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416 p.
ISBN 978-85-7930-386-9
CDD 813.6 22
Dedicatória
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Epílogo
Sobre as autoras
com todo meu amor.
CLAIRE STROUGHTON APANHOU A xícara sem levantar os olhos do rascunho
do testamento que redigira e estava agora revisando-o.
– Odeio quando você faz isso.
Claire olhou para sua assistente, que estava do outro lado do escritório.
– Quando faço o quê?
– Essa sua mania de procurar o café pelo calor.
– Minha xícara e eu temos uma relação muito estreita.
Martha empurrou os óculos sobre o nariz.
– Fico feliz com isso. Se não sair agora, vai chegar tarde para seu encontro das
cinco.
Claire levantou-se e vestiu o blazer que completava o traje.
– Quanto tempo eu tenho?
– Duas horas e vinte e nove minutos. Dirigir até Caldwell levará no mínimo duas
horas, ainda mais com esse trânsito infernal. Seu carro está esperando na porta da frente. A
chamada por conferência com Londres está agendada para daqui a dezesseis... quinze
minutos. O que quer que eu faça antes do fim de semana prolongado?
– Analisei os documentos da fusão da Technitron e não me sinto nem um pouco
impressionada – disse, apresentando uma pilha de papéis grande o suficiente para ser usada
como peso de porta. – Mande-os agora por mensageiro para o número 50 da Wall. Quero
ter uma reunião com os advogados da parte contrária às sete da manhã. Terça-feira. Diga
para virem aqui. Preciso resolver algo mais antes de ir?
– Não, mas poderia me dizer uma coisa: que tipo de sádico marca uma reunião com
o advogado às cinco da tarde de uma sexta-feira, véspera do Dia do Trabalho?
– O cliente tem sempre razão. E a questão do sadismo está nos olhos de quem vê –
Claire colocou o testamento em uma pasta e recolheu a bolsa Birkin. Enquanto passava o
olho pelo amplo escritório, tentou concentrar-se no trabalho que tinha planejado fazer
durante o fim de semana. – Do que estou me esquecendo?
– Da pasta.
– Certo, certo – Claire usou o que restava do café na xícara para engolir o
medicamento que vinha tomando durante os últimos dez dias. Enquanto jogava a garrafa
laranja no cesto de papéis, deu-se conta de que, desde domingo, não espirrava nem tossia.
Evidentemente o remédio tinha funcionado.
Malditos aviões. Aquelas coisas eram depósitos alados de germes.
– Acompanhe-me – no caminho para o elevador, Claire deu mais algumas ordens
com relação à organização enquanto cumprimentava, durante todo o percurso, alguns dos
duzentos e tantos advogados e pessoal administrativo que trabalhavam na Williams, Nance
& Stroughton. Martha mantinha-se ao seu lado, mesmo com a carga de papel que levava
nos braços. E, afinal de contas, isso era definitivamente o que melhor a descrevia.
Independentemente de qualquer coisa, sempre era possível contar com ela.
Chegaram à série de elevadores e Claire pressionou o botão para descer.
– Bem, acredito que isso seja tudo. Tenha um bom fim de semana.
– Você também. Tente descansar um pouco, está bem?
Claire entrou no elevador forrado com painéis de mogno.
– Não posso. Na terça-feira temos a Technitron. Vou passar a maior parte do fim de
semana por aqui.
Quatro minutos depois, ela estava em seu Mercedes, avançando lentamente pelo
trânsito de Manhattan enquanto tentava sair da cidade. Onze minutos depois, foi colocada
em uma ligação com Londres.
A chamada por conferência durou 53 minutos e foi bom que o tráfego era como
estar em um estacionamento de tão parado, já que a reunião não foi nada bem. O que era
bastante comum. As fusões e as aquisições de companhias bilionárias nunca eram simples;
tampouco eram adequadas para os fracos de coração. Seu pai ensinara-lhe isso.
De qualquer forma, foi um alívio desligar e concentrar-se em dirigir. Caldwell,
Nova York, ficava a mais ou menos 160 quilômetros do centro, mas Martha tinha razão: o
trânsito estava um lixo. Aparentemente todo mundo estava tentando sair da Big Apple pelo
mesmo caminho que Claire.
Em geral, ela não precisava dirigir para visitar um cliente em sua residência, mas a
senhorita Leeds era um caso especial por várias razões. Além do mais, não era fácil para ela
ir ao escritório. Quantos anos ela tinha agora? 91?
Jesus Cristo! Talvez fosse mais velha ainda. O pai de Claire fora seu advogado por
toda a vida e, depois que morrera, dois anos atrás, Claire herdara a senhorita Leeds junto
com a parte dele na empresa familiar. Quando ocupou o lugar do pai na mesa dos sócios,
converteu-se na primeira mulher na história da Williams, Nance & Stroughton a sentar-se
no conselho. E ela merecia isso, apesar do que dizia o testamento de Walter Stroughton. Era
uma advogada fantástica especializada em fusões e aquisições. Poucos, muito poucos a
superavam.
A senhorita Leeds era sua única cliente de bens e investimentos, exatamente como
ocorrera com seu pai. A idosa tinha uma fortuna beirando os duzentos milhões de dólares
graças aos investimentos que sua família fizera em diversas empresas, todas representadas
pelo escritório WN&S. Essas participações eram a base das duas mulheres. A senhorita
Leeds acreditava em continuar trabalhando com o que era conhecido e sua família cuidava
do escritório.
Ou, traduzindo: uma especialista em fusões e aquisições fazendo um trabalho de
bens e investimentos para uma aspirante ao asilo de senis.
Acredite ou não, a matemática da interação era demais. O testamento e os bens que
ele descrevia eram bastante fáceis de serem administrados uma vez que se estivesse
familiarizado com eles e, em comparação com a maioria dos clientes corporativos que
Claire tinha, a senhorita Leeds era bem fácil de se tratar. Além disso, a mulher era
excelente para os negócios quando o assunto era o seu testamento. Revisava os
beneficiários da mesma forma que algumas pessoas, especialmente de sua idade, praticam
jardinagem. E não reclamava em pagar os 650 dólares por hora que Claire cobrava. A
senhorita Leeds estava constantemente revisando a quantia de seu patrimônio destinada à
caridade, cultivando aquela seção, excluindo e remanejando os beneficiários cada vez que
mudava de opinião. Claire tinha negociado as últimas duas alterações por telefone, de modo
que, quando a senhorita Leeds lhe pediu um encontro pessoal, havia motivos para fazer
uma visita rápida.
Se tivesse sorte, seria rápida.
Claire tinha ido apenas uma vez à casa dos Leeds, logo depois da morte de seu pai,
para se apresentar. Tinha se saído bem naquele encontro. Evidentemente a senhorita Leeds
já tinha visto fotos dela por intermédio de Walter e certamente tinha aprovado sua
“elegância ”.
O que era uma piada. Embora fosse verdade que as roupas fazem o homem e a
mulher – e o guarda-roupa de Claire estivesse cheio de trajes conservadores com saias
abaixo do joelho -, aquilo era simplesmente superficial. Ela tinha a cabeça do pai para os
negócios. A cabeça e um pouco da agressividade. Podia parecer uma dama do coque aos
discretos saltos, mas, em seu interior, era implacável.
A maioria das pessoas captava sua verdadeira natureza uns dois minutos depois de
conhecê-la e não só porque ela era ruiva. Mas era bom que a senhorita Leeds estivesse
enganada. A idosa era da velha guarda e, portanto, fazia parte de uma geração em que
mulheres de respeito não trabalhavam, muito menos como advogadas em Manhattan.
Francamente, Claire tinha ficado surpresa com o fato de a senhorita Leeds não ter
procurado um dos outros sócios. A questão é que elas se davam bem na maior parte do
tempo. Até agora, o único inconveniente na relação tinha ocorrido durante o primeiro
encontro cara a cara, quando Leeds havia lhe perguntado se ela era casada.
Claire definitivamente não era casada. Nunca tinha sido e não estava nem um pouco
interessada em sê-lo. Não, obrigada. A última coisa que precisava era de um homem
opinando sobre o horário avançado em que ela quase sempre deixava o escritório,
dizendo-lhe que ela trabalhava demais, ou onde eles deveriam morar, ou perguntando o que
teria para jantar nesta ou naquela noite. Eliza Leeds, todavia, era obviamente da opinião de
que “você é definida pelo tipo de homem que tem ao lado ”. Por isso, Claire tinha se
preparado antes de lhe explicar que não, não tinha marido.
A senhorita Leeds pareceu assustada, mas logo se recompôs e passou rapidamente à
pergunta sobre um noivo. A resposta foi a mesma. Claire não tinha, nem queria um noivo,
tampouco tinha um animal de estimação. Fez-se um longo silêncio. Então a mulher sorriu,
fez um breve comentário – algo como “Deus, como as coisas mudaram ” -, e ali morreu o
assunto. Ao menos, por enquanto.
Toda vez que a senhorita Leeds ligava para o escritório, perguntava se Claire tinha
encontrado algum homem bom. O que era agradável. Enfim, outra geração. E a mulher
aceitava os nãos de Claire com elegância... Talvez por que ela mesma nunca tivesse se
casado. Evidentemente tinha uma veia romântica não satisfeita ou algo assim.
E, para Claire, francamente, todo aquele assunto sobre relacionamento era
enfadonho. Não, ela não odiava os homens. Não, o matrimônio de seus pais não tinha sido
infeliz. Não, de fato seu pai tinha sido uma figura masculina bastante frequente. Não, não
houve nenhum fim de relação problemático, nenhum problema de autoestima, nenhuma
patologia, nenhum histórico de abuso. Ela era inteligente, amava o trabalho e estava
agradecida pela vida que tinha. Era só que todo aquele assunto sobre casamento era
adequado para outras pessoas. Concluindo? Ela respeitava completamente as mulheres que
se tornavam esposas e mães dedicadas, mas não as invejava a ponto de querer assumir um
casamento e filhos. E, na manhã de Natal, não sentia nenhum buraco no coração pelo fato
de estar sozinha. E não precisava de partidas de futebol, nem de desenhos na geladeira, nem
de presentes feitos à mão para se sentir realizada. O Dia dos Namorados e o Dia das Mães
eram simplesmente duas datas no calendário.
O que amava era a batalha no tribunal. As negociações. As sofisticadas dobras e
voltas da lei. A responsabilidade energizante de representar os interesses de uma
corporação de dez bilhões de dólares – fosse comprando ou alienando bens ou demitindo
um CEO que tivera oito dígitos de gastos pessoais ilícitos.
Todas essas coisas eram sua força motriz. Com pouco mais de trinta anos, ela estava
no topo da carreira e em uma posição muito confortável na vida. O único problema que
tinha era com as pessoas que não entendiam uma mulher como ela. Era um caso típico de
duplo padrão: homens podem ter uma vida inteira dedicada ao trabalho e serem vistos como
bons profissionais, mas as mulheres acabam como tias solteironas e antissociais com
problemas de relacionamento. Por que elas simplesmente não podiam ser vistas da mesma
forma?
Quando finalmente avistou a extensão da ponte de Caldwell, Claire já estava pronta
para levar a cabo a reunião, retornar ao seu apartamento na Park Avenue e começar a se
preparar para a reunião da terça-feira com os representantes da Technitron. Quem sabe
talvez até tivesse tempo suficiente para voltar ao escritório...
A propriedade dos Leeds consistia em quatro hectares de terra, quatro edifícios
anexos e um muro que só poderia ser escalado por pessoal treinado, com o físico forte de
treinador de rapel. A mansão era uma enorme pilha de rocha localizada em uma elevação,
um magnífico empreendimento de novo rico erguido durante o período do Renascimento
Gótico da década de 1890. Para Claire, a propriedade parecia com algo pelo qual Vincent
Price1 teria pagado bastante dinheiro para possuir.
Dirigiu pela entrada circular para carros, estacionou em frente à entrada digna de
uma catedral e colocou o celular no modo vibrar. Pegou a bolsa Birkin e aproximou-se da
casa, pensando que talvez devesse levar uma cruz em uma mão e uma adaga na outra.
Céus! Se tivesse a riqueza dos Leeds, viveria em algum lugar um pouquinho menos
funesto. Um mausoléu, por exemplo.
Um lado da porta dupla abriu-se antes que ela chegasse ao batedor em forma de
cabeça de leão. O mordomo da família, que teria uns 108 anos, fez uma reverência.
– Boa tarde, senhorita Stroughton. Posso lhe perguntar se a senhorita deixou as
chaves no automóvel?
Chamava-se Fletcher? Sim, era isso mesmo. E a senhorita Leeds gostava que o
chamassem pelo nome.
– Não, Fletcher.
– Poderia entregá-las para mim, por favor? Para o caso de precisar manobrá-lo –
quando ela franziu a testa, ele disse em voz baixa: – Receio que a senhorita Leeds não
esteja muito bem. Se uma ambulância precisar ser chamada...
– Sinto muito por ouvir isso. Ela está doente ou... – Claire deixou que a pergunta
desvanecesse enquanto lhe entregava as chaves.
Sem parar para pensar como diabos sabia o que havia ali atrás, Claire deslizou ao
redor do corrimão da escada e seguiu até entrar em um pequeno nicho... onde havia um
elevador. Um antigo elevador de bronze e vidro.
Entre e desça até o porão.
A voz era incontestável e Claire estendeu a mão para abrir a porta entalhada com
filigranas. Antes de entrar, olhou para cima. Na parte superior havia uma lâmpada.
Se usasse o elevador, aquela coisa certamente enviaria um sinal. Os seus instintos
lhe diziam que ela devia ocultar o máximo possível seus rastros. Se Fletcher descobrisse
para onde Claire ia, ela não poderia...
Bem, caramba, ela não sabia o que devia fazer. A única certeza que tinha era a de
que devia chegar ao porão sem que ele soubesse.
Olhando por cima do ombro, Claire viu uma pequena porta atrás da escada curva e
dirigiu-se para lá. Havia um ferrolho de metal, que ela abriu antes de mover a maçaneta.
Deu certo...
Do outro lado, havia um lance de escadas irregulares iluminadas por precárias e
amareladas lâmpadas antigas. Olhou para trás. Ninguém estava prestando atenção nela e, o
que era mais importante, Fletcher não estava à vista.
Fechou a porta e começou a descer. Seus saltos batiam contra o chão e ecoavam à
sua volta.
Maldição, como eles faziam barulho.
Parou, tirou os sapatos e colocou-os dentro da Birkin. Agora, sem fazer ruído, podia
mover-se inclusive mais rapidamente. Seus instintos estavam em alerta total. Deus, a
escada parecia não ter fim, as paredes e o chão de pedra lembravam uma pirâmide egípcia
e, antes de chegar ao primeiro patamar, já sentia como se tivesse percorrido meio caminho
até a China. E ainda faltava muito para andar.
Enquanto descia, a temperatura a acompanhava, o que era algo positivo. Quanto
mais frio ficava, mais Claire se concentrava, de modo que sua dor de cabeça desapareceu e
seu corpo converteu-se em pura energia comprimida. Sentia como se estivesse em uma
missão de resgate, embora não soubesse quem ou o que estava prestes a tirar do porão.
As escadas terminavam em um corredor feito da mesma pedra que o resto da casa.
As luzes incrustadas no teto brilhavam tenuemente, fazendo pequenos rasgos na escuridão.
Devia ir para a esquerda ou para a direita? Para a esquerda, havia apenas mais
corredor. Para a direita... havia apenas mais um corredor.
Para a direita.
Caminhou uns 45 metros – ou talvez 65 – e, como seus pés revestidos pelas meias
finas não emitiam som, o único ruído que escutava era o golpear de sua bolsa contra as
costelas e o roçar das roupas na pele delicada. Estava a ponto de perder a esperança e dar
meia-volta quando encontrou... uma porta enorme. A coisa era como algo que poderia
esperar encontrar nas masmorras de um castelo: completamente cravejada com suportes de
ferro e com uma barra deslizante tão grossa quanto sua coxa servindo de fechadura.
No momento em que viu aquilo, começou a chorar copiosamente.
Soluçando, aproximou-se dos pesados e grossos painéis de carvalho. Mais ou menos
à altura de seus olhos, havia uma espécie de visor. Ficou nas pontas dos pés e olhou...
– Não deveria estar aqui embaixo.
Deu meia-volta. Fletcher estava em pé, bem atrás dela, e tinha um dos braços
discretamente escondido atrás das costas.
Claire enxugou os olhos.
– Estou perdida.
– Sim, certamente está.
Ela deslizou uma mão para dentro da bolsa e a outra para o bolso do blazer.
– Por que veio aqui embaixo? – perguntou o mordomo, aproximando-se.
– Estava me sentindo mal. Então, encontrei a porta atrás das escadas. Estava
procurando me afastar da multidão, de modo que simplesmente comecei a perambular, até
que cheguei aqui.
– Em vez de sair para os jardins?
– Havia gente lá. Muita gente.
O mordomo não estava acreditando naquelas palavras, mas Claire tampouco se
importava. Ela precisava que se aproximasse só um pouco mais.
– Por que não entrou em uma das salas de estar?
Quando ele chegou mais perto, ela tirou um dos sapatos da bolsa e o jogou, fazendo
com que ricocheteasse várias vezes. Fletcher girou sobre si para olhar o que estava
provocando aquele ruído e, nesse ínterim, Claire tirou o spray de pimenta que tinha no
chaveiro e o levantou na altura dos olhos do velho. Quando ele virou-se e pegou a seringa
que tinha na palma da mão, ela o atingiu no meio do rosto.
Soltando um berro, o velho deixou cair a seringa que usaria nela e tentou proteger
os olhos, cambaleando para trás até bater contra a parede oposta.
É claro que spray de pimenta era ilegal em Nova York. E graças a Deus que essa era
uma lei que Claire vinha infringindo há dez anos.
Movendo-se velozmente, ela tomou a agulha, fincou-a na parte superior do braço do
mordomo e injetou o conteúdo com veemência. Fletcher chiou e logo desabou, formando
um montinho inerte no chão de pedra.
Ela não sabia se ele estava morto ou apenas sedado, assim como não fazia ideia de
quanto tempo tinha. Correu para a porta da prisão e quebrou duas unhas lutando para fazer
correr a barra de ferro e abrir a enorme passagem.
A angústia deixava-a frenética, dando-lhe forças para levantar e puxar para um lado
o que parecia ser centenas de quilos de ferro. Quando a barricada estava fora do caminho,
ela agarrou o trinco, empurrou-o para baixo e usou todo o peso do corpo para arrastar a
porta e abri-la.
Luz de velas. Livros. Um obscuro e delicioso aroma...
Seus olhos atravessaram apressados a distância e viram um homem com expressão
de absoluta incredulidade. Ele estava de pé junto a uma mesa cheia de... desenhos dela.
A cabeça de Claire flutuava. Uma dor atordoante privou-lhe da vista. O corpo
enterneceu-se e, em seguida, os joelhos cederam por completo. O chão de pedra não seria
um bom amortecedor para sua queda.
De repente, braços fortes rodeavam-na, levantavam-na, levavam-na para... uma
cama coberta com um edredom de veludo e repleta de travesseiros tão suaves quanto as
plumas da asa de uma pomba selvagem.
Ela levantou os olhos para aquele homem e as lágrimas brotaram quando eles o
encararam. Deus, aquele rosto perfeito era o do amante sombrio que Claire via em seus
sonhos ardentes, do homem que a mantinha acordada durante a noite, do homem por quem
ela chorava durante o dia.
– Como retornaste? – perguntou-lhe.
– Quem é você? – ela devolveu.
Ele sorriu.
– Meu nome é Michael.
A dor nas têmporas de Claire cessou abruptamente... e logo suas lembranças
retornaram, em um veloz tiroteio que formava uma colagem de imagens e sentimentos,
aromas e sabores... todos envolvendo ela e Michael, juntos neste quarto.
Claire agarrou-se a ele e enterrou o rosto em seus cabelos, soluçando por quase tê-lo
perdido, pelo fato de que, se a senhorita Leeds não estivesse morta agora, ela certamente
nunca teria retornado, já que tinha decidido deixar o escritório.
E, logo, irritou-se e o empurrou.
– Por que diabos você fez isso?! Por que me deixou ir?! – deu-lhe um murro no
peito musculoso. – Você me deixou ir!
– Sinto muito, meu amor.
– Não me venha com essa de “meu amor ”! – ela ia prosseguir com a discussão
quando lhe ocorreu que talvez o mordomo apenas estivesse temporariamente incapacitado.
Ela não tinha ideia do que havia naquela seringa... e o filho da mãe tinha aquela maldita
força estranha.
Claire abraçou Michael com força e obrigou-se a ficar calma.
– Certo... está bem... Olhe, discutiremos isso mais tarde. Agora, venha comigo.
Todavia, como ela iria tirá-lo da casa? Inferno, como ela mesma conseguiria se
levantar e andar? A dor de cabeça tinha desaparecido, mas o enjoo...
Inferno. Ela realmente estava grávida.
Claire olhou para Michael.
– Eu amo você.
O rosto dele se transformou, a tensão o abandonou, suas belas feições inundaram-se
com um amor tão profundo e ardente que aquela angélica visão fez queimar os olhos de
Claire.
– Não mereço, mas sou muito agradecido...
– Com todo o respeito e carinho que tenho por você, devo lhe dizer que pare com
essa porcaria de “não mereço ”. Agora, ajude-me a sair dessa cama – quando eles se
levantaram, ela cambaleou momentaneamente e logo viu o grilhão que Michael tinha no
tornozelo.
– Precisamos tirar essa coisa.
Michael deu um passo atrás e sacudiu a cabeça.
– Não posso ir. Não posso sair daqui. Não me deixarão. Fletcher e Mãe...
– Sua mãe está morta – informou-o o mais gentilmente que pôde... considerando
que seu desejo era desenterrar aquela velha demente simplesmente para poder ter o prazer
de matá-la outra vez.
