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Editorial

Desde o Iluminismo, nos séculos XVII e XVIII, com suas idéias liberais, o
uso da razão, da ciência e do humanismo tem sido o pilar fundamental
para o espetacular desenvolvimento da humanidade nos últimos três
séculos. John Locke, o “pai do Iluminismo”, defendeu a razão, a
liberdade dos cidadãos e se colocou contra o absolutismo. Seus ideais
estão no alicerce da sociedade moderna, em plena segunda década do
terceiro milênio, por mais que tenhamos momentos de desesperança e
apreensão. É preciso reafirmar os ideais iluministas, é preciso
disseminar cada vez mais a idéia de que somente através da razão e da
ciência poderemos alcançar um estado de direito social e uma
democracia plena.

Vivemos um momento de grande circulação de informação sobre quase


todos os temas, científicos ou não, em todos os tipos de mídia. A cada
dia testemunhamos o aparecimento de mais e mais divulgadores da
ciência, discutindo assuntos científicos relevantes mas não
necessariamente da forma correta. É neste sentido que a Sociedade
Astronômica Brasileira (SAB), criada em 1974, vem oferecer ao público
em geral um material que possa preencher esta lacuna existente nos
meios de comunicação. Lançando a Revista Brasileira de Astronomia
(RBA), a SAB vem cumprir seu papel de zelar: pela liberdade de ensino e
pesquisa; pelos interesses e direitos dos astrônomos; pelo prestígio da
ciência do País; e além disso estimular a pesquisa, o ensino e a
divulgação da Astronomia no Brasil.

A despeito de um certo pessimismo quanto aos rumos que o mundo está


trilhando e um crescente ceticismo em relação às instituições
modernas, é importante lembrar que os ideais iluministas — razão,
ciência, humanismo e progresso, são atemporais e são imprescindíveis
no momento atual. A SAB, com o lançamento da RBA, vem participar
deste processo de reafirmação!

Reinaldo Ramos de Carvalho


Presidente da Sociedade Astronômica Brasileira

Esquerda
Detalhe de imagem da Nebulosa Carina (NGC 3372).
Crédito: ESO.
Capa
Representação de um buraco negro.
Crédito: NASA/SOFIA/Lynette Cook
ÍNDICE E EXPEDIENTE

Revista
Brasileira 4 Conheça a nossa
Galáxia
de Astronomia
O Sistema Solar encontra-se num
produzida pela sistema estelar muito maior, conhecido
Sociedade Astronômica Brasileira como a Galáxia. Saiba mais nesse artigo
de Basílio Santiago.
Conselho Editorial
Allan Alves Britto, Reinaldo Ramos de
Carvalho, Lucimara Martins, Ramachrisna

12 Buracos negros
Teixeira, Thiago Signorini Gonçalves

Editor
Helio J. Rocha-Pinto Oswaldo D. Miranda conta-nos muitas
curiosidades acerca dos buracos negros,
Contato
secsab@sab-astro.org.br
mostrando que o conceito de uma
estrela escura é até mesmo anterior à
Para anunciar Teoria de Relatividade Geral.
Fale com Rosana no email acima ou ligue
(11) 3091-8684, Seg. a Sex. 10 às 16 h.

Para submissões

22 Astronomia
Contacte um membro do conselho editorial

e educação
Por que a Astronomia é tão importante
para a educação das crianças? Cristina
Leite comenta o assunto.

Presidente
Reinaldo Ramos de Carvalho
Vice-Presidente

28 Como ensinamos
Helio J. Rocha-Pinto
Secretário-Geral

as estações do ano?
Ramachrisna Teixeira
Secretário
Allan Alves de Brito
Tesoureira
As estações do ano podem parecer tão
Lucimara Martins
Endereço simples, mas ainda assim confunde
Sociedade Astronômica Brasileira muita gente. O conceito não poderia ser
Rua do Matão, 1226 melhor abordado? Ramachrisna Teixeira
05508-090 São Paulo – SP
escreve sobre isso.
http://www.sab-astro.org.br

REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019 | 3


A GALÁXIA

Conheça a nossa
Galáxia
Longe de ser bem conhecida, a Galáxia ainda surpreende os astrônomos.
Levantamentos estelares profundos realizados nessa década nos ajudam a
entendê-la melhor.

