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título original
The No-Show
copidesque
Nina Lopes
revisão
Agatha Machado
Marcela Ramos
Iuri Pavan
diagramação
Ilustrarte Design e Produção Editorial
Meri Gleice
Meri Gleice Rodrigues Rodrigues
de Souza de Souza
- Bibliotecária - Bibliotecária - CRB-7/6439
- CRB-7/6439
12/01/2023 17/01/2023
[2023]
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Intrínseca Ltda.
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Rio de Janeiro — RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
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Para Bug
Siobhan
São 9h03.
E ninguém apareceu.
Miranda rói o cantinho da unha do polegar e se recosta no carro,
dando chutinhos no pneu com a bota. Aperta o rabo de cavalo. Confere
os cadarços. Vasculha a mochila e se certifica de que está tudo ali: duas
garrafas d’água, seu kit de escalada, a serra manual que ganhou dos pais
de aniversário com seu nome gravado no cabo. Tudo presente e correto,
nenhum item saltou magicamente para fora da bolsa durante o caminho
de vinte minutos do apartamento dela até ali.
Às 9h07, ela enfim ouve o som de pneus no cascalho. Miranda se vira
assim que a caminhonete de Jamie chega, de um verde chamativo, es-
tampada com a logo da empresa J Doyle. O coração martela as costelas
feito um pica-pau, e ela endireita um pouco a postura enquanto Jamie e
o restante da equipe saem do carro.
Jamie sorri para ela enquanto eles se aproximam.
— AJ, Spikes, Trey, essa é Miranda Rosso — anuncia ele.
Dois deles lançam para Miranda um olhar com o qual ela já está
mais do que acostumada: uma olhadela preocupada, nervosa, de garo-
tos que foram firmemente instruídos a não serem inapropriados. Trey é
baixo e atarracado, com olhos fundos e taciturnos. Spikes é um palmo
mais alto do que Trey e tem o físico de um jogador de rúgbi, de peito
largo sob a camiseta suja e desbotada. Os dois acenam com a cabeça
para ela e logo voltam a atenção para a árvore no canto do terreno onde
estacionaram.
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O cachorrinho pode ser fofo, mas ela está dedicando atenção demais
ao torso do homem que o segura. Essa não era a estratégia.
— Oi — fala ela, se forçando a desviar o olhar de Rip e direcionar seu
sorriso para Trey e Spikes. — Prazer em conhecer vocês.
— Rosso é uma escaladora e tanto — diz Jamie, dando tapinhas nas
costas de Miranda. — Vocês tinham que ter visto ela no desafio de resga-
te aéreo. Nunca vi ninguém subir numa árvore tão rápido. Você tem kit
de escalada?
— Uhum — responde Miranda, apontando para a mochila com a ca-
beça.
— Vou te deixar com a árvore maior — continua Jamie. — O cliente
quer reduzir um terço da copa. — Ele aponta com a cabeça para uma
bétula-branca que assoma sobre o jardim frontal do casarão em frente à
qual eles estacionaram. É alta e esguia, se balançando e contorcendo ao
vento. — Quer mostrar a esses garotos como é que se faz?
— Sempre — afirma Miranda, já se agachando para abrir a mochila e
pegar seu arnês.
para um drinque e depois a levaria para a casa dele. Esse homem mara-
vilhoso e perigoso.
Um tanto lisonjeiro, levando tudo em consideração. Por mais que ela
saiba que ele transa com qualquer coisa que se mexa.
— Por que não? Você está livre à noite — argumenta AJ, cruzando os
braços tatuados. Os bíceps dele são enormes. Miranda pode apostar que
ele cruzou os braços para se exibir.
Ela mantém o queixo erguido.
— Não estou interessada — declara, e sorri. — Mas valeu. — Ela se
volta para Jamie. — Sete horas amanhã, certo? Você vai me mandar o
endereço por mensagem?
— Não estou interessada! — exclama Jamie. — Quando foi a última
vez que você ouviu isso de uma mulher, AJ?
Ele dá de ombros, se abaixando para pegar Rip, e Miranda sente seus
olhos fixos nela quando começa a se afastar.
— Faz tempo — responde ele. — Mas eu sempre venço pelo cansaço.
