Você está na página 1de 22

CDD: 149.

A GÊNESE DOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS E


PASSIONAIS À BEATITUDE NO PRÓLOGO DO TRACTATUS
DE INTELLECTUS EMENDATIONE DE ESPINOSA.

MOYSÉS FLORIANO MACHADO-FILHO

Departamento de Filosofia/FFLCH
Universidade de São Paulo
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315
05508-900, São Paulo, SP

Resumo: Este artigo propõe-se a tratar dos obstáculos epistemológicos e passionais à beatitude
na abertura do Tractatus de Intellectus Emendatione de Espinosa, mostrando a conciliação entre os
discursos retórico e epistêmico na exposição do autor. Desse modo, procuramos demonstrar que
o filósofo seiscentista não produz uma cisão em sua obra com uma introdução meramente
retórica do problema, mas fornece, desde as primeiras linhas, a gênese matemática do desejo,
elaborando assim uma epistemologia.

Palavras-chave: medida; ordem; acaso; autômato; conhecimento; desejo.

Abstract: This article intends to deal with the epistemological and passives obstacles to the
beatitude in the opening of Spinoza's Tractatus de Intellectus Emendatione, showing the conciliation
between the rhetorical and epistemic discourses in the author's exposition. In order to do so, we
tried to demonstrate that the philosopher doesn't produce a rupture in his work by a merely
rhetorical introduction of the problem, but he supplies, from the introduction, the mathematical
genesis of desire, thus elaborating an epistemology.

Key-words: measure; order; hasard; knowledge; desire.

Nosso objetivo é examinar os obstáculos epistemológicos e passionais à


beatitude suprema, tal como apresentados no início do Tractatus de Intellectus
Emendatione e no Prefácio da Parte IV da Ethica. O núcleo dessas considerações
é o § 7 do prólogo do De Emendatione, no qual Espinosa diz:

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
122 Moysés Floriano Machado-Filho

via-me, com efeito, correr um gravíssimo perigo (...); como um doente que sofre de uma
enfermidade letal, prevendo a morte certa se não empregar determinado remédio (...),
pois que nele está sua única esperança 1 [TIE, 7; grifo nosso] – ([7], p. 44).

Entretanto, em sua filosofia, Espinosa afirma que “o homem livre em


nada pensa menos que na morte; e a sua sabedoria não é uma meditação da
morte, mas da vida” 2 [E, IV, Prop. 67] – (1, p. 264). É preciso, portanto,
entender que perigo gravíssimo é esse, já que o filósofo o compara com a
própria morte aqui no § 7 do De Emendatione.
Em primeiro lugar, devemos ter em conta o que é para o filósofo um
homem não livre, pois

quem nós vemos ser escravo de toda a espécie de superstições são sobretudo os que
desejam sem moderação os bens incertos [da fortuna]. Todos eles, designadamente
quando correm perigo e não conseguem por si próprios salvar-se, imploram o
auxílio divino com promessas e lágrimas de mulher, dizem que a razão é cega
porque não pode indicar-lhes um caminho seguro em direção às coisas vãs que
eles desejam, ou que é inútil a sabedoria humana; em contrapartida, os devaneios
da imaginação, os sonhos e as extravagâncias infantis, parecem-lhes respostas
divinas 3 [Tratado Teológico-Político, Prefácio; grifo e inciso nossos] – ([10], p.112).

Sem mudança de tom, embora o Tratado Teológico-Político lhe seja


posterior, o De Emendatione concentra-se, num primeiro momento, no
incessante e obstinado desejo de bens pelo homem –, os quais se resumem
basicamente em honras, riquezas e prazeres sensuais. É, sobretudo com
semelhante desejo de bens, no plural, que se mantém a mente ocupada, a ponto
de não conseguir pensar em outra coisa; e, por isso, tal desejo se transforma no
maior obstáculo à beatitude, porque nem mesmo às custas de um grande
esforço ela consegue afastar-se facilmente da via da glória, avareza, e lascívia,
para a qual descarrila o desejo. Apesar disso e por causa disso, não será noutro

1 Todas as notas referentes à obra são mencionadas no corpo do texto, mediante a

sigla TIE, seguindo a indicação convencional da numeração dos parágrafos instituída


por Hermann Bruder, Leipzig, 1843, (ESPINOSA [7], p. 44).
2 ESPINOSA [1], (Parte IV, p. 264).
3 ESPINOSA [10], (Prefácio, p. 112).

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
Obstáculos à Beatitude no “Tractatus de Intellectus Emendatione” 123

solo que se dará a Correção do Intelecto, pois, segundo Espinosa, não somente é
possível, porém, necessário refletir sobre esse mesmo desejo que desvia a
mente do conhecimento e, por conseguinte, da beatitude. De acordo com ele,

enquanto a mente se ocupava com esses pensamentos, afastava-se daqueles e


refletia seriamente no novo empreendimento, o que me servia de grande
consolo, pois percebia que aqueles males não eram de tal espécie que não
cedessem aos remédios. E embora no começo esses intervalos fossem raros e
durassem por muito pouco tempo, tornavam-se mais freqüentes e mais longos
depois que o verdadeiro bem mais e mais me ficou sendo conhecido [TIE, 11].

Todavia, o desejo de múltiplos bens, tomadas algumas precauções, pode


ser de muita utilidade, pois não se considera desnecessária toda e qualquer
espécie de bem material. Espinosa diz explicitamente que a aquisição de
dinheiro, o prazer e a glória se são buscados “como meios, terão então uma
medida e não prejudicarão de modo algum, até, pelo contrário, muito contribuirão para
o fim pelo qual são procurados” [TIE, 11; grifo nosso].
Isso posto, o pano de fundo de nossa intenção é mostrar que, malgrado
o aparente arrebatamento retórico com que conduz algumas das passagens do
proêmio, o autor refere-se menos ao perigo de morte física pelo desejo
desmedido de bens, do que a uma perturbação e a um enfraquecimento da
mente causados por este desejo desregrado. Assim, não obstante diga

tudo aquilo que o vulgar segue não só não traz nenhum remédio para a
conservação de nosso ser mas até o impede e freqüentemente 4 é causa de morte para
aqueles que o possuem e sempre causa de perecimento para os que são possuídos
por isso [TIE, 7],

sua reflexão antes diz respeito à vida na sua mais ampla acepção. Aliás, é
preciso dizer que a interpretação literal, e, sobretudo isolada, do § 7, sem o

