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AJ Moretti Junior; JE Reis. VIII CIH.

507 - 515

O CRISTIANISMO E A JUSTIFICAÇÃO DA GUERRA NA IDADE


MÉDIA
Doi: 10.4025/8cih.pphuem.4048

Augusto João Moretti Junior, UEM


Jaime Estevão dos Reis, UEM

Resumo
om a adoção do cristianismo como religião oficial do Império
Romano em 380, a Igreja cristã não pode mais defender uma teologia
completamente pacífica. Cada vez mais, os interesses do Estado se
entrelaçavam aos da Igreja. Desta forma, surgiu a necessidade dos cristãos
lutarem pelo Império e, consequentemente, justificarem religiosamente as
ações bélicas. No presente trabalho analisaremos a justificação e a
sacralização da guerra durante a Idade Média a partir da criação e do
desenvolvimento dos conceitos de guerra justa e guerra santa. Esses conceitos
originaram-se no cristianismo com pensadores como Santo Agostinho (354-
430) e Isidoro de Sevilha (560-636), que abandonaram a defesa de um
pacifismo e aceitaram uma guerra justa. Séculos depois, Bernardo de
Palavras Chave: Claraval (1090-1153) e Tomás de Aquino (1225-1274) contribuíram para a
Guerra Justa; Guerra fundamentação do conceito de guerra santa. Para o entendimento desse
Santa; Idade Média. pensamento que legitimou a ação bélica, realizaremos um diálogo entre a
historiografia e as fontes relativas ao assunto. Entre as fontes, além da Cidade
de Deus, de Agostinho e as Etimologias de Isidoro de Sevilha, destacamos o
Elogio da Nova Milícia Templária de Bernardo de Claraval. Dentre os principais
historiadores destacamos Francisco García Fitz, José de Mattos e Jean Flori.
Por meio da discussão bibliográfica e das fontes apresentadas, é possível
constatar uma adaptação do pensamento cristão às necessidades militares da
Idade Média. A Igreja colaborou para a criação de argumentos que
legitimaram a guerra, como algo justo e posteriormente santo, de forma que
essas atividades bélicas atuassem em defesa de seus interesses.
AJ Moretti Junior; JE Reis. VIII CIH. 507 - 515

Ouvistes que foi dito: olho por olho


Introdução e dente por dente. Eu, porém, vos
digo: não resistais ao homem mau;
Neste artigo buscamos analisar a antes, àquele que te fere na face
elaboração de uma “teoria da guerra” direita, ofereça-lhe também a
medieval fundamentada nos conceitos de esquerda (MATEUS, 5:38-39).
guerra santa e guerra justa. Entre as
principais fontes estudadas, destacamos a A ideia de retribuir a violência
Cidade de Deus, de Agostinho de Hipona romana com violência era descartada. O
e a Etimologias (2004) de Isidoro de pacifismo era, portanto, apresentado
Sevilha, além do Elogio da Nova Milícia como uma norma ou doutrina do
Templária (2005), de Bernardo de cristianismo primitivo dos dois primeiros
Claraval. séculos. A partir da interpretação dos
textos bíblicos, os Pais da Igreja traçaram
De acordo com García Fitz seu ideal para a igreja cristã primitiva.
(2003) as justificações ideológicas criadas
ao longo dos séculos pelos cristãos não Deste modo, os cristãos, pelo
devem ser vistas como um artifício de menos em sua maioria, permaneceram
engano, mas, sim, como uma visão da afastados dos exércitos romanos e
suposta realidade, como expressão consequentemente da “arte da guerra”,
consciente e falsificadora dos verdadeiros por dois principais motivos: primeiro, o
interesses. Porém, se é aceita pela referido pacifismo diante das agressões
sociedade, é porque pode se adaptar aos sofridas; segundo porque, ainda que
ideais coletivos e aos valores das escalas cidadãos romanos negavam-se a participar
sociais e morais ou às tradições presentes de um exército que considerava o próprio
em determinado período histórico. Assim, imperador como um deus.
o desenvolvimento de uma ideologia da Todavia, tal quadro começou a
guerra por parte do cristianismo se modificar-se a partir do momento que o
converte em um fator ativo e mobilizador, cristianismo passou a ser aceito pelas
deixando de ser uma “máscara autoridades e pela sociedade romana. Com
justificadora” para tornar-se um conjunto a conversão de Constantino em 312, a
de imagens e ideias coerentes com uma Igreja cristã iniciou uma nova etapa em sua
utilização para a guerra (GARCÍA FITZ, história. A mudança da Constituição
2003, p. 16). Vejamos, pois, o Imperial De Confessoribus qui mi litaverant
desenvolvimento da construção histórica modificou o juramento de fidelidade
dos conceitos de guerra justa e guerra santa e realizado pelos soldados, tornando-o
suas influências nas estruturas sociais e compatível com o culto de um deus único
políticas no Ocidente medieval, bem (MATTOS, 1964, p. 55).
como a legitimação – através desses
conceitos – do combate ao inimigo Com a adoção do cristianismo
cristão. como religião oficial do Império em 380,
os homens da Igreja não podiam mais
Uma justificação ideológica: do deixar de lado as questões militares, pois
cada vez mais os assuntos do Estado se
pacifismo cristão a uma guerra
entrelaçavam com os interesses da Igreja e
justa vice e versa. Assim, surgia a necessidade
dos cristãos lutarem pelo Império e, em
O pensamento cristão primitivo
consequência, a necessidade de uma
manifestava uma visão pacifista relativa à
justificação plausível para a ação bélica.
violência e à guerra. Tal ideologia advinha,
Afinal, Roma precisava manter suas
principalmente, das interpretações do
estruturas frente aos povos bárbaros e a
Novo Testamento, como nas passagens
Igreja a fé diante do paganismo germânico
do Evangelho de São Mateus:
(GARCÍA FITZ, 2003, p. 103).