Michael empalideceu. Piscou várias vezes.
– E Fletcher está desacordado no chão do corredor – quando não obteve resposta,
tomou-lhe a mão entre as suas. – Michael, queria ajudá-lo com o que está sentindo neste
momento, mas não temos tempo. Precisamos tirá-lo daqui. Preciso que você se concentre.
– Eu... para onde irei?
– Irá viver comigo, se quiser. Mas, se não quiser, será livre, para fazer a sua
vontade.
Ele correu a vista por todo o quarto, demorando-se na cama e nos livros.
Claire imaginou que ele relutaria, que talvez preferisse ficar, por causa das décadas
de isolamento e de abuso. Ela precisava sacudi-lo de alguma forma...
Tomou-lhe a palma da mão e colocou-a sobre seu estômago.
– Michael, durante o tempo que estive com você, criamos algo juntos. Um bebê.
Está dentro de mim. Tenho seu filho dentro de mim. Preciso que você venha comigo.
Conosco.
Ele ficou mortalmente pálido. E logo...
Bem, a mudança nele poderia tê-la assustado se ela não tivesse acreditado
cegamente que ele nunca a machucaria. O fato é que Michael pareceu crescer e, embora seu
corpo permanecesse igual, seus olhos entrecerraram-se; seu rosto tornou-se uma máscara de
força masculina e agressividade categórica.
– Meu bebê? Meu filho?
Ela assentiu, embora perguntasse intimamente se tinha feito bem em contar.
Ele a agarrou e a abraçou com tanta força que ela achou que fosse lhe partir os
ossos. Quando enterrou a cabeça em seus cabelos, a voz de Michael baixou até converter-se
em um leve grunhido.
– Minha – disse. – Tu és minha. Para sempre.
Claire sorriu. E ali morriam suas preocupações a respeito de se ele iria querer
experimentar a vida sem ela.
– Bem, suponho que estamos comprometidos. Agora, mexa-se. Devemos sair daqui.
– Estás bem? Primeiro, diga-me se estás bem.
– Até onde sei, está tudo bem.
– Tem certeza?
– Posso fazer o que eu quiser. Sou jovem e estou com saúde – colocou a mão no
rosto dele. – Devemos ir. Realmente precisamos ir.
Michael assentiu e a soltou. Caminhando calmamente, dirigiu-se ao lugar onde a
corrente que tinha fixa a seu tornozelo estava embutida na parede e puxou com voracidade
o maldito metal. Um grande pedaço de concreto – algo do tamanho de uma cabeça – saiu
com a corrente. Michael balançou a bola e a jogou contra a parede, estilhaçando-a.
Depois, virou-se para Claire como se nada tivesse acontecido.
– Jesus Cristo! Por que não fez isso antes?
– Eu não tinha nenhum lugar para onde ir. Nenhum lugar melhor onde estar – olhou
os livros pela última vez. Depois levantou a corrente, enrolou-a em volta do braço e,
galantemente, passou o braço em volta de Claire. – Vamos.
Saíram juntos. Fletcher continuava estirado no chão de pedra, mas tinha os olhos
abertos e pestanejava lentamente.
– Inferno! – praguejou Claire enquanto Michael olhava o mordomo. Depois de
examinar-lhe a cabeça rapidamente, murmurou: – Vamos deixá-lo aqui.
Depois de tudo, ela se dava conta de que aquele homem tinha sequestrado umas
cinquenta mulheres e tinha aprisionado ilegalmente o filho de sua patroa durante meio
século – portanto, era improvável que ele fosse persegui-los pelas vias legais. E pedir a
Michael que o matasse era um pensamento muito espantoso. Provavelmente porque
Michael faria isso se ela lhe pedisse.
Segurou no braço forte de seu homem.
– Vamos. Vamos embora daqui – o velório no andar de cima era uma complicação.
– Droga, deve haver umas cem pessoas na casa. Como podemos...?
De repente, Michael ficou alerta.
– Conheço uma saída. Desde quando eu era menino. Vamos por este lado.
Eles tinham avançado uns nove metros quando ela deu meia-volta. A seringa. Suas
impressões digitais estavam na seringa. No altamente improvável caso de Fletcher decidir
persegui-la, seria mais difícil sem esse tipo de evidência. E seu sapato. Ela precisava
recuperar seu sapato. Até porque, era um bom sapato.
O melhor a fazer era acabar com todos os rastros.
– Espere! – disse, retornando correndo.
Procurou a seringa. Encontrou-a ainda cravada no braço do velho. Ele levantou os
olhos no momento em que ela abaixava-se para tirá-la e colocá-la na bolsa. Fletcher estava
movendo a boca. Abrindo-a e fechando-a como um peixe.
Depois de agarrar o sapato, Claire foi para onde estava Michael, mas sentia como se
suas pernas fossem de borracha.
– Estás fraca – disse ele, franzindo a testa.
– Estou bem...
Michael tomou-a em seus braços musculosos e começou a caminhar duas vezes
mais rápido do que ela teria sido capaz. As enormes pernadas do homem másculo
devoravam a distância pelos corredores do porão. Movia-se com rapidez e decisão, o que a
surpreendeu um pouco e a fez lembrar-se de que, apesar de sua natureza doce, ele era um
homem – um homem carregando sua mulher amada nos braços. E, Deus, como era forte!
Estava carregando todo o peso de Claire mais o peso da corrente e nada disso parecia
desacelerá-lo o mínimo que fosse.
Quando chegou a uma sólida porta que havia no longínquo extremo do corredor do
porão, ele inclinou-se para um lado e testou o trinco. Quando a coisa negou-se a abrir, deu
dois passos para trás, chutou a porta com veemência e a deixou em pedaços.
– Cristo! – exclamou Claire. – Você faz o Exterminador do Futuro parecer um
menino de dois anos.
– O que é esse Exterminador?
– Mais tarde eu explico.
Do lado de fora, o ar frio da noite precipitou-se sobre eles e Michael vacilou,
abrindo amplamente os olhos. Começou a respirar mais profundamente, como se estivesse
sofrendo um ataque de pânico.
– Coloque-me no chão – pediu brandamente Claire, sabendo que ia precisar de um
minuto para orientar-se.
Ele a baixou lentamente enquanto olhava o céu, as árvores e o vasto terreno dos
jardins da propriedade. Depois, analisou a construção de pedra na qual estivera aprisionado
durante tanto tempo. Claire podia imaginar o quão perdido Michel devia se sentir e como
deviam estar as emoções daquele homem, o quão estranho devia ser para ele deixar a
claustrofóbica segurança de sua prisão. Mas eles não tinham tempo para permitir que ele se
acostumasse à doce liberdade.
– Michael, meu carro está no final da entrada que fica na frente da casa.
– Posso fazer isto – ele sussurrou.
– Sim, você pode.
Michael tomou-lhe a mão, que estava úmida e quente, e puxou-a mais para perto.
Sem hesitar, segurou as correntes e conduziu Claire pelo lado da imensa casa.
O Mercedes estava estacionado onde ela o tinha deixado e eles se apressaram ao
cruzar o jardim, mantendo-se sempre perto de uma fileira de arbustos. Claire podia sentir a
grama molhada e fofa sob seus pés, pelas meias, e seus pulmões capturavam o limpo
oxigênio do outono.
Por favor, Deus, deixe que escapemos de uma vez.
Quando chegou perto do Mercedes, ela acionou o controle remoto e as luzes do
carro piscaram.
– Que tipo de automóvel é este? – perguntou Michael aturdido. – Parece uma
espaçonave – depois, olhou para os outros veículos por ali. – Todos eles parecem...
Aquele não era um bom momento para que ela lhe mostrasse seus conhecimentos
sobre carros.
– Entre.
– Madame?
Claire levantou os olhos. O manobrista do estacionamento, o rapaz que tinha visto
antes, estava aproximando-se pela entrada para carros. Parecia confuso, como se não
pudesse explicar de onde ela tinha saído. Ou talvez apenas estivesse surpreso por vê-la com
um homem enorme vestindo um roupão de seda vermelha e carregando uma corrente
enrolada ao redor do braço.
– Olá – disse, saudando-o com a mão enquanto dizia a Michael. – Entre no maldito
carro.
O rapaz esfregou a mão no cabelo arrepiado.
– Ah...
– Obrigada por sua ajuda – mesmo não tendo solicitado nenhum de seus serviços.
Sentiu mais do que alívio quando ligou o motor e começou a sair daquele lugar.
Outro Mercedes apareceu atrás dela, preparado para fazer uso da vaga e evitando,
desse modo, que ela pudesse dar marcha à ré ou virar para sair diretamente na rua. Não teve
outra opção a não ser dirigir-se para o circuito que estava diante da mansão, onde os
manobristas estavam alinhados e muita gente passava.
Maldição.
– Abaixe a cabeça – disse a Michael conforme aproximava-se da porta principal.
Por favor, por favor, por favor...
No momento em que Claire aproximava-se da mansão, um casal de idosos saía para
entrar no carro. Com o Mercedes atrás do Cadilac do casal bloqueando o caminho, Claire
estava presa.
O suor deslizou entre seus seios e debaixo de seus braços. Suas mãos apertaram,
inquietas, o volante.
A porta principal se abriu e Claire teve certeza de que veria o mordomo sair
cambaleando.
Todavia, tratava-se apenas de outro casal mais velho, levando na mão um
guarda-chuva enquanto se aproximava do manobrista.
Os olhos de Claire voltaram-se para o carro que estava à frente. O homem já estava
atrás do volante, mas a mulher ainda conversava com o garoto que estava segurando a porta
aberta. Vamos, vovó! É claro que a mulher não fez nada. Finalmente, sentou-se no
automóvel, arrumou a saia e pareceu queixar-se um pouco com o marido. Alarme falso. A
velha logo em seguida virou-se para o manobrista e recomeçou a conversa.
155 milhões de anos depois, as luzes de freio do Cadilac cintilaram e o carro
começou a mover-se a uma velocidade penosa.
Com o coração retumbando, as mãos tensas e os pulmões intumescidos, Claire
rogou e suplicou ao universo que os deixasse escapar dali.
E então aconteceu.
O Cadilac desceu a colina. Ela fez o mesmo. E logo entrou na estrada atrás do casal.
Depois, passou a avançar a 50 km/h, afastando-se da propriedade dos Leeds.
Assim que viu a linha descontínua, pisou no acelerador e ultrapassou o Cadilac.
Com os olhos fixos na estrada, procurou algo dentro de sua bolsa. Precisava de seu
celular. Onde estava seu... Achou-o, pegou-o e pressionou a discagem rápida.
Enquanto o telefone chamava, olhou para Michael. Ele estava enternecido no
assento do carona, com os braços esticados, um contra a porta e o outro sobre o console, e
as pernas embutidas debaixo do porta-luvas. Estava branco como creme dental e seus olhos
ricocheteavam de um lado para outro dentro das órbitas.
– Coloque o cinto de segurança – disse-lhe. – Está à sua direita. Puxe-o e passe-o
por cima de você, como eu fiz com o meu.
Ele encontrou a correia e puxou-a, fazendo-a envolver seu corpo. Em seguida,
reassumiu a posição de animal selvagem na estrada, preparando-se para uma colisão
iminente que não estava por acontecer.
Ocorreu a Claire que era muito provável que ele nunca tivesse andado em um carro
antes.
– Michael, não posso diminuir a velocidade. Eu...
– Estou bem.
– Vamos a... – sua chamada foi atendida e Claire brindou a saudação do homem
com um alívio incrível. – Mick? Graças a Deus. Escute, estou a caminho de sua casa e
preciso de um favor. Um grande favor que nunca serei capaz de retribuir. Obrigada. Ah,
Jesus, obrigada. Dentro de uma hora. E levo alguém comigo – depois de desligar, voltou
seu olhar a Michael. – Tudo isso vai acabar bem. Vamos para a casa de um amigo que vive
em Greenwich, Connecticut. Podemos ficar lá. Ele vai nos ajudar. Tudo vai ficar bem.
Ao menos esperava que assim fosse. Claire presumia que o mordomo não os iria
perseguir utilizando os meios legais, mas, enquanto dirigia pela noite, deu-se conta de que
havia outras formas de se perseguir alguém. Formas que não envolviam o sistema legal.
Humano. Droga! Não havia como saber que tipo de recursos Fletcher tinha ao seu dispor. E
ele era inteligente – afinal, durante todo esse tempo tinha conseguido os recursos
necessários para sair impune pelo que tinha feito.
O que significava que ele tinha os registros de Claire. E que também sabia onde
vivia, certo? Por que... Ah, Deus, depois dos três dias passados com Michael, Claire
despertou em sua cama, em sua casa. De alguma forma, Fletcher a tinha levado de volta
para lá.
Talvez ele também tivesse alguns truques mentais ao seu dispor.
Talvez eles devessem tê-lo matado.
Franzindo a testa, ela esperou a reação de Dare, mas ele simplesmente continuou
seu caminho rumo ao piso inferior. Angelia presumiu que ele não tivesse percebido a
reação do urso, embora aquilo não fosse nada característico de um homem que, geralmente,
via cada nuance de hostilidade ao seu redor.
De repente, um rugido elétrico perfurou o ar, fazendo-a estremecer enquanto
agredia sua audição de lobo. Angelia cobriu uma das orelhas com a mão e implorou que
não estivesse sangrando.
– O que foi isso?
Dare apontou para o palco, onde um grupo de Criaturas Mutantes ligavam
instrumentos musicais. Uma guitarra altíssima gemeu antes de eles começarem a cantar e a
aglomeração explodir em aplausos.
Angelia articulou uma careta no rosto delicado diante da visão e do som.
– Que música horrível! – reclamou, desejando estar em casa e não submersa naquele
mundo bárbaro.
Uma vez que eles chegaram ao térreo, Dare pôde dar apenas dois passos antes de ser
cercado por cinco ameaçadores ursos mutantes que Angelia jamais vira antes. O mais velho
deles, aparentemente o pai, já que carregava uma misteriosa semelhança com os mais
jovens, parou diante de Dare, encarando-o como se estivesse prestes a despedaçá-lo.
– Que diabos você está fazendo aqui, Lobo?
As narinas de Dare flamejaram, mas ele sabia tão bem quanto Angelia que eles
estavam em menor número e em um território hostil, cercados por animais.
Angelia limpou a garganta antes de falar com o urso mais velho.
– Este não é o Santuário?
Um dos jovens ursos loiros empurrou Dare.
– Não para todos. Para ele, é mais um cemitério.
Dare se controlou e conteve a expressão de ira. Felizmente, conseguiu refrear o
temperamento e não lutou.
Por enquanto.
Uma mulher alta e loira, parecida demais com aqueles homens para não ser da
família, parou ao lado deles. Lançou um olhar áspero e afrontoso para Dare antes de
esquadrinhar os ursos com um olhar mordaz.
Então, a mulher loira riu.
– Este não é Fang, pessoal. Parabéns, vocês estão prestes a esfolar um lobo inocente
– colocando a bandeja debaixo dos braços, ela começou a se afastar, mas o urso mais velho
a bloqueou.
– Ele se parece com Fang e tem o cheiro de Fang.
Ela bufou.
– Acredite em mim, Papa, ele não é nada parecido com Fang. Conheço meu lobo
quando o vejo e esse cara aí não tem nada a ver com ele.
O urso mais jovem do grupo repentinamente agarrou um punhado de fios do cabelo
de Dare.
– Ele tem a marca de um Kattalakis.
A garçonete virou os olhos.
– Certo, Serre. Mate o infeliz. Eu não dou a mínima – disse, antes de sair andando
sem olhar para trás.
Serre soltou os cabelos de Dare e emitiu um grunhido de nojo.
– Quem diabos é você?
– Dare Kattalakis.
Angelia congelou ao som da voz ressonante e profunda que a atravessou como gelo.
Era uma voz que ela não ouvia há centenas de anos, e pertencia a alguém que, há séculos,
ela presumia estar morto.
Fury Kattalakis.
O coração de Angelia bateu pesadamente enquanto ela assistia os ursos abrirem
caminho para ele se aproximar. Alto e magro, Fury tinha o tipo de corpo musculoso que a
maioria dos homens precisa construir com muito esforço e malhação. Mas ele não. Mesmo
quando era mais jovem, já tinha músculos definidos que causavam inveja nos outros
machos de sua Pátria e aceleravam os corações afoitos nos peitos das mulheres.
E aqueles últimos séculos tinham-no deixado ainda mais forte e rijo. A insegurança
de sua juventude tinha desaparecido. O lobo diante dela era penetrante e letal. E Angelia
sabia exatamente do que ele era capaz.
Derramamento de sangue sem piedade.
A última vez em que ela o vira, seus cabelos loiros estavam compridos. Agora,
estavam bem mais curtos, caindo até o pescoço. Mas seus olhos ainda guardavam aquela
cor única, um tom mais escuro que o turquesa.
E o ódio que havia neles a fez estremecer.
A jaqueta de couro preta que Fury usava tinha chamas vermelhas e amarelas nas
mangas; nas costas, havia um crânio e ossos cruzados que nasciam ameaçadoramente de
trás das chamas. O zíper aberto na parte da frente colocava à mostra a camiseta preta que
havia por baixo e a fibra sintética que forrava a jaqueta tornava os ombros ainda mais
largos. As pernas do par de calças pretas enfiavam-se em um par de botas também pretas,
que ostentavam fivelas prateadas dos lados.
Angelia engoliu em seco diante da aparição de Fury, parado ali, incrivelmente sexy
e pronto para lutar – e vencer – com todos à sua volta. E, contra sua vontade, o coração dela
disparou em inquietação. Embora Dare fosse gostoso, Fury era incrível. Hipnotizante.
E aquele lobo tinha um traseiro tão firme e bonito que devia ser considerado ilegal,
mesmo nos dias de hoje. Tudo o que ela precisava fazer era não olhar. Ou, melhor dizendo,
não encará-lo.
Ignorando o óbvio desejo de Angelia, Fury olhou para Dare.
– Há quanto tempo, irmão.
– Nem tanto tempo assim – disse Dare entre os dentes cerrados.
– Você o conhece? – perguntou o pai urso.
Fury encolheu os ombros.
– Costumava conhecer. Mas se vocês querem cortá-lo em pedaços e fazer sanduíche
com o que restar, eu não me importaria nem um pouco. Aliás, se acharem necessário, eu até
busco o amolador.
Dare moveu-se em sua direção.
Serre o agarrou e o impediu de continuar.
– Socá-lo seria um grande erro de sua parte. Mesmo que não gostemos dele.
Fury piscou sarcasticamente para o urso.
– Também te amo, Serre. Vocês sempre me fazem sentir tão bem-vindo aqui. Adoro
isso.
– O prazer é todo nosso – respondeu Serre, soltando Dare.
O pai urso fez um sinal.
– Já que aparentemente cometemos um erro, vamos deixar os lobos com seus
assuntos – lançou um olhar de advertência para Dare. – Lembre-se: sem derramamento de
sangue.
Nenhum deles disse uma palavra sequer até que os ursos estivessem completamente
longe dos olhos – e dos ouvidos.
Fury observou os dois seres diante de si cautelosamente. Dare e ele, junto a Vane,
Fang e suas duas irmãs, Anya e Star, eram da mesma ninhada. Todos nasceram ao mesmo
tempo e da mesma mãe Arcadiana. A mãe escolhera ficar com Fury, Dare e Star, e mandara
os outros para viver com o pai Katagari.
E foi então que eles julgaram que Fury era humano. Sim. E no momento que sua
família descobrira que ele não era humano, todos se viraram contra ele e tentaram matá-lo.
Sua condição era demasiadamente estranha para caber na compaixão humana.
Quanto a Angelia... Fury a odiava ainda mais do que odiava a seus irmãos. Quanto a
Dare, bem, Fury ao menos conseguia compreendê-lo. O cara sempre o invejara. Desde a
lembrança mais antiga de sua infância, Dare estava lá, tentando excluí-lo da afeição da
mãe.
Mas Angelia – sua Lia – fora sua melhor amiga. Mais íntima do que irmãos ou até
mesmo amantes. Ela prometera com um pacto de sangue permanecer ao lado dele por toda
a eternidade.
Então, no momento em que Dare revelou o segredo de Fury, ela também ficou
contra aquele que era seu amigo. Apenas isso já seria um motivo para Fury matá-la. Mas,
mesmo assim, ele tinha de admitir que ela ainda o fascinava. Seus longos cabelos negros
eram brilhantes e macios, do tipo que exigiam que as mãos rústicas de um homem lhes
acariciassem e que o rosto austero mergulhasse naquele labirinto até que ficasse
completamente inebriado com o perfume feminino. Os grandes olhos escuros escondiam
secretamente uma indolente qualidade tão sedutora quanto bela. E os lábios... Volumosos e
carnudos, eles pediam para ser beijados. Era também o tipo de lábios que não podia
despertar em um homem outra fantasia que não a de tê-los envolvendo uma parte de sua
anatomia masculina enquanto os olhos insinuantes procuravam porto onde ancorar.
Caramba, aquele simples pensamento excitava Fury.
Cerrando os dentes, estreitou os olhos e concentrou-se nas marcas que cobriam
metade do rosto de Angelia. Aqueles sinais marcavam-na como o pior tipo de hipócrita
arcadiano.
Uma Sentinela.
Sentinelas eram aqueles que se achavam melhores do que os Katagaria. Ou pior:
tinham jurado caçar e aprisionar os Katagaria como os animais que os Arcadianos os
acusavam de ser.
Para Fury, era difícil acreditar que algum dia já tinha cuidado de Angelia. Ele devia
estar louco. Sim, aquilo definitivamente devia ser insanidade.
– Vi o trabalho que fizeram com o Litariano – expressou Fury em um tom gutural. –
Querem contar como fizeram aquilo?
