho
e ego.
— Controle, falando da base da expedição em Colossus, quem se
apresenta para o relatório é o dr. Ulian Bened.
Os convidados, na tela, assentiram de forma respeitosa.
— Estamos felizes por vê-los e, se me permite a observação, dr.
Bifred, o senhor não me parece ter envelhecido um dia — Ulian disse, de
modo cordial, forçando um sorriso. — Relembre-me do passar do tempo em
Belar, se não for um pedido demasiadamente tolo.
— Sete ciclos, quatro fases e oitenta e uma crescentes — o cientista
respondeu de memória, e a marcação do tempo fez com que Elya se
encolhesse no assento, como se houvessem cravado espinhos em seu
coração.
Sete ciclos, quatro fases e oitenta e uma crescentes.
Era tempo demais.
— Como fluíram nossas pesquisas nesse interregno, dr. Bened? —
indagou o felino, com um sorriso que fez os bigodes se esticarem. — Li o
relatório da missão, e parece que os avanços foram muito além dos
esperados.
Um dos colegas passou a Ulian uma pequena tela e, com um toque,
ele fez com que os dados de um longo relatório brilhassem no ar, em plena
suspensão.
— De fato, dr. Antaros. Minha fórmula ainda é instável, mas uma
nova tempestade se aproxima ao anoitecer, já pode ser vista no radar, e
estamos certos de que as lacunas logo serão preenchidas. Toda a equipe está
muito dedicada a concluir a pesquisa.
— Os simuladores da Academia já foram alimentados com os
últimos dados, e supervisionarei um teste em pequena escala para que
possamos verificar os pontos de maior instabilidade no modelo — informou
o cientista belariano, na tela, e sua voz ecoou pela sala. — Repassaremos os
resultados na próxima janela de comunicação.
Ulian assentiu, e os brincos tilintaram.
— No entanto, há uma parte do relatório, um fragmento, que está em
desacordo com as normas e as convenções do Conselho Científico e deve ser
retransmitida — prosseguiu o dr. Bifred, inabalável. Com um gesto de mãos
quase invisível, símbolos desconhecidos tomaram a tela, incompreensíveis
para todos os presentes, exceto um.
— Peço desculpas sinceras, senhores — Edon disse, dando um passo
à frente. — Reconheço o dialeto de Quaarsar. Sou o único de minha raça
presente na expedição, mas meus relatórios de campo e estudos são todos
traduzidos para o idioma universal antes do reporte oficial. É impossível que
algo assim tenha passado.
— Impossível, você diz, mas ainda assim aqui está. Nenhum teste
será aprovado antes que essa correção seja feita. Você atrasa toda a pesquisa
com essa violação.
— Talvez este pequeno trecho tenha se extraviado. — O
quaarsariano cerrou as mãos enormes e engoliu em seco, desgostoso. —
Providenciarei a correção que a Academia Belariana solicita.
— A Academia, não — interveio o dr. Bifred, parecendo ofendido.
— Note que esta é uma regra em comum com o Conselho Científico.
— Neste caso, nossas pendências para esta reunião parecem
concluídas — apaziguou o cientista siriano.
— Há mais a reportar, senhores — Ulian interrompeu, parecendo
ainda mais desconfortável do que antes. — Como podem ver no relatório,
houve um incidente há cinco, alfa, zero, zero, eco. Uma nave belariana
tripulada colidiu com o quadrante sete da escavação. As passageiras Elya
Bespian e sua secretaria pessoal, srta. Lyia, foram recuperadas e estão
convivendo conosco desde então. Aguardamos instruções a respeito do
protocolo para retorno seguro delas para Belar.
O felino, no canto da tela, suspirou.
— Para este incidente infeliz, o Conselho sugere que as damas sejam
encaminhadas a Essiclan por meio da nave de escape auxiliar, onde será
providenciado um transporte rápido que não interferirá nos trabalhos da
expedição. — Uma pausa, na qual os bigodes compridos se agitaram, como
se pressentissem algo. — Mas deixaremos a cargo da Academia a decisão
final sobre como conduzir o repatriamento de suas concidadãs. — Um breve
aceno de cabeça. — Aguardo novos relatórios, caros colegas. Voltem logo
para casa.
E se foi.
A imagem, antes dividida, passou a exibir apenas a expressão fria e
distante do cientista belariano, muito agigantada e prestes a engolir Ulian por
inteiro com a autoridade severa que exibia.
— Encaminhe a srta. Bespian e sua secretária para a nave auxiliar
após a tempestade e as dirija ao Governo de Essiclan, como sugerido pelo
Conselho — ele comandou, sem deixar pressentir qualquer emoção na voz.
— A implaviana, entretanto, deve ser detida e transportada como criminosa,
conforme ordens do Conselho de Cidadãos de Belar.
Aquelas palavras acertaram Elya em cheio e acenderam dentro dela
algo que, até então, estivera frio. Foram um chacoalhão, obrigando-a a sair
do estado de estupor em que se encontrava.
— Não! — falou, colocando-se de pé de modo decidido. — Lyia é
minha secretária pessoal e, quaisquer que sejam as acusações que detenham
contra ela, assumirei total responsabilidade. Como ousam chamá-la de
criminosa?
O dr. Bifred a encarou pela tela como se visse uma Deusa encarnada,
descida do firmamento e comprimida em um corpo físico. Mesmo à
distância, o feitiço o dominou, e foi perceptível quando a expressão antes
austera relaxou e os lábios duros curvaram-se em um sorriso
— Oh, srta. Bespian! — Ele se curvou de forma respeitosa, como se
não pudesse evitar estar encantado pela mera existência da mais perfeita
entre as perfeitas. — Sua presença me honra, e estou certo de que Belar
festejará a bênção de seu retorno para casa após tantos ciclos de
desesperança. No entanto, peço minhas mais humildes desculpas, pois receio
que esse tipo de arranjo não seja possível.
— Exijo falar com o Governador Bespian para discutir o assunto —
ela demandou, inflexível, assumindo uma vez mais a postura de Elya
Bespian pela qual era conhecida.
Diante de sua resistência, um silêncio incômodo recaiu sobre a
instrumentação. Na imagem, o cientista belariano pareceu conjecturar.
— Receio que isso também não seja possível, srta. Bespian. — Os
traços belos assumiram um sentimento entre tristeza e pena que logo
desapareceu. — O Governador Tharcius, seu pai, renunciou ao cargo pouco
após seu desaparecimento e não é visto mais em sociedade com sua família
há muitos ciclos. Os Bespian desapareceram.
T
i
c
T
a
c.
Ulian fez o que pôde para consolá-la quando a comunicação com
Belar foi encerrada, mas Elya havia chegado a um estágio em que palavras
não bastavam para estancar a dor, que jorrava de cortes profundos, e ele,
afinal, precisava se preparar junto aos demais colegas da expedição para a
tempestade que chegaria com o crepúsculo, motivo pelo qual Elya achou
melhor dispensá-lo.
Já bastava de tornar-se o centro das atenções onde, claramente, sua
presença só atrapalhava. Ademais, queria ficar sozinha, e ele logo partiu
depois de aconchegá-la entre o travesseiro e o lençol de modo amável.
— Voltarei logo — prometeu, hesitando deixá-la. — Me espere, está
bem?
Ela virou-se, certa de que estava pagando o preço da própria
prepotência, e se perguntou em um delírio se ainda teria ido até Colossus se
soubesse das consequências.
Fez o que fez por amor, acreditando que aquele sentimento seria tudo
e que, em nome dele, abdicaria também da outra porção do todo. Entretanto,
fora ingênua ao não perceber que o amor sempre estivera a seu alcance em
casa. Fosse nas palavras rígidas da mãe, nas calorosas do pai, nos abraços do
pequeno Tharcius e nas histórias obscenas de Lyia, o amor já preenchia sua
vida.
Por que não fora capaz de enxergar?
Ulian valia a pena, é claro, e talvez em algum momento fosse capaz
de escolher fazer tudo de novo apenas para tê-lo nos braços mais uma vez,
porém tal momento ainda não havia chegado. Ela se arrependia.
Arrependia-se tanto de ter destruído não apenas a própria felicidade,
como de todos aqueles que amava, que pegou-se disposta a qualquer coisa
para desfazer as próprias ações.
E quando o pequeno alojamento chacoalhou com a fúria da
tempestade temporal que se aproximava, Elya não teve mais dúvidas: a mais
perfeita entre as perfeitas era o futuro, mas precisaria tornar-se, também,
passado.

Como se cumprisse um ritual, Elya banhou-se e perfumou-se.


Penteou os cabelos longos, trançando-os em um intrincado padrão, e vestiu o
traje branco com o qual deixara Belar, na esperança de que os fios ricamente
tecidos guardassem a memória do tempo de onde vieram e a ajudassem a
retornar para o momento em que tudo tomou a direção errada.
Agora compreendia seus privilégios e o quanto a cegaram. Ela era
apenas uma menina egoísta e mimada que cresceu em uma redoma,
desacostumada a vislumbrar as consequências das próprias ações, mas
chegara o momento de repará-las.
E faria isso sozinha, pois não se permitiria arrastar mais ninguém
para o poço profundo de sua inconsequência.
Deixou as luvas de lado, pois sua carne já conhecia o prazer do
toque. Por fim, amarrou as tiras dos sapatos com força, até que marcassem a
pele. Quando deixou o alojamento, não olhou para a porta nem para a placa
de liga metálica com a gravação do nome de Ulian Bened enquanto se
afastava. Sabia que nunca o perderia, pois haviam prometido que não
importaria o tempo, nem as escolhas às quais fossem submetidos, sempre
amariam um ao outro.
E ela pretendia fazê-lo cumprir a promessa, ainda que fosse em outra
vida.
Apesar da solidez, a base da expedição balançava com força, o que
fazia as luzes tremeluzirem à mercê da tempestade. Pelos corredores, os
cientistas corriam enquanto as sirenes de alerta soavam, gritando uns para os
outros que aquela era a maior tormenta já registrada em Colossus desde que
o Conselho Científico mandara as primeiras sondas para investigar a
superfície desértica.
O tamanho do desafio não influenciaria seus planos, no entanto, e
mesmo que seu temor tenha feito a respiração acelerar, Elya não parou.
Andou e andou em meio ao caos sem que tivesse quem lhe prestasse
atenção, ocupados como estavam com as próprias atribuições, e chegou ao
portal de entrada que ainda não havia sido selado, pois a tempestade estava
longe o bastante para que se arriscassem em nome da ciência.
Uma grande quantidade de equipamentos era carregada para fora, e
veículos cruzavam as areias velozmente em direção aos galpões que os
protegeriam, deixando um rastro de fumaça que se perdia em meio à poeira.
Ao longe, viu Ulian com a cabeça envolta por uma bolha translúcida, o
macacão sujo e os cachos despenteados. Ele estava se enfiando por debaixo
de uma máquina com algumas ferramentas na mão, os bolsos abarrotados
com pequenos instrumentos que piscavam em vermelho. A visão tão
incomum a fez sorrir.
Nenhum belariano se colocaria naquela posição, e por isso mesmo
ele nunca fora como os outros.
Como na última vez, embora o tivesse feito com outra intenção e sem
saber do perigo que corria, ela saiu para a planície árida, sendo açoitada pelo
vento e pela poeira vermelha que dificultava em muito a visão, ao mesmo
tempo que encobria satisfatoriamente sua presença. Tornou-se um espectro,
apenas. Incorpórea como as dunas da planície árida, que nunca possuíam
local fixo.
Com as mãos na frente do rosto, ergueu os olhos e, no horizonte, o
monstro finalmente surgiu, tão grande que era capaz de engolir a paisagem e
até mesmo a vista de Cronos, que reinava imutável no céu.
A tormenta vinha com braços abertos e delgados, descarregando
eletricidade e revirando a realidade, e Elya a fitou momentaneamente
paralisada, perguntando-se como os cientistas esperavam ser capazes de
domar uma besta tão primordial para fazê-la obedecer a suas vontades.
Mas ela também era tola o bastante para tentar.
Equilibrando-se, tirou os sapatos e deixou que os pés se enterrassem
no solo macio, como se fizessem parte dele. Era frio, e os pequenos grãos
brincaram entre seus dedos por um instante antes que Elya começasse a se
mover, deixando a base da expedição iluminada como um farol para trás.
Deixando Ulian.
Deixando Lyia.
Pois ela precisava ir e, com lágrimas turvando ainda mais a visão,
afastou-se.
Um tremor sacudiu a planície, e ela caiu no chão, com os cotovelos
servindo de apoio ao corpo; pelo ardor que tomou a pele rosada, imaginou
que havia se machucado. Quando encontrou estabilidade suficiente para se
erguer, as roupas antes brancas e imaculadas estavam completamente
manchadas de vermelho pela poeira.
Uma vez, ouvira dizer que esta era a cor do sangue de seus
antepassados.
A tempestade arrancava blocos enormes de rocha enquanto passava,
varrendo tudo, e, em meio ao som ininterrupto do vendaval, Elya pensou tê-
la ouvido urrar. Era um brado gutural e antigo, que ressoou desde o fundo de
sua alma conforme a eletricidade varria a planície.
Um aviso.
Fique longe, menina tola. Quase pôde ouvir a voz aquosa de Lyia
aconselhar.
Mas ela tinha de ir.
Se não fosse — se ao menos não tentasse —, de que modo seria
capaz de desfazer todo o mal que causara?
Elya estava cansada, muito cansada, mas precisava se
responsabilizar.
As criaturas nativas de Colossus uivaram mais ao longe, e suas
formas eram como borrões enquanto fugiam em busca de um abrigo que
jamais encontrariam. Ela tossia, cada vez mais castigada pela poeira, porém
continuou seguindo até que a base fosse apenas um ponto, e a besta se
erguesse bem à sua frente.
Então uma voz chamou por ela:
— Elya! — O clamor era inconfundível.
Ulian.
Virou-se, mas foi incapaz de encontrá-lo em meio ao caos. Desviou
de um bloco de substrato que aterrissou onde estava instantes atrás, e
protegeu o rosto dos estilhaços que voaram, sendo logo reduzidos ao pó
insignificante do qual tudo era feito e para o qual tudo um dia retornaria;
carregados pelos ventos novamente.
Não pensava que existisse alguém tolo o bastante para segui-la até
aquele abismo, porém recordou-se de que ele também já havia feito aquilo
antes sem hesitar.
— Não me impeça! — gritou, a esmo, cuspindo poeira que deixava a
língua áspera. — Vá embora! Eu não o quero mais!
As palavras a cortaram e machucaram ainda mais.
Será que ele realmente acreditaria?
Era impossível correr em Colossus, conforme havia aprendido no
tempo em que conviveu com os cientistas, mas ainda assim ela tentou.
Tentou com afinco, colocando tudo de si naquele ato. Forçou os músculos
delicados das pernas até o limite, conforme se afundava mais na areia, indo
em direção ao coração da tormenta.
Indo para casa.
— Volte, Elya! Você morrerá!
A voz perdeu-se em meio aos relâmpagos e trovões, e Elya fez o que
pôde para absorvê-la enquanto seguia em frente.
Ele precisava perdoá-la.
Precisava esquecê-la.
E ela tinha que pagar o preço.
— Perdoe-me! — pediu, aos berros, tão engasgada com a poeira que
chegou a pensar que não teria nem a chance de chegar perto da tempestade
antes de desmaiar. — Eu o amo, Ulian — sua voz saiu como um sussurro. —
Eu o amo — repetiu, como se erguesse uma egrégora de proteção em torno
de si mesma. — Eu o amo, perdoe-me.
Buscando coragem, Elya correu.
Arrastou-se, apesar de os pulmões se recusarem a inspirar mais
poeira e os olhos, a abrirem. Arrastou-se até que a tempestade ergueu-se com
braços, pernas e bocas feitas de eletricidade e colocou-se bem a sua frente,
desafiando-a a prosseguir.
— Para casa! — gritou para a besta, na esperança de que pudesse
ouvi-la. — Se me entende, leve-me para Belar, antes disso tudo. Antes da
minha partida e de todos esses erros! Eu imploro, por favor, leve-me para
casa!
Mãos fecharam-se em torno de seus ombros, e o calor delas a
percorreu. Os redemoinhos ergueram-na do chão, com os pés balançando a
esmo em meio ao choque e ao desespero, levando-a cada vez mais alto. As
mãos, porém, não a soltaram, e transformaram-se em braços e pernas que se
prenderam a ela por inteiro.
— Até que os astros caiam do firmamento ou as Soberanas nos
reclamem! — Ulian gritou sobre o barulho a plenos pulmões, embora tenha
sido quase impossível ouvi-lo e o que restou do movimento dos lábios foi
apenas uma sensação.
O tom dele misturou-se a urros antigos e primordiais, que talvez
fossem o som dos rabiscos dos deuses no instante da criação. O carbono
deslizando suave, uma agulha que costurava e tecia.
Os raios caíram, descarregando e descarregando.
Passado.
Presente.
Futuro.
O tempo era vivo na barriga da besta.
E sem piedade, ela os engoliu.
O Tempo não distribuía favores, nem tomava escolhidos.
No entanto, vez ou outra, murmurava entre as areias e fazia ecoar um
chamado para os que estivessem despertos o bastante pudessem ouvir.
E, é claro, Ele mesmo sempre estava ouvindo...
Ulian sentia-se partido em dois.
Suas memórias diziam-lhe que ainda estava em Colossus, diante de
uma tempestade massiva capaz de dissolvê-lo até tornar-se insólito, nada
além de átomos. O que os olhos mostravam-lhe, entretanto, era algo
totalmente distinto e incomum.
Ele mesmo.
Ou melhor dizendo seu corpo, dormindo profundamente no interior
dos próprios aposentos na residência dos Bened, em Belar.
Com a poeira vermelha desprendendo-se do traje da expedição,
ousou aproximar-se da grande cama e correu as pontas dos dedos pelas
ranhuras do dossel. A frieza do material o fez estranhar o toque quase
espectral, e ele encarou as palmas das mãos imundas como se estivesse se
esquecendo de algo essencial.
Talvez fosse uma alucinação.
Balançou a cabeça, e os cachos despejaram grãos no chão lustroso de
cristal, enquanto o corpo na cama respirava serenamente, perdido em um
sono profundo e inalcançável. Eram suas sobrancelhas grossas, seus
escandalosos furos nas orelhas, sua pele azul, seus músculos e suas unhas
bem aparadas.
Era tudo ele, de fato.
Mas como poderia?
Incrédulo, submeteu à inspeção os lençóis pesados, ricamente
bordados, que lhe cobriam. Estudou cada pequeno detalhe no ambiente,
desde o tipo de rocha que sustentava as paredes até os hologramas
metodicamente arrumados em cima da mesa de estudos, apenas para
concluir que aquele era mesmo seu quarto e que não havia nada faltando.
Seria uma ilusão?
Olhou para as pontas das botas pesadas chamuscadas e moídas pelos
raios da tempestade. Sentia-se quase translúcido e fora de lugar — separado
do todo, seu indivisível. Sem saber se deveria abandonar o próprio corpo,
mas impelido pela curiosidade, abriu a porta e saiu para o corredor
silencioso. Seus passos ecoaram no cristal de uma forma que, fosse honesto,
não esperava que fizessem.
Certamente era um sonho.
Mergulhou nos arcos e nas cascatas, cruzando salões repletos de
pinturas tão antigas quanto seu sobrenome, feliz pelo reconfortante
anonimato proporcionado pela penumbra que caía como um véu. As
molduras de ouro reluziram sob os raios das Soberanas que,
preguiçosamente, alcançavam o interior através das grandes janelas, e a vista
familiar e dolorosa não lhe permitia confundir-se.
Era Belar, tal como havia deixado e como seus olhos recordavam-se.
Mas se não era um sonho, talvez fosse um pesadelo.
— O que significa isso? — ecoou uma voz fria e sólida como rocha
às suas costas, surpreendendo-o no salão, seguida por passos cujo peso ele
conhecia muito bem. Esmagava-o por baixo das solas.
Ianer Bened.
— Você pode me ver? — Ulian questionou, tão surpreso por ter sido
avistado em meio à alucinação, que sequer lembrou-se de ajustar a postura,
modular a voz ou tensionar a mandíbula.
Sequer lembrou-se, naquela fração de tempo roubado, com quem
estava falando.
Seu progenitor, todavia, não se esquecera de nada. Sem dissolver a
expressão severa, apenas a contraiu em algo parecido com uma careta de
desgosto ou de desaprovação. Os cabelos prateados e cuidadosamente
penteados para trás em nada contrastavam com as roupas sóbrias e sem
vincos do cavalheiro belariano, símbolo de tudo o que Ulian mais
desprezava naquele planeta e em si mesmo.
— Sua estupidez é extremamente desgastante, Ulian. — O pai levou
os dedos à fronte e suspirou como se tivesse sido insultado, e não o
contrário. Não havia nem um único anel, nem o menor dos adornos. — É
claro que posso vê-lo nesse estado deplorável. — Os dedos se ergueram,
acusatórios, porém quase desinteressados. — O que pensa que está fazendo
andando por aí nessas condições? Não há um pingo de honra em sua fibra?
Seus punhos cerraram-se e Ulian não pôde evitar erguer o olhar, em
desafio, como havia feito por toda uma vida. Mas enquanto esperava pela
explosão de ódio e de fúria, tão familiar quanto as palavras desdenhosas de
Ianer, não compreendeu por que tais sentimentos não se manifestavam, e um
calor diametralmente oposto envolveu seu coração.
Era apenas uma sensação, gravada à fogo, de uma gentileza ímpar, de
palavras de compreensão e apoio, de um toque afetuoso e terno.
Um segredo.
Uma promessa.
Então seu estômago embrulhou quando ele se lembrou dela, para
quem havia se entregado. Ela, que se atirou na tempestade temporal em
Colossus como se quisesse dar fim a tudo e afogar a dor. Ela, que seguira até
o meio da tormenta e seguiria até muito mais longe, se necessário fosse.
Onde estaria Elya Bespian?
Incapaz de compreender suas preocupações, o progenitor lhe lançou
um demorado olhar de desprezo.
— Tire essas roupas imundas e lave-se antes que sua mãe o veja —
ordenou, já se distanciando. — E tente não ser uma vergonha tão grande
para nosso sobrenome ancestral — complementou, como se não estivesse
cravando espinhos no coração do filho. — Nós lhe demos tudo o que pediu.
Ulian, no entanto, sequer o ouviu.
Em outro tempo, aquelas palavras de certo o teriam ferido e servido
de alimento para o ressentimento profundo contra a própria família. A chave
do enigma, entretanto, residia naquele fato que parecera tão pequeno e
insignificante antes.
O tempo.
Com o coração martelando e as hipóteses se formando, caminhou a
passos largos de volta ao próprio quarto, empurrando apenas uma fresta da
porta grandiosa para ser capaz de espiar o interior.
Sim, havia um corpo na cama, idêntico a ele em tudo.
Mas não era seu.
Aquele era outro Ulian.
Ou talvez fosse ele o outro.
Ninguém havia, ainda, sido capaz de viajar no tempo — mas para
tudo existia uma primeira vez.
Espremido debaixo da própria cama, um pouco trêmulo e certamente
confuso, Ulian ouviu quando o outro Ulian foi acordado pelos autômatos e
questionou a origem de toda aquela poeira vermelha espalhada pelo piso.
Reconheceu as nuances do próprio tom de voz e a forma como acentuava os
finais das frases, tão tipicamente belariano. Então não teve como duvidar:
contra todas as probabilidades, eles haviam conseguido.
Com o coração a ribombar forte no peito, ele esperou que o outro
Ulian se banhasse e fizesse o desjejum. Depois, esperou ainda mais depois
que ele saiu para os compromissos do dia e o aposento tornou-se silencioso.
Só então rolou para fora do esconderijo improvisado.
Era apenas uma teoria — e muitas já haviam sido criadas no Sistema
Exterior —, mas havia um ponto onde as extrapolações dos pesquisadores de
viagens temporais convergiam, não importava o quanto desprezassem uns
aos outros: o viajante não deveria, em hipótese alguma, interagir com sua
versão de outro tempo.
Assim, partindo daquele pressuposto, ele estabeleceu sua primeira
regra: não poderia deixar que o Ulian daquele tempo o visse.
Decidido a tomar algum controle sobre a situação, tirou o traje
empoeirado e o chacoalhou dentro da banheira de cristal que ocupava a
posição central na enorme sala de banho, encarregando a água corrente de
encobrir quaisquer evidências de sua presença. Em seguida, entrou na
banheira, para livrar-se dos últimos resquícios de sujeira.
Em seus bolsos, alguns instrumentos de medição haviam sobrevivido
à viagem e piscavam insistentemente, comunicando, em uma linguagem
pertencente apenas aos cientistas e suas máquinas, que haviam armazenado
dados. Submerso na espuma, ele os virou delicadamente entre os dedos,
curioso para entender o que queriam revelar. Afinal, estivera dentro da
tormenta e, se não fosse tudo aquilo uma intrincada alucinação ou um sonho
pincelado com tons de loucura, quaisquer informações da jornada que
colhera de Colossus até aquele ponto no tempo — que ainda não tinha
certeza de qual era — seriam preciosas.
Para manter sua presença absolutamente em segredo na residência,
pensou que seria melhor não solicitar o auxílio dos autômatos para nenhum
tipo de tarefa, mas ele teria resolvido equações mais rapidamente do que o
tempo que gastou apenas procurando pelas toalhas.
Já seco, de frente para um espelho comprido, mirou o respirador
afixado em sua têmpora, perto da sobrancelha. Por menor que fosse, era a
única coisa que o diferenciaria dos demais belarianos, que jamais
precisariam de tal invenção para respirar no próprio planeta. Portanto,
precisaria se livrar dele o quanto antes, se realmente quisesse passar
despercebido.
Cutucou-o com a ponta dos dedos. Havia dito a Elya que não doeria
nem deixaria marcas, mas talvez não tivesse sido completamente honesto:
aquilo certamente doeria, ao menos da forma tosca como pretendia fazê-lo.
Sem mais cerimônia, agarrou-o com as unhas e, segurando o fôlego,
puxou-o de uma vez só, sentindo o instante em que os pulmões
comprimiram e quase asfixiaram antes de relaxar, liberados da influência
que o dispositivo exercia. Uma lágrima de reflexo caiu pelas bochechas, que
ele enxugou tal qual fez com a pequena gotícula de sangue dourado que
brotou da área sensível.
Acostumado à cacofonia do pesado maquinário de escavação em
Colossus, o silêncio de sua residência o inquietou, portanto agiu sem
demora. Vestiu um conjunto de calça e camisa brancos, cujo tecido lhe
envolveu como um abraço terno, e prendeu os brincos nos furos das orelhas,
deixando que tilintassem de forma acolhedora. Por fim, afofou os cachos
antes de, reluzente como um belariano que não teria nada a esconder,
caminhar pela residência vazia.
Era estranho estar de volta e percorrer aqueles corredores que ainda
preservavam e ecoavam, nas abóbadas de pedra e cristal, seu riso e,
principalmente, seu pranto.
Sua história estava gravada em meio às fundações da construção que
levitava sobre a planície enevoada, desafiando a gravidade de forma
maravilhosamente simples, e a cada passo ele se lembrava não da infância,
nem do tempo em que fora feliz ali, mas da partida. Da apatia profunda que
o envolvera como um veneno, revelando a podridão que jazia dentro de si
mesmo quando disse que partiria para longe, tão longe que, quando
retornasse, esperava encontrar seus progenitores mortos, pois este seria o
único destino que mereciam.
Ele havia aceitado a missão em Colossus como forma de afastar-se
da vida que possuía, mas também de todo o futuro que ainda poderia vir a
alcançá-lo, talvez em nome das tradições e do Conselho Conubial; talvez em
forma do amor.
Naquele momento, entretanto, lutava desesperadamente contra o
passado que abandonara e que, de alguma forma, o encontrara.
Pois ele não era nada do que fora prometido.
Não era a perfeição, tampouco a pestilência. Era, talvez, algo no
entremeio dos conceitos que lhe haviam ensinado e daqueles que aprendera
sozinho.
Uma pessoa, afinal, destinada a errar e acertar, e então começar tudo
de novo.
Com hipóteses formando-se no fundo da mente, chegou ao hangar
castigado pela manhã e focou-se nos picos de cristal mais ao longe, cobertos
por uma fina camada de precipitação, e na brisa que beijava as copas das
árvores. Familiares, como os androides que se enfileiravam junto aos
balaústres.
— Por gentileza, chame uma nave de passeio pública — pediu, sem
dirigir-se a nenhum deles em específico, incapaz de usar a própria nave, que
havia partido mais cedo com o outro Ulian.
— Sim, sr. Bened — uma voz metálica respondeu, atenciosa, porém
distante o bastante para dar a entender que não poderia estar menos
interessada em suas conspirações.
A nave pública chegou alguns momentos depois, aquecendo ainda
mais o ar do pavimento, e Ulian embarcou inquieto, permanecendo no
mesmo estado de espírito até que os frondosos jardins suspensos da
residência dos Bespian entrassem em foco, pincelados por flores e
delimitados por uma imensa árvore cuja cor não se poderia apreender. Ela
erguia-se do centro do planeta em veios, participando de toda a vida que
crescia no continente único como se a tivesse gestado.
As folhas da árvore anciã reluziram diante de seus olhos. Ora
douradas, ora prateadas, e ainda mais curiosamente, ora em ambas as
tonalidades, como se quisessem mostrar para seus filhos que não importava
por quem haviam sido reclamados, todos carregavam um pouco de paixão e
frieza dentro de si.
A altitude diminuiu, e Ulian preparou-se em espírito. Conjecturara,
durante a madrugada em claro, que ao atirarem-se na tempestade Elya e ele
haviam retornado a algum ponto do passado, junto de suas versões daquele
tempo, o que explicava o motivo pelo qual despertara diante do próprio
corpo. Portanto, a conclusão mais lógica era de que encontraria sua Elya ali.
A porta abriu-se para o calor de Gautan, deixando a luz fundir-se
com a penumbra, e ele seguiu mais para dentro da residência, atravessando
os jardins e a relva macia, apesar de o próprio coração bater acelerado.
Como se ouvisse um chamado, seguiu por caminhos desconhecidos.
Algumas das criaturas da manhã o receberam com curiosidade, em
revoadas inesperadas, e ele soube que estava no lugar certo quando ouviu o
barulho familiar das cascatas. Os pés apressaram-se, urgentes, esmagando a
terra sem cuidado ou reverência.
Belar tira-lhe tudo o que possuía de mais precioso e sagrado, ceifara-
lhe a liberdade de escolhas que a outros era dada de forma tão leviana, além
da vida da irmã. Transformara seu lar em algo odioso, e seu reflexo, em uma
visão insuportável. Mas, em meio ao tormento, a esperança havia encontrado
meios de florescer através dela.
E, em nome daquele sentimento, ele atenderia ao chamado. Ulian o
seguiria para onde quer que fosse, até os confins do universo conhecido. Seu
amor e sua devoção não possuíam limites e, quando finalmente a viu, forçou
a si mesmo a não desmoronar, pois daquela vez — apenas daquela vez —
era ela quem precisava de forças.
Então ele seria a rocha, a montanha que apontava para o céu.
E seria as estrelas, fixas no firmamento, que guiavam o viajante ao
destino.
Elya estava sentada na beirada da mesma fonte onde colhera suas
lágrimas como se fossem joias, quando eram crianças tolas e inocentes. Os
cabelos estavam despenteados em um emaranhado de tranças desfeitas, e o
traje branco completamente arruinado, tão manchado de poeira vermelha
quanto a pele rosada e macia, violada por minúsculos arranhões.
A postura era resignada, quase totalmente abjurada, e quando ela o
notou, empertigou-se por um breve momento. Os olhos feitos do mais puro
ouro reluziram, em uma dança entre o medo e a incompreensão, e quase
pôde ouvi-la perguntar, naquela não linguagem, se era mesmo ele.
Ainda que se encolhesse — se escondesse —, ele ganhou o espaço
que os separava, como se o tempo fosse demais para suportar, esticado e
quase partido, e a envolveu com tudo o que tinha dentro de si — o bom e o
ruim, o belo e o feio. Seus braços cerraram-se, impassíveis, e a mensagem
não poderia ter sido mais clara.
Ele era o Ulian dela.
— Ulian. — O corpo dela chacoalhou em soluços assustados. — A
tempestade, as areias... Elas me trouxeram até aqui, e havia outra de mim
deitada na cama. Não sabia o que fazer, nem para onde ir. O que está
acontecendo? Onde estamos?
— Onde não. Quando. — Os dedos seguraram o rosto dela com
suavidade. — Ouça-me, Elya: você nos trouxe para algum ponto do tempo,
em Belar. Imagino que não seja o futuro, por isso, só me resta pensar que
estamos no passado.

