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SAYAD, Abdelmalek. A Imigração. Tradução Cristina Murachco.

São Paulo: Editora da


Universidade de São Paulo, 1998.

Introdução

“(...) na origem da imigração encontramos a emigração, ato inicial do processo (...) o que
chamamos imigração, e que tratamos como tal em um lugar e em um sociedade dados, é
chamado em outro lugar, em outra sociedade ou para outra sociedade, de emigração; como
duas faces de uma mesma realidade, a emigração fica como a outra vertente da imigração
(...)” (p. 14)

“(...) a imigração é um ‘fato social completo’ (...)” (p. 15)

“(...) a imigração é (...) um deslocamento de pessoas no espaço, e antes de mais nada, no


espaço físico (...). Mas o espaço de deslocamento não é apenas um espaço físico, ele é
também um espaço qualificado em muitos sentidos, socialmente, economicamente,
politicamente, culturalmente (...) ” (p. 15) * culturalmente: sobretudo língua e religião]

“’Fato social total’ (...) falar da sociedade como um todo, falar dela em sua dimensão
diacrônica, ou seja, numa perspectiva histórica (...), e também em sua extensão sincrônica, ou
seja, do ponto de vista das estruturas presentes da sociedade e de seu funcionamento (...)” (p.
16)

“(...) o imigrante só existe na sociedade que assim o denomina a partir do momento em que
atravessa suas fronteiras e pisa seu território; o imigrante ‘nasce’ nesse dia para a sociedade
que assim o designa. (...)” (p.16)

“Mostramos em outro texto a relação dialética que une as duas dimensões do mesmo
fenômeno, a emigração e a imigração; ou, em outros termos, como um mesmo conjunto de
condições sociais pode engendrar, grosso modo, num dado momento da história do processo
(ou da história do grupo em particular), uma forma particular de emigração, ou seja, uma
classe particular de emigrantes que mantém, para lembrar apenas esta única característica
distintiva, um modo particular de relação com seu país (tal coisa foi chamada de uma ‘idade da
emigração’), sendo que esses emigrantes resultavam num segundo momento numa classe
particular de imigrantes e, em seguida, numa forma particular de imigração que se traduziu,
entre outras características, por uma relação particular com a sociedade de imigração e com
sua própria condição de imigrantes – e, por um efeito bumerangue, a imigração, em cada uma
de suas formas (ou em cada uma de suas ‘idades’), repercute sobre as condições que
estiveram na origem da emigração na fase anterior e, assim, contribui para suscitar uma nova
categoria de emigrantes e imigrantes.” (p. 18) *SAYAD, A. Les trois ages de l’émigration
algérienne em France. Actes de la recherche en sciences sociales, n. 15, jun. 1977, pp. 59-80)]

“À medida que a imigração se distancia da definição ortodoxa e da representação ‘ideal’ que


dela se dá a ponto de desmentir ambas no que elas têm de mais essencial, descobrem-se os
paradoxos (no sentido original do termo: para-doxa, ao lado da opinião) que as constituem e
desvendam-se as ilusões que são a própria condição do advento e da perpetuação, aqui, da
imigração, e lá, da emigração. Estas ilusões só produzem o efeito que conhecemos porque são
coletivamente mantidas (...)” (p. 18)
[ *ilusão de uma presença necessariamente provisória (emigração: ausença igualmente
provisória;
*ilusão de que a presença justificada pelo trabalho que está, ou deveria estar, subordinada;
*ilusão da neutralidade política. (p. 18-19)]

“não existe imigração, mesmo autodenominada de trabalho e exclusivamente de trabalho (...)


que não se transforme em imigração familiar, ou seja, em imigração de povoamento” (p.20)

3. O que é um imigrante?

“Uma das características fundamentais do fenômeno da imigração é que, fora algumas


situações excepcionais, ele contribui para dissimular a si mesmo sua própria verdade. Por não
conseguir sempre pôr em conformidade o direito e o fato, a imigração condena-se a engendrar
uma situação que parece destiná-la a uma dupla contradição: não se sabe mais se se trata de
um estado provisório que se gosta de prolongar indefinidamente ou, ao contrário, se se trata
de um estado mais duradouro mas que se gosta de viver com um intenso sentimento do [sic]
provisoriedade. (...)” (p.45)