Miranda ri ao ouvir isso.
— Esta aqui, não — diz ela alegremente por cima do ombro. — Sou
comprometida.
— Com o sr. Encontro na Hora do Almoço! — exclama AJ. — Garota
de sorte.
Ela é sortuda, sim. Na maioria dos dias, nem consegue acreditar na sorte
que tem. Imaginava que Carter fosse o tipo de cara que nunca olharia
duas vezes para alguém como ela: ele é tão maduro, ganha um bom salá-
rio, usa ternos bem ajustados. E é maravilhoso. De um jeito adulto, não
como o desleixado do AJ. Carter usa óculos de armação redonda e tem
um maxilar reto, másculo, além de um sorriso que derrete qualquer um.
Reg, um dos colegas de trabalho de Miranda, foi quem os apresentou.
Ele jogava futebol com Carter, e um dia, há um ano, Reg levou Miranda
para um pub com metade do time para beber depois da pelada. Carter
estava impecável, usando o terno do trabalho porque se esquecera de
levar outra muda de roupa para usar depois do jogo, e se destacava como
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alguém para fazer uma xícara de chá solidária agora. Ela para no meio
da sala, escutando o tráfego do lado de fora, se perguntando se Carter
concluiu que ela não era a pessoa certa para ele, afinal.
Isso não ajuda em nada, Miranda Rosso, diz a si mesma, chutando os scar-
pins para longe. Recomponha-se.
Não são nem cinco da tarde; o dia ainda será longo. Ela vai passar
aspirador, fazer o jantar e dormir cedo. Não adianta nada ficar se lamen-
tando. Quando foi que isso já levou alguém a algum lugar?
Jane
— Ele estava me fazendo um favor. Não estamos juntos, mas ele disse
que seria meu acompanhante para eu não precisar vir sozinha. — Ela
olha para os sapatos. Sapatos confortáveis, de couro marrom macio, do
tipo que ela não usaria nem morta. — Keira tem razão: eu menti sobre
ter um namorado.
Mortimer só assente.
— Uma medida de proteção muito razoável — diz ele. — E esse seu
amigo, ele nem telefonou?
Jane esperava algum julgamento de Mortimer, mas a expressão dele
é bondosa.
— Não. Ele não ligou — responde ela, voltando a olhar para os sapatos.
Mortimer suspira, mas não é com Joseph que Jane está decepcionada;
é consigo mesma. Ela deveria saber que não podia depender de outra
pessoa. Ultimamente tem preferido plantas e gatos a humanos: ambas as
espécies têm um histórico muito melhor.
Todo dia desde que voltou para Winchester, Jane vai à Hoxton Bake-
house no primeiro horário e compra um pote de iogurte light com fruta
e granola. É um gasto injustificável, na verdade, mas a rotina é reconfor-
tante, é como calçar todos os dias as mesmas botas gastas.
Na primeira vez em que viu Joseph na padaria, logo depois do Natal,
ela parou tão de repente que quase tropeçou nos próprios pés ao entrar.
Ela o reconheceu. Não sabia dizer exatamente de onde, mas ele parecia...
importante. Alguém do seu antigo trabalho, talvez? Ela disse “Ah!” em
voz alta e o encarou, antes de se dar conta de que encarar é a maneira
mais rápida de chamar a atenção para si e deveria ser evitada a qualquer
custo.
Joseph se virou para olhar, mas não pareceu reconhecê-la. Abriu um
sorriso enorme e alegre para ela. Ligeiramente perplexo, talvez.
“Olá”, disse ele.
Por um momento, Jane ficou imóvel, paralisada, olhos arregalados.
Então...
“Desculpa, achei que você fosse... outra pessoa”, murmurou ela, des-
viando o olhar e indo em direção ao fim da fila para sair de vista. Mas
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sentiu o olhar dele fixo nela, afável e curioso, ao sair da loja com seu
croissant. Depois disso, ela o viu todos os dias por duas semanas, mas
ainda não sabia de onde o conhecia. Não cometeu o erro de encará-lo
novamente.
Então, justo quando Jane tinha relaxado um pouco...