Elya o seguiu através dos jardins com os passos, antes tão confiantes,
desfeitos em incerteza, quase escondendo-se por completo atrás de sua
sombra. Ulian não se julgava tão bom em compreender as aflições alheias,
porém naquele momento, enquanto a relanceava, ousou pensar que sabia o
que ela mais ansiava, bem como o que mais temia. Afinal, retornar àquele
tempo também despertara nele um desconforto inato.
Era como olhar-se no espelho e ver seus maiores erros no reflexo,
sua própria covardia despida e crua.
— Passado, você disse? — ela questionou baixinho, conforme
aproximavam-se da residência e as paredes de pedra imaculada surgiam. —
Como uma coisa dessas poderia ser possível?
— Esperava que pudesse me dizer. Foi a sua vontade que nos trouxe
até aqui.
Elya encarou as palmas imundas das mãos como se não as
reconhecesse, ou como se esperasse vê-las brilhando com um poder que não
sabia dominar.
— Eu não entendo, Ulian...
Lágrimas penderam dos longos cílios, ameaçando derramarem-se, e
ele tratou de se aproximar, temeroso de que se ela quebrasse bem ali, não
seria capaz de reunir os cacos sozinho, Precisavam continuar até que
estivessem em um lugar seguro.
— Estive tentando descobrir em que ponto exato do passado
estamos, mas não consegui muitas informações. Quando despertou aqui,
você disse que encontrou você mesma, dormindo? — insistiu.
Ela assentiu.
— Há algum detalhe que tenha notado e que possa fazer sentido para
você? Algo nos seus aposentos ou em alguma conversa que possa ter ouvido,
que nos dê noção de quando estamos? Isso é realmente muito importante.
Elya fechou os olhos dourados como se estivesse muito cansada, e
pequeninas rugas formaram-se na testa conforme ela os apertava, pensativa.
— O cabelo, meu cabelo — disse, por fim — ainda era escuro.
— Antes da bênção de Tenar e da combinação, então.
— Me escondi debaixo da cama, não sabia mais para onde ir — Elya
continuou, como se sequer houvesse escutado sua interrupção. — E antes
que eu... Essa Elya saísse, ouvi Lyia comentando sobre um passeio na praia.
— Então os lábios rosados dela se abriram, em espanto. — Eu me lembro
desse dia, nós fomos ver o mar. — A voz era cautelosa, como se a memória
se revelasse para ela pouco a pouco. — Mas choveu, e as ondas... Nunca vi
nada assim em Belar. Retornamos muito depois do anoitecer, e minha mãe
disse coisas terríveis para Lyia por ter me exposto ao perigo.
Ulian mirou o céu e ergueu um braço, fazendo o possível para evitar
a radiação forte de Gautan: não parecia que iria chover. Na verdade, a estrela
envolta em nuvens fofas estava alta e límpida o bastante para que uma ideia
se formasse nos cantos escuros de sua mente.
Se a Elya daquele tempo ainda não havia sido abençoada e era
conhecida pelos cabelos e olhos escuros, qualquer aparição pública da sua
Elya se tornaria impossível, pois o dourado a denunciaria.
— Eu me lembro um pouco desse dia também, foi uma comoção na
Academia — ele revelou, ainda pensativo. — Mas, nesse caso, o inesperado
em muito nos ajuda. Teremos algum tempo para pensar no que fazer —
concluiu, segurando as mãos dela enquanto se esforçava para lembrar-se de
um caminho que nunca havia verdadeiramente percorrido. — Se a Elya
desse tempo saiu, seria melhor aproveitarmos para providenciar um banho e
roupas limpas para você. Depois, pensei que...
— Tudo abunda; tudo sobra; tudo basta, menos o tempo — ela o
interrompeu como se recitasse um conselho que recebera de outro. As
palavras soaram muito baixas, e Ulian quase não foi capaz de compreendê-
las.
— O que quer dizer? — indagou, virando-se.
Elya, entretanto, não estava mais ao seu alcance.
Silenciosa, havia lhe dado as costas, e o corpo inteiro tremia em dor
enquanto encarava a figura que desfilava vagarosamente no corredor
perpendicular ao que haviam tomado. Era um homem, e o porte denunciava
a importância não apenas que davam a ele, mas que conferia a si mesmo.
Tharcius Bespian, o Governador.
Ulian também tremeu assim que viu os lábios dela se entreabrirem, e
foi levado a pensar que seriam descobertos e a viagem no tempo se tornaria
conhecida, que a interferência causada pela presença deles no passado faria
tudo colapsar, criando paradoxos e destruindo o tempo contínuo.
Ela caiu de joelhos como se não tivesse mais forças para sustentar o
próprio peso, mas ao revés do grito que Ulian pensou que lhe escaparia,
apenas disse em um tom resignado:
— Eu não disse a ele que havia sido combinada com você.
A revelação o pegou de surpresa, e ele se aproximou com passos
cautelosos. Estendeu os dedos para tocá-la, reconhecendo o vazio nas írises
douradas como o mesmo sentimento que por tanto tempo o tomara. Era uma
pintura de arrependimento.
— Ele não teria acreditado. — Suspirou, cansado. — Eu não estava
aqui para ser combinado com você, e a tradição diz...
— Eu não queria contar que minha combinação era por amor, e não
dever — Elya novamente o interrompeu, sem ao menos piscar, ainda presa
na figura que lentamente desaparecia. — Acha que é por isso que ele não me
procurou?
— Só podemos imaginar os motivos dele.
— Sete ciclos, e ele não me procurou — Elya repetiu, como se nem o
tivesse escutado, afastando as mãos que buscaram erguê-la. — O que terá
acontecido em sete ciclos? — O queixo dela tremeu, e os olhos reluziram. —
Será que eles ao menos sentiram a minha falta como eu sinto a deles?
— Elya...
— Não, não devem ter sentido. Sete ciclos, e ele não me procurou...
Soluços irromperam do peito dela, como os relâmpagos da
tempestade temporal em Colossus haviam feito, atingindo tudo pelo
caminho. Eles eram ferocidade acumulada e retida. Eram a força do caos e
da mudança. A essência de um sentimento que não se poderia exprimir,
tampouco quantificar, pois sequer possuía nome.
E quando Elya finalmente chorou, algo se partiu.
Não dentro dela, nem dentro dele, que se desesperava por não saber
como alcançá-la naquele não lugar, mas algo na terra que sustentava seus pés
e permitia que a vida florescesse tão bela e fértil. Algo no núcleo e na
composição.
Ela era o futuro de Belar — o que quer que aquilo significasse —, e a
vida que a habitava se entrelaçava de uma forma inexplicável com a daquele
planeta. Por isso, quando ela chorou, a terra chorou junto, transbordou cada
riacho, rio e lago. Quebrou em ondas de violência na costa que nunca
conhecera nada além da crista e, pela primeira vez desde que se possuía
registro, choveu.
Não a garoa abençoada que fortalecia as flores e enternecia os frutos.
Não.
Choveu pesado e frio. Choveu gelo.
Choveu como em uma tormenta e depois...
Inundou.
Ulian lavava os cabelos de Elya com a ponta dos dedos, delicado e
meticuloso, enquanto ela abraçava os joelhos cada vez mais forte contra o
peito — ao menos, havia parado de tremer. Com as mangas enroladas até os
cotovelos e os antebraços mergulhados na espuma, sua energia e
concentração estavam voltadas para a tarefa de deixá-la limpa, e o corpo que
delineava com os óleos não era objeto de seus desejos, como pensara que
sempre seria, mas de suas preocupações.
As lágrimas doloridas dela haviam rolado por muito tempo, ainda
que ocultas pela torrente de água que caía impiedosa do céu, e foi apenas
quando o choro fez cessar a chuva — ou talvez tenha sido ao contrário? —
que puderam seguir até os aposentos da Elya daquele tempo, deixando
manchas de poeira vermelha pelo caminho.
Quando saíram da banheira, ele a secou com suavidade e a ajudou a
se vestir com um conjunto bordado de flores. Penteou os cabelos com
devoção, procurando por quaisquer nós que ousassem se ocultar entre os fios
preciosos, e a tomou nos braços como se não pesasse quase nada.
Quando ela finalmente adormeceu, foi até as janelas esculpidas na
pedra e espiou o céu que se integrava ao quarto silencioso, reconhecendo o
lento ascender das Soberanas enquanto, do lado oposto, Gautan cedia cada
vez mais espaço no firmamento. Caminhou pelo aposento, e deixou que os
olhos vagassem, curiosos para absorver mesmo o menor dos detalhes, pois
jamais estivera ali antes. Tudo parecia se integrar à personalidade dela, desde
o desenho intrincado dos tapetes até os raros botões que envolviam o dossel,
e ele correu os dedos pelas paredes e móveis, pelos tecidos e adornos.
Queria permanecer ali, em um lugar tão familiar e seguro para ela,
mas aquela opção não se sustentava, pois a Elya daquele tempo não deveria
demorar a voltar para casa e, muito provavelmente, seria levada à loucura
para sempre caso os visse.
Para onde iriam, então?
Belar possuía instituições hoteleiras de altíssimo nível, como era de
se esperar para um planeta tão perfeito, mas não era um mundo exatamente
amigável com turistas ou estrangeiros. Por isso, existiam políticas para coibir
que quartos fossem concedidos às pressas: era sempre necessário que se
fizesse uma reserva com larga antecedência.
Havia também a questão de ambos serem belarianos e, portanto,
seriam ainda mais perscrutados. Quais seus sobrenomes? Eles não tinham
casa? Por qual motivo desejavam ficar em um hotel? Perguntas demais
seriam feitas, e Ulian já estava cansado apenas por teorizar todas elas.
Tornou a sentar-se, e deixou o corpo escorregar.
Como se houvesse gritado seus pensamentos, uma mão suave
depositou-se em sua tez, acariciando o espaço entre as sobrancelhas e
desfazendo a tensão que se acumulava naquele ponto.
Elya abriu os olhos emoldurados pelos grandes cílios dourados, ainda
brilhantes de lágrimas, e o mirou como se em todo o universo existissem
apenas os dois e as estrelas. Ela estava quente, quase febril.
— O que o preocupa? — perguntou, doce.
Ele imaginou que talvez não valesse à pena preocupá-la também,
quando claramente precisava descansar, mas decidiu não esconder nada.
Estavam juntos naquela situação e, portanto, ela tinha todo o direito de saber
o que estava acontecendo.
Nunca mais mentiria.
— Não podemos ficar aqui, sua versão do passado não pode vê-la. E
eu... Bem, já pensei em dezenas de possibilidades e não faço ideia de para
onde podemos ir, nem de quanto tempo teremos de ficar. Para ser honesto,
não faço ideia de absolutamente nada, além de que estamos no passado,
presos antes da noite da bênção.
— Por que não pede ajuda à Lyia? — sugeriu, como se a ideia não
lhe tivesse custado nenhum esforço em meio aos delírios de uma
enfermidade impossível. Doenças não existiam em Belar, afinal. — Nossa
ala de hóspedes nunca é usada, minha mãe não gosta de abrigar estranhos.
Se pedir a Lyia por um quarto, ninguém ficará sabendo.
— Ela atentaria contra as ordens da sua mãe dessa maneira?
Elya sorriu, entristecida.
— Isso seria quase um esporte para ela. A deixaria de bom-humor
por muito tempo.
Ulian conjecturou por um instante, quase perdendo-se no calor dos
dedos que ainda o tocavam com delicadeza.
— E o que a faz pensar que a srta. Lyia me ajudaria? Estou quase
certo de que não estou em suas boas graças...
O que queria dizer, na verdade, era que estava certo de que a
implaviana o odiava.
— Ela sabe como me sinto a seu respeito já faz bastante tempo. Não
se negará.
Afundando-se na carícia, ele assentiu.
— Nesse caso, me comprometo a fazer todo o possível. Não é como
se eu tivesse a opção de falhar neste passado estranho.
Os lábios vastos e macios dela se abriram, e ele foi invadido por um
sentimento doce enquanto a ouvia suspirar.
— Foi ela quem o fez vir até mim, não foi? Naquela noite em que
você me contou tudo... Ela sabia sobre Alicia.
A menção ao inesperado nome o fez retesar os músculos por reflexo,
porém o modo carinhoso e reverente com o qual fora pronunciado tornou
mais fácil suportar o fardo que representava.
Não precisava mais carregá-lo sozinho.
— Sim, ela sabia — admitiu, virando o rosto quando sentiu as
bochechas queimarem. Ainda era nova a sensação de falar tão abertamente a
respeito do que acontecera, e por algum motivo ele ainda se envergonhava e
se responsabilizava todas as vezes que pensava na irmã. — Talvez tenha
visto em uma de suas visões. Ela disse que era um oráculo.
Ao seu lado, Elya remexeu-se com incômodo, e foi fácil perceber o
quanto ainda estava machucada pelos segredos que a implaviana guardara.
— Ou talvez você tenha contado — desconversou.
— Eu certamente me lembraria se tivesse contado.
— Não, Ulian. — Ela se ergueu, aproximando o rosto de tal modo
que suas respirações se entrelaçaram. — Não ele. Você. Já pensou nessa
possibilidade?
Então ele entendeu.
Não ele. Não o Ulian do passado.
Ele, o Ulian vindo do futuro.

Ulian pensava que Lyia era uma criatura absolutamente intimidante e


assustadora; contudo, por mais que houvesse decidido ficar longe dela
sempre que possível, ali estava ele, dentro de uma sala de visitas, onde fora
posto pelos autômatos para esperar, encarando a porta e esperando ansioso
que adentrasse a qualquer momento.
Não saberia dizer em que ponto sua antipatia pela implaviana
começara — embora “antipatia” não fosse bem o termo certo, em todo códex
belariano, para definir seus sentimentos. “Estranheza”, muito
provavelmente, seria melhor.
Talvez tenha sido nos bailes, quando aqueles olhos escuros o
seguiam pelo salão como os de uma caçadora e os traços nada indicavam do
que estava pensando ou sentindo. Talvez fosse por conta da forma como
parecia disposta a fazer qualquer coisa ou ultrapassar qualquer limite por
Elya — o que ele não poderia realmente censurar.
Mas o fato determinante era Alicia: como a implaviana poderia saber
daquela história? Como poderia ter usado seu maior segredo da maneira
como achou mais conveniente e no momento mais oportuno para conseguir
o que queria?
As palavras de Elya não lhe deixavam em paz, ecoando pelas paredes
de sua mente e rebatendo nas da sala elegante. Talvez você tenha contado.
Ele não faria uma coisa dessas.
Faria?
Remexeu-se no assento macio que ocupava, inquieto, e cruzou uma
das pernas. Uma pequena mancha avermelhada apareceu perto do joelho,
como um farol no tecido tão branco, e ele instintivamente a cobriu com os
cotovelos. Poeira.
A perfeição não existe, repetiu para si mesmo. A perfeição não
existe.
— Sr. Bened — uma voz aquosa atravessou a sala, assustando-o. —
Os autômatos da residência entregaram uma mensagem muito estranha,
dizendo que estava aqui para me ver. Por acaso devo mandá-los para o
conserto? Dizem por aí que eles não sentem dor, nem têm sentimentos, mas
eu pessoalmente reconheço o senso de humor das máquinas.
Ulian se ergueu com um movimento só e fez uma reverência
modesta, temeroso de que se quebrasse o contato visual, os tentáculos dela
finalmente encontrariam uma brecha até seu pescoço para estrangulá-lo.
— Peço que desculpe minha inconveniência — pediu, cauteloso. —
Mas os autômatos não se enganaram: vim mesmo para falar com a senhorita.
A fenda escura formou um sorriso que talvez tentasse parecer
simpático, contudo, apenas teve o efeito de causar-lhe arrepios.
— Nesse caso, tem toda a minha atenção. — Os tentáculos
esverdeados e roliços se agitaram ao redor dela quando deslizou mais para
perto, e foi possível ver pequenos cortes e machucados em alguns deles. —
Agora, por que não me diz o que pretende?
Ele tornou a se sentar, os movimentos nem um pouco graciosos e
nada dignos de um belariano. Ajustou a postura, tentando parecer mais com
o Ulian do passado, e limpou a garganta. Não haveria como tornar aquele
encontro menos estranho, o desconforto estava estampado nas faces de
ambos, motivo pelo qual optou por ser o mais direto e claro possível.
— Vim pedir-lhe ajuda.
Os três olhos da implaviana arregalaram-se quase
imperceptivelmente, porém o restante do rosto permaneceu uma máscara
impassível até finalmente falou:
— Sinto que não posso fazer muito pelo senhor, mas vá em frente.
— Vim pedir a gentileza de um quarto na ala de hóspedes dos
Bespian, apenas por alguns anoiteceres — explicou, dando-se conta de que
se forçar a encarar aqueles olhos escuros era como uma punição.
— O senhor me surpreende, realmente. Que pedido mais estranho.
Ulian suspirou, cansado dos jogos de palavras de Lyia, cansado das
mentiras de Lyia, cansado de ser analisado, aberto e exposto por Lyia.
— Um pedido inesperado, é verdade, mas preciso de um local calmo
para... Para... — Para me ocultar com a Elya Bespian do futuro até que
saibamos uma forma de retornar para nosso próprio tempo. Ah, e a
propósito, nós nos unimos em corpo e espírito e estamos casados. E também
sabemos dos seus segredinhos.
Que desculpa ele arrumaria? Não havia ainda pensado em nada.
— Talvez seja melhor que eu não saiba — a implaviana interrompeu,
o tom divertido e satisfeito de quem brincava com uma presa. — Não quero
compactuar com nenhum de seus negócios escusos.
Ao som daquela provocação, as mãos de Ulian cerraram-se em
punho, apertadas o suficiente para que as unhas muito bem aparadas se
enfiassem na carne macia e azul das palmas.
Quem ela pensava que era para julgá-lo daquela forma? Como
ousava pensar mal dele?
Um calor profundo o tomou, mas ele obrigou-se a respirar, deixando
que o fogo dos filhos de Tenar se dissolvesse nas veias. Havia julgado Lyia
de muitas formas desde que a conhecera e, mesmo enquanto conversavam,
ele muito pressupunha, agindo como acusador e juiz. Contudo, não podia se
deixar trilhar aquele caminho, pois se a perfeição não existia, então ele não
era melhor do que ninguém.
— Se dissesse que poderia revelar meus motivos, então estaria
mentindo — prosseguiu, controlando o tom de voz já mais calmo. — Mas
faço uma promessa com o testemunho das Soberanas: não pretendo causar
nenhum mal, nem cometer nenhum crime. E, principalmente, não pretendo
chegar perto de Ely… da srta. Bespian — Ele se corrigiu. — Tampouco me
fazer notar. Na verdade, contava com a sua discrição a esse respeito.
Ninguém pode saber que estou aqui.
Um longo instante se passou, mergulhado em um silêncio sepulcral,
até que Lyia o quebrou com um som estranho e quase afogado que, se não
estivesse equivocado, era uma palavra pronunciada no próprio dialeto. Não
entendeu o que significava exatamente, mas absorveu o sentido.
Não poderia permitir que ela o mandasse embora com uma negativa;
por isso, Ulian curvou-se da forma mais respeitosa que foi capaz.
— Não tenho mais a quem pedir ajuda, portanto me vejo à mercê de
sua bondade — disse, com os cachos caindo por sobre os olhos. — Por
favor.
— Não tenho dúvidas de que minha bondade é enorme. — Uma
pausa, na qual pareceu que ela saboreava as palavras. — Mas como poderia
confiar em você, Ulian Bened? Sabe que está me pedindo demais...
Os olhos sem írises o perscrutaram, invadindo-o por dentro e
revirando tudo o que puderam encontrar no caminho, procurando por uma
brecha na qual poderiam infiltrar-se. Quase pôde senti-los perguntando,
famintos por seus segredos: o que você me daria em troca?
Sim, o que ele daria?
Por Elya, tudo.
Ele estava ali, afinal, e não poderia ser assim tão diferente de Lyia.
E como se já houvesse vivido aquele momento passado, soube que
Elya estivera certa desde o princípio com sua intuição, pois seria ali que ele
entregaria à implaviana seu maior segredo; o mesmo que, no futuro, ela
usaria para fazê-lo ceder e reconhecer a própria tolice.
Talvez fosse, de fato, a melhor utilidade que poderia ter encontrado
para uma história tão triste e tão odiosa.
— Vou lhe contar algo sobre mim que nunca contei a ninguém. Algo
que nunca, nem mesmo, pronunciei em voz alta. Algo que será essencial
para que concretize o futuro que previu para Elya, oráculo.
A frase pareceu fisgá-la, exatamente como pretendia, e Lyia ergueu-
se como uma massa de tentáculos ao som daquele título que ela também
guardava em segredo.
— Quem foi que lhe disse isso? — indagou, com uma pontada de
ameaça.
Ulian, contudo, já não a temia mais.
— Chegará o dia em que me contará um segredo, mas para que isso
aconteça, preciso primeiro contar o meu. Tudo que peço é que me ajude em
troca e que tenha um pouco de fé quando me encontrar novamente. Eu posso
não ser o mesmo.
— Como se sente? — Ulian quis saber, puxando os lençóis mais para
cima. — Está confortável?
Haviam acabado de se acomodar no aposento cedido por Lyia, e ele
sentia-se exausto emocionalmente, além de exposto. A implaviana ouvira
sua história e a de Alicia com atenção, sem nem mesmo esboçar reações, e
quando pareceu que tinham se entendido quanto ao valor daquela revelação
e do que ele esperava conseguir em troca, limitou-se a perguntar novamente
por qual motivo a havia chamado de oráculo.
Aquilo ele não revelou, contudo.
— Está tudo bem — respondeu Elya, com um sorriso caloroso,
porém tristonho, segurando suas mãos como se intentasse dizer que já
bastava de tantos cuidados. — Estou apenas pensando em como é estranho
estar em um lugar onde existem duas de mim.
— Para ser o mais cientificamente correto possível, não diria que...
Sua longa e complexa explicação a respeito da teoria que envolvia as
viagens temporais e o paradoxo de estar em dois lugares ao mesmo tempo
foi interrompida assim que ela ergueu um lindo e delicado dedo e o
depositou sobre seus lábios muito suavemente, quase sem tocá-los.
— Guarde suas palestras para a Academia, Bened — advertiu. As
írises douradas capturando os raios das Soberanas que adentravam pelo
portal da varanda.
Ulian deixou vir à tona um sorriso largo e instintivo, e suas mãos
envolveram a cintura dela, trazendo-a mais para perto. Inspirou o aroma de
conforto e de lar que o impedia de despedaçar-se.
— Obrigada — ela murmurou, agarrando sua camisa. — Obrigada
por ter vindo, por não ter me deixado sozinha. Sei que nos coloquei em
apuros muito sérios.
— Não me agradeça por nada disso — respondeu, sentindo o peso de
uma verdade incômoda. — De certa forma, tudo aconteceu por minha causa.
Ela negou com a cabeça, apressadamente, porém ele sabia.
Se não houvesse se negado a admitir a intensidade dos próprios
sentimentos e decidido refugiar-se nos estudos e na ciência, nada daquilo
estaria acontecendo. Se não houvesse aceitado participar da expedição e
concordado com todos os ciclos que se passariam em Belar enquanto
pareceriam apenas alguns dias em Colossus, então Elya não estaria triste.
E não estariam os dois fora do próprio tempo.
— Diga-me a verdade: o que pretendia quando se atirou na
tempestade?
Ela afundou o rosto em seu peito, mas as orelhas rosadas tornaram-se
ainda mais escuras, denunciando a vergonha.
— Não estava pensando direito, eu... — Ela mordeu o lábio,
hesitante. — Na verdade, acho que estava pensando direito, mas não da
forma mais lógica. Eu apenas queria voltar para vê-los. Voltar para casa
antes de tudo mudar. Antes que eu pudesse decepcionar a todos.
— Queria impedir a si mesma de embarcar na nave, não é?
Elya manteve os olhos baixos, fixos nas próprias mãos.
— Sim — a confissão pesou-lhe.
— Você ainda anseia por isso? — ele viu-se perguntando,
desesperadamente desejando que ela dissesse que o escolheria sempre, não
importava qual fosse a hipótese. — Jamais embarcar?
Não se julgava um homem assim tão egoísta, porém Elya Bespian o
havia feito aprender muito sobre si mesmo e, portanto, já não negava que era
de pouca moral e pouca fibra. Um tolo que havia se escondido por tanto
tempo, lutado para afogar os próprios sentimentos — para se afastar da única
capaz de arrancar-lhe sorrisos e de fazê-lo desejar uma vida tranquila.
Velhice.
Filhas...
Com Elya, aquelas coisas de repente não pareciam tão erradas ou
hediondas assim.
— Não.
Era uma única e simples sílaba, entretanto, incendiou as brasas no
coração de Ulian. Seu tronco inclinou-se, e os lábios encontraram os dela
como se estivessem famintos, abrindo caminho até que o gosto doce do beijo
escorresse por sua garganta, de novo e de novo.
A promessa ainda dançava na ponta de sua língua, ganhando o
espaço entre os móveis e, por fim, entre eles dois. Era o ar que lhe escapava,
entrecortado. Era o desejo vivo e incendiário que corria em seu sangue
dourado, consumindo tudo o que encontrava pelo caminho. A pele e os
monstros que nela habitavam.
— Para mim, o amor é a arma que nunca erra, a ferida que nunca se
fecha — Elya deixou escapar para a noite morna, as írises bem fixas nas
suas, como se lhe dessem permissão. Como se o desafiassem. — Minha sina.
Minha maldição.
Ulian desceu com suavidade o tecido da blusa dela, seda
confundindo-se com a pele cor-de-rosa, e plantou beijos pelos ombros, quase
sorrindo quando a viu se contorcer. Espalmou as mãos na barriga, tocando a
curva dos seios, e então foi ainda mais para baixo até que ela estremecesse.
— E, ainda assim, eu deixaria que com ele me ferisse quantas vezes
desejasse — sussurrou antes de devorá-la.

