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Releitura do caso O pequeno Hans: sobre silêncios e invisibilidades

Releitura do caso O pequeno Hans:


sobre silêncios e invisibilidades

Ingeborg Bornholdt*, Porto Alegre

Passados mais de cem anos, aborda-se um ângulo possível de releitura


do texto Análise de uma fobia em um menino de cinco anos, de Freud
(1909). O principal recurso utilizado é uma entrevista que o próprio paciente
desta primeira análise de criança concede quando contava sessenta e
nove anos. Tornara-se um importante diretor de óperas. Com este adicional
importante do próprio Hans – Herbert Graf e outros dados de seu histórico
– consideram-se entendimentos e hipóteses adicionais sobre este caso
clássico de psicanálise de crianças. O palco giratório é utilizado como
imagem das visibilidades e dos silêncios na análise do pequeno Hans. A
autora procura sintetizar três pontos principais do desenvolvimento teórico-
clínico da psicanálise de crianças ao longo do último século.

Palavras-chave: teoria da sexualidade infantil, angústia de castração,


angústias primitivas, psicanálise de crianças, elaboração, sublimação.

* Psicanalista, membro efetivo, analista didata e psicanalista de crianças e adolescentes da


Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

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Ingeborg Bornholdt

Em 1909 Freud publica o caso do pequeno Hans, analisado pelo pai da


criança com sua supervisão. Ele havia convidado e encorajado os participantes
de seu grupo de adeptos e pioneiros da psicanálise, o grupo das quartas-feiras, a
registrarem observações de crianças, filhos ou outras de seus convívios, para
sedimentar a teoria da sexualidade infantil. Em 1905 publicara os Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade e segue seu espírito de pesquisador à procura de
comprovações através da observação prática.
Muitos são os trabalhos escritos ao longo deste século com novas ideias e
discussões sobre este caso pioneiro de psicanálise de uma criança: a Análise de
uma fobia em um menino de cinco anos (Freud, 1909). As anotações do pai de
Hans datam da idade de dois anos e nove meses do filho e seguiram durante os
próximos anos. O material é objeto de estudos e reflexões no grupo de Freud,
parcialmente já abordado em Sobre as teorias sexuais das crianças (1908), no
qual ainda se conserva o nome real do paciente – Herbert – substituído por Hans
ou pequeno Hans em 1909.
O caso do pequeno Hans segue presente em estudos de psicanalistas de
várias latitudes no decorrer do último século. Atualmente, desfrutamos do
privilégio de termos à disposição muitas destas fontes de autores emergentes e
seus trabalhos inspiradores, com diversas inclinações teóricas e identificações
pessoais. Há, pois, um legado que convida a nos engajarmos em mais reflexões e
observações como respostas ao convite de Freud (1909) para “reunir observações
da vida sexual das crianças” (p. 16).
Partimos agora do material do próprio personagem Herbert Graf em sua
vida adulta. Imaginemo-nos na análise de um adulto que nos fala de seu trabalho
e vida presentes e que sabe ter tido a experiência de uma análise na infância, da
qual, todavia, não lembra conscientemente.
A partir de 1909, Freud conserva o H de Herbert, porém substitui por Hans
o nome no relato deste trabalho clássico. Para ilustrar claramente tratar-se de uma
criança, passa a denominá-lo de pequeno Hans. Herbert Graf, por sua vez, autoriza-
nos a utilizar as informações ao consentir na publicação de uma entrevista
concedida em Nova York ao jornalista Francis Rizzo (1972) sob o título Memórias
de um homem invisível. Seus pais já haviam consentido na publicação do caso há
décadas.
Em 1922 Herbert encontra no gabinete do pai o artigo Análise de uma
fobia em um menino de cinco anos (Freud, 1909) reconhecendo-se, vagamente,
na criança em foco, embora não lembre a análise em si. Morador em Viena, procura
Freud apresentando-se pessoalmente na Berggasse e evoca a satisfação deste

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último, que escreve: “O pequeno Hans era agora um forte rapaz de dezenove
anos. Declarou que estava perfeitamente bem e que não sofria de nenhum problema
de inibição” (p. 153).
Na entrevista aqui em questão Herbert Graf diz: Atrás de sua mesa, Freud
parecia um destes bustos de filósofos gregos que eu havia visto na escola. Ele se
levantou e me abraçou afetuosamente, dizendo que não podia esperar melhor
comprovação de suas teorias do que o jovem alegre e saudável que eu me tornara.
Façamos então um salto no tempo para o ano da longa entrevista aqui focada.
Estamos em 1972, e Herbert Graf tem sessenta e nove anos. Fala sobre sua carreira
dentro da área da música e, especificamente, da ópera. A matéria tem o título de
Memórias de um homem invisível. Herbert Graf relembra meio século de teatro:
um diálogo com Francis Rizzo publicado em quatro números (5, 12, 19 e 26 de
fevereiro 1972) da revista Opera News de New York. A leitura da entrevista nos
convida, naturalmente, a elaborarmos hipóteses sobre a personalidade do
entrevistado, homem por certo sensível e criativo em sua área de trabalho.
Assim sendo, breves comentários seguir-se-ão ao resumo dessa entrevista,
acompanhados de ampliações dos mesmos por outros autores. Na sequência
abordar-se-ão alguns pontos da teoria e técnica da psicanálise de crianças no
decorrer do último século. O trabalho finaliza com conjecturas a respeito de
possíveis e profundos registros da vivência infantil do paciente no entorno familiar,
bem como de sua experiência de análise aos cinco anos. Utilizarei como figura
ilustrativa o movimento de um palco giratório – recurso externo e interno
desenvolvido na vida profissional por Herbert Graf. A entrevista ocorre em Nova
York, onde o entrevistado atua há mais de uma década como diretor do Met. Graf
já é, então, autor de três livros sobre a produção operística1 e de muitos artigos; é
também compositor com larga experiência em dirigir orquestras e teatros de ópera
na Europa e nos Estados Unidos.
Quando o entrevistador conduz as questões de forma a convidar Herbert
Graf a falar sobre sua infância e adolescência, o entrevistado enfatiza sua grande
admiração pelo pai. Descreve-o como homem extraordinário e erudito,
musicólogo, crítico, doutor em leis, sagaz analista político cujo campo de
conhecimentos e de ensino abrange a estética e a literatura, a filosofia e a
matemática. Descreve-o como um homem universal e, simultaneamente, um
autêntico vienense apreciador de vinho e mulheres bonitas. O pai, Max Graf,