4 É preciso observar que, se por um lado, Espinosa reserva espaço para o desejo de

bens perecíveis, aqui, por outro, realiza um jogo com os advérbios frequenter e semper para
evidenciar que se a posse de tais bens pode ser freqüentemente causa de morte para quem
os possui, é, por sua vez, sempre causa de morte para os que são por eles possuídos.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
124 Moysés Floriano Machado-Filho

devido cotejo com o que está escrito nos §§ 11 e 12, não apenas deturpa e torna
contraditório o pensamento do autor, como também cinde a obra em duas
partes: uma de cunho moral ou retórico (ou ambos, retórico-moral) e outra de
cunho epistemológico. Se, contudo, nos deixarmos conduzir apenas pelo que o
filósofo afirma em sua análise, poderemos perceber claramente se existe ou não
uma tal cisão.
O que o filósofo reconhece de pronto é o apelo poderoso que possui o
desejo de bens perecíveis, e também não deixa de reconhecer simultaneamente
que se aplicar totalmente ao novo projeto, qual seja, a Correção do Intelecto, a
princípio, era uma mera hipótese. Ele mesmo diz: “entretanto, mediante uma
assídua meditação, cheguei a verificar que então, se pudesse deliberar
profundamente, deixaria males certos por um bem certo” [TIE, 7; grifo nosso].
É por causa disso que Alexandre Koyré 5 diz que Espinosa faz do prefácio um
lugar comum da predicação moral de inspiração estoicista. Mas para corroborar
nossa hipótese de que não é nem com uma moral do tipo estóica nem com a
morte física que nosso autor está preocupado, queremos ressaltar que o próprio
filósofo adverte:

entretanto, não é sem razão que usei destes termos: se pudesse seriamente deliberar.
Porque, ainda que percebesse mentalmente essas coisas com bastante clareza,
nem por isso podia desfazer-me de toda avareza, concupiscência e glória [TIE, 10;
grifo nosso].

Ora, todos sabemos, por um lado, lendo o § 10 do De Emendatione, que


ali não se encontram os indícios de uma moral estóica e que Espinosa, em sua
filosofia, é o primeiro a afirmar que

5 Aliás, segundo Koyré, nada mais espinosista, pois a lógica para Espinosa não seria

mais do que uma introdução à moral, e o método não teria por finalidade “dirigir
nossos pensamentos para encontrar a verdade das ciências”, mas dirigir nossos
pensamentos para realizar nossa perfeição e encontrar a beatitude. Vê-se, assim, negado
aí o próprio subtítulo do De Intellectus Emendatione, qual seja, “e do caminho pelo qual
melhor se dirige ao verdadeiro conhecimento das coisas” (ESPINOSA [5], p. 97).

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
Obstáculos à Beatitude no “Tractatus de Intellectus Emendatione” 125

os estóicos julgaram que elas [as paixões ou afetos] dependiam em absoluto de


nossa vontade e que nós podemos imperar absolutamente sobre elas. Todavia,
perante os protestos da experiência, e não pelos seus princípios, foram obrigados
a confessar que se requer uma prática e um estudo bem grandes para as entravar
e governar [E, V, Prefácio; inciso nosso] – (E [1], p. 277).

Sabemos, por outro lado, como já foi dito, que enquanto a mente se ocupa com
estas reflexões, ou seja, quando começa a avaliar o quadro em que se encontra,
isto é, quando começa a calcular, situa-se em seu próprio elemento e vai, pouco a
pouco, conseguindo afastar os pensamentos de desejo desmedido de bens
perecíveis. E a despeito de, no começo, os resultados alcançados, ou melhor
dizendo, os intervalos obtidos serem raros e durarem curto espaço de tempo,
depois, com o exercício da reflexão constante, passam a ser bem mais
freqüentes e duradouros. Numa palavra, vemos que começa a se esboçar,
pouco a pouco, uma nova ordem e uma nova causalidade do desejo, pois, conforme
escreve Chauí, “a natura do intelecto o faz ser causa ou força inata cujo primeiro
e exemplar efeito, ou antes, cuja actio e cujo usus deixam-se conhecer melhor no
exercício da matemática” 6 [grifo nosso]. Por isso, nossa argumentação pretende
demonstrar que o prefácio elabora a gênese do desejo por meio do cálculo
matemático, isto é, por meio da matematização do modo como nos ligamos aos
bens perecíveis. Não por acaso, Espinosa pondera e avalia cada um dos bens
aos quais nos ligamos por amor, diagnosticando ali uma medida, ou seja, o
critério de que nos valemos na hora de estabelecermos vínculos com as
riquezas, as honras e os prazeres sensuais – os bens perecíveis, não é outro
senão o aumento da alegria e diminuição da tristeza. O filósofo mesmo diz que
“quanto mais qualquer delas se possuir, mais aumentará a alegria e
conseqüentemente sempre mais somos incitados a aumentá-las” [TIE, 5].
No entanto, vamos, por um instante, nos afastar do percurso da salvação
da mente com o remédio aplicado – a assídua meditação –, apenas por um
breve momento, para testar aquela nossa hipótese de que o prefácio do Tractatus
não se refere primordialmente ao perigo de morte física, e ocuparmo-nos do caso

6 CHAUI [11], (p. 666).

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
126 Moysés Floriano Machado-Filho

em que não é possível salvação, ou seja, a maioria das vezes, pelo que o texto
também deixa entrever, quando diz que “se alguém nunca pensou nos erros dos
sentidos, seja pela experiência, seja de outro modo qualquer, jamais duvidará se
o sol é maior ou menor do que aparece...”. Mas se se disser que isso é apenas
uma ponderação trivial, o texto prossegue dizendo que “por isso, os rústicos se
admiram freqüentemente ao ouvir que o sol é maior que o globo terrestre.” [TIE,
78; grifo nosso]. Ora, o termo rústicos refere-se a pessoas que existem e levam a
vida normalmente sem o desenvolvimento pleno da capacidade intelectual. E,
além disso, Espinosa faz referência a outros que não são exatamente tão
rústicos e que parecem também levar uma vida quase normal, embora nos
aconselhe a abandoná-los a própria sorte, porque “se negam, se concedem ou
se opõem, não sabem que negam, concedem ou opõem, pelo que devem ser
tidos como autômatos, que carecem por completo de espírito” [TIE, 48], e
desde logo nos adverte, inclusive, quanto à perda de tempo que representa a
tentativa de discutir com eles, porque

de fato, nem a si mesmos sentem; se afirmam algo ou duvidam, não sabem que
duvidam ou afirmam: dizem que nada sabem, e mesmo isso, ou seja, que nada
sabem, dizem que ignoram; nem o dizem absolutamente, pois temem confessar
que existem enquanto nada sabem, de modo que afinal devem calar-se para não
supor alguma coisa que cheire a verdade [TIE, 47]. Por último conclui que “não
se há de falar com eles sobre as ciências” [TIE, 48].