Dare, cujos olhos assemelhavam-se tanto com os de Vane que pareciam ser uma
maldita assombração, encarou Fury.
– Não sei do que você está falando.
Fury soltou um riso sarcástico.
– Sim, sei. E presumo que vocês dois estejam aqui por coincidência. Que vieram
apenas para tomar alguns drinks porque essas malditas coincidências acontecem o tempo
todo – farejou o ar. – Ei, espere um pouco, o que é isso? Merda? Sim, sinto cheiro de um
monte de merda.
– Como se fosse possível – cuspiu Dare. – É impossível sentir o cheiro de merda
nessa fossa infestada de bebida barata, perfume exagerado e fedor animal.
– Ah, mas espere, aí é que você se engana. Eu moro em uma fossa. Sentir o cheiro
de merda é minha especialidade. E, Irmão, você exala esse cheiro. Então, se eu fosse você,
contaria para mim o que fez. Ou então vou atirá-lo para os ursos Peltier.
Foi a vez de Dare soltar um riso sarcástico.
– E o que eles vão fazer? Eles têm de manter as leis. Sem derramamento de sangue.
– Verdade. Mas há três mutantes sem moral debaixo desse teto e outros dois moram
a poucos metros daqui. Vamos chamá-los e... Basicamente, Irmão, você está fodido.
– Não, Irmão – disse Dare, zombando da palavra usado por Fury. – Quem está
fodido aqui é você.
Antes que Fury pudesse piscar, Dare levantou uma arma e apontou para a cabeça
dele, que segurou-lhe o pulso no exato instante em que houve o disparo. Lutando e se
contorcendo, ele caiu de joelhos, puxando o braço de Dare consigo.
Gritos ecoavam ao redor deles.
– Arma! – alguém gritou, causando pânico nos humanos, que corriam para a saída.
Angelia segurou Fury pelo pescoço.
– Mantenha-o abaixado – vociferou Dare enquanto tentava desvencilhar o pulso da
mão de Fury.
Mas Fury recusava-se a soltar a mão de Dare. Se soltasse, o filho da mãe o acertaria
com o que quer que fosse que tenha usado nos leões.
Angelia envolveu o braço ao redor da garganta do lobo, asfixiando-o.
– Solte-o, Fury!
Antes de o lobo poder responder, os três foram separados. Fury tentou se levantar,
mas alguém os mantinha presos com um maldito campo de força. Rosnando, ele liberou
seus poderes com raiva. Em vez de quebrar o campo, transformou-se em um lobo.
Latiu para Mama Peltier, que se colocou entre ele e Dare. Mas Fury sabia que não
eram os poderes dela que ele sentia. O problema era que ele não sabia a quem aqueles
poderes pertenciam.
– Ninguém vem à minha casa e faz isso – rosnou. – Vocês três estão banidos daqui
e, se eu pegá-los dentro do Santuário novamente, vocês não viverão tempo suficiente para
se desculparem.
– Ele nos atacou – disse Dare. – Por que devemos ser banidos?
Dev rebocou-o do chão.
– Qualquer um que se envolve em uma briga é expulso. Essas são as leis.
Colt foi bem mais gentil ao levantar Angelia.
– Não houve derramamento de sangue – ela argumentou.
Mama contorceu os lábios.
– Não importa. Vocês quase nos expuseram aos humanos. Sorte de vocês que eles
saíram rapidamente. Agora, caiam fora daqui.
Fury tentou se transformar em humano novamente para contar-lhes o que estava
acontecendo, mas sua mágika não estava cooperando. Nem mesmo seus poderes mentais
estavam funcionando. Era provável que aquilo tivesse a ver com o fato de haver o poder de
uma terceira pessoa aprisionando-o.
Maldição!
Dare encarou-o e fez um gesto que deixava claro que eles não tinham terminado.
Então, ele e Angelia saíram.
– Você também deve ir, Lobo – rosnou Dev. – Max, leve-o para fora.
O campo de força foi interrompido.
Finalmente Fury podia voltar a transformar-se em humano. Embora pudesse ter
feito isso sem expor a nudez publicamente. Diferente de outros mutantes, ele não conseguia
fazer aparecer as roupas ao mesmo tempo em que se transformava. Realmente odeio meus
poderes...
Enquanto recolhia as roupas, elas foram colocadas em seu corpo. Confuso, ele
olhou ao redor e viu o olhar de Aimee. Ela fez um ligeiro gesto com a cabeça para
confirmar que tinha sido a responsável pela mãozinha. Sem dúvida Fang havia lhe contado
sobre sua fraqueza.
Dev deu um passo adiante.
– Estou indo – disse Fury. – Mas antes, permita-me agradecer a todos vocês pela
estupidez que demonstraram. Aqueles dois filhos da mãe que acabaram de sair são os
responsáveis por ferrar com o leão lá em cima. Eu estava tentando tirar a informação deles.
Dev praguejou.
– Por que você não nos disse nada?
– Eu estava tentando. Da próxima vez que prender alguém no chão em um campo
de força, talvez você se lembre de não reprimir também a habilidade de falar.
O membro da Pátria dos Draco,6 Max, sacudiu a cabeça.
– Achei que você fosse me insultar por prendê-lo. É isso o que você geralmente faz
sempre que fala comigo.
– E provavelmente insultaria se não tivesse nada mais importante para dizer.
Dev limpou a garganta para chamar-lhes a atenção.
– Eles são dessa época?
– Não.
Mama assentiu.
– Então eles devem estar em algum lugar da cidade. Não há lua cheia para que eles
possam dar o salto no tempo.
Assim Fury esperava, mas havia outra verdade sobre sua velha amiga.
– A mulher era Aristi. Ela não tem ligação com a lua. Eles podem estar em qualquer
lugar, em qualquer tempo.
Dev suspirou.
– Bem, pelo menos conseguimos afastar os humanos antes de eles verem algo
sobrenatural acontecer.
– Que ótimo, valentão – disse Fury, fechando o zíper da jaqueta. – Agora, se vocês
me permitem...
– Ei.
Ele olhou para Dev, que disse:
– Você ainda está banido daqui.
– Como se eu me importasse.
Fury tinha sido banido de muitos lugares muito mais legais do que aquele, nos quais
ele tivera pessoas que realmente se preocupavam com ele. Pelo menos por alguns anos.
Sem devolver o olhar, deixou os ursos e dirigiu-se para a Ursulines. A rua estava
inexplicavelmente quieta, em especial dado o fato de que um grande número de humanos
havia saído aos gritos noite afora apenas alguns minutos atrás. A ameaça de violência devia
tê-los penetrado a pele.
Mas isso não mudava o fato de que tinha ainda um lobo para rastrear. Dois, para ser
preciso. O senso comum lhe mandava retornar para seu grupo e contar a Vane o que estava
acontecendo.
Fury deu de ombros:
– Vivi toda minha vida sem nenhum senso. Por que deveria começar a me
preocupar agora?
Enquanto se aproximava de sua motocicleta, uma estranha fissura de poder lhe
percorreu a coluna. Virou-se esperando briga, mas, antes que pudesse sequer se mover, foi
golpeado por um choque feroz. Praguejando, caiu no chão com uma forte pancada. A dor
explodiu pelo seu corpo enquanto ele retomava sua forma de lobo, depois humano e depois
lobo outra vez.
Estava completamente imóvel enquanto seu corpo lutava para permanecer em uma
única forma, mas foi incapaz disso.
Dare se aproximou lentamente, chutando-lhe as costelas com força.
– Você deveria ter morrido, Fury. Agora vai desejar ter morrido.
Fury arrastou-se até ele, mas seus músculos não cooperavam. Se pudesse pôr uma
mão – ou uma pata – naquele bastardo, não tinha dúvida de que destroçaria sua garganta.
Dirigiu o olhar para Angelia e pode ver empatia em seu rosto um instante antes que
Dare disparasse algo. Uma dor indescritível atravessou-lhe o corpo enquanto Fury lutava
incansavelmente para se manter consciente.
Era uma batalha perdida, todavia. Em um segundo, tudo ficou negro.
– O que você está fazendo? – perguntou Angelia a Dare.
– Precisamos descobrir o que ele sabe sobre nosso experimento. Precisamos
descobrir com quem andou falando. Não podemos permitir que nosso segredo seja
descoberto.
Ela se acovardou enquanto observava o corpo de Fury ainda mudando da forma
humana para a forma do lobo branco e vice-versa, até que Dare colocou uma coleira na
garganta de Fury, o que o manteve como humano. Considerando que a força natural de
Fury era a de um lobo, mantê-lo como humano, especialmente à luz do dia, seria uma
forma mais certa de debilitá-lo.
E seria doloroso.
Angelia sacudiu a cabeça diante daquelas ações.
– Você sabe que ele não nos vai dizer nada.
– Eu não estaria tão seguro disso.
O Fury de que ela se lembrava nunca contaria um segredo. Morreria antes de
fazê-lo. E ele podia suportar muita dor. Ainda quando menino, tinha sido mais forte do que
qualquer outro.
– Como pode ter tanta certeza?
– Porque vou transformá-lo em nosso Chacal.
Angelia inspirou com o fôlego entrecortado diante daquela ameaça. Oscar era um
chacal cujo coração era tão negro ao ponto de torná-lo mais animal do que homem.
– Ele é seu irmão, Dare.
– Eu não tenho irmão. Você sabe o que os Katagaria fizeram com minha família.
Com nossa Pátria.
Era verdade. Angelia estava presente na noite em que o pai Katagaria de Dare tinha
liderado o ataque no campo Arcadiano. Ela era apenas uma garotinha e fora escondida
pelos pais quando os ataques começaram. A mãe a havia enlameado com terra para
mascarar seu cheiro antes de colocá-la no porão.
Ainda agora, Angelia podia ver os lobos atacando sua mãe, assassinando-a enquanto
ela observava com horror toda a cena através das tábuas do chão.
Dare tinha razão. Eles deviam proteger seu povo. Os animais deviam ser despojados
de seus poderes e eliminados como as violentas criaturas que eram.
Inclusive Fury.
– Está comigo? – perguntou-lhe Dare.
Ela assentiu.
– Não quero que nenhuma criança tenha o mesmo destino que o meu. Temos que
nos proteger. Custe o que custar.
5 Aristi: raça rara de Arcadiano com a habilidade de usar a magia sem esforço, os
Aristi são os deuses mais poderosos e mais importantes do Reino Arcadiano (N. T.).
6 Draco: mutantes com a habilidade de se transformar em dragão. (N. T.)
Angelia andava pelo pequeno acampamento que eles haviam montado enquanto
ouvia Fury insultar Oscar ao mesmo tempo em que Oscar e Dare o torturavam em busca de
informações. Francamente, ela não tinha estômago para aquilo. Nunca tivera.
Talvez Dare estivesse certo. Talvez ela realmente não devesse pertencer a uma
tessela.
Apesar disso, era uma guerreira com habilidades incomparáveis. Em batalha, não
hesitava em ferir ou matar. O que lhe revirava o estômago, naquele caso, era a ideia de
agredir alguém que não podia se defender.
Ele é um animal.
Não havia dúvidas de que ele a mataria em um segundo. Cada parte do corpo de
Angelia sabia daquilo e, ainda assim...
Contorceu-se quando Fury uivou de dor.
Um instante depois, Oscar aproximou-se dela e da fogueira que haviam feito
anteriormente. Sem dizer uma palavra, passou por ela e manifestou um bastão de ferro.
Franzindo a testa, ela o observou deitar o bastão no fogo.
– O que você está fazendo?
– Acho que uma marquinha pode fazê-lo soltar a língua.
Uma onda de náusea percorreu o corpo de Angelia.
Dare saiu da barraca com o mesmo olhar de descontentamento estampado no rosto.
– Enfie isso no traseiro dele até ele falar.
Oscar riu.
Horrorizada, Angelia não se moveu até que os dois homens, de posse do bastão em
brasas, começaram seguir outra vez para a barraca.
– Não! – ela exclamou severamente.
Oscar encarou-a com firmeza.
– Saia do caminho.
– Não! – repetiu Angelia. – Isso está errado. Vocês estão agindo como eles.
A expressão de Dare era severa e sádica.
– Estamos protegendo nosso povo.
Mas aquilo não era proteção. Aquilo era pura e simplesmente barbárie, crueldade.
Sadismo até. Incapaz de tolerar o que via diante de si, Angelia tentou outra tática.
– Deixe-me interrogá-lo.
Dare fechou uma carranca.
– Por quê? Como você mesma falou, ele não vai dizer nada.
Ela apontou para a barraca enquanto esforçava-se para manter a cólera sob controle.
– Vocês estão batendo nele há horas, e isso não nos levou a lugar nenhum.
Deixe-me tentar outra estratégia. Que mal terá?
Oscar devolveu o bastão ao fogo.
– Preciso mesmo comer alguma coisa. Você tem esse tempo, e depois eu vou tentar
novamente do meu jeito.
Sentindo repulsa por ambos, Angelia virou-se e seguiu na direção da barraca.
A visão de Fury deitado no chão a paralisou. Ainda em forma humana, ele estava
nu, com as mãos amarradas em um ângulo atrás das costas. Outra corda prendia-lhe as
pernas. Estava coberto de hematomas e cortes, a ponto de ela praticamente não
reconhecê-lo.
O fato de ele estar tão ferido e em sua forma humana devia ser excruciante para
Fury. Sempre que os lobos estavam feridos, assumiam sua forma natural. Para Angelia, era
a forma humana; para Fury...
Ele era um lobo.
Tentando concentrar-se nisso, ela ajoelhou-se ao seu lado.
Fury rosnou ameaçadoramente até que olhou e encontrou o olhar dela. A dor e a
tormenta reprimidos naqueles olhos turquesa fizeram Angelia estremecer. E, quando desceu
o olhar, vislumbrou a cicatriz em seu peito. O ferimento que ela lhe causara.
A culpa dilacerou-a por completo e Angelia pensou que nunca devia ter feito aquilo.
– Por que você simplesmente não termina de vez o trabalho? – ele disse em tom
hostil e mortal.
– Não queremos feri-lo.
Fury riu sarcasticamente.
– Minhas feridas e a alegria que seus amigos tinham nos olhos quando as
provocaram contam-me uma história diferente.
Angelia afastou os cabelos da testa de Fury e observou o enorme corte que havia em
sua sobrancelha. Sangue corria das narinas e dos lábios.
– Sinto muito – resignou-se em dizer.
– Todos nós sentimos por algo. Por que você não se transforma em um animal de
uma vez e simplesmente me mata? – disse, encarando-a. – Você também pode fazer isso.
Não vou contar porcaria nenhuma a vocês.
– Precisamos saber o que aconteceu com o leão.
– Vá para o inferno.
– Fury...
– Não se atreva a dizer meu nome. Eu não passo de um animal para vocês. Acredite,
vocês deixaram isso bem claro para mim quatrocentos anos atrás, quando me espancaram
até eu quase morrer e me atiraram num monte de lixo para eu esperar a morte.
– Fury...
Ele latiu para ela como um lobo.
– Quer parar?
Ele continuou emitindo sons de lobo.
Suspirando, Angelia sacudiu a cabeça.
– Não é de se admirar que eles batam em você.
Expondo os dentes de uma forma verdadeiramente canina, ele grunhiu, e depois
latiu. Não havia nada de humano naquele som ou naquele comportamento.
Angelia afastou-se.
Quando ela já estava distante, Fury deitou-se novamente no chão e calou todos os
sons. Ficou completamente parado.
Estaria ele morto?
Não, seu peito ainda se movia. Angelia podia até mesmo ouvir a fraca respiração
perder-se na atmosfera atroz que tomava conta da barraca. E, enquanto olhava para ele,
seus pensamentos voltaram ao passado. Ao jovem de quem um dia fora amiga. Embora
Fury fosse quatro anos mais jovem do que ela, alguma coisa nele havia chamado sua
atenção. Alguma coisa nele havia tocado seu coração.
Enquanto Dare era arrogante e mandão, Fury mantinha uma vulnerabilidade que
despertara em Angelia o desejo de querer protegê-lo. Mais do que isso, ele nunca a tinha
tratado como inferior. Via-a como parceira e confidente.
Serei sua família, Lia. Aquelas palavras ainda a assombravam. Elas compunham a
promessa que Fury lhe fizera quando descobrira que ela tivera a família assassinada pelos
Katagaria – pela matilha de seu próprio pai. Jamais deixarei que os lobos a machuquem. Eu
juro.
No entanto, ela estava presente naquela manhã, enquanto eles o torturavam sem
piedade.
Isso não é nada comparado ao que você lhe fez na última vez em que o viu, pensou.
Era verdade. Ela não estivera presente da outra vez, e a surra que ele levara fora
bem pior do que essa.
– Fury... – ela tentou novamente. – Diga-me o que precisamos saber, e eu prometo
que isso vai acabar.
Ele levantou a cabeça e encarou-a com um olhar furioso.
– Eu não traio meus amigos.
– Não se atreva a dizer isso para mim. Eu estava protegendo meu povo quando o
ataquei.
Ele resfolegou em descrença.
– De mim? Eles eram meu povo também.
Angelia balançou a cabeça, negando.
– Você não tem povo. Você é um animal.
Ele desenhou na boca um rosnado ríspido.
– Querida, me solte e eu lhe mostrarei o quanto de animal há no homem em mim.
Acredite, ele é bem mais cruel do que o lobo.
– Eu disse... – interrompeu Oscar, entrando na barraca e trazendo o bastão em brasa.
– Você devia sair. O cheiro de carne queimada vai ser forte.
Angelia viu o pânico tomar conta dos olhos de Fury conforme ele tentava afastar-se
deles.
Oscar agarrou-o pelos cabelos e o empurrou. Fury o chutou, mas não havia muito o
que fazer enquanto estivesse daquele jeito, amarrado. Mesmo assim, ele lutava com uma
coragem admirável.
– Saia – disse Dare, entrando na barraca.
No momento em que ela dirigia-se para a saída, Fury soltou um uivo tão feroz e tão
carregado de dor que Angelia sentiu sua alma se despedaçar. Ainda enquanto dava
meia-volta, Angelia viu que Oscar havia atingido Fury com o bastão em brasas,
queimado-lhe o lado esquerdo do quadril e fazendo um odor fétido de carne queimada
exalar na atmosfera.
Independentemente de quem estivesse certo, ela não podia deixá-los repetir aquela
cena infame.
Angelia empurrou Dare e afastou Oscar de Fury. Antes de eles caírem em si, ela
ajoelhou-se ao lado de Fury e repousou sua mão no ombro dele. Usando de seus poderes,
desapareceu da barraca levando consigo Fury até um pântano longe daqueles dois sádicos
notórios. Como não conhecia muito bem a região, aquele era o lugar mais seguro em que
Angelia conseguiu pensar.
Quando Fury olhou em seus olhos, Angelia não reconheceu gratidão naquele olhar.
Enxergou apenas raiva e aversão, cortantes como navalhas amoladíssimas.
– O que vai fazer agora? Vai me deixar aqui para ser devorado pelos crocodilos?
– Era o que eu deveria fazer.
Em vez disso, entretanto, ela manifestou um punhal para cortar as cordas que
mantinham as mãos de Fury amarradas.
Ele ficou estupefato com as atitudes de Angelia.
– Por que você está me ajudando?
– Não sei. Aparentemente estou tendo um momento de idiotice extrema.
Ele limpou o sangue que maculava seu rosto enquanto ela cortava as cordas que
amarravam-lhe os pés.
– Eu preferiria que sua idiotice tivesse se manifestado antes.
Angelia ficou imóvel quando viu a bolha no ponto em que o chacal o tinha atingido
com o bastão. Aquilo deveria estar doendo muito.
– Sinto muito.
Fury agarrou a coleira em seu pescoço e a puxou, podendo finalmente respirar
aliviado.
Angelia ofegou com aquele gesto. Ninguém devia ser capaz de remover aquela
coleira.
Ninguém.
– Como você fez isso?
Ele olhou sarcasticamente para ela.
– Posso fazer muitas coisas quando não estou sendo espancado.
Ela ensaiou deixá-lo, mas, antes de poder fazê-lo, Fury prendeu a coleira em volta
do pescoço dela. Emitindo um som agudo, Angelia tentou usar seus poderes para atacar ou
afastar o lobo.
Inútil.
– Eu salvei a sua vida!
– Dane-se – ele rosnou. – Eu não estaria naquela barraca se você não tivesse me
atacado na noite passada. Você tem sorte de eu não lhe retribuir o favor que me fez.
Uma onda de pânico insensato se espalhou pelo corpo de Angelia quando ela se deu
conta de que Fury podia fazer o que quisesse com ela, já que não teria poder algum para
detê-lo.
– O que você vai fazer?
Não havia misericórdia na expressão dele. Tampouco havia perdão.
– Eu devia rasgar seu pescoço. Mas, para sua sorte, sou apenas um animal e matar
por vingança não é de minha natureza – Fury apertou as mãos no braço delicado de
Angelia. – Matar para proteger a mim e aos de minha matilha é outra história. Você fará
bem em se lembrar disso.
No momento em que ela abria a boca para responder, Fury teletransportou-os do
pântano e ressurgiu na grande casa em estilo vitoriano de seu irmão Vane.
A companheira de Vane estava na sala de estar, de pé ao lado do sofá onde o filho
repousava adormecido. Alta e curvilínea, com cabelos curtos castanho-avermelhados, Bride
era uma das poucas pessoas em quem Fury realmente confiava. Ela soltou um rosnado
animalesco antes de girar e dar as costas aos recém-chegados visitantes.
– Meu Deus, Fury. Avise-me antes quando for aparecer aqui nu.
– Desculpe, Bride – disse ele, tentando manter o foco. Todavia, dados os ferimentos
que cobriam-lhe o corpo, aquela não estava sendo uma tarefa fácil.
– O que aconteceu com você?