“(...) Por se encontrar dividida entre essas duas representações contraditórias que procura
contradizer, tudo acontece como se a imigração necessitasse, para pode se reproduzir, ignorar
a si mesma (ou fazer de conta que se ignora) e ser ignorada enquanto provisória e, ao mesmo
tempo, não se confessar enquanto transplante definitivo. (...)” (p. 45-46)

“(...) E, se todos os atores envolvidos pela imigração acabam concordando com essa ilusão, é
sem dúvida porque ela permite que cada um componha suas contradições próprias à posição
que ocupa, e isso sem ter o sentimento de estar infringindo as categorias habituais pelas quais
os outros pensam e se constituem os imigrantes, ou ainda pelas quais eles próprios se pensam
e se constituem. São, em primeiro lugar, os primeiros interessados, os próprios migrantes que
(...) precisam convencer a si mesmos (...) de que sua condição é efetivamente provisória (...).
São, em seguida, as comunidades de origem (quando não é a sociedade de emigração por
inteiro) que fingem considerar seus emigrantes como simples ausentes (...). É, por fim, a
sociedade de imigração que, embora tenha definido para o trabalhador imigrante um estatuto
que o instala na provisoriedade enquanto estrangeiro (...) e que, assim, nega-lhe todo direito a
uma presença reconhecida como permanente (...)” (p. 46. Grifos nossos)

“(...) todos acabaram por acreditar que os imigrantes tinham seu lugar durável, um lugar à
margem e na parte inferior da hierarquia social, é verdade, mas um lugar duradouro (...)” (p.
47)

“(...) basta que as circunstâncias que se encontravam na origem da imigração (ou seja, as
condições econômicas) mudem e, ao mudar, que imponham uma nova avaliação dos lucros
que se pode tirar dos imigrantes, para que ressurja naturalmente, contra a ilusão coletiva que
permitia que a imigração se perpetuasse, a primeira definição do imigrante como trabalhador
provisório e da imigração como estadia literalmente provisória.
Ao mesmo tempo que se faz essa confissão de provisoriedade (...), é também a verdade
objetiva do que é a imigração e do que é o imigrante (...) que se desvenda. Essa verdade é a
mesma que preside o balanço contábil que se faz dos ‘custos e vantagens comparados’ da
imigração (...)” (p. 48)

“(...) imigração e imigrantes só têm sentido de ser se o quadro duplo erigido com o fim de
contabilizar os ‘custos’ e os ‘lucros’ apresentar um saldo positivo (...). Como maximizar as
‘vantagens’ (principalmente as vantagens econômicas) da imigração, reduzindo ao mesmo
tempo ao mínimo o ‘custo’ (notadamente o custo social e cultural) que a presença dos
imigrantes impõe? Esta é uma formulação que, ao mesmo tempo que condensa em si toda a
história do fenômeno da imigração, revela a função objetiva (ou seja, secreta) de
regulamentação aplicada aos imigrantes: mudando segundo as circunstâncias, segundo as
populações relativas, essa regulamentação visa impor a todos a definição constituída em
função das necessidades do momento.” (p. 50)

“(...) nunca talvez a contradição própria à imigração ou ao que se pode chamar de política de
imigração esteve tão evidente quanto neste período conhecido pela crise econômica, pelo
desemprego e por dificuldades de toda sorte. (...)” (p. 51)

“Um imigrante é essencialmente uma força de trabalho, e uma força de trabalho provisória,
temporária, em trânsito. (...) revogável a qualquer momento (...). E esse trabalho, que
condiciona toda a existência do imigrante, não é qualquer trabalho, não se encontra em
qualquer lugar; ele é o trabalho que o ‘mercado de trabalho para imigrantes’ lhe atribui e no
lugar em que lhe é atribuído (...)” (p. 54-55)