1
The opera and its future in America, 1941; Opera for the people, 1951; Producing opera for
America, 1961.

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também integrou o círculo de pioneiros de Freud. Na opinião de Herbert, de fato


foi o primeiro a aplicar o método psicanalítico no estudo do processo criativo.
Herbert relata uma infância imersa em música: foi afilhado de Gustav
Mahler, hóspede frequente na casa dos pais, amigos de Richard Strauss e de outros
grandes nomes da produção musical. Em Viena, onde moravam, cresceu sempre
assistindo a concertos de música de câmara e recitais. Sobretudo Strauss o
impressionou. Ao ser declarada a primeira guerra, os pais o enviam a Berlin para
as férias de verão. Max Reinhardt, amigo de seu pai, dirigia três teatros em Berlin,
o que permite a Herbert saborear por três meses suas apresentações. Declara:
Meu grande amor era a ópera. Sobre seu regresso a Viena, afirma: Senti como
missão fazer pela ópera o que Reinhardt fez pelo teatro...
Assim, o adolescente Herbert, aos dezesseis anos, pede licença para montar
no ginásio de sua escola a cena do foro de Júlio César. Colhe uma quase reprovação
no ano escolar, e, no livro anual da escola, em uma coluna sobre as Estupidezes
do ano, lê-se: Herbert Graf quer chegar a ser diretor de cena de ópera! O
entrevistado segue discorrendo sobre este período de sua adolescência sem
mencionar a mãe e/ou separação de seus pais. Observa que a profissão de diretor
de ópera não existia e que ele a teria inventado, porém menciona que seu primeiro
teatro foi construído em casa, na infância, com a ajuda da irmã menor, Hanna. O
pai não o incentivava, nem o impedia. Apesar das finanças difíceis durante esse
período, o pai lhe dava meios para preparar-se para a carreira escolhida.
Herbert a seguir ingressa na Universidade de Viena. Sua tese final intitula-
se Wagner como diretor de cena2 e, em 1925, obtém seu PhD. Havia então mais
de cem teatros nos países de língua alemã: Áustria, Alemanha, Boêmia e Suíça.
Aos poucos é chamado para atuar em pontas de apresentações como cantor até
montar sua primeira ópera. Fígaro, seu debut, é um sucesso e lhe traz o primeiro
contrato de trabalho integral aos vinte e dois anos. Em continuidade, como diretor
de ópera, realiza mais e mais seu desejo e monta óperas em Breslau e Frankfurt.
Berg3 vem assistir-lhe e torna-se seu primeiro coordenador/supervisor. Graf se
refere ao mestre como modesto e bondoso, severo e exigente, com um encantador
e irônico sentido de humor. Naquela época, Berg, que dirige um programa de
premier na Filadélfia, EUA, mostra a Herbert um programa no qual aparecem,
com grande destaque, fotos do elenco, reproduções, de vários desenhistas, de
cenários e uma pequena foto do próprio Berg. Depois de tudo, não se esqueceram
de mim, comenta, divertido, com o próprio Herbert.

2
Richard Wagner als Regrisseur.
3
Alban Maria Johannes Berg foi um compositor austríaco, fazia parte da elite cultural de Viena
durante o início do século XX.

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Em Frankfurt, Graf também se dedica à modernização da ópera. Nesta


cidade sua produção exitosa do Transatlantic de George Antheil em 1930 lhe traz
um convite deste último para férias nos EUA. O Met estava fechado. Herbert
Graf assiste a apresentações na Broadway, o que lhe faz imaginar que ali a ópera
deveria ser muito moderna. Na Europa, segue dividindo-se entre Basel e Praga
com seus grandes músicos. Na esteira, regressa aos Estados Unidos com um
primeiro contrato profissional. Porém, lá chegando, surpreende-se com o incrível
grau de despreparo de organização e das escassas horas para ensaios.
Concomitantemente, segue o trabalho de desenvolvimento do palco giratório. A
introdução desta então nova tecnologia gera questionamentos de alguns críticos
que escrevem sobre seu manejo irresponsável da ópera. Strauss, no entanto, lhe
dá apoio incondicional. Por sua vez Toscanini4, presente em Nova York para
direções, sente-se insatisfeito com os standards da produção e convida Graf para,
em Florença, montar Rapto. Assim, crescentemente, Graf participa de festivais
musicais, somando, a produções em Nova York e ao Rapto em Florença, A flauta
mágica em Salzburg, Fausto em Frankfurt, O Rigoletto em Praga, Tannhäuser na
sua Viena e Fidelio em Paris. Onde atua, sempre insiste em aproximações mais
íntimas de músicos e plateia. Igualmente, defende a fidelidade ao que o compositor
quer.
Herbert transita entre Europa e EUA até 1936/37 quando lhe oferecem um
contrato com o Met. Começa, então, sua primeira década como diretor desta casa
considerando insuficiente o tempo concedido para os ensaios de coro e orquestra.
Toscanini, em Nova York com a Filarmônica, o acalma em tom filosófico:
Paciência, apreenderás a conviver com isto.
Na entrevista, Graf continua discorrendo sobre seu trabalho e assinalando
a reação positiva do público versus sua própria exigência. Declara como sua maior
realização a aproximação da ópera ao povo. Também segue em seu empenho no
desenvolvimento do potencial operístico para a TV. Em 1943/44 participa do grupo
pioneiro de produtores de TV como diretor de musicais e leva a ópera para
veteranos de guerra em hospitais. Afirma: Em minha luta para elevar o standard
de produção, obtive bastante apoio... mas o que fazer contra as limitações de
tempo e de dinheiro?
Em 1950, após dezesseis anos, decide deixar o posto no Met, mas
concordando com um ano de transição. Durante este ano, realiza outras produções
importantes, agora já dentro do Lincoln Center. Na Europa, onde permanece por

4
Arturo Toscanini foi um maestro italiano. Ele é especialmente considerado um grande intérprete
das obras de Giuseppe Verdi, Ludwig van Beethoven, Johannes Brahms e Richard Wagner.