Ele olhou para a frente e encontrou Vane de pé no solado da porta. Fury queria
responder à pergunta que o irmão lhe fizera, mas o esgotamento de seus poderes, somado a
todos aqueles ferimentos, era mais do que ele conseguia suportar. Seus ouvidos zumbiam.
Logo se deu conta de que havia novamente se transformado em lobo e a exaustão
finalmente começava a tomar conta.
Não a deixe escapar e não retire aquela coleira, comunicou Fury mentalmente a
Vane antes de a escuridão carregá-lo novamente.
Angelia afastou-se do lobo em que Fury agora havia se transformado. Percebendo
que ele estava inconsciente, ela ensaiou dirigir-se até a porta, mas imediatamente
deparou-se com um homem que carregava uma assombrosa semelhança com Dare. Esse
cara, todavia, era bem mais intimidador e ainda mais belo.
– Preciso ir.
Ele olhou para a mulher ao lado do sofá.
– Bride, leve o bebê para cima – embora em seu tom houvesse um peso de ordem,
havia nele também gentileza e amparo.
Angelia ouviu a mulher sair sem questionar.
Tão logo ela havia deixado o recinto, Vane deitou os misteriosos olhos amendoados
nos de Angelia de forma tal que a expressão deixava-lhe muito mais lobo do que homem.
– O que você está fazendo aqui e o que aconteceu com meu irmão?
A jovem inclinou levemente a cabeça ao ouvir aquela pergunta. O cheiro do homem
que a interrogava era inconfundível.
– Você é Arcadiano. Um Sentinela, como eu – disse.
Mas, diferentemente dela, ele escolhera esconder as marcas em seu rosto, as marcas
que lhe assinalavam como um membro da rara e sagrada raça à qual ambos pertenciam.
Ele franziu os lábios.
– Não sou nada como você. Minha lealdade é com os Katagaria e com meu irmão.
Ele me pediu para mantê-la aqui e assim eu farei.
A raiva explodiu dentro de Angelia. Não estava em seus planos permanecer ali.
– Preciso voltar para minha Pátria.
Ele moveu a cabeça com uma expressão decidida.
– Você é parte da Pátria de minha mãe, o que me torna seu inimigo mortal. Você
não partirá até que Fury assim o permita – o grande homem deu um passo em direção ao
local onde Fury estava prostrado no chão.
Angelia estava consternada com aquela atitude.
– Você está me sequestrando?
Sem esforço, o homem ergueu Fury do chão, uma tarefa nada fácil dado o tamanho
do lobo.
– Minha mãe sequestrou minha companheira e a levou de volta para a Inglaterra
medieval, onde os membros de nossa Pátria então tentaram estuprá-la. Agradeça por eu não
devolver o favor.
Aquelas palavras eram tão lúgubres quanto as de Fury e irromperam em Angelia um
arrepio lancinante.
– Eu só quero ir para casa – disse ela.
– Você está segura aqui. Ninguém irá feri-la... a menos que você tente fugir –
virou-se e carregou Fury pelas mesmas escadas que momentos antes a mulher subira
carregando a criança.
Angelia observou-o até que sua silhueta desaparecesse de seu ângulo de visão.
Correu, então, para a porta da frente. Conseguiu dar apenas três passos antes de quatro
lobos aparecerem diante de seus olhos. Revelando-lhe os dentes e rispidamente insinuando
mordê-la, os animais bloquearam a passagem.
Katagaria.
Ela podia afirmar ao simples cheiro que eles exalavam. Cheiro de lobo misturado
com odor de humano e aroma de mágika. Ainda era dia, o que significava que dificilmente
eles manifestariam suas formas humanas. Não era impossível, mas sim improvável,
especialmente se fossem jovens ou inexperientes.
Ainda tentou forçar a passagem, mas os animais impediram-na com pujança.
– Façam o que Vane lhes disse para fazerem.
Ela virou-se e congelou em choque. Na forma humana, aquele lobo parecia-se muito
com Dare. Era como se fossem irmãos gêmeos.
– Quem é você?
– Fang Kattalakis, e é melhor você pedir, seja qual for o deus que você idolatre,
para que nada aconteça com Fury. Se meu irmão morrer, sua cabeça será minha – ele olhou
para os lobos ao redor dela. – Vigiem-na – depois, voltou à forma de lobo e correu
escadaria acima.
Angelia recuou vagarosamente para a sala de estar. Quando vislumbrou outra porta
que dava para fora, rumou intempestiva, mas apenas para se deparar com mais lobos.
O pavor irrompeu em seu corpo e ela se lembrou de quando era uma garotinha
indefesa e os lobos aniquilaram sua mãe. Repetidas e repetidas vezes, ela ouvia aqueles
gritos e revivia o pesadelo dos lobos destruindo seus pais. Tentou lutar contra os animais à
sua frente, mas a coleira havia anulado todos os seus poderes.
Ela estava à mercê deles.
– Afastem-se – ela rosnou, atirando um abajur na direção dos lobos.
Eles retribuíram-lhe o rosnado e latiram, circundando-a.
Angelia não conseguia respirar e o pânico tomava-lhe conta. Eles iriam matá-la!
Vane queria sangue quando viu os ferimentos profundos no corpo de Fury.
– O que aconteceu?
Virou-se e encontrou Fang de pé, na soleira da porta.
– Parece que os Arcadianos o pegaram e fizeram uma festinha.
As narinas de Fang dilataram-se.
– Vi uma das vadias deles lá embaixo. Quer que eu a mate?
Não.
Vane franziu a testa quando ouviu a voz de Fury ecoar em sua cabeça. Fury abriu os
olhos e olhou para o irmão.
Onde ela está?
– Lá embaixo. Os lobos a estão vigiando.
Fury tomou a forma humana imediatamente.
– Você não pode fazer isso.
– Por quê?
– Os pais dela foram assassinados por nossa matilha. Destroçados diante de seus
olhos quando ela tinha apenas três anos. Ela deve estar apavorada.
Antes de Vane ter a oportunidade de responder, Fury desapareceu.
Angelia defendia-se dos lobos com o abajur quebrado enquanto eles se
aproximavam mais e mais. Aterrorizada, ela queria gritar, mas o som estava preso em sua
garganta. Tudo o que conseguia ver era sangue e tudo o que conseguia sentir era o mesmo
horror que sentira na noite em que os gritos de seus pais ecoaram em sua cabeça.
Não conseguia respirar. Tampouco era capaz de pensar.
A próxima coisa que pôde perceber foi alguém arrebatando-a e protegendo-a com o
corpo.
Virou-se, tentando atingir seu novo agressor, e então congelou ao ver Fury em sua
forma humana.
Com um toque gentil, ele tomou-lhe o abajur da mão e depositou-o com cuidado no
chão. Sua expressão era calma; seus olhos quase não piscavam.
– Não deixarei que a machuquem – disse em um tom sussurrado. – Não me esqueci
da minha promessa.
Um soluço surgiu das profundezas do ser de Angelia quando Fury colocou-se entre
ela e os lobos.
– Afastem-se – latiu para os outros. – Vocês estão agindo como humanos.
Zangado com a crueldade da matilha, Fury conduziu Angelia pelas escadas.
– Eu não precisava de sua ajuda – ela rosnou.
Mas ele percebeu que ela não se afastou.
– Acredite, estou bem acostumado com sua familiaridade em esfaquear e matar a
sangue frio.
Angelia hesitou ao ouvir aquelas palavras frias e tingidas de merecida hostilidade.
Era verdade. Fury estava desarmado quando eles o atacaram e ela o deixara com a
brutalidade de sua família.
Vergonha e horror irromperam dentro de si.
– Por que você me salvou agora?
– Sou um cachorro, lembra? Somos leais mesmo quando ser leal é algo idiota.
Ela chacoalhou a cabeça em negação.
– Você é um lobo.
– É a mesma coisa para a maioria das pessoas... – dizendo isso, parou diante da
porta e bateu.
Uma voz gentil ordenou-lhes que entrassem.
Fury abriu a porta e empurrou Angelia para dentro.
– Sou eu, Bride. Ainda estou nu, então resolvi dar uma passada aqui. Esta é Angelia.
Ela não gosta muito de lobos, então pensei que pudesse querer ficar com você... se não
houver problema.
Bride levantou-se da cadeira de balanço onde embalava uma criança adormecida
nos braços.
– Você está bem, Fury?
Angelia viu o cansaço no rosto de Fury e imediatamente pode imaginar quanta dor
ele devia estar sentindo. Ainda assim, ele viera por ela...
Era incrível.
– Sim – respondeu em um tom abatido. – Mas realmente preciso deitar e descansar
um pouco.
– Vá dormir, querido.
Fury parou e encontrou o olhar de Angelia com uma hostilidade ferina tão potente
que lhe congelou a alma.
– Se feri-la, se sequer olhar para ela de alguma forma que lhe machuque os
sentimentos, você vai ser trucidada como um pedaço de carne. E nenhum poder, seu ou de
qualquer outra pessoa, irá salvá-la. Você entendeu?
Angelia assentiu.
– Não estou brincando – advertiu-a novamente.
– Sei que não está.
Ele inclinou a cabeça antes de bater a porta.
Angelia virou-se e viu Bride se aproximar. Sem dizer nada e ainda com a criança
nos braços, Bride passou por ela e abriu a porta. Fury tinha retomado a forma de lobo e
estava deitado no corredor, onde devia ter desmaiado depois de fechar a porta do quarto.
Com empatia, Bride agachou-se no chão e mergulhou uma mão na pelagem branca.
– Vane?
Ele apareceu no corredor diante dela.
– Que diabos ele está fazendo aqui? Eu estava procurando lá embaixo.
– Ele queria que eu cuidasse de Angelia.
Vane olhou para Angelia com desprezo e asco.
– Por quê?
– Disse que ela estava com medo e queria que eu ficasse com ela. O que está
acontecendo?
O rosto de Vane acalmou-se quando ele olhou para sua companheira. O amor que
sentia por ela era mais do que óbvio e tocou o coração de Angelia. Nenhum homem jamais
tinha olhado para ela com aquela afeição e doçura.
Vane passou a mão em uma mecha de cabelo de Bride antes de levar a mesma mão
aos cabelos escuros da criança adormecida.
– Também ainda não sei direito, querida. Fury sempre fala mais com você do que
comigo – voltou a olhar para Angelia e voltou a tornar-se letal e frio. – Vou avisá-la, e será
apenas uma vez: se acontecer algo com minha companheira ou com meu filho, vamos
cortá-la em tantos pedaços que seu povo nunca irá encontrá-la.
Angelia enrijeceu.
– Não sou um animal. Não mato a família das pessoas para atingi-las.
Vane riu sarcasticamente.
– Ah, garota, acredite. Animais não atacam ou matam por vingança. Isso é
puramente humano. Então, nesse caso, é melhor você agir como um animal e proteger
Bride com a sua própria vida. Porque é sua vida que vou reclamar se ela furar o dedo com
uma agulha em sua presença.
Angelia retribuiu o olhar letal de Vane. Se ele pensava em atacá-la, era bom que
soubesse que ela não era uma fraca qualquer. Era uma guerreira treinada e não desistiria
sem uma luta brutal.
– Sabe, estou ficando cansada de ser ameaçada por todos...
– Não são ameaças. São puros e simples fatos.
Angelia olhou para ele com desejo de pular em seu pescoço. Se pelo menos ela não
estivesse usando a coleira...
– Tudo bem, pessoal – disse Bride. – Já basta. Você, leve Fury para a cama e cuide
dele – disse a Vane. Em seguida, levantou-se e caminhou em direção a Angelia. – Você,
acompanhe-me e prometo que não vou ameaçá-la a menos que faça algo para merecer isso.
Vane soltou uma risada sussurrada.
– E lembre-se de que, mesmo sendo uma humana, ela venceu e aprisionou minha
mãe. Não se engane com os traços humanos dela. Ela pode ser tão cruel quanto for
necessário.
Bride mandou um beijo no ar para ele enquanto segurava a cabeça do filho com
uma mão.
– Apenas quando estou protegendo você e nosso bebê, querido. Agora, leve Fury
para a cama. Ficaremos bem.
Angelia afastou-se para dar passagem a Bride, que seguiu em direção ao quarto do
bebê. As paredes eram azul-claras e decoradas com ursos e estrelas. Bride colocou a criança
no berço azul e branco e ficou ao seu lado, olhando-o.
Sentindo-se deslocada, Angelia cruzou os braços.
– Quantos anos ele tem?
– Dois. Sei que devia tirá-lo do berço, mas ele tem um sono agitado e ainda não
estou pronta para vê-lo cair acidentalmente da cama. Tolo, não?
Angelia reprimiu um sorriso diante da preocupação de Bride.
– Proteger a família nunca é tolice.
– Não, não é – suspirou Bride enquanto acariciava os cabelos negros da criança.
Virou-se e encarou Angelia. – Então, quer me contar o que está acontecendo?
Angelia ponderou sobre o pedido. Contar àquela mulher que ela ajudara a raptar
Fury e depois afastara-se enquanto dois membros de sua tessela o torturavam violentamente
não parecia ser a melhor coisa a se fazer. Poderia até mesmo significar suicídio, dada a
natureza daquelas “pessoas”.
– Não tenho certeza de como posso responder a essa pergunta.
O olhar de Bride intensificou-se.
– Então você deve também ser culpada pelos ferimentos de Fury.
– Não – respondeu indignada. – Eu não o torturei. Eu não faria isso com ninguém.
Bride acenou com a cabeça, demonstrando desconfiança.
– Mas permitiu que acontecesse.
Ela era mais esperta do que Angelia queria que fosse.
– Mas eu os impedi de continuar.
– Depois de quanto tempo? Fury está bem mal e sei o quanto ele pode suportar e
ainda continuar lutando. Para desmaiar como desmaiou... Alguém deve ter batido nele por
um bom tempo.
Angelia desviou o olhar, envergonhada. Ela sentia profundamente, mais até do que
achava que fosse possível, por não ter intervido mais cedo. Que tipo de pessoa fica
impassível diante de alguém sendo espancado? Especialmente alguém que ela chamara,
certa vez, de amigo.
Mesmo assim, pela segunda vez em sua vida, ela havia deixado Fury quase ser
assassinado e não fizera nada para impedir.
Não, ela não era melhor do que os animais que odiava. Angelia desprezava essa sua
característica cada vez mais.
– Não me orgulho disso, está bem? Eu devia ter feito algo antes... Sei que devia.
Mas eu impedi que eles continuassem.
– Você está tentando justificar sua crueldade?
Angelia rangeu os dentes.
– Não estou tentando justificar nada. Francamente, tudo o que quero é ir para casa.
Não gosto dessa época e não gosto de estar aqui com meus inimigos.
Todavia, Bride não foi nada indulgente.
– E eu não gosto do que vocês fizeram com Fury, mas até que eu saiba mais sobre o
que aconteceu, não somos inimigos. Nesse momento, a hostilidade vem apenas de sua
parte. Eu disse para Fury que ficaria com você e é isso o que vou fazer. Não há hostilidade
aqui.
Angelia desferiu um olhar cruel para a mulher e seu tom condescendente.
– Você não faz ideia de como me sinto.
– Ei, espere... – disse Bride entre um sorriso sarcástico. – Eu estava cuidando da
minha vida quando Bryani enviou um demônio para me sequestrar de minha época e me
levar para o vilarejo dela na Inglaterra medieval. Isso quando eu sequer sabia que tais
coisas eram possíveis. Quando eu estava lá, todos vinham e me ameaçavam e tudo isso sem
eu nunca ter-lhes feito coisa alguma, jamais. E isso incluiu Dare Kattalakis. Então, os
machos da Pátria deles tentaram me estuprar por nenhuma razão além do fato de eu ser
companheira de Vane... Ei, espere... o que estou dizendo? Ainda não éramos companheiros.
Eles queriam me atacar simplesmente porque Vane tinha a marca. Então, acho que tenho,
sim, uma vaga ideia de como você está se sentindo. E, em sua defesa, você não está sendo
maltratada.
Angelia distanciou-se ainda mais. O que Bride lhe descrevera tinha acontecido
quatro anos atrás. E, embora Angelia não tivesse participado do evento, ela soubera por
outros o quanto eles tentavam ferir aquela mulher que agora estava em sua frente. Aquilo
causou-lhe náuseas novamente.
– Eu não estava lá quando eles fizeram isso com você. Eu estava fora, em uma
patrulha. Só soube disso depois.
– Bem, sorte sua. De qualquer forma, foi bastante traumático para mim. E
diferentemente do seu povo, posso assegurar-lhe que nenhum lobo nessa casa irá atacá-la a
menos que você os provoque de alguma maneira.
Angelia rosnou, arrogante e ingênua.
– Você é humana. Como pode confiar sua vida a animais? Não entende como são
selvagens?
Bride encolheu os ombros.
– Meu pai é veterinário. Cresci rodeada de animais de todo tipo, selvagens e
domésticos, com penas, com pelos, com escamas... E, francamente, acho que eles são bem
mais previsíveis do que os humanos. Eles não apunhalam de volta, não mentem e não
traem. Em toda minha vida, nenhum animal jamais fez nada que me magoasse ou me
fizesse chorar.
– Você tem sorte – disse Angelia em tom sarcástico. – Assisti toda minha família
ser devorada viva pelos animais que estão em sua sala de estar, na mesma casa em que está
o seu filho. O sangue de meus pais escorreu das bocas deles para as frestas do chão e me
encharcou enquanto eu morria de medo de também ser devorada.
Olhou para o berço onde o filho de Bride dormia pacificamente, inconsciente de
quanto perigo corria por causa das idiotices de sua mãe.
– Eu era apenas um ano mais velha do que seu filho quando isso aconteceu. Meus
pais deram a vida deles para salvarem a minha e eu presenciei tudo. Então, queira me
desculpar se eu não gosto muito de animais que não estejam mortos ou enjaulados.
– Isso realmente faz você se perguntar o que provocou os animais, não é mesmo?
Angelia virou-se ao som da voz baixa que ecoou como um trovão e causou-lhe
arrepios. De pé, atrás dela, aquele homem tinha uma atitude tão feroz que escorria por cada
poro de sua pele.
Completamente vestido de preto, ele usava calças jeans, botas de caminhada e uma
camiseta de manga curta que deixava à mostra um perfeito corpo masculino. Um brinco de
prata dependurava-se em seu lóbulo esquerdo. Em forma de espada, o adereço ostentava
uma caveira e ossos cruzados.
Enquanto corria os olhos pelo corpo de Angelia, seus lábios torciam-se em um
sorriso tornado ainda mais ameaçador pelo cavanhaque preto. Os cabelos lisos e negros que
chegavam até os ombros estavam penteados para trás e deixavam inteiramente à mostra um
par de olhos assustadoramente azul.
O comportamento obstinado e fatal daquele homem fez Angelia pensar em um
assassino a sangue frio. E, quando ele olhou para ela, ela teve a sensação de que a estava
medindo para escolher um caixão.
O coração de Angelia disparou e ela procurou imediatamente a mão esquerda do
homem. Cada dedo, incluindo o polegar, estava coberto com uma longa e articulada
navalha prateada e com uma ponta tão afiada que era, obviamente, sua arma de escolha.
Aquele homem gostava se sujar em suas matanças.
Chamá-lo de psicopata seria um simples elogio.
Instintivamente, ela deu três passos para trás.
Bride soltou um sorriso sonoro quando viu o homem na porta, apesar do fato de ele
obviamente não bater bem da cabeça e ser uma ameaça ainda maior do que os lobos na sala
de estar.
– Z... Que diabos você está fazendo aqui?
Ele desviou o olhar glacial de Angelia e olhou para Bride.
– Astrid pediu para eu falar com Sasha. Aparentemente algo estranho aconteceu no
Santuário na noite passada e ela está preocupada com a segurança dele.
Os olhos de Bride abriram-se mais.
– Então, o que você sabe sobre isso?
O homem olhou com suspeita para Angelia e aquele olhar congelou-lhe o sangue.
– Alguns Arcadianos encontraram uma forma de aprisionar os Katagaria na forma
animal e sugar-lhes a mágika. Sasha disse que os responsáveis atacaram Fury e ninguém o
viu depois disso. Por isso minha presença não anunciada aqui, sem o colega de Trace. Se
Sasha estiver ameaçado, Astrid ficará chateada. E se Astrid ficar chateada, vou matar quem
quer que seja responsável por isso até que ela fique feliz de novo. Então, onde está Fury?
De qualquer outro homem, aquilo soaria uma piada, mas Angelia não duvidou nem
por um instante que Z de fato pretendia cumprir sua ameaça. Especialmente levando em
conta a forma como ele movia aquela navalha em sua mão.
– Ei, Zarek – chamou Bride lentamente, com os olhos tomados de ânimo. – Acho
que esse foi o maior número de palavras que você já me disse durante uma única visita.
Talvez até mesmo tomando todas elas juntas. Estou impressionada. Quanto a Fury, acho
que posso dizer que ele não é responsável pela chateação de Sasha, então, por favor, não o
mate. Eu sentiria uma imensa falta daquele cara se ele morresse. Ele foi bastante ferido e
desmaiou assim que chegou em casa.
Z soltou um palavrão tão sujo que Angelia corou ao ouvi-lo. Depois, olhou em sua
direção.
– E quanto a ela? Ela sabe de alguma coisa? – o tom daquelas palavras não eram de
uma pergunta, mas de uma inegável ameaça.
Angelia ficou tensa, como se se preparasse para lutar.
– Sou uma Aristi. Não acho que queira se envolver comigo.
Ele rosnou ao ouvir aquelas palavras.
– Como se eu me importasse... Sou um deus, garotinha, então, na escala das coisas,
se eu quiser arrancar a sua cabeça e usá-la para jogar boliche, não há muitos seres capazes
de me impedir e a maioria dos que poderiam tem muito medo de mim para sequer tentar.