“(...) A pesquisa sobre a imigração, esse outro objeto aparentemente natural e totalmente
evidente, não poderia ignorar que ela é também e antes de mais nada uma pesquisa sobre a
constituição da imigração como problema social (...). Mais do que qualquer outro objeto social,
não existe outro discurso sobre o imigrante e a imigração que não seja um discurso imposto;
mais do que isso, é até mesmo toda a problemática da ciência social da imigração que é uma
problemática imposta. (...)” (p. 55-56)

“(...) Todas essas especificações pelas quais se define e se identifica o imigrante encontram seu
princípio gerador, sua soma e sua eficiência, bem como sua justificação última, no estatuto
político que é próprio do imigrante enquanto ele não é apenas um alógeno mas, mais do que
isso, um ‘não nacional’ que, a este título, só pode estar excluído do campo político. (...) Sem
que se perceba perfeitamente a arbitrariedade (no sentido lógico) que existe em opor
‘nacional’ e ‘não-nacional’ e em reduzir todas as discriminações de fato a essa oposição (de
direito) fundamental, a distinção legal, ou seja, refletida, pensada e confessa, como que a
justifica suprema de todas as outras distinções. (...)” (p. 57-58)

[O Estado fornece o mínimo para que o imigrante possa manter-se e continuar trabalhando, e,
por conseguinte, produzindo – por um lado para assegurar que trabalhe e mantenha sua saúde
em um nível que não prejudique os nacionais; por outro, para que esteja com a “consciência
limpa” e não se contradiga em seus valores  Marx!] (p. 58-59)

“(...) A lógica própria à ordem simbólica é estruturada de tal forma que, ela negação que opera
em relação aos proveitos materiais ou pela transfiguração ou sublimação pelas quais eles
passam, ela os perpetua e reforça ainda mais porque consegue melhor mascará-los, ou seja,
convertê-los melhor em proveitos simbólicos, logo aparentemente desinteressados. Porque a
relação de forças pende incontestavelmente a favor da sociedade de imigração – o que
permite que ela inverta completamente a relação que a une aos imigrantes, a ponto de colocá-
los em posição de devedores onde deveriam ser credores –, ela tem uma tendência demasiada
em contabilizar como realização sua o que é, contudo, obra dos próprios migrantes (...)” (p. 61)

“(...) na medida em que dura a imigração, porque não se emigra (...) e não se imigra (...)
impunemente (...), produz-se, entre os imigrantes, uma inevitável reconversão de suas
atitudes em relação a si mesmos, em relação a seu país e em relação à sociedade na qual eles
vivem cada vez por mais tempo e de forma mais contínua e, principalmente, frente às
condições de trabalho que essa sociedade lhes impõe. (...)” (p.65)

“ (...) ’Exportam-se’ ou ‘importam-se’ exclusivamente trabalhadores, mas nunca cidadãos,


atuais ou futuros.” (p. 66)

“ (...) toda imigração de trabalho contém em germe a imigração de povoamento que a


prolongará; inversamente, pode-se dizer que não há imigração reconhecida como de
povoamento (com exceção talvez dos deslocamentos de populações que a colonização requer
ou ainda dos movimentos de populações consecutivos aos estado de guerra ou aos
remanejamentos de fronteiras) que não tenha começado com uma imigração de trabalho.
(...)” (p. 67)

4. O Lar dos Sem-família

“”(...) Enquanto se considera que este, nascido no país, possui nele, de imediato, sua
residência, uma residência que é como o prolongamento do berço, anterior e independente
(...) do trabalho, o trabalhador imigrante, como alógeno, como oriundo de outro país (...),
pede para ser alojado (pelo emprego e/ou para o emprego) imediatamente, logo que chega
ou, ao menos, logo que é contrariado.” (p. 73-74)

“(...) trabalho e habitação estão, no caso dos trabalhadores imigrantes, numa estreita relação
de mútua dependência (...)” (p. 74)

