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Vox Faifae: Revista de Teologia da Faculdade FASSEB Vol.

10 N° 2 (2020) ISSN 2176-8986


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POR UMA CRÍTICA CRISTÃ DO PODER: OS EVANGÉLICOS, O ESTADO E A


PANDEMIA
Fábio de Sousa Neto

RESUMO

A proposta do texto, tem como objetivo apresentar e discutir a problemática


da autoridade ou do poder, a partir de uma abordagem cristã. Partindo dos insights
bíblicos, propõe-se uma leitura da realidade contando com as contribuições da
crítica de matriz cristã desenvolvida pelo neocalvinismo reformacional. Dessa forma,
as relações de poder entre evangélicos e o Estado são avaliadas incluindo as
ameaças da pandemia provocada pelo novo coronavírus. Interroga-se os possíveis
avanços entre as fronteiras das Esferas Soberanas e apresenta uma alternativa,
levando em consideração uma leitura da realidade não reducionista, garantida por
uma crítica cristã do poder, e tendo como pedra de toque a doutrina da soberania de
Deus.

Palavras-chave: Poder. Evangélicos. Estado. Neocalvinismo. Pandemia.

ABSTRACT

The purpose of the text is to present and discuss the issue of authority or
power, from a Christian approach. Starting from biblical insights, a reading of reality
is proposed, counting on the contributions of the Christian matrix criticism developed
by the reformal neocalvinism. In this way, the power relations between evangelicals
and the state are evaluated including the threats of the pandemic caused by the new
coronavirus. It questions the possible advances between the borders of the
Sovereign Spheres and presents an alternative, taking into account a reading of the
non-reductionist reality, guaranteed by a Christian critique of power, and having as a
touchstone the doctrine of the sovereignty of God.

Keywords: Power. Evangelicals. State. Neocalvinism. Pandemic.

1 INTRODUÇÃO
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Na tentativa de provocar algumas reflexões sobre a pandemia do novo


coronavírus, e algumas implicações para com a Igreja de Cristo, é que este trabalho
foi pensado, sobretudo, considerando a forma com que as autoridades tem lidado
com a questão. Ao adotarem medidas de distanciamento social, isolamento, ou a
medida mais radical conhecida pelo anglicismo lockdown, um precedente se abre
para discussão.
Trata-se do antigo problema das liberdades, dessa vez, retomado de forma
dramática afetando profundamente o indivíduo e a sociedade sob a atual
configuração do capitalismo. Para não gerar dúvidas sobre essa afirmação, ela diz
respeito, principalmente as limitações das liberdades econômicas e de locomoção, o
que por sua vez, afetaria direta, ou indiretamente, outras liberdades, como, a
liberdade de culto.
Não se pretende aqui, apontar especificamente, para nenhum agente público,
em suas inclinações nacionalistas ou suas adesões ao que se convencionou chamar
de globalismo. Trata-se de uma constatação óbvia, experimentada por uma parcela
significativa da população mundial.
De todo modo, a questão ganha contornos específicos, pois no meio de tudo
isso, está a Igreja, que se percebe compromissada primeiramente com Deus, sem,
contudo, renunciar suas responsabilidades sociais. Na verdade, exatamente por
causa desse compromisso e pela sensibilidade dele decorrente, é que se espera do
povo de Jesus, inclinações humanizantes.
A Igreja seria estimulada a atuar, e nessa altura, vale lembrar a frase de
Schaeffer (2003, p. 54): “eu tenho de ter lágrimas pela minha espécie”. Além disso,
este ainda é o mundo de Deus e o campo de ação de seu povo, como lembrou
Bruce Shelley (1984, p. 14): “As igrejas do Novo Testamento foram recipientes do
poder e companhias invisíveis, mas elas mesmas eram tão terrenas como as
lágrimas, o sangue e o cansaço”.
Portanto, exatamente nesse ponto, entre o ser e estar no mundo, que a
procura por respostas as complexas tramas que envolve a Igreja, ganharia sentido
de urgência. Incluindo, suas relações com outras esferas de poder, nesse caso, as
relações com o Estado são privilegiadas. Como possibilidade de enfrentamento,
apresenta-se aqui, a partir da crítica cristã neocalvinista, o conceito de Soberania
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das Esferas. Algo que, partindo de uma leitura genuinamente cristã da realidade,
anuncia-se como resposta satisfatória as angústias da igreja brasileira.
Antes, porém, seria preciso pontuar a defesa nesse artigo da possibilidade de
diálogo entre tradições teológicas aparentemente distintas, algo já defendido na
Teologia Sinfônica de Vern Poythhress (2016, p. 55), ao considerar, sobretudo, os
limites de toda reflexão teológica. O autor se vale de linguagem metafórica, ao
defender o enriquecimento da compreensão de determinado tema, a partir da
“combinação de vários instrumentos musicais para expressar suas variações”
(POYTHRESS, 2016, p. 51). Poythress parte do perspectivismo, assumindo uma
postura de humildade intelectual. O adendo, vem na afirmação de que a reflexão
teológica não deve ser confundida com a revelação propositiva de Deus nas
Escrituras, muito embora, dela toda teologia deva se originar.
Portanto, para efeito de registro, o tema teológico central apresentado neste
artigo, a soberania de Deus, por ser um insight bíblico, encontra ecos e confluências
em outras tradições cristãs, inclusive, no pentecostalismo clássico. Portanto, não
seria um domínio exclusivo do calvinismo. Aliás, essa tarefa tem sido um dos
empreendimentos do filósofo cristão canadense James K. A. Smith, ao propor uma
aproximação da tradição reformada com a experiência carismática (SMITH, 2018, p.
12).
Dito isso, na estrutura do texto o primeiro ponto será apresentar a
problemática da autoridade ou do poder a partir de uma perspectiva bíblica, agrega-
se nessa altura, as contribuições do neocalvinismo sobre o conceito de Soberania
das Esferas em sua verificação e validade em termos bíblicos, históricos e
teológicos. A orientação teórica de matriz neocalvinista contará com os aportes de
Abraham Kuyper, Herman Dooyeweerd e Hans Rookmaaker, além das contribuições
de Herman Bavinck, Dietrich Bonhoeffer, do carismático James K. A. Smith e do
teólogo pentecostal Rodman Williams.
O próximo passo, será a exploração do contexto brasileiro atual a partir do
conceito acima apresentado, analisando as relações da igreja com outras esferas de
poder, sobretudo, considerando o Estado e suas ações diante da pandemia. O
conteúdo pode parecer apologético, mas, antes de tudo, tangencia a teontologia
com ênfase na antropologia bíblica, na cristologia e na doutrina da Igreja.
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2 A QUESTÃO DA AUTORIDADE E A SOBERANIA DAS ESFERAS

Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus


o que é de Deus. (Jesus Cristo)

A epígrafe acima é o registro canônico presente em todos os evangelhos


sinópticos sobre as palavras de Jesus. Por certo, estes livros canônicos apresentam
não somente seus discursos, mas, outras ações. As vezes ele está ocupado com as
multidões anunciando sua mensagem, outras vezes, em diálogo íntimo com um
publicano, um indigente, um pescador, uma autoridade religiosa e política, ou com
mulheres tidas como adúlteras ou prostitutas.
Desse modo, ele é apresentado interessado pelos mais diferentes sujeitos e
assuntos, dominando práticas culturais próprias de seu contexto, como, ler e
escrever. Mesmo que não tenha deixado um autógrafo, nenhum registro
especificamente seu, senão, aquele de sua escrita no chão e que como um
palimpsesto, o vento tratou de apagar. Uma dessas ações, numa conversa com os
membros mais ilustres da sociedade judaica, entre eles, a casta sacerdotal, o tema
tangenciou o campo político.
A perícope no Evangelho segundo Lucas, na altura do capítulo vinte, apresenta
o ponto nuclear que a assertiva se refere; uma trama arquitetada pelos principais
sujeitos da sociedade judaica, com a intenção de usar as próprias palavras de Jesus
contra ele. O objetivo, era o entregar, possivelmente, a Pilatos (ROBERTSON, 2013,
p. 337).
A pergunta armadilha foi lançada: “é lícito dar tributo a César ou não?” (BKJ,
Lc, 20:22). Na sequência, após denunciar o ardil, Jesus solicitou que apresentassem
uma moeda, replicando com outra interrogação, sobre a referência iconográfica nela
gravada. A relação entre o significado e o significante, ou seja, a materialidade a que
a imagem acústica se referia, “a impressão (empreinte) psíquica desse som”
(SAUSSURE, 2003, p. 80), evocava a representação de César.
O conceito certamente indicava a maior autoridade romana a partir de Otávio
Augusto, o poder total encarnado no sucessor do ditador Júlio César. Naquele
contexto em que Jesus se inseria, o significante dizia respeito, possivelmente, ao
imperador Tibério (ROBERTSON, 2013, p. 338).
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Portanto, o que está apresentado no texto lucano, versa sobre a questão da


autoridade. Pelo menos, três níveis de poder podem ser encontrados no texto; do
estamento religioso que questionava a autoridade de Jesus, do próprio Cristo/Deus,
e do Império Romano personificado em Tibério.
A questão é tão antiga quanto a própria humanidade, e diz respeito as relações
de poder. Descontando a generalização, em todas as culturas humanas essas
relações se desenvolveram, as vezes provocando crises de governabilidade. Esse
foi o caso do Egito antigo, onde as lutas palacianas assumiam caráter de
sacralidade quando os sacerdotes se envolviam nas lutas pelo poder. A bíblia está
repleta desses exemplos que de forma diacrônica aponta para uma fonte que jorra
em contínuo marcando toda humanidade.
Há casos de filhos que tentaram usurpar o trono do pai, como Absalão, de uma
luta por poder que envolveu a construção de um templo rival ao de Jerusalém no
monte Gerizim. Aliás, foi assunto apresentado ao próprio Jesus pela mulher
Samaritana que polarizava a questão entre Jerusalém e Samaria.
Consta ainda, a conhecida narrativa que inspiraria um dos cânones da
literatura ocidental, Esaú e Jacó (1904), obra do escritor carioca Machado de Assis
(1839-1908). Os personagens centrais sugerem referências duplamente bíblicas,
pois são reconhecidos como os gêmeos Pedro e Paulo (ASSIS, 1904, p. 28).
Semelhantes fisicamente, mas, antíteses em todo o resto. O primeiro, defendia
a monarquia, o outro a república. Além disso, disputavam entre si, o amor da mesma
mulher. Certamente, o livro publicado em 1904, possui vestígios de seu próprio
contexto, os conflitos entre as ideologias políticas no Brasil do final do século XIX.
A obra também poderia render uma boa discussão teológica, uma vez que os
nomes de seus personagens representariam, na releitura revisionista de Atos dos
Apóstolos proposta por Ferdinand C. Baur (1792-1860), a tentativa de reconciliação
entre duas posições dentro da igreja entre os séculos I – II d.C. Paulo, com seu
evangelho aos gentios e as inclinações judaizantes, representadas em Pedro
(FABRIS, 1991, p. 15).
De todo modo, essas polifonias na obra machadiana, não só em suas
referências bíblicas, mas, a possibilidade de que Assis tenha acessado os escritos
da escola de Tübingen, também não foge a questão da autoridade, uma vez que, o
que estaria em jogo, além de anunciar as tensões políticas do período, seria a
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própria autoridade das Escrituras. Portanto, o tema da autoridade possui