V
ivemos em uma galáxia disco. É a projeção deste disco no
relativamente comum no céu que resulta na faixa de luz
contexto das demais. A difusa e esbranquiçada que corta
maioria das suas estrelas o céu, conhecida desde a antigui-
está distribuída em um dade como Via Láctea. Sobre o
plano, a que chamamos de disco. disco Galáctico encontra-se tam-
O Sol, uma dentre centenas de bém uma grande quantidade (em
bilhões de estrelas pertencentes torno de 15% da massa estelar)
à nossa Galáxia (usamos “G” de gás e poeira, a que chamamos
maiúsculo para nos referirmos de meio interestelar (MI). É desse
a ela), pertence ao disco. Nossa material que se formam novas
Galáxia é, portanto, uma galáxia estrelas, sendo que o meio inter-

REVISTABRASILEIRA
4 | REVISTA BRASILEIRADE
DE ASTRONOMIA
ASTRONOMIA | JAN-MAR
| JAN-MAR 2019
2019
A GALÁXIA

estelar e as regiões de formação barras em seu centro. É uma espi-


estelar que dele resultam se aden- ral barrada, portanto. Esquerda
sam em braços em espiral sobre o Mas nossa Galáxia também tem Foto de Yuri Belesky, no
Observatório Paranal (ESO).
disco. Daí também ser comum estrelas que formam um compo-
chamar galáxias como a nossa de nente esferoidal, cujas partes ex- Abaixo
galáxias espirais. ternas chamamos de halo estelar. Diagrama ilustrativo da
A poeira do MI absorve luz A parte central da Galáxia chama- estrutura da Galáxia. Ao
longo da horizontal, vemos
visível, mas deixa passar radia- mos de bojo. Muitas galáxias disco
o componente planar, o
ção de maior comprimento de possuem um bojo central também disco, é indicada também a
onda, no domínio infravermelho de forma esferoidal. Mas outras, posição do Sol. A faixa
do espectro de radiação eletro- como a nossa, têm um componen- escura representa a
absorção da luz devido à
magnética. Então, estudar o dis- te central na forma de uma ou
poeira do MI. Nas regiões
co da Galáxia é mais fácil no in- mais barras ou estruturas ainda centrais temos uma
fravermelho e em comprimentos mais complexas. É o que chama- representação do bojo e do
de onda ainda maiores, como as mos de pseudo-bojo. Tudo indica núcleo. Neste último é onde
está o buraco negro
ondas de radio. Em especial, esse que o componente central mais supermassivo. O halo
é o caso do centro da Galáxia, que importante da Galáxia seja um estelar envolve todo o disco
fica na direção da constelação de pseudo-bojo. Mas ainda há muito e bojo, onde também
Sagitário. Graças aos estudos em o que aprender sobre ele. situam-se os aglomerados
globulares. A distância Sol-
domínios não-ópticos do espectro Na página anterior, mostra- Centro e o diâmetro do
eletromagnético, hoje sabemos que mos um esquema de como nossa disco estelar são mostrados
nossa Galáxia tem uma ou mais Galáxia apareceria em toda a sua em kpc.

