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Departamento de Filosofia/FFLCH
Universidade de São Paulo
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315
05508-900, São Paulo, SP
Resumo: Este artigo propõe-se a tratar dos obstáculos epistemológicos e passionais à beatitude
na abertura do Tractatus de Intellectus Emendatione de Espinosa, mostrando a conciliação entre os
discursos retórico e epistêmico na exposição do autor. Desse modo, procuramos demonstrar que
o filósofo seiscentista não produz uma cisão em sua obra com uma introdução meramente
retórica do problema, mas fornece, desde as primeiras linhas, a gênese matemática do desejo,
elaborando assim uma epistemologia.
Abstract: This article intends to deal with the epistemological and passives obstacles to the
beatitude in the opening of Spinoza's Tractatus de Intellectus Emendatione, showing the conciliation
between the rhetorical and epistemic discourses in the author's exposition. In order to do so, we
tried to demonstrate that the philosopher doesn't produce a rupture in his work by a merely
rhetorical introduction of the problem, but he supplies, from the introduction, the mathematical
genesis of desire, thus elaborating an epistemology.
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via-me, com efeito, correr um gravíssimo perigo (...); como um doente que sofre de uma
enfermidade letal, prevendo a morte certa se não empregar determinado remédio (...),
pois que nele está sua única esperança 1 [TIE, 7; grifo nosso] – ([7], p. 44).
quem nós vemos ser escravo de toda a espécie de superstições são sobretudo os que
desejam sem moderação os bens incertos [da fortuna]. Todos eles, designadamente
quando correm perigo e não conseguem por si próprios salvar-se, imploram o
auxílio divino com promessas e lágrimas de mulher, dizem que a razão é cega
porque não pode indicar-lhes um caminho seguro em direção às coisas vãs que
eles desejam, ou que é inútil a sabedoria humana; em contrapartida, os devaneios
da imaginação, os sonhos e as extravagâncias infantis, parecem-lhes respostas
divinas 3 [Tratado Teológico-Político, Prefácio; grifo e inciso nossos] – ([10], p.112).
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solo que se dará a Correção do Intelecto, pois, segundo Espinosa, não somente é
possível, porém, necessário refletir sobre esse mesmo desejo que desvia a
mente do conhecimento e, por conseguinte, da beatitude. De acordo com ele,
tudo aquilo que o vulgar segue não só não traz nenhum remédio para a
conservação de nosso ser mas até o impede e freqüentemente 4 é causa de morte para
aqueles que o possuem e sempre causa de perecimento para os que são possuídos
por isso [TIE, 7],
sua reflexão antes diz respeito à vida na sua mais ampla acepção. Aliás, é
preciso dizer que a interpretação literal, e, sobretudo isolada, do § 7, sem o
4 É preciso observar que, se por um lado, Espinosa reserva espaço para o desejo de
bens perecíveis, aqui, por outro, realiza um jogo com os advérbios frequenter e semper para
evidenciar que se a posse de tais bens pode ser freqüentemente causa de morte para quem
os possui, é, por sua vez, sempre causa de morte para os que são por eles possuídos.
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devido cotejo com o que está escrito nos §§ 11 e 12, não apenas deturpa e torna
contraditório o pensamento do autor, como também cinde a obra em duas
partes: uma de cunho moral ou retórico (ou ambos, retórico-moral) e outra de
cunho epistemológico. Se, contudo, nos deixarmos conduzir apenas pelo que o
filósofo afirma em sua análise, poderemos perceber claramente se existe ou não
uma tal cisão.
O que o filósofo reconhece de pronto é o apelo poderoso que possui o
desejo de bens perecíveis, e também não deixa de reconhecer simultaneamente
que se aplicar totalmente ao novo projeto, qual seja, a Correção do Intelecto, a
princípio, era uma mera hipótese. Ele mesmo diz: “entretanto, mediante uma
assídua meditação, cheguei a verificar que então, se pudesse deliberar
profundamente, deixaria males certos por um bem certo” [TIE, 7; grifo nosso].
É por causa disso que Alexandre Koyré 5 diz que Espinosa faz do prefácio um
lugar comum da predicação moral de inspiração estoicista. Mas para corroborar
nossa hipótese de que não é nem com uma moral do tipo estóica nem com a
morte física que nosso autor está preocupado, queremos ressaltar que o próprio
filósofo adverte:
entretanto, não é sem razão que usei destes termos: se pudesse seriamente deliberar.