Todavia, como a interpretação literal e isolada da introdução, e


sobretudo do § 7, é que produz a idéia de que há uma cisão no texto, então é
preciso investigar se o autor está dizendo mesmo que quando não há a salvação
do intelecto, segue-se morte física ou se é possível uma existência sem a Correção
do Intelecto, isto é, sem o desenvolvimento apenas da intuição intelectual, que é de
fato, senão o único, o principal objetivo da obra.
A razão de nossa hipótese prende-se inclusive à passagem em que nosso
autor não se vale senão de uma analogia para ilustrar um fato de uma
importância capital para o prosseguimento de sua exposição; diz ele:

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
Obstáculos à Beatitude no “Tractatus de Intellectus Emendatione” 127

via-me, com efeito, correr um gravíssimo perigo e obrigar-me a buscar com todas
as forças um remédio, embora incerto; como um doente que sofre de uma
enfermidade letal, prevendo a morte certa se não empregar determinado
remédio, sente-se na contingência de procurá-lo, ainda que incerto, com todas as
forças, pois que nele está sua única esperança. [TIE, 7; grifo nosso].

Ora, Espinosa dominava os recursos da demonstração matemática e


conhecia bem o valor de cada palavra; é, pois, reveladora a opção por uma
analogia em uma hora decisiva, como a de provar, de modo contundente, a
necessidade de renunciar a um antigo modo de pensar em favor de outro novo,
se o que estivesse mesmo em perigo fosse de fato a própria vida. Em primeiro
lugar, uma analogia não tem a força de uma demonstração, mas se ele ainda
assim a preferiu, não se deve supor que foi gratuitamente. Em segundo, se sua
opção foi por esse recurso, podemos pensar que ele pretende dizer também que
a comparação com um enfermo deva ser encarada como tal, ou seja, como
recurso ilustrativo, assim como recomendam os tratados de retórica
seiscentistas.
É certo, porém, que a utilização de figuras de linguagem não significa
que ele acredite menos no que está querendo afirmar ou que precise
desenvolver estratégias tais para a exposição de seu pensamento, as quais
ocultem eventuais falhas, mas, pelo contrário, está sim mais de acordo com o
seu objetivo de “formar uma tal sociedade (societatem – acusativo) como é
desejável para que o maior número chegue a isso do modo mais fácil e seguro”
[TIE, 14]. Porque, ainda que acusado de otimismo 7 , Espinosa não alimenta
ilusões quanto à plausibilidade da concreção de seu intento. Afinal, ele mesmo

7 Adiante, no § 17, na terceira regra de vida, Espinosa escreverá que essa tal

sociedade (societatem) deve imitar “os costumes da cidade (civitatis – genitivo) que não se
opõem a nosso fim” [TIE, 17], (ESPINOSA [7], p.46). Porém, muitas traduções
unificam os dois termos, quando o autor, na verdade, teve o cuidado de tratá-los
distintamente, para produzir como resultado a idéia de um grupo de estudos (uma
sociedade de pesquisa) reunido na esfera de uma cidade (uma comunidade de cidadãos).
Ressalvas sejam feitas quanto a esse aspecto às traduções de Atilano Dominguez e de
Bernard Rousset (ESPINOSA [6] e [8])

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
128 Moysés Floriano Machado-Filho

o diz, é preciso estabelecer “princípios fundamentais tais que o maior número


se esforce, não por viver sabiamente (isso é impossível), mas se deixe dirigir pelas
paixões de que o Estado tira mais benefício” 8 [TP, Cap. X, § 6; grifo nosso] –
([9], p. 361).
O filósofo utiliza retórica, é verdade, mas para aplicar desde o início seu
próprio preceito, aquele mencionado lá na primeira regra de vida:

falar ao alcance do vulgar e fazer tudo o que não traz nenhum impedimento para
atingirmos nosso escopo. Com efeito, disso podemos tirar não pequeno
proveito, contanto que nos adaptemos, na medida do possível, à sua capacidade
[TIE, 17].

Agora, é preciso esclarecer, Espinosa se vale tecnicamente dos recursos


retóricos, de modo que as figuras de linguagem não produzam um ornamento
que chegue ao ponto de encobrir o raciocínio. Aliás, essa era uma preocupação
constante dos filósofos seiscentistas, tanto que o próprio Descartes, ao
desenvolver uma crítica sobre este ponto, diz que a retórica serve mais “para
falar, sem julgamento, daquelas [coisas] que se ignoram, do que para aprende-
las” 9 . É preciso acrescentar ainda que o prólogo faz a junção de dois discursos
retóricos: o deliberativo, que propõe uma nova maneira de agir, que se demonstra
ser a melhor, a partir, inicialmente, da exposição de exempla – como quando o
autor diz “resolvi enfim indagar...” –; e o descritivo, o qual apresenta uma
distinção que opõe a sucessividade narrativa à instantaneidade descritiva. Este
último faz “a descrição de coisas que representam pessoas, portanto, visa a
definir seus caracteres pelos efeitos que nelas causam os afetos” 10 (Muhana

8 Ora, se o filósofo não espera que na cidade só existam sábios, não há razão para

acusá-lo de otimismo quanto a esse ponto, pois ele mesmo deixa claro que uma tal idéia
é algo absolutamente impossível. ESPINOSA [9], (p. 361). Além disso, é possível notar
que tanto no plano político, quanto no plano mental, Espinosa se vale do mesmo
critério de garantia de sobrevivência: o da utilidade, ou seja, o que é mais útil para a
conservação e a felicidade é a regra a ser observada.
9 DESCARTES [12], (p. 37).
10 MUHANA [16], (p. 291, 303 e 313).