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A GALÁXIA

estrutura se pudéssemos nos dis- externo da Galáxia tem em torno


tanciar dela. Além do disco, do de 1 milhão de anos-luz.
(pseudo-)bojo e do halo, destacam- De fato já sabemos muito sobre
se na figura os aglomerados este- a Via Láctea (o disco Galáctico) e
lares globulares, os quais habi- nossa Galáxia como um todo. Isso
tam o halo. A Galáxia também hos- como resultado de séculos de es-
peda outro tipo de aglomerado, tudos astronômicos que mapea-
os abertos, que habitam predo- ram a sua distribuição de estrelas,
minantemente o disco. São cen- de aglomerados, do MI, e que per-
tenas de aglomerados globulares mitiram estabelecer esse modelo
e milhares de aglomerados aber- estrutural materializado na figura
tos conhecidos. Esse esquema tam- da página inicial. Estudos mais
bém nos ajuda a dimensionar a recentes também analisaram a
Galáxia. Nosso Sol é uma estrela composição química das estrelas,
comum situada a 8,2 kpc do cen- do gás e da poeira, além de medir
tro da Galáxia, equivalente a 27000 as velocidades desse material den-
anos-luz (1 kpc = 3260 anos-luz). tro da Galáxia.
Estrelas são vistas no disco, com As estrelas do disco, por exem-
densidades cada vez menores, até plo, formam um sistema em rota-
distâncias 3 vezes maiores do que ção em torno do centro da Galá-
a do Sol. A densidade de estrelas xia. O Sol orbita o centro com
do halo é ainda menor do que no velocidade de 220 km/s. O estudo
disco e também cai com a distân- da rotação do disco Galáctico, bem
cia ao centro. O halo tem muito como de outras galáxias disco, re-
pouco MI. Isso equivale a dizer vela velocidades acima do que
que a formação de novas estre- deveríamos esperar levando em
las está concentrada no plano do conta o efeito gravitacional das es-
disco. Mas o halo se estende em trelas e do MI. Portanto, parece ha-
todas as direções até centenas de ver mais matéria no interior da
kpc do centro. Ou seja, o raio mais Galáxia, a qual não observamos di-
retamente, mas constatamos seu
Para saber mais efeito gravitacional. A ela chama-
Muitos estudos sobre a Via Láctea estão sendo realizados nos mos de matéria escura. Por ques-
últimos anos. Fique de olho nos seguintes sites: tões de estabilidade gravitacional, a
distribuição dessa matéria escura
Proj eto M ASS: deve ser aproximadamente esfé-
http://irsa.ipac.caltech.edu/Missions/2mass.html rica, semelhante ao halo estelar
Proj eto SDSS: descrito anteriormente. Conhecer
http://www.sdss.org melhor a natureza da matéria es-
Proj eto DE S: cura, que tipo de partícula a com-
http://www.darkenergysurvey.org põe, qual sua massa e outras pro-
priedades, é um dos grandes obje-

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A GALÁXIA

tivos da Física e da Astro-


nomia contemporâneas.
Contrariamente às es-
trelas do disco, as estrelas
do halo não apresentam
um movimento ordena-
do: suas velocidades e ór-
bitas são as mais varia-
das e também variam de
um ponto ao outro.
Em termos da astroquí-
mica, é importante lem-
brar que os elementos
químicos mais abundan-
tes no Universo são o hi-
drogênio (H) e o hélio
(He). Eles são os elemen-
tos mais leves da tabela
periódica. O Sol, por exemplo, tem das e a cor do ponto indica a me- Acima
Distribuição das estrelas do
algo entre 98% e 98,5% de sua talicidade média, expressa na fi- levantamento APOGEE
massa em átomos desses dois e- gura como o parâmetro [M/H], projetada no plano XZ, onde
lementos. Todos os demais ele- que é uma medida da abundân- a coordenada Z é
mentos químicos são chamados cia de átomos de ferro com re- perpendicular ao plano do
disco e a coordenada X está
de metais pelos astrônomos, ape- lação ao hidrogênio. Vemos que sobre esse plano e conecta o
sar de essa definição nada ter a as estrelas de maior metalicida- centro Galáctico (situado
ver com a definição usual da Quí- de tendem a se concentrar mais em (X,Z)=(0,0) kpc) ao
mica. As estrelas do halo estelar perto do centro do disco do que Sistema Solar, situado em
(X,Z)=(8,0) kpc. As cores dos
são comparativamente de baixa as de menor metalicidade. Essas pontos indicam a
metalicidade com relação às do últimas também tendem a formar metalicidade média ([M/H])
disco. Elas têm uma fração de uma distribuição mais espessa. das estrelas em cada ponto
metais bem menor do que o Sol, Nesse disco espesso predominam do espaço, conforme a
barra de cores à direita.
da ordem de 1/10 ou menos des- as estrelas de baixa metalicida- Note que as estrelas fora do
se valor. No disco, as estrelas mais de, mais velhas e com menor ve- plano do disco, que
ricas em metais podem ter duas locidade de rotação. pertencem ao disco espesso
vezes mais metais do que o Sol, e halo, tendem a ter menos
A Galáxia que foge a metais. E ao longo do plano
enquanto as mais pobres, che- do disco, à medida que
gam a 1/10 da metalicidade so- nossos olhos aumenta o valor de X (ou
lar. Na figura acima vemos um Graças à tecnologia aeroespa- seja, da esquerda para a
mapa da nossa Galáxia, seme- cial, hoje conseguimos estudar direita), a metalicidade cai
suavemente.
lhante ao esquema mostrado an- nossa Galáxia em todas as fre-
tes. Mas agora cada ponto é um quências do espectro eletromag-
conjunto de estrelas ali localiza- nético, sem a intereferência at-

