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Re vi s t a

Br a s ile ir a de

AS T RO
N OM I A
P r od u z i d a pe l a S oc i e d a d e
As t r o n ô m i c a B r a s i l e i r a
An o 2 | N ú m e r o 5

A G L O M
d e e s t re l a s
E R A D O S
Poei ra I nterestel a r
Pl a n etá ri os d o Bra si l
E ntrevi sta : Syl vi o Ferra z-M el l o
Editorial
A Revista Brasileira de Astronomia completa um ano de existência e
isso nos enche de orgulho, ao mesmo tempo em que amplia as
responsabilidades. Pois manter uma publicação científica como esta
requer um compromisso de toda a comunidade astronômica
brasileira, a começar pelos colaboradores que contribuem com seus
textos. O resultado, esperamos, é uma importante vitrine do que os
astrônomos brasileiros estão produzindo e em que áreas atuam.

Neste número inauguramos uma nova seção: uma série de


entrevistas com cientistas de renome. E ninguém seria melhor para
inaugurá-la do que o Prof. Sylvio Ferraz-Mello, uma testemunha
privilegiada da história da astronomia brasileira, que ainda hoje,
mesmo aposentado, orienta e leciona no Instituto Astronômico e
Geofísico da USP. Pretendemos trazer uma entrevista a cada dois
números, aproximadamente. Como é de praxe não custa lembrar ao
leitor que as posições dos entrevistados não necessariamente
coincidem com as da Comissão Editorial ou da Diretoria da SAB, e
devem ser tomadas por seu valor testemunhal-opinativo.

Em 2018, quando iniciamos os planos para produzir essa revista,


imaginamos que ela teria quatro artigos de quatro páginas cada um.
Mas a realidade se impôs logo no primeiro número: quatro páginas
por artigo eram muito pouco. E mesmo duplicando o tamanho de
vários artigos, temos a impressão de que o tema frequentemente
precisaria de um tratamento mais aprofundado. Eventualmente isso
poderá apontar para rumos futuros que a Comissão Editorial terá de
ponderar.

Helio J Rocha-Pinto
Editor

Esquerda
Impressão artística de Betelgeuse, criada com base nos melhores
dados atuamente conhecidos sobre a estrela. A recente súbita
diminuição de brilho de Betelgeuse levou à especulação de que a
estrela estaria prester a explodir como uma supernova (Crédito:
ESO/L. Calçada).
Capa
Aglomerado estelar NGC 3572 (Crédito: ESO/G. Beccari).
ÍNDICE E EXPEDIENTE

Revista
Brasileira 4 Aglomerados
Estelares
de Astronomia Alan Alves Brito discute as propriedades
produzida pela
Sociedade Astronômica Brasileira
dos dois tipos clássicos de aglomerados
estelares que a Via Láctea contém.
Conselho Editorial Alan Alves Brito,

12
Reinaldo Ramos de Carvalho, Lucimara
Martins, Ramachrisna Teixeira,
Thiago Signorini Gonçalves
Planetários do
Editor Helio J. Rocha-Pinto
Equipe de colaboradores Hélio Dotto Brasil
Perottoni, Mylena Larrubia, Matheus
Bernini Peron, Douglas Brambila dos
Esses espaços de ciência são excelentes
Santos, Maria Luiza Ubaldo de Melo promotores da cidadania cósmica, como
nos mostram Daniela Pavani e Luana
Contato secsab@sab-astro.org.br Cruz.

20 Entrevista:
Para anunciar Fale com Rosana no email
acima ou ligue (11) 3091-8684,
Seg. a Sex. 10 às 16 h. Sylvio
Para submissões
Contacte um membro do conselho editorial Ferraz-Mello
Reinaldo Ramos de Carvalho entrevista
um expoente da astronomia brasileira, o
Prof. Sylvio Ferraz-Mello, do IAG/USP.

Presidente
28 Poeira de Estrelas
Silvia Lorenz e Rayssa Bastos levam-nos
Reinaldo Ramos de Carvalho
Vice-Presidente
ao meio interestelar para entender como
Helio J. Rocha-Pinto os grãos de poeira espacial são
Secretário-Geral formados e qual é sua importância na
Ramachrisna Teixeira Galáxia.
Secretário

36 ANomeieExoMundos
campanha
Alan Alves Brito
Tesoureira
Lucimara Martins
Endereço
Sociedade Astronômica Brasileira
Rua do Matão, 1226 Saiba como foi feita a campanha para
05508-090 São Paulo – SP nomear um planeta com nome
http://www.sab-astro.org.br
brasileiro, neste relato de Eduardo
Penteado e Helio J. Rocha-Pinto

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Aglomerados Estelares Os aglomerados estelares são laboratórios astrofísicos ideais para se

N
entender a formação e evolução das galáxias que os hospedam, bem como
para descrever os processos (astro)físicos relacionados à formação
(nascimento), evolução e morte das estrelas. Leia e saiba mais abaixo.

ossa galáxia, a Via Lác- trelas, que nascem de nuvens mo-


tea, uma galáxia espi- leculares frias, densas e gigantes,
ral, formou-se há apro- formadas por gás e poeira.
ximadamente 12 bilhões Já vimos no número 1 desta
de anos. Ela não é a única no U- Revista, que a Via Láctea é com-
niverso. Suspeita-se que existam posta por três componentes: ha-
pelo menos 200 a 400 bilhões de lo, bojo e disco, os quais podem
galáxias, que apresentam formas ser traçados por diferentes popu-
e características intrínsecas vari- lações estelares. Entender como
adas. Neste “zoológico” de galá- estas distintas componentes se
xias, há, na nossa galáxia, pelo formaram, compreendendo não
menos de 200 a 400 bilhões de es- apenas os processos astro(físicos),

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AGLOMERADOS ESTELARES

ciáveis; não gostam de estar sozi-


nhas. No geral, os berçários es-
telares (isto é, as nuvens mole-
culares) dão origem a diferentes
estrelas, com diferentes massas
e tamanhos, de uma só vez. Por
contagem de estrelas — e faze-
mos isso relativamente bem e fá-
cil para a Via Láctea —, sabemos
que a grande maioria delas (de
60 a 80%) não está só, ou seja,
estas estrelas não vivem isoladas,
mas sim formam sistemas duplos,
triplos, associações (de até deze-
nas de estrelas) ou aglomerações
(de centenas a centenas de milha-
res de estrelas).
Em primeira aproximação, os Na página anterior
aglomerados estelares são parti- Aglomerado Terzian 5,
cularmente importantes para a situado no bojo galáctico
Astrofísica por duas razões prin- (Crédito:
NASA/ESA/Hubble/F.
cipais: Ferraro)
• Suas estrelas estão à mesma dis-
tância de nós;
mas também a sequência de e- • e são formadas juntas, no mes-
ventos, é uma das grandes per- mo berçário estelar, em aproxi-
guntas da Astrofísica contempo- madamente a mesma escala de
rânea. Neste sentido, os aglome- tempo e com a mesma composi-
rados estelares, que são traçado- ção química, a que chamamos de
res naturais destas distintas com- metalicidade.
ponentes galácticas, desenvolvem Caracterização
papel fundamental. Do ponto de
vista técnico, os aglomerados es- Os aglomerados estelares da Via
telares são estudados usando di- Láctea são de dois tipos: abertos
ferentes metodologias, sendo fo- e globulares. Estes objetos se di-
tometria (contagem de fótons), es- ferenciam por tamanho, morfolo-
pectroscopia (análise das frequên- gia, distribuição numérica, den-
cias da luz) e astrometria (posição sidade, localização, cor das estre-
e movimento) as técnicas mais las, idade, velocidades e composi-
comuns. ção química.
As estrelas, como nós, são so- Enquanto os aglomerados aber-

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AGLOMERADOS ESTELARES

Acima tos são traçadores do disco da so mesmo, as estrelas dos aglo-


Anatomia da Via Láctea. A nossa galáxia, os aglomerados glo- merados abertos são jovens, mais
distância do Sol ao centro
Galáctico é cerca de 30 mil bulares são encontrados no halo massivas (por isso vivem em mé-
anos-luz (Crédito: ESA). e no bojo, estruturas alguns bi- dia alguns milhões de anos) e
lhões de anos mais velhas que o quentes (portanto, azuladas); en-
disco. quanto as estrelas dos aglomera-
Essa localização não é aleatória. dos globulares têm menor massa
Deve-se lembrar que é no disco (e assim vivem mais, algo como
da Via Láctea que se encontra u- bilhões de anos) e são frias (isto
ma grande quantidade de gás e é, avermelhadas) em relação, por
poeira, material indispensável pa- exemplo, ao Sol, uma estrela de
ra a formação de estrelas. Por is- referência.
Você sabia?
• Em Astronomia, denominamos metais todos os elementos químicos estáveis da tabela periódica, com
exceção do hidrogênio e hélio. O termo metalicidade implica uma medida da composição química de
um certo ambiente ou objeto astrofísico estudado, dada pela soma dos metais. A metalicidade [Fe/H]
do Sol, por exemplo, é zero, por convenção. Matematicamente, [Fe/H]sol = 0, o que implica uma medida
logarítmica da quantidade de ferro (que é o metal mais representativo entre os metais estudados) em
relação ao hidrogênio (que é o elemento químico mais abundante no Universo).

• [Fe/H] = log10(Fe/H)estrela – log10(Fe/H)sol. Isso significa que um objeto com [Fe/H] = –2.0 é 100 vezes
mais pobre em metais do que o Sol. Para comparação, um dos objetos mais pobres em metais
encontrados no halo da Via Láctea, até o momento, tem [Fe/H] aproximadamente igual a –7.0.

• 1 ano-luz é a distância que a luz atravessa no vácuo em um ano juliano, ou seja, 9,46 trilhões de
quilômetros.

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AGLOMERADOS ESTELARES

Em termos numéricos, estima-


se a existência de pelo menos 2
mil aglomerados abertos e cerca
de 150 aglomerados globulares
na Via Láctea, em que suas es-
trelas estão fracamente (abertos)
ou fortemente (globulares) liga-
das gravitacionalmente. Os aglo-
merados globulares são encontra-
dos em todos os tipos morfoló-
gicos de galáxias estudadas até o
momento. Os aglomerados aber-
tos, por sua vez, são morfologica-
mente mais dispersos, formados
por centenas a milhares de es-
trelas concentradas numa região
cujo diâmetro chega a até 30 anos-
luz. Os globulares, poeticamente
vistos como “enxames de abe-
lhas”, são morfologicamente esfe- dos, bem como para a descrição Acima
roidais, compostos por milhões dinâmica das componentes ga- Aglomerado aberto das
Plêiades (Messier 45), na
de estrelas distribuídas numa re- lácticas que os hospedam. Dina- constelação do Touro. Pode
gião com 60 a 150 anos-luz de di- micamente, os aglomerados jo- ser visto a olho nu. Nota-se
âmetro; são, ainda, extremamen- vens são facilmente desagregados a grande quantidade de
te densos, sobretudo nas regiões pelas forças de maré galácticas. estrelas azuis, um
indicativo que o
mais centrais, quando compara- Elas recebem este nome porque aglomerado não é mais
dos aos abertos. são da mesma natureza da força velho do que 100 milhões
Do ponto de vista cinemático, que explica as marés na Terra por de anos. Seu diâmetro é um
as estrelas dos diferentes aglome- conta da interação Sol–Terra–Lua. pouco maior que 11 anos-
luz (Crédito: Hubble Space
rados apresentam, em média e Em se tratando de metalicida- Telescope).
dentro das incertezas, a mesma de, fundamentais para o estudo
velocidade, cuja componente ra- das taxas de formação estelar e
dial pode ser facilmente obtida a histórico de enriquecimento quí-
partir da análise dos espectros mico dos aglomerados e da pró-
das estrelas, por meio do Efeito
Doppler. A obtenção da velocida-
de total das estrelas dos aglome-
O Efeito Doppler
rados é muito importante para Um exemplo diário do Efeito Doppler é o caso de uma
fins estatísticos — por ex., para a ambulância com a sirene ligada, durante a aproximação ou
afastamento de um observador. Nota-se uma variação na
confirmação da pertinência de es- frequência sonora emitida pela fonte percebida por um
trelas individuais aos aglomera- observador quando há movimento relativo entre eles.

