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CAPÍTULO II.

UMA CARTA
DO DESTINO
Eric, depois que notar que o pai ainda não havia chegado da universidade,
foi até a biblioteca, e sentou-se para ler uma carta que tinha pegado da
mesinha do corredor. Era de Larry West, e depois das primeiras linhas, o rosto
de Eric perdeu o ar distraído de antes, e assumiu uma expressão de profundo
interesse.
“Estou escrevendo para lhe pedir um favor, Marshall” – escreveu West. “O
fato é, que eu caí nas mãos dos filisteus – a saber, os médicos. Não tenho me
sentido muito bem, durante todo o inverno, mas tentei seguir firme, esperando
terminar o ano letivo.
Semana passada, minha senhoria – que é uma santa, de óculos e vestida em
calico – olhou para mim uma manhã, na mesa do café da manhã, e disse, com
muita gentileza: ‘Você deve ir para a cidade amanhã, Mestre, para um médico
examiná-lo.’
“Eu fui, não fiquei esperando ser mandado novamente. A Mrs. Williamson
é Aquela-Que-Deve-Ser-Obedecida. Ela tem o inconveniente hábito de fazer
você perceber que ela está absolutamente certa, e que você será o maior dos
tolos, se não seguir os seus conselhos. A gente tem a sensação de que a
opinião dela hoje, será a nossa opinião amanhã.
“Em Charlottetown, eu consultei um médico. Ele me apertou e cutucou,
usou aparelhos para me cutucar, e me auscultou com outras, e finalmente disse
que eu devo parar de trabalhar ‘imediatamente e no ato’ e que eu fosse
diretamente para um lugar em que o clima não fosse afligido pelos ventos
nordestes da Ilha de Prince Edward na primavera. Não tenho a permissão de
realizar nenhum trabalho até o outono. Essa foi a sentença, e quem a aplica é a
Mrs. Williamson.
“Eu vou dar aulas até o final da semana, então começam as férias de
primavera, que duram três semanas. Eu quero que você venha, e tome meu
lugar como mestre na escola de Lindsay pela última semana de maio, e o mês
de junho. O ano letivo então terminará, e haverá muitos professores buscando
colocação, mas neste momento, não consigo encontrar um substituto
adequado. Tenho alguns alunos que estão se preparando para tentar os exames
de admissão para a Queen's Academy, e não gosto de deixá-los abandonados,
ou deixá-los à mercê de algum professorzinho de terceira classe, que sabe
pouco sobre Latim, e menos ainda sobre Grego. Venha, e assuma a escola, até
o final do semestre, seu mimado filho da opulência. Vai lhe fazer muitíssimo
bem aprender como um homem rico se sente, quando está ganhando vinte e
quatro dólares por mês, por seu próprio e inteligente esforço!
“Falando sério, Marshall, espero que você possa vir, pois não conheço
nenhum outro camarada a quem possa pedir. O trabalho não é difícil, embora
seja provável que você o considere monótono. Obviamente, este pequeno
assentamento rural na costa norte não é um lugar muito dinâmico. O nascer e
o pôr do sol são os acontecimentos mais empolgantes de um dia comum. Mas
as pessoas são muito gentis e hospitaleiras; e a Ilha de Prince Edward, no mês
de junho, é um espetáculo que não se contempla com frequência, exceto em
sonhos felizes. Há algumas trutas no riacho, e você sempre vai encontrar um
velho marujo no porto, pronto e disposto para levá-lo para pescar bacalhau ou
lagosta.
“Vou deixar para você meu quarto na hospedagem. Vai achá-la confortável
e não é mais longe da escola do que é saudável para sua constituição. A Mrs.
Williamson é a alma mais bondosa do mundo. É uma daquelas cozinheiras à
moda antiga, que o alimenta com um banquete de pratos gordurosos e cujo
preço vale mais que rubis.
O marido dela, Robert, ou Bob, como é comumente chamado, apesar de
seus sessenta anos, é uma figura, à sua própria maneira. É um velho
fofoqueiro e engraçado, com uma mania de comentários ácidos, e o nariz
metido no bedelho de todo mundo. Ele sabe tudo sobre todos em Lindsay, a
contas das últimas três gerações.
“Eles não têm filhos vivos, mas o velho Bob tem um gato preto que é seu
orgulho e afeto especial. O nome do animal é Timothy, e como tal ele deve
sempre ser chamado ou mencionado. Nunca, se você valorizar a boa opinião
de Robert, deixe-o ouvir você chamar sua mascote de ‘o gato’, ou até mesmo
‘Tim’. Em tal caso, você jamais seria perdoado, e ele não o consideraria uma
pessoa apta para tomar conta da escola.
“Você ficaria com meu quarto, um lugarzinho sobre a cozinha, com um teto
que segue a inclinação do telhado em um lado, contra a qual você irá golpear a
cabeça inúmeras vezes, até se lembrar que ela está ali, e um espelho que fará
um de seus olhos tão pequeno quanto uma ervilha, e o outro tão grande quanto
uma laranja.
“Mas para compensar por estas desvantagens, o suprimento de toalhas é
generoso e impecável; e há uma janela desde onde você irá contemplar
diariamente, uma visão ocidental do Porto de Lindsay, e a enseada mais além,
que é um indescritível milagre da beleza. O sol está se pondo sobre o golfo
enquanto eu escrevo, e eu vejo um mar de vidro mesclado com fogo, como
são descritas as visões do profeta da Ilha de Patmos 1. Um barco está
navegando para o dourado, carmesim e pérola do horizonte; o grande farol
giratório no extremo do promontório, mais além da enseada, recém foi aceso,
e está piscando e reluzindo como um holofote.
‘Sobre a bruma