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mais tempo, trabalha com Callas5 em Florença e dirige em Nápolis, Roma, Verona,
Palermo e Veneza. Finalmente, nos anos sessenta muda-se para Zürich, na Suíça.
Conclui oficialmente sua estadia nos EUA e assume o Stadttheater de Zürich. A
princípio considera-se no apogeu de sua realização profissional, valorizando a
total liberdade de eleição de repertório, elenco, desenhistas e tempo de ensaio.
Todavia, a tendência às operetas oferece resistência ao seu trabalho com a ópera.
Dois anos depois, muda-se para Genebra, onde se ergue um novo e moderno
teatro de ópera. Ali também desenvolve o que sonhara por tantos anos: uma cadeira
de escola de teatro. Em seus livros destaca-se um tema: o da educação tanto dos
artistas quanto do público.
Para Graf, a sobrevivência da ópera depende da criatividade, dos dons de
quem a compõe, da qualidade dos intérpretes e do grau de resposta do público.
Acredita que todos podem se desenvolver pela educação: Sou filho de um professor,
um trabalhador educado, um homem que conhece o que faz, que crê em certos
aspectos deste fazer operístico que pode ser transmitido aos outros. Segue suas
conclusões afirmando recear a produção massiva de artistas: Quanto mais
estendermos as superfícies e dependermos da técnica para destacar algo, mais
arriscamos perder o poder real expressivo.
Herbert refere-se, também, aos grandes cantores do passado que
compensavam as falhas teatrais com o poder afetivo de seu canto. Sublinha o
valor dado por eles à expressão de sentimentos. Compara a interpretação e a
potência das canções de Caruso com sua condição de voz que canta. Para o
entrevistado, os maiores artistas de ópera têm em comum a habilidade de cantar
com sentimento, mesmo não sendo de todo convincentes como atores. Pondera
no final de sua longa entrevista que a busca do ver-se bem cada vez menos
impulsiona o artista a encontrar seus próprios recursos de expressão.
Finalmente, Herbert Graf salienta o cuidado no uso dos dons, o cuidado
antigo de não cantar demasiado ou demasiadamente. Pensa que antes se observava
mais e melhor a tranquilidade prévia necessária a grandes acontecimentos. Declara-
se de acordo com aqueles que discordam da tendência real e figurativa de milhagens
de seus talentos. Simplesmente não se pode voar de um compromisso a outro a
maior parte do ano sem alguma perda na profundidade do que se faz. Cita sua
continuada busca de superação das dificuldades de apresentações do teatro musical
no palco e para a TV e como segue estimulando-o, inclusive no aperfeiçoamento
do palco giratório. Afirma que este funciona, mas não é o ideal... (que seria) uma

5
Maria Callas, cantora lírica norte-americana de ascendência grega, considerada a maior
celebridade da ópera no século XX e a maior soprano de todos os tempos.

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área para atuação rodeada por três lados. A plateia semicircular surgiria do cenário
onde habitualmente estão situados os palcos. A abertura semicircular é o ponto
estratégico de toda série de câmaras e vídeos ocultos dirigidos sobre o cenário.
Poderiam fazer-se tanto transmissões diretas como gravações sem incomodar o
público ou os artistas... temos andado todo um caminho desde os dias da ópera
iluminada a gás até o futuro eletrônico.

Comentários sobre a entrevista

Através de uma escuta/leitura analítica, ou simplesmente humana, podemos


imaginar alguns pontos sinalizadores de características deste homem de sessenta
e nove anos. Ele próprio destaca em si uma postura e convicção reveladoras de
sua Weltanschauung: pensa que o diretor de cena deve ser invisível, permanecer
nos bastidores e permitir que a luz se projete sobre a obra (a ópera) e os stars da
cena (os cantantes). O entrevistado possivelmente nos revela algo sobre sua própria
condição de escuta desde os bastidores. Podemos imaginar alguém com suas
necessidades narcísicas suficientemente elaboradas para tolerar e buscar esta luz
sobre outros enquanto persegue a excelência do próprio trabalho. Certamente, a
grande capacidade imaginativa e sensibilidade para criar cenários e interpretações,
além de serem reveladoras de seu conhecimento e talento musicais, igualmente o
são do próprio desenvolvimento do seu senso ético e estético. Podemos concluir
sobre um mundo interno rico, fértil. Cria e (re)cria focos de luz e de bastidores
invisíveis. É profundamente identificado com um pai admirado e com uma infância
inserida no mundo da cultura artística. Desenvolve ideais e os busca desde sempre.
Na adolescência compreende que seu grande amor é a ópera. Sente-a como sua
missão e inventa uma profissão sonhada, a de tornar-se diretor de ópera.
Tenazmente busca a realização de seus desejos até a morte. Cresce e se
destaca neste ideal com grande capacidade de trabalho. Revela importante senso
ético ao cuidar o que diz e proteger o que considera íntimo e privado. Neste
ponto, somos levados a imaginar uma organização defensiva e estruturada. O pai
e suas figuras representativas – grandes músicos, dirigentes, compositores,
supervisor e padrinho – são investidos e talvez idealizados. Concomitantemente,
silencia sobre a mãe, sem, no entanto, denegri-la ou criticá-la. Este silêncio nos
fala de relações dolorosas. Refere-se, todavia, a sua irmã menor, Hanna, que, na
infância, participou ludicamente de seu projeto de vida, quando construiu seu
primeiro teatro. Valoriza-a e igualmente valoriza muito a fidelidade aos
compositores; busca a interpretação do que eles querem; sustenta que isto é possível