“Isso é meio estranho, não é?”, perguntou Joseph, se virando de re-
pente para ela enquanto esperavam na fila.
Jane piscou depressa.
“Desculpe?”, respondeu, olhando para o chão.
“Ora, eu sei várias coisas sobre você. Sei que usa macacão amarelo nas
segundas-feiras, camiseta azul-clara nas terças, vestido branco esvoaçan-
te nas quartas, aquele vestido verde-primavera com cardigã nas quintas
e suéter rosa-claro nas sextas. Sei que lê, porque está sempre com um
livro. E sei que gosta de pãozinho de canela, porque sempre os olha com
desejo antes de pedir o iogurte. Nos vemos todos os dias. Mas nunca nos
falamos.”
As palmas dela suaram. Ninguém nunca notara as roupas dela tão
rápido. E Jane tinha certeza de que não ficava de olho nos pãezinhos de
canela; pelo menos não toda manhã.
Por fim, incapaz de adiar por mais tempo, ela ergueu o olhar para ele.
Ele era inegavelmente bonito, mas, se a perguntassem por quê, ela
teria dificuldade de responder. O rosto dele era muito eloquente e ex-
pressivo; as sobrancelhas eram um pouco retas e grossas demais e pare-
ceriam muito austeras num homem que sorrisse menos. Sua pele branca
e macia estava corada nas maçãs do rosto pelo calor da padaria, e seu
maxilar estava salpicado de pontinhos de barba por fazer em um tom
mais escuro do que seu cabelo cor de avelã. Nada em seu rosto explicava
por que ele era tão atraente, mas quando ela o encarou nos olhos, sen-
tiu aquela empolgação perigosa, animalesca, que temos na presença de
pessoas bonitas.
“Não acho tão estranho assim”, disse ela, sem se dar conta. “Você fala
com as pessoas que se sentam ao seu lado no trem?”
“Falo”, respondeu ele prontamente.
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“Ah, que horror”, disse Jane antes que pudesse evitar, e ele caiu na
gargalhada.
“Meu nome é Joseph”, anunciou ele. “Me diz uma coisa, onde você
arruma todos esses livros?”
Foi assim que eles acabaram num clube do livro de duas pessoas. Jane
não faz amizade com pessoas; ou melhor, as pessoas não fazem amizade
com Jane. Ainda assim, de alguma forma, ela acabou indo tomar café
numa manhã de domingo com ele alguns dias depois, conversando sobre
Passagem para o Ocidente, de Mohsin Hamid. “Livros me trazem alegria”,
disse ele para ela, que sentiu uma felicidade súbita, porque é exatamente
assim que ela se sente em relação aos livros.
Jane, pelo menos, se certificou de que não haveria nada de romântico
na relação deles. Também contara a mentira “eu tenho namorado” para
Joseph, como medida de proteção, como disse Mortimer. Foi só no come-
ço de fevereiro, quando ela e Joseph já haviam se tornado amigos, que
Jane confessou que, na verdade, não tinha namorado.
“Ah, que boa notícia”, disse Joseph. “Porque eu estava começando a
pensar que esse cara era um grande babaca.”
“Como assim?!” Jane sempre se esforçara muito para fazer o namora-
do fictício parecer um partidão.
“Ele nunca está com você!”, respondeu Joseph com uma risada. “E não
te deu nada de aniversário?”
É verdade, Jane não chegou ao ponto de comprar um presente para si
mesma como se fosse do namorado fictício.
A tranquilidade com que Joseph recebeu a confissão a deixou mais
calma, e nas últimas duas semanas eles se aproximaram ainda mais. Ela
tinha desistido de vez de tentar descobrir de onde o reconhecia; foi o que
chamou sua atenção a princípio, talvez, aquela estranha e persistente
sensação de familiaridade, mas eles já tinham passado disso. Ele é sim-
plesmente Joseph e pronto.
E, com o tempo, ela aprendeu a não se distrair com o calor solar do
sorriso dele, ou com a maneira como seus olhos ficam mais verdes de-
pendendo da luz.