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Iniciou-se, assim, um processo diferente acerca da guerra.


de justificação da guerra por parte do
O Velho Testamento é, em geral,
cristianismo. Seus interesses precisavam
o que possibilita maior margem de
ser defendidos. De acordo com Mattos
interpretação a favor de uma guerra
(1964), foi justamente a cristianização
dirigida por Deus:
gradual da população e do Estado romano
que proporcionou o surgimento de uma Quando Iahweh teu Deus te
teoria completa da guerra justa. Para este houver introduzido na terra a que
autor, era necessário o predomínio de uma vais a fim de possuí-la, e tiver
crença que alocasse quatro “fermentos” ao lançado fora de diante de ti muitas
Império Romano e que possibilitasse uma nações, a saber, os heteus, os
“revolução espiritual” aos homens da gergeseus, os amorreus, os
época. Portanto, era necessário: cananeus, os ferezeus, os heveus e
os jebuseus, sete nações mais
a) Que ensinasse a existência de um numerosas e mais poderosas do que
único Deus, comum a todos os tu; e quando Iahweh teu Deus
povos, cidades e raças; b) que entrega-las a ti, tu as derrotará e as
admitisse a fraternidade humana; sacrifarás como anátema. Não farás
baseada numa origem comum, e aliança com elas e não as tratará
numa comunidade última do com piedade
destino ultra-terreno; c) filosofia ou (DEUTERONÔMIO, 7:1-12).
crença que não se ativesse apenas a
Em geral, a ambiguidade ocorre
rituais exteriores, mas pesquisasse o
porquê dos atos humanos, e o
entre Novo e Velho Testamento. Os
julgasse de acordo com preceitos primeiros livros caracterizam um Deus
imutáveis, e uma permanente e mais belicoso e vingativo, enquanto que
estável escala de valores” no Novo Testamento cria-se a imagem de
(MATTOS, 1964, p. 49-50). um Deus de amor e paz. Porém, ainda que
de forma mais branda, no Novo
O cristianismo forneceu os Testamento também é possível encontrar
elementos para que o Estado deixasse de passagens que possibilitam uma
ser onipotente, e a guerra de constituir-se interpretação favorável à violência, desde
em um instrumento normal de política que a causa seja justa do ponto de vista
externa para tornar-se apenas, e somente cristão.
em certas condições, “um mal menor”.
Uma das mais conhecidas é a
Para compreender tal passagem em que Jesus expulsa os
“mudança”, é necessário entender o mercadores do Templo:
comportamento cristão de tal contexto,
bem como a complexa e contínua [...] Estando próxima a Páscoa dos
mutação das estruturas institucionais. judeus, Jesus subiu à Jerusalém. No
Assim, a partir de tais mudanças os Templo, encontrou os vendedores
teólogos buscaram novas justificações de bois, de ovelhas e de pombas e
para a prática da guerra na Idade Média. os cambistas sentados. Tendo feito
um chicote de cordas, expulsou
Tanto o início quanto o todos do Templo, com as ovelhas e
desenvolvimento de tal processo de com os bois; lançou ao chão o
justificação tornou-se possível devido à dinheiro dos cambistas e derrubou
ambiguidade apresentada pelas Sagradas as mesas [...] (JOÃO, 2: 13-15).
Escrituras. Conforme mostramos, Assim, há nos textos bíblicos
algumas passagens bíblicas pregam a ideia razões suficientes para suscitar diferentes
de pacifismo no pensamento teológico interpretações sobre a guerra. O primeiro
cristão. Destarte, outras são passíveis de grande teólogo cristão que procurou
interpretação e levam a uma concepção defender a necessidade da guerra,