“(...) as habitações dos imigrantes *HLM – homage a loyer modérer] (...) deve muitas de suas
características, tanto as características físicas quanto as sociais, à representação que se tem
dos imigrantes (...)” (p. 76)

“(...) posto que o caráter provisório do imigrante e de sua imigração não passa de uma ilusão
coletivamente mantida, ele permite a todos que se sintam contentes com a habitação
precária, degradada e degradante, que se atribui ao imigrante.” (p. 78)

5. O “Pecado” da Ausência ou os Efeitos da Emigração

“(...) a imigração acabou por constituir-se em sistema. (...) porque tem seus efeitos e suas
causas próprias, bem como suas condições quase autônomas de funcionamento e de
perpetuação. A dupla evolução que caracteriza o processo migratório na sua forma atual, por
uma parte, na cena internacional, a oposição nítida, como nunca aconteceu antes, entre um
mundo da emigração e um mundo da imigração; e, por outra parte, em cada um dos países da
imigração, a tendência, sem dúvida desigual mas presente por toda parte, do mercado de
trabalho, em parte sob o efeito da imigração, a dividir-se em dois polos (um mercado de
trabalho qualificado e de trabalho de qualidade para trabalhadores nacionais e um mercado de
trabalhos subqualificados ou de menor qualificação técnica e social para trabalhadores
imigrantes), essa dupla evolução que governa o fenômeno migratório, constitui o mecanismo
que contribui mais fortemente para erigir a imigração em verdadeiro sistema (...).” (p. 106)

“(...) a condição de imigrante não deixa de qualificar socialmente o trabalho que é efetuado
pelo trabalhador imigrante e, para ser mais verdadeiro, lhe é reservado ou lhe cabe. (...)” (p.
108)

“A identificação que se estabelece entre ‘ser um imigrante’ e ‘ser um O.S. *operário sem
especialização+’ não se limita apenas à esfera do trabalho. Na verdade, ela marca toda a
existência do imigrante, pode ser encontrada em todas as suas práticas sociais (...)”
Nota de rodapé 5. “A lógica que se encontra no princípio da relação de reciprocidade
que se estabelece entre o imigrante e o O.S. ultrapassa o caso restrito do trabalhador manual
ou do operário; podemos encontrá-la novamente, mutadis mutandi, em muitas outras
situações análogas, mesmo quando as pessoas de que se trata ocupam posições sociais mais
elevadas, e ao fazê-lo imprime sua marca e seus efeitos em toda a população que se encontra
ligada, nacionalmente falando, à categoria social definida como constitutiva do fenômeno da
imigração: assim, ser um advogado ‘imigrante’ ou um médico ‘imigrante’, ou seja, um
advogado ou um médico que partilham da mesma origem nacional de numerosos
trabalhadores imigrantes, seus ‘compatriotas’ (é assim que são chamados e se
autodenominam), redunda em ser ‘o advogado ou o médico dos imigrantes’ (ou ser, como se
diz em outro contexto, ‘o advogado ou o médico dos árabes’); considerações que não são
apenas de ordem moral (solidariedade, militantismo, filantropia etc.), mas que estão
igualmente ligadas às necessidades e às oportunidades do mercado, fazem com que seja
assim.” (ambos na p. 108)

“(...) o estado do imigrante recobre todas as dimensões de sua existência, mas a correlação
que se pode razoavelmente supor entre as duas ordens, a ordem do trabalho (i.e., a condição
de O.S.) e a ordem que abarca o trabalho (i.e., a condição de imigrante) pede para ser revelada
e não se fundar apenas no modo da evidência. (...)” (p. 109)

“(...) Se a imigração já era em si mesma uma ruptura, uma ruptura inicial que seria
acompanhada de muitas outras, assim mesmo acabou sendo ‘ordenada’, acabou por deixar
impor-se uma ‘ordem’. É preciso que haja, no seio ou por ocasião dessa primeira ruptura
coletivamente organizada e ordenada, uma segunda ruptura, individual, para que a desordem
apareça; para que surja, inelutável, pois então é a desordem para uma consciência individual.
Só pode haver ilusão eficiente, ou seja, ilusão que não sabe que é ilusão (esta é a condição de
todos os imigrantes) com a condição de que seja coletivamente mantida: ilusão e colusão! (...)”
(p. 114)