centralidade na fé cristã, isso será desenvolvido na sequência.
O ponto nevrálgico na leitura teológica das relações de poder vem na
afirmação de um poder absoluto, identificado na doutrina da soberania de Deus. A
Escritura apresenta numerosos registros sobre o tema, incluindo o domínio soberano
de Deus sobre todo o cosmo, como na declaração: “Assim diz o Senhor: O céu é o
meu trono, e a terra, o estrado dos meus pés” (ARA, Is 66:1). Sua soberania
também se verifica na criação e na providência, como declara o salmista: “Reina o
Senhor. Revestiu-se de majestade; de poder se revestiu o Senhor e se cingiu.
Firmou o mundo, que não vacila” (ARA, Sl 93:1). O Deus revelado também expressa
seu absoluto poder na salvação, como conclui o profeta: “Ao Senhor pertence a
salvação!” (ARA, Jn 2:9).
Em um locus clássico da Teologia Sistemática, a Teontologia, emerge em
importância a doutrina da soberania de Deus. A tradição reformada tem especial
apreço pelo tema. Foi assim que ao se debruçar sobre os atributos da soberania
divina concluiu o gigante da teologia reformada holandesa Herman Bavinck (1854-
1921):

Deus é o criador e, portanto, o proprietário, possuidor e Senhor de


todas as coisas. Sem ele, não há existência nem propriedade.
Somente ele, tem autoridade absoluta. Sempre e em toda parte ele
decide. Repetidamente, portanto, se faz menção na Escritura, da
vontade soberana de Deus (BAVINCK, 2012, p. 325).

Complementa-se as declarações de Bavinck com a ressalva de Chales Hodge


(1797-1878) no cuidado em distinguir a soberania de Deus das propriedades da
natureza divina, pois seria: “uma prerrogativa oriunda das perfeições do Ser
Supremo” (HODGE, 2001, p. 331). Ou seja, sendo quem é, e por ser o criador e
sustentador de toda criação, Deus teria direito absoluto sobre ela. Nota-se, portanto,
que para onde se dirige o olhar, depara-se com a questão da autoridade e da ordem.
Por essa razão, tal questão escapa aos domínios da teologia acampando em outras
áreas do saber. Por exemplo, na sociologia clássica de Émile Durkheim (1858-
1917), o estado de anomia social seria prejudicial ao curso da vida, pois seria
resultado: “de uma ruptura na regulação cultural e na estrutura institucional”
(SCOTT, 2010, p. 24). Para o sociólogo, os seres humanos possuem um ímpeto
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para a anomia, sua fonte seria o desejo, algo que os indivíduos, por si mesmos, não
poderiam restringir. Sendo assim, a única força capaz de conter esse ímpeto, seria
externa ao indivíduo, pois:

Os homens não consentiriam em limitar seus desejos se se


julgassem no direito de ultrapassar o limite que lhes é designado. Só
que eles não podem ditar a si mesmos essa lei de justiça, pelas
razões que mencionamos. Portanto, devem recebê-la de uma
autoridade que respeitem e diante da qual se inclinem
espontaneamente (DURKHEIM, 2000, p. 315).

Essas declarações de Durkheim sugerem uma leitura teológica da


sociedade, e aparentemente, as razões da anomia e da ordem social poderiam ser
atribuídas na mesma sequência pelas seguintes realidades: a queda – a depravação
total; a redenção, e/ou assegurada pela providência. De todo modo, mesmo que do
ponto de vista teológico, ou da visão cristã de mundo tal leitura seja legítima, não
seria isso que Durkheim faz.
Na verdade, o sociólogo opera justamente a partir de um pressuposto que
enxerga a sociedade como uma entidade superior e absoluta, inclusive, como fonte
de toda referência moral. Assim, ele incorre justamente no problema teológico da
idolatria: isola certo elemento da realidade e o torna absoluto. Logo, a autoridade de
Deus é negada, substituída pelo poder totalizante da entidade imaginária chamada
sociedade. O espírito de rebelião não se manifesta apenas em relação as normas
sociais, mas, sobretudo, em relação a fonte primeira de toda autoridade: Deus.
As reflexões durkheimianas seriam reflexos disso, e seriam relevantes para
a reflexão teológica, uma vez que Agostinho já apontava para tal fenômeno,
identificado como inerente à Cidade dos Homens, fundada pelo “amor próprio,
levado ao desprezo a Deus” (AGOSTINHO, 1990, p. 169).
Foi assim no drama do Éden, pois a rejeição do governo de Deus se
manifestou na atitude rebelde do casal edênico, algo que do ponto de vista
teológico, se apresenta como um problema desde então. A rebelião humana contra
Deus se manifesta nos primeiros pais, e seria o ponto de partida para toda atitude de
oposição à autoridade de Deus e uma consequente guinada rumo a um quadro de
anomia. Como afirma Hoekema, (1999, p. 190), essa postura encontra-se:
“enraizada no ódio a Deus”.
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Tal afirmação se apresentaria como uma leitura teológica para as relações de