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A GALÁXIA

mosférica. novas ou de outras explosões es-


A figura da página ao lado telares, além de binárias de con-
mostra mapas de emissão de di- tato, em que matéria é transferi-
ferentes faixas do espectro, em da em alta velocidade de uma es-
ordem de comprimento decres- trela à sua companheira.
cente da onda eletromagnética. Em raios gama, (os menores
Em todos eles, o plano da Via Lác- comprimentos de onda), predo-
tea sempre se destaca. Nossa Ga- mina a emissão de radiação pela
láxia tem um aspecto marcada- frenagem de raios cósmicos (pro-
mente distinto em cada um des- duzidos, por exemplo, em explo-
ses mapas. sões estelares) pelo MI.
No rádio, vemos o disco em Observações no infravermelho
geral numa configuração bem fi- também revelam que há um a-
na, já que essa radiação mapeia glomerado jovem de estrelas bem
o gás do meio interestelar, o qual no centro Galáctico. E as obser-
está bem assentado no plano Ga- vações em rádio evidenciam a
láctico. presença de uma fonte emissora
No infravermelho próximo, pe- bem compacta, a que chamamos
lo fato já mencionado de que o de Sgr A. Medidas de movimento
MI é transparente para essa radi- das estrelas em torno dessa fonte
ação, vemos então o disco estelar indicam velocidades muito altas.
em todo seu esplendor. Já no in- Deve haver então uma grande
fravermelho distante, vemos u- concentração de matéria num
ma combinação da distribuição volume compacto em Sgr A. Ali
de estrelas frias com a distribui- provavelmente habita um bura-
ção da poeira do MI, que absorve co negro gigante, com uma mas-
a luz óptica, mas emite nessa fai- sa de algumas milhões de estre-
xa do espectro. las como o Sol. Esses buracos ne-
No óptico, a aparência do ma- gros supermassivos (BNSM) são
pa se assemelha ao que vemos bastante comuns no centro das
com nossos olhos. É a tênue e di- galáxias e a nossa não é exceção.
fusa radiação de bilhões de es- Mas este assunto também exigi-
trelas do disco, entrecortada pe- ria um artigo em separado.
la presença das nuvens de poei- Finalmente, uma descoberta
ra do meio interestelar, que blo- recente e muito importante sobre
queiam a passagem dessa luz. nossa Galáxia é a de que há uma
Em raios X, a emissão é domi- grande quantidade de gás quente
nada por objetos relativamente no halo Galáctico. Esse gás está a
raros e em eventos de alta energia baixa densidade, mas emite em
ocorrem ou ocorreram recente- raios X. Sua massa total equivale
mente. São em sua maioria rema- a uns 40 bilhões de sóis.
nescentes de explosões de super-