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
Obstáculos à Beatitude no “Tractatus de Intellectus Emendatione” 129

[16]). A descrição das riquezas produzindo avaros, das honras produzindo


gloriosos e da libido produzindo libidinosos, quando estes são possuídos pelos
bens que desejam, exemplifica o uso deste segundo tipo de discurso. “O
começo e o fim de uma descrição concentram-se naquela apresentação, sem
nada justificar que se inicie ou se encerre por esse ou aquele lugar, afeto ou
personagem: à imitação duma pintura, que não tem lugar de chegada nem de
partida” (MUHANA [1], p. 291; grifo nosso). Tal hipótese ganha relevo ainda
maior na medida em que Espinosa lança mão exatamente do mesmo recurso no
Prolegômeno aos Princípios da Filosofia de Descartes, ao dizer ali que

nós teríamos disposto tudo isso em ordem matemática, se não tivéssemos


pensado que a inevitável prolixidade dessa exposição impediria que ela fosse
devidamente percebida de um só olhar pelo intelecto assim como em uma
pintura 11 [grifo nosso].

Sendo assim, por qualquer das três perspectivas em que se veja o


problema, isto é, tanto da perspectiva da avareza, quanto da glória ou da
lascívia, sempre se verá a mesma figura em todos os lugares: a do desejo
desmedido, do qual Espinosa busca demonstrar a gênese. Essa ubiqüidade,
escreve Chaui,

é obtida pela matematização rigorosa do olhar, de sorte que a perspectiva


holandesa [com o emprego das teorias pictóricas da perspectiva e da projeção
(...), acrescidas do lugar que as lentes nelas passam a ocupar] percebe cada coisa
em seu lugar e todas as coisas em seus lugares, deixando que o olho passeie por
elas e as encontre ali onde estão, sem distribuí-las em gradações de dignidade e
em hierarquias convencionadas 12 ([11], p. 633; grifo e inciso nossos).

Além disso, ele não recorre a tais discursos gratuitamente, ou seja, não é
mera retórica no sentido pejorativo do termo. O primeiro discurso, o
deliberativo, revela claramente sua disposição a buscar algo que constituísse o
bem verdadeiro, susceptível de se comunicar, e o segundo, o descritivo, capta

11 ESPINOSA [4], (p. 238).


12 CHAUI [11], (p. 633).

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
130 Moysés Floriano Machado-Filho

essencialmente os caracteres e paixões como num instantâneo, retirando da cena a


ação. A agudeza do engenho espinosana é nitidamente observada nesta escolha,
pois numa descrição deste tipo está ausente a ação das personagens, e é isto
exatamente o que ele precisa para revelar como se encontra aquela mente
distraída e dominada pela compulsão do desejo, ou seja, nessa situação a mente
se encontra à mercê dos objetos que deseja. E, nesse caso, a mente, sob a égide
da paixão, não age, apenas sofre a ação do exterior. Ademais, na medida em que
Espinosa pretende falar a respeito de coisas que afetam o ânimo, da mesma
maneira, tem em mente a utilização dos recursos adequados para a abordagem
do problema sem, entretanto, fazer com isso nenhum tipo de concessão a um
discurso meramente ornamental. E, sobretudo, sem lograr o leitor, isto é, não
elabora uma introdução para depois de fisgá-lo, mudar de assunto.
Assim, mesmo tendo em conta que o recurso de que se vale na análise
do problema no § 7 é uma comparação, ele pretende firmemente ser levado a
sério, daí que o exemplo de um enfermo chega às últimas conseqüências, com o
quadro de uma doença gravíssima e mortal. Mas o que está em jogo, de fato, é
o modo pelo qual se deseja alguma coisa e não, é claro, a própria coisa. Porque,
ou isto está sob nosso poder alterar, ou não faria sentido a afirmação do § 9, a
qual, conforme Rousset afirma, é “a questão que conduz o De Emendatione (...) e
que vem já no início do Primeiro Diálogo do Breve Tratado” 13 , qual seja, “toda
felicidade ou infelicidade consiste apenas na qualidade do objeto ao qual
aderimos pelo amor” [TIE, 9; grifo nosso]. Afinal, vejamos, se a felicidade
dependesse das coisas exteriores, ela seria impossível, pois, nesse caso,
estaríamos diante de duas coisas incomensuráveis 14 : nossa essência e a essência
das coisas exteriores. Conseqüentemente, a felicidade seria inalcançável, porque

ESPINOSA [6], (p. 18).


13

Segundo Guéroult, “a incomensurabilidade do pensamento e da extensão


14

excluem entre a idéia e o corpo não somente todo laço de causalidade, mas toda
relação, se vê desde agora que a idéia, mesmo que exista necessariamente concebida
conforme a um ideado, é tal, não em virtude de uma ação que esse último exerceria
sobre ela, mas por sua natureza intrínseca” (GUÉROULT [13], p. 100).

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
Obstáculos à Beatitude no “Tractatus de Intellectus Emendatione” 131

distante de nosso poder e sem qualquer chance de exercermos uma atividade


mínima, no sentido rigoroso que Espinosa confere ao termo, ou seja, se a
felicidade dependesse dos objetos exteriores, dos quais apenas sofremos a ação
externa, estaríamos inevitavelmente condenados a não exercer jamais uma ação,
na medida em que nosso poder sobre as coisas exteriores é definitivamente
precário e incerto. Isto é, não é necessário, por uma lei matemática, que se
consiga possuir alguma coisa, qualquer que seja, fora de nós, de modo certo e
definitivo. Isso esclarece o que Espinosa quer dizer quando indagava se

existia algo que fosse o bem verdadeiro e capaz de comunicar-se, e pelo qual
unicamente, rejeitado tudo o mais, o ânimo fosse afetado; mais ainda, se existia
algo que, achado e adquirido, me desse para sempre o gozo de uma alegria contínua e
suprema [TIE, 1].

O objetivo da obra, portanto, é descobrir o bem que traz alegria para sempre,
ou seja, a felicidade eterna. Esse bem tem suas peculiaridades, deve ser um bem
verdadeiro e capaz de comunicar-se. Sendo assim, para que produza alegria para
sempre, deve ser um bem eterno, o que, para o filósofo, é o mesmo que ser
necessário e, por conseguinte, distinto de uma coisa singular mutável, isto é,
deve ser uma coisa “concebida por sua essência tão somente (...), a saber, se a
coisa é em si, ou, como vulgarmente se diz, causa de si mesma, deverá ser
inteligida só por sua essência” [TIE, 92; grifo nosso]. Desse modo, podemos
dizer que um bem verdadeiro e eterno é aquele no qual a existência tem
conexão necessária com a essência, conforme legitimamente se deduz do § 100
do De Emendatione:

realmente, seria impossível para a fraqueza humana alcançar a série das coisas
singulares e mutáveis, tanto devido à sua quantidade, que ultrapassa todo o
número, como devido às infinitas circunstâncias numa e mesma coisa, das quais
cada uma pode ser a causa de que a coisa exista ou não exista, já que a existência
delas não tem conexão nenhuma com sua essência, ou (como já dissemos) não é
uma verdade eterna [TIE, 100].