poder. Contudo, mesmo sob as consequências da queda, entre elas, na verificação
de um direcionamento apóstata do coração, os seres humanos continuam a
experimentar os efeitos do governo providencial e soberano de Deus.
Justamente nesse ponto, uma teoria política de orientação cristã, a partir de
uma base reformada dirá que nessa brecha aberta pela queda, o Estado surge como
resultado da graça comum, um meio pelo qual Deus se utiliza para minimizar os
efeitos catastróficos do pecado, ou seja: “preservar a gloriosa obra de Deus, na
criação da humanidade, da destruição total” (KUYPER, 2019, p. 90).
Contudo, seria bom fazer uma ressalva, essa reflexão teológica não seria
exclusividade da tradição reformada, mas, pode ser encontrada entre os
pentecostais. Por exemplo, o teólogo pentecostal Rodman Williams afirma que: “a
presença do mal no mundo requer um poder governamental forte. O governo civil,
portanto, representa na melhor das hipóteses, a ordem providencial de Deus para
conter e castigar o mal” (WILLIAMS, 2011, p. 976). Algo interessante, no teólogo
pentecostal é que também opera com o conceito teológico de “graça comum”
(WILLIAMS, 2011, p. 103-104), sendo assim, o Estado aparece como resultado da
providência.
De todo modo, em Abraham Kuyper (1837-1920) a esfera do Estado surge
como instrumento da providência, apresentando um caráter mecânico em
contraposição as esferas sociais de dimensão orgânica como a família, a Igreja, a
ciência ou a arte. Tal diferenciação pressupõe que a principal função do Estado seria
de garantir o pleno desenvolvimento da vida que se amplifica de forma variada nas
esferas sociais individuais, pois, como afirmou Kuyper (2019, p. 103): “O Estado
nunca pode tornar-se um octópode que asfixia a totalidade da vida”.
O próprio Calvino assim entendia, uma vez que pela providência o governo civil
se sustentaria, cujo propósito seria o refreamento do pecado (CALVINO, 2018, p.
470). Ou seja, o Estado não possuiria um fim em si mesmo, uma vez que ele só foi
possível por causa do pecado (KUYPER, 2019, p. 87). Se assim fosse, o Estado
perderia sua finalidade e se tornaria uma fonte de arbitrariedade, se colocando em
oposição ao próprio Deus, uma vez que estaria transpondo os limites de sua própria
esfera (KUYPER, 2019, p. 105).
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De outro modo, a soberania de todas as esferas, inclusive do próprio Estado,


seria gregária da própria Soberania de Deus (KUYPER, 2019, p. 98), ou seja, o
único que detém absoluto controle e direito sobre a vida é o próprio Deus. Portanto,
toda forma de tirania, de autoritarismo, ou o extremo, que Hanna Arendt (1998, p.
339) chamou de “totalitarismo”, que é uma forma de poder total sobre todas as
esferas, representaria uma afronta à soberania de Deus.
Herman Dooyeweerd (1894-1977), pensador que em conjunto com Guillaume
Groen Van Prinsterer (1801-1876) e Abraham Kuyper, pode ser creditado a
fundação da tradição neocalvinista, nos apresenta noções interessantes sobre
cristologia e eclesiologia, contribuindo para o debate sobre a questão.
Para Dooyeweerd (2014, p.50), no relacionamento entre Cristo e sua Igreja
estaria a “raiz e base de todos os relacionamentos temporais sociais”, uma vez que
no cristianismo, para além de uma instituição eclesiástica, busca-se numa relação
supratemporal, um governo teocrático que se faz efetivo na igreja invisível. Daí,
decorre que todas as estruturas sociais, inclusive o Estado, se manifestaria como
“expressão, ainda que imperfeita, do reino invisível de Deus”. Seria nesse sentido,
que o governo de Deus ou seu reino seria “todo-abrangente” a única possibilidade
para “a ideia cristã do Estado” (DOOYEWEERD, 2014, p. 50).
O pastor e teólogo polonês Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), diz algo
semelhante, desta vez, assumindo que a mesma igreja invisível, o corpo de Cristo,
seria o próprio “centro oculto do Estado” (BONHOEFFER, 2017, 59). Não em um
significado institucional, visível como em uma religião de Estado, mas
profundamente teológico, uma vez que as promessas do Estado se cumpririam na
igreja. Promessas essas, relacionadas a razão de ser do próprio Estado, que seria:
“direcionar as pessoas para a sua plenitude através da justiça e de uma ação
criadora de ordem” (BONHOEFFER, 2017, p.59).
Para o teólogo alemão, isso se apresentaria como uma promessa messiânica,
tendo seu cumprimento histórico no Cristo humilhado, onde o sentido da história e o
significado do Estado se realizaria plenamente no Cristo da cruz. Não é sem razão,
que em outro lugar Bonhoeffer afirma que: “a Igreja é a humanidade recriada por
Cristo” (BONHOEFFER, 2017, p. 43), portanto, nela a razão e as promessas do
Estado de cumprem plenamente através da obra de Cristo.
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De todo modo, o que se percebe é que a teoria das esferas soberanas se