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A GALÁXIA

A Galáxia inexplorada lém de 50 kpc ainda encontramos


Ainda estamos aprendendo aglomerados estelares e galáxias a-
muito sobre a estrutura de nossa nãs orbitando em torno da Galáxia,
Galáxia. As já mencionadas desco- bem como estrelas suficientemente
bertas de um halo de gás quente luminosas para serem detectadas
emitindo raios X, o debate atual individualmente. Esses objetos são
sobre a estrutura do pseudo-bojo provavelmente a ponta do iceberg
central, ou ainda nosso desconhe- de uma população de estrelas, a-
Abaixo
cimento sobre a natureza da ma- glomerados e galáxias anãs menos Mapas do céu em diferentes
téria escura mostram isso. luminosas, ainda por ser revelada. comprimentos de onda, do
Na verdade, a enorme maioria A julgar pela nossa vizinha galáxia maior, que são as ondas de
das estrelas que já sensibilizaram de Andrômeda, onde vemos subes- radio (quatro mapas
superiores), até o menor,
nossos detectores astronômicos truturas na forma de nuvens e que são os raios X e gama
está situada a 50 kpc do centro correntes estelares a centenas de (dois mapas inferiores). Os
Galáctico ou menos. Mas sabe- kpc do seu centro, o halo de nossa paineis intermediários
mos que o halo estelar da Galáxia Galáxia também deve ter muitas mostram a emissão no
infravermelho e na luz
se estende até distâncias de 300 subestruturas por revelar, as visível.
kpc, ou mesmo um pouco mais. A- quais indicam grandes eventos de

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A GALÁXIA

fusão e acreção de outras galá- ra captar a luz de milhões de es-


xias. Essas subestruturas contam trelas da Galáxia. O Sloan Digital
muito da história de como a Ga- Sky Survey (SDSS) e o Two Micron
láxia foi acumulando matéria e All-Sky Survey (2MASS) foram le-
estrelas ao longo do tempo. E os vantamentos pioneiros que, res-
aglomerados e galáxias satélites pectivamente, coletaram dados de
observados funcionam como um estrelas da Galáxia (entre outros
registro fóssil da população mui- objetos) no óptico e no infraver-
to maior desses objetos que de- melho. Ambos revelaram uma
veria estar presente quando a Ga- grande quantidade de correntes
láxia se formou. estelares e novos satélites orbi-
Fundamental para o estudo da tando o halo estelar. O SDSS e
estrutura e das subestruturas da 2MASS mostraram como vêm
Galáxia é a capacidade de coletar sendo comuns os eventos de a-
dados em todas as direções do céu, creção de sistemas estelares me-
tanto no Hemisfério Norte quanto nores ao longo da evolução Ga-
no Sul. Isso vem sendo feito por láctica.
grandes levantamentos de dados Para ampliar o volume amos-
astronômicos, que usam telescó- trado pelos surveys, é necessário
pio e instrumentos específicos pa- também captar a luz de estrelas

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A GALÁXIA

Na página ao lado
cada vez mais tênues. Isso exige irá operar principalmente na regi- A maior parte da região do
telescópios maiores dedicados a ão do infravermelho, dissecando céu austral coberta pelo
eles. Enquanto o SDSS usou um te- principalmente estrelas frias e jo- levantamento DES é
mostrada em cor de vinho,
lescópio com um espelho de 2,5 m vens, bem como seus envoltórios
limitada por linhas brancas.
de diâmetro, o Dark Energy Sur- de poeira e gás. O Large Synoptic Os círculos em vermelho
vey está usando um telescópio de Survey Telescope (LSST), um levan- mostram a posição no céu
4 m diâmetro. Outra diferença é tamento óptico previsto para co- de vários dos satélites da
Galáxia, galáxias anãs de
que o DES está amostrando o He- meçar em 2022, irá amostrar es- muito baixa potência
misfério Sul, enquanto o SDSS trelas de massa menor do que a luminosa, contendo por
cuidou mais do Hemisfério Norte. do Sol nos mais distantes confins vezes poucas milhares de
Uma das grandes contribuições do halo Galáctico, e até além. Po- estrelas. Esses satélites
foram descobertos nos
do DES foi a descoberta de inú- deremos então estar muito próxi- últimos 3 anos pelos
meras galáxias satélites, corren- mos de ter um censo completo da pesquisadores do DES, com
tes e nuvens estelares em regiões estrutura Galáctica e de suas su- intensa participação
do halo antes ainda inexploradas bestruturas. ▪ brasileira. As duas maiores
satélites da Galáxia, a
em profundidade. A figura da pá- Grande e a Pequena Nuvem
gina anterior mostra uma parte Basílio Xavier Santiago de Magalhães, são
da região do céu coberta pelo DES Univ. Fed. do Rio Grande do Sul mostradas como manchas
e, dentro dela, a posição no céu basilio.santiago@ufrgs.br azuis. A paisagem do CTIO
também é mostrada, com
de vários desses novos satélites destaque para a cúpula do
Galácticos. A figura faz também telescópio que coleta os
uma montagem com a paisagem dados do DES. (Crédito:
do Observatório Interamericano LineA/MCTIC)

de Cerro Tololo (CTIO) e seu te-


lescópio que está coletando os da-
dos.