Ora, se nos lembrarmos que o Tractatus nos indica a via pela qual a mente
melhor se dirige ao verdadeiro conhecimento das coisas, e que essa é a via da

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
132 Moysés Floriano Machado-Filho

reflexão, perceberemos que é esse mesmo cálculo, ou a própria matemática, que


nos leva a concluir que “o amor de uma coisa eterna e infinita” [TIE, 10], não
pode ser senão o amor para com um “ser que seja a causa de todas as coisas (...)
e que seja também a causa de todas as nossas idéias” [TIE, 99]. Porque é
evidente que “o conhecimento reflexivo da idéia do Ser perfeitíssimo será
melhor que o conhecimento reflexivo das outras idéias” [TIE, 38], na medida
em que será perfeitíssimo o conhecimento reflexivo que “mostre como a mente
deve ser dirigida pela norma da idéia existente do Ser perfeitíssimo” [TIE, 38].
Mas se isso é ainda obscuro no De Emendatione, a Ethica pode auxiliar a
compreensão do que foi dito, quando Espinosa escreve:

este amor para com Deus não pode ser contaminado por nenhuma afecção de
inveja nem de ciúme; mas é tanto mais alimentado quanto maior é o número de
homens que nós imaginamos unidos a Deus pelo mesmo vínculo de amor [E, V,
Prop. 20] – ([1], p. 289).

Agora, foi possível compreender o que é esse bem verdadeiro, necessário e


eterno, que pode produzir a alegria para sempre e, ao mesmo tempo,
compreender o que o autor quis dizer anteriormente com “capaz de comunicar-
se”. Mas para que isso fique ainda mais claro, é preciso também entender
porque surge o sofrimento com os bens perecíveis, ouçamos nosso filósofo:

as doenças do espírito e os infortúnios tiram sobretudo a sua origem do amor


excessivo para com uma coisa que está sujeita a muitas mudanças e de que nunca
podemos ser senhores. Com efeito, ninguém está inquieto ou ansioso por uma
coisa, a não ser que a ame, e as injúrias, as suspeitas, as inimizades, etc., não
provêm senão do amor para com as coisas de que ninguém pode ser
verdadeiramente senhor [E, V, Prop. 20, esc.] – ([1], p. 288)

Além disso, o que pensamos reforçar ainda aquela nossa hipótese é a


utilização pelo autor do verbo “distraho” para se referir ao desejo de bens
perecíveis, como está expresso nas últimas linhas dos §§ 3 e 4 e no início do § 5
do De Emendatione:

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
Obstáculos à Beatitude no “Tractatus de Intellectus Emendatione” 133

“Por elas [riquezas, honras e prazer] de tal modo se distrai a mente que mal pode
pensar em qualquer outro bem” [TIE, 3; inciso e grifo nossos]. “Quanto ao
prazer, o espírito agarra-se a ele como se descansasse em algo bom; e assim fica
em extremo impedido de pensar noutra coisa; mas da fruição do prazer segue-se
uma profunda tristeza que, se não suspende a mente, perturba-a, no entanto, e a
entorpece [portanto, enfraquece]. Com a busca de honras e riquezas, não pouco se
distrai também a mente, sobretudo, onde elas se buscam apenas por si mesmas,
pois se supõem então como o sumo bem” [TIE, 4; grifo e inciso nossos]; “muito
mais ainda se distrai a mente com as honras, que se supõem sempre como um
bem em si mesmas, como se fossem o fim último para o qual tudo converge”
[TIE, 5; grifo nosso].

O primeiro sentido do verbo “distraho” equivale a “puxar (atrair) para


diversas partes”, significado que descreve o quadro em que se encontra a mente
dirigida pelo desejo de múltiplos bens ou bens perecíveis, ou seja, enfraquecida
por tal distração. É preciso observar que Espinosa não diz que tal desejo é
causa imediata de destruição, mas sim que tal desejo é causa primeiramente de
distração da mente.
Ademais, notamos ser preciso existir um lapso de tempo entre distraho e
interitus, isto é, entre distração e destruição. E isso no texto é claramente
marcado, pois entre o § 3 e o §7, nos quais estão respectivamente distraho e
interitus, Espinosa utiliza, no § 4, hebeo, que significa enfraquecimento. Uma tal
etapa precisa ser preservada ou não é, de fato, efetivo o percurso mesmo
proposto nem tampouco os remédios prescritos pelo filósofo. Eis, pois, a razão
pela qual somos levados a pensar que Espinosa não está tratando, desde o
princípio, de morte física, mesmo quando diz que corria gravíssimo perigo se
não encontrasse um remédio para a cura do mal previsto. Antes de tudo, o
maior problema refere-se ao perigo de enfraquecimento da mente e, depois,
todo o resto é conseqüência disso. Tanto é assim, que o que o autor escolhe
para provar sua tese são exemplos:

existem, de fato, muitos exemplos dos que, por causa de suas riquezas, sofreram a
perseguição até a morte, e também daqueles que, para juntar tesouros, se
expuseram a tantos perigos que afinal pagaram com a vida o preço de sua tolice.
Nem menos numerosos são os exemplos dos que, para conseguir a honra ou defendê-
la, muitíssimo sofreram. Por último, há inúmeros exemplos dos que aceleraram a sua
morte pelo excesso de concupiscência [TIE, 8; grifo nosso].

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
134 Moysés Floriano Machado-Filho