mostra como uma reposta a toda pretensão de um poder humano totalitário,
reconhecendo em última instância, que todo poder seria relativo e por extensão,
somente possível, por meio da graça comum. O ponto de partida e referência
derradeira, seria a própria soberania de Deus, a pedra de toque para uma avaliação
crítica sobre o lugar, a extensão, e o limite de toda autoridade.
Além disso, tanto Kuyper quanto Dooyeweerd reconhecem que por trás de toda
teoria política de importância, se esconde uma orientação religiosa (KUYPER, 2019,
p. 85). Algo que por muito tempo foi sutilmente ocultado, pelos influxos de
cosmovisões pagãs e do iluminismo. Esse último, em sua ênfase na razão e na
ciência (DOOYEWEERD, 2014, p.44-47).
Entre outras coisas, o que tais autores fazem, é possibilitar o desvelar desse
ocultamento, apontando os pressupostos que orientam as ideologias políticas, por
vezes, imiscuídas com boas doses de cristianismo. Exatamente por isso, a
dificuldade de isolar tais ameaças, uma vez que metaforicamente se manifestam
como a túnica de Dejanira (BULFINCH, 2013, p. 230-231), grudando sobre a pele e
causando uma morte lenta e dolorosa.

3 AS RELAÇÕES DE PODER A PANDEMIA E AS INCLINAÇÕES IDOLATRAS


DO CORAÇÃO

Recentemente, algo tem chamado a atenção. No bojo da polarização política


brasileira contemporânea, incrivelmente dinamizada em tempos de ameaça real à
saúde pública, com o avanço da pandemia causada pelo novo coronavírus, cristãos
entram em conflito aberto, numa batalha fratricida em razão de suas paixões e
preferências políticas.
Neste caso, diferentemente do que é defendido nas linhas dos teóricos ora
apresentados, possivelmente, a igreja não seria assumida em seu protagonismo
central, e por meio da qual o Senhor governa plenamente. A razão disso, é que a
igreja se vê cercada por ideologias políticas de vários matizes que disputam as
adesões ou os compromissos do coração daqueles que se inscrevem nominalmente
como seus membros.
A questão seria demasiadamente séria, tendo em vista que muitos, no afã de
apontar a incompatibilidade da fé cristã com o que denominam de “ideologia de
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esquerda” – com isso, não se quer negar que há incompatibilidade, mas, uma
tendência de identificar uma orientação ideológica apenas no espectro político mais
à esquerda – abraçam sem nenhum problema qualquer imaginário político e outras
orientações ideológicas. Talvez, um ranço do poder de ocultamento do iluminismo,
que outrora ganhou forma sob o nacionalismo que desembocou no fascismo
europeu, e que se apresentaria também sob o disfarce do populismo.
Além disso, convém atentar para o imaginário e sua força de mobilização
política. Girardet (1987, p. 11) em suas pesquisas sobre os mitos e mitologias
políticas, no lembra sobre o substrato que opera “no segundo plano de algumas das
grandes construções doutrinais do último século”, e que se descobre por vezes sob
o verniz da racionalidade científica. Ele está discorrendo sobre o imaginário político
e uma força agregadora das energias e os fervores mais desesperados, as
mitologias políticas.
Uma dessas figuras imaginárias, a do herói mítico, seria historicamente
recorrente, figura essa, capaz de captar "todos os fervores da esperança coletiva"
(GIRARDET, 1987, p. 161). Aparentemente operando a partir de uma análise
dualista, entre razão e sentimento, o historiador francês, nesse sentido, entende que
a esfera política seria permeada por adesões muito mais passionais que racionais.
De outro modo, a tradição neocalvinista reconhece as origens dessas adesões,
dessa vez, negando uma leitura dualista, mas, identificando as fontes dessas
paixões, compreendidas por David T. Koyzis (1955 -) como sendo ilusões políticas.
Portanto, no fundo, todas as ideologias políticas brotariam de compromissos
religiosos básicos que Koyzis identifica como, idolatria.
A denúncia do autor, abre feridas mal cicatrizadas e expõe a perda de uma
leitura bíblica da realidade entre os cristãos. Além disso, aponta para a plasticidade
e a prontidão com que muitos abraçam as leituras reducionistas da realidade. Visões
ilusórias reverberadas nas adesões, compromissos íntimos, e, notavelmente
tornados públicos na ovação laudatória do “mito”. Nesse ponto, a leitura de Koyzis é
confrontadora, pois:

Como as idolatrias bíblicas, cada ideologia se fundamenta no ato de


isolar um elemento da totalidade criada, elevando-o acima do resto
da criação e fazendo com que esta orbite em torno desse elemento e
o sirva. A ideologia também se fundamenta no pressuposto de que
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este ídolo tem a capacidade de nos salvar de um mal real ou


imaginário que há no mundo (KOYZIS, 2014, p. 18).