Angelia teve a sensação de que ele não estava blefando.
– Zarek – disse Bride em tom de repreensão. – Não acredito que torturá-la irá lhe
oferecer as respostas que busca.
Um sorriso vagaroso e sinistro delineou-se nos lábios bem desenhados de Z.
– Sim, mas seria engraçado. Bem, vamos ver... – completou, dando um passo
adiante.
Bride colocou-se diante dele.
– Sei que você quer agradar sua companheira, e aprecio muito isso. Mas eu disse
para Fury que ela estaria segura. Por favor, não me faça passar por mentirosa, Z.
Ele emitiu um rosnado do fundo da garganta e, pela primeira vez, Angelia respeitou
Bride, que não vacilou diante do implacável escrutínio do homem.
– Está bem, Bride. Mas quero saber o que está acontecendo. E se eu precisar ficar
aqui longe de minha companheira e do meu filho por muito tempo... digamos que isso não
será bom para ninguém. Onde está Vane?
– Com Fury. Primeira porta à sua direita.
Ele moveu uma vez mais a navalha que trazia nas mãos antes de se virar e ensaiar
sair. Ia fechar a porta com violência, mas olhou para a criança adormecida e mudou de
ideia.
Fechou-a em silêncio.
– Obrigada – disse Angelia assim que estava novamente apenas na companhia de
Bride.
– De nada.
Esfregou as mãos nos braços em um esforço vão para dispersar os calafrios que a
presença daquele homem deixara para trás.
– Ele sempre é assim?
Bride cobriu a criança com um pequeno cobertor azul.
– Na verdade, ouvi dizer que ele é bem mais maduro do que costumava ser. Quando
Vane o conheceu, esse cara era um verdadeiro psicopata suicida.
– E você acha que isso mudou como?
Bride sorriu.
– Boa pergunta. Mas, acredite ou não, quando ele traz o filho para brincar com o
meu, é bastante gentil com ambos.
Aquilo Angelia pagaria para ver. Ela não podia imaginar alguém tão insano daquele
jeito sendo paternal e carinhoso.
Afastando Zarek de seus pensamentos, Angelia caminhou em direção à janela para
olhar para a rua. Aquele lugar era tão diferente de sua casa. Mas ela sabia que Dare e Oscar
a estavam procurando. Dare era o melhor rastreador de sua Pátria. Ele não teria nenhum
problema para encontrá-la e ajudá-la.
Que os deuses tenham piedade dessa matilha quando eles chegarem...
– Então... – disse Bride baixando em um tom a voz. – Importa-se em me contar qual
arma é essa que vocês inventaram?
Angelia não falou palavra alguma. A arma era sofisticada e eles dariam a vida para
protegê-la. Com ela, tinham provado que a humanidade estava no topo da cadeia evolutiva.
Nenhum dos animais da Katagaria jamais teria sido capaz de projetá-la.
Era a única coisa capaz de proteger seu povo dos animais para sempre.
Isso realmente faz você se perguntar o que provocou os animais, não é mesmo? As
palavras de Z assombravam-na. Francamente, ela nunca tinha pensado naquilo antes. Tudo
o que sempre ouvira era que o ataque tinha sido gratuito e injusto.
E ela não tinha motivos para duvidar disso.
Mas... e se não tivesse sido bem assim?
– Por que Bryani a atacou? – perguntou Angelia a Bride.
– Ela alegou que estava tentando me salvar de um envolvimento com o monstro que
era seu filho. Pessoalmente, acho que ela não batia muito bem.
Aquilo era um fato incontestável. Bryani fora a filha de um líder e, como tal, sua
história era conhecida por todos. História, aliás, que as mães da Pátria de Angelia usavam
para assustar as crianças malcomportadas. Dado o que os Katagaria tinham feito com a
pobre mulher, era incrível que ela tivesse a pouca sanidade que tinha.
– Os Katagaria a mantiveram em seu antro e a estupraram repetidas vezes. Você
sabia disso?
A expressão de Bride imediatamente adotou um tom triste e indulgente. Era óbvio
que a tragédia daquele evento não lhe era desconhecida.
– Apenas o pai de Vane fez isso. Mas sim, eu sei. Vane me contou tudo sobre sua
família.
– E ele alguma vez lhe disse por que nos atacou naquela noite?
Bride franziu as sobrancelhas.
– Você não sabe?
– Temos algumas teorias. Pensamos em tudo, desde os lobos estarem famintos e
terem sentido o cheiro de nossa comida até o fato de eles serem assassinos fanáticos
empenhados em beber nosso sangue. Mas não, ninguém sabe por que fomos atacados.
Bride estava espantada com as palavras de Angelia e sua expressão passou da
descrença ao nojo.
– Ah, mas eles sabem exatamente o que aconteceu. Apenas não querem que os
outros saibam. Aqueles cachorros mentirosos...
Agora era hora de Angelia parecer tomada pela perplexidade.
– Do que você está falando?
Quando Bride respondeu, seu tom de voz estava repleto de raiva e desdém.
– Nenhum macho de seu bando nunca disse o que eles fizeram?
– Éramos vítimas inocentes.
– Sim, e eu sou a fada do dente. Acredite em mim. O ataque foi provocado – Bride
balançou a cabeça. – Sabe de uma coisa, os Katagaria pelo menos admitem o que fizeram.
Eles não ficam inventando mentiras para esconder a verdade.
– Bem, se você sabe tanta coisa, então, por favor, esclareça para mim o que
aconteceu.
– Certo. Os Katagaria tinham um grupo de fêmeas que estavam prenhes e não
podiam viajar – aquilo era comum tanto para os Arcadianos quanto para os Katagaria.
Quando uma fêmea ficava prenhe, perdia a habilidade de se transformar ou usar o poder de
teletransporte até que as crianças ou filhotes nascessem. Bride cruzou os braços no peito. –
Como eles estavam na Inglaterra medieval na época, os machos levaram as fêmeas para o
meio da floresta, longe de quaisquer pessoas ou vilarejos para criar uma toca segura. Eles
ficaram lá por várias semanas tranquilamente. Então, uma noite, os machos saíram para
caçar alimento. Encontraram cervos e os estavam caçando quando dois lobos caíram em
uma armadilha. O pai de Vane, Markus, transformou-se em humano para libertar os dois
lobos que estavam presos e, nesse momento, foi abordado por um grupo de machos
Arcadianos, os mesmos que tinham armado aquela cilada. Markus tentou explicar-lhes que
eles não queriam feri-los, mas, antes de ter uma oportunidade, os Arcadianos executaram os
dois lobos presos e, depois, atiraram flechas contra os outros. Em menor número, a matilha
retornou para sua toca, onde a maioria de suas mulheres e filhos havia desaparecido.
Angelia engoliu em seco enquanto um mau agouro correu-lhe o corpo. Bride seguiu
com o relato:
– Os lobos rastrearam o cheiro das mulheres e das crianças e chegaram ao
acampamento de Bryani, onde encontraram os restos da maior parte de seus familiares. As
mulheres tinham sido massacradas e suas peles tinham sido colocadas para curtir. As
poucas crianças ainda vivas estavam aprisionadas. Os lobos, então, esperaram o anoitecer...
No crepúsculo, um grupo de Katagaria atraiu os machos Arcadianos para fora do
acampamento, deixando apenas mulheres e crianças. Com a ajuda de um grupo, o pai de
Bryani atacou os Arcadianos. Houve uma luta brutal, como você deve se lembrar.
Angelia negou com a cabeça.
– Mentira! Eles nos atacaram despropositadamente. Não havia motivos para
fazerem o que fizeram. Nenhum!
– Querida... – disse-lhe Bride em tom gentil – Você não conhece a verdade mais do
que eu a conheço. Apenas posso lhe dizer o que o grupo de Vane me contou sobre aquele
evento. Francamente, acredito neles por vários motivos. Primeiro, não há nenhuma mulher
no grupo que seja velha o suficiente para ter sobrevivido àquela chacina. Algo aconteceu e
as exterminou. E agora todo macho com mais de quatrocentos anos protege quase que
compulsivamente suas mulheres. Estou com os lobos há quatro anos e nunca vi nenhum
deles ser agressivo, a menos que o grupo esteja ameaçado. Também nunca vi nenhum deles
mentir. Aliás, são honestos a ponto de serem até mesmo brutais.
Mas Angelia ainda se recusava a acreditar nas palavras que ouvia de Bride.
– Meu povo nunca atacaria mulheres e crianças.
– Eles tentaram me atacar.
– Em retaliação!
– Pelo quê? Vane não os feriu e eu muito menos. Nenhum macho de todo o seu
povo, incluindo seu líder, o próprio avô de Vane, foi em minha defesa. Mas eu lhe digo por
quê. Se alguém ou alguma coisa surgisse nessa casa e me ameaçasse, não há sequer um
lobo lá embaixo que não daria a vida para me proteger. E isso vale para todas as mulheres
do grupo.
A criança acordou e começou a chorar pela mãe.
Bride deixou Angelia e foi até o filho.
– Está tudo bem, Trace. Mamãe está aqui.
A criança deitou a cabeça no ombro da mulher e esfregou os olhos com as
diminutas mãos.
– Cadê papai?
– Ele está com o tio Fury e com o tio Z.
O garoto acordou instantaneamente.
– Bob brincar com Trace?
Bride sorriu com indulgência.
– Não, querido. Bob não veio com tio Z dessa vez, sinto muito.
O garoto ficou desanimado até que viu Angelia. Então, virou-se acanhado e enterrou
a cabeça no ombro da mãe.
Bride beijou-lhe a bochecha.
– Esta é Angelia, Trace. Diga oi para ela.
Ele balançou a mão para Angelia sem olhar.
Apesar disso, Angelia estava completa e estranhamente encantada com aquele
garoto. Ela sempre amara crianças e esperava um dia poder ter também um filho.
– Olá, Trace – disse.
O garoto a espiou através da segurança dos ombros da mãe. Depois, sussurrou no
ouvido de Bride enquanto ela lhe acariciava delicadamente a cabeça.
Naquele momento, uma lembrança recalcada submergiu do inconsciente de
Angelia. Era algo em que ela não pensava havia séculos. Fury e vários garotos tinham se
ferido enquanto subiam em uma árvore. Os garotos que tinham esfolado as mãos e os
joelhos correram para suas mães em busca de consolo. Fury tinha quebrado o braço.
Chorando, ele também correu para a mãe, mas, assim que o viu, Bryani o rechaçou, tomada
pela cólera.
O tio de Angelia passou a consolar Fury.
Bryani interrompeu-o com um grunhido feroz:
– Não se atreva a consolar esse garoto.
– Ele está ferido.
– A vida é dor e não há consolo para isso. Quanto mais cedo Fury aceitar essa
condição, melhor ele conseguirá lidar com ela. Deixe-o aprender desde já que a única
pessoa com quem pode contar é consigo mesmo. Ele quebrou o braço porque foi idiota.
Agora precisa cuidar disso sozinho.
O tio de Angelia ficara horrorizado.
– Mas ele é apenas uma criança.
– Não. Ele é minha vingança e um dia vou fazê-lo acabar com o próprio pai.
Angelia vacilou diante da lembrança. Como ela pode ter se esquecido daquilo? E,
pensou novamente, Bryani nunca tinha sido uma mãe muito amorosa, então por que aquela
cena se destacava em sua memória mais do que todas as outras em que Bryani havia
deixado de consolar e cuidar de seus filhos? Aquele certamente era o motivo de Dare ser
tão frio com todos ao seu redor. Afinal, ele passou a vida inteira tentando ganhar a
aceitação e o amor da mãe insana.
E aceitação e amor seriam as últimas coisas que Bryani oferecia aos filhos.
- É bom ser abraçado?
Angelia ainda podia sentir o tom de perplexidade na voz de Fury quando ele lhe fez
essa pergunta. Era o décimo quarto aniversário dela e seu tio tinha lhe abraçado antes de
dar permissão para que saísse e brincasse com Fury.
– Você também já foi abraçado, Fury.
Ele balançou a cabeça.
– Não, não fui. Pelo menos, não que eu me lembre.
Angelia tentou lembrar-se de um episódio em que alguém o havia abraçado, mas,
em consonância com o que ele lhe havia dito, não conseguiu pensar em nem uma única vez.
Com o coração partido, ela o envolveu nos braços e deu a ele o primeiro abraço.
Em vez de retornar o gesto, ele permaneceu ali, parado, com os braços estáticos
soltos ao lado do corpo. Inflexível. Resoluto. Estável. Sequer respirava. Era como se
temesse se mover e, desse modo, feri-la ou afastá-la.
- E então? – perguntou após o abraço.
- Você cheira bem.
Ela sorriu.
– Mas você gostou do abraço?
Ele aproximou-se dela e esfregou a cabeça em seu ombro exatamente como
cachorros ou lobos fazem, até que ela o envolvesse novamente nos braços. Apenas nesse
momento Fury parou de se mover.
– Gosto de seus abraços, Lia.
Depois, ele correu e se escondeu dela por três dias.
Fury nunca se permitiu ser abraçado por Angelia novamente.
Mesmo com todos os segredos que eles compartilhavam. Mesmo quando ela
chorava. Ele nunca a tocava. Apenas oferecia-lhe um lenço para que enxugasse as lágrimas
e a ouvia até que ela estivesse se sentindo melhor. Mas nunca se aproximou para tocá-la
novamente.
Até aquele dia, até hoje, quando a protegera dos outros lobos.
Por que ele tinha feito aquilo?
Não fazia sentido. Fury era um animal. Nojento. Brutal. Violento. Não havia
redenção para eles. E, ainda assim, Angelia não conseguia varrer da mente aquelas
lembranças do passado. Os momentos em que Fury, um animal, fora-lhe mais próximo do
que qualquer outra pessoa.
- Sou uma Sentinela, Fury!
Ela tinha despertado e se deparado com suas marcas. E tinha fugido de casa no meio
da madrugada para encontrá-lo perto do rio onde ele tinha ido dormir. O fato de Fury ter se
refugiado perto do rio foi um acontecimento estranho que ela não entendera na época. Só
mais tarde descobriria que ele fora dormir lá porque era um lobo e temia que sua família
descobrisse seu segredo.
Ele ofereceu-lhe um sorriso sincero. Diferente dos outros machos de sua Pátria, que
ficaram enciumados quando descobriram que ela tinha sido escolhida, Fury ficara
genuinamente feliz por ela.
– Você já contou para seu tio? – ele perguntou.
- Ainda não. Eu queria que você fosse o primeiro a saber – ela inclinou a cabeça
para mostrar-lhe as marcas fracas que ainda não estavam completamente formadas. – Você
acha que ficarei mais bonita quando as linhas estiverem preenchidas?
- Você é a Caçadora de Mutantes mais bela daqui. Como as marcas poderiam
estragar isso?
Ela tentou abraçá-lo, mas Fury correu antes.
E, embora Angelia tentasse se convencer de que ele era apenas um animal, a
verdade era que ela o tinha amado. E, sim, sentia sua falta imensamente.
Agora, ele havia retornado.
E nada havia mudado. Ele ainda era um animal e ela estava aqui para matá-lo ou
para mutilá-lo de forma tal que ele nunca mais pudesse voltar a ferir nenhum outro humano.
Fury acordou lentamente e seu corpo ainda doía. Por um momento, pensou que
ainda estava aprisionado na forma humana. Todavia, quando abriu os olhos, suspirou
aliviado: era um lobo e estava em casa.
Ele esfregou o focinho nos lençóis lilases perfumados.
Bride sempre pulverizava água mineral quando arrumava as camas. Normalmente,
Fury odiava aquele cheiro. Mas hoje aquilo era o paraíso.
– Como está se sentindo?
O lobo branco levantou a cabeça e encontrou Vane recostado na parede, olhando-o.
Quando transformou-se em humano, Fury ficou feliz pelo fato de Vane tê-lo coberto com
os lençóis.
– Estou bem – respondeu.
– Você parece um lixo.
– É, eu também não iria mesmo querer sair com você, babaca.
Vane sorriu brevemente.
– Você deve estar se sentindo melhor. Já está exibindo o mal-humor habitual. E por
falar em mal-humor, Zarek esteve aqui. Ele quer falar com você quando estiver melhor.
O que um ex-Dark Hunter que se transformou em deus queria debater com ele?
– O que ele quer? – perguntou Fury.
– Ele me deixou a par do que está acontecendo no Santuário. Eles cancelaram as
celebrações e trancaram todo o lugar até que se descubra de onde veio esse último ataque.
Ninguém entra e ninguém sai de lá.
– Bom. E onde está Angelia?
– Ela está no berçário e se recusa a sair de lá. Acho que tem esperanças de que seu
povo possa rastreá-la e libertá-la dos “animais”.
Fury rosnou diante daquela ideia.
– Não, ela provavelmente está planejando uma forma de acabar comigo – sentou-se
na cama, respirou profundamente e levantou-se para procurar algumas roupas nas gavetas
da cômoda.
– Sabe que posso ajudá-lo a se vestir.
Fury riu da ideia do irmão.
– Não preciso de sua ajuda.
– Bem, então, diante disso, vou lá embaixo jantar.
Fury animou-se ao ouvir aquilo.
– O que Bride preparou?
– Peru e presunto.
– E purê de batata?
– Claro. Ela sabe o quanto você adora purê de batata.
Aquilo fez o estômago de Fury roncar avidamente e ele não sabia se devia
alimentar-se ou verificar como estava Angelia.
Ele estava realmente faminto...
Mas...
– Guarde um pouco para mim.
Vane inclinou a cabeça para o irmão.
– Nem pensaria em fazer diferente. Ah, e Fang está morrendo para saber se Aimee
recebeu o recado.
Fury enfiou-se nas calças.
– Pedi para Sasha entregá-lo, então, acredito que Aimee já o tenha lido a essa altura,
a menos que Dare tenha devorado Sasha antes de ele cumprir sua missão.
– Duvido. Z estaria bem mais mal-humorado se isso tivesse acontecido. Vou falar
para Fang – disse Vane antes de deixar o quarto.
Fury terminou de se vestir e então foi ver Angelia. Bateu na porta antes de abri-la.
Encontrou a mulher sentada na cadeira de balanço, de costas para a parede. Ela pulou
assustada como se tivesse sido acordada de um leve cochilo.
Maldição, ela era a coisa mais sensual que Fury já vira em toda a sua vida.
Especialmente a forma como seus lábios ficavam quando ela estava adormecida.
Angelia quase sorriu, mas seu rosto subitamente congelou, como se ela se lembrasse
de que não deveria ser amigável com ele.
– O que você quer? – perguntou em tom ríspido e seco.
– Vim verificar se está tudo bem.
Ela apertou as mãos contra os braços da cadeira.
– Não, não está tudo bem. Eu não estou nada bem. Estou presa aqui com animais
que ambos sabemos que odeio. Como poderia estar tudo bem?
Ele olhou para ela com uma expressão de sarcasmo.
– É, bem... ninguém está batendo em você. A meu ver, isso é bastante bom.
Angelia desviou o olhar dos olhos esverdeados de Fury e tentou não pensar no quão
bonito ele era. Em quão belos aqueles olhos turquesa podiam ser...
No entanto, quanto mais tempo ele ficava ali parado, mais difícil era lembrar de não
esquecer que ele era um animal exatamente igual aos animais que a tinham ameaçado na
sala de estar horas antes.
Fury deu um passo e entrou no quarto.
Ela se afastou, procurando manter distância.
– Fique longe.
– Não vou machucá-la... – a voz de Fury correu o quarto conforme seus olhos
dilatavam-se ameaçadoramente.
Angelia engoliu em seco ao perceber que seus piores medos ganhavam forma.
Fury inspirou o cheiro daquela mulher. Apavorada, ela recuou e apoiou-se contra a
parede, preparando-se já para lutar contra ele até que um deles estivesse finalmente
desprovido de vida.
Fury não conseguia se mover e um sentimento de luxúria e desejo queimava-o por
inteiro. Seu corpo instantaneamente retesou-se e tudo o que poderia fazer era segurar-se
para não atacá-la. Não era à toa que Angelia se trancafiara naquele quarto.
– Você está no cio.
Ela pegou o porquinho de bronze de Trace e segurou-o como se estivesse preste a
atirá-lo contra Fury.
– Fique longe de mim.
Falar era fácil... No entanto, fazer aquilo era bastante difícil, já que cada célula do
corpo de Fury estava obcecada por ela de uma forma praticamente irresistível. O lobo
dentro de Fury salivava ao sentir o cheiro de Angelia e tudo o que queria era atirá-la no
chão e cavalgá-la selvagemente.
Para sorte dela, entretanto, ele não era o animal que ela achava que fosse.
Aproximou-se dela lentamente.
– Não vou tocá-la.
Ela atirou o cofrinho de bronze contra Fury, mas ele pegou o objeto com uma mão e
o devolveu ao seu lugar, sobre a cômoda.
– Não estou brincando, Fury – ela grunhiu.
– Nem eu. Eu lhe disse que não vou feri-la e não tenho intenção de voltar atrás em
minha palavra.
Angelia desviou o olhar para a proeminência aprisionada nas calças de Fury.
– Não vou acasalar com você por vontade própria. Nunca.
Aquelas palavras atingiram-no mais do que deveriam.
– Acredite, querida, você não valeria os arranhões. Diferentemente dos Arcadianos,
com quem está acostumada, não preciso forçar uma mulher a se deitar em minha cama –
falou Fury e, em seguida, saiu e bateu a porta.
Angelia não se moveu durante os minutos em que seu coração batia apavorado,
esperando que ele voltasse. Mas ele não voltou.
Fury tinha partido e ela estava novamente a salvo... pelo menos, assim esperava.