Um pouco sobre o futuro


Nosso conhecimento sobre a
Galáxia deverá ser muito ampli-
ado nas décadas vindouras. O A-
tacama Large Milimiter Array
(ALMA) é uma rede de antenas
de radio que está mapeando em
grande detalhe as propriedadas
das regiões de formação estelar,
permitindo que conheçamos me-
lhor a física que descreve a con-
versão do gás e poeira do meio
interestelar em novas estrelas. O
James Webb Space Telescope (JWST)
a ser lançado ao espaço em 2021,

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BURACOS NEGROS

Buracos negros
Buracos negros são os mais fascinantes e perturbadores objetos do Cosmos. E
ainda sabemos tão pouco sobre eles!

B
uracos negros são os Michell, colocou a seguinte ques-
mais estranhos e fasci- tão:
nantes objetos do cos-
mos. Embora muitos cre- “Quão massivo um corpo celes-
ditem o conceito buraco te deveria ser para que a luz
negro à teoria da relati- dele não escapasse?”
vidade geral de Einstein, a ideia
fundamental sobre esses objetos Anos mais tarde, e de forma
surgiu muito antes, ao final do independente, o astrônomo fran-
século XVIII. Em 1783, o reve- cês, Pierre-Simon Laplace, colo-
rendo inglês e astrônomo, John cou a mesma questão, tentando

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12 | REVISTA
REVISTA BRASILEIRA
BRASILEIRADE
DEASTRONOMIA
ASTRONOMIA | JAN-MAR
| JAN-MAR 2019
2019
BURACOS NEGROS

entender o papel da densidade de sua complexidade à primeira


de mas-sa na formação e nas vista, mas em parte porque na-
propriedades físicas desses obje- quele tempo ele próprio só pro-
tos, cha2mados a época de es- duzira uma solução aproximada.
trelas escuras. Laplace, em 1796, Entretanto, o sistema de coor-
levantou a seguinte hipótese: denadas de Schwarzschild, base-
ado em um espaço-tempo esferi-
“Devem existir nos céus corpos camente simétrico, foi capaz de
escuros, tão grandes e tão nu- produzir uma solução exata para
merosos quanto as próprias tais equações.
estrelas. Raios de uma estrela A solução encontrada permitiu
luminosa com a mesma densi- identificar que para uma dada
dade da Terra e um diâmetro massa existirá um raio carac-
de 250 vezes a do Sol não nos terístico, conhecido como raio de
alcançariam por causa da sua Schwarzschild, onde, se essa mas-
atração gravitacional; por- sa pudesse ser comprimida para se
tanto, é possível que os mai- encaixar nesse raio, nenhuma for- Esquerda
ores corpos luminosos do ça ou pressão conhecida poderia Representação artística de
um buraco negro diante de
universo sejam invisíveis por impedir que ela continuasse a um campo estelar. (Crédito:
esse motivo.” colapsar em uma singularidade WikiCommons e NASA.)
gravitacional ou buraco negro.
A comunidade científica não Assim, onde o raio do corpo é
deu importância às ideias desses menor que seu raio de Schwarz-
dois precursores dos mundos in- schild, tudo, até mesmo os fótons
visíveis. Assim, as estrelas escu- de luz, devem inevitavelmente
ras ficaram esquecidas por mais cair no corpo central. Quando a
de 100 anos. Em 1915, Albert Ein- densidade de massa desse corpo
stein completou a sua teoria da central excede um limite particu-
relatividade geral (TRG) nos pre- lar, ele desencadeia o colapso gra-
miando com uma das mais belas vitacional que é conhecido como
teorias da física. Com base nessa buraco negro de Schwarzschild.
teoria, o astrônomo alemão Karl A aceitação geral da possibilidade
Schwarzschild, em 1916, obteve de um buraco negro não ocorreu
uma solução matemática exata até a segunda metade do século
das equações de campo de Ein- XX, e o próprio Schwarzschild não
stein. Essa solução ficou conhe- acreditava na realidade física dos
cida como métrica de Schwarz‐ buracos negros; considerava que
schild. sua solução era mais um exercíci-
O próprio Einstein ficou bas- o de física matemática do que a
tante surpreso ao saber que suas descrição de um objeto real do
equações de campo admitiam so- mundo físico.
luções exatas, em parte por causa