1
Profeta João, que levado cativo à Ilha de Patmos, e onde teve visões que o levaram a escrever o livro
do Apocalipse (N.T.)
De perigosos mares, junto à desoladas terras
mágicas.’

“Envie-me um telegrama confirmando se pode vir; e se puder, apresente-se


ao trabalho no dia vinte e três de maio.”
Mr. Marshall, pai, chegou justamente quando Eric estava dobrando a carta
pensativo. Este parecia mais como um velho clérigo benevolente, ou
filantropo, do que o homem de negócios perspicaz, hábil, de certa modo
endurecido, além de justo e honesto, que realmente era. Ele tinha um rosto
redondo e rosado, emoldurado com bigode branco, uma bela cabeça com
cabelo longo e branco, e boca franzida. Apenas em seus olhos azuis havia uma
faísca que teria feito qualquer homem que pensasse em se dar bem em cima
dele numa barganha pensar duas vezes antes de tentar.
Facilmente se deduzia que Eric deve ter herdado a beleza e distinção
pessoal de sua mãe, cujo retrato estava pendurado na parede escura entre as
janelas. Ela havia falecido ainda jovem, quando Eric era um menino de dez
anos. Durante a vida tinha sido objeto de devoção apaixonada do marido e do
filho; e o rosto firme, além de belo e doce no retrato era testemunha de que
tinha sido digna do amor e da reverência de pai e filho. O mesmo rosto,
repetido em um molde masculino, se contemplava em Eric; o cabelo castanho
lhe caía sobre a testa da mesma maneira; seus olhos eram como os dela, e em
seus momentos de seriedade, mostrava a mesma expressão, meio taciturno,
meio terno sua profundidade.
O Mr. Marshall estava muito orgulhoso do sucesso do filho na universidade,
mas não tinha a menor intenção de deixá-lo perceber isso. Ele amava aquele
menino, que tinha os olhos da falecida mãe, mais que tudo nesse mundo, e
todas as suas esperanças e ambições estavam focadas nele.
— Bem, graças a Deus, esse alvoroço chegou ao fim – disse ele de maneira
fastidiosa, quando se sentava na cadeira favorita.
— Não achou o programa interessante? – questionou Eric com ar distraído.
— A maior parte foi blá-blá-blá – respondeu o pai. — Os únicos momentos
dos quais gostei foi a oração de Charlie em Latim, e aquelas belas mocinhas
desfilando para receber seus diplomas. Latim é, sem nenhuma dúvida, a
linguagem apropriada para as orações, assim eu creio – ao menos quando um
homem tem uma voz como a do velho Charlie. Havia um sonoro ribombar nas
palavras, que o mero som delas me fez sentir vontade no fundo do meu ser de
me ajoelhar. E ora, ora, aquelas moças eram tão lindas quanto cravos, não
eram? Agnes era a moça mais bonita de todas na minha opinião. Espero que
seja verdade sobre você estar cortejando essa moça, Eric?
— Esqueça isso, pai – exclamou Eric, meio irritado, meio risonho –, você e
David Baker andam conspirando para me importunar sobre minha solteirice?
— Eu jamais mencionei uma palavra sobre este assunto com David Baker –
protestou Mr. Marshall.
— Ora, você é tão terrível quanto ele. Ele me importunou por todo o
caminho da universidade até em casa por causa desse assunto. Mas por que
vocês estão com tanta pressa para me ver casado, papai?
— Porque eu quero uma mulher tomando conta desta casa tão logo seja
possível. Não houve mais um toque feminino desde que sua mãe faleceu, e eu