Mais e mais ecoavam na cabeça de Angelia as histórias de como os Katagaria
tratavam suas fêmeas quando elas estavam no cio. Se não tivessem companheiro, as fêmeas
eram oferecidas aos machos da matilha, que as usavam até se sentirem satisfeitos. As
fêmeas não tinham vontade e não podiam dizer sequer uma palavra.
– Vocês todos são animais – ela rosnou, praguejando contra o fato de estar
aprisionada com eles bem em seu período fértil do mês. – Cadê você, Dare?
Como uma resposta, um flash de luz a assustou.
Mas ela ficou ainda mais tensa quando percebeu que não era Dare quem viera em
seu resgate.
Era Fury que retornara. Seus olhos brilhavam, tomados pela raiva, enquanto ele
lentamente caminhava na direção dela. Um verdadeiro predador, pensou Angelia.
– Não toque em mim! – ela exclamou impetuosamente.
Ele tomou-lhe a mão e a segurou.
– Sabe de uma coisa? Vou lhe ensinar uma lição bastante valiosa.
Antes de poder perguntar do que se tratava, ele os teletransportou para fora daquele
quarto, diretamente para a sala de jantar.
Angelia entrou em pânico quando percebeu que a sala estava tomada por oito lobos
machos na forma humana. Pelo cheiro que exalavam, ela percebeu que, assim como Fury,
eles também não tinham companheiras.
O coração de Angelia acelerou desenfreado. Ela tentou correr, quis fugir,
desvencilhar-se, escapar, mas Fury era demasiado forte e a impediu.
– Você vai se sentar e comer – um grunhido em meio tom atravessou sua garganta.
– Como um humano civilizado – disse, cuspindo as palavras como se se tratasse de algo
quase inimaginável.
Como Angelia desejava naquele momento ter seus poderes para fazer Fury pagar
por aquilo... Sem dúvida ele seria o primeiro a cruzar com ela e provavelmente a seguraria
enquanto os outros repetissem o gesto obsceno.
Fury levou-a à mesa, ao lado direito de Bride, onde havia um belo caçador de
mutantes sentado. Os olhos do caçador escureceram quando ele sentiu o cheiro de Angelia.
Angelia preparou-se para o ataque iminente.
Enegrecidos, os olhos do caçador dilataram-se enquanto ele se levantava
vagarosamente. Aquilo era...
Ele provavelmente iria atirá-la para os outros, ela estava certa de que iria.
Entretanto, o caçador cumprimentou Fury com um leve aceno de cabeça, pegou o prato e a
taça e foi se sentar do outro lado da mesa.
Fury fez Angelia ajeitar-se na cadeira vazia.
Bride, que assistia àquela cena com curiosidade, deixou escapar um suspiro.
– Vejo que vocês vão nos fazer companhia.
Fury assentiu.
– Vamos.
Um jovem caçador que estava sentado diante de Bride imediatamente levantou-se,
fazendo Angelia recuar, amedrontada.
– Vou buscar pratos para eles.
Bride sorriu com gentileza.
– Obrigada, Keenan.
Magro e loiro, o jovem praticamente correu para o outro cômodo, mas não demorou
para retornar com louças e talheres. Entregou um conjunto para Fury e ofereceu o outro
para Angelia.
– Querem que eu lhes sirva?
– Sente-se, Keegan – latiu Fury.
O jovem loiro imediatamente colocou o prato e os talheres diante de Angelia e
retornou ao seu lugar.
Havia tanta tensão na sala que Angelia praticamente podia senti-la. Ignorando a
sensação, entretanto, Fury serviu a comida e colocou um dos pratos diante de Angelia.
– Tio Fury!
Angelia desviou o olhar e viu Trace entrar na sala acompanhado por Fang. O garoto,
então, correu em direção ao tio, que o recebeu com um abraço apertado.
– Olá, meu cachorrinho – Fury apertou-o ainda mais forte enquanto o garoto ria,
feliz.
– Trace atingiu o alvo!
Fury riu, e seu rosto lentamente retomou a expressão tranquila que Angelia
conhecia tão bem de seus tempos de juventude, antes de eles se tornarem... inimigos.
– Que pena que eu não estava aqui durante o treinamento dele. Bom trabalho, Fang
– expressou Fury
Trace desvencilhou-se do abraço e correu para a mãe.
– Trace acertou três patos, mamãe.
– Isso é maravilhoso, querido. Bom trabalho – ela o levantou e o colocou sentado
em seu colo.
Os olhos de Fang estreitaram-se conforme ele aproximou-se e, como os outros,
também sentiu o cheiro luxurioso de Angelia. Inspirou bruscamente antes de se sentar do
outro lado de Fury.
– Sinto muito por você ter perdido o jantar de Ação de Graças ontem.
Fury serviu-se de mais purê de batata.
– Pois é, eu também.
Angelia não entendeu porque aquilo o deixara triste.
– Ação de Graças?
Fury olhou para ela enquanto cortava um pedaço de peru.
– É um feriado americano. Todos os anos, os americanos se reúnem com seus
familiares com o objetivo de agradecer por estarem vivos e juntos.
– É por isso que todos os lobos estão aqui – explicou Bride. – Os que têm
companheiras foram para suas casas mais cedo. Tradicionalmente, os machos solteiros
ficam aqui para o jantar e para uma maratona de jogos.
Entretanto, Angelia ainda não fazia ideia do que eles estavam falando.
– Jogos?
– Videogame – explicitou Keegan.
Fury zombou da avidez do jovem lobo.
– Ela veio da Inglaterra medieval, filhote. Não tem ideia do que você está falando.
– Posso mostrar-lhe.
Fang virou os olhos.
– Relaxe, garoto. As fêmeas Arcadianas comparam estar conosco à bestialidade.
O rosto de Keegan deixou transparecer seu desapontamento. Ele abaixou a cabeça e
não olhou mais para Angelia.
Um dos machos mais velhos sentados à mesa empurrou o prato.
– Perdi o apetite. Obrigado, Bride, pela comida – olhou para Vane. – Precisa que eu
fique e ajude a proteger sua casa?
– Apreciaria muito se o fizesse. Ainda não sabemos quantos são capazes de lidar
com o que quer que seja que tenha derrubado o leão.
O lobo mais velho inclinou a cabeça em anuência antes de partir para a sala de estar.
Dois outros lobos acompanharam-no.
Fang ofereceu uma tigela de pães a Fury.
– Então, Keeg, você tem praticado SoulCalibur?7
Keegan sorriu.
– Vou acabar com você, cara. Dessa vez, não vai ter saída.
Vane riu.
– Cuidado, Keegan. Fang conhece todos os movimentos de metade dos
personagens.
E assim estabeleceu-se toda uma conversa sobre um assunto do qual Angelia não
entendia nada. Entretanto, conforme eles conversavam e faziam piadas uns com os outros,
ela pôde finalmente relaxar um pouco.
Estranho como eles não pareciam tão animalescos assim...
Quase pareciam humanos, a bem da verdade.
Trace lentamente saiu do colo da mãe e moveu-se ao longo da mesa, alternando-se
nos colos de todos ali. Quando chegou a vez de Fury, o garoto ficou de pé e pulou para o
colo de Angelia.
As bochechas da mulher enrubesceram, já que aquilo chamava novamente para si a
atenção de todos os lobos.
O lobo sentado ao lado de Keegan suspirou pesadamente.
– Caramba, garota, pare de entrar em pânico toda vez que olhamos para você. Não
vamos atirá-la no chão e... – ele parou e olhou para Trace antes de continuar. – Fazer o que
você acha que vamos fazer. Sim, sabemos o que está acontecendo com você. E não, não
fazemos isso com as mulheres.
Bride devolveu Trace ao colo de Fury e entregou-lhe um pedaço de pão enquanto
direcionava a atenção para Angelia.
– Sei que você não conhece os costumes dos Katagaria. Quando uma mulher está...
– ela parou e olhou para a criança antes de continuar. – Bem... em seu... estado, ela escolhe
o macho que quer. Se não consegue se decidir, eles lutam e geralmente ela escolhe o
vencedor. E, no caso de ele não a satisfazer, ela escolhe outro. Mas é sempre uma escolha
da mulher. Os machos entregam sua vida e sua lealdade às suas mulheres, já que sua
sobrevivência depende da capacidade delas de procriar. Capacidade que, por sua vez, está
programada em seus seres.
Quando Bride insinuou se levantar, Keegan pegou Trace de seus braços.
– Você precisa de algo? – ele perguntou.
– Apenas ir ao toalete, querido – ela respondeu, batendo-lhe delicadamente no
ombro enquanto passava por ele.
Angelia olhou para Fury, mas ele ignorava sua presença.
Seria aquela a razão de Fury nunca tê-la tocado? Fazendo um retrospecto, ela se
lembrou de como ele sempre tivera mais respeito do que Dare pela mãe, pela irmã e por ela.
Lembrou-se de como Fury sempre se preocupara com a segurança e com o bem-estar delas.
E se elas alguma vez precisassem de algo, ele certamente estaria lá para estender-lhes a
mão e oferecer-lhes a ajuda necessária. Para o que fosse necessário.
– Por que você me trouxe aqui? – perguntou-lhe.
Ele engoliu a comida antes de responder.
– Quero saber sobre a arma...
Todos em volta da mesa voltaram os olhos para ela e cada pelo de seu corpo
arrepiou-se em sinal de completa atenção. Eles estavam prontos para atacá-la. E Angelia,
por mais que tentasse, não conseguia controlar o pânico.
– Já discutimos sobre isso – ela disse entre os dentes. – Você pode me torturar se
quiser, mas não lhe direi nada.
Vane riu.
– Os Katagaria não torturam ninguém. Eles matam.
Dois dos lobos mais velhos levantaram-se de seus assentos.
– Então, devemos matá-la? – perguntaram em uníssono sem um resquício sequer de
emoção em suas vozes.
– Não – interveio Fury. – Dei a ela minha palavra de que a protegeria.
– Humm – o mais jovem dos dois lobos que haviam falado pegou o prato e
dirigiu-se para a cozinha.
Bride retornou e sentou-se novamente à mesa.
Um por um, todos os homens deixaram a sala, exceto Vane, Fury, Fang e Trace.
– Onde está Zarek? – a pergunta foi feita por Fury.
Fang girou o vinho em sua taça, um gesto que pareceu a Angelia bastante humano.
Depois, respondeu:
– Ele e Sasha estão caçando Dare.
– Espero que não o matem antes de mim.
– Ele é seu irmão – Angelia lembrou-lhe.
Fury direcionou-lhe um olhar cortante e severo.
– Deixe-me explicar uma coisa, garota. Quando Fang e Anya descobriram que Vane
era humano, eles o protegeram de nosso pai. Quando ele estava ferido ou dormindo, eles se
alternavam vigiando sua forma humana para se certificarem de que ninguém descobrisse
seu segredo. No momento em que Dare descobriu que eu era um lobo, reuniu toda a Pátria
para me matar. Acredito que devo a ele esse favor em dobro, não? Além do mais, pelo
menos ele é um homem formado, e não um adolescente que não tem armas para se defender
de guerreiros mais velhos e mais fortes.
– Ele também tem uma arma injusta. Acho que devemos pegar essa arma e... – Fang
parou enquanto olhava para Trace. – Enfiá-la em um lugar realmente desconfortável.
O olhar de Fury não se desviou um segundo sequer do de Angelia.
– Gostaria de enfiá-la no mesmo lugar onde ele queria colocar aquele bastão quente.
Angelia balançou a cabeça com veemência ao ouvir aquela brutalidade.
– Vocês percebem que me manter aqui é um ato de guerra?
Fury arqueou uma sobrancelha.
– Como assim?
– Vocês são lobos e estão mantendo um membro da Pátria em cárcere.
Vane rosnou.
– E eu sou o Regis8 de sua Pátria. Ausente, é verdade, mas sou o líder dos
Kattalakis, dos Arcadianos e dos Lycos. Como tal, você está sob meu domínio. Para
declarar guerra contra Fury e contra sua msatilha de Katagaria seria necessário meu
decreto. Decreto que eu nunca concederia.
– Então você absolve o comportamento dele?
– Pela primeira vez em nosso relacionamento, e por mais estranho que isso possa
parecer, sim, absolvo. E, como Regis, quero saber o que é a arma que vocês usaram no
leão. A recusa em entregá-la para mim resultará em um julgamento e acredito que você
saiba que os membros do conselho Katagaria exigirão uma pena.
A vida dela. Mas não sem antes ela ser violentada. Sempre que um Regis,
especialmente aquele que comandava sua Pátria, exigia algo de alguém, esse alguém era
obrigado a entregar.
Angelia nunca tinha odiado mais a lei do que naquele exato momento. Ela teria de
falar. E falou.
– Chamamos a arma de Pulso.
Fury fechou uma carranca.
– Que diabos é isso?
– O Pulso emite pequenas descargas elétricas. Não tão fortes a ponto de causar uma
transformação incessante, mas, em vez disso, capaz de aprisionar o indivíduo em sua forma
básica.
Bride suspirou.
– Como a coleira que você está usando?
Angelia anuiu.
– Com a diferença que o Pulso é permanente.
Fang balançou a cabeça.
– Não pode ser. Se funciona com impulsos elétricos, tem de haver uma bateria.
– O Pulso usa elementos químicos do corpo para manter-se carregado.
Vane olhou enojado ao ouvir aquilo.
– E pode ser extraído?
– É muito pequeno para ser visto. Não deixa ferimento ao entrar e não há como
encontrá-lo uma vez que se instala dentro do corpo.
Fang acenou com a cabeça.
– Foi exatamente isso o que Carson disse.
Bride fez uma expressão de inconformismo.
– Quem inventaria uma coisa assim?
– Uma Pantera, no ano de 3062 – respondeu Angelia com um sussurro. – E ele
agora está vendendo essa arma para grandes compradores.
– Por quê? – perguntou Vane. – Não precisamos tanto de dinheiro.
Fury lançou um olhar carregado de ódio.
– Você está pensando como nós, Vane. A Pantera é Arcadiana. Pense como humano
por um momento. A ganância é o único deus deles.
Angelia começava a compreender sozinha as diferenças.
Vane retribuiu o olhar de Fury.
– Você deveria levá-la ao leão no Santuário. Deixe que ela conheça a companheira
solitária dele. Ou, melhor ainda, deixe-a conhecer os filhos dele, que nunca saberão o
quanto o pai os ama. Nunca ouvirão o som de sua voz quando ele lhes disser o quanto tem
orgulho deles. Ou os avisar de alguma ameaça. Bom trabalho. Realmente, um bom
trabalho. Eu não poderia ficar mais orgulhoso da brutalidade de seu povo.
Angelia recusou-se a ficar intimidada pelas palavras do lobo. Ela era mais
inteligente, mais perspicaz.
– Animais não fazem isso – contentou-se em responder.
Fury deu uma mordida na comida antes de lançar a Angelia um olhar penetrante e
carregado de desprezo.
– Pois é. Eu nunca lhe disse nada assim, não é mesmo? – levantou-se e limpou a
boca com o guardanapo. – Quer saber de uma coisa? Estou com o estômago embrulhado de
ficar olhando para você. Lembro-me de uma garota que era capaz de se preocupar com os
outros. Uma garota que dava aos outros o benefício da dúvida antes de atacá-los. Mas está
claro que aquela garota está morta. Quero que saia daqui antes que acabe destruindo as
poucas boas lembranças que ainda tenho daquela garota – ele arrancou bruscamente a
coleira do pescoço dela e deixou a sala.
Atordoada, Angelia permaneceu ali, imóvel, incapaz de acreditar no que acabara de
acontecer.
Ela estava... livre.
– Tio Furry... – Trace olhou para a mãe. – Por que Furry triste, mamãe?
– Os sentimentos dele estão machucados, querido. Mas ele ficará bem.
Vane encontrou o olhar perplexo de Angelia.
– Você está livre para ir. E, devo alertá-la: os leões querem seu sangue. O cara que
você atingiu... o irmão dele é Paris Sabastienne, e você matou o irmão mais novo dele.
Embora a regra entre os animais não se baseie em vingança, eles são grandes protetores de
suas famílias. Vocês os atacaram sem que eles tivessem provocado e eles pretendem
destruir todos vocês quando encontrá-los para, assim, impedi-los de fazer a outros membros
o que fizeram. Vocês são a caça deles. Boa sorte.
Angelia engoliu em seco, tomada pelo pânico.
– Mas eu não atirei nele.
Fang encolheu os ombros com indiferença.
– Eles são animais. Pouco se importam com quem apertou o gatilho. Estão caçando
pelo cheiro e o seu cheiro estava impregnado em Jake. Tenha uma boa vida, docinho, pelo
menos pelas próximas horas.
Angelia respirou instável e profundamente diante daquela previsão mórbida. Por
mais que odiasse tudo aquilo, ela sabia que o lobo estava certo. Ela não iria longe e não
havia realmente nada que pudesse fazer. Angelia tinha feito parte daquilo. De bom grado.
Não havia nenhuma maneira de mudar o passado. Não havia nada que ela pudesse
fazer para impedir que os leões a matassem. Eles não iriam querer ouvir a razão e,
francamente, se aquilo tivesse sido feito a alguém que ela amava, ela também não
perdoaria.
A morte era o que ela merecia por ter participado do plano brilhante de Dare.
Angelia lutaria, mas não iria correr. Ela não era assim. Se aquele fosse seu destino, então
iria recebê-lo com dignidade.
No entanto, ela não queria morrer sem ao menos dizer que sentia muito a uma
pessoa.
Pediu licença e desapareceu da mesa, reaparecendo segundos depois diretamente no
quarto de Fury.
O que encontrou lá a deixou ainda mais perplexa.
Fury estava de pé diante da cômoda segurando um pequeno medalhão que ela havia
lhe dado quando ele atingiu a puberdade, aos 27 anos.
- Para quê serve isso? – ele tinha perguntado quando ela lhe entregara o medalhão.
- Você é um homem agora, Fury. Precisa de algo para marcar a ocasião.
Não tinha sido caro e não tinha nada de especial. Era apenas um pequeno círculo
com um X gravado no centro. Mesmo assim, Fury o manteve durante todos esses anos.
Mesmo depois de ela tê-lo traído.
Envolvendo o cordão no pulso, ele olhou para ela.
– Por que está aqui?
Mas Angelia não sabia exatamente qual era a resposta. Não, isso não é verdade, ela
sabia exatamente o motivo de estar lá.
– Não poderia partir sem lhe dizer uma coisa – respondeu-lhe.
Ele replicou em tom seco e cheio de irritação.
– Você me odeia. Eu não valho nada. Sou um animal indigno de respirar o mesmo
ar que você – dizendo isso, Fury deixou o colar cair de volta na gaveta e, então, fechou-a. –
Conheço seu discurso. Ouvi isso minha vida toda. Então, vá embora.
– Não – disse ela, sua voz titubeante do alto do medo e da culpa que sentia naquele
momento. – Não é isso o que eu queria falar para você – incerta de como seria recebida,
aproximou-se dele vagarosamente, como se estivesse se aproximando de um animal ferido.
Colocou a mão sobre a de Fury, a mesma mão com que ele tinha antes segurado o
medalhão. – Sinto muito, Fury. Você me ofereceu sua amizade e lealdade e, em vez de
guardá-las como tesouros, eu me virei contra você. Não tem desculpa para isso. Eu poderia
dizer que estava com medo, mas eu não deveria sentir medo de você.
Fury olhou para a mão de Angelia sobre a sua. Em toda a vida, ele tinha sido
rejeitado. Depois de ter deixado a Pátria da mãe, não tinha se aproximado de mais ninguém
por medo de se ferir novamente. Por causa da inexperiência com seus poderes, ele sempre
se sentira estranho perto dos outros.
A única pessoa que já o fizera se sentir como o homem que ele queria ser era...
Ela.
– Você me apunhalou.
– Não – ela negou, apertando-lhe a mão grande e masculina. – Eu o apunhalei em
uma memória dolorosa. Você me conhece, Fury, mas o que você não sabe é que nunca em
minha vida transformei-me em lobo. Mesmo que isso seja parte de mim, é uma parte que
nunca fui capaz de aceitar. Passei minha vida toda tentando silenciar esse pesadelo que
nunca me abandonou. Éramos amigos, você e eu. E, desde que você partiu, nunca mais
consegui encontrar alguém que me fizesse sentir como você fez. Diante de seus olhos, eu
estava sempre bonita.
O olhar de Fury cruzou o dela e Angelia sentiu a dor dentro dele queimá-la feito
chamas.
– E diante de seus olhos, eu sou um monstro.
– Um monstro chamado Furry? Ele tirou sua mão das mãos dela.
– Meu sobrinho ainda não consegue pronunciar meu nome direito.
– Um monstro que protegeu uma mulher que por duas vezes o feriu?
– E daí? Sou um idiota ridículo.
Ela tocou-lhe o rosto.
– Você nunca foi idiota.
Fury virou o rosto, afastando-se do toque daquelas delicadas mãos.
– Não toque em mim. Já é difícil o bastante ter de lutar contra o seu cheiro. Afinal
de contas, eu não passo de um animal e você está no cio.
Sim, ela estava, e quanto mais se aproximava dele, mais seu instinto desejava estar
com ele. Cada hormônio em seu corpo estava aceso, consumindo-a em ondas de desejo
lancinante.
Ou será que ela estava usando aquilo apenas como uma desculpa? A verdade era
que, mesmo distante, ela passara horas durante a noite lembrando-se dele. Lembrando-se do
cheiro dele, da doçura dele. Imaginando como teria sido se ele fosse um Arcadiano, se
ainda estivesse ao lado dela.
Durante todos esses séculos, Fury tinha sido seu único amigo verdadeiro e ela sentia
terrivelmente sua falta.
Engolindo o medo, Angelia se forçou a dizer o que realmente queria dizer.
– Satisfaça-me, Fury.
Ele piscou ao ouvir aquelas palavras.
– O quê?
– Quero você.