Ulian correu as pontas dos dedos pela coluna de Elya e acariciou os


longos cabelos dourados como se quisesse gravar cada detalhe na memória,
temeroso de que a qualquer momento a tempestade temporal o cuspisse em
uma realidade onde ela não existia.
Apesar de sonolento, ergueu-se com cuidado para não despertá-la e
espreguiçou o corpo antes de vestir as calças. Enfrentar Lyia não havia sido
agradável, porém ao menos rendera-lhes aquele espaçoso aposento, além da
possibilidade de uma noite confortável de sono — mesmo que não tivessem
usado a privacidade apenas para algo tão banal quanto dormir.
Ainda sentindo o gosto dela, tirou alguns cachos dos olhos e afundou
as mãos nos bolsos, encontrando a frieza de pequeninas placas de metal:
eram as memórias ainda intactas dos instrumentos que trouxera de Colossus,
e ele decidiu analisá-las enquanto o amanhecer não havia rompido a tensão
da noite.
Saiu do quarto de dormir com passos suaves e fechou a porta atrás de
si. Na área de estar, sentou-se à mesa e tocou a superfície de cristal,
acessando o sistema de comunicação e transmissão de informações que se
acendeu, bruxuleando em azul-claro.
Requisitou acesso à Academia, e a rede reconheceu sua assinatura
pessoal antes de admiti-lo nos sistemas. Registrando alguns dados
obrigatórios e essenciais para validar a pesquisa, colocou as placas sobre o
tampo que, com algum atraso, iniciou a desencriptação. Aquele seria um
trabalho meticuloso de divisão, categorização e interpretação de dados, e se
pudesse estar fisicamente na Academia sabia que o processo todo seria
muito mais rápido.
Enquanto as letras minúsculas preenchiam o holograma formado à
sua frente, compondo equações e fórmulas complexas, seus olhos buscaram,
rápidos, por um padrão que havia vislumbrado muitas vezes nos dados das
escavações em Colossus. Localizou alguns, engolidos por outras sequências,
mas uma combinação em particular chamou sua atenção, por ser
completamente nova.
Isolou-a após alguns toques e determinou aos sistemas que a
processassem à parte. As probabilidades eram baixas, contudo ainda era
possível que houvesse algo ali, oculto, apenas esperando para ser
descoberto...
Ulian escorou o corpo dolorido na poltrona macia e deixou a mente
vagar. Suas pálpebras se fecharam enquanto rememorava as palavras de Elya
a respeito de atirar-se na tormenta para voltar no tempo e do desejo que
sentia de impedir a si mesma de entrar na nave para procurá-lo. Ela parecia
não saber, mas o que pretendera não era possível.
Na suposição de que fosse capaz de impedir a si mesma de roubar a
nave do pai e de viajar até Colossus, então jamais estaria na base da
expedição no momento da tempestade e, consequentemente, jamais teria
adentrado no núcleo da tormenta e retornado ao passado para concretizar a
ação de impedir a si mesma.
Era um paradoxo.
Um som bipado o tirou do devaneio, e ele esfregou os olhos cansados
e ardidos. Precisava desesperadamente de um banho, embora não quisesse se
separar do aroma adocicado que aderira à sua pele.
Uma equação surgiu, formada por uma linguagem que nunca se
enganava e que não dependia do tempo para existir. Os cientistas
acreditavam que os números eram o idioma definitivo, com o qual os deuses
haviam feito nascer o universo e tudo o que nele era vivo.
Então ele piscou e se levantou. Releu os dados reunidos, incrédulo e
mal contendo a própria excitação diante do que se revelava quase sem
esforço em meio à torrente de dados.
Não era possível mudar o passado, mas talvez ele estivesse prestes a
mudar o futuro.
Ulian precisava entrar na Academia Belariana de Ciências mais do
que qualquer coisa que já havia suposto precisar em toda vida — ou que a
maioria delas. As informações que detinha lhe queimavam, abrindo buracos
no fundo de sua mente, e ele tentou forçar um pouco de calma para dentro de
si mesmo, ciente de que pensar que havia feito uma descoberta não era o
mesmo que efetivamente fazê-la.
Correu as mãos inquietas pelo rosto e os dedos por entre os cachos.
Havia passado toda a madrugada em claro? Não à toa sentia-se tão esgotado.
Uma batida suave ecoou através da porta de cristal que separava o
interior do aposento e o corredor todo erguido em pedra do lado de fora, mas
por um instante Ulian perguntou-se se a teria imaginado. O material havia
sido tratado de tal forma que não permitia que se visse através dele.
Temeroso de que houvesse sido descoberto por Cília Bespian ou,
muito pior, pela Elya daquele tempo, achegou-se ao portal pé ante pé. Sem
ouvir sons vindos do outro lado, entreabriu apenas uma fresta da enorme
porta, que deslizou para o lado como se flutuasse sem peso algum.
Para seu alívio, o corredor estava vazio, ainda escuro e silencioso,
exatamente como esperado de uma ala não utilizada. A exceção era uma
pequena bandeja reluzente, na qual fora acomodada uma tigela quase
transbordando um ensopado fumegante, além de pãezinhos de frutos ainda
quentes e uma variedade mais que suficiente de néctares.
Lyia.
Ele se abaixou e pegou a refeição muito agradecido, certo de que o
gesto não teria sido necessário, pois não fizera parte do acordo não
verbalizado entre eles.
Inspirando os reconfortantes aromas dos alimentos frescos, muito
diferentes daqueles racionados na expedição, Ulian carregou a bandeja até o
quarto de dormir, onde Elya jazia ainda na mesma posição.
O desjejum farto era para apenas uma pessoa, mas via-se que a
implaviana havia se esforçado — se por desconhecer sua dieta ou por medo
que acabasse morrendo de fome, não poderia dizer. Seria, portanto, mais do
que suficiente para os dois e ele aceitou o gesto com um símbolo de paz.
— Elya, querida — chamou baixinho, tirando as mechas de cabelo
dourado que haviam escorregado para a testa dela. — Você precisa comer
um pouco.
Talvez por seu afago ou pelo aroma forte e convidativo do ensopado,
ela despertou com um enorme sorriso tomando os lábios e as írises reluzindo
como se fossem feitas de ouro líquido.
Como se houvesse esquecido onde e por que estavam.
— Onde conseguiu algo assim? — ela perguntou, apoiando-se nos
cotovelos enquanto esfregava os cílios delicados, ainda tomada pelo sono
que a colocava serena.
Ele sorriu de forma travessa, tentado a responder alguma absurda
inverdade apenas para ouvi-la rir um pouco. Contudo, limitou-se a cobrir o
tentador corpo nu carinhosamente com o lençol e ofereceu-lhe o maior de
todos os pãezinhos sem pestanejar.
— Acredito que tenha sido Lyia — confessou, surpreso com a
ausência de ressentimentos no próprio tom. — Foi deixado à porta.
Elya partiu a massa fofa e a abocanhou com vontade. Depois, lambeu
as migalhas dos dedos vagarosamente, coisa que uma dama belariana jamais
deveria sequer pensar em fazer.
— Eu disse que ela o ajudaria — ela falou, como se nem mesmo
soubesse do efeito que causava. — Ela gosta de você, Ulian.
— Eu não ousaria chegar tão longe — viu-se obrigado a responder.
— É claro que gosta.
Os traços dela tornaram-se distantes, e o rosto belo e perfeito pareceu
carregado com um misto de nostalgia e ressentimento, fácil de compreender.
Ainda estava ferida pelos segredos cultivados entre as duas, mas havia um
lampejo de algo mais. Arrependimento. Talvez até mesmo saudade.
— Ela já sabia sobre nós e tudo o que fez... Foi para garantir nossa
felicidade. Eu queria... — Palavras faltaram. Os traços, contudo, revelaram
tudo o que um códex inteiro não poderia. — Uma chance.
Ulian compreendia perfeitamente o sentimento ambíguo.
Com um movimento fluído, a trouxe mais para perto e recostou a
ponta do próprio queixo no topo da cabeça dela, inspirando o aroma que os
cabelos longos e dourados exalavam.
— Você teria feito o que fiz, se estivesse em situação semelhante? —
ela indagou. — Teria deixado seu lar e ido atrás do amor, custasse o que
custasse?
— Acho que sim — Ulian respondeu, sem hesitar. — Mas essa
pergunta não é justa, Elya, pois as mulheres sempre têm mais a perder em
nossa sociedade, e eu nunca tive um lar ou uma réstia de amor familiar aqui
em Belar. Sua escolha foi muito mais corajosa.
Elya encaixou o rosto no vão de seu pescoço, enterrando as unhas em
suas omoplatas de um modo terrivelmente prazeroso. Agarrou-se à sua pele
azul como se quisesse habitá-la, e ele devolveu o abraço — embora com
muito mais delicadeza.
— Desejei voltar para consertar as coisas, mas a verdade é que só
consegui piorar tudo. Eu sei.
— Vou encontrar uma forma de nos levar de volta. — A promessa
deixou-lhe os lábios com facilidade, enroscando-se ao redor de braços e
pernas. — E você não terá mais de se preocupar com nada.
— Não me parece justo. — Ela suspirou. — Sabe, você não precisa
resolver todos os problemas do mundo sozinho, em especial aqueles que
causei. Já passou o momento de me responsabilizar.
Ele a encarou por um momento e, então, sorriu. Que surpresa e que
força da natureza era Elya Bespian.
— Se eu lhe dissesse que o passado não pode ser alterado, você
acreditaria?
— Eu acreditaria nas mais doces mentiras, se fossem ditas pelos seus
lábios. — Elya corou, talvez percebendo a ousadia das próprias palavras. —
Mas isso ainda não me impediria de tentar.
Viagens no tempo pareceriam a coisa mais simples a um leigo ao
saber que um casal de belarianos havia conseguido voltar ao passado após
jogar-se em uma tempestade temporal, contando apenas com a força de
vontade de uma mulher corajosa e um pouco de sorte. Que dificuldade
haveria, portanto, na criação de um mecanismo que permitisse a formas de
vida inteligente deixarem seus próprios tempos e brincarem de deuses?
Muitas, para começar.
Ulian passou as mãos cansadas sobre o próprio rosto, certo de que, se
não fosse pela tonalidade profundamente azul da pele, exibiria bolsas
escuras debaixo dos olhos que escandalizariam toda a sociedade.
Seus passos eram duros e apressados, embora contidos o bastante
para não chamarem — tanta — atenção indesejada, coisa que suas roupas
brancas repletas de vincos, já não tão imaculadas assim, e os brincos
brilhantes como fragmentos do céu faziam muito bem.
Ele estava um desastre.
A praça central era uma joia a reluzir debaixo dos implacáveis raios
de Gautan, refletindo a radiação avermelhada em cada superfície de cristal,
como se tivesse sido feita de nada mais que sonhos. Todos os ângulos e
pedras assentadas, assim como todos os prédios de liga metálica, haviam
sido cuidadosamente projetados para espelhar os movimentos de Tenar e
Ésper no firmamento ao longo de um ciclo, e nenhuma outra raça poderia se
dar a tamanho luxo. Até mesmo as cores, dourado e prateado, dominavam o
ambiente externo, por pouco não quebrando o delicado equilíbrio com seus
contrapontos naturais: árvores frondosas e imensas, e canteiros vastos de
flores que nunca perdiam as pétalas delicadas.
Em sua linha de visão, a maior maravilha já projetada em Belar
erguia-se com pináculos reluzentes entre as sombrinhas das damas e os risos
dos cavalheiros: a Academia Belariana de Ciências. O lugar que o salvara.
Corria grande risco indo até ali, mas precisava admitir que nunca
tivera escolha. Mesmo antes de prometer a Elya que encontraria uma forma
de mandá-los de volta ao próprio tempo — uma promessa soberba demais
até para ele —, já havia se comprometido com aquele trabalho.
Chafarizes lançavam jatos de água que se espalhavam no alto,
obedecendo a gravidade, com minúsculas gotículas que refrescavam seu
corpo prestes a entrar em combustão, enquanto ele vencia a distância.
Não sabia por qual motivo o tempo o fascinava tanto, embora tivesse
começado a pensar, desde que fizera a descoberta das sequências de dados
que poderiam completar sua fórmula, que talvez fosse porque queria tê-lo
um pouco mais. Para si ou para dá-lo a alguém cujo tempo fora encurtado.
Roubado.
Seus punhos cerraram-se, e Ulian obrigou-se a relaxar quando se deu
conta de que os passos o haviam levado até a entrada da Academia, onde um
par de portas de cristal enorme se impunha sobre os visitantes. Elas nunca
cediam, tampouco se abriam: era necessário atravessá-las com propósito
certo.
— Lembre-se do porquê veio — murmurou para si mesmo, repetindo
a frase que não saía de sua mente desde que deixara a residência dos Bespian
furtivamente.
Os pés se apressaram, impulsionando-o nervosamente, e ele sentiu o
instante em que o cristal entrou em contato com a pele, liquefazendo-se em
um fluído seco e quase sem massa. Sua entrada foi permitida.
Havia passado os últimos dias rememorando cada pequeno
compromisso ao qual havia comparecido naquela manhã: a roupa que
vestira, as refeições que fizera e as pessoas com quem trocara mesmo que
um simples olhar. Tudo fora condensado em um relatório detalhado que Elya
o ajudara a memorizar, e a certeza dos dados lhe dava tanto conforto quanto
o tilintar familiar dos brincos.
Enquanto esperava pelos elevadores e os dedos nervosamente
percorriam a curva suave dos botões que lhe fechavam a camisa, um tapa
forte em suas costas o fez perder o ar e lançar-se para frente, sem equilíbrio.
Assim que os pulmões se estabilizaram novamente, Ulian virou-se
perplexo para trás, as sobrancelhas unidas em nítido desagrado e palavras
nada educadas dançando na ponta da língua. O olhar que encontrou o seu,
contudo, o fez relaxar.
Edon.
— Você sabe que está horrível, não sabe? — o quaarsariano disse,
com a voz gutural soando como fragmentos de um sonho distante.
Aparentemente, outras raças achavam graça em fazer aquele tipo de
comentário a respeito de belarianos. — E por que essa cara de espanto?
Parece que nunca me viu...
Ele engoliu em seco, feliz por reencontrar seu melhor — e único —
amigo, mas certo de que aquilo acrescentaria uma complicação
desnecessária a seus planos.
— Que falta de bons modos — rebateu, adentrando no
compartimento suspenso de cristal sem pensar em mais nada para dizer.
— Perdoe-me, sr. Bened. — Um floreio sarcástico com as mãos. —
Permita que este humilde vassalo reformule. — Um pigarro. — Sua face está
terrivelmente desprovida de encanto nessa belíssima manhã primaveril —
declamou, como a uma poesia.
— Só estou cansado — Ulian interrompeu a bravata, rolando os
olhos.
Ao menos, não era uma mentira.
— Pensei que, depois que seus pais lhe dessem permissão para se
tornar um cientista depravado que abandona o próprio planeta e o
compromisso com a procriação de criaturinhas perfeitas para carregar o
sobrenome dos Bened, fosse relaxar um pouco.
As palavras de Edon teriam soado venenosas e agressivas para
qualquer um, além de extremamente insensíveis, mas Ulian não se abateu —
ao menos não por aquilo. Sabia bem o quanto quaarsarianos apreciavam
falar sem rodeios. Eram criaturas livres e assim se empenhavam em
permanecer, tão apreciadoras da verdade quanto belarianos julgavam-se.
— Não estou na melhor das manhãs — deixou claro, sentindo as
mãos fechadas em punho novamente.
Quando revelou aos progenitores o desejo de deixar Belar e partir
com a expedição, eles o ameaçaram de todas as formas que podiam, mas não
tinham nada além do orgulho belariano para barganhar, enquanto ele tinha
gravado na memória um crime hediondo e repulsivo. Ao final, permitiram
que integrasse a missão a Colossus para garantir seu silêncio e finalizaram
garantindo que não o consideravam mais um filho.
Apertou as têmporas.
Ele não se considerava mais um Bened há tempos.
— Vamos lá, desfaça essa expressão de desânimo — Edon
incentivou, erguendo a mão enorme para lhe dar mais um tapa nas costas, do
qual Ulian escapou por pouco. — Apenas mais alguns dias, e seu único
compromisso será a ciência.
Ulian virou em mais um corredor, a caminho do laboratório onde se
localizava um fragmentador de matéria com o qual faziam testes desde a
primeira missão a Colossus.
Apesar das palavras acidamente diretas, Edon estava certo. Aquele
Ulian que discutira com os progenitores não era ele; ao menos, não mais. Ele
era outro Ulian, tão incrivelmente distante daqueles eventos que não fazia
mais sentido doer-se por algo que havia ficado no passado.
— Você me parece feliz demais para quem está sendo obrigado a
fazer refeições belarianas — provocou, rememorando o quanto o amigo
havia reclamado da dieta baseada a frutos e flores não ser suficiente.
— Consegui um pouco de carne ontem à noite — Edon confessou,
dando de ombros com uma expressão reluzente. — E não, não estou me
referindo ao desjejum — esclareceu, com uma piscadela. — Você ficaria
surpreso se eu te contasse...
Ulian ergueu as mãos para interrompê-lo e fez uma careta de horror
ao se dar conta do que significava a declaração. No entanto, logo sentiu os
cantos dos lábios curvando-se em um sorriso fácil, que o amigo sempre
conseguia arrancar de seu interior, não importava quão difícil estivessem as
coisas.
Amizade sincera não era fácil de encontrar, quando se era um
belariano.
— Agora vejo o motivo pelo qual minha moral e fibra tornaram-se
tão terrivelmente ordinárias nos últimos tempos — admitiu para si mesmo.
O espécime quaarsariano abriu um sorriso repleto de dentes afiados.
— Não faço ideia do que está falando.
— Aproveite que está aqui com tanto tempo livre, e venha me ajudar
a rodar uma simulação — disse, invocando a atitude do Ulian do passado o
melhor que pôde. O Ulian rígido e incorruptível que jamais teria aquele tipo
de conversa. — Quero testar uma teoria.
— E por acaso essa sua mente tão incrivelmente moralista não é
capaz de rodar uma simples simulação sozinha, dr. Bened?
— Duas mentes pensam melhor, por mais libertina que seja uma
delas...

— O que isso deveria significar? — indagou Edon, aproximando


tanto a cabeça do cristal que protegia o interior do fragmentador, que a
respiração pesada se condensou em gotículas.
— Eu... — Ulian apertou a tela de anotações junto ao peito, certo de
que estaria deixando uma marca permanente. Os nós dos dedos estavam
claros demais diante dos números que bruxuleavam, nada mais que
hologramas projetados em sua caligrafia perfeita e arredondada. — Creio
que nada, ainda — forçou-se a dizer.
Balançou o corpo todo, como se quisesse espantar a tensão, e os
cachos cobriram seu campo de visão por um instante. O Edon do passado
não poderia ser influenciado de nenhuma forma pelas informações que
trouxera consigo, tampouco levado a saber sobre eventos futuros que
pudessem influenciar as escolhas que faria.
Se sua desonestidade fosse o único mal que causaria ao amigo,
carregaria a culpa de bom grado.
— Então nós passamos o dia inteiro aqui por nada?
— Somos cientistas, o que esperava? — questionou de maneira
retórica, com os olhos reluzindo em ouro líquido.
Uma pequena partícula brilhava na contenção, e um raio se lançou
para fora dela, descarregando uma ínfima corrente, desafiando-o a chegar
mais perto. Parecia inofensiva, mas Ulian não se enganou e, em algum lugar
dentro de si mesmo, enchia-se com um orgulho tipicamente belariano.
Os dados que os instrumentos colheram ao longo da viagem temporal
realmente haviam sido úteis, e a combinação na qual vinha trabalhando
provou-se um acerto. Preenchia os espaços vazios de sua equação e nos
testes de pequena escala que conduziu, entre todos os cenários que o
fragmentador fora capaz de rodar naquele curto período, um parecera
promissor.
— Você estava tentando evitar uma reação em cadeia? — o
quaarsariano questionou.
Ambos se voltaram para a máquina.
— Na verdade, pensava em causar o maior número de reações de
fusão em cadeia possível — revelou. — Para abrir uma brecha no tecido do
tempo.
Edon cruzou os braços em frente ao corpo, pensativo. Poderia ser
rude nas palavras e gestos, para os padrões belarianos, porém não havia nada
de modesto na inteligência da ciência que praticava, e Ulian muito o
respeitava.
— Estamos falando de muita energia aqui. Praticamente no mesmo
nível das tempestades que acontecem em Colossus, segundo os relatórios
que recebemos. Os geradores do prédio não teriam essa capacidade...
Espiou as anotações do amigo que, muito embora estivessem em
quaarsariano, lhe eram totalmente compreensíveis — primeiro, porque a
matemática era um idioma universal; segundo, porque também sabia ler e
escrever naquele dialeto. Tinha se forçado a aprender logo que se
conheceram, desesperado para se comunicar e trocar ideias com o cientista
brilhante do longínquo Quaasar.
— Gosto de como você pensa. — Apontou para um esboço
apressado no meio de inúmeras equações. Era de uma máquina. — Se
encontrássemos uma forma de conduzir a energia de forma estável, muitos
problemas se resolveriam.
Um sorriso de presas escuras lhe foi oferecido.
— Imagine o que poderemos fazer quando estivermos em Colossus...
O tempo se dobrará à nossa vontade.
Tempo.
A palavra reverberou por seu interior como se fosse uma construção
oca; nada além de paredes nuas.
Pois Ulian começava a desconfiar que o tempo nunca — jamais — se
dobraria.