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AGLOMERADOS ESTELARES

pria Via Láctea, os globulares va- denominado em homenagem a


riam entre –2.5 < [Fe/H] < +0.5, en- Ejnar Hertzsprung (1873-1967) e
Abaixo quanto os abertos admitem valo- Henry Norris Russell (1877-1957)
Representação do res entre -0.5 < [Fe/H] < 0.5, isto que, de forma independente, es-
Diagrama HR. A espessura é, os aglomerados globulares são tabeleceram em 1910 as bases pa-
da Sequência Principal, em
que as estrelas passam 90% mais pobres em metais do que os ra se entender, do ponto de vista
da vida convertendo abertos. observacional e teórico, como se
hidrogênio em hélio no dá a evolução das estrelas. Nele,
núcleo, é devido a que O Diagrama HR dos nota-se como as estrelas em di-
estrelas de diferentes
idades estão saindo dela em
aglomerados estelares ferentes estágios evolutivos (Se-
diferentes pontos (Crédito: Abaixo vemos um dos diagra- quência Principal, Gigantes, Super-
Kepler de Souza Oliveira mas mais importantes da Astro- gigantes e Anãs Brancas) se dis-
Filho & Maria de Fátima física contemporânea, o Diagrama tribuem num conjunto de parâ-
Oliveira Saraiva).
HR (Hertzsprung–Russell), assim metros como luminosidade (em

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AGLOMERADOS ESTELARES

Ao lado
Diagrama HR para vários
aglomerados abertos. No
eixo das ordenadas temos a
magnitude absoluta (à
esquerda) e a idade (à
direita) em que as estrelas
têm quando saem da
Sequência Principal. É
desta forma, localizando a
estrela no ponto de virada
(saída da Sequência
Principal), que
determinamos a idade dos
aglomerados. No eixo das
abscissas, temos o índice de
cor, que é uma medida da
temperatura; quanto menor
este índice, mais azulado é
o objeto (Crédito: Mike
Guidry, University of
Tennessee).

termos da luminosidade do Sol, Os Diagramas HR dos aglome-


equivalente à magnitude absolu- rados globulares, por sua vez, são
ta) e temperatura superficial. Ca- distintos. Tomemos, por exemplo,
da estágio evolutivo está relacio- o Diagrama HR do aglomerado
nado às transformações químicas globular M 55, que pode ser visto
que acontecem no núcleo das es- mais adiante neste artigo. M 55
trelas que vai variar de estrela pa- possui [Fe/H] = –1.94 e está loca-
ra estrela, dependendo da massa lizado no halo da Via Láctea. Cada
e da composição química iniciais. ponto no gráfico representa a
São, assim, verdadeiros “retratos magnitude absoluta (isto é, a lu-
de família” destes objetos. minosidade) e a temperatura su-
Ao lado, temos uma figura que perficial de uma estrela individu-
representa o “retrato de família” al. Como se pode notar na ima-
de vários aglomerados abertos. No- gem, grande parte da metade su-
ta-se, também, pelo gráfico, que u- perior da Sequência Principal do
ma grande maioria das estrelas em aglomerado já evoluiu para o Ra-
aglomerados abertos está na Se- mo das Gigantes. Nessa etapa da
quência Principal e, portanto, estes vida estelar, há fusão de hélio no
objetos são jovens. O aglomerado núcleo e fusão de hidrogênio nu-
M67 tem, dentro das incertezas, ida- ma casca imediatamente acima.
de e metalicidade muito parecidas Como no caso dos aglomerados
às do Sol, o qual tem a idade de 4.5 abertos, com base na determina-
bilhões de anos e [Fe/H] = 0. ção da massa das estrelas no pon-

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AGLOMERADOS ESTELARES

to de virada (saída da Sequência tro décadas e, do ponto de vista


Principal) dos globulares, pode-se fotométrico, por quase duas dé-
obter a idade destes aglomerados cadas, que os globulares, ao con-
que, em média, são velhos (têm trário do que se imaginava por
de 10 a 12 bilhões de anos), con- anos, não representam o melhor
trariamente aos globulares de ou- exemplo de uma população este-
tras galáxias, que podem apresen- lar simples. Ou seja, a premissa
tar alto grau de variação nas ida- que usamos no início deste artigo
des (jovens, idades intermediárias precisa ser revisada: sabemos ho-
e velhos). je que os globulares, com raras ex-
Os Diagramas HR dos aglome- ceções, apresentam múltiplas po-
rados estelares podem ser cons- pulações estelares, que apresen-
truídos observacional e teorica- tam variadas idades e composi-
mente, bem como por meio de si- ções químicas, o que se constitui
Abaixo mulações computacionais que vão num dos maiores enigmas para a
Aglomerado globular levar em conta resultados e víncu- Astrofísica Estelar contemporânea.
Messier 80, com idade de 12 los observacionais e teóricos. No Estas observações trazem impor-
bilhões de anos. A região
central tem entanto, esta história não é tão sim- tantes implicações para o estudo
aproximadamente 15 anos- ples assim. Sabe-se, do ponto de da formação e evolução de estre-
luz (Crédito: NASA/Hubble). vista químico, por mais de qua- las, não apenas na Via Láctea, mas
sobretudo em outras galáxias no
Universo •
Alan Alves Brito
Univ. Fed. do Rio Grande do Sul
alan.brito@ufrgs.br

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AGLOMERADOS ESTELARES

Ao lado
Diagrama HR do
aglomerado globular
Messier 55. Os eixos das
ordenadas trazem a
magnitude absoluta (à
esquerda) e luminosidade
das estrelas relativa à
luminosidade do Sol (à
direita). No eixo das
abscissas, temos o índice de
cor, uma medida da
temperatura (Crédito:
NASA).
Abaixo
Tabela descritiva das
características comuns aos
aglomerados estelares e
exclusivas a cada classe de
aglomerado.

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PLANETÁRIOS

Há quase um século, os planetários começaram a instalar-se pelo mundo, possibilitando a observação de estrelas e planetas
a qualquer hora do dia. Você já fez está viagem? Você já pensou em trabalhar em um Planetário?
Planetários do Brasil

L
á fo ra o So l p o de estar t e c o m o é o de s e n h o da s c o n s -
alto num céu com ou sem te la çõ e s da cultura e s te la r O ci-
nuvens, o u mesmo p o de d e n t a l e a t é m e s m o M a ia , T u c a -
s e r u m a n o i t e c a r r e ga d a no ou Tupi-Guarani. Ainda é pos -
de nuvens que derramam sível que vo cê estej a navegando
gotas e mais gotas de chu- pelos primeiros momentos do sur-
va, mas, mesmo assim, vo cê p o - gimento do Universo . Neste lu-
d e e s t a r s o b u m c é u r e p le t o d e gar o nde a no ite é ab so luta, vo cê
estrelas, viaj ando p o r entre o s também pode descobrir que mes -
p lanetas, desco b rindo finalmen- mo de dia o s astro s faz em seu

1122 | RREVI
E V I SSTA
TA B RBRASI
A S I L ELEI
I R ARA
D E DE
A S TASTRON
R O N O M I AOM
| JIAAN |- MJ AN
A R -M
2 0 2AR
0 2020
PLANETÁRIOS

balé celeste — e você pode acom- teve a ideia de construir um equi- Acima
panhar! Em mais de uma cente- pamento que pudesse reproduzir À esquerda, vemos a cúpula
construída no telhado da
na de planetários espalhados pe- os movimentos no céu do Sol, da empresa Zeiss, em Jena, e o
lo país podemos viajar pelo Cos- Lua e dos planetas sobre o das es- público que se dirige para
mos a qualquer hora do dia ou da trelas. Ele, então, discutiu com Carl assistir uma das primeiras
noite. Você já fez esta viagem? Zeiss sobre a possibilidade de sessões do planetário em
1924. À direita, temos uma
História construir esse tipo de simulador. imagem do Zeiss-
Mas com o início da Primeira Planetarium de Jena, em
Há quase 100 anos, mais preci- Guerra Mundial, em 1914, o pro- 1926. Este é mais antigo
samente em agosto de 1923, em u- jeto teve de ser adiado. Porém, já Planetário em operação
contínua no mundo, tendo
ma cúpula de 16 metros de diâme- em 1919, um ano após o final da sido inaugurado em 18
tro na cidade de Jena, Alemanha, guerra, os engenheiros e equipe julho de 1926. (Crédito:
a luz das estrelas foi pela primei- da Zeiss apresentaram um novo Zeiss, WikiCommons).
ra vez projetada de forma artifici- design para um planetário de pro-
al, com o propósito de simular o jeção! Após a primeira exibição Na página anterior
Projetor Spacemaster do
céu e seus movimentos para o pú- em Jena, sede da Zeiss, o planetá- Planetário da UFRGS Prof.
blico em geral. Para que a primei- rio foi instalado no Deutscher Mu- José Baptista Pereira,
ra estrela brilhasse e planetários seum e o espanto e a admiração inaugurado em 11 de
começassem a ganhar o mundo foi que causaram resultou em pelo novembro de 1972 e ainda
em atividade (Crédito:
necessário superarmos os obstá- menos 25 planetários instalados Acervo do Planetário da
culos causados por duas guerras pelo mundo até o início da Segun- UFRGS).
mundiais. A Primeira Guerra Mun- da Guerra Mundial, em 1939.
dial (1914-1918) se colocou entre Os primeiros modelos eram sis-
a ideia de um novo tipo de plane- temas óptico-mecânicos, que ain-
tário e “a primeira luz” de uma da seguem sendo utilizados: uma
projeção artificial do céu em imer- câmara escura ou câmara de ori-
são, resultado de anos de pesqui- fício, que em seu interior possui
sa e desenvolvimento de novas tec- uma fonte luminosa quase pun-
nologias pela empresa Carl Zeiss. tiforme, emite luz que passa atra-
Tudo começou em 1913 quan- vés de uma máscara perfurada.
do Oscar Von Miller, fundador do Os orifícios nas máscaras não es-
Deutscher Museum, em Munique, tão distribuídos aleatoriamente,