Detidos sobre esta passagem, somos levados a concordar que é certo que
isso ocorre em muitas ocasiões, mas o texto deixa claro também, primeiro, que
são apenas exemplos, e, segundo, que, apesar de serem muitos, numerosos ou até
incontáveis, não recobrem todos os casos possíveis, pois esse é exatamente o
ponto fraco da experiência. Logo, podemos concluir que o autor deve estar
referindo-se apenas ao enfraquecimento da mente, como havíamos suposto
inicialmente. A conseqüência, portanto, da não salvação, num primeiro
momento, deve ser algo oposto ao autômato espiritual 15 – situação na qual a
mente age segundo leis certas e, sobretudo, sabe porque age, pois é causa de suas
idéias. Enquanto, de outro modo, refletindo pouco ou quase nada a respeito do
que está aderindo por amor, a mente se desvia do “caminho pelo qual melhor
se dirige ao verdadeiro conhecimento das coisas” 16 [grifo nosso], e deriva pela via na
qual deseja cada vez mais desmedidamente aquilo que a tornará, de modo
inevitável, enfraquecida e infeliz, porque o desejo de posse de bens perecíveis
não apenas é contínuo, mas impossível de ser satisfeito de modo pleno, pois
aumenta sempre e cada vez mais.
Contudo, é preciso reconhecer que antes desse problema surgir no § 7, o
próprio filósofo admite ver, desde o § 2, “as comodidades que se adquirem pela
honra e pelas riquezas” [TIE, 2; grifo nosso], porém, é sobretudo necessário
perceber que, mais tarde, ao tratar delas da maneira como precisam ser evitadas,
ou seja, ao serem buscadas como bens em si mesmos, refere-se às mesmas em
termos que revelam uma diferença profundamente significativa: “não podia
contudo desfazer-me de toda a avareza, lascívia e glória” [TIE, 10; grifo nosso].
Ora, no § 3 do De Emendatione, Espinosa utiliza “divitia” = riqueza,
“honor” = honra e “libido” = desejo sexual, enquanto ainda não os havia

15 Para Lia Levy, “a aplicação da metáfora do autômato para o caso da alma humana

começa a tomar forma a partir do momento em que o entendimento e a imaginação são


compreendidos como sendo submetidos a certas regras firmes e invariáveis, e que a
vontade, enquanto faculdade absolutamente indeterminada de afirmar e de negar, é
excluída como instância constitutiva do conhecimento, tanto divino, quanto humano”
(LEVY [14], p. 57; grifo nosso).
16 Subtítulo do De Intellectus Emendatione (ESPINOSA [7]).

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
Obstáculos à Beatitude no “Tractatus de Intellectus Emendatione” 135

comparado a uma doença mortal, como fará a seguir no § 7, ou seja, quando


buscados como bens em si mesmos. Após a comparação, para referir-se a esses
desejos nas suas formas levadas ao desregramento, no § 10, dirá: “avaritia” =
avareza, “gloria” = vaidade, e não se irá referir à glória como “ambitio”, pois,
embora, a

“ambição seja o desejo imoderado de glória”, porque este “é um desejo pelo qual
todas os afetos são alimentados e fortificados (...). Na verdade, sempre que o
homem é dominado por um desejo qualquer, é necessariamente dominado, ao
mesmo tempo, pela ambição. O melhor dentre os homens, diz Cícero, é aquele
que é mais atraído pela glória 17 [E, III, Def. e explic. 44 dos Afetos] – ([1], p. 220).

E Espinosa manterá “libido”, mesmo no § 10 do texto original, pois este possui


de fato duplo sentido: lascívia*, desejo ou amor da união sexual (* por isso,
vamos aqui optar por esse termo na tradução para marcar alguma diferença em
relação ao sentido positivo que “libido” pode possuir quando se refere ao amor
da união sexual).
Eis, portanto, que agora vemos glória substituir o lugar do desejo de honras,
lascívia substituir o lugar do desejo de prazer e avareza substituir o lugar do desejo
de riquezas. Tais substituições tiveram que ser feitas notadamente porque o
filósofo reserva um espaço para o desejo daqueles primeiros (honras, riquezas e
prazer), conquanto possuam uma medida, conforme já observamos. Entretanto,
para estabelecer uma distinção – conceito-chave no De Emendatione – entre o
desejo moderado de bens – que possui então medida porque é meio para atingir
um fim (a nossa conservação e o aumento da nossa alegria segundo o critério da
utilidade) –, e o desejo imoderado de bens – que considera os seus objetos como
bens em si mesmos – (e nesse caso se pode acabar possuído pelos bens que se
quer possuir), nosso autor teve o cuidado de utilizar nesse momento outros
termos que expressassem de maneira contundente essa espécie de delírio 18 .

17 ESPINOSA [1], Parte III, (p. 220)


18 Entretanto, nenhuma das traduções disponíveis observa rigorosamente tal
distinção e, provavelmente por razões estilísticas, alternam de modo aleatório vários
significados que cada um dos três termos pode possuir. Assim, supomos que para não

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
136 Moysés Floriano Machado-Filho

Na Ethica, o filósofo nos ensina que “a avareza é o desejo e o amor


imoderado de riquezas” [E, III, Def. 47 dos Afetos] – ([1], p. 220), a “libido é
também o desejo e o amor da união sexual, quer este desejo de relações sexuais
seja moderado ou não” [E, III, Def. e explic. 48 dos Afetos] – ([1], p. 220), e a
glória, apesar de ser “a alegria acompanhada da idéia de alguma ação nossa que
imaginamos que os outros louvam” [E, III, Def. 30 dos Afetos] – ([1], p. 218),
possui também uma acepção imaginativa, tal como acontece com a libido, pois
“pode acontecer facilmente que o glorioso seja orgulhoso e imagine que é
agradável para toda gente quando, na realidade, é insuportável” [E, III, Prop.
30, esc.; grifo nosso] – ([1], p. 193). Acrescente-se ainda que

o orgulhoso é necessariamente invejoso (...) e que odeia sobretudo os que mais


louvados são pelas suas virtudes; que o seu ódio não pode ser facilmente vencido
pelo amor ou pelo favor (...); que só se deleita com a presença daqueles que lhe
mostram mais complacência e que de estúpido o fazem doido [E, IV, Prop. 57,
esc.] – ([1], p. 257).

Eis, portanto, os motivos pelos quais decidimos destacar tais distinções


como aspectos fundamentais de nossa análise, porque a própria Ethica
referenda nossa interpretação e, a partir dela, o prefácio do De Emendatione
ganha além de maior inteligibilidade, um caráter demonstrativo.
Aliás, à medida que se leva em conta a concepção espinosana de natureza
e de tudo quanto nela existe – como está demonstrado na Ethica 19 –, não se
pode considerar qualquer coisa que seja como vã e fútil. Mas como a Ethica foi
escrita depois, é preciso verificar se no próprio Tractatus o autor refere-se a
alguma coisa como vã e fútil para sabermos se houve ou não uma mudança em
seu pensamento a esse respeito. Já na abertura do De Emendatione lê-se:

repetir a mesma palavra utilizada um momento antes, os tradutores adotam como


estratégia utilizar ao longo das suas traduções os significados que os dicionários
apresentam seqüencialmente.
19 “No mesmo sentido em que se diz que Deus é causa de si, deve dizer-se também

que é causa de todas as coisas” (ESPINOSA [2], p. 75).