Porque, ainda que percebesse mentalmente essas coisas com bastante clareza,
nem por isso podia desfazer-me de toda avareza, concupiscência e glória [TIE, 10;
grifo nosso].
5 Aliás, segundo Koyré, nada mais espinosista, pois a lógica para Espinosa não seria
mais do que uma introdução à moral, e o método não teria por finalidade “dirigir
nossos pensamentos para encontrar a verdade das ciências”, mas dirigir nossos
pensamentos para realizar nossa perfeição e encontrar a beatitude. Vê-se, assim, negado
aí o próprio subtítulo do De Intellectus Emendatione, qual seja, “e do caminho pelo qual
melhor se dirige ao verdadeiro conhecimento das coisas” (ESPINOSA [5], p. 97).
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Sabemos, por outro lado, como já foi dito, que enquanto a mente se ocupa com
estas reflexões, ou seja, quando começa a avaliar o quadro em que se encontra,
isto é, quando começa a calcular, situa-se em seu próprio elemento e vai, pouco a
pouco, conseguindo afastar os pensamentos de desejo desmedido de bens
perecíveis. E a despeito de, no começo, os resultados alcançados, ou melhor
dizendo, os intervalos obtidos serem raros e durarem curto espaço de tempo,
depois, com o exercício da reflexão constante, passam a ser bem mais
freqüentes e duradouros. Numa palavra, vemos que começa a se esboçar,
pouco a pouco, uma nova ordem e uma nova causalidade do desejo, pois, conforme
escreve Chauí, “a natura do intelecto o faz ser causa ou força inata cujo primeiro
e exemplar efeito, ou antes, cuja actio e cujo usus deixam-se conhecer melhor no
exercício da matemática” 6 [grifo nosso]. Por isso, nossa argumentação pretende
demonstrar que o prefácio elabora a gênese do desejo por meio do cálculo
matemático, isto é, por meio da matematização do modo como nos ligamos aos
bens perecíveis. Não por acaso, Espinosa pondera e avalia cada um dos bens
aos quais nos ligamos por amor, diagnosticando ali uma medida, ou seja, o
critério de que nos valemos na hora de estabelecermos vínculos com as
riquezas, as honras e os prazeres sensuais – os bens perecíveis, não é outro
senão o aumento da alegria e diminuição da tristeza. O filósofo mesmo diz que
“quanto mais qualquer delas se possuir, mais aumentará a alegria e
conseqüentemente sempre mais somos incitados a aumentá-las” [TIE, 5].
No entanto, vamos, por um instante, nos afastar do percurso da salvação
da mente com o remédio aplicado – a assídua meditação –, apenas por um
breve momento, para testar aquela nossa hipótese de que o prefácio do Tractatus
não se refere primordialmente ao perigo de morte física, e ocuparmo-nos do caso
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em que não é possível salvação, ou seja, a maioria das vezes, pelo que o texto
também deixa entrever, quando diz que “se alguém nunca pensou nos erros dos
sentidos, seja pela experiência, seja de outro modo qualquer, jamais duvidará se
o sol é maior ou menor do que aparece...”. Mas se se disser que isso é apenas
uma ponderação trivial, o texto prossegue dizendo que “por isso, os rústicos se
admiram freqüentemente ao ouvir que o sol é maior que o globo terrestre.” [TIE,
78; grifo nosso]. Ora, o termo rústicos refere-se a pessoas que existem e levam a
vida normalmente sem o desenvolvimento pleno da capacidade intelectual. E,
além disso, Espinosa faz referência a outros que não são exatamente tão
rústicos e que parecem também levar uma vida quase normal, embora nos
aconselhe a abandoná-los a própria sorte, porque “se negam, se concedem ou
se opõem, não sabem que negam, concedem ou opõem, pelo que devem ser
tidos como autômatos, que carecem por completo de espírito” [TIE, 48], e
desde logo nos adverte, inclusive, quanto à perda de tempo que representa a
tentativa de discutir com eles, porque
de fato, nem a si mesmos sentem; se afirmam algo ou duvidam, não sabem que
duvidam ou afirmam: dizem que nada sabem, e mesmo isso, ou seja, que nada
sabem, dizem que ignoram; nem o dizem absolutamente, pois temem confessar
que existem enquanto nada sabem, de modo que afinal devem calar-se para não
supor alguma coisa que cheire a verdade [TIE, 47]. Por último conclui que “não
se há de falar com eles sobre as ciências” [TIE, 48].
