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Bornholdt I Releitura Do Caso o Pequeno Hans Sobre Silencios e Invisibilidade
Bornholdt I Releitura Do Caso o Pequeno Hans Sobre Silencios e Invisibilidade
último, que escreve: “O pequeno Hans era agora um forte rapaz de dezenove
anos. Declarou que estava perfeitamente bem e que não sofria de nenhum problema
de inibição” (p. 153).
Na entrevista aqui em questão Herbert Graf diz: Atrás de sua mesa, Freud
parecia um destes bustos de filósofos gregos que eu havia visto na escola. Ele se
levantou e me abraçou afetuosamente, dizendo que não podia esperar melhor
comprovação de suas teorias do que o jovem alegre e saudável que eu me tornara.
Façamos então um salto no tempo para o ano da longa entrevista aqui focada.
Estamos em 1972, e Herbert Graf tem sessenta e nove anos. Fala sobre sua carreira
dentro da área da música e, especificamente, da ópera. A matéria tem o título de
Memórias de um homem invisível. Herbert Graf relembra meio século de teatro:
um diálogo com Francis Rizzo publicado em quatro números (5, 12, 19 e 26 de
fevereiro 1972) da revista Opera News de New York. A leitura da entrevista nos
convida, naturalmente, a elaborarmos hipóteses sobre a personalidade do
entrevistado, homem por certo sensível e criativo em sua área de trabalho.
Assim sendo, breves comentários seguir-se-ão ao resumo dessa entrevista,
acompanhados de ampliações dos mesmos por outros autores. Na sequência
abordar-se-ão alguns pontos da teoria e técnica da psicanálise de crianças no
decorrer do último século. O trabalho finaliza com conjecturas a respeito de
possíveis e profundos registros da vivência infantil do paciente no entorno familiar,
bem como de sua experiência de análise aos cinco anos. Utilizarei como figura
ilustrativa o movimento de um palco giratório – recurso externo e interno
desenvolvido na vida profissional por Herbert Graf. A entrevista ocorre em Nova
York, onde o entrevistado atua há mais de uma década como diretor do Met. Graf
já é, então, autor de três livros sobre a produção operística1 e de muitos artigos; é
também compositor com larga experiência em dirigir orquestras e teatros de ópera
na Europa e nos Estados Unidos.
Quando o entrevistador conduz as questões de forma a convidar Herbert
Graf a falar sobre sua infância e adolescência, o entrevistado enfatiza sua grande
admiração pelo pai. Descreve-o como homem extraordinário e erudito,
musicólogo, crítico, doutor em leis, sagaz analista político cujo campo de
conhecimentos e de ensino abrange a estética e a literatura, a filosofia e a
matemática. Descreve-o como um homem universal e, simultaneamente, um
autêntico vienense apreciador de vinho e mulheres bonitas. O pai, Max Graf,
1
The opera and its future in America, 1941; Opera for the people, 1951; Producing opera for
America, 1961.
2
Richard Wagner als Regrisseur.
3
Alban Maria Johannes Berg foi um compositor austríaco, fazia parte da elite cultural de Viena
durante o início do século XX.
4
Arturo Toscanini foi um maestro italiano. Ele é especialmente considerado um grande intérprete
das obras de Giuseppe Verdi, Ludwig van Beethoven, Johannes Brahms e Richard Wagner.
mais tempo, trabalha com Callas5 em Florença e dirige em Nápolis, Roma, Verona,
Palermo e Veneza. Finalmente, nos anos sessenta muda-se para Zürich, na Suíça.
Conclui oficialmente sua estadia nos EUA e assume o Stadttheater de Zürich. A
princípio considera-se no apogeu de sua realização profissional, valorizando a
total liberdade de eleição de repertório, elenco, desenhistas e tempo de ensaio.
Todavia, a tendência às operetas oferece resistência ao seu trabalho com a ópera.
Dois anos depois, muda-se para Genebra, onde se ergue um novo e moderno
teatro de ópera. Ali também desenvolve o que sonhara por tantos anos: uma cadeira
de escola de teatro. Em seus livros destaca-se um tema: o da educação tanto dos
artistas quanto do público.
Para Graf, a sobrevivência da ópera depende da criatividade, dos dons de
quem a compõe, da qualidade dos intérpretes e do grau de resposta do público.
Acredita que todos podem se desenvolver pela educação: Sou filho de um professor,
um trabalhador educado, um homem que conhece o que faz, que crê em certos
aspectos deste fazer operístico que pode ser transmitido aos outros. Segue suas
conclusões afirmando recear a produção massiva de artistas: Quanto mais
estendermos as superfícies e dependermos da técnica para destacar algo, mais
arriscamos perder o poder real expressivo.