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
Obstáculos à Beatitude no “Tractatus de Intellectus Emendatione” 137

desde que a experiência me ensinou ser vão e fútil tudo o que costuma acontecer na
vida cotidiana, e tendo eu visto que todas as coisas de que me arreceava ou que
temia não continham em si nada de bom nem de mau senão enquanto o ânimo se
deixava abalar por elas, resolvi, enfim, indagar se existia algo que fosse o bem
verdadeiro [TIE, 1; grifo nosso].

Primeiramente, Espinosa fala em “tudo que costuma acontecer na vida


cotidiana”, referindo-se assim a sucessão ao acaso, isto é, ao sabor da fortuna, dos
acontecimentos da vida comum como vãos e fúteis. Em seguida, afirma: “todas as
coisas de que me arreceava ou que temia não continham em si nada de bom nem
de mau”. Ora, com isso, Espinosa deixa claro que não pode estar considerando
as próprias coisas como vãs e fúteis, pois, se fosse isso, não poderia ter dito
delas o que acaba de dizer. Fossem vãs e fúteis as próprias coisas e elas seriam
necessariamente más, porque inúteis, para a mente e para o corpo, mas não é isso
que consta nesse texto e em nenhuma parte de suas obras.
Além disso, é preciso compreender tal passagem articulada ao que está
adiante escrito no núcleo do § 7: “tudo aquilo que o vulgus – o vulgar segue não
só não traz nenhum remédio para a conservação de nosso ser mas até o
impede” [TIE, 7; grifo nosso]. O que se torna ainda mais evidente ao
relacionarmos estas duas passagens é que antes se trata de dar início a uma
reflexão sobre a sucessão ao acaso dos acontecimentos da vida comum para
percebermos a que e como estamos ligados por amor, isto é, para adquirirmos
consciência reflexiva daquilo que mais desejamos. Se observarmos
rigorosamente o que está escrito no § 7, veremos que sequer se diz que o vulgar
deseja, mas sim que o vulgar segue, “quae vulgus sequitur, non tantum nullum
conferunt remedium ad nostrum esse conservandum, sed etiam id impediunt”.
Ou seja, o vulgar encontra-se submisso ao jugo implacável da fortuna e apenas
segue o curso dos acontecimentos ao acaso, permanecendo na ignorância tanto
em relação à causa quanto em relação à autonomia do desejo.
Depois das considerações a respeito da seqüência comum dos
acontecimentos no § 1, a primeira conclusão a que nosso autor chega, no § 3, é
a de que “ponderava, portanto, interiormente se não seria possível chegar ao novo
modo de vida, ou pelo menos à certeza a seu respeito, sem mudar a ordem comum

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
138 Moysés Floriano Machado-Filho

de minha existência, o que tentei muitas vezes, mas em vão” [TIE, 3; grifo
nosso]. Ora, sabemos que na Carta 37, a Johannes Bouwmeester, Espinosa
mesmo adverte que “para tudo isso se requer uma meditação assídua, disposição e
uma decisão firme; e para conseguir isto se exige, antes de tudo, estabelecer certo
modo e plano de vida e fixar um objetivo determinado” 20 . Ou seja, como é
imprescindível subtrair-se à seqüência ordinária e quase inexorável dos
acontecimentos, Espinosa prescreve os remédios para se evitar o perigo a que
estamos constantemente expostos.
Eis que a partir dessa primeira conclusão o filósofo começa então a
proceder ao exame do desejo, ao mesmo tempo em que constata que tal exame
já estabelece uma medida para este, pois “enquanto a mente se ocupava com
esses pensamentos, afastava-se daqueles [de desejo desmedido] e refletia
seriamente no novo empreendimento” [TIE, 11; inciso nosso], ou seja, é
preciso, no plano do intelecto, buscar, cada vez mais aquilo que contribui para a sua
conservação, pois a partir do momento em que a mente se ocupar com
semelhante busca, estará no âmbito de seu elemento e, com isso, já estará
simultaneamente de posse de uma medida, que lhe permitirá não ser enfraquecida
pelo desregramento quase inelutável do desejo de bens perecíveis, que, num
limite realmente extremo, depois de esgotada e enfraquecida, acabará mesmo
automatizada pela compulsão do desejo, mas ainda assim, por enquanto, não se
trata de perigo de morte física. Mesmo porque a salvação de que fala Espinosa
no De Emendatione é uma salvação intelectual, a qual envolve a liberdade e a
beatitude. Não se trata de uma salvação da alma, com referência a uma vida
eterna – porquanto, para Espinosa, isso é já um dado, ou seja, nossa mente é
eterna, segundo ele, “a mente humana não pode ser absolutamente destruída
juntamente com o corpo, mas alguma coisa dela permanece, que é eterna” [E,
V, Prop. 23] – ([1], p. 289). Mas não é também a salvação de que falam os
teólogos, pois não se trata de uma vida após a morte; nem se trata tampouco da
salvação do corpo como fuga da morte, até porque morrer é necessário. Afinal

20ESPINOSA [3], (p. 251).

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
Obstáculos à Beatitude no “Tractatus de Intellectus Emendatione” 139

de contas, “se fosse possível que o homem não pudesse sofrer outras mudanças
senão as que podem explicar-se só pela sua natureza de homem, seguir-se-ia
que não poderia perecer, mas que existiria sempre necessariamente” [E, IV,
Prop. IV, dem.] – ([1], p. 229), e isso ninguém teria dificuldade de admitir que é
absurdo.
Temos, pois, que o prefácio do De Emendatione refere-se, em dois
registros, a um possível risco de morte pelo desejo desmedido de bens
perecíveis. Em primeiro lugar, é verdade que a experiência ensina que se fica
exposto a um tal perigo quando se deseja desmedidamente, mas o fato é que a
experiência também mostra um sem-número de pessoas fazendo isso sem uma
conseqüência fatal. Isso nos leva a concluir que a principal preocupação do
autor no De Emendatione é evitar a automação 21 produzida por essa maneira de
desejar, independentemente do quanto alguém, de tal modo automatizado, possa
levar uma vida até mesmo longa. O problema em questão é que, assim, a mente
não estará nem fazendo uso de seu potencial nem de sua força, e portanto, o
que mais preocupa Espinosa, não estará sendo a causa de seu próprio desejo,