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abandonando o total pacifismo defendido considerada como um mal menor,


por escritores como Eusébio de Cesaréia e inevitável e necessário, em um
Justino Martir, foi Santo Agostinho. mundo em que a paz completa não
Diante das novas situações impostas à podia ser alcançada nunca. Esta
Igreja Cristã, Santo Agostinho utilizou-se última convicção lhe obrigou a
reinterpretar a ética cristã da não
de seus conhecimentos acerca da filosofia violência à luz daquela realidade
antiga e das Sagradas Escrituras para inevitável. Os cristãos não podiam
fundamentar um conceito de guerra justa. prever que a paz era impossível na
Primeiramente, a guerra é vista terra e, por tanto, não tinham outra
por Santo Agostinho como um opção que aceitar a existência da
guerra e tomar parte nela para
instrumento em busca da Paz; este autor
combater o pecado, a maldade e a
entendia a guerra como uma forma de injustiça, ao menos sob certas
estabelecer a ordem na sociedade. Em sua condições. Desta forma, a guerra,
visão, todos procuram a paz, mesmo ao que originalmente é fruto do
fazer a guerra: pecado, se converte também em
ferramenta de Deus para lutar
As próprias guerras, portanto, são contra ele1 (GARCÍA FITZ, 2003,
conduzidas tendo em vista a paz p. 123-124).
[…] Donde se evidencia que a paz
é o fim desejado da guerra. Santo Agostinho encontra tal
Efetivamente, todo homem justificação na natureza humana e na
procura a paz, mesmo fazendo a vulnerabilidade do homem frente ao mal.
guerra; mas ninguém procura a Sendo o homem fruto do pecado original
guerra ao fazer a paz (SANTO e, portanto, imperfeito, a guerra passa a ser
AGOSTINHO, 2000, p. 1909).
algo consubstancial à sua própria natureza.
O ato de guerrear, outrora Assim, a guerra, fruto do pecado, torna-se
apresentado como um instrumento do a ferramenta para combater os vícios e
mal, passa a ser visto como uma estabelecer a ordem de volta à sociedade.
ferramenta para restabelecimento da paz A guerra, então, passa a ser um
na ordem social. Santo Agostinho busca “mal menor” para evitar que ocorra a
em sua filosofia uma justificação das consumação da injustiça. Um mal que se
causas da guerra e da impossibilidade de deve diminuir, observando a justiça para
uma sociedade que se estabeleça de forma com o inimigo e sempre com o objetivo
periférica a tal atividade. de estabelecer a paz. Logo, percebemos
De acordo com García Fitz: que mesmo aceitando a guerra, Santo
Agostinho delimita alguns critérios para
Sua experiência pessoal e sua que esta se torne justa. A guerra precisaria
sombria opinião sobre a natureza estar sempre em busca da justiça e da paz,
humana o levaram a aceitar que o ser sempre realizada por ordem de Deus;
pecado era consubstancial ao
sendo assim, devia ser declarada por uma
homem e que a guerra, que não era
se não sua consequência, devia ser autoridade que representasse o poder
divino. Por fim, Agostinho definira a guerra

realidad insoslayable. Los cristianos no podían


1 No original: “Su experiencia personal y su
obviar que la paz era imposible en la tierra y, por
sombría opinión sobre la naturaleza humana le
tanto, no tenían otra opción que aceptar la
llevaron a aceptar que el pecado era consustancial
existencia de la guerra y tomar parte en Ella para
al hombre y que la guerra, que no era sino su
combatir el pecado, la maldad y la injusticia, al
consecuencia, debía considerarse como un mal
menos bajo ciertas condiciones. De esta forma, la
menor, inevitable y necesario, en un mundo en el
guerra, que originalmente es fruto del pecado, se
que la paz completa no podría alcanzarse nunca.
convierte también en herramienta de Dios para
Esta última convicción le obligó a reinterpretar la
luchar contra El.” (GARCÍA FITZ, 2003, p. 123-
ética cristiana de la no violencia a la luz de aquella
124).