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quando os intérpretes cantam com sentimento, com poder afetivo e modos pessoais
de fazê-lo. Preocupa-se com a massificação dos artistas. Destaca a ideia da
educação e pedagogia tanto dos intérpretes quanto do público.
Podemos intuir que este cuidado com a educação e o estudo é consequência
do próprio desenvolvimento pessoal e refinamento. É alguém que dá importância
enorme ao tempo necessário para os ensaios, ao silêncio, tranquilidade, tempo de
reflexão e elaboração, ao não ao excesso.
Este conjunto de reflexões e preocupações do entrevistado indica temas
que seguem muito atuais. Lembremo-nos também de trabalhos de outras áreas. O
sociólogo Zygmund Bauman (2001) refere-se a um mundo de aceleração e de
estados líquidos de ser, estados que tomam a forma do recipiente que contém o
líquido. O filósofo alemão Christoph Türcke (2002) descreve um tipo de
comunicação vigente atualmente com torrentes de excitação pelo espetáculo,
causar sensação e massificar a vida social globalizante. O participante do
espetáculo paga o preço do curto-circuito entre ser percebido – ser sensacional –
existir versus aniquilamento individual. Como efeito, há um crescente prejuízo
na capacidade de sentimentos e de pensamento próprios.
Todavia, apesar do cuidado com a administração de tempo, Herbert Graf
sempre se dedicou ao desenvolvimento tecnológico e à inserção social desta área
mais restrita ao público erudito. Embora tenha trabalhado muito no
desenvolvimento do palco giratório, afirma que este também não é ideal. Revela
sua condição de autocrítica dizendo que simplesmente não se pode voar de um
compromisso a outro a maior parte do ano sem alguma perda de profundidade
no que se faz. Ele próprio levou uma vida de intenso trânsito entre continentes e
países. Produziu muito. Trabalhou no desenvolvimento de transmissões diretas
através da televisão, mas ficou insatisfeito com as câmaras e os vídeos aparentes.
Enfim, Herbert Graf nos revela ter sido um homem que soube buscar a realização
de seus desejos; transformá-los, simbolizá-los e sublimá-los. Simultaneamente,
parece, também, sentir-se em conflito com esta grande ênfase na vida de trabalho.

Dados históricos complementares

Dentro dos limites de tempo e espaço, destaco alguns dados registrados


pelo próprio Freud em seu artigo de 1909 e sua ampliação por Harold Blum (2007),
sedimentada em uma entrevista de Max Graf, pai de Hans, datada de 1952. Passo
agora a utilizar o nome Hans quando se trata de referências diretas de Freud e
Herbert quando são referências suas e/ou de outros autores, incluindo esta autora.

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Herbert, o pequeno paciente, é o primogênito de Max Graf e Olga Hönig Graf.


Evidenciam-se a infância e a inseparabilidade de Herbert Graf ou do caso do
pequeno Hans na própria edificação teórico/clínica da psicanálise de Freud. Ambas
estão profundamente trançadas.
Herbert Graf nasce em Viena, cidade de Brahms, Strauss e Mahler,
impregnada de cultura musical e em ambiente inserido na música e na poesia, de
um lado, e, de outro, em bastidores domésticos violentos. A mãe é pianista e o pai
um importante músico.
Durante o noivado dos pais, Max Graf começa a ouvir sobre Freud através
de Olga, que se analisa com o mesmo, durante longas caminhadas conjuntas.
Max interessa-se muito em saber sobre a psicanálise e seu fundador. Assim,
apresenta-se a Freud, que imediatamente se impressiona positivamente. Os dois
homens desenvolvem relações sociais e profissionais com encontros frequentes
em cafés e convites do casal Graf em sua casa. Max torna-se um dos primeiros
seguidores de Freud e também frequentador das reuniões das quartas-feiras entre
1902 e 1912. Presumivelmente, Freud conhece Herbert desde seu nascimento e a
mãe durante a gravidez. Antes desta gravidez ocorre um aborto.
Freud (1905) pesquisa e escreve sobre a sexualidade infantil “encorajando
alunos e amigos a reunirem observações sobre a vida sexual das crianças” (p. 16)
à busca de respaldos ao seu trabalho clássico Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade (1905). Entre os relatos de observações regulares no grupo das quartas-
feiras, destacam-se, justamente, os de Max Graf sobre o filho Herbert quando
este está por completar três anos. Por exemplo:

Seus pais, entre os mais chegados adeptos, haviam concordado em que, ao


educar seu primeiro filho, não usariam de mais coerção do que a que fosse
absolutamente necessária para manter um bom comportamento. E, à medida
que a criança se tornava um menininho alegre, bom e vivaz, a experiência
de deixá-lo crescer e expressar-se sem intimidações prosseguiu
satisfatoriamente (Freud, 1909, p. 16).

Hans demonstrava um vivo interesse pelo seu “pipi”. Pergunta à mãe:


Hans – “Mamãe, você também tem um pipi?”
Mãe – “Claro. Por quê?”
Hans – “Nada, eu só estava pensando.”
Aos três anos e meio, sua mãe o viu tocar com a mão no pênis. Ameaçou-
o com as palavras: “Se você fizer isto de novo, vou chamar o Dr. A para

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cortar fora seu pipi. Aí com o que você vai fazer pipi?”
Hans: Com meu traseiro (Freud, 1909, p. 17).

Os pais de Herbert haviam consultado Freud sobre terem mais filhos.