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Ele já sabe mais sobre Jane do que qualquer outra pessoa que ela co-
nheça. Não tudo, é claro, mas, ainda assim, ele parece não se incomodar
com as partes que ela considera impossíveis de gostar: a maneira como
ela fala tudo o que pensa, suas regras e rotinas, sua indecisão. A sensação
de conversar com alguém de novo tem sido boa. Ela começou a pensar:
Que mal isso pode fazer?
Agora, enquanto Keira vem na direção dela com Ronnie ao lado, Jane
pensa: Esse. Esse é o mal que pode fazer.
— Jane — diz Keira, puxando Ronnie pelo braço. — Ronnie estava me
dizendo agora mesmo que ele também não tem acompanhante para esta
noite.
Ronnie está visivelmente tremendo ao lado da formidável Keira. Está
tão constrangido que Jane o sente irradiando por debaixo do terno como
o calor de um forno, mesmo a vários passos de distância.
— O-oi — cumprimenta ele. — Que bom ver você, Jane.
— O acompanhante de Jane está... — Keira a olha com expectativa.
Sob o olhar pretensioso de Keira, Jane desiste das desculpas de Ele está
atrasado ou Tenho certeza de que vai chegar a qualquer minuto.
— Ele não poderá vir — declara Jane.
— Ah, pobre Jane! Tão apaixonada! — exclama Keira.
Jane não faz ideia de onde Keira tirou essa ideia, por mais que, infeliz-
mente, ela esteja certa.
— Sua mãe ainda não começou a importuná-la para lhe dar netos?
Estou no pé dos meus filhos há anos, mas eles continuam enrolando —
comenta Keira, dando um gole na bebida.
Jane range os dentes por um momento antes de responder:
— Minha mãe já morreu.
Keira se retrai. Abre e fecha a boca. Essa é sempre a pior parte dessas
conversas: o silêncio que paira até que a outra pessoa decida com qual
frase sentimental vai responder.
— Ah, meu bem, eu não sabia! Você nunca comentou! — exclama
Keira. Ela abaixa a voz: — Então foi por isso que saiu de Londres e veio
para cá?
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Mas também significa que ela não fazia a menor ideia de como seu
corpo reagiria à sensação dos lábios de Joseph na sua pele até esse exato
momento. O coração dela está palpitando, ela sente calor, seus lábios
estão entreabertos. Tudo por causa de um mísero segundo de contato.
Mortimer conduz Joseph para se sentar nos fundos da loja. A pulsa-
ção de Jane vai se acalmando aos poucos; ela observa todos os outros
puxarem cadeiras. Keira encara Joseph de boca aberta; Jane repara no
pedacinho de algo verde entre dois dentes dela. Constance está de olhos
arregalados e afobada: parece que Keira a inteirou das novidades da noi-
te passada. Jane não consegue reprimir um sorriso crescente. A sensação
de surpreender todo mundo, para variar, é mesmo incrível.
— Mil desculpas, Jane — diz Joseph no ouvido dela enquanto todos
se sentam num círculo torto entre as lixeiras e caixas do cômodo dos
fundos. — Vou te recompensar.
O rosto dele está franzido de preocupação, cheio de vincos e linhas
intrigadas, mas são seus lábios que chamam a atenção de Jane. Ela nunca
tinha notado a cor deles: um vermelho fosco, acastanhado. São lábios
românticos. Do tipo que sabe exatamente o que faz.
— Está tudo bem — responde ela.
— Não, não está nada bem. Eu te decepcionei.
Ele começa a se justificar, atraindo a atenção do grupo. O celular dele
quebrou, depois, ficou preso atrás de uma plataforma elevatória, que
deve ser um tipo de veículo, imagina Jane, então seu carro enguiçou e o
motorista teve que ajudá-lo a empurrar até um lugar seguro, e o reboque
demorou muito para chegar, e ele não conseguia se lembrar do número
de Jane...
Os dois fogem para a cozinha mais ou menos cinco minutos depois,
para pegar uma xícara de café para Joseph. É mais uma copa do que
uma cozinha, com um exaustor antigo chacoalhando sem parar na pa-
rede feito um fumante com tosse, mas, ainda assim, eles têm privaci-
dade.
— Alguma daquelas coisas é verdade? — pergunta Jane a ele. — O
carro, a tal da plataforma, o reboque?
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