O alerta continua, dessa vez sobre o perigo aparentemente inocente na


bipolarização percebida no contexto brasileiro entre esquerda e direita, na invocação
constante de ameaças conspiratórias perturbadoras como justificativa para erradicar
o mal identificado na visão política concorrente. Nesse sentido, a ameaça real
causada pelos efeitos da pandemia parece dinamizar essas ilusões, dividindo os
cristãos, sob a linguagem política, entre progressistas e conservadores.
Koyzis faz uma exploração meticulosa das ideologias políticas, identificando
em cada uma delas uma inclinação idolatra, inclusive, no conservadorismo. A
advertência se torna ainda mais séria, pois nos alerta sobre os impulsos idolatras
que operam por trás de cada ideologia política, inclusive, aquelas que
aparentemente se confundem com a fé cristã, como no caso do conservadorismo.
Nesse último caso, tende-se a esquecer que a própria criação de Deus possui uma
natureza dinâmica. Ou seja, conservação e desenvolvimento deveriam ser
assumidos como aspectos complementares, de modo que: “para o cristão dotado de
discernimento, o progresso e a preservação caminham lado a lado” (KOYSIS, 2014,
p. 112).
Tal discernimento também conduz a percepção de que as propostas
ideologicamente orientadas, estão assentadas sob a crença na autonomia humana
para moldar seus destinos. Para tanto, o liberalismo elege o indivíduo; as ideologias
coletivistas como a democracia ou o socialismo, exaltam a comunidade; o
conservadorismo destaca a experiência histórica; e o progressismo tem certo apetite
para a transformação utópica engendradas pelos seres humanos. No fundo, seriam
propostas soteriológicas humanistas que enxergam na própria criação tudo o
necessário para salvação. A criação seria autônoma em relação a Deus.
Nesse ponto, voltamos a mitologia política de Girardet (1987) a força
mobilizadora das esperanças coletivas presentes nos imaginários políticos. Logo, a
crítica de Kuyper (2019) seria agora pertinente, uma vez que para ele,
diferentemente dos resultados da Revolução Francesa, o poder absoluto, não
procederia do povo, tão pouco do Estado, do indivíduo muito menos, mas, a partir do
que chamou de uma fé política, tal poder seria exercido somente por Deus.
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Nesse sentido, para o cristão, todo o poder seria ao mesmo tempo, derivado e
limitado por outro absoluto, algo perfeitamente compreendido pela casta sacerdotal
confrontada por Jesus, na resposta performática dada a seus espias e inscrita na
epígrafe desse texto: “[...] Dai, pois, a César as coisas que são de César, e a Deus,
as coisas que são de Deus” (BKJ, Lc, 22: 25).
Porém, antes de explorar com mais cuidado tal problemática sob o contexto
brasileiro, seria interessante resgatar uma vez mais a profundidade da reflexão
superlativa de Dooyeweerd ao identificar aquele impulso religioso inato. O ego teria
uma necessidade vital, a busca de significado fora de si, algo advindo de sua
condição especial, por causa da imago dei.
Tal impulso, ao se apoiar sob motivos básicos apóstatas, volta-se para a
experiência temporal, tomando desse horizonte aquilo que é relativo como se
absoluto fosse (DOOYEWEERD, 2018, p. 74-75). Portanto, essa dimensão
superlativa da crítica Dooyeweerdiana decorreria de sua envergadura intelectual, e
muito mais, por se depreender dos insights bíblicos. Isso fica evidente quando se
consulta as fontes das Escrituras.
Um dos insights mais contundentes, se encontra na epístola aos Romanos. No
final da década de 50 d. C. o apóstolo Paulo possivelmente da cidade grega de
Corinto, no Peloponeso (CARSON; MOO; MORRIS, 1997, p. 270), se dirigiu a
comunidade de fé em Roma tangenciando a questão dessa inclinação apóstata com
as célebres palavras: “os quais mudaram a verdade de Deus em mentira, e
adoraram e serviram mais à criatura do que ao Criador, que é abençoado para
sempre. Amém! (BKJ, Rm, 1:25). Este deverá ser o marcador, a pedra de toque para
a leitura do campo religioso brasileiro e suas possíveis contradições em termos de
adesão as propostas de poder.
O atual contexto brasileiro tem provocado muitos questionamentos em relação
a aproximação do governo com os cristãos, sobretudo evangélicos. Como dito, tal
tema não seria estranho as narrativas bíblicas tão pouco a história da igreja e do
próprio ocidente. O corte se torna uma espécie de tabu apenas sob influências de
uma racionalidade secularizante e em grande medida, como resultado das
experiências localizadas no medievo. Soma-se a isso, as contraditórias relações
entre o imperialismo europeu e aqueles que professavam a fé cristã.
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De todo modo, não seria possível ignorar a história do tempo presente e como
nos últimos anos o campo de batalha na esfera política conta agora com novo
ingrediente; as adesões dos grupos identificados sob a pecha de evangélicos. A
influência política do segmento tem crescido em proporção malthusiana. Isso se
verificou nas últimas eleições no plano federal, tanto sob o governo de Lula, Dilma, e
mais ainda, no atual governo de Jair Bolsonaro.
Certamente o cenário demográfico brasileiro justificaria o fenômeno. Mesmo
considerando a atual importância política dos evangélicos, segundo estimativas
recentes, a tendência de crescimento continua a galope, pois: “os evangélicos
alcançariam em 2032 a marca dos 39,8%. Ou seja, superariam os irmãos de fé
cristã” (BALLOUSSIER, 2020, p. 6).
A jornalista se baseia nos estudos do pesquisador ligado ao IBGE, José
Eustáquio Alves, que projeta uma possível hegemonia evangélica até o ano de
2032, com o declínio constante do catolicismo romano, garantindo aos evangélicos o
primeiro posto.
Mesmo não considerando os evangélicos como um bloco monolítico, percebe-
se o poder de atração exercido por Bolsonaro, sobretudo, na capitalização de apoio
desse segmento a seu governo. Um fato bastante significativo diz respeito a
conjuntura atual e ao discurso de enfrentamento à pandemia provocada pela
COVID-19.
Trata-se de um vídeo divulgado pelo presidente. Nele, Bolsonaro aparece junto
a vários pastores, convocando os cristãos do Brasil para um jejum nacional. O
episódio teve ampla cobertura, entre outras, destaca-se a matéria publicada no dia
04 de abril de 2020 no sítio eletrônico do jornal Correio Brasiliense, onde se verifica
o seguinte relato:

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) postou nas redes sociais,


na tarde deste sábado (4/3), um vídeo convocando a população para
jejuar e orar contra o coronavírus, neste domingo (5/3), dia
‘proclamado’, por ele próprio, como o dia da ‘Campanha de jejum e
oração pelo Brasil’, conforme escreveu na legenda da publicação. Na
filmagem, com a hashtag ‘Jejum pelo Brasil’, 34 pastores de
diferentes igrejas evangélicas endossam o pedido de Bolsonaro e
classificam o chamado como ‘proclamação santa feita pelo chefe
supremo da nação’ (SOARES, 2020, s./p).
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Os espaços virtuais de comunicações se tornaram caixa de ressonância dessa


convocação, muitos aderiram, outros trataram com suspeição. De todo modo, o dia
de jejum nacional foi realizado no dia 05 de abril de 2020. A motivação oficial seria
um clamor da igreja representada por muitas instituições eclesiásticas em favor de
uma resposta divina as ameaças da pandemia.
Até aqui, parece não haver nenhum embaraço, uma vez que mesmo sob
diferenças organizacionais e teológicas, tais experiências confessionais
representadas por suas principais lideranças, se uniram sob a bandeira comum da fé
e confiança em um Deus todo presente, que reponde as orações de seu povo.
Como dito, talvez a motivação explicita não seja alvo de censura, tão pouco a
confissão de fé do presidente, que se diz católico e foi rebatizado nas águas do rio
Jordão, muito menos, o ato em si de conclamação ao jejum. A questão talvez só se
tornaria um problema, se por trás de tudo isso operasse outras intensões, na
exploração simbólica e performática da disciplina espiritual do jejum, com objetivo de
capitalização política.
O peso maior, seria para a contraparte representada pelos atores sociais
ligados ao segmento evangélico do que ao próprio presidente. Mesmo assim, a
questão ganha contornos subjetivos, apresentando dificuldades para qualquer
análise. Entretanto, a interrogação quanto ao ato, se convocado pelo presidente, gira
em torno da possível invasão da esfera do Estado sobre a igreja.
No entanto, o oposto também seria válido, levando em consideração a
possibilidade de outras intenções, ocultas na tentativa de alguns líderes evangélicos
de capitalizar poder político. Isso se daria, utilizando suas posições dentro das
instituições eclesiásticas como instrumento de manipulação do poder estatal, agora,
representado por Bolsonaro, sugerindo uma suposta invasão da esfera do Estado
pela igreja.
Nesse ponto, algumas respostas possíveis podem ser elencadas a partir de
novas interrogações. No primeiro caso, surge a questão da exigência
ideologicamente orientada, para que a fé dos agentes públicos seja relegada ao
âmbito da esfera privada. Essa exigência nem sempre fora assim, mas, construída
lentamente na história do ocidente até seu clímax na revolução francesa sob o peso
da “descristianização” e as “celebrações do culto da Razão” (VOVELLE, 2012, p.
49).
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No próximo século, tem-se o ímpeto cientificista. O que vem em seguida, seria