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PLANETÁRIOS

Acima ao contrário, eles reproduzem a ma ideia sobre o que estou falan-


À esquerda, Projetor posição das estrelas no céu. So- do, basta acessar a página do Eu-
Spacemaster do Planetário
da UFRGS Prof. José ma-se a este equipamento prin- ropean Southern Observatory (ESO)
Baptista Pereira; à direita, cipal um conjunto de projetores dedicada à distribuição gratuita
imagem do panorama de auxiliares e motores que permi- de material para Planetários. A-
Marte e das constelações tem a projeção e a reprodução do proveite também para navegar
produzidas por este
equipamento (Crédito: movimento de planetas, do Sol e na página em português do ESO,
Acervo do Planetário da da Lua. Projeções de imagens pas- que traz notícias sobre resultados
UFRGS). saram a ser incorporadas às ses- de pesquisas, vídeos e imagens
sões de planetário, com o avan- fantásticas!
ço das pesquisas em Astrofísica Sabe outra coisa muito impor-
e a obtenção de imagens de te- tante que os equipamentos digi-
lescópios em Terra e em órbita. tais permitem? Como a projeção
Atualmente, com o desenvolvi- de sessões com equipamentos óp-
mento da fibra óptica e dos com- tico-mecânicos necessita que a cú-
putadores, há uma variedade de pula esteja totalmente escureci-
equipamentos sendo produzidos, da, é possível produzir uma ses-
inclusive no Brasil. Os planetá- são com audiodescrição para pes-
rios digitais proporcionam que soas cegas, mas não é muito fácil
filmes sejam produzidos e com- conseguir produzir uma sessão
partilhados internacionalmente. em Libras. Com o surgimento dos
Além disso, permitem que as in- equipamentos digitais, os Plane-
críveis imagens obtidas pelos te- tários passaram produzir filmes
lescópios modernos e simulações fulldome também em Libras. Co-
resultantes do que conhecemos mo exemplo temos a sessão “As-
hoje sobre o Universo sejam rapi- tronomia Indígena com Libras”,
damente incorporadas às proje- produzida pelo Planetário do Es-
ções fulldome — como são deno- paço do Conhecimento ligado à
minados esses filmes digitais pa- UFMG.
ra telas semiesféricas. Para ter u-

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PLANETÁRIOS

Planetários Brasileiros mos a dez, fruto do chamado A-


Você já foi a um Planetário? cordo do Café. Este foi um acordo
Um levantamento realizado em entre o Ministério da Educação e
2013 apontou a existência de Cultura (MEC) com a República
mais de 3400 Planetários insta- Democrática Alemã (RDA) que re-
lados em todo o mundo. No site sultou da troca de parte da dívi-
da Associação Brasileira de Pla- da que a Alemanha Oriental pos-
netários é possível conhecer um suía com o Brasil por dez plane-
pouco mais sobre estes espaços tários (seis modelos Spacemaster,
no país e navegar na lista de 83 dois ZKP-1 e dois ZKP-2). Este a-
planetários lá cadastrados. Você cordo aconteceu graças a atua-
já deve ter percebido que este ar- ção do reitor da UFSM, Prof. José
tigo traz a palavra “planetário” Mariano da Rocha Filho, e inclu-
ora escrita com a primeira letra iu também equipamentos cientí-
minúscula, ora com a primeira le- ficos que equiparam a UFSM e
tra maiúscula. Isto é para diferen- UFRGS. Os primeiros destes plane-
ciar os projetores de estrelas que tários foram instalados na UFG e
simulam o céu (letra minúscula) na cidade do Rio de Janeiro, em
dos locais que possuem este equi- 1970. Posteriormente, com prio-
pamento, recebendo o público e ridade dada às universidades fe-
desenvolvendo várias atividades derais, oito cidades receberam os
(letra maiúscula). equipamentos restantes: UFSC/-
Em uma pesquisa recente rea- Florianópolis e UFSM/Santa Maria
lizada por Marcelo Cavalcanti Sil- (1971), UFRGS/Porto Alegre (1972),
veira na internet, em sites espe- Brasília (1974), Curitiba (1978), Jo-
cíficos, correio eletrônico e liga- ão Pessoa (1982), Campinas (1987)
ções telefônicas, no contexto de e UFES/Vitória (1995). Todos estes
pesquisa para sua dissertação de Planetários seguem em atividade;
mestrado, e atualizados por mim, alguns trocaram seu equipamen-
foram encontrados 154 planetá- to original, alguns adaptaram e
rios distribuídos em todo o país. há ainda os que mantém o equi-
O primeiro planetário no país foi pamento original. Você pode en-
instalado em São Paulo em 1957,
por iniciativa da Associação de As- Para saber mais
Fique de olho nos seguintes sites:
trônomos Amadores (AAA-SP) sob
a liderança do Prof. Aristóteles Or-
sini. Na sequência, em 1961, foi ins- https://supernova.eso.org/for-planetariums/
talado um equipamento da em-
presa estadunidense Spitz, na Es- https://planetarios.org.br/planetarios-do-brasil/
cola Naval (RJ). De dois planetá-
rios instalados no país passaría- http://site.mast.br/HAB2013/index.html

REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020 | 15


PLANETÁRIOS

propostas que tivessem como fo-


co a divulgação científica através
da Astronomia. Segundo o relató-
rio final da União Astronômica In-
ternacional (IAU), o Brasil teve
um orçamento equivalente a 2 mi-
lhões de euros, que proporciona-
ram a organização de atividades
que atingiram 2.2 milhões de pes-
soas, em mais de 1600 eventos em
todo o país. Parte desse recurso foi
utilizado para a aquisição de e-
quipamentos de projeção para Pla-
netários fixos e móveis. Sim, a-
lém de prédios com suas cúpu-
las, a versão itinerante é bastan-
te utilizada no país. Nosso levan-
tamento resultou que aproxima-
damente 75% dos planetários são
do tipo móvel, ou seja, que se des-
locam até o público para realizar
as atividades. Nesta lista incluem-
se Planetários que possuem as du-
Acima contrar detalhes de como tudo is- as modalidades de equipamento
O gráfico superior mostra o
número de novos to aconteceu no segundo volume (móvel e fixo). Se acompanharmos
planetários por ano no do livro História da Astronomia o número de planetários que en-
período entre 1957 a 2018. no Brasil, publicado em 2013, sob traram em operação no país en-
Vemos que a partir de 2009, a coordenação de Oscar Matsuura. tre 1957 e 2018, é possível perce-
Ano Internacional da
Astronomia, o crescimento Temos Planetários em todas as ber que entre 1957 e 2008 foi inau-
foi maior. regiões do país, porém a distribu-gurado basicamente um planetá-
Aproximadamente 75% ição deles é desigual. A Região Su-
rio por ano. A partir de 2009, quan-
destes Planetários são deste sedia 45% destes espaços, en-
do 10 novos Planetários foram i-
itinerantes (móvel) e 25%
são fixos. O gráfico inferior quanto a Região Norte sedia me- naugurados, os anos de menor ati-
apresenta o número e nos de 10% deles. Em preparação vidade viram pelo menos 3 plane-
percentagem de planetários ao Ano Internacional da Astro- tários entrando em operação.
por região do país. Fonte: nomia (2009), a Sociedade Astro-
levantamento realizado
nômica Brasileira (SAB) buscou
Profissão: Planetarista
pela autora.
apoio do governo, por meio do Você já pensou em trabalhar
lançamento de editais do então em um Planetário? Pra quem a-
Ministério da Ciência e Tecnolo- inda está escolhendo qual profis-
gia (MCT) e CNPq, para financiar são seguir, seja através de um

16 | REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020


PLANETÁRIOS

curso técnico ou superior, os Pla- transdisciplinares destes espaços.


netários são uma opção incrível. Um exemplo disso é o Plane-
Se você gosta de Astronomia e tário da UFRGS Prof. José Baptis-
pensa em cursar algum dos ba- ta Pereira. Nele, uma equipe de
charelados em Astronomia e As- nove graduandos e graduandas,
trofísica que existem no país, já das áreas de Astrofísica, licencia- Abaixo
poderá durante o curso atuar em turas (Física, Biologia), Artes Vi- Atividades desenvolvidas
um desses locais como voluntá- suais, Ciências Sociais, Jornalismo, pelo Planetário da UFRGS.
rio, estagiando ou mesmo rece- Geologia e Matemática, atua sob 1. Experimentos de baixo
bendo uma bolsa de Extensão ou custo para discussão de
orientação de servidores técnicos fenômenos astronômicos
Iniciação Científica. Dos Planetá- e docentes da Universidade, rea- como as fases da Lua, o
rios que listamos aqui 38% per- lizando diferentes projetos. Além movimento de translação
tencem a universidades ou insti- das sessões para escolares, nas cú- da Terra em torno do Sol e
tutos federais. Depois de formado, os eclipses solares.
pulas fixa e itinerante, e sessões 2. Aniversário do Planetário
este é um bom mercado de traba- públicas, são realizados cursos de da UFRGS, apresentação de
lho, pois ainda são poucos Plane- Extensão sobre reconhecimento dança de crianças de um
tários no Brasil que contam com do céu, divulgação em Astrofísica comunidade quilombola.
astrônomas ou astrônomos em su-
as equipes. Embora esses espaços
possam trabalhar com todos os
campos do conhecimento de for-
ma direta ou indireta, os planetá-
rios foram desenhados para pro-
porcionar uma imersão no Uni-
verso. Mas se você prestou aten-
ção neste texto, já teve uma pista
que quando falamos de Planetá-
rios estamos falando de história,
de política, de divulgação cientí-
fica. Por isto, Planetários são es-
paços que deveriam congregar e-
quipes multidisciplinares, para
dar conta de tudo que podemos
realizar através deles. Neste que-
sito, os Planetários ligados a uni-
versidades e institutos federais
têm um grande diferencial, pois
estão dentro de instituições que
reúnem várias áreas do conhe-
cimento e podem explorar ao má-
ximo as conexões disciplinares e

REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020 | 17


PLANETÁRIOS

Acima (em colaboração com o Departa- sificada e cidadã.