Ele balançou a cabeça e lançou-lhe um olhar mordaz.
– São seus hormônios falando. Você não me quer. Você só precisa transar.
– Há uma sala cheia de homens lá embaixo, eu poderia escolher qualquer um deles.
Ou poderia voltar para casa e encontrar um. Mas não quero nenhum outro.
Fury afastou-se.
Ela o seguiu e envolveu a cintura dele com os braços.
– Seu irmão me disse que os leões estão nos caçando. Não tenho dúvidas de que
eles irão me encontrar e me matar. Mas, antes de morrer, quero fazer a única coisa com que
sempre sonhei.
– E isso seria...?
– Ficar com você. Por que você acha que, enquanto estava na Pátria, eu nunca
escolhi nenhum macho para dormir depois que cheguei à minha aurora?
– Imaginei que fosse pelo fato de você achá-los fracos.
Ela sorriu diante daquele pequeno insulto. Aquilo era tão... ele...
– Não. Eu estava esperando você. Queria que você fosse meu primeiro – Angelia
deslizou a mão pelo corpo musculoso dele.
Fury inspirou profundamente. Era tão difícil pensar enquanto ela o acariciava. Tão
difícil lembrar-se do motivo que o levava a desejar que ela fosse embora.
– Fique comigo somente hoje – disse-lhe, mordiscando o lóbulo da orelha.
Arrepios percorreram-lhe enquanto o lobo que havia nele uivava de prazer. A bem
da verdade, Fury nunca tivera muitas amantes. Principalmente por causa da mulher cuja
mão estava agora acariciando-lhe o pênis por cima do jeans. Como ele poderia confiar em
outra depois de ser traído como foi por ela?
Ele sempre se mantinha afastado de todos os Caçadores de Mutantes. Quando eles
estavam no cio, ele partia e só retornava quando a mulher tivesse reivindicado outro lobo.
Era mais fácil assim. Fury não gostava das emoções humanas e não gostava de
nenhum tipo de intimidade. Elas o deixavam vulnerável demais. Deixavam-no aberto para
ser ferido, e ele não gostava de ser ferido.
Fury devia empurrá-la para longe e se esquecer de como era bom sentir-se
acariciado. E estava prestes a fazer exatamente isso quando Angelia o envolveu com os
braços e deu-lhe a única coisa que ele não tinha recebido de ninguém, a não ser de seu
sobrinho.
Um abraço.
– Você tem outra pessoa para abraçar?
Aquela pergunta despedaçou a última resistência de Fury.
– Não.
Ela caminhou em volta dele e ficou na ponta dos pés para alcançar-lhe os lábios.
Fury hesitou. Os lobos não beijam quando estão acasalando. Aquela era uma reação
humana. Uma reação que ele nunca havia experimentado.
Porém, quando os lábios de Angelia tocaram os dele, Fury percebeu porque aquilo
significava tanto para os seres humanos. A ternura do hálito dela fazia cócegas em sua pele;
a respiração dela misturando-se com a dele enquanto a língua abria-lhe os lábios para
saboreá-los por todo... Aquilo era algo que o lobo nele compreendia.
Rosnando, ele a puxou em seus braços, provando-a plenamente.
Angelia gemeu com a ferocidade delicada daquele beijo. Ele segurou-lhe o rosto
enquanto explorava cada centímetro de sua boca. Parte dela não podia acreditar que estava
tocando um lobo.
Mas era Fury...
Seu Fury.
Embora não tivessem se escolhido como companheiros um do outro, ele era o único
homem para quem ela havia dado o coração, ainda quando era apenas uma criança.
– Você sempre será meu melhor amigo, Fury. E um dia, quando tivermos crescido,
vamos ser guerreiros juntos. Você protege a mim e eu protejo você.
Como tinha sido inocente essa promessa...
E como era difícil mantê-la.
Fury afastou-se do beijo para encará-la com aqueles olhos que a enchiam de dor e
incerteza. Angelia estava com medo. Ele podia sentir isso. Apenas não sabia o que ela tanto
temia.
– Você sabe o que eu sou, Lia. Está prestes a cruzar com um animal. Tem certeza de
que está preparada para isso?
Cruzar... essa era uma gíria que os Katagaria usavam e que os Arcadianos tanto
repudiavam.
Angelia passou a língua pelo contorno dos lábios.
– Se esta é minha última noite para viver, quero estar com você, Fury. Se o Destino
não tivesse sido tão cruel para nós e o transformado em um animal quando atingiu a
puberdade, teríamos feito isso há séculos. Sei exatamente o que você é e o amo apesar disso
– ela dissipou a raiva de sua expressão. – Acima de tudo, amo você pelo que você é.
Fury não conseguiu respirar quando ouviu aquelas palavras que nunca pensou que
ouviria da boca de alguém.
Amor.
Mas será que ela estava mesmo sendo plenamente sincera?
– Você morreria por mim, Lia?
Foi a vez de ela fazer uma carranca.
– Por que está me perguntando isso?
– Porque eu morreria para mantê-la segura. Para mim, isso é o amor. Quero ter
certeza de que desta vez nós dois entendemos as condições. Porque se, para você, amor é
me apunhalar e me deixar morrer, então pode ficar com ele só para você.
Ela engasgou com um soluço diante daquelas palavras sinceras.
– Não, meu querido. Aquilo não era amor. Aquilo era burrice. E juro que, se
pudesse voltar atrás e mudar aquele momento, eu certamente o faria. Certamente estaria lá
para lutar por você... como prometi que faria.
Fechando os olhos, ele esfregou o rosto contra o dela, acariciando-lhe a pele macia.
Angelia sorriu diante daquela ação genuinamente canina. Ele a estava marcando como sua.
Misturando seus cheiros.
E, francamente, ela queria o perfume dele em sua pele. Era um aroma ardente e
masculino. Fúria pura.
Fury recuou e puxou a camisa por sobre a cabeça. Com os olhos piscando, passou as
mãos sobre o sutiã dela, massageando-lhe suavemente os seios já intumescidos. Ela sorriu
diante de sua hesitação.
– Eles não vão mordê-lo.
Um lento sorriso desenhou-se nos lábios de Fury.
– Não, mas a dona deles sim.
Rindo, ela mordiscava-lhe o queixo enquanto desabotoava o sutiã.
Fury inspirou profundamente à medida que ela deixou o sutiã cair no chão. De
perto, os seios de Angelia eram as coisas mais belas que ele já tinha visto. Com o sangue
vibrando, Fury baixou a cabeça para prová-los.
Angelia estremeceu diante da maneira como a língua dele brincava com seus
mamilos. Ele a esfregava e sugava de tal forma que ela realmente atingiu o orgasmo alguns
momentos mais tarde. Gritando, sentiu os joelhos estremecerem diante da ferocidade do
prazer.
Fury pegou-a nos braços, abraçando-a enquanto a levava para a cama.
– Como você fez isso? – perguntou ela, quase sem fôlego. – Eu nem sabia que isso
era possível.
Ele emitiu um som surdo do fundo da garganta, um som puramente animalesco
enquanto a colocava deitada no colchão. Inclinou a cabeça, varrendo-lhe os seios com os
cabelos enquanto livrava-se da calça jeans.
– Sou um lobo, Lia. Lamber e degustar são nossas especialidades.
Deslizou a calça e a calcinha pelas pernas dela antes de removê-las junto aos
sapatos.
Com o coração martelando, Angelia esperou, ansiosa, que ele a abraçasse
novamente.
Ele arrancou a camisa, mostrando-lhe um corpo perfeito, apesar das cicatrizes e
contusões que maculavam sua pele dourada. Inclinando a cabeça, observou-a.
– Está hesitando?
– Não estou hesitando.
– Sim, está. Posso ser um lobo, mas sei o que os caçadores Arcadianos fazem
quando tomam um amante pela primeira vez. Está me rejeitando?
– Nunca – ela disse enfaticamente.
– Então, porque não está me recebendo?
– Estava com medo de insultá-lo. Não sei o que os Katagaria fazem. Devo ficar de
costas?
A raiva obscureceu os olhos dele.
– Quer transar com um animal ou ser amada por um homem?
Ela suspirou em frustração. Não importava o que fizesse, ela sempre o deixava
zangado.
– Quero estar com Fury como sua amante.
Fury saboreou as palavras.
– Então mostre-me como seria essa amante.
O sorriso de Angelia o aqueceu completamente enquanto ela abria as pernas. O
olhar dela não se desviou do dele enquanto separava cuidadosamente as dobras de seu sexo,
de modo que ele pudesse ver exatamente o quão molhada estava por ele, o quão preparada e
ofegante estava para recebê-lo.
Os costumes Arcadianos ditavam que ele entrasse nela enquanto ela fizesse isso.
Eles deveriam se unir frente a frente.
Mas não era isso que ele queria. Tirando as calças, ele subiu na cama e colocou-se
entre as pernas dela. Angelia tremeu, esperando que ele a penetrasse com uma poderosa
investida. Em vez disso, ele lambeu os dedos dela, extraindo dali o néctar daquela mulher.
Sem desviar o olhar dela, segurou-lhe a mão antes de tomá-la na boca.
Arqueando as costas, ela gemeu ante o bem-estar que sentia. A língua de Fury
passeou pelo corpo dela enquanto seu membro penetrava-a profundamente. A cabeça de
Angelia agitou-se diante do intenso prazer que se tornava cada vez maior e ela temeu
explodir. Incapaz de se conter, enterrou a mão nos cabelos dele enquanto continuava
recebendo-o inteiro e enrijecido dentro de si, aceitando com generosidade o prazer que ele
lhe proporcionava.
E quando ela chegou pela segunda vez ao orgasmo, ele permaneceu ali, dentro dela,
aproveitando cada espasmo do doce êxtase de prazer de Angelia.
O pênis de Fury pulsava enquanto ele a possuía. Entre os de sua espécie, a fêmea
devia, sempre, estar completamente saciada. De outro modo, ela tomaria outro amante
depois dele. E o fato de outra fêmea ter de chamar outro macho para satisfazê-la era um
sinal de debilidade. Embora ele não tivesse tido muitas amantes, nunca tivera nenhuma que
chamasse por um segundo.
Não podia, portanto, permitir que Angelia fosse a primeira.
Sentando-se sobre os calcanhares, estendeu-lhe a mão.
Ela se surpreendeu e franziu a testa.
– Aconteceu alguma coisa?
Ele a puxou, colocando-a sentada na cama.
– Não. Você queria saber como um lobo toma uma mulher... – ele a deslocou para
os pés da cama e a fez segurar nos pilares forrados.
Angelia não estava segura, mas obedeceu.
– O que está fazendo?
Ele a beijou apaixonadamente antes de indicar a penteadeira com um aceno de
cabeça.
– Olhe no espelho.
Ela obedeceu e o viu se mover na direção de suas costas. Quando ele estava ali,
levantou-a de modo que ambos estivessem ajoelhados na cama, o peito dele
pressionava-lhe as costas. Acariciou-lhe o cabelo, afastando-os de seu pescoço de modo
que pudesse lambê-lo. Abrigando-a em seus braços fortes, acariciou-lhe com o nariz e
respirou ao pé de seu ouvido.
Os músculos de Fury se flexionaram enquanto ele colhia, como se fossem frutos
proibidos, os seios nas mãos. Separou-lhe delicadamente as pernas, então afundou a mão,
acariciando as suaves dobras do sexo de Angelia.
Ela observava o jogo, em transe. Como alguém tão feroz e perigoso podia ser tão
gentil?
Quando ela estava novamente úmida e preparada para voltar a recebê-lo, ele
levantou a cabeça para encontrar o olhar dela no espelho. Com os olhares enlaçados,
deslizou o membro para dentro dela. Angelia ofegou diante da espessura e do comprimento
que lhe penetrava. Mordendo os lábios dele, empurrando-se ainda mais profundamente
contra os quadris dela, afundando-se mais e mais, Fury continuava acariciando-a. Ela sentiu
seus poderes surgirem. O sexo sempre deixava os de sua espécie mais fortes. Intensos. Mas
ela nunca havia sentido algo assim. Era como se Fury a estivesse alimentando de uma fonte
de poder primária.
Fury enterrou o rosto na nuca dela conforme seus sentidos capturavam o prazer que
Angelia sentia. Não havia nada mais doce do que a sensação de seu corpo dentro do corpo
dela. Se ela fosse uma loba, estaria se revelando agora, exigindo que ele a montasse e a
cavalgasse mais rápido e mais forte.
Em vez disso, ela o deixou aproveitar cada minuto, saborear a suavidade de sua
pele. Saborear a beleza da intimidade. Este era um lado que Fury jamais havia
compartilhado com uma fêmea. E, no fundo de seu coração, ele sabia o motivo.
Sabia que o motivo era que elas não eram Lia. Sua Lia. Quantas vezes ele tinha
fechado os olhos e fingido que era Lia quem o abraçava? Quantas vezes tinha imaginado
que era o cheiro dela que ele sentia? Agora, Fury não precisava mais imaginar. Ela estava
ali e era sua.
– Diga meu nome, Lia – sussurrou-lhe ao pé do ouvido.
Ela franziu a testa.
– O quê?
Ele a penetrou ainda mais profundamente e olhou a imagem dela refletida no
espelho.
– Quero ouvir meu nome em seus lábios enquanto estou dentro de você. Olhe para
mim e diga de novo que me ama.
Angelia gritou de prazer enquanto ele afundava o membro uma vez mais.
– Eu amo você, Fury.
Ela podia senti-lo crescer ainda mais em seu interior. Aquilo era algo que todos os
machos de sua espécie faziam. Quanto mais prazer sentiam, maiores seus membros se
tornavam. A abundante plenitude fazia com que os poderes dela aumentassem ainda mais.
Arqueando as costas, Angelia se estirou e segurou-lhe o traseiro.
Ele acelerou os movimentos enquanto sua mão continuava acariciando-a. Agora
havia ferocidade em suas carícias. Uma ferocidade que era tanto exigente quanto
possessiva. Ela sempre tinha ouvido o termo “ser tomada por um amante”, mas aquela era a
primeira vez que realmente experimentava aquilo.
E desta vez, quando chegou ao orgasmo, realmente uivou diante do abrupto êxtase
que sentia.
Fury apertou os dentes diante daquele som. Diante da sensação do corpo dela
contraindo-se junto ao seu. Aquilo libertou os poderes dele, fazendo a luz do abajur sobre o
criado-mudo piscar.
Ele a acariciou de todos os modos, querendo extrair-lhe até o último suspiro, até o
último murmúrio.
Foi só depois que ela deixou o corpo cair contra o dele que ele se permitiu gozar
também. Grunhiu ante o repentino ardor quando explodiu em êxtase e finalmente sentiu o
próprio alívio deixar-lhe o corpo. Angelia sorriu ao ver Fury no espelho enquanto ele
enterrava a cabeça em seu ombro e tremia. A respiração ofegante dele mesclava-se com a
dela enquanto ele a sustentava em seus braços. Ao contrário dos humanos comuns, eles
deveriam estar unidos até que o orgasmo chegasse ao fim... o que deveria levar vários
minutos. Normalmente, um macho Arcadiano cairia contra ela e esperaria terminar.
Em vez disso, Fury tomou-a pela cintura enquanto cheirava-lhe o pescoço,
trazendo-a para mais perto.
– Estou machucando você?
– Não.
Ele apoiou a bochecha contra a dela e a balançou gentilmente. Angelia sorriu,
pousando a mão em seu rosto. Em toda a sua vida, ela nunca tinha experimentado um
momento mais terno do que aquele.
E pensar que tinha descoberto aquele prazer nos braços de um animal... Aquilo era
inconcebível.
Eles mantiveram-se assim até que ele estivesse suficientemente calmo para sair de
dentro dela sem feri-la. Angelia caiu de costas na cama.
Fury deitou-se ao seu lado de modo que pudesse contemplar aquele corpo feminino
nu.
– Você é tão bonita – disse, passeando os dedos pelas marcas de Sentinela no rosto
dela.
– Aposto que você nunca pensou que se envolveria com uma Arcadiana.
– Fiz isso até o momento em que me transformei em lobo.
Ela afastou o olhar diante daquela verdade crua.
– Por que você ocultou esse segredo de mim?
Ele riu amargamente.
– Ah! Não posso nem imaginar. Possivelmente porque temia que você se assustasse
e me odiasse. Era um pensamento ridículo, não?
Ruborizando, ela afastou o olhar, envergonhada pelo fato de ele ter razão a respeito
dela e, mesmo assim, ter se calado.
– Sinto muito por isso.
– Está tudo bem. Você não é a única que tentou me matar.
E não era. Toda a sua Pátria, incluindo sua mãe, seus irmãos e seu avô haviam
tentado matá-lo. E, ainda assim, ele tinha dado um jeito de sobreviver.
– Seu pai não o acolheu?
– Nunca lhe dei oportunidade de me rechaçar. Encontrei o grupo dele e, quando vi o
pouco respeito que ele tinha por Vane e por Fang, decidi manter-me distante e não lhe dizer
que era seu filho. Suponho que uma experiência de quase morte iniciada pelas mãos do
próprio pai seja suficiente para qualquer um – ele desenhava círculos com os dedos ao
redor dos seios de Angelia. – Você nunca se transformou?
– Por que deveria?
Ele a contemplava.
– Acho que deveria.
– Por quê?
– É parte de quem e do que você é. É sua natureza.
E daí?
– Essa não é uma parte que eu tenha que aceitar ou de que tenha que gostar.
– Sim, é.
Angelia esticou o pescoço diante do tom das palavras de Fury.
– O que está dizendo?
– Estou dizendo que, ou você se transforma em lobo, ou vou forçá-la a isso.
Ela ofegou diante daquela ameaça.
– Você não se atreveria...
– Pague para ver.
Horrorizada, ela se sentou na cama.
– Isso não é engraçado, Fury. Não quero ser um lobo.
Os olhos turquesa deles eram implacáveis.
– Durante um minuto, por mim. Você precisa conhecer o que você caça e o que
você odeia.
– Por quê?
– Porque isto é o que eu sou e quero que você me entenda.
Ela queria dizer que o entendia, realmente entendia, mas, antes que pudesse dizê-lo,
conteve-se. Ele tinha razão: como ela podia entender o que ele era se nunca tinha
experimentado por si mesma? Se era importante para ele, então ela o faria.
– Então, só por você. E só por um minuto.
Ele inclinou a cabeça e esperou.
E esperou.
Quando três minutos inteiros tinham se passado e ela ainda estava na forma
humana, ele arqueou uma sobrancelha.
– E então?
– Certo. Agora – disse, olhando para ele conforme cintilava em sua forma de lobo.
Fury sorriu diante daquela visão: marrom escuro misturado com preto e vermelho.
Tão bonita naquela forma quanto o era na forma humana. Ele passou a mão na pelagem
dela.
– Está vendo, não é tão ruim, não é mesmo?
Consegue me ouvir?
– Claro que consigo. Do mesmo modo que você consegue me ouvir. Agora, olhe ao
redor do quarto. Veja como as coisas se mostram diferentes. Como seus ouvidos são mais
agudos aos sons e seu focinho mais agudo aos cheiros.
Ela levantou o olhar para ele.
– Você ainda é humana, Lia. Inclusive como lobo. Mantém toda a sua essência
nessa forma.
Ela cintilou novamente e voltou à forma humana.
– Você...
– Sim. O que somos em uma forma, somos na outra. Nada muda.
Angelia sentou-se, pensativa. Ela tinha suposto que, como lobo, eles se convertiam
em animais sem nenhum pensamento... mas essa não era a verdade. Ela tinha mantido todo
o raciocínio, o intelecto, a razão. A única diferença fora o aumento nos sentidos.
A gratidão a arrasou e, quando foi beijar Fury, uma dor aguda lhe atravessou a
palma da mão. Ofegando, voltou a se sentar, sacudindo a mão para aliviar a aflição.
Fury praguejou antes de levantar a mão e abaná-la no ar. Quando o fez, o padrão
geométrico de seu grupo apareceu na palma.
Era idêntico ao dela.
Caramba...
– Somos companheiros? – ofegou Angelia.
Fury a olhou com incredulidade.
– Como?
Ela continuou contemplando a palma da mão. Em seu mundo, o Destino decidia
com quem eles deveriam se juntar desde o nascimento. A única maneira de encontrar o
companheiro era deitar-se com ele e, se fosse para ser, ambos teriam marcas semelhantes.
Idênticas, a bem da verdade.
Essas marcas só deveriam aparecer durante três semanas, e se a mulher não
aceitasse o seu companheiro nesse período, ela estaria livre para viver a vida sem ele. Mas
nunca poderia ter filhos com mais ninguém.
O macho caía no celibato até o dia em que a fêmea morresse. Uma vez
emparelhados, ele somente poderia deitar-se com sua esposa. Nunca seria capaz de ter uma
ereção com ninguém mais.
– Fomos escolhidos – ela juntou a palma com a dele e sorriu. – Você é meu
companheiro.
Fury estava perturbado com aquilo. Ele sempre se perguntou como se sentiria ao
estar emparelhado. O Dark-Hunter Acheron havia lhe dito que ele já tinha conhecido sua
companheira, mas Fury não tinha realmente acreditado naquelas palavras...
Tinha de ser a única mulher que sempre tinha amado...
O emparelhamento não acontecia assim, com facilidade.
Ele olhou para Angelia com o coração acelerado.
– Você vai me aceitar?
Ela virou os olhos.
– Não. Estou aqui, nua com você porque todas minhas roupas voaram
acidentalmente e não consigo encontrá-las.
– Está engraçadinha você, hein?
– Aprendi com você.
Rindo, Fury aproximou-se para beijá-la, mas, antes que pudesse fazer contato com
seus lábios, um brilhante flash de luz explodiu. Ele se virou e bufou quando quatro leões
apareceram no meio de seu quarto.
As expressões deles demonstravam fúria quando eles lhe lançaram algo.