— Não — Ulian repetiu, completamente convencido de que, daquela


vez, não cederia aos encantos de Elya. — Definitivamente não.
— Ulian! — ela reclamou, alcançando-o e colocando as mãos suaves
sobre seus braços, que estavam cruzados, simbolizando sua determinação. —
Eu já planejei tudo.
Ele virou o rosto, preferindo encarar as paredes ou a penumbra do
que os olhos dourados e infinitos que detinham o poder de fazê-lo aquiescer
com as maiores insanidades.
— Venho trabalhando na Academia para nos levar de volta ao nosso
próprio tempo, não para nos causar ainda mais problemas.
— E de que adiantaria retornar para um futuro como aquele que
deixamos?
— Não cabe a nós mudar o passado...
— Mas eu não quero mudar nada no passado. — Ela fez um biquinho
e correu a ponta dos dedos por seus braços, delineando os músculos até que
ele nada mais pudesse fazer, senão estendê-los perigosamente perto demais
das coxas dela. — Ouça-me primeiro; reclame depois.
Os lábios de Ulian formaram um sorriso involuntário. Elya Bespian
sempre conseguia o que queria, de uma forma ou de outra. Mas quando ela
mandava nele... Bem, realmente não conseguia evitar obedecê-la.
— Sabe quais as probabilidades de algo dar errado apenas por
estarmos tendo esse tipo de conversa?
— Não me diga que as calculou — ela provocou, também com um
sorriso dançando nos lábios rosados como pétalas de flores. — Você tem seu
propósito. Passa dias e noites com seus números e cálculos, reconheço o seu
cansaço. Mas eu... O que é esperado de mim? Só ficar parada aqui, em
silêncio, existindo? Sendo bela e perfeita?
— Eu jamais pensaria ou pediria algo assim de você.
— Sei que não, mas, ainda assim, isso tudo me dói. Eu nos trouxe até
aqui (embora não esperasse que minha tentativa desse certo), só para
descobrir que não posso fazer nada a respeito dos meus erros. Foi muita
sorte não termos morrido, mas também muito azar ter funcionado.
— Sinto muito que seja assim. Se pudesse compreender os mistérios
do tempo... Falta tão pouco. Estou tão perto.
Segurando suas mãos, Elya o guiou até o quarto e o fez sentar-se
sobre a cama. As Soberanas estavam altas no céu, e os raios dourados e
prateados que irradiavam eram fortes o bastante para iluminar todo o
ambiente.
— Você me disse muitas vezes que não devemos mudar o passado —
começou a dizer, desabotoando a gola de sua camisa. Ulian não perguntou
com qual intuito. — Mas nada disse a respeito do futuro. Não era você o
cientista que tanto estudava o tempo em Colossus, na esperança de entender
melhor o poder das tempestades?
Ulian suspirou, levemente irritado por não ser capaz de refutá-la.
— Sim, para entender as viagens, não usá-las para colapsar a
realidade...
Elya pousou um dedo sobre sua boca, comandando-o a ficar em
silêncio.
— Eu ainda não terminei. — Então, desceu o dedo por seu pescoço,
prosseguindo o trabalho com os botões até que seu peito estivesse exposto e
a pele, dolorosamente arrepiada. — Quando me joguei na tempestade, queria
voltar para desfazer minhas ações; impedir a mim mesma de entrar na nave.
Agora sei que isso não seria possível, mas que mal faria se eu encontrasse
uma forma de deixar uma mensagem? Para meu pai, talvez...
Ele fez menção de interferir, porém Elya novamente o calou com o
peso de um olhar.
— Qualquer coisa que eu pudesse dizer a ele agora sobre o futuro
não seria compreendida e não interferiria nos eventos que vão logo
acontecer. Eu serei reclamada por Tenar, me apresentarei perante o Conselho
e serei combinada, roubarei uma nave, procurarei por você. — Enumerou,
com simplicidade. — Nada disso vai mudar, mas, se eu pudesse dizer algo a
ele que plantasse uma semente...
— Qualquer coisa que você dissesse influenciaria o curso dos
eventos.
— E se eu dissesse algo muito simples?
— Como o quê?
— Que eu o amo. Que amo todos eles.
Ulian havia se comprometido a levá-los de volta ao próprio tempo.
Seus experimentos, entretanto, fracassavam repetidamente, como se
estivesse fazendo tudo errado. No fim, não era bem um exímio cumpridor de
promessas, fato comprovado pelos eventos recentes, mas ao menos pensara
ser melhor com as ciências.
A Academia estava estranhamente silenciosa e vazia para aquele
anoitecer do ciclo, e, muito embora os zunidos dos aceleradores alocados
nos andares abaixo preenchessem seus ouvidos de modo familiar, a ausência
de outras mentes pensantes era em muito sentida.
Nenhum cientista teorizara sobre quão solitárias as viagens temporais
poderiam vir a ser para aqueles que a elas se submetiam.
Suspirou, digitando alguns comandos no painel de controle da
máquina. A singularidade formada por um único ponto distorcido se desfazia
velozmente, e não havia nada que pudesse fazer para adiar o inevitável
perecimento.
Dominar o tempo sempre parecera algo impossível, e ele jamais
tivera tal pretensão, por mais atraído que se sentisse pelo estudo. Almejava
entendê-lo e, se possível, tornar-se um amigo. Não usá-lo, como um senhor,
mas pedir-lhe emprestado vez ou outra.
O tempo, por sua vez, parecia não querer nada com ele. Era livre e
selvagem, não poderia ser domado.
Quem ele pensou que fosse quando decidiu tentar?
A sala de um branco asséptico fechou-se ao seu redor, ainda que
fosse tão grande que jamais seria possível avistar todas as paredes de uma só
vez, e Ulian manifestou, contra a vontade, pensamentos relacionados ao
próprio fracasso e decepção. Não seria a primeira vez que eles lhe
sussurravam...
A perfeição não existia.
Eram como um comichão que o consumia.
A perfeição não existia.
Ou um impulso que não poderia evitar e ao qual, eventualmente,
cederia.
O primeiro teste realizado naquele fragmentador fora tão
inesperadamente bem-sucedido, que Ulian se acomodou no momento de
triunfo, esquecendo-se de que um resultado favorável uma única vez não era
ciência, apenas sorte.
Desde então, descobrira-se cada vez mais distante do objetivo, e
começara a pensar que, talvez, as viagens não devessem acontecer. Que
talvez — apenas talvez — fosse um crime tentar controlar algo tão
incrivelmente primordial, e Elya e ele devessem pagar pela transgressão.
Suas mãos soltaram a tela de anotações sobre uma bancada como se
queimasse, e os olhos correram pelas fórmulas que colapsavam em cadeia,
revisando os números daquela variação antes que se perdessem. Deveria
apenas ter admitido que estava cansado demais para que o esforço fosse útil,
porém era teimoso e não conseguia. Pois como poderia ceder, ciente de que
aquela seria sua última oportunidade de tentar? Como desistir e aceitar que
aquela Academia e aquele Belar não eram seus? Que o tempo não era seu?
Se ao menos se tivesse um pouco de ajuda...
Balançou a cabeça. Aquele era um pensamento redundante, pois já
havia repetido para si mesmo muitas vezes que não deveria intervir no
passado — já era ruim demais que buscasse interferir no futuro.
Decidido a voltar para casa — que para ele deixara de significar um
lugar e passara a significar uma pessoa —, entrou no elevador. Através do
cristal, o céu de Belar vazou para dentro, e incontáveis constelações, bem
como duas luas enamoradas, surgiram em meio à fumaça das nebulosas.
Queria poder recorrer ao menos a Edon, contar ao melhor amigo que
havia se metido em uma confusão tão grande que se via incapaz de resolver
o problema sozinho. Ele era bom, como pessoa e cientista, e, mesmo que um
pouco ácido, ainda era aquele em que mais confiava e que mais admirava.
No entanto, Elya e ele haviam discutido sobre aquilo depois que ela
lhe contara sobre a ideia de deixar uma mensagem para o pai, que acreditava
que só seria entendida no futuro e em nada interferiria no passado. Portanto,
precisava dar o exemplo e seguir os próprios conselhos. Pensar como um
homem racional. Um cientista que sabia dos perigos de brincar com o tempo.
Mas então...
Uma lembrança o atingiu como um raio. Nada além da recordação de
um momento ao qual não dera nenhuma importância à época, mas que
guardava um segredo codificado apenas para ele.
O relatório.
Com a respiração acelerada, seus dedos se arrastaram pelo cristal frio
ao toque, buscando o painel de controle, e obrigaram o elevador a parar e
depois retroceder, levando-o novamente para baixo, ao andar dos
laboratórios.
Eufórico, pegou a tela de anotações que permanecia onde a havia
abandonado e começou a escrever tudo o que se lembrava. Os símbolos
eram simples, embora estivesse um pouco desacostumado a eles.
Febril, Ulian despejou a hipótese e a premissa, a fórmula e os
cálculos, as respostas e os erros — principalmente os erros. Condensou tudo
o que sabia e havia pesquisado em um documento de valor incalculável, não
pelo conhecimento que levava consigo, mas pelo que carregava arraigado
em cada linha.
Sua esperança.
A expedição para Colossus partiria ao amanhecer, e o Ulian daquele
tempo deveria estar adormecido na própria cama, pensando em um punhado
de problemas que poderiam ser distribuídos pelo firmamento como estrelas.
Que dormisse e sonhasse, inocente ainda para os eventos que logo o
alcançariam.
Dissera a Elya que não poderiam deixar mensagens, pois ainda assim
haveria o risco de causar uma grande interferência no contínuo do tempo, e
por isso esperava que ela pudesse perdoá-lo.
Ele já havia mandado uma, só não sabia ainda.
O arranjo era mesmo genial. Um envio disfarçado bem o suficiente
para que fosse interpretado como uma falha de procedimento que a rígida
Academia de Ciências ordenaria que fosse corrigida.
Tudo o que precisava fazer era programar, e datar para sete ciclos,
quatro fases e oitenta e uma crescentes.
Pois a mensagem era para Edon.
Ulian estava no ancoradouro central de Belar quando os motores da
nave da expedição a Colossus foram ligados e o público exclamou, surpreso
e embriagado pela ousadia do transporte. Em meio à comoção, pouco se
importaram em prestar atenção a suas feições ou suas roupas, e ele se
esgueirou entre a multidão ordenada e tranquila até assegurar a melhor vista
possível.
Feita para ser uma flecha, robusta e aerodinâmica, fora construída em
liga metálica e revestimento de impenetráveis painéis de cristal que reluziam
aos primeiros raios de Gautan, como se incrustrados de pedras preciosas. O
que mais impressionava, contudo, era o silêncio: a nave não emitia som
conforme cortava a atmosfera, deixando para trás um rastro arroxeado
decorrente da queima dos combustíveis limpos.
Mesmo depois que o ancoradouro central foi liberado e as pessoas
retomaram suas vidas comuns, Ulian permaneceu encarando o ponto onde a
nave havia desaparecido, perguntando-se como seria capaz de se esconder
com Elya por sete ciclos, quatro fases e oitenta e uma crescentes — e
provavelmente por um pouco mais de tempo depois disso, caso a mensagem
realmente chegasse a Edon e as coisas dessem certo.
Caso não dessem, bem... Ele fazia o possível para não pensar muito
na hipótese.
Sentir-se como um viajante à deriva da sorte não era de seu feitio,
porém via-se destituído de opções, considerando os fatos. A solução parecia
óbvia, embora relutasse: deveriam partir.
Não sabia dizer por qual motivo rechaçava aquela ideia sempre que
surgia, porém disse a si mesmo que o fazia por Elya, para não separá-la do
pouco que ainda havia lhe restado.
A verdade, entretanto, era mais egoísta e ainda mais dolorosa de
admitir.
Ulian estava com medo.
Medo de que, se partissem, perderiam para sempre a chance de
retornar ao próprio tempo caso alguma oportunidade se revelasse. Medo de
como era o universo de verdade fora de Belar, o único planeta que já havia
conhecido além de Essiclan, que apenas vislumbrou pelas janelas da nave. E,
principalmente, medo de descobrir o que ele próprio era, além de belariano,
ou pior, de que não soubesse ser outra coisa.
Andou de volta à residência dos Bespian na maior parte do caminho,
sentindo os pés reclamarem dentro dos calçados finos, nada apropriados
àquele tipo de atividade, assim como as roupas aderindo ao corpo, castigadas
pela estrela que brilhava avermelhada no céu. Seus pensamentos estavam
inquietos. Quando chegou à ala de visitantes, uma sombra deslizava pela
parede de pedra do corredor.
Sobressaltado, ocultou-se atrás de uma curva, o coração ribombando
nervoso, mas quem quer que fosse a figura furtiva, pouco estava interessada
nele e sequer relanceou em sua direção. Seguiu silenciosa e rápida por entre
uma passagem oculta em meio às pedras, desaparecendo.
A situação não lhe invocava boas sensações. Ainda assim, Ulian a
seguiu, conjecturando dezenas de hipóteses, temeroso de que houvessem
sido descobertos e tivessem de sair correndo, às pressas, para evitar que algo
ainda pior acontecesse — se fosse o caso, melhor que soubesse o quanto
antes.
No encalço do desconhecido, percorreu corredores labirínticos e
abobadados, atravessou pontes suspensas feitas de cristal e, finalmente,
encontrou-se parado em frente a um jardim circular, enfeitado com flores
selvagens. A pessoa certamente sabia muito bem aonde estava indo; tinha
passos ligeiros e decididos.
Pilastras brancas sustentavam a entrada da construção naquele ponto,
e a figura espiava por entre uma fresta das portas entreabertas.
— Papai? — ela chamou, e o tom fez com que um arrepio
percorresse seu corpo por inteiro. — Posso entrar?
Era Elya.
Sua Elya.
Ele se engasgou, escondido atrás de um arbusto, e as criaturas que
flutuavam curiosas ao seu lado se assustaram, afastando-se em uma revoada
de plumas.
Pelas Soberanas, o que ela pensava que estava fazendo?
Talvez por ter ouvido uma resposta positiva, Elya desapareceu do
lado de dentro, o rosto totalmente coberto pelo peso dos bordados da capa
aveludada e muito rubra, e não restou alternativa a Ulian senão seguir para
junto da porta e esperar.
— Peço desculpas se interrompo — ela dizia, suave. — Mas vim lhe
fazer uma pergunta que, receio, não poderia esperar até o amanhecer.
Barulhos de uma cadeira sendo arrastada.
— Como posso ajudá-la, minha menina? — A voz de Tharcius
Bespian, tão gentil quanto a da filha. — Venha, chegue mais perto e deixe-
me olhar para você.
Uma pausa de hesitação, na qual Ulian, do lado de fora, se encolheu.
Ele deveria fazer algo para intervir?
Deveria se jogar na porta, no chão, fazer algum barulho?
— Não quero tomar mais seu tempo do que o necessário — ela
recusou o pedido com delicadeza. — Diga-me, papai: você me ama?
Outra pausa, mas daquela vez o silêncio incerto foi do pai.
— O amor é um sentimento perigoso, minha menina — Tharcius
começou a dizer, e, pela forma como a voz suave e experiente pareceu mais
próxima, era certo que ele estava ganhando o espaço que os separava. — Eu
me orgulho. Eu me alegro. Eu saúdo. Mas toda vez que amei...
— Apenas saiba, então, que eu amo você — Elya disse, tranquila e
plácida como as águas de um regato. Segura de que aquela era mensagem
que precisava deixar, independentemente da resposta, exatamente como
tinha dito a Ulian naquela outra noite. — Não tive a chance de dizer-lhe
antes, mas quero que guarde essa única verdade.
Eu amo você.
Uma frase simples, nada além de um punhado de palavras reunidas.
Mas, naquele momento, que carregava o poder de mudar o futuro.

— Vou até o Conselho Conubial esta noite — Elya comunicou


depois que a porta dos aposentos que ainda ocupavam em segredo se fechou
atrás deles, como se já houvesse se decidido e não precisasse de permissão.
O que havia se passado durante sua ausência? Ela parecia outra
pessoa.
— Elya, pelas Soberanas, você se esqueceu de tudo o que
conversamos sobre interferir no passado? — Ele a segurou pelos ombros. —
Por que foi falar com seu pai? Ele poderia ter descoberto seus cabelos e
olhos, então imagine só a confusão terrível em que teria se colocado. Eu não
consigo nem teorizar toda a desgraça...
— Não me esqueci de nada que conversamos, e por isso mesmo fui
dizer a ele o que pesava em meu peito. — As írises dela estudaram as suas,
envergonhadas e cuidadosas, porém resolutas, e foi possível ver a tristeza
que as encobria. — Fui me despedir.
Ulian não entendeu o que ela queria dizer.
— Se despedir? Do que está falando?
— Destruí o futuro deles, Ulian. No momento em que entrei naquela
nave, os condenei à desgraça da minha indecência. E então fiz ainda pior:
destruí também o nosso futuro, o meu e o seu, quando me joguei na
tormenta. Você pode não me acusar, mas essa é a verdade. — As palavras
foram pronunciadas de forma tranquila, quase como se houvesse feito as
pazes com elas após muito conjecturar. — Não sou mais a menina de antes,
agora eu entendo e sei que sou responsável.
— Elya... — Seus braços a envolveram com força e pesar. — Não
diga uma coisa dessas.
— Tive muito tempo livre, presa nesse quarto, para pensar. Minha
vida foi vivida sob o peso de uma profecia — ela prosseguiu, afundando o
rosto na curva do pescoço dele. — A mais perfeita entre as perfeitas, a que
traria o futuro. Eu muito perguntei o que esperavam de mim e de que forma
eu atenderia às expectativas... — Gesticulou para o ambiente. — Bem, eu
trouxe o futuro ainda que sem querer, não é mesmo?
Ele pensou sobre o que ela dizia e se deu conta, pela primeira vez, de
que estava certa.
— Você trouxe o futuro ao passado, é verdade. Mas as palavras de
uma profecia são incertas...
— Eu sei, mas nem por isso deixei de entender o principal. — Elya
interrompeu, correndo as pontas dos dedos longos pelos lábios de Ulian;
estavam frias, e ele as beijou com carinho. — A profecia foi minha
maldição, mas também meu escudo. Atrás dela eu me escondi das
consequências das minhas ações e, principalmente, dos meus deveres. Não
posso mais. — Suspirou, se aconchegando mais uma vez em seu peito. —
Não sou perfeita, Ulian, pois a perfeição não existe. Você me mostrou assim,
e por isso sou grata.
Ulian assentiu e segurou-a com tanta força que os nós azuis dos
dedos tornaram-se brancos. Por algum motivo, a visão turvou-se com
lágrimas não derramadas, e ele inspirou aquebrantado.
— É tempo de fazer com que todos em Belar compreendam. Eu vim
trazer o futuro, e por isso, esta noite, o Conselho Conubial terá de me ouvir.
As palavras o surpreenderam, e ele cambaleou.
— Não faça isso, eu imploro — pediu, ajoelhando-se. — Não há
como saber o que aquele... Aquela... Coisa faria com você. Ninguém sabe
quem ou o que é o Conselho Conubial.
As mãos dela encontraram seu rosto e, com um afago entristecido, o
trouxeram mais para perto. Ele descansou a orelha sobre o peito dela,
sentindo o calor e, principalmente, o quanto o coração estava acelerado.
— Eu te escolheria e te encontraria sempre — ela disse, beijando
suas bochechas molhadas por lágrimas. — Não tenha medo. — O embalou
gentilmente, preenchendo o espaço com o doce aroma dos néctares que lhe
era tão característico. — Por algum motivo, sinto que, entre todas as tolices
que já fiz (e você precisa concordar que foram muitas), essa é a única que
realmente parece certa. A tempestade nos trouxe aqui, afinal.
— Como pode me pedir para não ter medo? Por muitos ciclos, evitei
me entregar ao amor que sentia por temer que algum dia me fosse tirado. —
Ele parou, e as lágrimas correram livremente. — Como fizeram com Alicia
— confessou, em um sussurro. — Eu não suportaria perdê-la, Elya. Apenas
vamos embora. Vamos para longe.
Elya também se ajoelhou.
— Você não vê, Ulian? Eu não posso ir. Estas paredes, este mundo...
Isso é tudo que conheço. Por Alicia, por você, por mim mesma e por todos
os que vieram antes de nós e um dia sofreram com o peso do dever. Os
casamentos, o pressuposto de combinações harmônicas e o peso de uma
prole perfeita. Tudo deve terminar. O futuro não se dobra, nem pede licença.
Ele apenas chega. E nós já estamos aqui, entende?
Ulian a segurou com as mãos trêmulas e a trouxe para perto. Afastou
os cabelos dourados do rosto e a encarou de modo sério, lendo as menores
expressões que tomavam os traços esculpidos daquela que mais amava.
Era um cientista, e precisava pensar da maneira mais lógica. No
entanto, a lógica o levava a crer que as ideias de mudança e confronto de
Elya colapsariam a realidade, mas o cegavam para o fato de que ele mesmo
já havia interferido no passado e no presente no momento em que aceitou a
ajuda de Edon, e depois, quando enviou ao amigo uma mensagem disfarçada
de relatório.
Balançou a cabeça, buscando afastar a própria hipocrisia.
Eles haviam viajado no tempo e enfrentado uma tormenta apenas
com a força do querer dela e um toque de magia — se é que poderia chamar
assim — que ainda não compreendia. Ulian nada tinha feito; era um mero
expectador.
— Quero que me prometa que não vamos interferir no passado —
pediu, certo de que confiava nela. Tinha fé. — Nem no nosso, nem no de
outros. Não podemos carregar mais essa culpa.
Elya se achegou ainda mais, os lábios tão próximos que ele sentiu o
hálito doce e o calor quando ela os abriu para concordar:
— Eu só quero mudar o futuro. Uma pequena parte dele.
— Não há nada de pequeno no tempo.
— Então pense que eu só quero conversar e, quem sabe, ele não se
muda sozinho.
Seus dedos se entrelaçaram à capa bordada que ainda a cobria, e
Ulian a liberou com um movimento violento, subitamente dando-se conta da
própria urgência. Não queria encarar o momento como uma despedida,
tampouco pensar que seria o último, mas não pôde lutar contra o desejo e o
desespero que o tomavam em igual proporção, fundidos sob o peso do fogo
dos filhos dourados.
— Me beije como se as estrelas estivessem caindo do céu — Elya
pediu em seus ouvidos, como uma doce melodia. — Me beije como se agora
fosse tudo o que temos.
Ele obedeceu. Como poderia resistir, quando o agora era, de fato, a
única certeza que tinham?
Ela o puxou para si, faminta, e envolveu-o com as coxas. O som que
saiu da garganta de Ulian a fez sorrir, satisfeita. Laços de vestido foram
desfeitos às pressas e botões de camisa caíram sobre o piso de cristal como
orvalho sobre a relva.
Ele bateu as costas na parede, e a dor desceu como um arrepio
quando as mãos de Elya o envolveram, já familiarizadas o suficiente com
seu corpo para saberem exatamente como levá-lo à loucura. Arrancaram-lhe
um arfar.
Os dedos dele a procuraram, subindo pelas pernas. Reclamaram tudo
pelo caminho, até que a ouviu gemer quando atingiu o centro daquela
constelação, quente como o fogo dos filhos de Tenar.
— Ulian — um pedido tão doce e sofrido. — Ulian...
— De novo — Ulian incentivou, rouco, segurando-a como se sua
vida dependesse disso.
As bocas não se separaram nem por mais um instante, nem quando
foi necessário tomar ar, e juntos, eles incendiaram o dia.
Pela última vez.
Ulian não acreditou quando, diante de seus olhos, formou-se uma
imagem que havia visto apenas em registros: uma cornucópia reluzente que
atraía os raios dourados e prateados das Soberanas, como se fosse um
horizonte de eventos. Elya não parecia impressionada, pois já havia estado
no Conúbio uma vez, mas ele jamais tivera tal oportunidade; nascera homem
e não tinha nada que fazer ali.
Aquela era a noite mais longa do ciclo, e Tenar e Ésper ascendiam,
tão próximas que a promessa do encontro das luas enamoradas fustigava
qualquer coisa que vivesse. A península estava na penumbra, e os olhos
dourados de Elya se focaram em portas enormes e escuras como obsidianas,
cujos ângulos retos e ao mesmo tempo suaves pareciam desafiar leis de
engenharia universal.
— Como fazemos para entrar? — Ulian questionou baixinho,
temendo que a brisa morna carregasse suas palavras até a toca da besta ou a
alcova do deus que ali habitava.
— Estaria mentindo se dissesse que faço alguma ideia — ela
respondeu, visivelmente aflita.
Entrelaçou seus dedos aos dela e abriu um sorriso fraco que talvez
não convencesse nem a si mesmo.
Aquela era a pior ideia que já haviam tido — pior que roubar uma
nave e fugir, pior que esconder os próprios sentimentos por anos, pior do que
mentir para amigos e, certamente, pior que se jogar em uma tempestade
assassina —, pois poderia dar errado de muitas formas e causar
consequências não apenas para eles, mas para todo o universo costurado no
tecido do tempo.
Ainda assim, não conseguiu desencorajá-la.
— Da última vez em que esteve aqui, como foi?
— As portas simplesmente estavam abertas. — A expressão doce foi
substituída por uma mais profunda. Ela estava pensando. — Rachadas, na
verdade. Ao menos, pareciam rachaduras...
Ulian conjecturou.
— Devemos chegar mais perto?
Provavelmente não, contudo o fizeram assim mesmo.
Elya alongou o pescoço e depois todo o corpo, mirando o portal
impenetrável. Esticou uma das mãos delicadas e pousou os dedos sobre a
pedra reluzente que parecia sólida o bastante para que nada a partisse.
— Vim ver o Conselho Conubial — falou em alto e bom som,
imbuída de autoridade em cada palavra e mesmo nas pausas entre elas.
— O que está fazendo?
— Não sei... Improvisando? Talvez se eu pedir... — Ela deu de
ombros, insegura, antes de prosseguir: — Com a bênção dos deuses novos e
antigos, e como filhos dessa terra, pedimos humildemente que abra e nos dê
passagem.
Ficaram os dois na expectativa. No entanto, nada aconteceu.
A tensão tornou-se insuportável, quase sólida para partir-se em
pedaços, e quando Ulian convenceu-se de que nada mais aconteceria, as
Soberanas se eclipsaram, irradiando centenas — milhares —, de feixes
dourados e prateados por todo Belar. Feitos de magia primordial, eles
buscaram os nascidos naquela noite com um único dever: reclamá-los.
Transformavam tudo o que tocavam, trazendo à superfície os traços de
personalidade mais fortes que dividiam a sociedade.
Era uma bênção, mas também uma troca.
Um acordo muito desigual, pois que poder teria o homem de
barganhar com deuses?
— Não sei se isso foi uma boa ideia — Ulian disse, incapaz de
desviar os olhos do céu. — Talvez seja melhor irmos embora enquanto ainda
podemos.
Mas antes que pudesse concluir, houve um barulho de algo se
partindo, e o chão debaixo de seus pés tremeu com o cataclisma, revolvendo
a relva, as pedras e os brotos. O eco tomou a península, ressoando nas copas
das árvores como um apelo antigo e doloroso; uma ordem contrariada.
Tenar e Ésper iniciaram a separação, trazendo de volta a brisa e a
gravidade, e enquanto Ulian sentia o coração pulsar na garganta, capturou
Elya com o canto dos olhos. Ela não recuara um único passo, tampouco
perdera a postura de quem havia sido feita de e para aquela terra.
E as portas...
Bem, as portas estavam rachadas.

O interior do Conúbio estava deserto.