Roda de conversa com mento de Astronomia do IF/UFRGS), Alguns dos Planetários sedia-
indígenas e quilombas
sobre suas conexões com a cursos de EAD para professores, dos em instituições de ensino su-
natureza e as estações do projetos de interação com comu- perior, além da cúpula fixa, pos-
ano. A atividade integrou a nidades indígenas e quilombolas, suem também (ou somente) pro-
Celebração Intercultural da ações de promoção das ciências jetos itinerantes como o da pró-
Primavera de 2017, do
Planetário da UFRGS para meninas, parcerias com es- pria UFRGS. O Planetário Digital
(Crédito: Acervo do colas para qualificação do Ensino Móvel Barca dos Céus é um pro-
Planetário da UFRGS). de Ciências, shows musicais, hora jeto do Grupo de Pesquisas em
do conto, oficinas e rodas de con- Ensino de Física e de Astronomia
versa sobre Astronomia, Música, do Dept.o de Física da UFRN. Já o
Literatura, produção de progra- Instituto Federal do Acre inaugu-
mas para planetários, produção rou em 2016 seu planetário mó-
de material de divulgação cientí- vel e suas atividades atraem cen-
fica e materiais inclusivos, está- tenas de pessoas. O Planetário da
gios curriculares dos cursos de Unipampa, além de uma progra-
Museologia e Geografia (licencia- mação incrível para escolas e pú-
tura e bacharelado). Todas estas blico em geral, viaja pelos campi
ações são realizadas em colabo- da Universidade complementan-
rações com docentes e técnicos do a formação em Astronomia de
de diferentes unidades acadêmi- diversos cursos. Já o Planetário
cas, proporcionando aos estudan- da Univates, além da divulgação
tes uma formação ampla, diver- científica, atua na pesquisa em

18 | REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020


PLANETÁRIOS

Ensino de Astronomia. ginas para contar um pouco que


Muitos Planetários estão inte- fosse do que cada Planetário no
grados a Museus ou Centro de Ci- país tem realizado!
ências públicos, como o Centro Então, que tal aproveitar a pro-
de Ciências e Planetário do Pará. gramação de férias de um Pla-
Existem aqueles também ligados netário próximo a você, ou um
a instituições privadas que reú- dos inúmeros cursos à distância
nem esta característica e ainda por eles promovidos? Quem sabe
estão integrados a parques como além de viajar pelo Cosmos você
o Centro de Estudos Digitais e As- não descobre que um desses es-
tronômicos Integrados (CEDAI) Ja- paços pode ser o seu lugar no
buti, no Paraná, ou o Museu Aber- mundo? •
to de Astronomia (MAAS). Há, ain- Abaixo
da, lugares que possuem várias Daniela Pavani & Luana Cruz Observação do eclipse do
cúpulas fixas como a Fundação Planet. Prof. José Baptista Pereira Sol, em julho de 2019, na
Planetário da Cidade do Rio de Ja- dpavani@if.ufrgs.br Usina do Gasometro/Porto
Alegre. Está é uma das
neiro; nesta configuração a visi- atividades do Projeto
tação (ou trabalho) proporcio- Selene, do Planetário da
nam também uma experiência ú- UFRGS (Crédito: Acervo do
nica. A verdade é que faltariam pá- Planetário da UFRGS).

REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020 | 19


Entrevista

Sylvio Ferraz-M
20 | RREVI
E V I SSTA
TA B RBRASI
A S I L ELEI
I R ARA
D E DE
A S TASTRON
R O N O M I AOM
| JIAAN |- MJ AN
A R -M
2 0 2AR
0 2020
ENTREVISTA: SYLVIO FERRAZ MELLO

Nesta edição, o entrevistado da RBA é o Prof. Sylvio Ferraz Mello.

Nascido em 26 de outubro de 1936, São Paulo (SP), Sylvio Ferraz-Mello é


Bacharel em Física pela Universidade de São Paulo (1959) e Doutor em Ci-
ências Matemáticas pela Académie de Paris/Sorbonne (1966), e atualmente
Professor emérito da Universidade de São Paulo. Prof. Sylvio foi Editor-che-
fe da prestigiosa revista Celestial Mechanics and Dynamical Astronomy (Sprin-
ger/Nature) de 2001 a 2017. Tem experiência na área de Astronomia, com ên-
fase em Dinâmica do Sistema Solar e Sistemas Planetários Extrassolares a-
tuando principalmente nos seguintes temas: asteroides, ressonâncias, ma-
rés, caos e planetas extrassolares. A União Astronômica Internacional deu o
nome Ferraz-Mello ao asteroide 1983 XF (5201) em reconhecimento ao im-
portante trabalho desenvolvido pelo Prof. Sylvio ao longo das décadas de
uma brilhante carreira. Recebeu em 2007 o titulo de Doutor Honoris Causa
do Observatório de Paris e em 2015 ganhou o prêmio Brouwer da American
Astronomical Society/Division of Dynamical Astronomy, pelos seus trabalhos
em “avanços fundamentais na compreensão do papel das ressonâncias nas
dinâmicas orbitais em sistemas solares; ele também contribuiu para o en-
tendimento dos processos dissipativos na evolução de sistemas planetá-
rios” (segundo o comunicado da American Astronomical Society). Foi presi-
dente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (ACIESP) e é mem-
bro da Academia Brasileira de Ciências (ABC).

A entrevista com o Prof. Sylvio foi realizada no dia 28 de novembro de 2019


às 14:00 em seu escritório no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências
Atmosféricas da USP (IAG/USP). Na ocasião tivemos a oportunidade de
conversar e aprender sobre a vida e obra de um dos maiores cientistas bra-
sileiros. Esperamos que os leitores da RBA, principalmente os mais jovens
que pensam em seguir a carreira científica, leiam com atenção sobre como
se forma um cientista. Prof. Sylvio, como iconoclasta que é, nos ensina que
é possível ser cientista sem idolatrias.

Mello
REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020 | 21
ENTREVISTA: SYLVIO FERRAZ MELLO

RBA: Você sempre pensou em ser cientista, estudos nenhum ídolo científico. Meu primei-
ou foi algo que aconteceu ao longo da vida ? ro mestre foi meu pai, que me ensinou a ler
por volta dos meus 4 ou 5 anos de idade. Não
Sylvio: Eu morava na periferia de São Paulo, lembro exatamente dos detalhes, sabe como
onde naquela época nem se falava de ciência. é, as lembranças são difusas, mas lembro de
Ciência? A gente nem sabia o que era isso. Eu ficar desenhando letras com as cascas enro-
morava na confluência de Tatuapé, Belém e ladas de tomate na beira do prato. Aprender
Alto da Mooca conhecida como Quarta Para- a ler nesta idade foi para mim, muito impor-
da. Ser professor era algo em que se pensava, tante e influenciou o resto da minha vida. Me
mas cientista não. Veja bem como a época era lembro quando acompanhava minha mãe às
diferente. Na zona leste a única escola públi- compras na quitanda e era chamado pelas
ca que ia além dos primeiros anos do curso pessoas a me exibir lendo as manchetes dos
primário era a Padre Anchieta, escola normal jornais que lá estavam para embrulhar ver-
no Brás, que era exclusiva para meninas. Es- duras e frutas. Mas enfim, voltando ao assun-
tamos falando da época entre 1940 e 1950. As- to. Eu tive ótimos professores no Bandeiran-
sim eu fui fazer o antigo curso ginasial no cen- tes, em geral profissionais liberais que davam
tro da cidade. O nome da escola prefiro não aula e seus cursos eram muito completos. No
dizer, mas era muito ruim e de certa forma o terceiro ano do colegial, nós estudamos em
aluno se tornou tão ruim quanto a escola. En- Física, o livro do professor Roberto Salmeron
fim, isso para dizer que ser cientista não es- – Introdução à Eletricidade e ao Magnetismo.
tava no meu horizonte naquela época. Em al- Estudamos o livro inteiro e fizemos muitos
gum momento eu percebi que precisava fazer exercícios. Era trabalho duro e acabou que
alguma coisa quanto ao meu futuro e basica- este livro me trouxe a atração pela ciência.
mente forcei meu pai a me transferir para o Nesta mesma época encontrei um livro de di-
Colégio Bandeirantes. Eu já estava no colegial vulgação chamado O Átomo, de Fritz Kahn,
(atual ensino médio). No Bandeirantes, sim, en- que era um médico alemão que escreveu
contrei uma escola de alto nível e esses dois vários livros de divulgação. Ou seja, não tive
últimos anos do colegial foram os anos que um ídolo científico, tudo surgiu da junção de
mais trabalhei na minha vida. Mas o que foi estudar duro o livro de Física do Salmeron e
fundamental para mim foi ter vivido em um ler o livro do Fritz Kahn. Isso sim me impul-
tempo em que os pais se preocupavam com sionou para a ciência e então me decidi a ser
os filhos conferindo-lhes total prioridade. Ter Físico.
sido criado por um pai e uma mãe, juntos e
em harmonia, foi fundamental para a boa RBA: Nos diga brevemente sobre como foi
formação minha e de meu irmão. sua formação, que professores foram mar-
cantes na tua trajetória ?
RBA: Teve algum grande cientista que te-
nha sido seu “ídolo” cientifico na juventu- Sylvio: Pois é, aí veio o curso de Física da USP.
de, que tenha influenciado na tua decisão Devo dizer que a faculdade não foi bem o que
de ser cientista ? eu esperava. Muito do que aprendi no Bandei-
rantes acabei esquecendo na faculdade! Na fa-
Sylvio: Não tive nesta época inicial dos meus culdade não se estudava. Fazia-se política dia

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ENTREVISTA: SYLVIO FERRAZ MELLO

e noite e isso durou os dois primeiros anos do


conversando até amanhã. Mas, para te situar,
curso. Felizmente, depois mudou, e os últimos
por exemplo, no Colégio Bandeirantes, o cole-
dois anos foram de muito trabalho. Tive al-ga que sentava ao meu lado era filho de anar-
guns bons professores. Alguns deles lembro quistas espanhóis que tinham fugido da Es-
com grande prazer por que me ajudaram e panha por causa da situação política por lá, e
muito. Inicialmente, Abrahão de Moraes, queeu frequentava a casa dele. Os anarquistas or-
me orientou nos primeiros anos da minha car-
ganizavam sempre reuniões e conferências so-
reira. No segundo ano de Faculdade foi meu bre temas diversos e eu participava sempre
professor de Mecânica Racional. Sua didática
que podia. Olha, isto me ajudou muito na Fa-
era excepcional, e seu companheirismo tam- culdade de Filosofia pois quando organizações
bém. No intervalo das aulas reunia-se com os
comunistas tentaram me cooptar, eu tive co-
alunos para um café no bar da esquina das mo me defender e dizer não (os anarquistas
ruas Maria Antonia e Dr. Vila Nova. Outro pro-
eram ferrenhos anticomunistas). Eu podia con-
fessor que me influenciou bastante foi Omarfrontar as ideias deles, e por isso fui respeita-
Catunda que publicou sete apostilas contendo
do. Escola com partido não é uma coisa recen-
todo o curso de Análise Matemática que eu li
te. No tempo de estudante, fui membro do Par-
de cabo a rabo. Depois de formado ainda cur-
tido Socialista. Perdi muito tempo da minha
sei dele uma disciplina sobre Equações Dife-
vida com participação política e hoje choro o
renciais Ordinárias. Graças aos cursos de Abra-
tempo perdido. Mas isso faz parte da forma-
hão e Catunda, quando fui para a França fa-ção, paciência! Os primeiros anos da faculda-
zer o meu doutoramento, meus colegas com de foram mais voltados à discussão política do
frequência me consultavam quando tinham que de estudo efetivo. Fui a congressos da UNE,
uma dúvida em matemática ou mecânica. Ou- da UEE, etc. Felizmente, quando estava no se-
tros professores que foram muito importan- gundo ano da faculdade, o Prof. Abrahão de
tes na minha formação foram: Walter de Ca- Moraes, que dava aula de Mecânica, me con-
margo Schützer; Hans Stamreich e seus dois vidou pra trabalhar no IAG-USP, como técni-
assistentes, Oswaldo Sala e Darwin Bassi; Os-
co. Isso me afastou um pouco do ambiente al-
car Sala; Luis de Queiroz Orsini e Rômulo Ri-
tamente politizado da faculdade. Além disso,
beiro Pieroni. Outros mereceriam ser citados,
logo depois comecei a namorar e aí a vida mu-
mas fecho a lista com Mario Schemberg que dou. Me casei antes de me formar. Voltei para
me deu a possibilidade de trabalhar no De- os trilhos. Voltei para os meus objetivos. Os
partamento de Física depois que me formei. dois últimos anos da faculdade foram mais
parecidos com o tempo de Bandeirantes, es-
RBA: Dentro deste cenário que voce descre- tudo sério e muito trabalho. É importante ter
ve a faculdade naquela época, como você Escolas Sem Partido, mas o problema não es-
vê a discussão da Escola Sem Partido hoje tá só no professor. Está sobretudo no ambien-
em dia ?
Para saber mais
Sylvio: Olha, se fossemos falar das his- Sylvio já publicou algumas de suas memórias em:
tórias daquela época sobre o ambiente http://www.astro.iag.usp.br/~dinamica/abrahao.html
político no qual se vivia, ficaríamos aqui http://www.astro.iag.usp.br/%7Esylvio/aosmestres.htm

REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020 | 23


ENTREVISTA: SYLVIO FERRAZ MELLO

e Sommerfeld, anterior à Mecânica Quântica,


com o Hans Stamreich, que foi um curso ex-
celente. Essa é uma longa história e esse cur-
so foi muito importante mais tarde quando
escrevi meu livro sobre Teoria de Perturba-
ções.
RBA: Na tua opinião faz sentido ter dois cur-
sos separados, de Física e de Astronomia?
te criado para o proselitismo político. Por e- Não, não faz. A importância maior da Astro-
xemplo, na faculdade havia um ambiente plu- nomia está na Física. Astronomia é a ciência o-
ral de ideias, e este ambiente era usado para a brigatória da Física. A Astronomia abre as por-
formação de quadros pelos partidos políticos. tas do Universo para a Física. Agora para en-
Esta formação de quadros políticos não acon- tender esta Astronomia, tem de saber Física.
tecia na sala de aula, mas no centro acadêmi- E é tanta Física que se tem de ensinar para
co, nas áreas de lazer, no bar da esquina onde formar o Astrônomo que é melhor fazer o
íamos tomar café, ou seja, o ambiente é que curso de Física. A Astronomia não é uma ciên-
era usado para o proselitismo e não o profes- cia boa para formar pessoas. Principalmente
sor. Professores sempre falaram de política em a Astronomia de hoje, que virou uma ciência
sala de aula, e isso não é necessariamente um fática; uma ciência de descobertas.
problema se não se caracterizar como doutri-
nação. Eu fiz o curso ginasial logo após o fim RBA: Qual foi o trabalho que deu mais pra-
da ditadura de Getúlio Vargas e alguns profes- zer em fazer ?
sores tinham horror ao Getúlio, e falavam dis-
so com frequência na sala de aula. Sylvio: Todos os trabalhos que fiz ao longo da
minha carreira tiveram bons momentos. No
RBA: Como você vê a formação atual de fí- entanto, o mais recente, sobre a teoria de ma-
sicos e astrônomos em relação à formação rés planetárias tem sido o mais prazeroso. Tem
na tua época? sido um trabalho muito criativo, diria mes-
mo que mais criativo do que o trabalho que
Sylvio: Não sei te responder esta pergunta por- me deu o Prêmio Brouwer, pelo estudo de res-
que não sei como anda o curso de Física na sonâncias em asteroides. Nesta teoria de ma-
graduação hoje em dia. Não tenho contato rés sinto que há mais invenção do que desco-
com o Instituto de Física neste particular. Ago- berta. Trabalhos que incluem invenção dão
ra, posso te dizer que o meu curso naquela é- muito mais prazer do que trabalhos que sig-
poca foi muito deficiente. Se por um lado fiz nificam somente descoberta. Ambos são im-
um bom curso de Relatividade, não estudei portantes. Mas o processo de invenção tem
nada de Mecânica Quântica, pois não tinha mais adrenalina. Veja você que o trabalho co-
professor. Mas é interessante dizer que eu ti- meçou numa viagem de avião, indo para um
ve um curso da velha Física Quântica de Bohr congresso em Natal, no Rio Grande do Norte.

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ENTREVISTA: SYLVIO FERRAZ MELLO

Estando no avião, sem nada o que fazer, co- tão de preferência, simplesmente não sei. Sei
mecei a pensar em contradições das teorias trabalhar com aluno, dar uma ideia e seguir o
de marés existentes, que me atormentavam há projeto, mas em grupo é difícil. Veja por exem-
mais de dois anos. Daí, escrevi uma primeira plo o projeto CoRoT, que tinha uns 40 ou 50
equação, e a coisa foi indo, e de repente eu não colaboradores, incluindo os prêmios Nobel de
consegui mais parar de fazer aquilo. Cheguei Física de 2019, Michel Mayor e Didier Queloz.
a uma equação fundamental que parecia per- Tinha também gente que não fazia absoluta-
mitir uma nova abordagem da teoria (embo- mente nada. Nem mesmo sabia o que estava
ra tenha visto depois que Newton já tinha es- sendo feito. Não fizeram nada nunca. Partici-
crito a mesma equação em estudos de hidro- param de algumas reuniões e ponto. Trabalhar
dinâmica). Isso me deu imenso prazer. Tanto em grupo é difícil. Em todos os trabalhos do
prazer que faltei a algumas apresentações do CoRoT de que eu participei eu fiz alguma
congresso para ficar no hotel desenvolvendo coisa. Estudei a evolução devida às marés em
a teoria. O trabalho criativo é assim, ele fica vários sistemas e para todos determinei, de
na tua cabeça o tempo todo. Não acredito em modo independente, os parâmetros das órbi-
dádivas. As ideias criativas nascem do esforço tas a partir das observações de velocidade ra-
continuado, de você estar ali pensando exaus- dial.
tiva e incessantemente sobre uma questão,
talvez até obsessivamente, até que em algum RBA: O Brasil vem tentando se associar ao
momento as coisas se fecham e você resolve o ESO (European Southern Observatory).
problema. Estas ideias não vêm por acaso. E- Qual sua opinião sobre isso ? Que impacto
las necessitam maturação. Por exemplo, a As- você acha que esta associação teria para a
tronomia moderna é uma ciência fática, ela Astronomia Brasileira ?
descobre fatos incríveis, como matéria escu-
ra, por exemplo, cuja natureza desconhece- Sylvio: Acho que a adesão do Brasil ao ESO mu-
mos totalmente. Para explicá-los, é preciso sa- daria a cara da comunidade astronômica bra-
ber Física e ter uma atitude quase obsessiva sileira. No Brasil, tudo começou com o teles-
de pensamento criativo. Tem mui-
ta gente pensando sobre a maté-
ria escura hoje em dia. Uma hora
dessas amadurece e alguém vai
chegar à explicação.
RBA: Você prefere trabalhar so-
zinho ou em grupo ?
Sylvio: Eu não sei trabalhar em
grupo. Talvez eu seja muito indi-
vidualista. Inclusive agora que es-
tou mais velho e não consigo tra-
balhar tanto… Mas não é uma ques-

REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020 | 25


ENTREVISTA: SYLVIO FERRAZ MELLO

cópio de Brasópolis no Sul de MG e isto mos- te condicionado, formando um tecido entre-


trou como é importante ter acesso a telescópi- laçado pelo contato de seus representantes
os. Melhor ainda se forem cada vez maiores e humanos (conforme Ludwik Fleck). Como
melhores. No período que estivemos associa- você vê o progresso da ciência diante des-
dos ao ESO deu pra ver como a comunidade tas duas perspectivas ?
fez bom uso desta associação. Um trabalho do
qual participei coordenado pelo Prof. Jorge Sylvio: Olha, não conheço muito dessas coisas
Melendez é um exemplo típico. O fato de dis- mas, por exemplo, Thomas Kuhn tem uma vi-
por de tempo no telescópio certo foi muito im- são da ciência de alguém que está fora da ci-
portante. Determinante mesmo. E não é só o ência. Ele vê Einstein mas ele não vê Lorentz
tempo de telescópio, é também toda a estru- e Poincaré. Ele vê o Newton, mas ele não vê o
tura que o ESO tem. Você lembra que quando Kepler e Tycho Brahe. Ele está fora da Ciên-
tivemos aqui no IAG-USP aquela reunião de cia. Ele só vê quando algo espetacular é re-
grande parte dos astrônomos da comunidade, portado. Mas ele não vê o processo de como
onde a maioria expressiva apoiou a adesão, a se chegou à teoria sintética espetacular. Não
despeito dos votos contrários de 3 ou 4 cole- estou dando uma opinião profunda sobre o
gas, eu fiz uma brincadeira dizendo que de- assunto, o qual não conheço, mas apenas di-
pois da adesão ao ESO vem a Champions Lea- zendo que certas ideias não me parecem cor-
gue! Claro que é uma brincadeira, mas dá a responder à realidade. Talvez isso não esteja
dimensão exata do que significa participar des- em suas ideias, mas na maneira em que são
tes grandes empreendimentos. Já pensou os divulgadas por terceiros. Agora, o Ludwik Fleck
principais times de futebol brasileiros partici- era um bacteriologista, ele fazia ciência e me
pando da Champions League? O mesmo vale parece que suas ideias são muito próximas
para a Astronomia. A associação ao ESO pode daquilo que percebo. As ideias de Fleck refle-
propiciar um grande salto de qualidade da as- tem melhor o que acontece na ciência — uma
tronomia brasileira. A vantagem do ESO é que ideia aqui outra acolá e as coisas vão se incor-
eles oferecem todo o tipo de observação. Há porando ao conhecimento e à linguagem cien-
outros bons projetos, mas só o ESO dá a possi- tifica de maneira quase anônima, sequer re-
bilidade de fazer observação em vários com- velando a origem exata da ideia.
primentos de onda através do acesso a teles-
cópios como VLT, o radiotelescópio ALMA, e RBA: Você acha que é preciso saber filoso-
no futuro o ELT. fia para fazer ciência ?
RBA: Existem pelo menos duas maneiras de Sylvio: Seguramente não, pelo menos te digo
entender o desenvolvimento da ciência: u- que não sei Filosofia. Eu tive um professor de
ma onde a ciência progride através de que- Filosofia no Colégio Bandeirantes que me in-
bras de paradigma (segundo Thomas Kuhn) fluenciou muito a me tornar Físico. O Bandei-
e uma outra que diz que as mudanças ocor- rantes tinha uma visão pragmática das coisas.
rem muito mais devido às transformações Então, se o aluno vai fazer Engenharia ou Me-
dos estilos de pensamento, que são resulta- dicina, vamos ensinar a ele uma Filosofia que
do de um crescimento histórico e socialmen- faça sentido dentro daquilo que ele vai fazer