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justa como guerras que vingam injustiças, medievais: “guerra justa é aquela que se
quando um povo ou um Estado, a quem a realiza por prévio acordo, depois de uma
guerra deve ser feita, deixou de punir os série de feitos repetidos ou para expulsar
erros dos seus ou de restituir aquilo que foi ao invasor” 3 (SAN ISIDORO DE
saqueado em meio a essas injustiças SEVILLA, 2004, p. 1217).
(GARCÍA FITZ, 2003, p. 51). Segundo José Mattos, Isidoro de
Santo Agostinho inaugurava uma Sevilha declarava ser uma guerra justa
nova forma de pensamento dentro da aquela oriunda de uma razão legítima,
teologia cristã. O pacifismo deixa de ser fosse defensiva para repelir o invasor de
considerado em sua totalidade, passando seu território, fosse ofensiva desde que,
os cristãos a serem responsáveis por com esse ataque, visasse obter pelas armas
lutarem em certas guerras, quando um ressarcimento legítimo de um direito
declaradas justas. A instituição da guerra violado ou mesmo a reintegração de um
cristã começava a ganhar suas formas, patrimônio perdido (MATTOS, 1964, p.
passando por sua primeira transformação 67). Assim, a preocupação não ocorre com
ideológica, da defesa de um pacifismo a forma da guerra, defensiva ou ofensiva,
incondicional para a aceitação de uma mas sim com suas motivações. Com tal
guerra justa. teólogo, concluiu-se a primeira crise de
Entretanto, é válido lembrar que consciência cristã em relação ao ato da
se nesse primeiro momento a guerra ganha guerra.
uma justificação, ela continua Desta forma, Isidoro de Sevilha
caracterizada como algo mal; ainda que e Agostinho de Hipona consolidam a
seja um mal menor em busca de um bem primeira estrutura ideológica da
maior. Aqueles que cometessem o justificação militar cristã na Idade Média.
homicídio, apesar de estarem justificados, No entanto, entre os séculos VIII e XIII,
ainda estavam sujeitos às penitências pelo não há reflexão entre os teóricos
derramamento de sangue dos inimigos. medievais acerca da justificação da guerra,
Tal ideia se inverterá posteriormente com como fizeram Santo Agostinho e Isidoro
a consolidação de um pensamento de de Sevilha nos séculos anteriores. De
guerra santa 2 (DEMURGER, 2007, p. 41). acordo com José Mattos, tal silêncio
doutrinário pode ter quatro explicações
Todavia, antes de tal
consolidação, o conceito de guerra justa principais:
havia de passar por mais algumas a) À própria multiplicidade das
alterações e principalmente guerras, ao esmiuçamento da
complementações por parte da Igreja soberania, e aos problemas
Cristã e seus pensadores. Isidoro, bispo de internacionais que dele defluíam; b)
Sevilha, em sua obra Etimologias, ao fato de que os textos já
prosseguiu com o processo de justificação existentes pareciam bastar para
da guerra por parte dos cristãos e ficou nortear a conduta política dos
famoso por sua máxima repetida e usada povos; c) a um empobrecimento
intelectual dos filósofos cristãos,
posteriormente por muitos pensadores
nos séculos VII ao XII; d) à

2 teólogo, Deus não teria excluído o uso da força


Jean Flori possuí uma visão diferente acerca da armada, assim, os que combatiam sob as ordens
atribuição de uma doutrina justa por Santo diretas de Deus nada já que estariam cumprindo a
Agostinho. Para o autor, Agostinho de Hipona, obra de Deus. (FLORI, 2013, p. 43).
não teria formulado o conceito de guerra justa que
3
subsequentemente teria evoluído para a guerra No original: “Guerra justa es la que se realiza
santa, mas segundo o autor, o processo teria por previo acuerdo, después de una serie de
ocorrido de forma invertida. Pois, teria hechos repetidos o para expulsar al invasor”. San
argumentado que uma guerra pode ser santa Isidoro de Sevilla. Etimologia. Madrid:
quando ordenada e desejada por Deus. Para o Biblioteca de Autores Cristianos, 2004, p. 1217.