Elya não soubera descrever com exatidão o que ocorreu na primeira
vez em que estivera ali, e a profecia recitada e a combinação recebida eram
os únicos detalhes que não lhe escaparam por completo. Ulian pensara,
entretanto, que deveria haver algo mais do que apenas as paredes frias e
escuras de pedra que corriam em labirintos, na forma de corredores estreitos
e intermináveis, que ziguezagueavam e cortavam-se, perdendo-se uns nos
outros sem nunca chegar a lugar algum.
— Nunca acreditei verdadeiramente que aqui morassem deuses ou
seres dotados do poder de vislumbrar o futuro — Ulian disse, testando o tom
das próprias palavras quando reverberaram nas paredes de forma áspera. —
Mas confesso que também não esperava... — Os olhos focaram no musgo
fofo que crescia em direção ao teto. — Isso.
Seguiram com passos cada vez mais cansados, e por debaixo dos pés
o chão que antes era feito de rocha ordenada ficou mais irregular, até que
buracos completos surgiram onde pedras haviam sido arrancadas com
descuido, exibindo terra úmida.
Por um momento, ele teve a impressão de que os corredores se
alargavam e, quando as paredes começaram a apresentar falhas também,
apertou mais os olhos para ver vultos altos erguendo-se por entre a névoa
que encobria a cena.
Na verdade, eram árvores.
Estavam em uma floresta subterrânea.
Antes que a atmosfera fria e úmida grudasse seus cabelos no rosto,
aromas que nunca havia sentido antes lhe invadiram. Então vieram as ondas,
furiosas e enormes. Ele pôde ouvi-las lacerando a costa, onde a península
finalmente encontrava o mar, e até mesmo sentiu a força da água indomável
abrindo caminho naquele mundo estranho e antigo, parado no tempo.
Pois se o exterior do Conúbio era feito do futuro, o interior era
apenas e tão somente alimentado pelo passado.
— Como isso tudo poderia existir aqui dentro? Será que alguém já
estudou esse ecossistema? — Os pensamentos ficaram perdidos na ciência.
Buscou por Elya, tão quieta ao seu lado que parecia um espectro, e as
cores a haviam abandonado enquanto encarava floresta adentro, como se
visse ou pressentisse um perigo que lhe era desconhecido.
— Eu me lembro — foi tudo o que disse, e o som da voz suave e
terna foi engolido pelas árvores e os charcos, afogada no fundo das ondas. O
braço se ergueu, com um único indicador que apontava para a bruma. — Lá.
Ele apertou os olhos para ver: era uma porta, entalhada em madeira
que quase não se sustentava mais, afixada a uma parede de pedra com
estruturas feitas de uma liga metálica em desuso. Quando chegaram mais
perto, um cheiro estranho invadiu suas narinas e aderiu à sua língua.
Ocre e rude.
A superfície era repleta de entalhos perdidos para a passagem do
tempo, motivo pelo qual não era possível dizer se já haviam sido belos ou
intrincados, porém a força do instrumento que a esculpira ainda estava
presente — cinzel e martelo. Suor.
A fechadura era simples: bastava empurrá-la. E muito embora ele
tenha se voluntariado a fazê-lo, Elya balançou a cabeça, negando. Sem
vacilar nem por um instante, ela a empurrou, aplicando um pouco de força
quando a madeira empenada raspou o chão, e entraram os dois.
Os olhos, que já estavam acostumados à pouca iluminação, cegaram-
se ao dar de encontro com chamas altas e crepitantes, vindas do centro de
uma única sala úmida e mofada. No fundo, um espelho enorme se erguia,
embora nada refletisse na superfície cristalizada além de uma figura
encurvada, oculta por uma capa miserável e suja que a cobria da cabeça aos
pés, e as labaredas que, se não estivesse louco, podia jurar que sussurravam.
— Sentem-se, crianças — disse o que Ulian julgou ser um ancião. A
voz que reverberou pelas paredes tortas, todavia, era estranhamente jovem e
poderosa e acariciou seus ouvidos com as curvas sinuosas das palavras. —
Vocês viajaram muito, e a fogueira é boa para afastar a humidade. — Uma
mão de apenas pele e ossos esticou-se para fora do tecido, indicando o fogo
que vibrava.
Como se por instinto, Ulian colocou-se mais à frente de Elya, pois
temia a figura desconhecida e o que eventualmente poderia fazer a eles. Ela,
no entanto, pareceu não se abalar pela presença quase sinistra e abriu
caminho em direção àquilo que o idoso chamara de “fogueira”; as labaredas
fundiram-se ao ouro dos olhos.
— Quem é você? — ela perguntou, e, apesar de decidida, havia uma
pontada de apreensão no tom.
— Não sou ninguém, minha criança — a resposta saiu quase como
uma risada, maliciosa e lenta. — Não sou um prodígio, nem o mais perfeito
entre os homens. Eu Sou.
Ulian sentiu quando as pedras se agitaram nas paredes, no teto sobre
suas cabeças e no chão que os sustentava; sentiu quando o próprio coração
se comprimiu, e um calafrio doloroso tomou toda a sua pele ao som daquelas
palavras que mais se assemelhavam a uma convocação. Ou a um decreto.
— É você o deus que habita o Conúbio? — ela prosseguiu após dar
um ligeiro passo para trás. Os dedos tocaram os de Ulian, buscando conforto
na presença.
— Deus? — A voz tão jovem do ancião reverberou por toda aquela
fantasiosa construção, ainda mais imponente. Então ele riu, e a cada
contorcer, uma chama lambeu o teto. — Não ouviu quando eu disse,
criança? Não sou ninguém.
— Ora, então o que faz aqui, então?
— Aqui? — Com os dedos em riste, ele girou em torno do próprio
eixo, tão lentamente que parecia ter todo o tempo do universo, embora a
aparência causasse outra impressão. — O que é aqui?
— O Conúbio de Belar.
— O senhor está perdido? — Ulian achou melhor intervir pelo bem
da integridade física de ambos. — Seria melhor se saíssemos todos, essa
construção me parece condenada...
Embora nenhuma parte do idoso estivesse à vista por debaixo da
capa esfarrapada, além daquelas que eventualmente exibia quando fazia um
gesto mais amplo, pôde jurar que olhos perfurantes foram postos sobre si por
um breve instante, que bastou para aterrorizá-lo por toda uma vida.
— É assim que o chamam, então? Conúbio — repetiu, como se
testasse o som na boca, sem responder nenhuma das perguntas. — Que
palavra mais horrorosa. — A voz encorpou-se um pouco mais.
— Você sabe o que acontece nesse lugar? — Elya tentou outra
abordagem, sempre gentil e suave, a mão inteira agarrada à sua. — Nós
viemos com um propósito importante. Estamos procurando algo ou alguém.
Desculpe não poder ser mais específica.
O ancião pareceu conjecturar por debaixo dos trapos.
— Eu sei o que acontece em todos os lugares, criança. — A malícia
retornou para a voz, que pareceu crescer tanto quanto as sombras
bruxuleantes lançadas pela fogueira. Ela ora parecia ser pronunciada por
uma mandíbula forte, com dentes alinhados, e ora por uma boca desdentada
que fazia os sons vazarem.
Era o suficiente para engoli-los, se tivesse a chance — ou quisesse.
— Procuro aquele que decreta as combinações — ela prosseguiu,
virando-se por um breve instante para encontrar seus olhos. O fogo brilhava
na pele rosada como se desejasse alimentar ainda mais as chamas que já
dançavam no coração daquela filha de Tenar. — Seria você, senhor?
— Sinto lhe dizer que não, criança. — O jovem idoso deu alguns
passos mais para junto do fogo, e no lugar onde deveria ter se iluminado um
corpo, ou ao menos os contornos de um, Ulian apenas foi capaz de
vislumbrar um terrível vazio, tão escuro que engoliu toda a luz. — Eu
observo, apenas. Se procura aquele que decreta, olhe-se no espelho. Isso que
fez foi você mesma.
Os traços de Elya se alteraram: passaram de surpresa à
incompreensão em apenas um instante.
— Não poderia ser — negou, visivelmente esforçando-se para não
abandonar a parcimônia. Ou eram feitos de bobos, ou estavam diante de algo
impossível. — Dizem que são deuses ou homens versados na língua do
tempo que veem todo o futuro de Belar e nos combinam para sermos
perfeitos, mas a perfeição já não existe e está tudo dando errado. Por isso, eu
lhe suplico, senhor: nos leve àquele ou àquela que decreta. Nos leve até
quem começou isso, para que possa nos ouvir.
Por um momento, tudo o que Ulian foi capaz de escutar na sala era o
crepitar incessante das brasas e a própria respiração arfante, sincronizada
com a de Elya. Então o tempo se arrastou, devagar, e foi como se escorresse
por entre seus dedos, feito de uma areia muito fina.
— Cuide de suas palavras, criança — o ancião disse, e a voz ecoou
de todos os cantos, mesmo entre as pequenas frestas e buracos. Fez tudo
chacoalhar enquanto as mãos ossudas indicavam o espelho. — Eu sempre
ouço.
Então, as labaredas se extinguiram, e o escuro se abateu sobre o
aposento antes que se descobrissem sozinhos outra vez.
Não sozinhos exatamente.
Pois o que pensaram ser um espelho revelou-se nada além de um
separador. A sala onde estavam não terminava ali; na verdade, tinha outro
lado, idêntico em tudo, e bem no meio dela Elya Bespian, vestida em preto
como uma flor que desabrochara, estava parada olhando em direção a eles.
A Elya daquele tempo.

Ulian se desesperou, mas antes que pudesse tomar qualquer ação a


sala escura e fétida na qual se encontravam foi mergulhada em uma névoa
densa que materializou um baile que percorria, de ponta a ponta, o
imponente e muito conhecido salão dos Bespian.
— Como? — as palavras dele não passaram de um sussurro de
incompreensão.
— Esse é o Baile do Conúbio — Elya (sua Elya) disse ao seu lado,
tornando o devaneio um pouco mais compreensível. Não parecia assustada,
nem com medo. — O baile que você perdeu.
Ele observou o mar de casais que valsava sobre o piso de cristal
lustroso. As damas com os trajes tradicionais e as longas caudas ocupavam o
máximo de espaço possível, e os cavalheiros de fraque esforçavam-se para
não pisoteá-las enquanto executavam os passos da dança.
As risadas e os sussurros que sempre existiram entre as colunas e os
corredores na penumbra eram muito mais audíveis, como se amplificados. A
resistência nata que florescia na juventude que queria se testar e colocar à
prova transbordava.
Estava tudo lá, muito claro, para quem quisesse ver.
As paixões lutavam contra as tradições.
— Foi exatamente isso que vi quando entrei no Conselho Conubial
naquele dia — Elya explicou, tomando sua mão outra vez com um aperto
urgente. O calor da palma dela fundiu-se ao seu. — Os corredores, a porta, a
sala e o espelho. Uma outra Elya; uma Elya que eu queria muito ser. — Ela
enumerou a sequência de eventos sem muito custo. — Então vi este baile e...
Aquilo.
Indicou com a cabeça um ponto próximo, onde uma horda de rapazes
se aglomerava, trocando farpas e ameaças por pouco disfarçadas de
amenidades. Eles chegavam aos montes, atraídos por algo ou alguém.
Ah, era evidente.
A mais perfeita entre as perfeitas.
— Aquela é você?
Ela assentiu silenciosamente, tão atenta que parecia ávida pelos
detalhes.
— Era eu, sim. Não mais.
— Há algo que eu possa fazer para ajudar? — Ulian perguntou, em
aflição, pois o assédio o deixava doente e furioso.
— Nunca coube a você, criança — a voz do ancião ecoou, tão perto
que Ulian sentiu a pele arrepiar e se voltou para trás, apenas para dar de
encontro com um par de olhos faiscantes que os encaravam como se ambos
fossem curiosos objetos de estudo.
As írises leitosas de idoso queimavam, em laranja, como fogo vivo.
Desde quando ele estava ali?
— Sempre fui eu — Elya murmurou, pacífica, ao seu lado.
Não pareceu assustada, e o rosto sempre belo e perfeito, desenhado
pelas mãos hábeis dos deuses, não vestia mais nenhuma máscara. Estava
límpido, destituído de qualquer feitiço: era nada além de uma verdade que
ela conhecera e felizmente se lembrara.
Então ela voltou os olhos dourados faiscantes para a cena do baile,
que se desenrolava sem qualquer interferência. Os lábios se abriram, pétalas
de flores a desabrochar no campo selvagem, e ganharam força para dizer
palavras que ecoaram, formando uma egrégora:
— Elya Bespian. Tudo em breve mudará, mas seu coração
permanecerá o mesmo. Respeite-o. Ouça-o. Dentro dele encontram-se todas
as respostas de que precisa. E segure a mão daquele que a estende sem
temer, assim nunca estará sozinha.
Ulian as reconheceu, atônito, mas demorou a acreditar e até mesmo
compreender.
— Foi você mesma — sussurrou. — Você nos combinou.
Sempre pensara, como todos os demais belarianos, que no Conúbio
habitariam deuses ou homens poderosos, dotados do poder da vidência, mas
jamais chegara longe o suficiente para imaginar que, lá dentro, tudo não
passaria de um jogo de espelhos.
— O que vi aqui foi um produto da minha mente, não foi? — Elya
questionou ao ancião, que ainda os estudava à distância. — Todas as que
entram aqui... Elas veem o que querem, ou o que pensam querer?
Os sussurros se intensificaram e, com a cabeça oculta pelo manto
miserável, ele concordou vagarosamente.
— Quem crê que merece amor sempre o verá refletido quando se
olhar no espelho — disse-lhes, e quase foi possível sentir o sorriso que se
esticava na face idosa e flácida, tão jovial e divertido. Brincava com eles. —
Mas os que só acreditam no dever devem seguir sempre à sombra dele,
manchados. Cabe a cada um dos que entram aqui a essa escolha.
E em algum lugar naquela alucinação que ilustrava seu mais
profundo desejo de ser amada, a Elya do passado segurou uma mão que lhe
fora oferecida por Ulian Bened. Dentro dela, foi semeada a vontade de
encontrá-lo, a mesma vontade que, no futuro, a impeliria a roubar uma nave
e partir para Colossus.
A mesma vontade que, ainda mais no futuro, a faria retornar ao
passado e possibilitaria que estivesse ali dentro, para combinar a si mesma
com palavras gentis.
Outras mulheres, no entanto, não tiveram tal benefício. Talvez
tenham enxergado os olhos do amado no espelho, ou ouvido a voz do maior
desafeto, se pensassem que era o que mereciam. Por isso cada uma tinha
uma experiência tão própria e difícil de explicar...
Sua mãe bem que tentou alertá-la.
Eu me lembro muito bem de minha própria combinação e dos
segredos que eu guardava e me foram expostos pelo Conselho Conubial,
como se me olhasse no espelho. Tudo ali, no reflexo. Tudo exposto.
A injustiça feita a elas no passado não poderia ser apagada, mas Elya
ainda permitia-se sonhar com um futuro diferente. Com a mudança.
Que coisa estranha era o tempo.
Alguns diziam que era o começo de tudo. Outros, que não era nada.
Estavam todos certos e errados, por fim.
Pois o tempo simplesmente... Era.
Lyia ouviu o que Edon disse da primeira vez, assim como cada
comentário, urro e sussurro perplexo conforme a notícia repercutia pela base
da expedição, esgueirando-se pelos corredores, pegajosa como óleo. No
entanto, não foi capaz de evitar recusar-se a aceitar as palavras.
— Eles estavam lá fora?
— A tormenta os engoliu!
— Que os deuses tenham piedade...
Tinham todos de estar errados.
Conforme o portal de entrada era lacrado, os protocolos fazendo com
que alertas soassem em um aviso de perigo impossível de ignorar, Lyia
chamava por Elya.
Debateu-se nos braços dos que ousaram impedi-la, com os tentáculos
ao redor do corpo esticando-se, dobrando-se e enrolando-se como cordas e
armas vivas para prender ou golpear. Embora tenha sido capaz de deixar
alguns cientistas inexperientes desacordados, acostumados como estavam
apenas à civilidade das palavras, foram habilidosos o suficiente para contê-
la.
Ela era um perigo para si mesma, disseram-lhe.
Mas o perigo estava do lado de fora. Será que não viam?
Presa como um animal enjaulado, ela chamava por Elya quando as
luzes todas piscaram e, por fim, se apagaram sob efeito dos raios que faziam
a terra chiar. Chamava quando a tempestade sacudiu a estrutura, e todos se
entreolharam com um misto de pavor e expectativa.
Chamou por muito tempo depois, quando o céu arroxeado aquietou-
se, dispersando os redemoinhos de poeira, e tudo o que podia ser visto nos
painéis transmissores eram dunas estéreis que, com sorte, sobreviveriam por
mais um crepúsculo.
E Cronos, é claro.
O buraco negro atraía a luz, distorcendo o espaço ao redor de si, e
sorria, maldoso e tranquilo, ciente de que chegaria o momento em que
engoliria tudo e todos dentro da singularidade que protegia.
Na alvorada, a voz de Lyia tornou-se um grito rouco e comprimido e
passou depois a um lamento mudo, completamente calado pelo desespero.
Mas, ainda assim, ela tentou chamar, pois não conseguia acreditar que Elya
— sua Elya — havia se perdido para sempre dentro da tempestade.
Tinha de tentar...
Edon retornou em algum momento, não saberia dizer se dentro de
alguns instantes ou muitos dias depois — seus sentidos estavam
entorpecidos e as imagens eram borrões. Ele se agachou ao seu lado, os
olhos escuros demonstrando uma emoção indistinta ou uma sombra que
beirava ao amortecimento.
Desatou os nós toscos e apressados que a mantinham presa, e depois
lhe ofereceu uma caneca fumegante que, com gentileza, a ajudou a levar até
a fenda quando os tentáculos apáticos falharam. O líquido era amargo e forte
e revolveu-se conforme o obrigou a descer, formando um bolo.
Todo o seu corpo era feito de dor.
— Você está bem? — ele perguntou de modo simplório, quase sem
prestar muita atenção.
Talvez não houvesse se dado conta ainda do que verdadeiramente
havia acontecido ali, nem que perdera o melhor amigo e estava, enfim,
sozinho na vastidão do universo, sem ninguém que de fato o compreendesse.
Por isso, ela não poderia culpá-lo pela ignorância: era um sentimento
sufocante.
Seu silêncio bastou como resposta, e o quaarsariano se retirou com
uma expressão triste, vestindo um semblante que tentava parecer
profissional. Tão grande, tão laranja e tão bruto, que contrastava com as
paredes de ângulos suaves, como se fosse uma antítese a tudo que era
belariano.
A solidão não tardou e a embalou devagar e sem pressa, como uma
companheira fiel. Lyia deixou-se ficar junto dela até que o mundo
desaparecesse sob o peso de suas pálpebras membranosas.
No luto, entretanto, não havia lugar para o descanso, e sempre que a
consciência relaxava, o rosto de Elya surgia. Era a luz de seus dias e as
estrelas que cruzavam seu céu.
— Não — disse muito depois, quando sua presença no meio de um
corredor pareceu deixar de ser notada, e o relatório do que foi chamado de
acidente começou a ecoar pelas paredes de acústica cruelmente perfeita,
referendado por todos os cientistas.
Elya Bespian e Ulian Bened adentraram na tormenta e estavam
presumidamente mortos.
— Não! Não! Não!
Lyia vivera no planeta da perfeição por muitos ciclos. Tantos que
aprendera a comportar-se — ao menos quando necessário ou conveniente —
como uma belariana legítima. Sabia emular modos sociais esperados e evitar
os indesejados, de forma a tornar sua presença a menos incômoda possível
— ou seria mais tolerável?
O choro havia se tornado para ela, portanto, algo quase impossível de
alcançar, se já não o fosse desde que partira do planeta natal, e em
pouquíssimas oportunidades permitira-se demonstrar tamanha fraqueza.
Mas ali não havia ninguém para impedi-la, ninguém para se importar.
E Lyia sentia tanto medo...
Aquele medo irrompia dela em forma de ondas. Eram imensas e
revolviam o substrato de seu espírito, como se quisessem que os crimes que
lhe tiravam o sono viessem à tona e boiassem na praia, à vista dos curiosos.
Afogavam-na em meio à espuma.
Tola criatura.
Ninguém podia contra o mar.
Por isso, enquanto as gotículas de água brotavam de seus olhos e
todos os seus poros, acompanhando a gravidade até encharcarem o chão
asséptico, ela deixou que as pontas dos tentáculos se enrolassem e
enroscassem em si mesmas, contorcendo-se e despedaçando-se.
Sem corpos, sem sangue. Nada foi deixado, além da ausência.
Tanta dor...
Mas ela merecia.
Era o que a haviam ensinado em Impla, o motivo pelo qual se odiava.
Ela era uma criatura suja e indigna, uma oportunista que tirava dos
outros o que lhes era de direito.
Quando a voz dos irmãos ecoou nos confins de sua mente, abraçou a
si mesma e deixou que a correnteza a puxasse para qualquer direção. Estava
à deriva e nunca havia sentido tanta culpa, embora o aperto que a sufocava
fosse mais parecido com arrependimento.
Era a mácula dos oráculos.
Pois ela podia prever o futuro, mas jamais mudar o passado.