26 | REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020


ENTREVISTA: SYLVIO FERRAZ MELLO

— ou seja, usavam o livro do Bertrand Russell tante porque ela organiza os fatos que conhe-
como livro de Filosofia. Estudávamos Filoso- cemos sobre o mundo, quando aconteceu e
fia da Ciência. Depois a faculdade me atrapa- quanto tempo levou para acontecer. Infeliz-
lhou. Veio me dizer que eu tinha que estudar mente, a datação não recebeu dos divulgado-
Lenin. Li muito o Lenin e perdi meu tempo. res da ciência a atenção que mereceria e os
Deveria ter continuado a ler o Russell. filósofos de hoje em dia não percebem a rele-
vância da datação nas muitas revoluções ci-
entíficas do século XX.
RBA: Alguma palavra final para aqueles
que estão iniciando na carreira ?
Sylvio: Olha, antes de mais nada uma forma-
ção sólida é fundamental. Tive alguns pontos
altos na minha formação que coloquei em des-
taque no início da entrevista, em particular
no colegial e nos últimos anos da Faculdade.
Foi ali que trabalhei duro. A natureza dos pro-
RBA: O que você considera a maior revolu- blemas encontrados em Astronomia precisa
ção científica do século XX ? de muita Física e você não sabe hoje a Física
que vai precisar amanhã — então tem que
Sylvio: Depois da revolução criada pelos tra- saber Física e saber antever que Física será
balhos do Einstein, que foram excepcionais, é necessária no futuro para resolver os proble-
difícil imaginar outro. Como uma pessoa po- mas da Astronomia. Na hora que aparecem
de num espaço de tempo tão curto explicar o os problemas, você precisa estar preparado
Efeito Fotoelétrico, o Movimento Browniano para saber fazer as associações necessárias
e ainda elaborar a Teoria da Relatividade. Ab- com a Física conhecida •
solutamente espetacular! Agora, tirando isso,
considero que a grande revolução do século Sylvio foi entrevistado por Reinaldo Ramos de
passado foi a datação usando isótopos radioa- Carvalho.
tivos, algo que ocorreu de maneira silenciosa
e que ninguém comenta. Todos os processos
evolutivos em Geologia e Biologia só puderam
ser compreendidos com a Datação estabele-
cendo quando cada um ocorreu. Você vai no
Grand Canyon e vê a estratificação dos areni-
tos. A datação nos conta que as camadas mais
profundas foram formadas há 1 bilhão de a-
nos! E como nos sabemos hoje que o Sistema
Solar se formou há 4.57 bilhões de anos? Pela
datação dos meteoritos! A datação é impor-

REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020 | 27


POEIRA INTERESTELAR

Poeira de Estrelas O espaço entre as estrelas está longe de ser vazio. Inúmeras pequenas
particulas podem ser encontradas aí, e elas costumam ser responsáveis por
contrastes dramáticos nas imagens astronômicas, além de influenciarem na
f o r m aç ão d e p lan e t as .

Q
uando olhamos para o o Saco de Carvão, na direção do
céu, em uma noite clara Cruzeiro do Sul, uma nuvem de
e sem nuvens, percebe- poeira e gás que na verdade ab-
mos que existem algu- sorve toda a luz emitida por es-
mas regiões mais escu- trelas situadas atrás dela. A exis-
ras sobrepostas ao fun- tência de tais regiões em nossa
do estrelado da Via Lác- Galáxia foi primeiramente nota-
tea. Muitos que o fizeram podem da por William Herschel que pro-
ter imaginado que nessas dire- duziu a primeira contagem de es-
ções nada exista. Um exemplo é trelas notando que havia um “bu-

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POEIRA INTERESTELAR

raco” da direção da constelação de ou pequenas partículas sólidas. Acima


Região do céu
Escorpião. Levou muito tempo até Segundo Trumpler: correspondente à
que a ausência de estrelas fosse constelação do Cruzeiro do
interpretada como absorção da “A absorção da luz está intima- Sul e às estrelas α e β
luz, o que foi feito por Jacobus mente relacionada à presença, Centauri. Note a presença
de uma nebulosa escura, o
Cornelius Kapteyn em 1909. No distribuição e constituição da Saco de Carvão, no centro
entanto, ele sugeriu, erroneamen- matéria no universo”. da imagem e à esquerda do
te, que a massa que obscurecia o Cruzeiro do Sul. A nebulosa
brilho das estrelas seria resultado Finalmente, em 1932, Rupert Wildt bloqueia a visão de estrelas
que se encontrem mais
de restos de meteoritos. Por outro sugeriu que essas partículas sóli- distantes, na mesma linha
lado, ele percebeu que a absor- das (isto é, os grãos) seriam for- de visada (Crédito:
ção era seletiva e que as estrelas mados nas atmosferas estelares, ESA/Hubble).
mais distantes seriam mais aver- e a partir de então diversos mo- Na página anterior
melhadas. Já em 1923, Max Wolf delos foram elaborados. Hoje sa- Região de Formação estelar
sugeriu que existissem “cavernas bemos que os grãos de poeira são LH 95, situada na Grande
escuras” que obscureceriam a luz produzidos por estrelas durante Nuvem de Magalhães. As
estelar. O fato é que, até meados seus estágios evolutivos finais em faixasdeescuras são nuvens
poeira interestelar
de 1920 não havia consenso sobre seus envoltórios circunstelares, (Crédito: NASA).
a natureza da matéria em deter- que é a região mais externa e ex-
minadas regiões do céu. Em 1930 tensa da atmosfera estelar.
Robert Trumpler propôs que a luz O Big Bang, evento que formou
que passa através dessa matéria o universo, produziu apenas áto-
seria afetada de várias maneiras: mos de hidrogênio, de hélio e um
ela poderia ser espalhada e ab- pouco de lítio. O restante dos ele-
sorvida por elétrons e moléculas mentos químicos é produzido por

REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020 | 29


POEIRA INTERESTELAR

o espaço entre as estrelas não é


vazio, pois contém matéria. A mai-
or parte dessa matéria é formada
por hidrogênio atômico e/ou mo-
lecular — a proporção relativa
destes depende da temperatura
e densidade das regiões —, bem
como por outros elementos mais
pesados e partículas sólidas. Em
nossa galáxia, a Via Láctea, cer-
ca de 1% da matéria interestelar
é composta por essas pequenas
partículas com tamanhos que va-
riam de poucos nanômetros até vá-
rios mícrons, atingindo milíme-
tros, em regiões de formação este-
lar. São os grãos de poeira. A po-
eira é um grande problema para
os observadores, pois modifica a
radiação proveniente das estrelas
de duas maneiras: a poeira absor-
Acima estrelas, mas isso é uma história ve e espalha a radiação, provo-
Nebulosa Cabeça de que merece um artigo próprio na cando sua extinção, isto é seu a-
Cavalo; parecida com um
buraco no céu, essa nuvem Revista Brasileira de Astronomia. tenuamento. A luz da estrela, ao
escura concentra grande Resumamo-la agora nisto: duran- passar através de uma nuvem de
quantidade de poeira te seu tempo de vida, estrelas pro- poeira, torna-se mais avermelha-
interestelar a qual absorve duzem elementos químicos em da à medida que os comprimentos
praticamente toda a luz
emitida por estrelas que se seus interiores através de reações de onda mais azulados são remo-
encontram atrás dela. Ela é termonucleares. De fato, a Terra vidos. Este efeito é chamado de a-
parte de uma região maior, e o Sol possuem elementos que fo- vermelhamento e modifica as
conhecida como nuvem ram processados nos interiores es- distâncias observadas. Mas são
molecular de Órion
(Crédito: NASA, ESA, telares, ou seja, matéria reciclada, justamente as propriedades da
Hubble). produzida por gerações de estre- poeira que a tornam especial pa-
las anteriores ao nosso Sistema So- ra a formação de novas estrelas:
lar. A medida em que as estrelas grãos de poeira são eficazes na
evoluem, os elementos que foram proteção dos sítios de formação
recém-formados são primeiramen- estelar contra a radiação ultravi-
te levados à superfície estelar e, oleta proveniente de outras es-
posteriormente, expelidos para o trelas.
meio interestelar (a região entre as
estrelas), enriquecendo-o. Assim,

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POEIRA INTERESTELAR

Distribuição e composição São formados por carbono, oxi- Acima


Grãos de grafite retirados
dos grãos de poeira gênio, ferro, silício, magnésio, ti- do meteorito Orgueil
tânio, entre outros elementos. (Crédito: M. Jadhav, E.
Grãos de poeira são partículas O ciclo de vida da poeira é um Zinner, S. Amari, T.
sólidas, tais como grãos de areia, pouco complicado: os grãos são Maruoka, K. K. Marhas, R.
Galino).
e podem ter diferentes composi- produzidos por estrelas em seus
ções químicas que revelam o am- estágios evolutivos finais, lança-
biente onde foram produzidas. dos ao meio interestelar através

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POEIRA INTERESTELAR

de ventos estelares para depois incorporar uma ou muitas cama-


serem consumidos na formação das externas de gelos ou molécu-
de novas estrelas ou sistemas pla- las mais abundantes nas nuvens.
netários. Uma vez soprados para Hoje não há dúvidas de que os
Acima o meio interestelar tais grãos se grãos são produzidos por estrelas
Cometa C/1995 Hale-Bopp arranjarão em nuvens onde serão evoluídas e nosso Sol, no futuro,
observado em 1997. Na modificados por vários processos produzirá grãos de poeira, prova-
imagem podemos ver as
duas caudas: a cauda de físicos, envolvendo a radiação de velmente formados por óxidos e
poeira, em amarelo, e a estrelas bem quentes, raios cósmi- silicatos. Por outro lado, as estre-
cauda de íons, azulada cos, choques com outros grãos, e las ricas em carbono produzem
(Crédito: ESO/E. Slawik). assim por diante. Essa metamor- grãos de carbeto de silício, carbo-
fose na poeira cria uma nova clas- no amorfo e outros compostos en-
se de grãos chamados grãos inte- volvendo átomos de carbono.
restelares. Eles podem também Como dissemos, os estágios em

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POEIRA INTERESTELAR

que os grãos são lançados ao meio tre outras espécies. Existem estu-
interestelar são as fases evoluti- dos que sugerem que supernovas
vas estelares mais avançadas. No de tipo II — que resultam da e-
caso de estrelas de pequenas mas- volução de uma única estrela de
sas, tal como o Sol, essas fases si- grande massa — podem produzir
tuam-se entre a fase chamada de uma quantidade de poeira da or-
gigante vermelha e a fase de ne- dem da massa do Sol, em um
bulosa planetária. Nesses estágios, tempo de 0.01 a 0.1 bilhões de
as estrelas lançam também uma anos a partir do nascimento da
quantidade significativa de gás, progenitora. Abaixo
Galáxia do Sombrero em
através dos ventos estelares. Partículas de poeira estão pre- iImagem composta com
Por outro lado, estrelas com mas- sentes em diversos objetos este- observações feitas pelo
sas muito grandes também podem lares sendo observadas em nu- telescópio espacial Hubble
e pelo telescópio espacial
produzir grãos de poeira em seus vens interestelares, em discos pro- Spitzer usando uma câmera
estágios evolutivos mais avança- toplanetários, em asteroides e co- infravermelha. A imagem
dos. Tais estrelas têm massas com metas. Nos cometas, os grãos estão revela a poeira em forma
cerca de 10 a 50 vezes a massa misturados a moléculas congela- de anel, vista em vermelho
(Crédito: NASA/JPL-Caltech,
do Sol e terminarão suas vidas das compostas de elementos vo- Hubble).
em eventos explosivos, como su- láteis e serão soltos quando o co-
pernovas. As supernovas também meta se aproximar do Sol, forman-
têm sido consideradas como fon- do uma cauda de poeira. Medidas
te de poeira no Universo e são res- feitas pela missão Stardust da
ponsáveis pela formação de grãos NASA revelaram a presença de
de grafite, diamante, óxidos, en- compostos orgânicos presentes no

REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020 | 33


cometa 81P/Wild 2. Também fo- Solar durante a formação deste.
ram encontrados grãos ricos em Acredita-se que eles sobreviveram,
oxigênio, tais como silicatos mui- inclusive, aos processos da forma-
to similares àqueles encontrados ção do Sol. Como dito anterior-
nos meteoritos Murchison e Or- mente são encontrados em mete-
gueil. oritos primitivos e são reconheci-
A formação de grãos de poeira dos a partir de suas razões isotó-
por estrelas evoluídas não ocor- picas (por exemplo, 12C/13C). Essas
re apenas na Via Láctea; ela tam- razões isotópicas diferem muito
bém é observada em outras galá- das encontradas no Sol, mas quan-
xias. Em geral, em galáxias simi- do confrontadas com modelos de
lares à nossa, a poeira está locali- evolução estelar são compatíveis
zada nos braços espirais, região na com diferentes estágios da evolu-
qual geralmente a matéria é mais ção de uma estrela. Recentemen-
enriquecida. No disco protoplane- te, um grupo de cientistas conse-
tário, que formou nosso Sistema guiu datar a idade de alguns grãos
Solar, a poeira também teve um pressolares do meteorito Murchi-
papel importante, os grãos foram son, mostrando a existência de grãos
se aglutinando até formarem pla- com 7 bilhões de anos (a idade do
netésimos que cresceram, dando sistema solar é de 4,6 bilhões de
origem aos planetas e a peque- anos)! Os pressolares trazem in-
nos corpos. formações genuínas das estrelas
Grãos pressolares que os formaram. A maioria dos
grãos foi formada em estrelas e-
Podemos estudar a poeira de voluídas mais frias, porém existe
uma maneira indireta, através de uma grande quantidade de grãos
observações espectroscópicas no formados por supernovas, novas
infravermelho médio (onde vemos e estrelas Wolf-Rayet. Dessa for-
as assinaturas dos grãos) ou dire- ma, os grãos pressolares auxiliam
ta, em laboratório, estudando os na compreensão e constatação de
grãos presentes em meteoritos. modelos de evolução estelar, a-
De fato, o estudo de meteoritos é lém de confirmar a teoria da nu-
um campo muito importante pa- cleossíntese, isto é a produção de
ra o estudo da poeira. A matéria elementos químicos por estrelas.
mais primitiva encontrada nos Atualmente existem duas mis-
meteoritos são grãos identifica- sões espaciais que devem coletar
dos como grãos estelares, conhe- matéria e trazer de volta à Terra.
cidos como pressolares. Tais grãos A sonda japonesa Hayabusa 2 es-
sobreviveram a diversos proces- tá sobre o asteroide 162173 Ryu-
sos destrutivos e se prenderam gu e a sonda americana Osiris-
em corpos primitivos do Sistema REX que tocará o asteroide Ben-

34 | REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020


nu, coletando matéria de sua su- servadas na região do Trapézio,
perfície. Ambas aumentarão o uma área de formação estelar.
nosso conhecimento relativo aos O fato é que, já há muito tempo,
grãos, preservados ou não. foi proposto por Fred Hoyle e Chan-
As estruturas da poeira geral- dra Wickramasinghe um modelo Esta imagem da região Abaixo
que
mente são complexas, formadas de grão biológico, que sugere que circunda a nebulosa M 78
por um núcleo e camadas super- “a vida é um fenômeno cósmico”. mostra nuvens de poeira
ficiais, os mantos. Os núcleos fo- Tal modelo faz uma conexão en- cósmica atravessadas pela
ram formados nos envoltórios cir- tre grãos orgânicos e biológicos, nebulosa como um colar de
pérolas. Observações no
cunstelares e os mantos podem e a proposta apresentada por e- submilimétrico, feitas com
ter sido formados também nesse les é que cometas que contives- o Atacama Pathfinder
ambiente ou foram depositados sem água e nutrientes orgânicos Experiment (APEX),
nas nuvens do meio interestelar. mostradas
complexos forneceriam um meio usam o calor dos em laranja,
grãos de
O fato é que os núcleos de tais par- ideal para a criação de bactérias. poeira interestelar para
tículas podem permanecer intac- Resumindo, somos todos poeira indicar aos astrônomos
tos, como dissemos, e podem ter de estrelas. • onde novas estrelas estão
trazido ingredientes necessários sendo formadas. Elas são
sobrepostas à imagem da
à vida na Terra. Modelos de grãos Silvia Lorenz & Rayssa Bastos região com luz visível, em
observados no meio interestelar Univ. Fed. do Rio de Janeiro tons azulados (Crédito:
possuem características orgânicas, slorenz@astro.ufrj.br ESO/APEX, T. Stanke et al.,
tais como cadeias imensas com- Igor Chekalin/DSS 2).
postas por benzeno, moléculas que
são conhecidas como hidrocarbo-
netos policíclicos aromáticos (PAH:
Polycyclic Aromatic Hydrocarbon,
em inglês). Esse composto é en-
contrado também nos envoltóri-
os de estrelas de pequenas mas-
sas, em estágios evolutivos avan-
çados. Outros grãos observados
no meio interestelar podem con-
ter moléculas como formaldeí-
dos (H2CO), formadas nas super-
fícies dos grãos nas nuvens inte-
restelares densas e também outras
mais complexas, tais como HC3N,
CH3CHO, HNCO. Formaldeídos tam-
bém já foram detectados e podem
ser transformados em polissaca-
rídeos (H2CO)n e celulose (n = 6).
Essas duas últimas espécies são ob-

REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020 | 35


A campanha

NomeieExoMundos A campanha IAU100 NameExoWorlds permitiu que vários países do mundo

E
nomeassem uma estrela e um planeta, além de criar a regra de nomenclatura
para esse sistema. Descubra aqui curiosidades da campanha!

m comemoração ao seu xoWorlds, que proporcionou a o-


100º aniversário, a União portunidade para que cada país
Astronômica Internacional do mundo nomeasse, através da
(IAU) promoveu e incenti- participação popular, um sistema
vou o desenvolvimento de ativi- exoplanetário a ele atribuído. O
dades ao longo de todo o ano em projeto foi construído a partir de
todas as partes do mundo. Con- experiências prévias obtidas em
gregadas sob o nome IAU100, as 2015, quando a própria IAU re-
comemorações envolveram gran- cebeu propostas de nomes envi-
des projetos mundiais desenvol- adas pelo público, as quais foram
vidos pela própria IAU, ou endos- escolhidas para nomear 31 exo-
sadas por ela. planetas em 19 diferentes siste-
Entre os projetos globais tive- mas planetários.
mos a campanha IAU 100 NameE- IAU100 NameExoWorlds alme-

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A CAMPANHA NOMEIEEXOMUNDOS

jou um passo adiante: ampliar as suas propostas de ação, criação e


culturas representadas no céu a- manutenção do website dedica-
través da oficialização de seus no- do ao projeto, solução de dúvidas
mes, ampliar a participação po- dos participantes, apreciação dos
pular nessa decisão em cada pa- nomes propostos, entre muitas
ís participante e promover uma outras ações.
reflexão sobre como a Terra seria A escolha dos sistemas
potencialmente percebida por u-
ma civilização em outro planeta. exoplanetários
O início do projeto O Comitê Diretor designou a
cada país um sistema composto Na página anterior
Representação artística do
Tudo começou no ano de 2018 por um exoplaneta e sua estrela. sistema exoplanetário HD
quando os preparativos para as Escolheu-se sistemas relativamen- 23079 (Imagem: © David A.
atividades e eventos que seriam te bem semelhantes, de forma que Hardy/www.astroart.org).
realizados no ano seguinte esta- todos os países tivessem a opor- Abaixo
vam sendo germinados. A ideia tunidade de nomear corpos celes- Logotipo oficial da
de permitir que cada país desen- tes em condições similares. Des- campanha IAU1 00
volvesse sua própria campanha de tarte, todos os sistemas seleciona- NameExoWorlds, adaptado
nomeação de um sistema plane- dos compunham-se de apenas um ao português pela Comissão
Nacional Brasileira.
tário foi vista pela IAU como uma único planeta gigante gasoso co-
importante iniciativa pa- nhecido até o momento, e uma
ra aproximar a Astro- única estrela.
nomia ao público.
Deu-se início, en-
tão, à criação do
Comitê Diretor do
NameExoWorlds.
O Comitê Diretor
foi composto por as- Também norteou a seleção, o
trônomos de diversas o- requisito de que cada sistema
rigens, e seus primeiros passos fo- deveria ser observável com o uso
ram o desenvolvimento das re- de um pequeno telescópio a par-
gras de nomeação e as diretrizes tir do país para o qual foi desig-
que cada país deveria seguir ao nado, e nenhum sistema seria ob-
organizar suas campanhas naci- servável a olho nu.
onais. Como o projeto funcionou
Fui convidado a integrar o Co-
mitê Diretor como coordenador A IAU mantém alguns escritó-
geral do projeto, tendo como prin- rios dedicados a fomentar temas
cipais funções a comunicação com específicos relacionados à Astro-
os países participantes, análise de nomia. Um deles é o Escritório

REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020 | 37


A CAMPANHA NOMEIEEXOMUNDOS

dos os países participantes subme-


teram uma proposta descrevendo
como o projeto seria por eles de-
senvolvido.
Cada Comitê Nacional desen-
volveu seu próprio concurso, in-
cluindo um método de promoção
na mídia local e disseminação
entre a população. A forma como
receber as sugestões do público,
análise e filtragem dessas suges-
tões também ficou a cargo dos co-
mitês nacionais, bem como a sub-
missão das propostas seleciona-
das para votação pública. Como as
para Divulgação de Astronomia condições de trabalho variam e-
Acima (OAO), que teve um papel cen- normemente de um país a outro,
Impressão artística de um
exoplaneta visto de sua tral no desenvolvimento do Na- permitimos, àqueles países que
exolua. Arte usada pela meExoWorlds. não tivessem maneiras de realizar
IAU durante a camapnha OAO mantém em diversos paí- uma campanha nacional de vota-
IAU1 00 NameExoWorlds ses um colaborador para ajudar ção, que os nomes pudessem ser
(Crédito: IAU/L. Calçada).
na promoção das ações desenvol- votados internamente entre os
vidas pelo Escritório e também membros do Comitê Nacional. En-
pela IAU. Esses colaboradores são tretanto, as sugestões de nomes
chamados de Coordenadores Na- deveriam ser enviadas exclusiva-
cionais de Divulgação, ou NOC, da mente pelo público.
sigla correspondente em Inglês. Ao fim do projeto, os pares de
Cada NOC ficou responsável por nomes mais votados, bem como
criar um Comitê Nacional para o outros dois pares de reserva, se-
NameExoWorlds, atuando como riam enviados ao Comitê Diretor,
coordenador do projeto em escala e por este analisados. Se o Comi-
nacional, ou indicando outra pes- tê Diretor do NameExoWorlds con-
soa que pudesse liderar o projeto. cluísse que as regras de nomen-
Entretanto, nem todos os paí- clatura foram seguidas, os dois no-
ses possuem um NOC. Para que mes seriam reconhecidos como
todos tivessem a chance de parti- os nomes oficiais de cada exo-
cipar, abrimos uma chamada con- planeta e sua estrela. Entretanto,
vidando interessados em organi- estes nomes não substituiriam os
zar campanhas nacionais em seus nomes técnicos já existentes, mas
países a entrarem em contato en- poderiam ser usados igualmente
viando suas propostas de ação. To- ou em conjunto.