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via-me, com efeito, correr um gravíssimo perigo e obrigar-me a buscar com todas
as forças um remédio, embora incerto; como um doente que sofre de uma
enfermidade letal, prevendo a morte certa se não empregar determinado
remédio, sente-se na contingência de procurá-lo, ainda que incerto, com todas as
forças, pois que nele está sua única esperança. [TIE, 7; grifo nosso].
7 Adiante, no § 17, na terceira regra de vida, Espinosa escreverá que essa tal
sociedade (societatem) deve imitar “os costumes da cidade (civitatis – genitivo) que não se
opõem a nosso fim” [TIE, 17], (ESPINOSA [7], p.46). Porém, muitas traduções
unificam os dois termos, quando o autor, na verdade, teve o cuidado de tratá-los
distintamente, para produzir como resultado a idéia de um grupo de estudos (uma
sociedade de pesquisa) reunido na esfera de uma cidade (uma comunidade de cidadãos).
Ressalvas sejam feitas quanto a esse aspecto às traduções de Atilano Dominguez e de
Bernard Rousset (ESPINOSA [6] e [8])
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falar ao alcance do vulgar e fazer tudo o que não traz nenhum impedimento para
atingirmos nosso escopo. Com efeito, disso podemos tirar não pequeno
proveito, contanto que nos adaptemos, na medida do possível, à sua capacidade
[TIE, 17].
8 Ora, se o filósofo não espera que na cidade só existam sábios, não há razão para
acusá-lo de otimismo quanto a esse ponto, pois ele mesmo deixa claro que uma tal idéia
é algo absolutamente impossível. ESPINOSA [9], (p. 361). Além disso, é possível notar
que tanto no plano político, quanto no plano mental, Espinosa se vale do mesmo
critério de garantia de sobrevivência: o da utilidade, ou seja, o que é mais útil para a
conservação e a felicidade é a regra a ser observada.
9 DESCARTES [12], (p. 37).
10 MUHANA [16], (p. 291, 303 e 313).
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Além disso, ele não recorre a tais discursos gratuitamente, ou seja, não é
mera retórica no sentido pejorativo do termo. O primeiro discurso, o
deliberativo, revela claramente sua disposição a buscar algo que constituísse o
bem verdadeiro, susceptível de se comunicar, e o segundo, o descritivo, capta
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excluem entre a idéia e o corpo não somente todo laço de causalidade, mas toda
relação, se vê desde agora que a idéia, mesmo que exista necessariamente concebida
conforme a um ideado, é tal, não em virtude de uma ação que esse último exerceria
sobre ela, mas por sua natureza intrínseca” (GUÉROULT [13], p. 100).
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existia algo que fosse o bem verdadeiro e capaz de comunicar-se, e pelo qual
unicamente, rejeitado tudo o mais, o ânimo fosse afetado; mais ainda, se existia
algo que, achado e adquirido, me desse para sempre o gozo de uma alegria contínua e
suprema [TIE, 1].
O objetivo da obra, portanto, é descobrir o bem que traz alegria para sempre,
ou seja, a felicidade eterna. Esse bem tem suas peculiaridades, deve ser um bem
verdadeiro e capaz de comunicar-se. Sendo assim, para que produza alegria para
sempre, deve ser um bem eterno, o que, para o filósofo, é o mesmo que ser
necessário e, por conseguinte, distinto de uma coisa singular mutável, isto é,
deve ser uma coisa “concebida por sua essência tão somente (...), a saber, se a
coisa é em si, ou, como vulgarmente se diz, causa de si mesma, deverá ser
inteligida só por sua essência” [TIE, 92; grifo nosso]. Desse modo, podemos
dizer que um bem verdadeiro e eterno é aquele no qual a existência tem
conexão necessária com a essência, conforme legitimamente se deduz do § 100
do De Emendatione:
realmente, seria impossível para a fraqueza humana alcançar a série das coisas
singulares e mutáveis, tanto devido à sua quantidade, que ultrapassa todo o
número, como devido às infinitas circunstâncias numa e mesma coisa, das quais
cada uma pode ser a causa de que a coisa exista ou não exista, já que a existência
delas não tem conexão nenhuma com sua essência, ou (como já dissemos) não é
uma verdade eterna [TIE, 100].