Encontram-se em crise conjugal e, provavelmente, Hanna foi concebida durante
intensos conflitos do casal. Quando a irmã nasce, Herbert tem três anos. O menino
revela capacidade cognitiva importante; silencia sobre a ficção da cegonha e
observa ambientes e fatos. Hoje podemos concluir que havia uma boa condição
de vínculo K+ em seu pensamento (Bion, 1962). Durante o trabalho de parto de
sua mãe, em casa, e ouvindo-lhe os gemidos, pergunta por que ela estaria tossindo.
Depois observa as bacias de água e sangue e comenta: “Mas não sai sangue do
‘meu’ pipi”. Ao ver a irmã recém-nascida, fala com desprezo que ela não tem
dentes. Depois, ele adoece e durante a febre diz: “Mas eu não quero uma
irmãzinha”. Ao vê-la no banho comenta que “o pipi dela é bem pequenininho”
(Freud, 1909, p. 21). Segue ocupado com o mistério do nascimento, brinca que
meninas amigas suas são suas filhas. Quer dormir com elas. A mãe o questiona se
ele quer mesmo sair de perto dela e acrescenta: “Então adeus”. (p. 27). Os pais
também têm o hábito de levá-lo à sua cama, e Freud escreve que os sentimentos
eróticos do pequeno Hans eram estimulados. Através dos dados históricos de
Herbert Graf pesquisados por Blum (2007), novas compreensões fazem sentido.
A ambivalência do pai Max Graf com a esposa é evidente, assim como a
ambivalência de Olga com a filha. Há fortes indicadores de depressão materna
após o parto de Hanna.
Com as reservas óbvias para não tomarmos o relato ao pé da letra, é notável,
porém, que o próprio Max Graf, em entrevista de 1952, declare que sua esposa
era muito mais carinhosa com o filho e rejeitava a filha. Herbert, na vida adulta,
em 1959, em outra entrevista, afirma que a mãe não poderia ter tido outro filho.
Segue-se uma página triste: Hanna sofre maus tratos e negligências. Na família
circulava uma enfermidade que, juntamente com predisposições biológicas,
culmina em um futuro colapso mental de Hanna.
Com os desenvolvimentos teóricos e clínicos ao longo do último século,
podemos supor, hoje, que as experiências dolorosas devem ter tido resultados
traumáticos não só para Hanna, como também para Herbert, que assistia ao conflito
familiar e às violências físicas com a irmã. Voltemos a quando o pequeno Hans
completa cinco anos. Sofre de intensa neurose fóbica. Tem medos paralisantes de
cavalos que mordem, que caem, de ir para fora de casa.
Freud, desenvolvendo a ideia do complexo de castração como eixo da
compreensão da fobia de Hans e tendo como pano de fundo a elaboração edípica,

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utilizará esta compreensão na análise do pequeno Hans. Em uma nota de rodapé


de 1923, ele mesmo acrescenta que toda vez que o bebê é afastado do seio, ele o
sente como uma perda e a privação como uma castração. O entendimento da
privação do seio como raiz profunda da angústia de castração é amplamente
desenvolvido durante o século seguinte. Autores estudiosos da construção do
psiquismo puderam conectar a angústia de castração às angústias de aniquilamentos
e desmantelamentos. Freud fazia isto: conservava o texto original com suas
essências permanentes e ia acrescentando novos aportes em notas de rodapé. A
psicanálise e seu edifício teórico/clínico se ampliam através de novas gerações de
psicanalistas.
A primeira análise de uma criança foi um grande evento que germina do
espírito de pesquisa de Freud em sua busca de ampliar o emprego clínico das
novas descobertas. Há um século os fenômenos da transferência,
contratransferência ainda estavam se desenvolvendo com Freud pensando que a
análise de criança seria possível, mas somente através da autoridade paterna.
Supervisiona o pai Max Graf. Quanto às angústias em relação à mãe que lhe
proíbe a masturbação ameaçando-o, essas não são consideradas na descrição do
caso.
O foco de Freud na sexualidade infantil tem compreensões brilhantes e
segue nos inspirando e ensinando. Alguns fenômenos, porém, e construções
anteriores à angústia de castração na elaboração edípica, permaneceram invisíveis
ou silenciosas como regiões escuras de um palco giratório. Utilizo-me mais
pontualmente das pesquisas de Harold Blum (2007) para iluminar ângulos que,
na descrição do caso em 1909, permaneceram silenciados.
A mãe de Herbert apresentava importante instabilidade emocional. Para
Blum (2007), Olga possivelmente sofre de uma desordem mais tarde compreendida
como borderline. De qualquer maneira, o cenário é o de um casamento conflitado
enquanto o pai, Max, vive projeções profissionais cada vez mais importantes.
Homem de sucesso em várias frentes, segue no grupo das quartas-feiras com
Freud, que valoriza o conhecimento de seu colaborador e o incentiva a escrever
sobre aplicações da psicanálise à música, à ópera e a compositores. O trabalho do
pai é descrito na entrevista de Herbert adulto, sessenta e nove anos, com grande
admiração.
Como reflexão se pode pensar em prováveis sentimentos de rivalidade,
ciúmes e hostilidade evocados em Olga, em casa com sua bebê menina. Blum
(2007) escreve sobre importante ambivalência e instabilidade emocional em
relação à filha além de negligências que culminam em agressões violentas. As
fantasias de Hans com a irmã, verbalizadas em sua análise, tais como batê-la,

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jogá-la pela sacada, afogá-la na banheira, o sonho com a girafa amassada sobre a
qual se senta o pequeno Hans são materiais que hoje poderíamos considerar como
tentativas de elaborações de ameaças vividas e/ou testemunhadas realmente. As
angústias do pequeno Hans podem adquirir mais visibilidade se consideradas
também no contexto real de uma criança exposta a descontroles da mãe e à ausência
do pai.
Hoje, podemos pensar nas partes silenciadas e escuras como uma terra
contendo em potencial certa fobia no enfrentamento edípico à semelhança de
sementes que necessitam de tempo para germinar e brotar, até alcançarem a luz
acima da terra. Talvez esta possa ser outra metáfora para o tempo da eclosão da
neurose do pequeno Hans aos cinco anos. Atualmente, contamos com muitos
estudos e trabalhos sobre a mente primitiva, interações precoces, material pré-
verbal e importância dos pais e da história familiar, identificações e constituição
do psiquismo da criança pequena. Estudos e trabalhos que iluminam mais as
nascentes do terror da não integração e da desintegração, das ameaças vividas
como mortais trazendo-as à visibilidade. Permitem focarmos, também, aquilo
que é demasiado para o self em construção e que se torna potencialmente
traumático. Nesses movimentos sucessivos de visibilidade talvez possamos inserir
sentimentos derivados de ciúmes edípicos nas duas gerações implicadas bem como
os de solidão materna.
Freud, em 1909 e naquele estágio inicial da psicanálise, enfoca a teoria da
libido e as propensões sádicas, hostis e agressivas. O contexto familiar real é
pouco considerado então.
Mas outra consideração importante é a da força de um olhar compreensivo
e empático. A esse respeito coincido com Borgogno (2006) quando considera a
importância do interesse crescente do pai na compreensão do filho quase
imobilizado pelos medos.
Estariam o pai, Freud e o grupo que estudava as observações exercendo
uma importante função integradora, com fator terapêutico em Herbert? Estes
olhares, provavelmente, incluíam o todo das angústias de Hans, inclusive os
descontroles nos bastidores e as ameaças. Animo-me a levantar a hipótese que
esta criança, por sua vez, também testemunhava ângulos escuros de solidão e
desespero maternos. Neste novo giro do palco, podemos pensar a mãe em tentativas
para equilibrar-se frágil e perigosamente.
Borgogno (2006) reflete sobre a posição de Freud neste caso pioneiro da
análise de uma criança. Freud lidava simultaneamente com um experimento e o
impacto das fragilidades dos pais como casal e de cada um individualmente. Pensa
que Max Graf pode retomar melhor seu lugar de pai, anteriormente deixado vazio