estou cansado de governantas. E, além disso, eu quero ter seus filhos nos meus
joelhos, antes de morrer, Eric, e eu já estou avançado em anos.
— Bem, esse é um anseio natural, pai – declarou Eric com gentileza,
olhando para o retrato da mãe. — Mas não posso sair correndo para me casar
com a primeira que aparecer, não é mesmo? E temo que não seria muito bom
colocar um anúncio procurando uma esposa, nem mesmo nestes dias de
empreendimentos comerciais.
— Não há nenhuma moça de quem você goste de forma especial? – inquiriu
o Mr. Marshall, com o ar de paciência de um homem que faz vista grossa
diante das frívolas zombarias típicas dos jovens.
— Não. Eu ainda não conheci uma mulher que me fizesse estremecer o
coração ou que me acelerasse o pulso.
— Não sei do que são feitos os rapazes de hoje em dia – murmurou o pai.
Antes de chegar a sua idade, eu já tinha me apaixonado ao menos meia dúzia
de vezes.
— O senhor pode ter “se apaixonado”, mas nunca amou nenhuma mulher
até conhecer minha mãe. Sei bem disso, pai. E isso não ocorreu até que o
senhor estivesse bem avançado na vida.
— Você é muito difícil de agradar. Esse é o problema, esse é o problema!
—Talvez seja isso. Quando um homem teve uma mãe como a minha, seu
padrão de beleza feminina está propenso a ser extremamente alto. Vamos
mudar de assunto, pai. Olha, quero que o senhor leia essa carta – é do Larry.
— Ora, ora – grunhiu o Mr. Marshall, quando terminou de ler a carta. —
Então finalmente Larry foi derrubado – sempre achei que seria – sempre
esperei que fosse. Mas também lamento por ele. Ele é um rapaz decente. Bem,
você vai?
— Sim, acho que sim, se o senhor não tiver nenhuma objeção.
— Você vai passar por momentos extremamente monótonos, a julgar pela
descrição de Lindsay.
— É bem provável. Mas não estou indo em busca de diversão. Estou indo
para auxiliar Larry, e dar uma olhada na Ilha.
— Bem, vale a pena conhecer, em alguns períodos do ano – concordou o
Mr. Marshall. — Quando estou na Ilha de Prince Edward, no verão, eu sempre
acabo compreendendo o que dizia um velho escocês da Ilha, que conheci um
dia em Winnipeg. Ele estava sempre falando sobre ‘a Ilha’. Um dia, alguém
perguntou a ele: ‘Que tipo de ilha você está falando?’ Ele fulminou o tal
homem ignorante, e então disse: ‘Ora, Ilha de Prince Edward, meu caro. E por
acaso existe outra Ilha?’ Vá, se quiser. Você precisa descansar depois da
labuta dos exames finais, antes de tomar seu lugar nos negócios. E cuide-se
para não entrar em nenhuma confusão, meu jovem senhor.
— Creio que não seja muito provável que isso aconteça num lugar como
Lindsay – exclamou Eric rindo.
— Provavelmente o diabo consiga criar problemas para as mentes vazias de
Lindsay, assim como em qualquer outro lugar. A pior tragédia sobre a qual
tive ciência aconteceu numa fazenda no interior, vinte e cinco quilômetros da
ferrovia, e oito de um armazém. Entretanto, espero que você seja filho da sua
mãe, e se comporte, no temor de Deus e dos homens. Provavelmente, a pior
coisa que poderá acontecer com você por lá é que alguma mulher
desencaminhada o ponha para dormir num quarto de hóspedes. E se isso
acontecer, que Deus tenha misericórdia de sua alma!

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