Herbert refere-se, também, aos grandes cantores do passado que
compensavam as falhas teatrais com o poder afetivo de seu canto. Sublinha o
valor dado por eles à expressão de sentimentos. Compara a interpretação e a
potência das canções de Caruso com sua condição de voz que canta. Para o
entrevistado, os maiores artistas de ópera têm em comum a habilidade de cantar
com sentimento, mesmo não sendo de todo convincentes como atores. Pondera
no final de sua longa entrevista que a busca do ver-se bem cada vez menos
impulsiona o artista a encontrar seus próprios recursos de expressão.
Finalmente, Herbert Graf salienta o cuidado no uso dos dons, o cuidado
antigo de não cantar demasiado ou demasiadamente. Pensa que antes se observava
mais e melhor a tranquilidade prévia necessária a grandes acontecimentos. Declara-
se de acordo com aqueles que discordam da tendência real e figurativa de milhagens
de seus talentos. Simplesmente não se pode voar de um compromisso a outro a
maior parte do ano sem alguma perda na profundidade do que se faz. Cita sua
continuada busca de superação das dificuldades de apresentações do teatro musical
no palco e para a TV e como segue estimulando-o, inclusive no aperfeiçoamento
do palco giratório. Afirma que este funciona, mas não é o ideal... (que seria) uma
5
Maria Callas, cantora lírica norte-americana de ascendência grega, considerada a maior
celebridade da ópera no século XX e a maior soprano de todos os tempos.
área para atuação rodeada por três lados. A plateia semicircular surgiria do cenário
onde habitualmente estão situados os palcos. A abertura semicircular é o ponto
estratégico de toda série de câmaras e vídeos ocultos dirigidos sobre o cenário.
Poderiam fazer-se tanto transmissões diretas como gravações sem incomodar o
público ou os artistas... temos andado todo um caminho desde os dias da ópera
iluminada a gás até o futuro eletrônico.
quando os intérpretes cantam com sentimento, com poder afetivo e modos pessoais
de fazê-lo. Preocupa-se com a massificação dos artistas. Destaca a ideia da
educação e pedagogia tanto dos intérpretes quanto do público.
Podemos intuir que este cuidado com a educação e o estudo é consequência
do próprio desenvolvimento pessoal e refinamento. É alguém que dá importância
enorme ao tempo necessário para os ensaios, ao silêncio, tranquilidade, tempo de
reflexão e elaboração, ao não ao excesso.
Este conjunto de reflexões e preocupações do entrevistado indica temas
que seguem muito atuais. Lembremo-nos também de trabalhos de outras áreas. O
sociólogo Zygmund Bauman (2001) refere-se a um mundo de aceleração e de
estados líquidos de ser, estados que tomam a forma do recipiente que contém o
líquido. O filósofo alemão Christoph Türcke (2002) descreve um tipo de
comunicação vigente atualmente com torrentes de excitação pelo espetáculo,
causar sensação e massificar a vida social globalizante. O participante do
espetáculo paga o preço do curto-circuito entre ser percebido – ser sensacional –
existir versus aniquilamento individual. Como efeito, há um crescente prejuízo
na capacidade de sentimentos e de pensamento próprios.
Todavia, apesar do cuidado com a administração de tempo, Herbert Graf
sempre se dedicou ao desenvolvimento tecnológico e à inserção social desta área
mais restrita ao público erudito. Embora tenha trabalhado muito no
desenvolvimento do palco giratório, afirma que este também não é ideal. Revela
sua condição de autocrítica dizendo que simplesmente não se pode voar de um
compromisso a outro a maior parte do ano sem alguma perda de profundidade
no que se faz. Ele próprio levou uma vida de intenso trânsito entre continentes e
países. Produziu muito. Trabalhou no desenvolvimento de transmissões diretas
através da televisão, mas ficou insatisfeito com as câmaras e os vídeos aparentes.
Enfim, Herbert Graf nos revela ter sido um homem que soube buscar a realização
de seus desejos; transformá-los, simbolizá-los e sublimá-los. Simultaneamente,
parece, também, sentir-se em conflito com esta grande ênfase na vida de trabalho.
cortar fora seu pipi. Aí com o que você vai fazer pipi?”
Hans: Com meu traseiro (Freud, 1909, p. 17).
jogá-la pela sacada, afogá-la na banheira, o sonho com a girafa amassada sobre a
qual se senta o pequeno Hans são materiais que hoje poderíamos considerar como
tentativas de elaborações de ameaças vividas e/ou testemunhadas realmente. As
angústias do pequeno Hans podem adquirir mais visibilidade se consideradas
também no contexto real de uma criança exposta a descontroles da mãe e à ausência
do pai.