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Releitura do caso O pequeno Hans: sobre silêncios e invisibilidades

por ele devido tanto às instabilidades maternas quanto à notável ausência de casa.
De qualquer forma, Herbert foi objeto de atenções e, provavelmente, se nutriu
desta experiência. Borgogno escreve que observa uma maior atitude de escuta
autêntica, no caso do pequeno Hans, no pai/analista e igualmente em Freud/
supervisor. Acrescento: apesar da valorização quase exclusiva do conteúdo verbal
de um paciente de somente cinco anos de idade.
A idealização de Herbert de seu pai, conforme é descrita acima na entrevista
e em seus comentários, é notória e assim permanece até o final de sua vida. Durante
a análise e após a única visita ao consultório de Freud com o pai, pergunta: “O
professor conversa com Deus?” (Freud, 1909, p. 52). Herbert identifica-se com
seu pai que, por sua vez, idealiza Freud. Certamente aqui também sucedem
identificações com aspectos do objeto externo e que supostamente contribuíram
muito para nascer Herbert de Hans e estas duas versões se integrarem mais
plenamente.
No ano de 1912, Max abandona as reuniões das quartas e segue Adler, de
quem sua esposa, provavelmente, se torna paciente. O casal também se separa em
algum momento. Herbert seguia seus ideais musicais, que eram, intimamente, os
do pai. Se pensarmos as construções de ideal de ego como sedimentação da
elaboração edípica e dos ideais resultantes da elaboração do segundo tempo na
adolescência, as metas seguidas e as conquistas de Herbert no campo da música
fazem muito sentido. Com paixão própria da adolescência, absorve intensamente
a viagem a Berlin aos dezesseis anos. Mergulha em apresentações operísticas e
teatros sempre que pode. Retorna a Viena com um grande desejo e uma missão;
montar um trecho de ópera na sua escola – o lugar possível. Ali propõe-se realizar
este empreendimento que o absorve totalmente, a ponto de quase perder o ano
escolar. Também consegue narrar ao pai o sonho de uma profissão que inventou:
ser diretor de ópera. Literalmente sonha o sonho (Bion, 1965) e tem o privilégio
de ser escutado e apoiado pelo pai na busca deste ideal. A dedicação à música o
impulsiona a levá-la ao povo, à televisão, aos hospitais, a contribuir para
desenvolver palcos giratórios e diminuir as invasões de câmaras.
Na adolescência, enquanto ele segue com seus ideais, a irmã Hanna se
torna cada vez mais abalada e emocionalmente frágil. O palco giratório da vida
de Herbert movimenta-se para dentro de âmbitos trágicos de sua história. Hanna,
aos dezenove anos, sofre um colapso emocional e se suicida. O trauma se repete
quando, mais tarde, Herbert se separa da primeira esposa e esta também se suicida.
Repetem-se experiências dolorosas vividas na infância.
Herbert Graf, conforme podemos deduzir da entrevista acima, torna-se um
adulto resiliente e com notáveis capacidades sublimatórias. Certamente em grande

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parte amalgamado no registro interno da experiência de análise aos cinco anos.


Experiência esta esquecida na consciência, mas provavelmente registrada em seu
inconsciente como vivência de elaboração e superação de angústias.
Atendendo ao propósito de refletir sobre esta análise um século depois,
seguem algumas breves considerações. Em primeiro lugar, a oportunidade de
retomá-la é gratificante se a escutarmos também em atenção ao encorajamento
de Freud a seus adeptos para observar e registrar a vida de crianças e assim
prosseguir pensando os conceitos gerados por ele sobre o desenvolvimento
psicossexual da personalidade, das neuroses e das perversões. Somos convidados
a contribuir na urdidura do vasto tecido teórico/clínico secular. Cada releitura e
nova reflexão podem acrescentar um minúsculo ponto nos milhões do estofo – e
sua conservação – da herança deixada por Freud.
A psicanálise é considerada por ele como terminável e interminável (Freud,
1937) em suas diferentes dimensões: naquilo que é invariável e também nas
transformações possíveis e contínuas (Bion, 1965). A análise propriamente dita
do pequeno Hans ocorre em apenas quatro meses no ano de 1908. Há de considerar-
se, entretanto, que havia mais de dois anos que ele vinha sendo observado, pensado
e, desta forma, muito investido pelo pai, por Freud e pelo grupo de pioneiros.
Creio que podemos, hoje, pensar que estes olhares e escutas tiveram um efeito
terapêutico para além da análise formal. Esta hipótese também encontra respaldo
em Bick (1967) com os conceitos de pele-continente na constituição do self.
Teríamos, então, o efeito organizador da observação em si, no caso de Herbert,
realizada pelo pai nos anos anteriores à análise.
Igualmente encontramos sentidos para as manifestações fóbicas extremas
do menino como falhas ou incontinências/buracos/terrores, cavalos-que-mordem,
caem. Entre muitos autores que estudaram o fenômeno da in-continência, da
formação de pele psíquica, apenas acrescento Tustin (1990), Bion (1963), Meltzer
(1975, 1986) e Winnicott (1945, 1963) entre muitos, no que parece importar para
as vivências do pequeno paciente.
Sucintamente, um século depois, penso que se salientam três pontos na
teoria e técnica da psicanálise de crianças:
1) A possibilidade de análise direta da criança com sua condição de
transferência e demais fenômenos nos moldes clássicos da análise de adultos. A
herança vem principalmente de Melanie Klein (1932).
2) Também de Klein a utilização da técnica lúdica com seu potencial de
livre associação e elaboração correspondente à comunicação verbal do adulto.
Assim, amplia-se o diâmetro do círculo de possibilidades de abordagem
psicanalítica, abrangendo crianças muito pequenas e patologias graves.