Lyia acordou de um sono agitado, embora sequer se lembrasse de ter


adormecido. Seu corpo moluscular estava jogado na cama de um jeito
qualquer, os tentáculos muito longe das bacias d’água distribuídas pelo chão,
mais vazias do que cheias.
Por um instante, esqueceu-se de onde exatamente estava e dos
motivos pelos quais cada pequeno pedaço de pele parecia descarnado. Então
abriu apenas um dos olhos, pois não foi capaz de convencer os outros dois a
se importarem o suficiente, e reconheceu as enormes botas empoeiradas de
Edon passando pela porta e deixando marcas no piso de cristal.
— Não quero saber e não me importo — disse com desinteresse, mal
reconhecendo o tom moribundo que tomava a própria voz.
O quaarsariano à sua frente não se deixou abater pela recepção nem
um pouco calorosa. Acendeu as luzes, mesmo sob insultos e reclamações, e
aproximou-se ainda mais. Colocou uma mão no colchão e faz descer todo o
peso do corpo sobre ela, o que a fez escorregar e praguejar.
— Tenho certeza de que vai mudar de opinião.
— Me deixe em paz — ela exigiu, desejando que os tentáculos não
estivessem tão machucados e pesados para que pudessem afastá-lo ou,
talvez, estrangulá-lo.
— Acabamos de receber um chamado de Essiclan, retransmitido do
espaço aberto. — O quaarsariano se afastou e colocou debaixo da axila uma
tela de anotações que segurava. Os números bruxuleantes que exibia se
apagaram. — Tharcius Bespian CVII, o ex-Governador de Belar, acabou de
fazer contato e exigiu falar com Elya. Devo deixá-lo esperando ou você vem
logo?
Para os implavianos, que resistiam de modo muito distinto à
passagem do tempo se comparados a outras raças, era deveras estranho ver
alguém envelhecer.
Lyia deveria estar acostumada, tendo vivido tanto na companhia de
belarianos, mas não foi capaz de ocultar a surpresa quando o rosto de
Tharcius Bespian entrou em foco, ocupando toda a tela da instrumentação, e
ela mal pôde reconhecê-lo.
— Oh, Lyia! — ele exclamou com alívio, sem jamais perder a
cordialidade no tom brando. Não lhe chamou de senhorita, tampouco pelo
sobrenome que apenas ele conhecia. — Graças às Soberanas, minhas
súplicas foram atendidas.
Ela piscou com os três olhos cansados e inchados. Espectros de
verde, azul e marrom apareceram muito mais vívidos do que as demais
cores, que dançavam ainda fora de sintonia.
Sete ciclos belarianos era bastante, porém não o suficiente para
transformar tanto um homem, sobretudo o que se colocava à sua frente.
Tharcius Bespian CVII advinha de uma honrosa linhagem e garantira a
prestigiosa posição de Governador de todo o Belar não apenas com base no
poder da ancestralidade, mas em razão do exemplo e da dignidade dos
próprios atos. Ele, mais do que qualquer outro, detinha a obrigação e o
privilégio de ser um símbolo.
Aquele que a estudava com os olhos marejados, entretanto, em nada
se parecia com o homem perfeito do qual se recordava.
O belariano havia envelhecido consideravelmente, o que poderia ser
atestado pelos sulcos que se formavam na pele avermelhada que, combinada
aos cabelos dourados, o fazia parecer uma estrela cadente. Os fios haviam
crescido e estavam presos em tranças descuidadas e cheias de estática,
enquanto os lábios já não carregavam sorrisos corteses, senão uma linha
inexpressiva.
A maior diferença, entretanto, residia nos olhos: revelavam uma alma
partida em pedaços. O verdadeiro mistério da idade.
— Sr. Bespian — murmurou, certa de que os cientistas presentes no
aposento prestavam atenção em cada palavra, embora os visse fingir que
estavam muito ocupados com as próprias tarefas. Fez uma singela
reverência, rememorando a tradição. — Nós não... Eu não esperava vê-lo.
Um de seus olhos afastou-se da tela, instintivamente, e buscou por
Edon.
O quaarsariano a estudava com atenção, as pálpebras levemente
apertadas, e fez um gesto para incentivá-la a prosseguir. Seus três corações
se apertaram, pois como era possível que ele continuasse sendo tão gentil
com o mundo depois do que aconteceu?
Como era possível que não sentisse ódio e não quisesse gritar?
— Não a culpo — Tharcius estava dizendo, quando finalmente
voltou-se para ele. — Sei que Elya jamais poderia ser dissuadida de uma
ideia, ela queima com o fogo de Tenar, e quero que saiba que não tive
nenhuma parte na condenação que lhe foi imposta.
— Oh... — Ela sequer sabia que a haviam considerado culpada pelo
que aconteceu, mas não ficou surpresa. — Que toda a culpa recaia sobre a
estrangeira.
Houve um instante de silêncio constrangedor entre eles, mas Lyia
não se arrependeu do que disse — já não tinha nada a perder.
— Sinto muito, não pude fazer nada. — Mas ele não parecia sentir;
não verdadeiramente. — Agora, por favor, me diga onde está minha menina.
Ela pode querer não me ver, mas confio que você entenderá que esse é o
apelo de um amigo e, principalmente, de um pai. Ajude-me, Lyia.
O pedido tão honesto a atravessou como uma lâmina, cortando o gelo
e a fúria que se abatiam sobre ela.
Em Impla, o Imperador verdadeiro jamais teve de se preocupar com
coisas tão formais quanto casamentos para assegurar a linhagem pura. Para
gerar herdeiros, bastava forçar sementes, e aquelas que vingassem em meio à
violência da primeira maré seriam Oma’thus.
O conceito fraternal de carinho era para ela, portanto, apenas isso:
um conceito. Tinha progenitores, mas nunca teve pais e, por isso, encontrar-
se confrontada por um sentimento tão inocente e puro a fez perceber que era
incapaz de dizer a ele toda a verdade. Muito embora não soubesse nada com
relação à parte de serem amigos, pois Tharcius nunca lhe oferecera tanta
intimidade, sabia que a reivindicação dele era forte. Não a de um homem
qualquer, porém de um pai.
— Elya está aqui — falou; o engodo tinha um gosto agridoce que
escorreu por suas papilas. Fácil para ela, uma implaviana sem escrúpulos,
cujos crimes eram muito piores do que uma mentirinha ocasional. — Mas
ela... Ela... Saiu. Da base.
Ao seu lado, Edon se remexeu de modo desconfortável, cruzando os
braços. A boca se contorceu, talvez por instinto, quando reconheceu a
inverdade. Ele a julgava; todos a julgavam.
— Ó, Lyia, eu sabia que você a protegeria; sabia que jamais
descumpriria sua promessa!
A promessa.
Tal palavra a levou de volta à Belar e a uma nave roubada daqueles
que, em Impla, roubaram tudo dela. Chegara ao ancoradouro central sem
nada além da túnica molhada que lhe cobria o corpo moluscular e da certeza
de uma visão a respeito de uma linda e pequena menina.
Levaram-na até o Governador, que àquela época a impressionou por
ser tão jovem e sério. O nome dele era Tharcius, dissera-lhe, mas ela poderia
chamá-lo pelo sobrenome, se assim desejasse: Bespian.
Era o mesmo da menina de seus prenúncios, e, depois de se jogar no
chão, humilhada perante a opulência de um mundo estranho, confiou a ele o
segredo de sua linhagem de sangue e da visão do cometa que cruzara o céu,
trazendo um presságio antigo.
Ele não acreditou nela, obviamente, mas teve a decência de não
deixar assim tão aparente. Concedeu-lhe asilo e permissão para viver em
Belar, algo que só muito depois descobriu ser raro de acontecer, e
despachou-a para o que denominou de “nova vida”, embora não houvesse
nenhuma novidade em sua condição.
Os captores e a vista da cela haviam mudado, mas ainda era uma
prisioneira.
Muitos ciclos se passaram sem que o Governador tenha se voltado
para ela novamente. Procurou-a em uma tarde, quando Gautan lançava raios
rubros e ardentes no horizonte, para perguntar a ela como tinha tanta certeza
de que o destino da filha seria feliz e pleno.
Sentiu-se tentada, àquela época, a dizer para ele que destino e futuro
eram coisas distintas, como há tão pouco tempo fizera com Elya, embora
parecesse ter sido em outra vida. Limitou-se, no entanto, a assegurar a
veracidade do segredo que já havia compartilhado: ela era um oráculo,
presenteada pelo Tempo.
Um brilho dançou nos olhos dourados do belariano, indistinto demais
para que pudesse classificá-lo como advindo de um único sentimento. Foi
então que, com um gesto de mãos, detrás de um grande tronco de árvore
surgiu uma menina.
Elya.
Ela era pequena e esguia, toda cor-de-rosa, mas não desviou os olhos
dos seus, tampouco vacilou diante dos tentáculos, que se agitaram ao
reconhecer o objeto de suas visões.
Depois de dar permissão para que a filha fosse brincar entre as raízes
do jardim, o pai confessou que a menina mostrava sinais de rebeldia,
recusando-se a cumprir algumas das tradições e a reconhecer autoridades, e
que isso pesava contra ela perante a sociedade. Disse-lhe que se preocupava,
pois, como primogênita, o peso do sobrenome recairia sobre os ombros dela.
Foi aí que Lyia sentiu um tremor.
Um puxão que a fez enjoar.
A menina merecia ser feliz. Havia visto seu futuro.
Já entendia o conceito de perfeição e o quanto era valorizado em
Belar, e carregando no coração a certeza de que aquela menina inocente
merecia ter tudo que a ela fora negado no próprio planeta, abriu a boca e
deixou que as palavras fluíssem como se embaladas pela água:
A mais perfeita entre as perfeitas. A ungida. A prometida. A que
traria o futuro.
Por conta delas, novamente colocou-se aos pés de Tharcius Bespian.
Foi nomeada como guardiã, ou uma espécie de tutora, e prometeu que a
guiaria até o futuro que havia previsto. Prometeu que garantiria que Elya
sempre estivesse segura e fosse feliz.
Mas ela havia falhado.
Suja. Mentirosa.
— Lyia.
A voz de seus irmãos irrompeu uma vez mais, agarrando-a com
formas escuras como tentáculos, transformando-a em criança, indefesa e
assustada.
— Lyia? — Edon a chacoalhou. As mãos enormes eram como rocha
sólida e áspera contra seu corpo gelatinoso e a trouxeram de volta. — Você
está bem?
Ela se afastou como se houvesse levado um choque e focalizou a tela
onde a imagem de Tharcius parecia congelada em perplexidade.
— Desculpe — pediu, ao passo que ele se moveu, abrindo um
sorriso. — Sei que não é comigo que deseja falar, mas se importa se lhe fizer
uma pergunta? — A voz falhou, e o sotaque implaviano irrompeu por cima
do nervosismo. Carregava suas palavras leves, proferidas em belariano, com
a força e a vastidão da água.
Pois a água nutria a vida, mas também a afogava.
— De modo algum. — O belariano pigarreou. — No entanto, peço
que perdoe minha indiscrição. Já se passou muito tempo, e temo não ser
capaz de esperar mais. Quando Elya é esperada de volta?
Todas as palavras que conhecia lhe foram tiradas, e pegou-se incapaz
de responder.
Nunca.
Ela se foi. Jogou-se dentro da tormenta por conta de minhas mentiras
e maquinações.
Perdoe-me.
Elya, perdoe-me.
— Logo, senhor. — Edon deu um passo à frente, um sorriso brotando
dos lábios de modo natural. — Imagino que o tenham avisado em Essiclan,
mas a janela de comunicação pode se fechar a qualquer momento. As
tempestades aqui deixam as ondas instáveis, e nossa conexão pode cair antes
que ela volte.
Tharcius pareceu ligeiramente desapontado.
— Neste caso, às perguntas para passar o tempo — assentiu, com um
gesto delicado de mãos que apenas um belariano saberia como fazer.
Lyia suspirou, forçando para dentro de si as lágrimas que
tencionavam a superfície, querendo vazar de todo o corpo.
— Como foi que nos encontrou, Sr. Bespian? E, se me permite a
ousadia, por qual motivo demorou tanto?
Na tela, o homem se remexeu de modo desconfortável. O assunto
ainda era delicado para ele, podia notar, uma vez que o orgulho de um
belariano era uma das coisas mais fáceis de ferir no Sistema Exterior.
— Depois que Elya partiu, minha existência tornou-se sem sentido
— explicou, encarando as próprias mãos que descansavam, unidas, no colo.
A cadência da voz era como uma canção. — Uma vez, disse a ela que a
honra era o único sentimento pelo qual valia a pena viver. — Um ganido
abafado e doloroso lhe escapou, reverberando pela sala. — Que grande tolo
diria isso à própria filha?
— Um belariano — ousou responder, sem qualquer traço de desdém
ou de sarcasmo.
— Um belariano, de fato. — Ele não deu indícios de que se ofendera.
— O que ela fez foi considerado um escândalo, e não pudemos evitar a
condenação social. Eram crimes demais para perdoar, e me vi obrigado a
renunciar a tudo... — O rosto dele se inclinou, como se observasse algo no
plano em que estava. — Em meio à vergonha do que ela nos fez, fomos para
o exílio.
Lyia observou cuidadosamente a sala de onde ele se comunicava.
Paredes embrulhadas em tecidos macios e carmim, com brocados de metais
preciosos, vasos e afrescos dependurados no teto por cordas invisíveis, além
de longas e preguiçosas chaises.
Parecia um exílio bem confortável.
— Cília acredita que Elya fugiu porque aquele com quem havia sido
combinada era alguém que amava, mas eu não consegui acreditar.
Ela assentiu.
— É verdade. — Não permitiria que a reputação de Elya fosse
difamada por nem mais um instante. — Ela recebeu uma combinação com
base no amor, mas pensou que não acreditariam nela se contasse ou que a
entregariam ao primeiro que ousasse reclamá-la, como quase fizeram —
acusou.
— Pensávamos que a conhecíamos, mas Elya era uma estranha para
nós. Por muitos ciclos, eu a condenei por ter nos dado as costas — Tharcius
confessou, perdido em emoções. — Eu a culpei pela desgraça de nosso
sobrenome ancestral, pela nossa vergonha. Não quis procurá-la, nem
entender seus motivos. — Ele suspirou, e alguns soluços escaparam. — Fui
levado a pensar que, se o amor de fato existia e significava o que diziam,
então que ela não poderia saber o que era amar, pois abandonou a própria
família.
Ao som daquela acusação, Lyia sentiu os tentáculos agitarem-se,
ganhando vida e propósito.
Aquelas pessoas haviam sido incapazes de enxergar os sentimentos
da própria filha que, embora não abertamente declarados, jamais foram
escondidos. Haviam sido incapazes de escutar os apelos dela. Como
ousavam culpá-la pelo que havia acontecido depois?
— Elya sempre soube o que era amar e a força que o amor tem —
Lyia garantiu, recusando-se a pensar nela como parte do passado.
— De fato. Precisei de todos esses ciclos para compreender algo que
minha querida menina pareceu já nascer sabendo. — Um suspiro longo e
aquebrantado. — Posso ter deixado minha honra em Belar quando parti, mas
ainda me restaram alguns bons e nobres amigos, que me comunicaram de
que Elya foi localizada aqui.
— Deveria ter procurado por ela antes — deixou escapar, com
censura.
— Eu deveria ter feito muitas coisas. Belarianos tem
arrependimentos como qualquer outra raça... Confesso que só há pouco me
lembrei de algo que ela me disse antes do Conselho Conubial e mesmo da
cerimônia de maioridade. — Os olhos tornaram-se distantes, e ele levou uma
das mãos, trêmulas, junto ao peito. — Lembrei que ela disse que me amava.
Um silêncio incômodo se abateu sobre a instrumentação, onde o luto
pela perda de Elya e de Ulian suplantava qualquer outra emoção.
— Foi uma conversa estranha que tivemos. Nem sequer sei que
expressão lhe tomava o rosto enquanto falava, estava toda coberta com uma
capa — Tharcius prosseguiu depois de um suspiro pesado. — Mas me fez
entender que apenas aqueles que amam verdadeiramente sacrificam.
Então, sem nenhum aviso, Tharcius Bespian CVII chorou.
Não porque perdera a honra, o status ou os títulos, nem porque estava
exilado do planeta que amava ou longe do mundo perfeito que conhecia.
Mas porque, finalmente, compreendia os sacrifícios que o amor exigia, e que
ele havia sido o sacrifício que Elya escolhera fazer.
Assim como Elya — negligenciada, destinada a um papel que nunca
desejara — havia sido sacrificada por ele durante toda a vida.
A conversa com Tharcius a havia estilhaçado de tal forma, que Lyia
já não se considerava um ser completo, mas apenas partes. Uma coisa
quebrada e machucada. Tirara-lhe também o sono, e, naquela noite,
perambulou pelos corredores sem rumo, deixando que os tentáculos a
levassem até a instrumentação, onde encontrou Edon debruçado sobre um
balcão asséptico e um monitor. A expressão totalmente perplexa por trás de
lentes monoculares que faziam os olhos escuros parecerem maiores.
— Se importa se eu ficar aqui? — perguntou.
Não o fez porque realmente se interessava pela opinião dele ou dos
demais membros da expedição a respeito de sua educação — ou da falta dela
—, tampouco porque queria se sentir mais uma pessoa com sentimentos do
que um fardo para todos. Era simplesmente um hábito belariano horrível do
qual não conseguia se livrar, por pior que estivesse seu humor.
— Fique à vontade — ele respondeu com o sotaque quaarsariano que
fazia algo dentro dela despertar. Edon, então, sorriu.
— Por que essa cara? — Lyia quis saber, apenas para passar o tempo
e ter algo mais que lhe ocupasse a cabeça.
A dor, às vezes, podia ser atordoante.
Ele ergueu o rosto e, à pouca luz, ou melhor, sob a luz bruxuleante e
azulada dos números que dançavam em projeções, era fácil notar que havia
algo de diferente no semblante sempre relaxado. Talvez fosse algo na forma
como os traços pareciam cansados ou como um sentimento muito
semelhante a desespero parecia se abater sobre ele.
Apenas aquele que sentia poderia descrever o próprio luto. Para
alguns, era como mergulhar em um mar gelado e sem fim, no leito do qual
nunca se poderia vislumbrar o brilho de uma estrela na superfície. Para
outros, era algo mais semelhante ao torpor, uma rotina repleta de ausência
que ainda se insistia em viver.
— Preciso corrigir um erro que nem sabia que tinha cometido — ele
esclareceu, espiralando as fórmulas e equações com a ponta dos dedos. — E
veja só: além da desatenção às normas do Conselho Científico, também
cometi erros em meu próprio dialeto de origem. Essa palavra
definitivamente não se escreve assim. Posso quase ouvir os cientistas da
Academia dizendo que sou um analfabeto entre gênios...
Quando ela sinalizou que não estava entendendo nada, Edon
destacou um conjunto de coisas que se pareciam como letras, ou talvez
números, e então Lyia finalmente se deu conta de que estava olhando, na
verdade, para ideogramas.
— Não puderam respeitar seu luto nem por alguns dias? — ela
indagou sem a pretensão de receber uma resposta, ácida e mórbida como
costumava ser em Impla, antes da visão e de Elya.
Edon abandonou o trabalho e encarou-a. O rosto dele era como um
vórtex que a sugava e despia-a não das roupas, mas da armadura invisível
que há tanto tempo erguera em torno de si mesma.
— A tempestade nos fez perder duas janelas de comunicação —
esclareceu, sem nada alterar o tom de voz gutural. — Ninguém fora dessa
base sabe o que houve com eles.
— Ah! — Ela fez um som estalado, e os tentáculos esticaram-se
como chicotes. — Então nós estamos fingindo que nada aconteceu? Vamos
voltar ao trabalho, somos cientistas robóticos e não nos deixamos abalar por
nada — ironizou, fazendo o possível para imitar um caminhar robótico.
— Preciso ir até minha oficina — ele informou, como se não tivesse
ouvido sua provocação.
— Vai fugir, é claro... Covarde.
— Eu não conseguiria fugir de você nem se me esforçasse muito. —
O tronco enorme baixou-se, até que os olhos desprovidos de írises
estivessem na mesma altura dos seus. Eram escuros como buracos negros, e
tornou-se impossível desviar deles. — Na verdade, você vai vir comigo.
— Vou? — Lyia se empertigou, incapaz de acreditar na prepotência
daquele gigante laranja e tolo. — Quero ver quem conseguirá me obrigar.
— Ninguém, Lyia. — Ele já estava passando pelo portal. Uma tela de
anotações seguia bem segura em uma das mãos e as lentes dançavam entre
os dedos da outra. — Você vai vir, porque não tem ninguém mais com quem
conversar além de si mesma. E aposto que sua consciência já está cansada de
se ouvir.
Ela se sentiu tentada a jogar algo na cabeça enorme dele, mas
eventualmente o seguiu a contragosto. Não tinha mesmo ninguém mais com
quem conversar de modo tão familiar e não desejava ficar novamente a sós
com os próprios pensamentos.
O caminho estava na penumbra, todas as luzes simulando a
madrugada, e o quaarsariano a levou até uma sala onde nunca havia estado
antes. As paredes tinham os mesmos ângulos suaves e perfeitos do restante
da construção, porém quase totalmente ocultas em meio ao caos de
máquinas, peças e ferramentas.
Projetos inacabados espalhavam-se pelas bancadas, misturados a
sacos cheios da areia avermelhada que dominava o deserto do lado de fora.
Algumas peças de roupa sujas estavam amontoadas em um canto.
— Em nome dos deuses antigos, você trabalha aqui?
Ele se acomodou em um banco alto, projetado para o tamanho exato
das pernas enormes, e limpou uma poltrona menor para ela, jogando tudo o
que jazia sobre o assento no chão sem a menor cerimônia.
— Sim, e, por favor, não mexa em nada. Tudo está na mais perfeita
ordem.
— Aposto que Ulian Bened nunca pisou neste lugar — Lyia
conjecturou, deixando que um sorriso triste lhe tomasse a fenda depois de
pensar no verdadeiro chilique que um belariano faria se visse um cômodo
como aquele. — Se tivesse, você não ousaria pronunciar a palavra ordem
aqui dentro.
— Nunca esteve, para o bem da nossa amizade. — Edon também
sorriu, mostrando as presas escuras, mas a alegria não chegou a nenhuma
outra parte do rosto. — Sou engenheiro — tratou de emendar, depois de um
pigarro. — Crio, projeto e construo, em vez de apenas teorizar. Jamais
poderia trabalhar entre paredes brancas que não me deixam sonhar.
Lyia assentiu, fazendo o possível para controlar os tentáculos que se
espalhavam como mãos ansiosas ao seu redor.
— O que é o trabalho do qual estava reclamando antes? Um projeto?
— questionou, inclinando-se minimamente para frente.
Ele suspirou, cansado, e recolocou as lentes. Acionou um botão
quase invisível no tampo da bancada, que acendeu em uma das paredes uma
tela como aquela que havia na instrumentação, embora em menor escala.
Posicionou a pequena tela de anotações que bruxuleava os estranhos
ideogramas, e estes foram imediatamente transmitidos.
— Um relatório — esclareceu, franzindo a testa. — Todos temos
turnos de escavação aqui e, quando retornamos, redigimos nossos relatórios
para formar um relato completo para o controle da missão. Mas algo de
errado aconteceu com o último enviado, pois uma parte estava separada do
documento oficial e redigida em quaarsariano.
— E tinha erros — viu-se obrigada a pontuar, apoiando a cabeça
grande e pesada com um par de tentáculos. — O quê? — perguntou, depois
que ele lhe lançou um olhar cortante. — Foi você mesmo quem disse que o
chamariam de analfabeto por ter errado o próprio dialeto...
Não estava tentando ser chata ou insistente, tampouco estava
tentando não o ser.
— Que atenciosa. — Edon abriu um sorriso sarcástico. — Me
agracie com mais de sua sabedoria de repetição, senhorita. Enumere todas as
verdades óbvias que conhece, se isso a fizer se sentir melhor.
— Não sou belariana, muito menos senhorita — ela rebateu.
Ele deu de ombros, e a estrutura forte subiu e desceu como se
montanhas estivessem se movendo por baixo de um macacão surrado e
repleto de poeira.
— Lyhia — pronunciou o nome, carregado de sotaque.
O som a fez se enroscar contra os apoios da poltrona.
— Obrigada — agradeceu de má vontade, e os tentáculos correram
para baixo uns dos outros, refletindo sua súbita timidez.
O quaarsariano retomou o trabalho com os ideogramas, e
permaneceram ambos em silêncio por um longo tempo antes que a
concentração dele se tornasse novamente um obstáculo, um desafio para seu
luto e sua dor.
Como podia ser tão bom em disfarçar?
— Por que está agindo como se nada tivesse acontecido? —
perguntou, amarga. — Por que finge que eles não se atiraram na tormenta?
Que não estão mortos?
Talvez quisesse magoá-lo, ao revés de magoar a si mesma.
Ele, entretanto, não pareceu se abater da forma como planejara e,
erguendo os olhos lentamente, depositou-os sobre os seus. Eram pesados,
enxergando dentro dela.
— Não faça isso — pediu, e foi demasiadamente gentil em
contraponto à sua grosseria. — O luto toma a sua boca, mas você não é
assim.
— Você não sabe quem ou como eu sou. Sequer me conhece.
— Então me esclareça, Lyhia.
— Por quê? Por acaso agora somos grandes e melhores amigos? —
Ela tinha quase certeza que a cor da pele gelatinosa se alterava para
vermelho, com um misto de raiva e vergonha que a tomava. — E, pelos
deuses, pare de me chamar desse jeito.
Ele deu de ombros.
— Poderíamos ser, sabe? Amigos. — Deu de ombros. — Parece uma
ideia assim tão ruim?
— Você não iria querer ficar perto de mim, eu garanto.
— É claro, Lyhia — Seu nome soou uma vez mais áspero, totalmente
contrário ao som aquoso e fluído para o qual fora concebido em Impla. —
Até porque você “não é quem eu penso”. — Indicou as aspas no ar. — Me
diga, então, quem é você de verdade?
O questionamento que buscou evitar a cortou e abriu feridas, pois ela
verdadeiramente não sabia. Quando estava em Impla, antes de tudo, ela era
uma Oma’thu, da dinastia dos Verdadeiros e herdeira do Imperador. Depois,
tornou-se um oráculo e, em seguida, tornou-se ninguém, destituída de tudo o
que conhecia, exceto da dor.
Em Belar, deram-lhe uma nova vida, e ela voltou a ser um oráculo.
Então, confiaram-lhe o objeto vivo de suas visões, a mais perfeita entre as
perfeitas, e ela transformou-se em protetora, professora, secretária e, por fim,
o único papel que exercia sem esforço algum: amiga.
Sua vida, ou ao menos as partes boas e com significado verdadeiro,
dependia de Elya, gravitava em torno de Elya.
Sem Elya, o que ela era?
— Eu não sei — as sílabas se formaram e foram despejadas na forma
de um sussurro; entretanto, a confissão reverberou por toda a base da
expedição. Pôde senti-la fluindo debaixo dos tentáculos, penetrando na terra
e sacudindo tudo.
— Me parece triste não saber quem se é. — A voz de Edon
permanecia a mesma, porém era fácil notar a profundidade das palavras e a
intensão que carregavam. — Eu já estive nesse lugar, sei qual é a sensação.
Comece me falando sobre as coisas de que gosta.
Lyia fez menção de recusar, mas foi interrompida.
— Me diga apenas uma coisa sobre si mesma, algo que você goste e
que não tenha a ver com ela.
Não foi necessário pronunciar qualquer nome para que ambos
soubessem a quem estava se referindo, e Lyia estremeceu.
Como ousava?
Não devia nada a ele, nem mesmo educação ou cortesia. Sua história
e suas verdades não pertenciam a mais ninguém senão a ela mesma. Havia se
certificado de erguer barreiras em torno de si exatamente por aquele motivo.
Se ninguém entrasse, então ela não se machucaria de novo.
Mas seus três olhos cerraram-se sem aviso, seguros de que, daquela
vez — apenas daquela vez —, poderia ser diferente, e ela se lembrou.
O cheiro do sal. O balanço das ondas.
— Eu gosto do mar — falou, como se esquecesse de onde estava. —
Eu sinto falta do mar.
Lembrou-se da liberdade de nadar e dos tentáculos fortes que a
impulsionavam sempre à frente, seguindo o rastro das estrelas acima.
— Eu gosto de nadar, de sentir que só dependo da minha força para
chegar aonde preciso.
Lembrou-se também da forma como ela sempre lhe acompanhava à
costa de Belar quando sentia saudades do planeta natal, embora não devesse,
e aquele pensamento a jogou em um espiral. Os pés cheios de dedos batendo
na água, espirrando gotículas cristalinas e quase doces demais. As risadas.
As lições. Todas aquelas lembranças a fizeram mergulhar mais fundo nas
promessas que já havia feito para Elya e por Elya. Nas juras que arrancou de
si mesma.
E quando pareceu que a escuridão a engoliria como já havia tentado
fazer outras vezes, seus tentáculos menores, que muitas vezes usava como os
bípedes usavam os braços, foram envolvidos por um calor grosseiro.
Eram as mãos de Edon, que lhe seguravam com gentileza, embora
ainda assim firmes.
— Propósito e servidão são coisas distintas — ele disse,
aproximando o corpo largo um pouco mais. — Você parece não saber, mas
posso mostrar, se quiser. Eu já servi ao mundo, me diminui para caber dentro
dele. Hoje, só faço o que quero, sou o que quero, tenho quem quero.
Ninguém me diz mais o que é certo e errado.
Lyia pigarreou e soltou-se.
Levantou-se o mais rápido que foi capaz, sentindo os três corações
batendo descompassados, e deslizou até a porta.
— Você parece ter muito trabalho — indicou o brilho azul dos
ideogramas, alguns cruzados por rabiscos que o quaarsariano havia feito
enquanto estavam dentro do laboratório.
Ele se virou na direção que seus tentáculos apontavam.
— São muitos erros para corrigir — ele disse, quase em um sopro. —
Mas o tempo talvez passasse mais rápido se você estivesse aqui.
Seus três olhos piscaram juntos.
— Isso não é uma boa ideia... — ela começou a dizer, notando que
Edon já não estava mais prestando atenção.
Na verdade, o rosto dele parecia revestido com traços de espanto; as
mãos enormes, cerradas em punhos.
— Esse traço e esses dois pontos — Edon falou, enquanto os dedos
grandes destacavam os contornos na tela e depois isolavam a sequência à
qual havia se referido — são erros de grafia, mas formam uma nova palavra.
— O que quer dizer?
Ele agarrou a tela de anotações que descansava sobre a bancada e
correu através dos ideogramas de modo frenético, fazendo riscos e círculos.
— Todos esses erros formam palavras, Lyia. É um código. Um
código!
— Mas quem mandaria para você um código em seu dialeto? — ela
indagou, pensando que talvez o luto finalmente o estivesse arrebatando e
enlouquecendo. — Não foi você mesmo quem redigiu esse relatório?
O quaarsariano, entretanto, abriu a boca e mostrou as fileiras de
dentes afiados em um sorriso enorme que iluminou até mesmo os olhos
escuros antes de falar:
— Eu nunca escrevi este relatório, e só conheço um cientista que
sabe o dialeto quaarsariano e seria arrogante o bastante para me deixar essa
mensagem em códigos.
Lyia sentiu quando os tentáculos se agitaram ao redor dela.
— Quem?
Mas ela já sabia a resposta antes mesmo de ouvi-la.
— Ulian Bened.
Lyia não era cientista, portanto, havia pouco que pudesse fazer para
ajudar a trazer de volta aqueles que amava.
Acomodada sobre o banco estreito que compartilhara com Elya na
estufa, há tantos anoiteceres que talvez se tratasse de uma cena de outra vida,
seus tentáculos curiosos enroscavam-se pelas estantes e prateleiras
suspensas, tocando com delicadeza as pequenas folhas que brotavam do
substrato enriquecido artificialmente.
Virou-se e, pela pequena janela circular, observou o maquinário
pesado trabalhar: as rodas dos grandes veículos macerando as dunas
enquanto as escavadeiras perfuravam o solo, violando as areias que subiam
na forma de poeira vermelha; os cientistas aparelhados, com as cabeças
envoltas por bolhas translúcidas; e as pegadas logo apagadas pelo vento
árido.
Foi inevitável dividir com eles a mensagem recebida, diante da
importância das informações que continha, e mesmo enquanto Edon
repassava cada pequeno seguimento de uma complexa fórmula com os
colegas de expedição, não pôde deixar de duvidar, recostada em seu assento
mais ao canto, se desejavam tornar as viagens temporais possíveis porque
Elya e Ulian ainda tinham a chance de estar vivos ou porque receberiam os
louros da descoberta.
Controlar o tempo era um erro.
Entretanto, não importava a motivação, pois, ao fim daquela reunião
extraordinária, convocada às pressas antes mesmo que a aurora se pintasse
com a fraca luz que o buraco negro ainda deixava escapar, os cientistas já
estavam decididos: fariam tudo o que podiam para trazê-los de volta ao
próprio tempo.
E a ela caberia apenas agradecer.
Lyia não era devota dos deuses antigos, tampouco dos novos. Em
Impla, ensinavam as crianças a temer e respeitar apenas uma divindade.
Aquele que veio antes de tudo e de todos. Mesmo que seu lar houvesse há
muito se perdido, dissolvido em meio a oceanos de sangue e espólios de
guerra deixados por conquistadores fanáticos, ela ainda não ousava
abandonar a crença.
No alto do céu, Cronos lhe sorria em reconhecimento, distorcendo o
tecido onde havia sido costurado e forçando as estrelas ao redor a
amontoarem-se como presas perfeitas. Era um sorriso cruel e cheio de fome,
e ela poderia jurar que o ouviu murmurar em uma língua antiga e
irreconhecível.
O Deus Tempo havia despertado, enfim. Em seus sonhos, Ele lhe
chamava, cobrando uma dívida antiga que não era apenas sua.
— Você o olha porque gosta ou porque tem medo?
A voz de Edon a pegou desprevenida, e foi difícil desviar o olhar da
escuridão que a chamava.
— Um pouco das duas coisas — confessou, sentindo-se um tanto
quanto desconfortável por estarem no mesmo ambiente silencioso. Não sabia
bem como agir perto do gigante laranja.
Depois do que fora dito na oficina, algumas noites — ou dias —
atrás, a relação deles estava um pouco estranha e desconexa, como se a
houvessem tirado de um lugar sem encontrar outro para colocar, mas ambos
se esforçavam para não deixar transparecer. Já tinham muito com o que lidar.
— Quem ele é, para você?
— Um Deus. — Suas palavras não passaram de um sussurro.
Esperava que ele não a achasse louca. — Uma força que não pode ser
parada.
— Todas as vezes que tenho que sair para um turno de escavação,
quase me borro de medo quando olho para o céu. — O quaarsariano se
curvou, apoiando uma das mãos na parede e aproximando a cabeça da janela
sem piscar. Foi estranho pensar que algo poderia causar naquela criatura
imensa e intimidante tanto pavor. — Mas eu me obrigo a olhar mesmo
assim.
— E por que faz isso?
Ele sorriu, e as presas escuras apareceram, tão próximas do topo de
sua cabeça, que pareceu que a devorariam.
— Todos temos formas de nos machucar, não é mesmo? Talvez a
minha seja encarar o que me dá medo.
Como se para exemplificar, ele a estudou demoradamente.
— Você é um tolo, isso sim.
Mas a verdade era que Lyia não o achava verdadeiramente tolo,
tampouco sabia por qual motivo dissera aquilo. Ao lado de Edon, sentia que
não precisava se esconder atrás de palavras ou gestos perfeitos o tempo todo.
Era tão confuso quanto libertador.
Ela não era livre há muito tempo e não sabia o que fazer com aquela
sensação.
Afastar-se, ser rude e sarcástica parecia a melhor saída.
O quaarsariano deu as costas para a vista, que terminou por cobrir
completamente com a altura imensa.
— Por que você está fugindo de mim? — perguntou, muito direto.
— Fugindo? — Os tentáculos se alvoroçaram ao seu redor,
reveladores até demais. — Mas é claro que não estou fugindo.
— Você está, sim. — Um passo em sua direção. — Sabe, Lyhia, eu
realmente queria ser seu amigo.
O ar ficou preso dentro dela, e Lyia teve que forçá-lo para fora
quando pensou que terminaria por sufocar.
— Eu... Não sei se seria uma boa amiga.