“(...) a longa prática do que se pode chamar de ‘contatos culturais’, principalmente quando
nesses contatos se ocupa a posição de dominado (...) o inclina a dirigir sobre seus próprios
comportamentos e sobre os comportamentos dos outros (...) um olhar espantosamente crítico
e adotar, assim, uma atitude profundamente reflexiva. Essa espécie de experiência do mundo
social, que não deixa de ser determinada por certas condições de existência (...) e que é feita
de espanto e de ‘desconcerto’, parece reproduzir, a seu modo, a atitude que esteve
precisamente na origem da tradição etnológica e parece ter inspirado aos profissionais da
etnologia o valor essencial de sua disciplina que é o ‘relativismo cultural’. Semelhante
disposição, a um tempo social e mental, só pode contribuir (...) para melhor entender
praticamente (...) a intenção sociológica objetiva, a intenção sociológica que habita as
questões do sociólogo e que também está objetivamente contida no objeto do debate. Toda
empresa sociológica verdadeira, porque também é, em parte, uma sócioanálise, supõe uma
parte de ‘auto-análise’; apesar de não ser sempre bem controlada e embora seja um
empreendimento ‘selvagem’ e uma obra pessoal, essa auto-análise, que é também uma
resposta aos limites que certas situações particulares impõem (...) reúne-se aqui à socioanálise
que a sociologia aciona para conquistar a intelecção dessas situações particulares, do modo
como cabem aos que chegaram a ela; o produto da análise sociológica torna-se assim, por sua
vez, o instrumento da socioanálise. Com a condição de poder voltar a dar ao entrevistado os
meios de se reapropriar dos esquemas de percepção e de apreciação doo mundo social e
político, sendo que a carência desses meios é precisamente o princípio da miséria
propriamente social e moral característica de toda uma classe social; com a condição de poder
cumprir ao mesmo tempo sua função libertadora, a sociologia não terá desmerecido sua
função, pois assim não terá apenas despojado o entrevistado de seu discurso, ou seja, de uma
parte de si mesmo.” (p. 132-133)

“Se algo pode autorizar e incentivar a dispor do discurso recolhido e de um discurso recolhido,
com certeza, em toda confiança (ou seja, esquecendo a relação de entrevistado com
entrevistador e, em alguns momentos, a relação simétrica de entrevistador com entrevistado;
esse ‘esquecimento’ é, sem dúvida, a condição de confiança, mas é também, com maior
certeza, efeito da confiança estabelecida), é a espécie de alívio, quando não de alegria
aparente embora efêmera (porque fortemente contrariada e toda ‘para dentro’), que se
seguiu ao momento decisivo em que as palavras mais dolorosas, mais ‘escondidas’, foram
soltas. (...) A confissão (...) aparece como um ganho de liberdade, como uma nova libertação,
como um novo trecho arrancado da ‘inexistência’, logo uma nova parcela de existência: um
pequeno espaço, um pequeno encontro, uma pequena troca, uma relação intermitente, uma
conversa de alguns instantes durante os quais se pode existir, por certo parcialmente, mas
com uma existência socialmente atestada e não ‘introvertida’ como o é de costume.” (p. 134)

7 - Os filhos ilegítimos

[pai que tem filhos nascidos no país de origem e crescidos na França, e filhos que foram
totalmente alfabetizados na França]

