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O AMOR É FODIDO

Imensos são aqueles que apostaram em escrever sobre o amor e sobre o seu efeito
humano e desistiram face a sua complexidade. Na verdade é simples: “é fodido”.
A sinceridade surpreendente da obra começa logo no seu título que, imponente e
obsceno, resume, “para quem não quer perder tempo com eufemismos eruditos, a
etimologia da palavra paixão”. ¹ Seja quem for que, por um único instante, deixe pousar a
sua vista nas letras brutais cravadas na capa de O AMOR É FODIDO e as decida ler
involuntariamente, vendo amor no seu início, é devastado pela expressão violenta que se
lhe segue.
Após o primeiro contacto, num momento egoísta de pura indignação, perante
ser-se ofendido no ato que se acha ser o mais natural de todos, amar, o vocábulo ofensivo
fodido ganha uma nova dimensão e desperta interesse em quem o lê. Não por se
preocupar com a delicadeza da palavra que o antecede ou por tentar abranger todo o seu
significado, mas sim por, ironicamente, mostrar tudo aquilo que, embora se prenda no
interior, não se queira dizer sobre o amor. Além disso, fá-lo de uma maneira rude e, no
entanto, perspicaz. Diria eu ser essa a beleza da escrita de Miguel Esteves Cardoso.
Variando desde um amor erótico até ao quase pornográfico, a história decorre
entrelaçada entre uma série de analepses e prolepses, eventos do mais deplorável que há,
com descrições adequadas à sua indecência que contrastam com passagens aprazíveis de
uma escrita atraente e reflexiva.
Esta alternância repentina numa narrativa não linear, juntamente com uma estilo
prosaico, de frases curtas, muito próximo do poético por vezes, é o que transmite a
intensidade desgovernada da relação vivida entre Teresa e João, os protagonistas. Um
amor levado ao excesso, replicado na impossibilidade de uma paixão tão ardente que
apenas a morte pode suportar. Implicativo do pior, do detestável, do mais desagradável
que se possa imaginar, numa tentativa desgraçada de chegar ao fundo para ambicionar o
topo.
Sem necessidade de o romantizar, alicerçado apenas na autenticidade do tema, o
autor dá liberdade a um sentimento sem escrúpulos que, embora não seja algo benévolo a
uma relação, é perpétuo, permanente e que, após anos e anos de decadência, resiste e
condena os coitados que se deixam apaixonar.
Não creio que alguém se identifique com este tratado (espero), pois aponta para
um lado perverso daquilo que mais nos permitimos sentir. Essa emoção soberba aguarda
no fundo do coração de cada um, guardada e adormecida, a sua saída.

¹ Citado do prefácio elaborado por Ricardo Araújo Pereira em edições mais recentes. Marco Cadilha

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