Uma verdade, mas também uma mentira.
— Logo Elya e Ulian estarão de volta, e quando isso acontecer,
espero que você se lembre de que Elya pode representar muito para você,
mas que ela não é tudo. — Edon se afastou e caminhou até a porta com
passos pesados, embora parecesse extremamente leve enquanto os dava. —
Vim até aqui para chamá-la, de todo modo. Logo vamos começar.
Ela encarou Cronos mais uma vez, atraída pela gravidade que
exercia, e fez uma oração silenciosa — nenhuma que já lhe tivessem
ensinado. Suas palavras eram livres, nada além de apelos da verdade que se
ocultava em seu espírito e que ameaçava parti-la: ela pedia para que Ele não
os levasse.
Daria tudo, qualquer coisa que o Tempo desejasse: seus três
corações, seu sangue, sua alegria, sua dor. Daria até mesmo seu presente de
oráculo.
Mas que Ele não os tomasse.
Quando se virou para o portal, o quaarsariano já não estava mais lá, e
os tentáculos a levaram para longe, agitados. Deslizaram pelos corredores
até a instrumentação, onde sabia que poderia encontrá-lo.
O tempo é uma ilusão, disse-lhe depois que terminou de decifrar a
mensagem enviada por Ulian.
Ela não sabia, com exatidão, o que aquela frase deveria significar
para cientistas ou pessoas amigas; entretanto, compreendia bem a essência
das palavras, pois lhe invocavam um sentimento amargo e, ao mesmo tempo,
verdadeiro.
Para um oráculo como ela, o que era o tempo senão uma viagem? Da
partida ao destino, os acontecimentos do futuro eram como uma paisagem,
fragmentos de algo que não havia ainda acontecido e, portanto, nada além de
uma ilusão.
Mas Edon...
Edon era real e estava ao alcance de seu toque, ocupado entre os
cientistas que assumiam os próprios postos. Elya e Ulian também já foram
reais e estiveram ao alcance de seu toque...
O que sentia por eles, portanto, era a única coisa real que já
experimentara.
— Você terminou? — perguntou, confiante de que a acústica
carregaria suas palavras.
O espécime quaarsariano virou a cabeça em sua direção; o traje da
expedição ainda estava um pouco empoeirado.
— Sim — respondeu, sem dar qualquer indicação de que exigiria que
terminassem a conversa inacabada da estufa. Ele era direto, porém muito
respeitoso. — Eu terminei, e está tudo aqui. — Apontou com os dedos
grandes para a tela que tomava quase toda a sala, na qual, projetada em
pequeninos quadrados, formava-se uma completa e indivisível fórmula.
Não passava de uma linha, e era estranho pensar que em tão pouco
espaço e limitados caracteres fosse possível conter a criação e a destruição.
O velho.
O novo.
E o agora.
— Acho que podemos começar. — Ele se virou e, com um suspiro
profundo, imbuiu o espírito de coragem e, provavelmente, de um pouco de
fé. — Posição travada?
— Faseada — responderam-lhe de algum ponto da sala, que ficou de
repente silenciosa quando os murmúrios se calaram.
— Espero que todos se recordem de seus papéis nesta reunião —
Edon falou, como um general. — Ulian e Elya confiaram em nós para trazê-
los de volta. Não podemos falhar.
O representante do Conselho Científico do Sistema Exterior era um
felino, raça nativa de Sirius, e o olhar que lançava através da tela, enquanto
Edon contava, calma e profissionalmente, sobre como Elya e Ulian haviam
se lançado na tempestade e supostamente viajado para algum ponto no
espaço e no tempo, era repleto de compaixão.
Lyia não teria reparado como ele parecia se doer pela perda de
pessoas que mal havia conhecido, ainda que os olhos brilhantes e âmbar do
cientista lhe chamassem atenção pelas pupilas estreitas, se o semblante do
representante da Academia Belariana do outro lado da tela não fosse a
imagem da presunção e do egoísmo materializadas em um ser. Duas figuras
muito contrastantes.
Os dois cientistas responsáveis por controlar a missão eram tão
opostos que chegavam a ser complementos perfeitos. A vida era equilíbrio,
afinal.
— Então a conclusão à qual chegaram é a de que a mensagem foi
enviada do passado? — o felino questionou com o tom brando, fazendo
algumas anotações de próprio punho em uma tela cristalina. O título pelo
qual se apresentara era dr. Antaros, lembrou-se. — Faz sentido, sim —
conjecturou. — Os cálculos estão corretos, e devemos confiar na linguagem
dos números.
Edon assentiu, e mesmo que mal se conhecessem ela notou o
nervosismo nos gestos e a tensão crescente sobre os ombros largos. Ele era
fácil de ler, autêntico demais para ser capaz de esconder qualquer
sentimento.
A vida de Elya e de Ulian estava nas mãos daqueles dois cientistas,
envoltos no conforto de seus próprios mundos, e longe demais de Colossus
para que a fúria e a devassidão das tempestades os impressionassem a ponto
de desejarem fazer tudo o que pudessem para trazer os viajantes de volta.
— Desencriptamos a mensagem e chegamos ao ponto exato de
envio, espaço e tempo — esclareceu, indicando no relatório um registro que
se parecia com coordenadas de navegação, embora contivesse uma segunda
parte que Lyia julgava ter relação com a questão do tempo. — A mensagem
do dr. Bened foi pessoal, para mim. Não há nenhum engano ou equívoco de
interpretação.
— E julga ter condições de conduzir este experimento em larga
escala, dr. Gha’nami? — indagou o cientista belariano de olhos
acinzentados, um filho de Ésper. — Estamos falando da maior descoberta de
nosso tempo. Temos de trazer o dr. Bened de volta ileso a qualquer custo,
assim como a mais perfeita entre as perfeitas. Nosso futuro depende disso.
Lyia remexeu-se, desconfortável, no assento que lhe deram; os
tentáculos foram subitamente possuídos por uma fúria que os fez se agitarem
ameaçadoramente, atraindo a atenção dos cientistas ao seu lado.
Sob a ótica belariana, a vida sempre ficava em segundo plano, e as
glórias e os títulos eram priorizados: Ulian reduzido a cientista descobridor,
e Elya, ao título que dolorosamente carregava mesmo ausente.
Até quando?
— Todos nesta base de expedição estão cientes do desafio imposto,
porém Ulian nos confiou a fórmula por um motivo — o quaarsariano
respondeu de pronto, sem parecer abalado. — Não vamos decepcionar nem a
ele, nem a srta. Bespian. Nós os traremos de volta, mas precisamos de ajuda.
Os colegas concordaram e assentiram pela sala, incentivados pela
certeza das palavras pronunciadas com o sotaque áspero.
Na tela, o dr. Antaros suspirou. Havia algo bucólico no modo como
se portava.
— Os custos dessa operação...
— Serão orgulhosamente arcados pela Academia Belariana —
interrompeu o cientista de olhos prateados, cujo sobrenome Lyia insistia em
não reter, talvez propositalmente. — Garantiremos os recursos.
O felino assentiu de modo respeitoso e disse:
— Nossa engenharia trabalhou incansavelmente desde que enviou o
relatório, dr. Gha’nami, e creio que estamos retransmitindo agora o projeto
para construção do desfragmentador que solicitou. — Outros dois felinos
apareceram do lado da tela transmitido de Sirius. — Contudo, não tivemos
muito tempo para testes, e todos aqui devem estar cientes do nível
experimental do equipamento.
— Nós sabemos. — Edon voltou os olhos em sua direção, ainda que
por apenas um instante, e Lyia enxergou neles um desespero tão profundo
quanto o seu próprio.
Ele era apenas muito melhor em fingir.
— Quando os sensores estimam que vá ocorrer a próxima
tempestade?
— Em seis anoiteceres.
— De fato, sem tempo para testes...
Um silêncio pensativo se espalhou, e foi como se todas aquelas
mentes brilhantes à própria maneira se unissem diante da urgência da tarefa
imposta.
— Só precisamos que o desfragmentador da Academia esteja ligado
— O quaarsariano cerrou as mãos em punho. — Eu já vi como funciona uma
vez — esclareceu, e foi como se uma faísca se acendesse dentro dele. —
Ulian me mostrou, embora eu não soubesse o que estava vendo, nem com
quem estava falando.
Lyia se empertigou.
Depois que decifraram todo o conteúdo da mensagem, Edon
relembrou-se de uma ocasião, antes da partida da expedição, em que havia se
encontrado com Ulian na Academia Belariana e passado um longo período
fazendo testes. Ele disse que não notou nada de estranho àquele tempo,
embora o amigo parecesse um tanto quanto diferente, mas então tudo fez
sentido para ela.
Aquela noite na residência dos Bespian.
A história de Alicia, e o fato de que ele sabia que era um oráculo.
Tudo que peço é que tenha um pouco de fé quando me encontrar
novamente. Eu posso não ser o mesmo, dissera-lhe.
Um sorriso sincero tomou-lhe a fenda, e ela deixou que a alegria se
espalhasse por todo o corpo, desde os três corações até a ponta da menor das
ventosas. A esperança era um erro, destruía mais do que a falta dela, mas,
ainda assim, não foi capaz de soltá-la.
Maldito Ulian Bened. Havia garantido que não gostava dele ainda,
mas que um dia gostaria.
Bem, parecia que o dia havia chegado.
Que todos os Deuses o abençoassem.
— O desfragmentador já está em funcionamento — ouviu quando o
cientista que falava em nome da Academia Belariana garantiu. — Que as
Soberanas permitam que seu palpite esteja certo.
— Não é palpite — Edon respondeu, mostrando as presas escuras em
um meio sorriso. — É ciência.
Aquela não era a primeira tempestade temporal que Colossus
presenciava, tampouco seria a última. Ainda assim, conforme os sensores
apitavam e os cientistas se moviam pela base da expedição, absortos pelas
tarefas que tinham de executar antes que a natureza uma vez mais dobrasse
tudo à própria vontade, Lyia sentia a urgência se espalhar como um veneno.
A luz da estrela baixa no céu tangenciou a bolha que protegia sua
cabeça, e que a obrigavam a usar sempre que se aventurava fora da base da
expedição. Ergueu os tentáculos quando uma brisa suave levantou entre as
dunas uma poeira fina e vermelha, perguntando-se como aquela lua havia
encontrado um destino tão estéril.
Talvez ali, eras atrás, houvesse um oceano imenso e profundo como
o de Impla, e a aridez fosse uma lembrança perdida, da qual não havia
ninguém mais para se recordar. Talvez o vermelho adviesse do sangue
derramado, ou um alerta de que a escassez poderia assolar até o mais perene
dos ambientes.
Conforme as criaturas nativas uivavam ao longe, pressentindo o
perigo da força imparável que as mudaria, de novo e de novo, os três olhos
foram atraídos para o horizonte dominado pela fome e pelo vazio.
Não sabia muito mais do que o senso comum a respeito de buracos
negros, contudo, dentro do pouco que conhecia, estava a inegável verdade
que nenhum cientista jamais ousara refutar: uma vez que se chegava ao
horizonte de eventos, nada escapava, nem mesmo a luz. Era o ponto sem
retorno.
E quanto mais Lyia encarava a matéria sendo devorada no
firmamento, com mais clareza ouvia os sussurros, intensificados com a brisa
que se tornara violenta em um rompante assim que um raio cortou o céu.
Estava vindo, ela podia sentir.
Sentia em cada pequeno tentáculo e em cada ventosa. Sentia na pele
sensível e gelatinosa, nos poros abertos que vazavam para o deserto que
desconhecia o tesouro da água.
Sentia no espírito e em tudo o que ela era.
O pranto deslizou para fora de seu corpo com uma indescritível
facilidade, e ela surpreendeu-se por não estar acompanhado nem de dor nem
de vergonha.
Edon lhe perguntara a respeito de quem ela verdadeiramente era,
quem era além de Elya e de Belar.
Além de uma existência de servidão.
Naquele alvorecer, finalmente encontrara a resposta certa para dar.
Não a ele ou ao mundo, mas a si mesma.
As grandes máquinas de escavação deslizavam mais à frente,
parecendo pequenas em razão da distância que impunham, e os cientistas
mais próximos disseram palavras que, muito embora pronunciadas no
idioma universal, soaram incompreensíveis.
Pois ela encarava Cronos, e Ele lhe encarava de volta.
Uma comoção se formava no descampado, e ela cerrou os olhos até
que, por entre a ventania e a poeira, surgiram as formas de uma plataforma
de cristal, tão reluzente quanto plana, que era montada bem no meio da
colina. Junto dela, três colunas de liga metálica eram erguidas, as pontas em
formato de pinças que se curvavam em direção ao interior.
Havia visto o projeto entre as anotações de Edon, e, embora fosse de
extrema complexidade nos pequenos e delicados componentes eletrônicos, o
fato de o terem construído em tão pouco tempo não a surpreendia. Todos
queriam trazer Elya e Ulian de volta.
Todos queriam domar o Tempo.
Cabos foram enterrados na areia, não tão profundamente quanto
gostariam, e conforme viu os cientistas conectarem a máquina a outros
equipamentos, os sussurros tornaram-se ensurdecedores, quase gritos a
ecoando nas profundezas de sua alma. Desequilibraram-na enquanto
estremeciam a planície naquela língua antiga falada apenas por um deus, e,
quando pareceu que tudo era obra da tempestade que se aproximava,
tornaram-se palavras.
Quem ela era?
Oráculo.
Oma’thu.
Semente.
Violência.
Culpada.
Suja.
Criminosa.
Vítima?
As respostas perpassaram mais rápidas do que poderia tê-las evitado.
E então a pergunta ressoou novamente, pincelando o céu com ramos
de eletricidade.
Quem ela era?
Incompreendida.
De repente, vista.
Necessária.
Uma amiga.
Quem ela era?
O mar.
O sal.
O sangue.
A chance.
Só uma chance.
Ao longe, notou que Edon posicionava com nada além da própria
força de vontade a última coluna na estrutura, e mesmo à grande distância
que os separava, ela viu um sorriso tomar os lábios dele, deixando bem
aparentes os dentes pontiagudos e escuros.
Suas brânquias liberaram o ar que prendiam, que embaçou a delicada
superfície que a protegia da poeira.
Antes tudo parecera complexo e sem solução. Inalcançável. Mas os
raios começaram a cair no horizonte, agitando e aquecendo o ar, enquanto a
tempestade se formava do centro de um redemoinho quase vivo, e Lyia se
lembrou de algo que havia esquecido; a única verdade que já conhecera.
O futuro não podia ser alterado.
Os avisos começaram a soar dentro da base. Àquele ponto, já estava
familiarizada o suficiente para interpretar o que cada intervalo bipado
significava. Sua única tarefa era ficar fora do caminho, deixar que os homens
trabalhassem, e Lyia tentou forçar a si mesma para dentro, de onde assistiria
junto aos outros a tempestade assolar.
No entanto, o futuro não poderia ser alterado, e, por ser assim, seus
vislumbres de oráculo nunca se enganavam.
As memórias do passado quase a sufocaram, entretanto manteve-se
firme; os tentáculos cada vez mais fortemente ancorados no substrato macio
que ameaçava engoli-la a cada tremor.
Quem ela era, senão aquela que havia previsto?
Ela vira e vivera.
Não o próprio futuro, mas o de Elya Bespian.
Portanto, a certeza veio como o fio da lâmina e a ponta da flecha; um
alvo sempre atingido.
Quem ela era? O Deus Tempo exigiu saber, implacável e invencível.
Mas, daquela vez, Lyia sabia como responder.
A primeira sonda enviada a Colossus, muito antes de qualquer
missão tripulada, havia coletado o material necessário para desenvolver
instrumentos de avançada tecnologia que fossem capazes de impedir que as
tempestades temporais afetassem a base da expedição onde estavam e onde
os cientistas guardavam os veículos e maquinários de escavação. Era aquela
mesma tecnologia que protegia o quadrante onde uma reluzente nave
belariana fora preservada, de modo improvisado, como meio de estudo e de
prova.
A nave que voltara no tempo...
Parecia impossível, certamente, e Lyia não julgaria aqueles que,
desconhecendo a avançada sociedade belariana e o fato de que nunca
desistiam de nada, duvidaram em algum momento que tamanha maravilha
científica fosse possível. A nave, todavia, seguia tão intacta quanto na
primeira vez que Elya a levara até lá, protegida da fúria da natureza.
No horizonte, as nuvens já haviam encoberto tudo e os raios
eletrificavam a planície cada vez mais perto, preenchendo o ar com uma
estática tão poderosa que qualquer liga metálica deveria ser evitada sem os
isolantes apropriados.
Venha até mim, as vozes nas areias sussurravam.
E ela iria.
Pequenos pontos moviam-se agitados, ainda mais longe em seu
campo de visão. Cientistas. A cada um tinha sido atribuída uma tarefa
naquele experimento em que o êxito era a única possibilidade, e ela
imaginava a apreensão e a expectativa que os tomava conforme a tempestade
avançava tal qual uma besta imparável.
Talvez já no interior da instrumentação, Edon houvesse assumido o
honroso posto de comando que lhe fora concedido para aquela missão e
coordenasse os esforços conjuntos com a Academia Belariana para colocar a
máquina em funcionamento — para trazer Elya e Ulian de volta. Talvez até
mesmo houvesse se perguntado onde ela estava, em um lampejo; pedido
para que fossem chamá-la.
Era muito tarde, entretanto, e esperava que pudesse compreender
suas razões e perdoá-la.
Havia seguido o conselho dele, no fim: encarava aquilo que mais
temia.
Com um último olhar de despedida, Lyia acionou o comando do
portal de entrada da nave belariana, que se abriu para permitir sua entrada
em um corredor alongado e elegante. As luzes quentes se acenderam uma a
uma depois que passou, deslizando em direção à cabine de comando e
fazendo o possível para convencer a si mesma de que estava pronta para o
que sempre soube que estava em seu destino.
Ou melhor, em seu futuro.
Era ali que tudo havia começado e era ali que tudo terminaria.
Seu corpo moluscular se acomodou de modo desajeitado no assento
do piloto, a vastidão da tempestade se estendendo através dos enormes
painéis de cristal. Os tentáculos ajustaram-se aos controles antigos, mas
muito semelhantes aos das naves belarianas mais recentes, e um zunido
limpo fez o substrato logo abaixo tremer levemente quando as turbinas
foram ligadas, logo silenciando-se.
A nave funcionava perfeitamente, como se jamais tivesse se
acidentado no solo daquela lua. Ótimo.
Ela não era nem um pouco devota e jamais havia se atrevido a pedir
o auxílio dos Deuses, antigos ou novos — não desde que os irmãos a
destituíram de tudo o que conhecia e a obrigaram a uma vida de miséria, e
ela descobriu que estava tão sozinha quanto havia imaginado.
Poderia dizer que havia perdido a fé, mas aquilo não era bem uma
verdade.
Lyia acreditava, e sua fé ainda estava intacta, guardada como um
tesouro precioso bem no fundo da alma, apenas esperando para ser invocada
no momento certo.
E o momento havia chegado.
Então, deu o comando de partida, e a nave se ergueu,
maravilhosamente estável. Mirou o nariz para cima, muito para cima, na
única direção que alguém como ela poderia ir.
Para Cronos.
Estar em espaço aberto era como se sentir, finalmente, em casa.
Lyia não saberia explicar, mas havia algo na forma como o tecido
escuro se estendia por uma vastidão infinita, pontilhado por estrelas e
costurado em meio às mais belas nebulosas, que a confortava.
Atingindo o ponto estável e uma aceleração constante, a nave
deslizou em direção ao buraco negro enquanto não se podia ouvir qualquer
som. Os tentáculos se agitavam ao seu redor, desesperados para que desse
meia-volta e tomasse a direção oposta, e um sorriso cansado venceu a tensão
de sua expressão. Eram mesmo muito bons em autopreservação — ao
menos, melhores do que ela.
Colossus foi ficando cada vez mais para trás, e o tamanho da
tempestade que com ele abandonara impressionou diante do quadro
completo, visto ali da atmosfera: um emaranhado de poeira e nuvens em
plena fusão, relâmpagos e raios que invocavam uma ira divina, e um rastro
não de destruição, mas de renovação.
O tempo era um ciclo.
Passado, presente e futuro.
Que estavam todos destinados a repetir.
Os sistemas da nave calcularam o tempo estimado para a chegada em
Cronos, embora tenha precisado desativar uma parte do suporte automático
para que o curso não fosse interrompido — os alertas de perigo que soavam
cada vez mais insistentes.
Não detinha qualquer expectativa tola ou irreal do que aconteceria
quando se aproximasse o suficiente do buraco negro, e estava ciente de que a
nave seria atraída até o ponto sem retorno do qual havia ouvido falar.
Aquele, todavia, era o sacrifício que estava disposta a fazer, não porque
havia previsto o futuro, nem porque sentia-se em dívida e culpada.
Ela o faria porque era o que queria.
Porque era a única que podia.
Ela faria porque nunca estivera tão consciente da dor e das privações
e, especialmente, porque as aceitava.
Não havia mais espaço para fugir de quem ela era e de quem se
tornara. Assim, quando as luzes da nave começaram a piscar e as turbinas se
apagaram, a fuselagem impulsionada apenas pela fome de Cronos, ela
agradeceu o presente que o Senhor dos Senhores lhe havia concedido.
Não o poder do oráculo e das visões.
Mas, simplesmente, o tempo.
O comando chacoalhou com fúria, e os painéis metálicos foram
espremidos e apertados sob o peso da gravidade que também ameaçou
esmagá-la. Pedaços da fuselagem saíram voando, e, conforme adentrava
ainda mais em direção ao horizonte de eventos, tudo perdeu o brilho e as
poucas cores que era capaz de ver.
Sua vida não fora boa, e à beira da morte não faria sentido contar
mais aquela mentira para si mesma. Ainda assim, fora repleta de momentos
que a fizeram valer à pena, que lhe deram a certeza de que possuía, sim, um
propósito para existir.
O título que lhe fora arrancado não seria levado adiante, tampouco as
riquezas de sua dinastia. Amores teriam acalentado o espírito e
principalmente o corpo; no entanto, também não a acompanhariam naquela
jornada.
Afinal, para o interior de Cronos, ela não levaria nada, senão a
certeza do tempo que passara com aqueles que um dia amara e com os
poucos que a amaram de volta.
Toda a água que possuía dentro de si foi extraída, e ela pôde jurar
que vislumbrou as gotículas flutuando ao redor do corpo inerte, entrando
pelos circuitos já em curto da nave.
A destruição era iminente; entretanto, ela se agarrou ao tempo.
Agarrou-se ao último vestígio de consciência, enquanto a mente perdia-se
dentro de si mesma, no entremeio da loucura, revivendo momentos passados
com os quais jurara já ter feito as pazes. Lyia sabia que eles não a definiam,
mas, ainda assim, obrigou-se a resistir um pouco mais, absorta pelas
mentiras que se misturavam com sorrisos e risadas. Rodopiavam, como
vestidos em um grande salão de baile, e sangravam em azul, manchando a
água do mar.
Apenas um pouco mais...
Perdoe-me, Elya.
Perdoe-me um dia e nunca se esqueça de mim.
Pela nave ecoou um barulho de metal rasgado que quase não foi
capaz de ouvir. Através dos painéis rachados que se estilhaçavam pouco a
pouco, ela observou com pavor as turbinas serem completamente
consumidas pela escuridão. Devoradas, como um saboroso aperitivo.
E a última coisa que Lyia Oma’thu viu foi o espaço dissolver-se
dentro de si mesmo. Engolir toda a luz no escuro do vazio, e consumir tudo.
Até mesmo o tempo.
Lyia despertou, sentindo-se estranhamente como ela mesma, embora
não soubesse bem o que deveria esperar da situação. Lembrou-se com
facilidade do próprio nome e contou os tentáculos e até mesmo as ventosas.
Apalpou o corpo moluscular, como se tivesse a súbita necessidade de saber
que tudo estava no lugar.
Desafiando-se, abriu um dos olhos minimamente, mas não conseguiu
enxergar nada através da névoa escura e espessa que se assentava ao seu
redor, irradiando uma aura profunda e intransponível. Os outros dois o
seguiram, curiosos para ver também, porém foram igualmente incapazes de
esclarecer ou identificar algo.
Estava morta? Aquilo era o além?
Pensou que talvez devesse se erguer e testou o máximo que pôde a
superfície onde jazia deitada — parecia sólida o bastante para tentar.
Levantou-se devagar, um tentáculo após o outro a deslizar sem emitir
qualquer som, até que finalmente acreditou estar de pé, embora dentro da
névoa parecesse não existir coisas como cima e baixo. A cabeça estava
pesada demais.
Testou ir em frente, imaginando que, fosse aquele o local de seu
julgamento perpétuo, não demoraria a encontrar o destino que a aguardava.
Contudo, pouco importou a força com a qual os tentáculos vigorosos a
impulsionaram: não foi capaz de sair do lugar.
Andava em círculos? Ou não andava em absoluto?
Fez o que pôde para, na ausência da visão, apurar os demais sentidos.
Ela era, afinal, uma criatura acostumada a oceanos profundos e escuros.
Apenas belarianos regozijavam-se com tão pouco quanto aquilo que os olhos
mostravam.
Relaxou os músculos sob a pele sensível, soltando o ar pelas
brânquias, e expandiu a própria consciência de modo a tornar-se senciente de
todo o corpo. Então ela sentiu tudo ao mesmo tempo: os três corações que
bombeavam, rápidos; as ventosas que procuravam algo no qual se prender; e
os tentáculos agitados, conversando em sinapses.
Era um equilíbrio delicadamente mantido, e ela o expandiu para além
de si, como uma aura. Suas pontas enroscaram-se em algo, e ela ordenou que
o trouxessem para si. A coisa, todavia, não gostou de ser feita de presa em
meio ao mar de névoa e lutou, agitando-se como um animal arisco.
Aquilo comprimiu-se para longe de onde a tocava, e no vácuo
deixado pelo movimento surgiu uma luz pálida e preguiçosa, ainda muito
frágil para que se achegasse. Foi o suficiente, entretanto, para que visse a
cerração encolhida, borbulhando, esticando e enrolando-se em si mesma,
como seus tentáculos muitas vezes faziam.
Ousou chegar mais perto daquilo que parecia vivo, e a névoa correu
para longe, fora de seu alcance, apressando-se até ganhar contornos
enormes. Formou colunas imponentes que poderiam ter sustentado planetas
inteiros no firmamento, bem como escadarias desenhadas para pés de
criaturas que não habitavam o mesmo mundo que ela.
Acima, a bruma densa cedeu lugar a um teto pontilhado de estrelas
— tantas, que Lyia sentiu-se ainda menor. E como se assistisse à criação de
tudo o que um dia já havia sido feito, não foi capaz de desviar os olhos
quando os gases consumiram-se até causarem explosões que manchavam o
tecido escuro com cores que sequer saberia nomear.
Algumas nem deveriam existir.
Tornaram-se véus finos e astros massivos que dominaram o espaço,
sempre em constante transformação. Onde havia vida, a morte sempre
espreitava, assim como onde havia morte, a vida sempre encontrava uma
forma de surgir.
— Você chegou longe, minha criança — ecoou uma voz vinda de
todos os lados, jovem e vigorosa, embora carregada de ancestralidade.
E todo o espaço estremeceu.
As nebulosas colidiram, as supernovas implodiram e os gases
pereceram ainda mais rápido. Planetas foram formados, rodopiando, e
estilhaços de rocha borbulharam de encontro uns aos outros. O caos em
ação.
Começo e fim. Fim e começo.
De novo e depois outra vez.
Lyia procurou por Aquele que falava, embora em vão: Ele estava em
toda parte.
Então, uma cortina de névoa se abriu, revelando uma estrutura
enorme e reluzente como uma chama, tão branca que foi capaz de ofuscar
seus olhos completamente. Queimava e crepitava, como fogo, porém era
feito de minúsculos e quase indivisíveis grãos de areia, que levitavam em
direção ao alto, enquanto tomavam uma forma espiralada. E, bem em frente,
um encurvado ancião vestido de modo simples, cujas mãos trêmulas se
achegavam às labaredas vivas, tão perto que os ossos estalavam com o calor.
Talvez porque o houvesse procurado ou porque tivesse ousado
adentrar naquela morada, já soubesse quem Ele era antes mesmo de qualquer
apresentação.
Podia mesmo dizer que o Tempo causava uma impressão.
— É você o Senhor dos Senhores?
— Eu Sou o justo, a essência e a primeira presença que rege o
universo — respondeu-lhe Aquele que, embora parecesse um homem, não
tinha nada de mundano em Si. — Por que adentra em Minha morada,
criança? Você certamente se esforçou, e achei por bem permitir. Há muito
não recebo visitas.
Lyia desabou para o piso reluzente, e o peso a fez afundar em um
entremeio. Por baixo dos veios de mármore, corriam as espirais de névoa
que sustentavam aquela ilusão. O corpo moluscular encurvou-se sobre si
mesmo, demonstrando não apenas respeito, mas, principalmente, temor.
O Tempo era vivo.
— Vim pedir-lhe, Deus dos Deuses, por algo que muito estimo. E,
em troca, ofereço minha vida, a única coisa de valor que tenho para dar.
Todo o meu tempo.
O Deus a mirou como se não passasse de um grão de poeira
insignificante, embora nenhum par de olhos tenha ficado à vista por debaixo
da capa esfarrapada que o cobria por inteiro. Ele se moveu em sua direção, e
conforme se aproximava, foi ficando cada vez menor, ganhando contornos
de um homem senil que mal sustentava o peso dos próprios ossos.
— Não barganhe com coisas que não lhe pertencem, criança tola —
advertiu, de modo simples e direto. O tom a fez tremer. — O Tempo é justo
e em nada interfere, senão para tomar o que é Seu de direito — decretou, e
os pilares balançaram, revelando a cerração. — Não tente tomar o que é do
Tempo.
Lyia piscou, sentindo a pouca água que ainda lhe restava no corpo
escapar pelos poros.
— Elya e Ulian não Lhe pertencem — murmurou, mais para si
mesma. Depois, tomou coragem para olhá-Lo de frente, muito embora não
fosse capaz de sustentar o desafio por mais que breves instantes. Dentro
dela, o Tempo queimava, mas os tentáculos teimaram em se esticar como
dedos acusatórios. Iriam lutar até o fim. — Eles não são Seus!
— E com que propriedade assim afirma, tola criança?
— Porque vi o futuro deles! — deixou escapar em um rompante de
raiva, ou talvez de estupidez. — Vi a mais perfeita entre as perfeitas; a que
traria o futuro — admitiu, sentindo a água vazar pelos poros, tão espessa
quanto seu sangue frio. — Ela viverá para ser a esperança do próprio povo.
E ele viverá para ser a esperança dela.
— Mais perfeita entre as perfeitas... — As palavras deslizaram pela
língua do Deus como se as testasse. Deixaram um gosto amargo no
ambiente, que pareceu se contrair com o desagrado Dele. — Não reconheço
esse título, pois você quem o criou.
— Eu profetizei! Foi o poder dos oráculos...
— O Tempo não toma escolhidos, nem oferece profecias.
— Mas... — Confusão a tomou, e ela encontrou-se de volta ao jardim
belariano.
A brisa morna agitava as copas frondosas das árvores, e uma criança
esguia corria por entre os canteiros, acompanhada pelas criaturas da manhã
que levitavam, feitas de plumas.
Ela será a mais perfeita entre as perfeitas. A ungida. A prometida. A
que trará o futuro.
Era mais um desejo do que uma profecia. Na verdade, Lyia só queria
proteger a menina, garantir que tivesse a vida e a felicidade que a ela foram
negadas. Que jamais conhecesse a dor do fracasso ou a sujeira da vergonha.
Reuniu dentro de si toda a força que tinha, toda a intenção.
Não podia salvar a si mesma, mas talvez pudesse garantir que aquela
pequena menina cor-de-rosa nunca sofresse.
— Fui eu? — As palavras lhe deixaram a boca trêmulas. — A
profecia... Todo esse tempo... Fui eu? Eu impus sozinha a Elya esse destino
egoísta?
O Deus Tempo pareceu pensativo.
— O passado é do Tempo. O futuro é do Tempo. Mas o presente é
dos homens. — O timbre assumiu ainda mais vigor, poderoso como se
esperaria, e soou quase como se um sorriso aberto Lhe tomasse a boca. — Se
alegou ver qualquer pedaço Dele, culpe a si mesma.
Os tentáculos se espasmaram. Estrebucharam.
Como ela pôde?
Como foi capaz de ser tão egoísta e despejar sobre Elya, sua amiga
mais querida — sua única amiga — todas as dores e frustrações que
carregara consigo de Impla?
Merecia ser odiada, sim. Merecia que tudo terminasse ali.
— Eu me entrego, Senhor dos Senhores, para salvar a Elya e a Ulian.
Leve-me e devolva-os, por favor — pediu, desnorteada. — Eu imploro.
Acabe com essa dor que me rasga e me amaldiçoa de uma vez por todas.
— Por que acha que dei aos seus o poder dos vislumbres, minha
criança?
A estranheza e a simplicidade da indagação se abateram sobre ela.
— Foi um presente — pegou-se respondendo. — Mas Elya e Ulian...
Ele, todavia, não permitiu que prosseguisse com o apelo:
— Um presente. — E a palavra ecoou por todo o espaço, fazendo a
areia correr ainda mais rápido. — Quantos significados carrega uma única e
tão pequena palavra, ou um único e pequeno gesto... O que é o Tempo sem o
passado, o futuro e, principalmente, o presente? Você possui a todos, criança.
Lyia balançou a cabeça moluscular, em negação, sentindo toda a
força e o ímpeto dentro de si se esvaindo lentamente.
— O passado, inalcançável senão nas memórias ou, muitas vezes, no
pesar daqueles que desejam revivê-lo — prosseguiu o Deus, implacável. —
O futuro, que sempre chega não importa o quanto tentem evitá-lo. Mas,
especialmente, o presente. O presente que ignoram e esquecem. O presente
no qual os homens nunca vivem.
— Por que nos daria isso? — interrompeu-o. Seus tentáculos
agitaram-se conforme as ondas quebravam com violência, revolvendo a
areia, e os sentimentos mais obscuros eram trazidos à tona uma vez mais.
Ela quis pôr um fim naquela dor excruciante e pegou-se cuspindo as
palavras: — Não vê o que Seu presente causou em meu planeta? Não viu as
cicatrizes no meu povo? As visões nos trouxeram apenas dor! — gritou, sem
mais se importar se estava na presença de um Deus. — Nos destruíram. Me
destruíram. Por conta do poder de oráculo, eu perdi minha família. Passei
frio, fome. Fui violentada e violentei! Me tornei um monstro para a única
pessoa que me amou, então eu imploro, leve-me logo.
O pranto deslizou para fora dela como se pertencesse ao ambiente,
com extrema facilidade, e o Tempo a encarou sem simpatia nem desdém
enquanto jazia deitada. Não sentia nada por ela, no fim das contas. Era um
Deus e estava acima de tão pequenas criações.
Ainda assim, fraca, quebrada e exposta, sangrando como a criança
ingênua que um dia foi, Lyia encontrou forças para fazer uma última
pergunta:
— Nós somos Seus brinquedos? Por que nos daria tamanho poder,
senão para nos machucar?
— Porque Eu sou a porta, criança, e alguém precisava ser a chave. O
Tempo não toma escolhidos, e você, infelizmente, foi a única que restou. Os
outros desperdiçaram o que você, tão cuidadosa, protegeu. Por isso Eu lhe
peço, embora pudesse simplesmente ordenar: abra-Me.
E antes mesmo que Lyia pudesse implorar pela vida de Elya e de
Ulian uma última vez, a névoa se fechou ao seu redor, engolindo-a como
uma besta faria. Empurrou-a entre presas, mastigou-a com o peso de mil
estrelas.
Fez o possível para lutar, ainda que todas as forças lhe tivessem sido
retiradas, e enquanto os tentáculos tentavam nadar em meio à correnteza que
queria puxá-la para baixo, sentiu quando a densidade tornou-se áspera,
composta por milhares de milhões de grãos.
Ela nadou, ou fez o possível para nadar, mas não havia meios.
Porque Lyia não estava no mar, e sim bem no meio de uma
tempestade.
Em Colossus.