“Esmagado por sua condição de emigrante, suas antigas certezas abaladas e contraditas por
tudo o que vê e ouve à sua volta, o pai vive com uma desolação completa as transformações
que se produzem em seu círculo mais imediato, sua própria família. Como se fosse
ultrapassado pelas mudanças que pressente na própria pessoa de seus filhos, ele assiste – ou,
mais exatamente, finge assistir – como espectador, quase como estranho, às inovações que
eles introduzem e impõem dentro do próprio seio da família. Impotente e consciente de sua
impotência para controlar e regular o transcorrer dessas transformações inevitáveis, ele as
sofre (ou dá a impressão de sofrê-las) sem que ninguém o saiba – ele mesmo o sabe? –,
mesmo se, no fundo, aceita-as, mas recusando-se a confessar que as aceitou definitivamente
ou aceitando-as porque não pode (ou não quer) opor-se a elas. Mais do que em qualquer
outra circunstância, mais do que no mundo do trabalho e talvez também nas outras formas de
relações com a sociedade francesa, seus serviços e suas instituições, é em sua vida privada, em
suma mais do que na vida pública, que o pai sente, a posteriori, a inutilidade de todas as suas
iniciativas.” (p. 221)

“(...) Especulando sobre essa distância, ele oscila frente a seus filhos (principalmente frente
aos mais novos) entre duas atitudes opostas, mas tão ‘ingênuas’ uma quanto a outra: ora
acredita que, ‘em suma, nada mudou... seus filhos (os filhos imigrantes) continuam a ser seus
filhos...’ – e se agarra aos menores indícios que permitem a manutenção dessa ilusão –, ora é o
contrário, vem a convicção amarga de que ‘tudo mudou... seus filhos não são mais seus filhos’
– e desespera-se vendo o futuro que os espera. (...)” (p. 222-223)

“Demissão, renúncia real ou fingida a suas prerrogativas, além das relações com seus filhos, tal
é, na verdade, toda a problemática da identidade social do emigrante (...) que se encontra
levantada. Localiza no seio do universo familiar por meio das reações pungentes que nele
suscita, esta questão permeia toda a existência do emigrante. (...)” (p. 224)

“Embora evite dizê-lo em voz alta, o emigrante sabe – por experiência – que a emigração é a
origem das contradições nas quais se encontra encerrado. Assim, sente-se inclinado, não sem
alguma razão, a considerá-la responsável por rodas as suas desgraças. Mas como acusar e
condenar assim a emigração sem colocar a si mesmo em acusação e sem pronunciar dessa
forma sua própria condenação? Por certo, já no início a emigração, ou apenas a ideia do exílio,
(...) era muito detestável. Aos motivos iniciais para detestá-la, o emigrante acrescenta novos
motivos que vai descobrindo na medida em que dura sua experiência da emigração. (...)” (p.
225)

“(...) porque *a imigração+ é investida de funções e investimentos ambivalentes, obriga a reunir


duas impossibilidades contraditórias: assim como não pode (nem quer) detestar deliberada e
absolutamente sua imigração, o emigrante descobre que não pode também (e não quer) amá-
la absolutamente. (...)” (p. 225)

“A relação infeliz entre pais e filhos revela, na verdade, todas as contradições constitutivas da
condição de emigrante. Essas contradições que o emigrante carrega em si transporta com ele e
projeta sobre todas as coisas, pois elas estão inscritas em sua situação de emigrante, fazem
com que toda a sua existência esteja fortemente marcada pelo medo (...)” (p. 227-228)

“(...) se os emigrantes têm, de forma geral, o sentimento de que em seu mundo ‘tudo está de
pernas pro ar..., tudo está errado...’, se eles dão a impressão de que ‘não sabem o que fazer,
nem como fazer’, é certamente porque, assim como os colonizadores carregam em si, produto
de sua história, um sistema de referência duplo e contraditório. Tendo interiorizado já antes
de sua emigração duas morais contraditórias, diariamente contraditas por sua experiência da
emigração, eles encontram-se reduzidos a colocar em choque sobre todas as coisas pontos de
vista contraditórios. Considerada desta forma, a emigração não deixa de lembrar o precedente
da colonização, e a situação dos emigrantes a dos colonizados; por meio da emigração que se
prolonga, de certa forma, quem sobrevive é a colonização, e a situação dos emigrantes a dos
colonizados; por meio da emigração que a prolonga, de certa forma, quem sobrevive é a
colonização. É em função desse sistema de dupla referência que os mesmos dados de
experiência podem servir para mecanismos que levam a resultados completamente opostos
(...)” (p. 229-230)