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presença incomoda do mundo confluência de interesses entre a dinastia


islâmico, a ameaçar a Cristandade carolíngia e o papado inicia-se com o
como um “movimento de pinças”, reinado de Pepino, o Breve. Esse monarca
dos Pirineus aos muros de Nicéia precisava que a Igreja legitimasse a nova
(MATTOS, 1964, p. 72). dinastia em função do golpe de Estado
Todavia, obviamente, a Igreja que havia dado em 751, depondo
passa por um importante processo de Childerico III, o último rei merovíngio.
transformação nos séculos posteriores ao Por outro lado, o papado necessitava de
século VI e anteriores ao século XI. Esse apoio militar para fazer frente aos
período de cinco séculos foi fundamental lombardos que ameaçavam suas posses na
para a formação do que posteriormente Itália. Com a proclamação de Carlos
ficaria conhecido como guerra santa. Magno, no ano de 800, como Imperador
com o apoio da Igreja e,
A formação do conceito de guerra consequentemente, a legitimação vinda
santa desse ato, os carolíngios se comprometiam
a lutar contra os “ímpios” em defesa da
Com a cristianização dos povos Igreja. Uma vez mais a afirmação de um
bárbaros, a cultura cristã e a germânica se império tornava-se estritamente
influenciaram mutuamente. Tal fato relacionada à expansão da Igreja Cristã.
mostra-se importante para o Tal associação no trânsito dos séculos
desenvolvimento da ideologia de guerra na VIII e IX estimulou o processo de
Idade Média, pois em mais um processo santificação da guerra (GARCÍA FITZ,
de adaptação institucional, a Igreja acabou 2003, p. 136-137).
por incorporar os valores guerreiros Essa santificação foi essencial
germânicos à sua forma de pensar a para a justificação da guerra na Idade
sociedade. Média. Os primeiros passos rumo à
Francisco García Fitz chama esse sacralização da guerra deram-se com as
processo de uma “mão de via dupla”, pois chamadas segundas invasões, nos séculos
assim como a Igreja cristianizou os povos IX e X. A Igreja viu-se pressionada por
bárbaros, em contrapartida os germanos todos os lados, a guerra se converteu em
“barbarizaram” a Igreja, submetendo-a a uma necessidade. Criou-se a ideia de que a
um processo de militarização. Tal fato morte em combate poderia ser um
teria ocorrido, porque, para tais povos, caminho para a salvação eterna, passando
religião e ética eram tratadas de forma a guerra a ser considerada como um ato
separada. Conceberam o cristianismo que conferia bens espirituais aos
como uma crença que poderiam levá-los combatentes.
ao êxito militar, liderados por um De suma importância para esse
verdadeiro deus da guerra. Assim, a Igreja processo de santificação da guerra foi a
passou a influenciar os ritos militares dos declaração do Papa Leão IV (847-855) ao
povos chamados “bárbaros”. Isso ocorre afirmar a salvação de todos os cristãos que
com a sacralização dos contingentes lutassem a guerra contra os sarracenos no
armados, das armas e dos ritos Mar Mediterrâneo. O primeiro e
pronunciados antes das batalhas – a fundamental passo foi dado. Morrer em
pedido de proteção – e após as batalhas – batalha lutando contra os infiéis se
como forma de agradecimento (GARCÍA convertia em uma forma de salvação e o
FITZ, 2003, p. 126). homicídio em uma fórmula de redenção
Tal união entre “poder público” dos pecados (GARCÍA FITZ, 2003, p.
e Igreja se tornaria mais estreita no 141-143).
Império Carolíngio, especialmente Notamos, então, que desde o
durante o reinado de Carlos Magno. A processo de justificação da guerra por

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Agostinho de Hipona à afirmação de Leão (NICHOLSON, 2006, p. 32-34).