Fury agarrou a coisa e fez uma careta de nojo antes de atirar ao chão a cabeça
mutilada do chacal.
– Que merda é issa?
– Meu nome é Paris Sebastienne – disse o leão mais alto. – E estou aqui para matar
a vagabunda que destruiu a vida de meus irmãos.
7 Jogo de videogame. (N. T.)
8 Regis: líder de cada grupo de Caçadores de Mutantes. (N. T.)
Angelia usou os poderes para vesti-los enquanto se preparava para ser entregue de
bandeja por Fury aos Litarianos.
Em vez disso, todavia, ele se levantou da cama com uma aura tão letal a ponto de
fazer todo o corpo de Angelia ser percorrido por calafrios.
– Não sei o que vocês estão fazendo aqui, babacas, mas não podem vir à casa de
meu irmão com essa atitude e com esse tom – olhou para a cabeça no chão. – E certamente
não podem trazer lixo à presença de minha companheira.
– Rastreamos o cheiro dela até aqui.
Fury esboçou um sorriso sinistro.
– E esse cheiro lhes trouxe até meu quarto?
Um dos leões se moveu para agarrar Fury. Antes que Angelia pudesse sequer piscar,
o lobo se desvencilhou do leão e colocou-o contra a parede. Com força.
– Você não quer mesmo me provocar – grunhiu Fury, pressionando a cabeça do
leão. – Não sou uma gazelinha na savana, imbecil. Vou arrancar a sua garganta mais rápido
do que você arrancou a cabeça do chacal.
Paris deu um passo à frente.
– Nós somos quatro e você é um.
– Dois – corrigiu Angelia, colocando-se entre ele e Fury. – E a única coisa mais
mortal que um lobo é a companheira de um lobo quando vê seu homem ameaçado.
Paris aproximou-se dela, inspirando o ar ao seu redor enquanto olhava-a
atentamente.
– É ela? – perguntou um dos outros leões.
– Não – respondeu Paris com desgosto. – Perdemos o rastro do cheiro – depois,
voltou-se para Fury. – Isso ainda não acabou, Lobo. Não vamos parar até estarmos
satisfeitos. Se encontrar a vadia responsável pela desgraça de minha família, servirei um
banquete com as vísceras dela.
Fury empurrou na direção de Paris o leão que segurava contra a parede.
– Vocês não são bem-vindos aqui. Sério. Agora, saiam.
Paris deixou escapar um grunhido feroz antes de desaparecer com os outros leões.
– E leve essa asquerosa cabeça de troféu com vocês – grunhiu Fury enquanto
lançava a cabeça do Chacal no portal que se abrira, de modo que a porcaria fosse com eles
para onde quer que eles fossem.
Angelia deixou escapar um lento suspiro de alívio.
– O que aconteceu? Como eles não sentiram meu cheiro?
Fury deu de ombros.
– O único poder que desenvolvi é a habilidade de mascarar meu cheiro. Como, a
partir de agora, sou parte de você, pude mascarar o seu também.
– É por isso que você não cheira como um Katagari!
Ele inclinou a cabeça em uma saudação ferina.
Mas aquilo levou outra pergunta à mente de Angelia.
– Como é que Dare descobriu a respeito de sua forma base se ele não pode sentir
seu cheiro?
Fury afastou o olhar conforme uma dor atravessou-lhe o corpo. Até aquele dia, a
traição do irmão ainda lhe rasgava a alma.
Angelia pousou a mão sobre o rosto dele conforme Fury apertava com força os
dentes.
– Diga-me.
Ele não sabia por que confiava nela quando aquilo ia contra sua natureza. Mas,
antes que pudesse se conter, a verdade irrompeu de seus lábios.
– Fomos atacados no bosque por um grupo de mercenários humanos. Eles
dispararam uma flecha. Dare não a tinha visto, mas eu sim. Empurrei-o, afastando-o do
caminho e fui atingido no lugar dele.
Angelia estremeceu em desespero quando finalmente entendeu o que de fato tinha
acontecido.
– A dor fez você mudar de forma.
Fury assentiu.
– Ele soube logo que caí no chão. Tentei detê-lo antes que chegasse ao povoado,
mas, quando cheguei lá, minha mãe já tinha sido alertada.
Do resto, Angelia se lembrava com incrível clareza. Ouvira a gritaria e fora ao pátio
principal onde todos estavam reunidos. Fury estava sangrando, mas ainda mantinha-se em
forma humana.
Dare o empurrara na direção da mãe.
– Ele é um maldito Lobo, mãe. Eu vi com meus olhos.
Bryani agarrara Fury pelos cabelos.
- Diga a verdade. Você é um Katagari?
O olhar de Fury procurara o de Angelia. A dor, a vergonha e a tortura lampejaram
profundamente em suas pupilas. Mas era a súplica naqueles olhos que lhe havia roubado o
coração. Ele estava rogando, em silêncio, que ela ficasse ao seu lado.
- Responda! – exigiu-lhe a mãe.
- Sou um Lobo.
Então, todos se voltaram contra ele em uma vingança tão selvagem da qual Angelia
ainda encontrava dificuldades em acreditar que tivera coragem de participar. Mas ali,
naquele momento...
Ela fora uma completa idiota.
– Você vai voltar a confiar em mim? – perguntou-lhe.
Ele segurou a palma marcada dela em suas mãos.
– Tenho outra opção?
– Sim, tem. Isto só quer dizer que posso ter seus filhos. Não tem nada a ver com
nossos corações.
Fury suspirou. Não, não tinha. Seus pais odiavam um ao outro. Inclusive, agora,
tudo o que faziam era planejar cada um a morte do outro.
– Se puder deixar de lado seu ódio pelos de minha espécie, estou disposto a
esquecer o passado.
Angelia olhou para o quarto.
– Terei que viver aqui, em sua época, não é mesmo?
– Você realmente acha que pode voltar para casa levando a marca de um Katagari?
Ele tinha razão. Eles a destruiriam. Não havia dúvida.
Fury afastou-se.
– Você tem três semanas para decidir se consegue viver comigo.
– Não preciso de três semanas, Fury. Concordei em ficar com você, e assim o farei.
Irei vincular-me a você, inclusive.
A raiva brilhou nos olhos dele diante daquela sugestão.
– Não, não vai. Tenho muitos inimigos que querem me ver morto. Não vou vincular
sua força vital à minha. É muito perigoso.
Ela riu.
– Você tem inimigos? E o que acha que era aquele grupo de leões que acabou de
partir? Atrás de quem eles estão? – segurou-lhe o rosto. – Você e eu já deveríamos ter tido
uma vida juntos. Permiti que minha idiotice nos furtasse quatrocentos anos. Não quero
perder nem mais um minuto.
– Você não sentia isso há vinte e quatro horas.
– Tem razão. Mas você me abriu os olhos. O que Dare está tentando fazer é errado.
Não posso acreditar que eu tenha arruinado a vida daquele pobre leão. Deuses, como queria
poder voltar no tempo e empurrar Dare quando ele disparou aquela arma.
O rosto de Fury empalideceu.
– Dare matou um leão desarmado?
– Não, esse foi o chacal. Dare disparou contra o leão que está vivo.
– E sua parte nisso tudo?
– A observadora idiota que pensou que faria do mundo um lugar mais seguro para
outras garotinhas, para que elas não precisassem ver a família ser devorada. Não me dei
conta de que estava lutando com os monstros e não contra eles.
Fury suspirou.
– Dare não é um monstro. Ele é apenas um imbecil inseguro desesperado para
conquistar o amor da mãe.
– E você?
– Eu era o imbecil inseguro, consciente de que nunca poderia me aproximar muito
da mãe por medo que ela sentisse o cheiro do lobo nele e o matasse.
Angelia o envolveu nos braços e beijo-lhe os lábios.
– Vincule-se a mim, Fury.
– Você é bem mandona, hein?
– Só quando se trata de algo que quero – ela olhou para a cama. – Não deveríamos
nos despir?
Ele segurou-lhe os braços e a afastou.
– Primeiro, temos que resolver isso tudo. Quero me assegurar de que você está se
vinculando a mim por escolha, e não por medo.
– Acha que não sou inteligente o bastante para saber a diferença?
– Sou o único que precisa estar seguro de seus motivos.
Porque ele ainda não confiava nela. E o fato de ela não poder culpá-lo entristecia-a
ainda mais.
– Muito bem, então. Como fazemos para acabar com isto?
– Acho que tenho uma ideia.
Angelia desceu e Fang logo farejou sua mão.
– Não é de se impressionar que estivesse agindo de forma tão estranha. O filho da
mãe achou a companheira.
– Fang! – vociferou Bride. – Deixe a pobre garota em paz. Ou pelo menos lhe dê os
parabéns.
– Pelo quê? Vincular-se a Fury me parece um pesadelo.
Houve um tempo em que a Angelia teria concordado. Estranho como não
concordava mais.
– Seu irmão é um lobo maravilhoso.
Bride sorriu em aprovação.
– Que seja. E então, onde está o adorável Lobo? – perguntou Fang.
– Disse que ia ver um amigo, falar sobre como despistar os leões de meu rastro.
Fang empalideceu.
– O que foi? – perguntou Angelia, imediatamente assustada com a reação do lobo.
– Fury não tem amigos.
Por que ele havia mentido para ela? Pelos deuses, o que ele estaria planejando?
– Então, onde ele está?
A pergunta mal tinha deixado seus lábios quando Vane apareceu. Ele a olhou antes
de voltar-se para Fang.
– Preciso que você vá ao Omegrion. Agora.
Fang franziu a testa.
– O que está acontecendo?
– Fury se uniu com aquela que destruiu a vida do leão.
Angelia levantou-se.
– O quê?!
– Você me ouviu! Imbecil. Fui chamado por Savitar. Ele me pediu para conseguir
quaisquer testemunhas que possam atestar a inocência dele.
Fang praguejou.
– Onde ele estava quando tudo aconteceu?
– Não sei.
Fang ficou de pé.
– Vamos.
Começaram a sair.
– Não se esqueçam de mim – Angelia moveu-se, colocando-se diante de Vane.
Ele vacilou.
Fang dirigiu-lhe um olhar austero.
– Ela é a companheira dele, V. Deixe-a vir conosco.
Assentindo, ele a levou com eles à ilha de Savitar e à câmara onde os membros do
Omegrion se reuniam e decidiam as leis que governavam a todos os Licantropos, os
mutantes da Pátria Lykos. Durante toda a sua vida, Angelia tinha ouvido histórias a respeito
daquele lugar. Nunca tinha pensado que o veria, todavia.
Ali, os Regis e representantes de cada uma das raças dos Katagaria e dos
Arcadianos encontravam-se. Para ela, era assombroso que não lutassem. Mas, claro, isso
era porque Savitar estava lá.
Mais parecido com um juiz, Savitar detinha em suas mãos o destino final de todos
eles. O único problema era que ninguém sabia realmente o que era Savitar. Ou sequer de
onde tinha vindo.
– Onde está Fury? – perguntou Vane.
– Não sei.
– Todos os membros estão aqui?
Ele examinou o grupo.
– Todos, exceto Fury.
Antes que Angelia pudesse fazer outra pergunta, sentiu uma onda de poder
acometê-la por trás. Virando-se, deparou-se com um homem incrivelmente maravilhoso.
Com pelo menos dois metros de altura, tinha o cabelo comprido e escuro e usava
cavanhaque. Vestia roupas de surfista e olhava-a com desconfiança.
– Tem sua testemunha, Lobo? – perguntou a Vane.
– Tenho.
– Então, procedamos.
Ele caminhou ao lado da mesa redonda onde sentavam-se os membros do Omegrion
e tomou o lugar no trono, que ficava à parte.
– Savitar? – perguntou Vane.
Ele assentiu.
Diabos. Ele era assustador.
Savitar deixou escapar um longo e exasperado suspiro.
– Sei que todos aqui prefeririam estar em outro lugar. Acreditem, eu também. Mas,
para aqueles de vocês que não estão a par dos acontecimentos porque precisam viver em
uma caverna... – olhou para o Arcadiano que era Regis da Pátria Falco9 e vacilou. – Certo,
alguns de vocês de fato vivem em cavernas, motivo pelo qual tenho de explicar. Parece que
alguns de nossos bons Arcadianos criaram e agora estão utilizado uma arma que pode lhes
tirar suas habilidades sobrenaturais e lhes encerrar em sua forma básica.
Vários membros ofegaram enfaticamente.
Savitar assentiu.
– Sim, é uma porcaria. Há dois dias, dois filhos da mãe decidiram sair para caçar.
Tenho a cabeça de dois dos quatro responsáveis – indicou com a mão esquerda para o leão.
– A família da vítima quer os outros dois. Mortos. Mas torturados primeiro. Respeito esse
desejo.
– Devemos caçá-los? – perguntou Nicolette Peltier.
– Não. Parece que um deles decidiu se entregar. Ele clama que assassinou os quatro
membros e não quer fugir.
– Onde ele está? – exigiu saber o irmão de Paris.
– Espere sua vez, Leão, ou usarei seus olhos como adorno.
O leão se calou imediatamente.
Savitar estalou os dedos e Fury apareceu, algemado, diante de seu trono.
Assim que Angelia começou a avançar em direção a ele, Vane a deteve.
Fury resmungou duas vezes mais quando a viu.
– Caramba, Vane, eu disse para você que não... – uma mordaça manifestou-se sobre
seu rosto.
Savitar o fulminou com o olhar.
– A próxima pessoa ou animal que me interromper será estripado aqui mesmo.
O olhar de Fury estava fixo no de Angelia. Não fale nada, projetou-lhe em sua
mente. Você pode voltar para casa e ter sua vida de volta.
Ele estava louco?
Aquele pensamento desapareceu quando ela viu Dare aparecer perto de Fury.
Savitar olhou para Dare com desprezo.
– Temos uma testemunha que jura ter visto Fury no ato. Uma vez que isso confirma
o que Fury disse, suponho que a votação sobre o destino dele será mais fácil. A menos que
alguém na sala tenha algo a acrescentar.
Sasha deu um passo adiante.
– Fury não é culpado. Ele está protegendo alguém. Eu o conheço. Pode ser que eu
não goste de seu traseiro, mas sei que ele é inocente. Eu estava no Santuário quando ele viu
o leão. E ele não sabia nada sobre aquilo.
– É verdade – concordou Nicolette Peltier. – Eu também o vi. Ele me disse que
encontraria os responsáveis e os faria pagar pelo que fizeram.
Savitar esfregou a mão no queixo.
– Interessante, não? O que tem a dizer sobre isso, Fury?
A mordaça desapareceu.
– Eles estão chapados.
Savitar sacudiu a cabeça.
– Alguém mais está chapado?
As lágrimas escorriam pelos olhos de Angelia diante do sacrifício que Fury estava
fazendo. Mas ela não podia permitir que aquilo continuasse.
Baixando o olhar, passou os dedos sobre o símbolo cravado em sua palma.
Seria uma grande honra ser a companheira dele e dar à luz seus filhos.
Se pudesse tê-lo feito...
– Fury é inocente – disse ela, dando um passo para a frente. – Ele confessou para
salvar a...
– ... mim.
Angelia congelou, assombrada, enquanto Dare limpava a garganta.
– Que diabos está acontecendo aqui? – perguntou Savitar.
Dare olhou para Angelia e, em seguida, para Fury.
– Sou o único responsável pelo disparo que mutilou ao leão. O responsável pela
morte do outro leão já está morto.
– E os outros?
– Mortos também.
Fury sacudiu a cabeça diante de Dare.
– Por que está fazendo isso?
– Porque foi meu erro e não vou permitir que um animal me ensine a ser nobre. Vá
se foder, seu filho da puta.
– Tínhamos um trato – disse Fury em voz baixa.
– Estou mudando nosso trato – Dare voltou a olhar para Angelia. – Chegou a hora
de você fazer a coisa certa, pelos motivos certos.
Savitar cruzou os braços sobre o enorme peito.
– Temos outra confissão de Dare Kattalakis. Dou-lhe uma... dou-lhe duas... Há mais
alguém na sala que gostaria de confessar? Alguém mais quer admitir ter disparado contra o
leão? – ele se deteve. – Acho que não.
Os leões adiantaram-se:
– Então ele é nosso.
Savitar negou com a cabeça.
– Na verdade, ele é meu. Sinto muito. Vocês já tiveram as cabeças de dois
Arcadianos. Contentem-se com o fato de eu não exigir justiça de suas famílias. Vamos
assumir que eles eram culpados, sem julgamento...
Os leões pareciam menos felizes, mas ninguém se atreveu a discutir com Savitar.
– Quanto a esse pequeno brinquedo que usaram, não se preocupem. Já me assegurei
de que o inventor não invente nada mais. Tenho gente rastreando as cópias que ele vendeu
e logo todas serão destruídas. Enquanto isso...
Dare desapareceu, e os grilhões que aprisionavam Fury também.
– O Omegrion dá a sessão por encerrada.
Os membros do Conselho desapareceram, com exceção dos lobos e de Nicolette.
Fury caminhou para onde eles estavam sentados. Estendeu a mão para Sasha.
– Obrigado.
– Não foi nada. E ainda não somos amigos.
Os olhos de Fury brilharam diante do humor do lobo.
– Sim, seu babaca, também não suporto você – depois, olhou para Nicolette. –
Também foi decente de sua parte falar.
– Você ainda está proibido de pisar em minha casa... a menos que esteja ferido –
deixou claro antes de desaparecer.
Fury sacudiu a cabeça e, então, olhou para Angelia. Seu humor se desfez.
– Você ia se entregar para me salvar.
– Eu lhe disse, Fury. Sempre vou estar atrás de você, protegendo-o.
Ele segurou-lhe as mãos e beijou-lhes o dorso uma a uma.
– Não é atrás de mim que quero que você fique.
Ela arqueou uma sobrancelha.
– Não? Onde prefere, então?
Ela esperava que ele dissesse debaixo dele... isso era o que um macho Arcadiano
diria. Mas não foi isso o que ele disse.
– Quero você ao meu lado. Sempre.
– Ugh! – choramingou Fang. – Ei, lobos, arranjem um quarto.
Angelia sorriu.
– Essa é uma ótima ideia.
No momento seguinte, eles estavam em casa.
Savitar não se moveu quando viu o último dos lobos deixar a sala. No momento em
que estava sozinho, sentiu um poder surgir ao seu lado.
Era Zarek.
– Sasha foi para casa, Z.
– Sim, eu sei. Queria falar com você sobre nossa última conversa.
– Meus demônios recuperaram a maioria das armas.
– Mas...
– Ainda há algumas perdidas por aí.
Zarek praguejou.
– Se Sasha for pego por uma delas, Astrid enlouquecerá.
– Acredite, Z, eu sei, como sei.
Savitar via um horizonte claro à frente, mas, em seu interior, ele tinha a mesma
preocupação de Zarek: uma tormenta aproximava-se. Feroz e violenta.
Eles tinham controlado aquela marola. Mas ela não era nada comparada ao que
estava por vir.
Fury estava deitado nu na cama, com Angelia sobre seu corpo. As mãos de ambos
ainda estavam pressionadas uma contra a outra em um ritual de união.
– Ainda não consigo acreditar que você ia morrer para que eu pudesse voltar para
casa.
– E eu não consigo acreditar que você ia me chamar de mentiroso na frente de todos
e tomar meu lugar na guilhotina. Da próxima vez que eu tentar salvá-la, garota, é melhor
que você fique a salvo.
Ela riu. Então, mordiscou-lhe o queixo.
– Prometo que vou me comportar, mas só com uma condição.
– Que seria...
– Que você vincule sua força vital à minha.
Ele bufou diante dela.
– Por que isso é tão importante para você?
Ela engoliu a saliva, apesar do nó que parecia haver em sua garganta.
– Você não sabe?
– Não.
– Porque eu amo você, Lobo, e não quero passar nem mais um dia nesta vida sem
estar ao seu lado. Onde você estiver, eu estarei, e, quando você morrer, eu também
morrerei.
Fury olhava-a, incrédulo. Em toda sua vida, ele apenas havia desejado uma coisa.
E Lia acabara de lhe dar essa coisa. Uma mulher que pudesse amá-lo e de quem ele
pudesse cuidar.
– Por você, minha lobinha, eu faria qualquer coisa.
Angelia sorriu quando sentiu o membro dele enrijecer novamente. Beijando-lhe a
mão, ela sabia que, desta vez, não iam apenas fazer sexo. Sabia que, desta vez, eles
vinculariam suas forças e que aquilo seria para toda a eternidade.
Autora best-seller do The New York Times, Sherrilyn Kenyon já vendeu mais de
14 milhões de cópias de seus livros impressos em 30 países. É autora da série Dark-Hunter,
cultuada internacionalmente, e que já apareceu no topo de listas como Publishers Weekly e
USA Today. Escrevendo tanto como Sherrilyn Kenyon quanto como Kinley MacGregor, é
autora de várias outras séries, incluindo Lords of Avalon e BAD. Perto de Nashville,
Tennessee, Sherrilyn Kenyon leva uma vida de perigos extraordinários – assim como
qualquer mulher com três filhos, um marido e uma coleção de espadas adorada por todos.
Visite o site da autora: www.sherrilynkenyon.com.
Como parte de uma das muitas crises de meia-idade, a autora best-seller do The
New York Times Susan Squires começou a escrever profissionalmente enquanto ainda
trabalhava como executiva em uma das empresas que aparecem na Fortune 500. Ela ainda
usa as histórias de romance e aventura para escapar de projetos e orçamentos. Susan faz
pesquisas e escreve seus livros em uma praia do sul da Califórnia, acompanhada por dois
pastores belgas, uma égua sangue-puro e um marido maravilhoso chamado Harry, que
escreve sobre mistérios ocultos como H. R. Knight. Visite a página de Susan em:
www.susansquires.com.