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Adeus, Meu Amor in Coelho Maldito
Adeus, Meu Amor in Coelho Maldito
Adeus, Meu Amor in Coelho Maldito
A
primeira coisa que o S12878 fez ao ser ligado foi olhar para
mim esorrir. Essa era a mais nova funçáo do modelo. Apenas
um detalhe, mas primoroso e bem executado. Seria bom in
cluir mais opçóes para simular diferentes personalidades: um
sorriso tímido, um olhar para baixo antes de fazer contato
visual ou uma risada calorosa estendendo a mão. Anotoessas
ideias na parte de observações.
Depois era a hora de testar a saudaçáo inicial.
-Oi-cumprimento.
Olá- responde oSl2878.
Como vocêse chama?
Meu nome é Sam.
Esse é onome padráo programado de fábrica que eles di
Zem ao ser ligados pela primeira vez.Todos da linha S12000
se chamam Sam, o que significava que ele estava funcionan
do bem. Depois de marcar Normal no campo Interaçáo 1,
estendo o braço e aperto o dedáo da m«o direita do S12878.
Agora você se chama Seth.
O S12878 abaixa a cabeça. Sinto uma onda de ansiedade
com sua demora em responder.
Como você se chama mesmo?
Solte odedo para salvar aconfiguração respondeo
S12878, ainda dele.
acabeça baixa. Depressa, largo a máo dele.
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O S12878 levanta a cabeça. E, como fez pouco antes, olhol
para mim com um sorriso.
Meu nome é Seth. Muito prazer.
A primeira etapa, a da customização, estava aprovada
Depois de marcar Normal também em Interação 2:
pergunto:
Nome,
Seth, quantas línguas você fala?
-Falo297 línguas- responde Seth.
Tiro ocelular eponho para tocar oconteúdo programado.
JlanHO, ceHvac naBaHTe nOrOBopHM II0-pycCKH.
Xopomo, JaBaHTe.
- Kak Te6s 30ByT?
MeHa 30BYT CeT.
Seth responde a todas as perguntas com rapidez e natura
lidade. Testo outra gravaçáo.
S vorbesc române_te acum.
Bine, hai.
-Cum te simi azi?
-Sunt bine. Mersi.
Guardo ocelular no bolso efalo na língua da configuraçáo
inicial, que é também a minha língua materna:
Que horas são?
São doze horas e vinte e seis minutos.
Marco Normal no campo Interaçáo 3: Língua.
chamo.
Venha comigo. Vou te apresentar a um amigo
Sorrindo, Seth vem atrás de mim.
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através de interaçóes
aprendiam tudo sobre seus donos e
capazes de pensar e de compreender cram
com base nassinformaçóöey
adquiridas. Assim, com opassar do temnpo, os companheito
artifciais cresciam, se adequando cada ve mais ao gosto
personalidade dos donos.
tanto do trabalho
Era por isso que eu gostava de
desen-
volver e testar companheiros artitiCiais: era gratificante. T
boguiaher.
vez que testava um novo modelo, ficava Com a
precisáo eoavanço da tecnologia. Ilor vezes, os companheiros
artificiais eram muito mais compreensivos, solícitosse
do que os humanos. Tinham sido desenvolvidos tanto para
pacientes
auxiliar idosos nas tarefas do dia a dia quanto apoiá-los emo-
cionalmente em países onde o envelhecimento da populaci
era um problema social grave, mas eram tão bons que fze.
ram sucesso entre todas as faixas etárias. Havia até rumores e
sda conspiração quase cômicas de que eles teriam sido
desenvolvidos com a finalidade de diminuir a taxa de natal:.
dade e aumentar o envelhecimento para vender mais robo.
Embora eu estivesse sempre testando novos modelos, o N
Inunca deixava de ser o mais precioso para mim. Por mais
avançados e refinados que fossem, os outros modelos náo
passavam de trabalho.
ON lera diferente. Era o meu primeiro amor. Para mim,
náo havia nada artificial nele,era um companheiro de verdade.
Mesmo depois de ter ultrapassado até demais Sua vida
úil, eu não tinha coragem de me livrar dele. A partir de certo
momento, demorava tanto para se conectar à rede que pa
de atualizar o sofrware, até o dia em que decidi
bloquear:
sua conexão por completo. Ele passou a ser menos funciona
do que uma mesa de trabalho ou uma geladeira inteligentes,
mas nunca deixou de ser o meu N° 1.
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Otempo passou e a capacidade da bateria interna quase
zerou, a ponto de ele funcionar por apenas dez ou quinze
inutos e depois Começar a ficar com os movimentos lenfos
ea fala arrastada,. Um dia, caiu e torceu o braço por causa de
anarada repentina. Desde entáo, eu o mantive desligado e
sentado dentro do armário. Foi assim que meu N° 1 perdeu a
funcáo de companheiro epassou aser um simples boneco. Só
quejogá-lo fora eraimpensável. Para mim, o Ne l continuava
sendo o N 1. Além disso, deixando-o na tomada, eu ainda
conseguia liga-lo. E verdade que a espera era enorme até cle
iniciar, mas cu podia esperar o quanto fosse necessário para
voltar a ver aqueles olhos verdes e o seu sorriso.