8 - Imigração e convenções internacionais

“Importado, talvez da mesma forma que outro produto (...), o imigrante não pode ser, apesar
de tudo, e não apenas por motivos humanitários, uma ‘mercadoria’ como outra qualquer. (...)
o imigrante lembra, até o uso que dele se faz, que ele é um ‘produto’ de uma transação entre
dois países; e uma transação que continuará sempre a se efetuar (...) por meio de sua pessoa.
Porque é ‘resultado’ de um contrato entre dois países, entre duas nações – contrato às vezes
explícito, mas contrato que pode também ser deixado em estado implícito, pois o segundo
parceiro com o qual se faz o ‘contrato’ não possui uma existência estatal: (...) o emigrante, o
ausente, não pode ser nem completamente ‘ignorado’ ou esquecido, nem completamente
assumido por seu país de origem; (...) podemos dizer que o emigrante constitui uma
‘verdadeira armadilha’ para seu país; é a armadilha que sua imigração é. Força de trabalho
importada, o imigrante só pode ser utilizado com a condição (...) de que se crie e se mantenha
a ilusão de que não está sendo usado apenas para o proveito (exclusivo) daquele ou daqueles
que o utilizam (...), e sim que ‘está se usando’ (...) a si mesmo e pra si mesmo ao estar sendo
utilizado (...)” (p. 239-240)

“(...) à diferença dos outros estrangeiros (ou diferentemente dos outros estrangeiros), cujas
condições sociais diferem, a começar pelo ‘contrato’ que o introduziu, o imigrante, mais do
que outro qualquer, é o portador, tem sempre consigo ou junto de si a marca do estatuto e da
posição atribuídos a seu país na escala internacional dos estatutos e das posições políticas,
econ6omicas, culturais etc. (...) ele é plenamente seu representante, o representante se um
país dominado, o que faz com que seja duplamente dominado, como estrangeiro que deve
morar e atuar num território de soberania estrangeira e à qual é estranho, e como oriundo de
um país ele mesmo dominado. (...) Um imigrante não é apenas o indivíduo que é; ele é
também, através de sua pessoa e pelo modo como foi produzido como imigrante, o seu país.
(...)” (p. 241. Grifo meu.)

“Mas, como se não bastasse que a relação entre Estados, que se encontra no próprio
fundamento da imigração – relação ‘bilateral e recíproca’, mas que só é bilateral pro forma e
que só é recíproca teoricamente –, fosse assim intermediada, ela ainda é negada todos os dias.
Com efeito, questão bilateral quando se trata de negociar os contingentes de imigrantes a
receber, a imigração se torna uma questão interna de relevância exclusiva da frança, de
soberania exclusiva de suas leis e, mais normalmente, de competência exclusiva de seus
regulamentos, quando se trata da vida cotidiana dos imigrantes e, (...) como em todos os
períodos dessa crise de emprego (...), quando se trata de modificar (...) as condições de
entrada, de estadia e de trabalho dos imigrantes; ou então quando se trata de tomar decisões
sobre as condições que devem pautar o fim dessa importação ou apenas de determinada
corrente de imigração, ou mesmo de mandar de volta para seu país de origem os produtos
assim importados (...)” (p. 242)
“Se ‘estrangeiro’ é a definição jurídica de um estatuto, ‘imigrante’ é antes de tudo uma
condição social. (...)” (p. 243)

“(...) o mundo está dividido em dois: de um lado, um mundo dominante (política e


economicamente) que produziria apenas turistas – e todo estrangeiros oriundo desse mundo
poderoso, mesmo se residir em um país estrangeiro durante toda sua vida, seria tratado com o
respeito devido a sua qualidade de ‘estrangeiro’ –; de outro lado, um mundo dominado que só
forneceria imigrantes, e todo estrangeiro proveniente desse mundo, mesmo se vier como
turista e só permanecer durante o tempo autorizado ou o tempo atribuído aos turistas, é
considerado como um imigrante virtual ou um ‘clandestino’ virtual. (...)” (p. 244)