Ora, se nos lembrarmos que o Tractatus nos indica a via pela qual a mente
melhor se dirige ao verdadeiro conhecimento das coisas, e que essa é a via da
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este amor para com Deus não pode ser contaminado por nenhuma afecção de
inveja nem de ciúme; mas é tanto mais alimentado quanto maior é o número de
homens que nós imaginamos unidos a Deus pelo mesmo vínculo de amor [E, V,
Prop. 20] – ([1], p. 289).
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“Por elas [riquezas, honras e prazer] de tal modo se distrai a mente que mal pode
pensar em qualquer outro bem” [TIE, 3; inciso e grifo nossos]. “Quanto ao
prazer, o espírito agarra-se a ele como se descansasse em algo bom; e assim fica
em extremo impedido de pensar noutra coisa; mas da fruição do prazer segue-se
uma profunda tristeza que, se não suspende a mente, perturba-a, no entanto, e a
entorpece [portanto, enfraquece]. Com a busca de honras e riquezas, não pouco se
distrai também a mente, sobretudo, onde elas se buscam apenas por si mesmas,
pois se supõem então como o sumo bem” [TIE, 4; grifo e inciso nossos]; “muito
mais ainda se distrai a mente com as honras, que se supõem sempre como um
bem em si mesmas, como se fossem o fim último para o qual tudo converge”
[TIE, 5; grifo nosso].
existem, de fato, muitos exemplos dos que, por causa de suas riquezas, sofreram a
perseguição até a morte, e também daqueles que, para juntar tesouros, se
expuseram a tantos perigos que afinal pagaram com a vida o preço de sua tolice.
Nem menos numerosos são os exemplos dos que, para conseguir a honra ou defendê-
la, muitíssimo sofreram. Por último, há inúmeros exemplos dos que aceleraram a sua
morte pelo excesso de concupiscência [TIE, 8; grifo nosso].
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Detidos sobre esta passagem, somos levados a concordar que é certo que
isso ocorre em muitas ocasiões, mas o texto deixa claro também, primeiro, que
são apenas exemplos, e, segundo, que, apesar de serem muitos, numerosos ou até
incontáveis, não recobrem todos os casos possíveis, pois esse é exatamente o
ponto fraco da experiência. Logo, podemos concluir que o autor deve estar
referindo-se apenas ao enfraquecimento da mente, como havíamos suposto
inicialmente. A conseqüência, portanto, da não salvação, num primeiro
momento, deve ser algo oposto ao autômato espiritual 15 – situação na qual a
mente age segundo leis certas e, sobretudo, sabe porque age, pois é causa de suas
idéias. Enquanto, de outro modo, refletindo pouco ou quase nada a respeito do
que está aderindo por amor, a mente se desvia do “caminho pelo qual melhor
se dirige ao verdadeiro conhecimento das coisas” 16 [grifo nosso], e deriva pela via na
qual deseja cada vez mais desmedidamente aquilo que a tornará, de modo
inevitável, enfraquecida e infeliz, porque o desejo de posse de bens perecíveis
não apenas é contínuo, mas impossível de ser satisfeito de modo pleno, pois
aumenta sempre e cada vez mais.
Contudo, é preciso reconhecer que antes desse problema surgir no § 7, o
próprio filósofo admite ver, desde o § 2, “as comodidades que se adquirem pela
honra e pelas riquezas” [TIE, 2; grifo nosso], porém, é sobretudo necessário
perceber que, mais tarde, ao tratar delas da maneira como precisam ser evitadas,
ou seja, ao serem buscadas como bens em si mesmos, refere-se às mesmas em
termos que revelam uma diferença profundamente significativa: “não podia
contudo desfazer-me de toda a avareza, lascívia e glória” [TIE, 10; grifo nosso].
Ora, no § 3 do De Emendatione, Espinosa utiliza “divitia” = riqueza,
“honor” = honra e “libido” = desejo sexual, enquanto ainda não os havia
15 Para Lia Levy, “a aplicação da metáfora do autômato para o caso da alma humana
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“ambição seja o desejo imoderado de glória”, porque este “é um desejo pelo qual
todas os afetos são alimentados e fortificados (...). Na verdade, sempre que o
homem é dominado por um desejo qualquer, é necessariamente dominado, ao
mesmo tempo, pela ambição. O melhor dentre os homens, diz Cícero, é aquele
que é mais atraído pela glória 17 [E, III, Def. e explic. 44 dos Afetos] – ([1], p. 220).