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Releitura do caso O pequeno Hans: sobre silêncios e invisibilidades

3) A inclusão dos pais no entendimento e/ou atendimento analítico da


criança.
Atualmente contamos com o luxo do que foi desenvolvido desde o início
do século passado a partir das fundamentações e alicerces de Freud. A psicanálise
segue atendendo ao convite de mais observações e expansões. Evidentemente
naquele trabalho pioneiro de 1909 há alguns pontos frágeis que não justificam
nos refugiarmos em idealizações imobilizadoras silenciadas em áreas escuras do
palco giratório. Destaco a condição cognitiva do pequeno Hans, sua curiosidade
para elucidar significados e conceitos (Bion, 1962; Money-Kyrle, 1968). Ele
consegue abrir caminho para concepções da verdade (Bion, 1965) mesmo com
informações errôneas tais como “O doutor A vem para cortar fora o Widdler”,
“Mulheres não têm Widdlers”, “A cegonha traz os bebês”. Hans forma conceitos,
tem a capacidade de distinguir entre ato e pensamento: “Pensava em bater na
mãe”, ri porque “Só estava pensando” e assim por diante (Freud,1909, p. 89).
Enfrenta o coleito, a estimulação decorrente e pergunta se o pipi da mãe é do
tamanho do cavalo temido. Poderíamos pensar: tão cavalarmente igual, de uma
mãe fálica? Seguir seu possível caminho cognitivo resultaria num outro trabalho
alheio ao nosso foco. Herbert consegue observar, confrontar a realidade, perceber
afetivamente, elaborar e, finalmente, sublimar. Com este patrimônio interno
continua na busca firme da realização do seu desejo.
Nos giros do palco, Freud surge como analista da mãe de Hans, amigo do
pai, supervisor de sua análise, visitante na casa dos Graf. Sim, Freud busca no
pequeno Hans a comprovação de sua teoria da sexualidade infantil. De forma
direta ou indireta, certamente testemunha negligências e maus tratos com a pequena
Hanna. A psicanálise está em seus estágios iniciais e assim considera quase
exclusivamente as comunicações verbais deste pequeno paciente que, por seu
turno, atende com avidez ao que dele se espera. Porém, hoje, legitimamente,
podemos pensar que Hans soube aproveitar a análise e dela se beneficiar e também
da atenção que lhe foi dedicada – tanto no sofrimento emocional quanto na
capacidade e desenvoltura de pensamento e teste de realidade. A condição de
Herbert, de alimentar-se desta forma do tratamento, certamente nos fala também
sobre registros positivos na relação inicial com mãe e pai.
Parece que algo muito denso, como um nó firme demais nas ligações entre
mãe e filho – fixações –, afrouxou-se com o trabalho analítico. Para além do
entendimento edípico no qual o pai pôde ser mais reconhecido como figura amorosa
e de identificação, também se soltaram vínculos mãe-filho asfixiantes, possíveis
fontes originais da fobia desenvolvida aos cinco anos. Com Borgogno (2006) e
outros, acredito que, apesar da insistência de perguntas/respostas verbais, tanto

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do pai quanto do Freud supervisor, aconteciam, sim, importantes afrouxamentos


de demandas e exigências.
A ambivalência materna com a filha e os maus tratos testemunhados por
Herbert devem ter contribuído para seus sentimentos de ameaça e angústia de
aniquilamento. Hoje temos informações suficientes sobre a condição de extrema
vulnerabilidade de um menino de cinco anos quando a mãe não conseguia manter
sua condição de protetora, tornando-se, ao contrário, ameaçadora, e o pai
ausentava-se de casa.
Para Blum (2007), as ameaças vividas tanto pela prematura entrega aos
próprios impulsos (por exemplo, quando Herbert com três anos fica encarregado
de cuidar a bebê na sacada do edifício) quanto aquelas vividas com as irrupções
de descontrole e de violências da mãe com a filha podem, atualmente, ser
consideradas determinantes da fobia do pequeno paciente. Freud não elucida estas
nuances da relação mãe-filho. Blum destaca o potencial traumático desta história
de Herbert bem como seu impacto sobre as duas crianças, Hanna e Herbert. Em
algum grau deve ter ocorrido uma fratura na confiança em vínculos protetores.
Herbert também foi exposto a exibições e seduções no quarto e banheiro.
Simultânea e explicitamente era ameaçado de castração se continuasse se
masturbando. Freud, o professor que fala com Deus, é concebido com tributos
onipotentes. Certamente o mesmo Freud que queria proteger o sigilo, a
sensibilidade e fragilidade de Olga Graf.