IV acerca da salvação dos homens houve
Essa reivindicação se encaixa,
mudança no pensamento cristão. O que
portanto, na definição de Isidoro de
era passível de penitência tornou-se
Sevilha que defendia a guerra justa como
motivo de salvação. E a guerra, além de
motivada por uma razão legítima, desde
justa, passou a ser considerada santa. No
que a ofensiva visasse obter, pelas armas,
século XI, inicia-se um processo de
o ressarcimento de um direito legítimo
consolidação dessa nova forma de pensar
violado, ou mesmo a reintegração de um
a guerra cristã. Em fins do século XI a
patrimônio perdido. A tomada de
Igreja lançou mão das ideias de Santo
Antioquia pelos cruzados permitiu que os
Agostinho e Isidoro de Sevilha referentes
soldados avançassem sobre Jerusalém,
à guerra para reclamar um território que
aonde chegaram em 1099. Em 14 de julho
julgava seu por direito.
desse ano, os cruzados tomam a cidade, e
No ano de 1095, o papa Urbano os muçulmanos rendem-se
II, ultrapassando todos os limites individualmente. Entretanto, poucas
estabelecidos anteriormente às funções da rendições foram aceitas e foi sob o sangue
Igreja, declara guerra aos muçulmanos na muçulmano que subiu a bandeira vitoriosa
Terra Santa. Utilizando-se do poder dos Cruzados (McEVEDY, 2007, p. 48).
adquirido pela Igreja ao longo da Alta Com a Primeira Cruzada, dois
Idade Média, o sumo pontífice conclama a
novos fatores colaboram para a afirmação
todos os cristãos e principalmente aos da ideia de guerra santa: a criação das
senhores da guerra a lutarem pela Igreja na
Ordens Militares e a participação de novos
Terra Santa e recuperar Jerusalém em uma teólogos no debate sobre a legitimidade
guerra santa desejada e inspirada por Deus. dos conflitos bélicos, como Bernardo de
Durante o domínio islâmico na Claraval, abade de Cluny. Segundo Jean de
Palestina, os cristãos continuaram as Flori (2005), as Ordens Militares resultam
peregrinações para as cidades da Primeira Cruzada porque, após a
consideradas santas, exceto durante alguns tomada de Jerusalém pelos cristãos e a
períodos, como o do reinado do califa al- formação dos Estados Latinos
Hakim Bi-amr Allah (985-1021). Segundo (principado Antioquia, Condado de
Helen Nicholson (2006), a peregrinação se Edessa, Reino de Jerusalém, e condado de
tornou mais difícil no século XI devido ao Tripoli), a maioria dos cruzados voltou aos
avanço, para o Ocidente, dos turcos seus países de origem. Os historiadores
seljúcidas. Até esse momento, os cristãos concordam que, com a volta dos
podiam fazer a viagem quase toda por cavaleiros, poucos soldados
território cristão; entretanto, com as permaneceram nos territórios ocupados
derrotas sofridas pelo Império Bizantino pelos cristãos. Contudo, a peregrinação a
para os seljúcidas, os peregrinos estavam esses lugares continuou forte e aumentou
suscetíveis a maiores perigos, tornando-se após a tomada de Jerusalém, fosse por mar
indispensável um acompanhamento ou por terra (2005, p.178).
armado. Com o avanço dos turcos e com Com o Concílio de Clermont, em
a derrota bizantina na batalha de 1095, a Igreja passou a demonstrar maior
Mantzikert no ano de 1071, o Império preocupação em garantir a segurança dos
Bizantino perdeu os territórios da Ásia peregrinos e, consequentemente, a
Menor. Esse foi um dos fatores que fez proteção dos Estados Latinos. A
Urbano II proclamar a Cruzada. Os necessidade de uma força militar para a
cristãos reclamavam a cidade de Jerusalém defesa dos peregrinos que viajavam à
não somente por ser a cidade onde Jesus Terra Santa levou à criação da primeira
vivera e morrera, mas também por que se ordem monástico-militar do Ocidente: a
sentiam “herdeiros do Império Romano” Ordem dos Cavaleiros Templários. Esses