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desde que a experiência me ensinou ser vão e fútil tudo o que costuma acontecer na
vida cotidiana, e tendo eu visto que todas as coisas de que me arreceava ou que
temia não continham em si nada de bom nem de mau senão enquanto o ânimo se
deixava abalar por elas, resolvi, enfim, indagar se existia algo que fosse o bem
verdadeiro [TIE, 1; grifo nosso].
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de minha existência, o que tentei muitas vezes, mas em vão” [TIE, 3; grifo
nosso]. Ora, sabemos que na Carta 37, a Johannes Bouwmeester, Espinosa
mesmo adverte que “para tudo isso se requer uma meditação assídua, disposição e
uma decisão firme; e para conseguir isto se exige, antes de tudo, estabelecer certo
modo e plano de vida e fixar um objetivo determinado” 20 . Ou seja, como é
imprescindível subtrair-se à seqüência ordinária e quase inexorável dos
acontecimentos, Espinosa prescreve os remédios para se evitar o perigo a que
estamos constantemente expostos.
Eis que a partir dessa primeira conclusão o filósofo começa então a
proceder ao exame do desejo, ao mesmo tempo em que constata que tal exame
já estabelece uma medida para este, pois “enquanto a mente se ocupava com
esses pensamentos, afastava-se daqueles [de desejo desmedido] e refletia
seriamente no novo empreendimento” [TIE, 11; inciso nosso], ou seja, é
preciso, no plano do intelecto, buscar, cada vez mais aquilo que contribui para a sua
conservação, pois a partir do momento em que a mente se ocupar com
semelhante busca, estará no âmbito de seu elemento e, com isso, já estará
simultaneamente de posse de uma medida, que lhe permitirá não ser enfraquecida
pelo desregramento quase inelutável do desejo de bens perecíveis, que, num
limite realmente extremo, depois de esgotada e enfraquecida, acabará mesmo
automatizada pela compulsão do desejo, mas ainda assim, por enquanto, não se
trata de perigo de morte física. Mesmo porque a salvação de que fala Espinosa
no De Emendatione é uma salvação intelectual, a qual envolve a liberdade e a
beatitude. Não se trata de uma salvação da alma, com referência a uma vida
eterna – porquanto, para Espinosa, isso é já um dado, ou seja, nossa mente é
eterna, segundo ele, “a mente humana não pode ser absolutamente destruída
juntamente com o corpo, mas alguma coisa dela permanece, que é eterna” [E,
V, Prop. 23] – ([1], p. 289). Mas não é também a salvação de que falam os
teólogos, pois não se trata de uma vida após a morte; nem se trata tampouco da
salvação do corpo como fuga da morte, até porque morrer é necessário. Afinal
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de contas, “se fosse possível que o homem não pudesse sofrer outras mudanças
senão as que podem explicar-se só pela sua natureza de homem, seguir-se-ia
que não poderia perecer, mas que existiria sempre necessariamente” [E, IV,
Prop. IV, dem.] – ([1], p. 229), e isso ninguém teria dificuldade de admitir que é
absurdo.
Temos, pois, que o prefácio do De Emendatione refere-se, em dois
registros, a um possível risco de morte pelo desejo desmedido de bens
perecíveis. Em primeiro lugar, é verdade que a experiência ensina que se fica
exposto a um tal perigo quando se deseja desmedidamente, mas o fato é que a
experiência também mostra um sem-número de pessoas fazendo isso sem uma
conseqüência fatal. Isso nos leva a concluir que a principal preocupação do
autor no De Emendatione é evitar a automação 21 produzida por essa maneira de
desejar, independentemente do quanto alguém, de tal modo automatizado, possa
levar uma vida até mesmo longa. O problema em questão é que, assim, a mente
não estará nem fazendo uso de seu potencial nem de sua força, e portanto, o
que mais preocupa Espinosa, não estará sendo a causa de seu próprio desejo,
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22 A suma perfeição é conhecer a união que a mente possui com toda a Natureza
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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142 Moysés Floriano Machado-Filho
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Prado Jr. In: Descartes, Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Nova
Cultural, 1991.
[13] GUÉROULT, M. Spinoza I – Dieu. France: Aubier-Montaigne, 1997.
[14] LEVY, L. O Autômato Espiritual: a subjetividade moderna segundo a “Ética” de
Espinosa. Porto Alegre: L&PM, 1998.
[15] LOSANO, M.G. Histórias de Autômatos: da Grécia Clássica à Belle Époque.
Tradução de Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
[16] MUHANA, A. A Epopéia em Prosa Seiscentista. São Paulo: Editora da Unesp,
1997.
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