“(...) Pode-se dizer que esta é uma característica estrutural de todas as negociações relativas
aos problemas de migração: a vantagem sempre e imediatamente se encontra do lado do país
de imigração, país rico a ponto de liberar um ‘excesso’ de empregos desvalorizados (ou que,
por causa disso, foram desvalorizados), de oferecê-los a uma mão-de-obra que se tornou
disponível para esses empregos justamente por causa da dominação que sofre; (...)” (p. 245)

“(...) uma das funções da ‘ficção da volta’ dos emigrantes: livrar-se dos laços de sujeição que a
emigração fora da nação e a imigração em outra nação implicam (...)” (p. 249)

“Presos nesse tipo de negociação que consiste no estabelecimento de uma relação


fundamentalmente assimétrica, todos os países de emigração sentem, embora não tragam
sempre para o nível reflexivo e não a revelem, a dificuldade de ter de negociar, no caso seu
ponto mais fraco, de terem de negociar com base em sua maior fraqueza, e, logo, de revelá-la
para obter apenas, em troca, retornos pequenos e ilusórios e muito imediatos. (...)” (p. 252-
253)

“(...) além do problema específico da migração, além dos problemas próprios das pessoas em
questão neste fenômeno (os emigrantes/os imigrantes), na verdade trata-se de outros
problemas infinitamente mais amplos; não depende do problema da emigração e da imigração
que os outros problemas sejam resolvidos, mas se esse problema for resolvido seria
certamente um bom augúrio para o acerto global dos outros problemas e, por outro lado, se
ele não encontrar uma solução satisfatória, não poderemos dizer que foi por causa de
dificuldades intrínsecas, e sim porque os governos não conseguiram se entender em outro
lugar e sobre outros assuntos. As diferenças em termos de relações bilaterais sobre a
emigração e a imigração não impedem as outras formas de entendimento e de acordos
privilegiados aos quais elas podem ser sacrificadas.” (p. 256)

9 – A ordem da imigração na ordem das nações

“(...) a ordem da migração (...) está fundamentalmente ligada à ordem nacional, ou, mais
precisamente, às duas ordens nacionais que, dessa forma, encontram-se relacionadas entre si.
E se isso é mais verdadeiro hoje do que era no passado, deve-se principalmente à
generalização, ou mesmo à universalização do fato nacional e, correlativamente, da emigração
e da imigração como fatos nacionais: como a descolonização (...) terminou, não existe mais
atualmente, ao contrário do que ocorre nos impérios coloniais e na época do imperialismo
colonial, emigração que não seja proveniente, com raras exceções, de um Estado (...)
independente. (...)” (p. 265)

“a imigração pode então ser definida como a presença no seio da ordem nacional (...) de
indivíduos não-nacionais (...), e a emigração, por simetria, como a ausência da ordem nacionais
(...) de nacionais pertencentes a essas ordem. (...) Assim, as duas ordens, a ordem da migração
(ordem da emigração e ordem da imigração) e a ordem nacional, estão substancialmente
ligadas uma à outra. (...) A imigração e seu duplo, a emigração, são o lugar em que se realiza
praticamente, no modo da experiência, o confronto com a ordem nacional, ou seja, com a
distinção entre ‘nacional’ e ‘nacional’.” (p. 266)

“Sendo o político monopólio exclusivo do nacional (...), o imigrante, como não-nacional, é dele
excluído,e excluído de direito; mas o emigrante que ele também é (...) é excluído de fato
enquanto é um nacional ausente (...) do político.” (p. 269)

“(...) para o Estado-nação (e para os dois Estados-nações envolvidos no processo migratório), o


imigrante (e com ele o emigrante) é aquele que não pode ter, num caso de jure e no outro de
facto, uma identidade civil. (...)” (p. 272)

“O imigrante põe em ‘risco’ a ordem nacional forçando pensar o que é impensável,a pensar o
que não deve ser pensado ou o que não deve ser pensado para poder existir; (...)” (p. 274)

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