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monges personificaram uma imagem até disso, conseguem duas coisas:


então inédita: a dos monges-soldados. morrendo servem a Cristo, e
matando, Cristo mesmo se lhes
Para Helen Nicholson (2006), a entrega como prêmio4
nova figura do monge-guerreiro (BERNARDO DE CLARAVAL,
representada pelos cavaleiros templários 2005, p. 45).
suscitou controvérsias. Isaac de Étole
(1105/1120-1185), monge e teólogo da Além da legitimação do ato de
Ordem Cisterciense, ao contrário de matar aqueles considerados infiéis, o
Bernardo de Claraval, criticava em seus discurso de Bernardo de Claraval
escritos a forma como os Templários incorpora o conceito de guerra justa
obrigavam os infiéis a se converterem ao elaborado anteriormente por Santo
cristianismo, ou seja, condenava o uso da Agostinho. Do mesmo modo, ao defender
força pelos monges-cavaleiros. Chega, a expulsão dos muçulmanos de um
inclusive, a pôr em dúvida a vocação território tido como pertencente aos
religiosa desses novos cavaleiros cristãos, o monge cisterciense resgata o
(NICHOLSON, 2006, p.58-59). elemento jurídico de uma guerra justa,
defendido por Isidoro de Sevilha, ou seja,
Posição contrária foi adotada por a recuperação dos bens roubados pelos
Bernardo de Claraval. Em seu opúsculo inimigos.
Elogio à Nova Milícia Templária, o monge
cisterciense define esses novos cavaleiros Considerações Finais
como milites Christi. Para ele, os
Templários eram verdadeiros monges, O processo de aceitação de uma
porque levavam uma vida de sobriedade, ideologia bélica cristã iniciou-se com a
pobreza e castidade, e, além disso, afirmação do cristianismo como religião
marcada pela oração. Mas esses monges oficial do Império Romano. Os primeiros
eram também milites, soldados cavaleiros teóricos a refletir sobre a problemática
que lutavam contra os muçulmanos. forma Agostinho de Hipona (354-430) e
Jamais se conheceu milícia igual, “porque Isidoro de Sevilha (560-636). No século
lutam sem descanso combatendo de uma XII, Bernardo de Claraval (1090-1153),
só vez uma dupla frente: contra os eliminou qualquer vestígio de dúvida
homens de carne e osso, e contra as forças sobre a necessidade de se fazer a guerra
espirituais do mal” (BERNARDO DE contra os inimigos do cristianismo,
CLARAVAL, 2005, p.40). legitimando-a com seu tratado Elogio à nova
Bernardo de Claraval pôs fim à milícia templária.
crise de consciência em relação à guerra. Cabe ressaltar a importância que
Ou seja, o fato de um religioso derramar o o contexto medieval teve para a formação
sangue inimigo em batalha. Em sua defesa do pensamento bélico ocidental.
da nova milícia, defendeu a sacralidade do Conforme observamos, as transformações
combate ao infiel em defesa do que ocorreram na ideologia militar foram
cristianismo e da Igreja: o resultado das adaptações que Igreja
medieval realizou frente às mudanças
[...] os soldados de Cristo lutam políticas e sociais ao longo dos séculos.
confiantes nas batalhas do Senhor,
Partindo de um pacifismo absoluto, dos
sem temor algum de pecar ao
colocar-se em perigo de morte e séculos iniciais do cristianismo, para uma
por matar o inimigo. [...] Além aceitação e justificação com a ideia de

implica criminalidad alguna y reporta una gran


4“[...] los soldado de Cristo combaten confiados
gloria. Además, consiguen dos cosas: muriendo
en las batallas del Señor, sin temor alguno a pecar
sirven a Cristo, y matando, Cristo mismo se les
por ponerse en peligro de muerte y por matar el
entrega como premio.”
enemigo. Para ellos, morir o matar por Cristo no

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guerra justa, até a exaltação e santificação da FLORI, Jean. Guerra Santa: formação da ideia
atividade bélica, e a afirmação da ideia de de cruzada no Ocidente cristão. Campinas:
Editorra da Unicamp, 2013.
guerra santa, a guerra no medievo torna-se
plenamente justificada. DEMURGER, Alain. Os cavaleiros de Cristo:
templários, teutônicos, hospitalários e outras
ordens militares na Idade Média (séculos XI –
Referências XVI). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
C A BÍBLIA De Jerusalém São Paulo: Paulus, _________. Os templários: uma cavalaria cristã
1995. na Idade Média. Rio de Janeiro: Difel, 2007.
BERNARDO DE CLARAVAL. Elogio de la GARCÍA FITZ, Francisco. La Edad Media:
nueva milicia templaria. Madrid: Siruela, 2005. guerra e ideología (justificaciones religiosas y
jurídicas). Madrid: Silex, 2003.
SAN ISIDORO DE SEVILLA. Etimologías.
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