corolário desse movimento. Sob os portais da igreja, o prato do dia foi servido; a
teologia liberal de Schleiermacher a Bultmann. Se não fosse a providência, talvez a
fé Cristã se expressaria agora timidamente em seu último suspiro.
Logo, o posicionamento aqui defendido, consiste em que a radicalidade da fé
cristã não poderia ser contida pelos vetores da descristianização e seus impulsos
ideológicos. Foi em nome dessa liberdade de consciência, que os mártires da igreja
desde o primeiro século da era cristã renderam suas vidas. Uma consciência que os
compeliam a viver uma vida diante de Deus, não importando o lugar ou a
circunstância.
O apóstolo Paulo assim o fez, assumindo suas cadeias porque era um
“prisioneiro de Jesus Cristo” (BKJ, Fm, 1:9). Após sua conversão, sua vida não foi
nada fácil, mas, atendeu a um propósito compensador, o de conduzir: “cativo todo o
pensamento à obediência de Cristo” (BKJ, 2 Co, 10:5). Lutero diante da dieta de
Worms assume o posicionamento paulino, pois: “marginalizado pelo Estado e
excomungado pela Igreja, Lutero foi compelido por sua consciência e fé a desafiar
tanto um quanto o outro” (LINDBERG, 2015, p. 116-117).
Dito isso, na questão seguinte, inquire-se, em que medida, se pode afirmar
que o agente público investido com a autoridade de presidente da República se
utilizou da função ou da máquina pública para interferir na esfera da Igreja? No outro
vértice, seria preciso considerar, se para além de suas atribuições, a igreja teria
manifestado intenções de prolongar os limites de sua esfera, borrando as fronteiras
da esfera estatal.
Seria bom lembrar que isso já ocorreu na história do ocidente, e outro pensador
cristão na mesma tradição de Kuyper e Dooyeweerd nos lembra que: “sempre é o
caso de que, quando duas esferas de soberania invadem o domínio uma da outra ao
eliminar as fronteiras entre elas, significará o fim de uma dessas esferas”
(ROOKMAAKER, 2018, p. 128).
O historiador e crítico de arte holandês continua sua argumentação, que nesse
caso, aponta para uma ameaça real. Ou seja, conforme Rookmaaker (2018, p. 128):
“se a igreja verdadeiramente como igreja, se imiscuísse na política, então seria o fim
da igreja como tal, e ela se tornaria um partido político”. Em outro lugar diz: “tão
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pouco o Estado está livre para forçar uma igreja a adotar certo artigo de fé”
(ROOKMAAKER, 2018, p. 24).
Foi assim que a partir de uma concepção de poder totalitário de inclinação
pagã que a ideia de uma só instituição eclesiástica passou a representar toda a
igreja universal. Foi também nessa mesma esteira que o fenômeno do regalismo e
do galicanismo ou no caso brasileiro do padroado régio, atribuiu ao Estado o poder
para controlar os destinos de uma instituição eclesiástica.
Na esteira desse fenômeno, a reforma da administração estatal conduzida
pelo Marquês de Pombal, acabou por expulsar os Jesuítas a título dos interesses da
monarquia portuguesa. Isso, como constatou Fausto (1995, p. 112), “fazia parte de
uma política de subordinação da Igreja ao Estado português”.
A questão atravessou boa parte da idade média e atingiu a modernidade,
levando a discussão das investiduras, ou o conflito pelo primado do poder entre o
secular e o espiritual. Se o Papa era o vigário de Cristo e portador das chaves de
Pedro, o imperador seria o filho de Adão a quem o Senhor garantira o governo do
mundo.
Na Alemanha nazista, o Estado totalitário, forjou sua própria Igreja, elegendo
seu bispo sob o túmulo de Lutero na igreja do Castelo na Alemanha (METAXAS,
2011, p. 205-207). Contudo, encontrou corajosa resistência. Reunidos sob a Igreja
Confessante, destaca-se a reação de alguns pastores, dentre eles, Karl Barth (1886-
1968) e, sobretudo, do já citado, Bonhoeffer.
Esse último, por sua resistência radical ao poder total do Estado, foi condenado
à prisão e em seguida assassinado pelas forças do autodenominado terceiro Reich,
como entendeu Metaxas (2011, p. 569-572), por ordem direta de próprio Hitler. Tais
exemplos, podem muito bem servir como lições, e mesmo não se admitindo aquela
concepção de história como mestra da vida, essas narrativas não podem ser
totalmente ignoradas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto brasileiro atual devido as acusações de interferência estatal sobre


as liberdades individuais e coletivas, mesmo justificado pela ameaça da pandemia,
apresenta-se uma sombra atemorizante, inclusive, a possibilidade real de
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interferência do Estado na esfera soberana da igreja, da economia, do indivíduo e


em outras esferas sociais.
No estado de Pernambuco, as medidas de lockdown levaram o pastor
presbiteriano Augustus Nicodemus a divulgar um vídeo dirigindo-se ao governador
do Estado. Nele, sugere uma cláusula de exceção no decreto em vigor, permitindo o
deslocamento dos pastores até os locais de culto, uma vez que por lá, pelo menos, a
transmissão on-line seria possível.
Mesmo que os motivos sejam justificados, tais medidas apontam para um lugar
entre o Leviatã e o Beemote de Thomas Hobbes (1588 -1679), entre a submissão ao
poder total do Estado ou a desobediência civil. Entre esses monstros, localiza-se o
espaço onde as fidelidades são testadas, soma-se a isso, a fragilidade da vida
diante de seres microscópicos, mas, capazes de ceifar a vida humana. Outras
questões podem ser levantadas, nos termos do fenômeno da pós-verdade. Segue-
se a questão da desinformação e tentativas de manipulação da opinião pública por
meio das Fake News.
Eis o alerta para todos e todas que professam a fé cristã, o coração deve ser
guardado a todo custo! É lá que o centro da vida religiosa se desenvolve. Há uma
disputa pela adesão e compromissos do coração, uma batalha é travada pelas
afeições religiosas.
Além disso, a máxima bíblica de que é impossível servir a dois senhores,
ganha aqui profundo significado. Há uma antítese presente em toda realidade
criada, e se manifesta na cultura, nas ideologias ou nos imaginários políticos. Essa
antítese se estende em oposição a Deus. E entre César e o Senhor, é bom lembrar
que o primeiro será sempre servo do último, daquele a quem a Igreja confessa como
seu Senhor e Salvador. Nele, toda as promessas messiânicas se cumprem, não
restando lugar para qualquer outro, que com ele concorra por nossos afetos,
devoções e compromissos derradeiros.
Por fim, a crítica neocalvinista, reformacional, partindo dos motivos cristãos
básicos, ou seja, da própria Escritura, teria potencial suficiente para equipar os
cristãos para os desafios de viver no mundo e atuar nele sem o demérito da
apostasia. Destacando o chamado radical do evangelho, que se traduz em uma vida
vivida diante de Deus, não havendo lugar algum, onde ele não seja Senhor, inclusive
do Estado. Ao mesmo tempo, solicita uma atitude de reconhecimento das fronteiras
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entre as Esferas Soberanas, como resposta ao perigo da maximização de apenas


um aspecto da criação. De todo modo, a tentativa de sufocamento da fé por forças
secularizantes, não deve ser desprezada pela igreja, outras ameaças vêm a
reboque, sequestrando nossos imaginários e afeições. No fundo, trata-se de um
teste de fidelidade e a Igreja não poderá fugir dessa constatação.

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