Hoje, podemos pensar nas partes silenciadas e escuras como uma terra
contendo em potencial certa fobia no enfrentamento edípico à semelhança de
sementes que necessitam de tempo para germinar e brotar, até alcançarem a luz
acima da terra. Talvez esta possa ser outra metáfora para o tempo da eclosão da
neurose do pequeno Hans aos cinco anos. Atualmente, contamos com muitos
estudos e trabalhos sobre a mente primitiva, interações precoces, material pré-
verbal e importância dos pais e da história familiar, identificações e constituição
do psiquismo da criança pequena. Estudos e trabalhos que iluminam mais as
nascentes do terror da não integração e da desintegração, das ameaças vividas
como mortais trazendo-as à visibilidade. Permitem focarmos, também, aquilo
que é demasiado para o self em construção e que se torna potencialmente
traumático. Nesses movimentos sucessivos de visibilidade talvez possamos inserir
sentimentos derivados de ciúmes edípicos nas duas gerações implicadas bem como
os de solidão materna.
Freud, em 1909 e naquele estágio inicial da psicanálise, enfoca a teoria da
libido e as propensões sádicas, hostis e agressivas. O contexto familiar real é
pouco considerado então.
Mas outra consideração importante é a da força de um olhar compreensivo
e empático. A esse respeito coincido com Borgogno (2006) quando considera a
importância do interesse crescente do pai na compreensão do filho quase
imobilizado pelos medos.
Estariam o pai, Freud e o grupo que estudava as observações exercendo
uma importante função integradora, com fator terapêutico em Herbert? Estes
olhares, provavelmente, incluíam o todo das angústias de Hans, inclusive os
descontroles nos bastidores e as ameaças. Animo-me a levantar a hipótese que
esta criança, por sua vez, também testemunhava ângulos escuros de solidão e
desespero maternos. Neste novo giro do palco, podemos pensar a mãe em tentativas
para equilibrar-se frágil e perigosamente.
Borgogno (2006) reflete sobre a posição de Freud neste caso pioneiro da
análise de uma criança. Freud lidava simultaneamente com um experimento e o
impacto das fragilidades dos pais como casal e de cada um individualmente. Pensa
que Max Graf pode retomar melhor seu lugar de pai, anteriormente deixado vazio
por ele devido tanto às instabilidades maternas quanto à notável ausência de casa.
De qualquer forma, Herbert foi objeto de atenções e, provavelmente, se nutriu
desta experiência. Borgogno escreve que observa uma maior atitude de escuta
autêntica, no caso do pequeno Hans, no pai/analista e igualmente em Freud/
supervisor. Acrescento: apesar da valorização quase exclusiva do conteúdo verbal
de um paciente de somente cinco anos de idade.
A idealização de Herbert de seu pai, conforme é descrita acima na entrevista
e em seus comentários, é notória e assim permanece até o final de sua vida. Durante
a análise e após a única visita ao consultório de Freud com o pai, pergunta: “O
professor conversa com Deus?” (Freud, 1909, p. 52). Herbert identifica-se com
seu pai que, por sua vez, idealiza Freud. Certamente aqui também sucedem
identificações com aspectos do objeto externo e que supostamente contribuíram
muito para nascer Herbert de Hans e estas duas versões se integrarem mais
plenamente.
No ano de 1912, Max abandona as reuniões das quartas e segue Adler, de
quem sua esposa, provavelmente, se torna paciente. O casal também se separa em
algum momento. Herbert seguia seus ideais musicais, que eram, intimamente, os
do pai. Se pensarmos as construções de ideal de ego como sedimentação da
elaboração edípica e dos ideais resultantes da elaboração do segundo tempo na
adolescência, as metas seguidas e as conquistas de Herbert no campo da música
fazem muito sentido. Com paixão própria da adolescência, absorve intensamente
a viagem a Berlin aos dezesseis anos. Mergulha em apresentações operísticas e
teatros sempre que pode. Retorna a Viena com um grande desejo e uma missão;
montar um trecho de ópera na sua escola – o lugar possível. Ali propõe-se realizar
este empreendimento que o absorve totalmente, a ponto de quase perder o ano
escolar. Também consegue narrar ao pai o sonho de uma profissão que inventou:
ser diretor de ópera. Literalmente sonha o sonho (Bion, 1965) e tem o privilégio
de ser escutado e apoiado pelo pai na busca deste ideal. A dedicação à música o
impulsiona a levá-la ao povo, à televisão, aos hospitais, a contribuir para
desenvolver palcos giratórios e diminuir as invasões de câmaras.
Na adolescência, enquanto ele segue com seus ideais, a irmã Hanna se
torna cada vez mais abalada e emocionalmente frágil. O palco giratório da vida
de Herbert movimenta-se para dentro de âmbitos trágicos de sua história. Hanna,
aos dezenove anos, sofre um colapso emocional e se suicida. O trauma se repete
quando, mais tarde, Herbert se separa da primeira esposa e esta também se suicida.