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A CAMPANHA NOMEIEEXOMUNDOS

Além disso, os proponentes dos das Ilhas Cook e Pitcairn, locali-


nomes vencedores seriam reco- zadas no Oceano Pacífico, as quais
nhecidos e receberiam os devi- tiveram a mesma oportunidade
dos créditos. como qualquer outro país. É in-
NameExoWorlds foi lançado teressante notar que as Ilhas Pit-
globalmente no dia 6 de junho de cairn, que são um território ultra-
2019 com uma nota oficial à im- marino britânico, de população de
prensa produzida pela IAU. O pro- apenas algumas dezenas de pes- Abaixo
cesso todo durou cerca de 9 me- soas, participaram do projeto por Posição da estrela
ses, até que os resultados dos 112 iniciativa própria, desvinculados HD 23079, que foi
países participantes fossem anun- do Reino Unido, tendo-nos abor- designada à campanha
ciados no dia 17 de dezembro de dado a partir da nossa chamada brasileira, sobreposta a
uma das pranchas do
2019 numa conferência para a no website. belíssimo Globi coelestis in
imprensa. Foi comum recebermos men- tabulas planas, o atlas
Algumas curiosidades sagens de pessoas do mundo to- celeste confeccionado em
do com sugestões de nomes. Ob- 1674 por Ignace-Gaston
Pardies.
Tivemos a participação bem su- viamente essas não foram acei-
cedida de 112 países. Entretanto,
também tivemos a participação
de outros dois países que não fo-
ram bem sucedidos nas escolhas
dos nomes, enviando propostas
que de alguma forma violaram as
regras de nomeação.
Outros dois países, Afeganistão
e Cambodja participaram das pri-
meiras fases do projeto. Mas, in-
felizmente, não tiveram as condi-
ções necessárias para dar conti-
nuidade e finalizar as atividades.
Estes países terão os sistemas pla-
netários designados a eles garan-
tidos para uma oportunidade fu-
tura.
Para este projeto, decidimos a-
dotar uma abordagem inclusiva
e permitir a participação de to-
dos os Estados Membros da ONU,
Estados Observadores da ONU e
territórios dependentes.
Assim, tivemos a participação

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A CAMPANHA NOMEIEEXOMUNDOS

tas, uma vez que as propostas de- nacional, refletir os diferentes te-
veriam ser enviados diretamen- mas escolhidos para a campanha,
te aos Comitês Nacionais. Vale no- representar diversidade e parida-
tar, entretanto, as diferentes mo- de de gênero, além de potencia-
tivações: enquanto umas queriam lizar a divulgação do projeto na
nomear as estrelas com nomes de mídia nacional e nas escolas. A
seus namorados, outras pretendi- comissão foi montada em março
am que seus entes queridos já de 2019 e as primeiras reuniões
falecidos fossem homenageados (todas virtuais) ocorreram a par-
no céu. tir da primeira semana de abril
Ao todo, mais de 700 000 pes- desse ano.
soas participaram diretamente do Inicialmente, a Comissão Naci-
projeto, seja submetendo propos- onal decidiu internamente quais
tas de nomes para seus respecti- seriam os temas gerais dentro dos
vos comitês ou votando nos seus quais propostas de nomeação se-
nomes favoritos. riam aceitas. A metodologia pro-
A Campanha no Brasil posta pela IAU serviu de base pa-
ra a discussão, considerando que
Como NOC pelo Brasil, também a escolha deveria ser "entre nomes
me coube a tarefa de selecionar de coisas, pessoas ou lugares de
a Comissão Brasileira que faria a significado cultural, histórico ou
gerência da campanha. A seleção geográfico de longa data, dignos
foi feita de maneira que a Comis- de serem memorizados pela no-
são pudesse abranger a diversida- meação de um objeto celeste".
de da comunidade astronômica Com isso em mente, a Comissão
Nacional selecionou os seguintes
Comissão Nacional Brasileira temas gerais:
a) cultura indígena brasileira;
Eduardo Monfardini Penteado b) cultura afrobrasileira;
Representante da União Astronômica Internacional c) literatura brasileira;
Helio Jaques Rocha-Pinto
Vice-presidente da SAB, coordenador da comissão
e a campanha ganhou uma cara
Flávia Pedroza Lima nacional, sendo rebatizada como
Astrônoma do Planetário do RJ NomeieExoMundos.
Josina Nascimento De abril a maio, os trabalhos
Representante da Olimpíada Brasileira de Astronomia voltaram-se para a construção da
Alan Alves Brito
Diretor do Observatório de Porto Alegre
página eletrônica da campanha.
Thiago Signorini Gonçalves A hospedagem acabou sendo an-
Coordenador de Imprensa da SAB corada à própria página do NOC
Eugênio Reis Neto da IAU no Brasil, usando inclusi-
Vice-presidente da Olimpíada Brasileira de Astronomia
Gleici Kelly de Lima
ve parte das ferramentas web de-
Mestranda em Ensino da Astronomia senvolvidas por Felipe Carrelli.

40 | REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020


A CAMPANHA NOMEIEEXOMUNDOS

No dia 17 de abril, o Comitê Di-


retor anunciou para as comis-
sões nacionais qual seria o siste-
ma exoplanetário que lhes cabe-
ria. Desse momento em diante,
soubemos que o Brasil iria nome-
ar o sistema HD 23079, compos-
to por uma estrela de tipo solar,
de magnitude visual 7.5, e seu gi-
gante gasoso, na constelação do
Retículo. Tivemos a possibilidade
de solicitar um outro sistema, mas
não havia uma lista de reservas.
Alguns países lograram realizar
trocas entre si. Teria sido simbóli-
co se a estrela designada ao Bra-
sil estivesse na constelação do Cru-
zeiro do Sul, por exemplo. Mas a
única estrela disponível nessa
constelação foi designada ao Pa-
raguai. Ao fim, consideramos que a Comissão Nacional seguiu à ris- Acima
HD 23079 seria um bom sistema, ca o cronograma submetido ao Classificação final das 14
propostas selecionadas
pois sua estrela central é mais bri- Comitê Diretor da IAU100 Name- para a etapa 2 da
lhante que aquela no Cruzeiro do ExoWorlds. Assim, o lançamento campanha nacional.
Sul, e porque seria a primeira es- do website ocorreu no dia 31 de
trela no Retículo a receber um maio, e o início da campanha na-
nome próprio. cional em 6 de junho.
A arte gráfica usada por boa par- Dessa data até 31 de agosto, re-
te da nossa campanha — e que in- cebemos 977 sugestões de pares
clusive ilustra a capa deste arti- de nomes, uma para a estrela e
go — é uma impressão artística outro para o planeta. Cerca de ⅓
do sistema HD 23079 que o artis- das submissões não seguiram as
ta americano David A. Hardy pro- regras da campanha e foram des-
duziu anos atrás para seu site As- classificadas. Entre as restantes,
troart. Ao tomarmos ciência da e- muitas eram repetidas, ou envol-
xistência dessa ilustração, solici- viam o mesmo nome com grafia
tamos autorização ao artista para variante. Elas foram combinadas
usá-la exclusivamente na campa- e renderam, ao fim, 343 propos-
nha nacional, o que ele gentilmen- tas únicas que a Comissão Naci-
te permitiu, sem qualquer custo. onal avaliou e ranqueou. Ao fim,
Ao longo de toda a campanha, 14 pares de nomes foram seleci-

REVI STA BRASI LEI RA DE ASTRON OM I A | J AN -M AR 2020 | 41


A CAMPANHA NOMEIEEXOMUNDOS

Acima onados para a irem à votação pú- tal de votos três vezes maior do
Tupi e estrelas de blica, que teve início do dia 15 de que a campanha dos EUA, que
constelações próximas que setembro. possui população mais numerosa.
possuem nome próprio
aprovado pela IAU. O Cada um desses pares foi pro- Os três nomes mais votados pe-
tamanho do marcador movido nas redes sociais por um lo público foram elencados em
dessas estrelas na artigo que explicava sua etimolo- uma lista tríplice enviada ao Co-
ilustração não tem relação gia e listava os proponentes. Es- mitê Diretor no dia 13 de novem-
com sua magnitude
aparente (Crédito: ses artigos objetivavam permitir bro, juntamente com um sumá-
Stellarium, Helio J. Rocha- que os proponentes e simpatizan- rio sobre a campanha nacional.
Pinto). tes compartilhassem suas propos- Cabia agora ao Comitê Diretor va-
tas entre amigos para pedir vo- lidar o par de nome mais votado
tos, ampliando assim o alcance da ou, se fosse o caso de nomes in-
campanha. Isso, de fato, ocorreu. válidos, escolher o par seguinte
Mas notamos que muitas pessoas mais votado. Todavia, como espe-
preferiram expor suas escolhas rávamos, no dia 4 de dezembro
nas caixas de comentário das pos- o Comitê Diretor anunciou ao co-
tagens e não votaram pelo sistema ordenador nacional que o par de
que efetivamente computava os nome mais votado pelos brasi-
votos. leiros foi acolhido para o sistema
A votação online prosseguiu a- HD 23079.
té o dia 4 de novembro, quando O anúncio mundial só foi feito
tínhamos computados 7060 votos. no dia 17 de dezembro. A partir
A rigor, muito poucos para um daí a estrela HD 23079 foi oficial-
país de 200 milhões de habitantes, mente batizada de Tupi e o pla-
mas ainda assim um número to- neta HD 23079 b recebeu o nome

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A CAMPANHA NOMEIEEXOMUNDOS

Guarani. Uma vez que a campa- do as propostas de pares de no-


nha também elegeu o tema de mes. Mas quase nenhum veiculou
nomeação de futuras descober- a informação sobre a segunda
tas de cada sistema exoplanetá- etapa, de votação pública nos 14
rio, novos planetas e luas do sis- pares de nomes selecionados. Em-
tema HD 23079 serão sempre ba- bora tenhamos mantido um blog
tizados com o nome de povos in- exclusivo para a campanha, bem Abaixo
dígenas do Brasil. como uma fanpage no Facebook, Infográfico oficial da
Essa homenagem é muito espe- poucos ficaram acompanhando- campanha IAU1 00
cial e mais do que justa aos pri- os diariamente, em busca de no- Nameexoworlds , contendo
meiros habitantes da região on- tícias. A imprensa nacional vol- HD 23079 (Crédito:sistema
os dados oficiais do
IAU).
de se formou nosso país. tou a se interessar apenas na úl-
Uma grande dificuldade que a tima fase da campanha, após o Contracapa
Comissão Nacional encontrou foi anúncio mundial feito pela IAU • Vista aérea do Planetário
da Gávea, no Rio de Janeiro
mesmo a divulgação da campa- (Crédito: Fundação
nha. Muitos veículos da impren- Eduardo M. Penteado & Planetário do Rio de
sa se interessaram pela primeira Helio J. Rocha-Pinto Janeiro).
fase, quando estávamos receben- em nome da campanha
NomeieExoMundos

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