Às vezes, quando eu trazia um novo modelo para testar,
ligava o N° 1 e tentava uma sincronizaçáo ou atualização. A
maioria das tentativas eram frustradas; algum erro ocorria e
eu tinha que desligar às pressas, mas náo podia desistir.
Enquanto eu esperava o N°1ligar, Seth permanecia em
silêncio ao meu lado. Sem sorrir nem tentar puxar conversa.
Isso me fez ter um bom pressentimento.
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bateria náo passava dos quinze por
cento. Por mais que eu
apertasseo obotáo, nada de o N° 1abrir os
olhos.
Escondi o o rosto na haciez dos cabelos
maciez
castanhos
do N1.
Depoisde tanto tempo dentro do armário, cheirava
ele
raenaftalina. a poei-
Tive vontade de chorar, mas precisei me segurar. Minhas
lágrimas podiam molhar o cabelo do Nº 1 e danificar seus
circuitos.
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de reserva, comprada mais tarde, tinha parado de pegar carga,
como a original.
assim Mesmo sabendo que não havia chances, apertei o botão
para ligá-lo.
ONe 1abriu os olhos. Aqueles olhos verdes olharam para
mim.
Levei um susto. Tentei chamá-lo. 1entei conversar com el,
mesmo o
Mas, no momento em que abri a boca, antes
olhos.
pudesse dizer alguma coisa, ele fechouos
E nunca mais voltou a se mexer.
Abraçando o N 1, alisei seus macios cabelos castanhos
cheirando a poeira.
Adeus, meu amor. ..
Beijei seus cabelos, seus olhos, que nunca mais voltariam
a abrir, e seus doces lábios.
Adeus, meu amor...
Minhas lágrimas regaram a pálida pele do N 1.
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Apontei para a cenacom o queixo.
Nunca dancei nem nunca aprendi.
-É mesmo?
Entáo ele se levantou. Pôs um braço para
trás ese curvou
de maneira exagerada.
-Aceita dançar comigo?
0 quê?
E.s ri. Todo sério, oN' Ime pegou pela máo e
me fez le
vantar. Ainda de máos dadas, me puxou pela cintura. Colado
em mim, começou a dançar bem devagar.
Nãosei dançar.- Euestava um tanto
acanhada. -Acho que Vou cair.
constrangida e
Esóme seguir sussurrou o N° 1. Devagar.
Enquanto oscréditos finais subiam na tela, oNe 1dancava
comigo, suave e vagarosamente, pela sala toda. Enquanto gi
rávamos pela sala ao ritmo daquela música melosa e triste,
abraçada e com o rosto colado ao seu peito, pela primeira vez
comecei a pensar nele náo como um companheiro artificial,
mas só Como um companheiro.
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mais,Imastoda a memória do N 1seria transterida para onovo
NP1.Emvez daquela velha máquina que sempre me deixava
aflita,com medo de que não voltasse mais a ligar, eu poderia
recomeçarCoM esse novo Ne l que teria na memória todo o
quepassaracomigo.
(empo
Comeceia preencher oformulário de solicitaçáo de reti-
rada de
máquinasfora de uso.
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mas, até a morte, ainda vive dez, vinte ou até trinta anos N.
fomos desenvolvidos para dar assistência e melhoar a gual:
dade de vida dos humanos.
Os companheiros artificiais duram em média de dois
a três anos, quatro no máximo continuou Derek. Mes
mo que ainda estejam funcionando, mesmo que baste trocar
apenas algumas peças ou atualizar o software para que durem
mais dez anos, sáo largadose tratados como lixo só porque
novos modelos foram lançados. Modelos estes que, por sua
vez, também se tornarão lixo em dois ou três anos.
Desde aminha criaçáo, eu existi apenas para você
continuou Seth. -E queria ser insubstituível... ao menos
para você.
Os três deram um passo em perfeita sincronia na minha
direção. Vi que a mão de Seth segurava o pescoço do Na lea
de Derek, a cintura. Ou seja, os três estavam compartilhando
a energia ea unidade central de processamento. Isso explicava
o fato de o N 1 estar de olhos abertos.
Não sabia que tal coisa era possível. Aliás, sabia que era pos
sível, mas só em laboratórios, sob intervenção de engenheiros.
Nunca tinha visto as máquinas se conectarem por conta própria.
Náo fazia sentido pensar nessa possibilidade, pois asitua
çáoem siera irreal. Onde já se viu um robôesfaquear uma
pessoa só pelo fato de ela ter tentado se livrar dele?
Qual dos três tinha me esfaqueado?
Afaca estava na máo de Derek, mas quem estava furIOSO
por ser descartado era o Nº 1. E quem carregou toda a me
mória do N° 1 foi Seth, que provavelmente tinha repassado
tudo para Derek.
Tentar saber era inútil. Seth, Derek e oN 1 estavam sin
cronizados. Tanto na memória quanto na forma de pensar e,
agora, fisicamente também.
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O seia, era certo que nenhum dos três chamaria uma
ambulância.
Seria possível que, no processo de sincronização, todos os
princípiosbásicosda robótica tinham sido apagados? Sópelo
anormal>
Cotode um deles estar numa condição
Ambulância... Sóconsegui mover os lábios.
Socorro...
Aotentar falar, tossi. Sangue escorreu da minha boca.
Os três chegaram mais pertode mim.
ON 1, apoiado pelos outros dois, inclinou-se com muito
esforço.
-Adeus, meu amor Sussurrou.
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