Repetem-se experiências dolorosas vividas na infância.
Herbert Graf, conforme podemos deduzir da entrevista acima, torna-se um
adulto resiliente e com notáveis capacidades sublimatórias. Certamente em grande
O tempo foi fator reclamado e valorizado por Herbert Graf, sempre. Qual
seria seu significado para ele? Manifestamente era o tempo suficiente para ensaios,
experimentos, para os artistas, os dirigentes e ele mesmo. Latentemente, pode ter
sido, para Herbert Graf, o longo tempo necessário a elaborações de projetos, lutos,
superações. Podemos imaginá-lo como o tempo decorrido entre sonhar com Hanna
seu primeiro teatro, construí-lo a dois na infância e tornar-se diretor de teatro na
vida adulta, quando a irmã já não vivia mais para testemunhar e compartilhar a
construção de teatros e direções musicais. Ou, ainda, como representação do tempo
insuficiente da vida de Hanna? O tempo escasso antes da separação dos pais? Seu
próprio primeiro casamento e divórcio? A morte da primeira esposa? O longo
tempo da construção de sua excelência na música? O tempo para girar o palco da
vida entre graduais visibilidades e invisibilidades?
Blum (2007) pensa a invisibilidade como Freud, o analista invisível que
ocupa um lugar tão importante na infância de Hans e de sua família. Mas também
está no próprio Hans com o foco na teoria da sexualidade infantil e na violência
materna silenciada no bastidor dessa mãe, objeto de desejo e de amor. Hoje é
evidente que um pai não pode aplicar o método psicanalítico em um filho. Em
1909 isto não pertencia à parte iluminada do palco.
No inconsciente, as multideterminações, simultaneidades e condensações
formam cadeias infinitas. Herbert Graf é o homem que vive e defende a
invisibilidade como leitmotiv pessoal. Uma espécie de filosofia de vida e não só
no trabalho. A invisibilidade aparece, ainda, em seus silêncios sobre sua vida
pessoal na entrevista concedida. De quem, para quem e para onde? Seria também
de Herbert, no fundo escuro do pequeno Hans, iluminado com suas questões
sobre a sexualidade infantil em seu destino humano? Seria ele próprio invisível
ao olhar materno quando esta mãe atuava sua violência, ou seria a invisibilidade
do pai ausentei? De qualquer forma, sua música tão investida e sua forma invisível
de trabalhar foram muito visíveis através da ópera. Construiu uma grande
visibilidade à medida que as óperas eram escutadas em tantas apresentações e
tantos lugares.
Herbert Graf, em sua entrevista, deixa transparecer um homem elegante no
convívio com os outros. Seu continuado desenvolvimento é ilustrado na música e
na ópera. Podemos inferir ou sentir seu cuidado, profundidade e generosidade
com o público e intérpretes. Busca tempo e não saturação; preocupa-se com o
demasiado e a massificação. Revela uma grande capacidade e condição de
adaptação e de resiliência. E, ainda, força para sintetizar e integrar aspectos
positivos e negativos da própria relação com a mãe e o pai.
Para finalizar, considero, com tantos autores mais, que esta primeira análise
de criança, de brevíssima duração, soube comprovar o papel fundamental da
sexualidade infantil no destino humano. Penso que seus efeitos ficaram
profundamente registrados na mente do pequeno paciente. Efeitos estes
provavelmente tão positivos pelo período bem maior no qual aconteceram
investimentos afetivos devidos a olhares e escutas analíticas. A análise certamente
lhe possibilitou a necessária elaboração edípica.
O pequeno Hans cresce com força sublimatória, persistência e criatividade
que podem ser observadas no grande Herbert Graf com suas características de
fazer face às adversidades da vida e persistir na busca prazerosa de seus ideais.
Alguém capaz de realizar ideais e servir-se do tempo necessário para elaborações.
Alguém que parece ter movido sua vida como em um palco giratório que ilumina
uma parte da sua história enquanto mantém outra parte no silêncio e no escuro. O
enredo todo e seu sentido apenas são compreensíveis quando há um contínuo
movimento evolutivo por regiões visíveis e invisíveis, por silêncios e falas. Então
sim, diferentes dimensões, épocas, ângulos e contextos podem se conectar para
contar uma história com sentido compreensível.
Um século depois o pequeno Hans segue muito visível na psicanálise. Tão
visível que também evoca certo sabor de invasão da privacidade do músico e
diretor de óperas. O cuidado e a discrição de Herbert Graf resultam, provavelmente,
da sua tendência a transformar e sublimar demandas e desejos até o fechar da
cortina em 1973, quando morre aos setenta e dois anos.
Abstract
Resumen
Referências
Recebido em 11/03/2015
Aceito em 17/06/2015