21 Uma acepção positiva específica que corresponde ao moderno conceito do termo

“autômato” é “construção mecânica, normalmente assemelhada a homem ou animal,


que movida por mecanismo oculto em seu interior, parece comportar-se como ser
vivo”. Essa definição moderna e científica é consagrada pela Enciclopédia de Diderot e
D’Alembert, para a qual o autômato é “máquina que traz em si o princípio de seu
próprio movimento”. O autômato espiritual é pensado nesses termos, embora
Espinosa utilize as duas possibilidades, isto é, os autômatos sem espírito, que não são a
causa nem possuem o princípio de seu próprio movimento. “O tema do assombro
provocado pela arte mecânica aflora de modo orgânico naquele que, provavelmente, é o
primeiro ensaio de reflexão filosófica sobre a natureza dos autômatos. Esse foi
publicado em 1589 por Bernardino Baldi (1553-1617), abade de Guastalla, natural de
Urbino, como prefácio à tradução do livro sobre autômatos de Herão de Alexandria,
sob o título de Discorso di chi traduce sopra lê machine semoventi [Discurso de quem traduz sobre
as máquinas semoventes]. A “recriação do intelecto” que delas [máquinas] emana é para
Baldi uma inversão de papéis entre homem e autômato, pois, “enquanto as estatuetas
movem-se por si mesmas”, vemos “os homens que as observam ficar tão imóveis
quanto por natureza deveriam ficar as estátuas do espetáculo” (LOSANO [15], (p. 13,
15, 62, 125 e ss.; grifo nosso).

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
140 Moysés Floriano Machado-Filho

encontrando-se determinada pela ordem comum, ou seja, ao sabor do acaso e da


fortuna que rege o vulgar cotidianamente. Dessa forma, a mente não pode nem
ser livre nem atingir sua perfeição 22 .
A correção do intelecto proposta, desde o Prefácio do De Emendatione, caso
fosse mera retórica, ou um simples elenco de regras morais, ou até mesmo
ambos, não passaria de uma ficção sem conteúdo, no sentido em que esse
conteúdo deve ser entendido nesse caso, ou seja, diante das paixões, a razão
não tem qualquer poder senão puder agir, e ação mental não é outra coisa senão
cálculo e meditação. Demonstrar para si mesma, matematicamente, o que é
melhor e mais útil para a própria felicidade e alegria, eis a única arma ou, se se
preferir, remédio, de que a mente dispõe para os afetos. Para além disso, não
existe mais nada, apenas imaginação. Ora, sabemos que a imaginação não tem
recursos diante da “avareza, a ambição [como glória desmedida] e a lascívia, que
são, de fato, espécies de delírio 23 , mesmo que não sejam enumeradas entre as
doenças” [E, IV, Prop. 44, esc.; inciso nosso] – ([1], p. 251), pois esses são, na
verdade, os seus produtos mais lapidares. Além disso, Espinosa afirma que
“não se pode imaginar nenhum outro remédio que dependa do nosso poder mais
excelente para os afetos do que aquele que consiste no verdadeiro conhecimento
deles, visto que a mente não tem outro poder que não seja o de pensar e de
formar idéias adequadas” [E, V, Prop. 4, esc.; grifo nosso] – ([1], p. 281). Desse
modo, temos que, desde o momento que a mente começa a se expressar, toda
uma outra norma simultaneamente se instaura, e nessa expressão, a partir da
ponderação e do cálculo a respeito do que é mais útil, se alicerça a nova ordem de
vida da qual fala Espinosa ao amigo Bowmeester, naquela carta antes
mencionada, quando se refere ao estabelecimento de um novo modo e plano de
vida mais conveniente a nossa conservação e nossa felicidade.

22 A suma perfeição é conhecer a união que a mente possui com toda a Natureza

(ESPINOSA [7], p. 45), conhecimento no qual também está a beatitude suprema.


23 Não por acaso, para Chaui, “os onze primeiros parágrafos da Emenda do

Intelecto deixam ver que seguem a perspectiva quinhentista e seiscentista do tratado de


medicina” (CHAUI [11], p. 664).

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
Obstáculos à Beatitude no “Tractatus de Intellectus Emendatione” 141

Eis, portanto, o motivo pelo qual afirmamos que o prólogo é já


epistemologia, pois nele se encontra, pela via analítica, a exposição matemática
da gênese do desejo, do qual depende nossa felicidade ou infelicidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] ESPINOSA. Ética (Partes I a V). Tradução e notas da Parte I de Joaquim de


Carvalho. In: Espinosa, Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril S/A,
1983, 3ª edição.
[2] __________. Éthique. Traduction par Charles Appuhn. Paris: Garnier, 1934.
[3] __________. Lettres. Présentation, traduction et notes par Charles Appuhn.
Paris: GF-Flammarion, 1966.
[4] __________. Principes de la Philosophie de Descartes. Traduction et notes par
Charles Appuhn. Paris: GF-Flammarion, 1964.
[5] __________. Traité de la Reforme de l’Entendement. Texte, traduction et notes
par A. Koyré. Paris: Vrin, 1994.
[6] __________. Traité de la Réforme de l’Entendement. Etablissement du texte,
traduction, introduction et commentaires par Bernard Rousset. Paris:
Vrin, 1992.
[7] __________. Tratado da Correção do Intelecto. Tradução e notas por Carlos
Lopes de Mattos. In: Espinosa, Coleção “Os Pensadores”. São Paulo:
Abril S/A, 1983, 3ª edição.
[8] __________. Tratado de la Reforma del Entendimiento. Introducción, traducción
y notas de Atilano Domínguez. Madrid: 1988.
[9] __________. Tratado Político. In: Espinosa, Coleção “Os Pensadores”.
Tradução de Manuel de Castro. São Paulo: Abril S/A, 1983, 3ª edição.
[10] __________. Tratado Teológico-Político. Tradução, introdução e notas por
Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1988.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.
142 Moysés Floriano Machado-Filho

[11] CHAUI, M. Nervura do Real. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[12] DESCARTES, R. Discurso do Método. Tradução de J. Guinsburg e Bento
Prado Jr. In: Descartes, Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Nova
Cultural, 1991.
[13] GUÉROULT, M. Spinoza I – Dieu. France: Aubier-Montaigne, 1997.
[14] LEVY, L. O Autômato Espiritual: a subjetividade moderna segundo a “Ética” de
Espinosa. Porto Alegre: L&PM, 1998.
[15] LOSANO, M.G. Histórias de Autômatos: da Grécia Clássica à Belle Époque.
Tradução de Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
[16] MUHANA, A. A Epopéia em Prosa Seiscentista. São Paulo: Editora da Unesp,
1997.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 121-142, jan.-jun. 2001.

Você também pode gostar