Implavianos eram uma raça proveniente de um planeta submerso,


portanto Lyia simplesmente não suportava areia. Os desertos eram, para ela,
uma criação natural intolerável.
Naquele momento, entretanto, envolta por blocos enormes de
substrato e turbilhões de dunas revolvidas, deu-se conta de que havia apenas
uma única outra coisa que poderia lhe causar ainda mais desconforto:
relâmpagos.
Arraigada aos redemoinhos, a eletricidade cortava o ar em tantas
direções, que apenas a providência divina poderia impedi-la de ser atingida e
acabar morta em meio a um pesadelo do qual não era capaz de acordar. Era
agitação pura, desordem e caos; era a força de destruição que não se curvava
para nada, nem ninguém.
Estava de volta à entrada da base da expedição, porém selada do lado
de fora, junto da força imparável da natureza estranha daquele lugar. Pelo
lado de dentro, cientistas batiam na porta de cristal belariano, gritando seu
nome e muitas outras palavras ininteligíveis.
Talvez estivessem pedindo para que se arrastasse até o galpão onde o
maquinário era guardado, mas aquela ideia não parecia fazer muito sentido.
E tinha ainda a nave.
Onde estava a nave?
Parecia até que ela nunca tinha partido para Cronos, embora lá do
alto ele lhe sorrisse...
Sentindo os grãos lacerarem o tecido delicado de suas pálpebras
gelatinosas, fechou os olhos e fez todo o possível para cobrir as brânquias
com os tentáculos menores, já muito ressecadas. A bolha protetora não
estava mais em torno de sua cabeça, tendo se perdido em meio ao vendaval
ou sido tomada. Lyia estava abandonada à própria sorte.
Ela se arrastou em direção ao portal, ouvindo com mais acuidade os
socos e murros que eram dados no cristal, e recostou o corpo contra eles,
deslizando até o chão.
Havia feito tudo o que podia. Ofereceu sua vida e todo o seu tempo,
até mesmo seu presente de oráculo, em troca da vida segura e feliz de Elya e
de Ulian, porém o Deus Tempo a recusara.
Não havia mais com quem barganhar, apenas consequências para
suportar.
No entanto, uma rajada de vento furiosa espantou os redemoinhos à
sua frente por um momento breve mas suficiente para revelar uma
plataforma, onde ondas de eletricidade se condensavam em um único ponto
de aparência viva, conduzidas por colunas metálicas. Ele se comprimia e se
apertava sobre si mesmo, quase em um esforço para se libertar.
Um relâmpago azulado cortou a terra, subindo em direção ao
complemento que desceu dos céus, e a estrutura inteira se energizou. As
colunas de metal zuniram, brilhantes, quando bem no centro formou-se uma
distorção cor de ametista, reluzente como uma joia. Naquele ponto, o tecido
do tempo e do espaço parecia ter se tornado muito fino, nada além de um
véu que, desdobrando-se em milhares de facetas, revelou a silhueta imutável
e habitual de um casal.
Lyia se engasgou com o reconhecimento.
As paredes da boca e da garganta, todavia, encheram-se de areia e a
fizeram tossir até que a cabeça pesasse ainda mais sobre o corpo de molusco.
Neste instante, um segundo relâmpago cortou a planície, arrastando enormes
blocos de substrato, montanhas inteiras, que atingiram a plataforma com
violência.
Os fios que ligavam a máquina a muitos instrumentos, cuja utilidade
ou nome lhe eram desconhecidos, foram rompidos, balançando ao relento do
turbilhão, e o portal se comprimiu, quase desaparecendo com a intervenção.
— Elya! — gritou, esticando-se.
Não a perderia; não outra vez.
O tempo era a porta, e ela era a chave.
Elya e Ulian apenas precisavam passar.
Então Lyia fez a única coisa que poderia: lembrou-se.
Enquanto percorria as dunas com os olhos queimados, afundando-se
e tendo de impor ainda mais esforço a cada musculoso tentáculo, lembrou-se
do vislumbre que a salvara da profundeza abissal das próprias trevas. Do
som dos risos das crianças, que corriam livres e tão perfeitamente
imperfeitas.
Lembrou-se do aroma e dos gestos.
Do sorriso.
E dos olhos dourados dela, sua amiga.
Apenas aquele que amava sacrificava.
Encurtou o espaço até a plataforma, enquanto as brânquias
respiravam uma última vez, e com a força que lhe sobrara levou os
tentáculos até as três colunas de liga metálica, envolvendo-as enquanto os
demais procuravam pelos fios soltos ao relento, enroscando-se neles.
Ela era a chave.
E também seria o condutor.
Perdoe-me, Elya.
Olhou para cima, onde mesmo as nuvens de poeira não eram capazes
de impedir um vislumbre do buraco negro que reinava no firmamento, e teve
a certeza de que Ele lhe sorria quando o raio que estava esperando
finalmente desceu, vibrando.
Quem sabe em outra vida você não me encontre.
E nós sejamos felizes.
Ao seu redor, o ar estalou e chiou, depois preencheu-se com um
terrível odor de carne queimada que os ventos da tormenta carregaram para
longe, antes mesmo que a plataforma se energizasse, à toda potência. Então
a distorção ganhou tamanho suficiente para permitir que Elya e Ulian
retornassem ao próprio tempo.
Mas eles não estavam sós.
Pois entre os dois, cruzava o portal uma menina esguia e de longos
cabelos escuros. Os olhos ternos e amendoados dela brilhavam não de medo,
mas de uma familiar expectativa, quando fixou-se neles pela primeira e
última vez.
E Lyia soube, antes de pedir que o Tempo a levasse com gentileza,
que o nome da menina era Alicia.
Treze ciclos.
Uma fase.
E doze crescentes.
Enquanto Lyia observava Elya preparar Alicia para a cerimônia de
maioridade, um sentimento nostálgico a tomou de assalto, quase
impulsionando-a a reviver aquele outro anoitecer, há tantos ciclos que sequer
pareceu-lhe uma memória real.
Talvez nem fosse.
Seus três olhos encontraram os da melhor amiga, que não havia
perdido a doçura ou a gentileza dos gestos mesmo com tudo o que fora
obrigada a enfrentar, e elas trocaram um sorriso cúmplice que dizia muito,
embora o aposento permanecesse absorto em silêncio.
Houve um tempo em que a chamaria de mais perfeita entre as
perfeitas, mas aquele era um título que já não tinha mais lugar entre elas.
Uma memória, e Lyia parecia cada vez mais tomada por elas. Custara-lhe
admitir que o havia inventado sozinha, em vez de profetizado, mas no final
parecera certo depois que ruiu.
Elya não era especial porque havia sido escolhida por um poder
maior: era especial porque se importava o suficiente para ousar tentar mudar
o próprio mundo.
— Lyia, você está bem? — ouviu Elya perguntar, com o tom ainda
doce, porém muito mais firme.
Já não era a menina que vira crescer e tentara proteger das dores do
mundo. Aquela à sua frente era uma mulher feita: os cabelos dourados bem
aparados, cortados na linha do queixo; os olhos preciosos atentos; e os anéis
nos dedos, um deles marcando um compromisso eterno, de corpo e de alma.
— Ela parece nervosa — Alicia disse, astuta como o pai.
Na verdade, não tinha quase nada na primogênita que não fosse
parecido com Ulian Bened: exibia o mesmo porte nobre sem esforço, a
mesma pele profundamente azul e a mesma aptidão para as ciências e a
rebeldia.
Principalmente a rebeldia, embora já não houvesse tantas regras
assim para quebrar em Belar.
— Você está nervosa — Lyia devolveu, daquela vez encarando a
jovem belariana pelo reflexo. Os olhos escuros e astutos dela lhe desafiaram
de volta. — Menina teimosa — complementou, saboreando a ironia.
— Apenas não quero acabar sendo reclamada por Ésper — Alicia
disse, dando de ombros de modo indiferente. — Com todo o respeito —
tratou de emendar, quando notou a indignação presente na respiração
profunda da mãe.
— Não há nada que se preocupar — Elya disse, afagando os cabelos
da primogênita com suavidade. — As Soberanas sabem o que há no fundo
de seu coração, até o que tenta esconder. Ser abençoada não é ser
transformada, e sim revelada — esclareceu, com propriedade e paciência. —
E ser uma filha prateada não é vergonha alguma: nosso mundo precisa de
pessoas calmas e capazes de controlar as próprias paixões, em vez de serem
controladas por elas.
Alicia pareceu internalizar a explicação por um momento, enquanto
encarava o crepúsculo e as duas luas que banhavam a sala com raios fortes
— os mais fortes do ciclo.
Mesmo tanto tempo depois, a cerimônia de maioridade permanecia
igual: os jovens belarianos entregavam suas verdades às Soberanas que,
reconhecendo o que havia dentro de cada um deles, reclamavam-nos como
filhos.
O que se seguiria ao ritual, entretanto, passara a ser algo
completamente diferente, pois Elya Bespian, a primeira mulher reconhecida
como Governadora de Belar, extinguira para sempre as combinações do
Conselho Conubial como seu primeiro ato de administração, assim como os
casamentos por obrigação.
Os orgulhosos belarianos não ficaram assim tão felizes quando
descobriram que haviam sido enganados, e que dentro do Conúbio não havia
nada além de um jogo de espelhos e um pouco de alucinação. Também não
gostaram quando foram destituídos da mais relevante tradição na qual
baseavam a sociedade mais perfeita já construída e por ciclos sentiram-se
perdidos, obrigados a desenvolver relações verdadeiras uns com os outros.
Eram tão estranhos ao amor quanto o amor para eles.
— Vamos? — Lyia ouviu a melhor amiga perguntar, depositando
uma palma quente sobre sua pele fria.
Assentiu, ajeitando-se na cadeira que, ao lado de Elya, flutuou sem
emitir qualquer som pelos corredores de pedra branca e imaculada da
ancestral residência dos Bespian. Alicia seguia na frente, os pés descalços e
decididos.
— Onde estão suas irmãs?
A jovem se virou rapidamente para responder:
— Quiseram ficar com papai; acho que elas temem virar lagartos
gigantes com os raios das Soberanas. — Um sorrisinho divertido cruzou os
lábios de Alicia. — Talvez eu as tenha feito pensar isso — confidenciou.
A mãe cutucou a filha nas costelas, e, juntas, as três ganharam os
degraus até o antigo banho onde um espelho incrustado na borda aguardava
pela magia antiga e fundamental que regia o ritual.
Ninguém havia tentado extingui-lo ou mudá-lo, pois não fazia mal
algum. No entanto, ainda que tivessem tentado, não conseguiriam.
Era quase impossível negociar com deuses.
Seus tentáculos se remexeram no colo, e a dor antiga das amputações
a fez agonizar em silêncio conforme encarava o próprio reflexo na água
fumegante. Disseram-lhe que passaria depois de um tempo, mas os
tentáculos restantes provavelmente jamais deixariam de sentir a ausência dos
que haviam perecido naquele dia, durante a tempestade em Colossus.
A pele antes lisa havia se transformado em uma couraça repleta de
sulcos e cicatrizes de queimaduras que haviam lhe transformado na prova
viva de que não se deveria atentar contra a natureza.
Um preço pequeno a pagar, todavia, por aquele tão belo e pacífico
futuro — exatamente como o havia previsto. Embora os tentáculos não
fossem tudo o que havia perdido.
Elya fez sinal para que Alicia se despisse e entrasse no banho
aromático que borbulhava em cascatas finas, e Lyia prendeu a respiração em
expectativa, pois Cília não admitira sua presença na única cerimonia que
poderia ter testemunhado em tempos passados.
— Lave-se, minha querida menina, mas nunca perca a inocência das
crianças enquanto caminha como uma mulher — Elya disse, erguendo os
braços em direção ao firmamento onde, pouco a pouco, Tenar e Ésper se
achegavam, dobrando a gravidade e as leis universais. — Estaremos com
você a cada passo — complementou, com um gesto de mãos que fez a névoa
aromática se afastar.
O ar tornou-se rarefeito e a brisa que as beijava suavemente
escondeu-se, conforme um único raio translúcido atingia o espelho, e o feixe
era direcionado para Alicia que, nua, o recebia com respeito e expectativa.
Lyia pensou que havia vislumbrado um lampejo de dourado, mas os
olhos turvaram-se de súbito, e sua visão tornou-se tão esticada, que não era
possível distinguir nada em meio ao turbilhão que a sugava, tornando-a
imaterial. Reconhecendo a sensação de seus sonhos mais antigos, ela
desesperou-se, agarrando-se à cadeira que já não existia mais naquele não
lugar, onde apenas e tão somente os escolhidos pelo Tempo podiam adentrar.
Encontrava-se em uma sala grande e fria, tão fria, que fazia os
tentáculos recém-crescidos arderem ainda mais. Ela se arrastou, quase
incapaz de andar sem apoio, e espiou a paisagem para além da janela
escavada em um material tão claro e liso que não poderia ser outro senão
gelo.
Pequenos flocos dançavam na nevasca do lado de fora. Adiante, um
pico imenso se erguia, quase tocando o céu, que trovejava em nuvens
escuras e densas, e uma única e solitária lua esverdeada se erguia no ponto
mais alto do céu, tão próxima que era possível ver com exatidão suas
crateras cobertas de esmeraldas.
Não era um mundo que Lyia conhecesse.
Com dificuldade, afastou-se da pequena janela e só então se deu
conta de que havia uma menina encolhida junto ao chão de madeira escura.
Não deveria ter mais que sete anos, em contagem universal, e tinha a pele de
um azul muito claro, quase da mesma cor do gelo, além de cabelos
compridos alvos e olhos cor de âmbar assustados. Ela estava chorando, fato
que Lyia notou por conta da pequena película de gelo precipitado que se
formava sobre os cílios compridos.
Aquilo era uma visão, estava certa, mas como poderia?
Pensara ter entregado o poder de oráculo ao Deus Tempo e, em todos
aqueles ciclos, nunca mais tivera um único vislumbre, de modo que chegara
à conclusão de que havia perdido aquela parte de si para sempre.
Ainda assim, ali estava ela — e ali estava a menina.
Lyia se aproximou sem se preocupar com o barulho do arrastar
ferido, tampouco com o do esforço que saia por sua boca na forma de vapor,
perdido para o quarto vazio e frio, pois sabia bem como funcionavam as
visões e, portanto, que a menina não poderia vê-la. Naquele terreno incerto,
a cena se desenrolaria para mostrar-lhe o que precisava ver, o futuro que iria
chegar, mas ela nada poderia fazer para mudá-lo ou, de alguma forma,
interferir.
— Quem é você? — questionou para si mesma, forçando os três
olhos a apreenderem todos os detalhes que podiam: as roupas bem
costuradas e acolchoadas, a cicatriz sobre uma das sobrancelhas, em uma
linha fina e precisa quase totalmente fechada. — E por que o Tempo quis
mostrá-la para mim?
Como se intentasse responder a seus questionamentos, uma batida
soou na porta de madeira à sua frente, sobressaltando-a, assim como a
verdadeira destinatária daquela cena, de quem espelhava as emoções e ações.
A menina engatinhou depressa para junto da parede e se encolheu ainda
mais, tampando os ouvidos com membros incrivelmente longos.
Parecendo um animal encurralado, ela sussurrava algo em um dialeto
estranho que Lyia não chegou a reconhecer, e conforme entrava em um
aparente transe outras batidas soaram, mais decididas e impacientes. A
fechadura foi forçada, porém era de metal robusto e não cedeu.
Só depois que tudo ficou novamente silencioso, e quem quer que
estivesse à porta desistido, a menina retirou as mãos de perto do rosto e as
fez descer sobre a frente do corpo, que tremia. Então ela toda se chacoalhou,
feito uma marionete, e um grito dolorido escapou por entre seus lábios finos
de criança.
Quanto tornou a abrir os olhos, a expressão que tomava o rosto dela
já não era a mesma; parecia mais velha e mais sábia. Pacífica demais para
representar algo bom.
Com as írises âmbar, focou-se exatamente onde Lyia se encontrava
parada, usando o encosto de uma cadeira para se manter de pé. A força que
aqueles olhos carregavam fez Lyia dobrar-se involuntariamente, pois pareceu
mesmo que podiam enxergá-la.
Buscou acalmar a si mesma, pois não havia a menor possibilidade de
tal coisa acontecer. O futuro era um mistério, uma cena que se desenrolava à
sua revelia, e ali ela era apenas e tão somente uma expectadora.
Até que a menina falou com uma voz que não poderia ser dela:
— Você testemunha, oráculo, que os Deuses despertaram, e nada
jamais será o mesmo. Agora volte e conte a todos que puderem ouvi-la e
acreditar.
Então um grito agudo e perfurante soou. A puxou de volta pelo
turbilhão enquanto era transformada em fumaça, e depois em matéria
novamente.
Calor. Mãos gentis sobre seu rosto.
— Lyia! — um chamado ainda mais suave, apesar de urgente.
Seus três olhos se abriram de uma só vez, manchados pela cena fria e
longínqua que se repetia em sua memória, e se depararam com um rosto
pairando acima de sua cabeça.
Os cabelos dourados e cacheados contrastavam com a pele de um
azul profundo, e Ulian Bened relaxou o rosto quando enfim percebeu que
estava acordada. As sobrancelhas grossas voltaram à posição habitual, e os
brincos nas orelhas tilintaram de modo familiar.
— Lyia — repetiu o belariano, que segurava seu corpo moluscular
desfalecido de modo firme, porém respeitoso. — Você está bem?
Lyia tentou dizer a ele que sim, tranquilizá-lo a respeito de seu estado
quase de choque, porém relanceou Elya e Alicia debruçadas no pavimento
de pedra, perto da borda do grande banho borbulhante.
A mãe afagava as costas azuladas da primogênita, que ofegava, ainda
um pouco presa no frenesi da benção, cercada pelas irmãs menores: Neyara
e Lora. Eram gêmeas de pele violeta, a mistura perfeita entre azul e rosa.
Será que algo deu errado?
— Vou ajudá-la a se sentar, está bem? — Ulian prosseguiu, a
interpretar sua ausência de resposta como um meio termo entre sim e não. —
Tente não me agredir dessa vez.
Apoiando-se nos tentáculos que restaram de modo muito doloroso,
ela fez o possível para não deixar todo o peso do corpo cair sobre o do
belariano. No entanto, já se passara muito tempo desde que as formalidades
entre eles haviam sido deixadas de lado para dar lugar a uma bonita amizade.
Portanto, contentou-se em abraçar os ombros firmes que apontavam em sua
direção, as ventosas agarrando-se ao tecido sedoso da camisa entreaberta,
antes de ser delicadamente acomodada na cadeira que levitava a
pouquíssima distância do chão.
— Obrigada — Lyia conseguiu murmurar, sentindo as paredes da
garganta muito secas. Enquanto os tentáculos ainda cresciam, era quase
impossível locomover-se fora dela.
Ulian assentiu de modo solene, uma vez que jamais perdera aquela
parte tão educada e elegante de si, e olhou em direção à esposa e às filhas de
modo vigilante. Os tendões do pescoço apareceram, e a mandíbula forte se
retesou.
— Elya, querida? — chamou. As mãos foram levadas ao peito azul.
— Ulian...? — Elya sussurrou em resposta, embora o som se
propagasse pelas paredes de pedra como uma pergunta.
Todos os olhares se voltaram para Alicia e ela sorriu, completamente
entorpecida. As irmãs menores seguravam as mãos da mais velha, para
mantê-la de pé, e Lyia enfim compreendeu.
Nem os cabelos nem os olhos da filha primogênita haviam mudado
de cor, como esperado daquele ritual — como sempre havia acontecido
desde que se tinha registro.
Alicia era inteira dourada e prateada, tão filha de Tenar quanto de
Ésper.
O produto indivisível da força da mudança.
O verdadeiro resultado do futuro de Belar, no qual ninguém, nunca
mais, precisaria ser dividido.
Afinal, todos tinham um pouco de paixão e frieza dentro de si.
Essa não será a última vez que você ouvirá falar de Belar.
Me parece impossível, nesse momento, dizer algo que ainda não
tenha sido falado ao longo das páginas dessa história que foi escrita pelo
meu coração.
Em cada parágrafo coloquei meus medos e meus desejos, minha
verdade, na esperança de que se forem os mesmos que os seus, então te
ajudem a compreender que nós não somos perfeitos.
Que não precisamos atender às expectativas dos outros. Que não
precisamos ser nada pelos outros.
E, principalmente: que o tempo é curto demais para viver uma vida
se baseando no passado, ou almejando o futuro, quando o único tempo que
nos foi dado de verdade é o presente.
Mas, se você chegou até aqui, então é claro que preciso te dizer o
meu mais sincero e verdadeiro muito obrigada.
O amor tem muitas formas, e assim como a Elya, o Ulian e a Lyia me
ensinaram, cada um de vocês que me ajudou com uma sugestão, uma palavra
nos momentos que fraquejei, divulgação, avaliações ou com um ombro nos
momentos em que eu precisei, também me ensinou um pouco sobre esse
sentimento que é tão lindo e tão raro de encontrar.
Coragem e perseverança são fundamentais para um autor nacional, e
se hoje posso me considerar corajosa, ou dizer que perseverei até o fim,
então devo isso àqueles que sonharam comigo: mãe e pai, Lo, Dadá e Tio
Fábio, Bruno, Carol, Ester, Giulia, Arquel(Ana), Matteus e Julia: obrigada,
obrigada, obrigada! Por tudo.
Cecília: sem você esse livro — literalmente — não existiria.
Obrigada por ser minha fã número um e por ter me incentivado a escrever
mais.
O Sistema Exterior é tão grande quanto a minha gratidão, mas ela é
muito mais brilhante e, como as nebulosas, incendeia em cores inomináveis.
Até que os astros se desprendam do firmamento e as Soberanas nos
reclamem, com todo o meu carinho,

Marina.
[1] Não Adentre a Noite Apenas com Ternura - Dylan Thomas

Você também pode gostar