Sobre a invisibilidade no palco giratório e o tempo

O tempo foi fator reclamado e valorizado por Herbert Graf, sempre. Qual
seria seu significado para ele? Manifestamente era o tempo suficiente para ensaios,
experimentos, para os artistas, os dirigentes e ele mesmo. Latentemente, pode ter
sido, para Herbert Graf, o longo tempo necessário a elaborações de projetos, lutos,
superações. Podemos imaginá-lo como o tempo decorrido entre sonhar com Hanna
seu primeiro teatro, construí-lo a dois na infância e tornar-se diretor de teatro na
vida adulta, quando a irmã já não vivia mais para testemunhar e compartilhar a
construção de teatros e direções musicais. Ou, ainda, como representação do tempo
insuficiente da vida de Hanna? O tempo escasso antes da separação dos pais? Seu
próprio primeiro casamento e divórcio? A morte da primeira esposa? O longo
tempo da construção de sua excelência na música? O tempo para girar o palco da
vida entre graduais visibilidades e invisibilidades?
Blum (2007) pensa a invisibilidade como Freud, o analista invisível que

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Releitura do caso O pequeno Hans: sobre silêncios e invisibilidades

ocupa um lugar tão importante na infância de Hans e de sua família. Mas também
está no próprio Hans com o foco na teoria da sexualidade infantil e na violência
materna silenciada no bastidor dessa mãe, objeto de desejo e de amor. Hoje é
evidente que um pai não pode aplicar o método psicanalítico em um filho. Em
1909 isto não pertencia à parte iluminada do palco.
No inconsciente, as multideterminações, simultaneidades e condensações
formam cadeias infinitas. Herbert Graf é o homem que vive e defende a
invisibilidade como leitmotiv pessoal. Uma espécie de filosofia de vida e não só
no trabalho. A invisibilidade aparece, ainda, em seus silêncios sobre sua vida
pessoal na entrevista concedida. De quem, para quem e para onde? Seria também
de Herbert, no fundo escuro do pequeno Hans, iluminado com suas questões
sobre a sexualidade infantil em seu destino humano? Seria ele próprio invisível
ao olhar materno quando esta mãe atuava sua violência, ou seria a invisibilidade
do pai ausentei? De qualquer forma, sua música tão investida e sua forma invisível
de trabalhar foram muito visíveis através da ópera. Construiu uma grande
visibilidade à medida que as óperas eram escutadas em tantas apresentações e
tantos lugares.
Herbert Graf, em sua entrevista, deixa transparecer um homem elegante no
convívio com os outros. Seu continuado desenvolvimento é ilustrado na música e
na ópera. Podemos inferir ou sentir seu cuidado, profundidade e generosidade
com o público e intérpretes. Busca tempo e não saturação; preocupa-se com o
demasiado e a massificação. Revela uma grande capacidade e condição de
adaptação e de resiliência. E, ainda, força para sintetizar e integrar aspectos
positivos e negativos da própria relação com a mãe e o pai.
Para finalizar, considero, com tantos autores mais, que esta primeira análise
de criança, de brevíssima duração, soube comprovar o papel fundamental da
sexualidade infantil no destino humano. Penso que seus efeitos ficaram
profundamente registrados na mente do pequeno paciente. Efeitos estes
provavelmente tão positivos pelo período bem maior no qual aconteceram
investimentos afetivos devidos a olhares e escutas analíticas. A análise certamente
lhe possibilitou a necessária elaboração edípica.
O pequeno Hans cresce com força sublimatória, persistência e criatividade
que podem ser observadas no grande Herbert Graf com suas características de
fazer face às adversidades da vida e persistir na busca prazerosa de seus ideais.
Alguém capaz de realizar ideais e servir-se do tempo necessário para elaborações.
Alguém que parece ter movido sua vida como em um palco giratório que ilumina
uma parte da sua história enquanto mantém outra parte no silêncio e no escuro. O
enredo todo e seu sentido apenas são compreensíveis quando há um contínuo

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movimento evolutivo por regiões visíveis e invisíveis, por silêncios e falas. Então
sim, diferentes dimensões, épocas, ângulos e contextos podem se conectar para
contar uma história com sentido compreensível.
Um século depois o pequeno Hans segue muito visível na psicanálise. Tão
visível que também evoca certo sabor de invasão da privacidade do músico e
diretor de óperas. O cuidado e a discrição de Herbert Graf resultam, provavelmente,
da sua tendência a transformar e sublimar demandas e desejos até o fechar da
cortina em 1973, quando morre aos setenta e dois anos.

Abstract

A rereading of The little Hans case: on silences and invisibilities


Over one hundred years later, a possible angle of rereading the text Analysis of a
phobia in a five-year-old boy, of Freud (1909), is addressed. The main resource
used is an interview that the patient of this first child’s analysis himself gave
when he was 69 years old. He became an important opera director. Based on a
substantial contribution from Hans himself, Herbert Graf, and other data from his
story, additional understandings and hypotheses on this classic case of children’s
psychoanalysis are considered. The spinning stage is used as an image of the
visibilities and silences in Little Hans’ analysis. The author tries to synthesize
three main points of the theoretical and clinical development of children’s
psychoanalysis over the last century.

Keywords: theory of infantile sexuality, castration anxiety, primitive anxieties,


children’s psychoanalysis, elaboration, sublimation.

Resumen

Relectura del caso El pequeño Hans: sobre silencios e invisibilidades


Más de cien años después, se aborda un posible ángulo de relectura del texto
Análisis de la fobia de un niño de cinco años, Freud (1909). El principal recurso
utilizado es una entrevista dada por el propio paciente de este primer análisis de
niños, cuando tenía 69 años. Se convierte en un importante director de óperas.
Con esta importante contribución del propio Hans – Herbert Graf, y otros datos
de su historia, se consideran interpretaciones e hipótesis adicionales sobre este
caso clásico del psicoanálisis de niños. El escenario giratorio se utiliza como la

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Releitura do caso O pequeno Hans: sobre silêncios e invisibilidades

imagen de las visibilidades y del silencio en el análisis del pequeño Hans. La


autora trata de sintetizar los tres puntos principales del desarrollo teórico y clínico
del psicoanálisis de niños durante el último siglo.

Palabras clave: teoría de la sexualidad infantil, la angustia de castración, angustias


primitivas, psicoanálisis de niños, elaboración, sublimación.

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Recebido em 11/03/2015
Aceito em 17/06/2015

Revisão técnica de Suzana Iankilevich Golbert

Ingeborg Magda Bornholdt


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