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BURACOS NEGROS

A vitória final da força sequência principal. A energia pro-


gravitacional duzida permitirá o aparecimento
Um buraco negro é a conse- de uma força repulsiva para lutar
quência do colapso gravitacional contra a gravidade. Na realidade,
de uma estrela de grande massa. durante a sequência principal, as
Durante sua vida, a estrela quei- estrelas comportam-se como gi-
ma seu combustível para resistir gantescas bombas de hidrogênio
ao peso de sua própria gravida- em explosão perpétua, mas isso
de e evitar que ela desmorone nada tem a ver com as “bombas
em seu centro. Para fazer isso, a H” que os seres humanos são ca-
estrela usa fusão termonuclear pazes de fabricar. Para você ter
que, em temperaturas muito al- uma referência, a usina hidroe-
tas (acima de 15 milhões de Kel- létrica de Itaipu produz, ao longo
vin), fundem átomos de hidrogê- de um ano, cerca de 100 milhões
Abaixo
O tecido do espaço-tempo nio, gerando átomos de hélio e li- de Megawatts-hora. O Sol gera es-
sendo curvado na presença berando uma colossal energia. Es- sa energia em apenas 1 nanosse-
de um corpo com grande se gradiente de temperatura (ou gundo, o que significa que são
massa (Sol). O corpo de
pressão) é o que contrabalança a necessárias 1 bilhão de usinas
menor massa (Terra) sente
essa curvatura e se desloca força gravitacional nas estrelas, como Itaipu, produzindo energia
descrevendo o movimento assim evitando que suas cama- ao longo de um ano inteiro, para
orbital. A força gravitacio- das mais externas “despenquem” produzir a mesma quantidade de
nal surge como resultado
sobre as camadas mais centrais. energia que o Sol gera em 1 se-
da curvatura do espaço-
tempo. (Crédito: Schwarza, Os astrônomos chamam o pe- gundo.
Divulgador e Youtuber do ríodo em que as estrelas queimam Dependendo da massa com que
Canal Poligonautas.) hidrogênio para produzir hélio de uma estrela inicie sua vida, ela

14 | REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019


BURACOS NEGROS

passará por diferentes ciclos de da quando o Sol atingir cerca de


fusão nuclear: queima de hidro- 7.000 quilômetros de raio (isso é
gênio produzindo hélio, queima quase o tamanho da Terra).
de hélio produzindo carbono… Estrelas em condições de torna-
Chegará, contudo, um momento rem-se estrelas de nêutrons serão
em que a estrela esgotará seu ainda mais compactas. Neste caso,
combustível e não conseguirá os elétrons aproximam-se tanto
mais contrabalançar a sua pró- dos núcleos atômicos que a
pria gravidade. Nesse momento e- maior parte dos prótons serão
xistirão três opções para a estrela convertidos em nêutrons. Estes,
morrer, que serão determinadas por sua vez, sustentarão a gravi-
pela massa da estrela quando for- dade se o remanescente estelar
mada e pela sua capacidade para tiver no máximo 3,2 massas so-
ejetar parte da massa antes do co- lares. Mas o custo, para atingir o
lapso final. equilíbrio gravitacional, será for-
Estrelas que deixem remanes- mar uma estrela ainda mais com-
centes com massa até 1,4 vezes a pacta que a anã branca. Uma es-
massa do Sol tornar-se-ão anãs trela de nêutrons com uma vez e
brancas. Estrelas que deixarem re- meia a massa do Sol terá apro-
manescentes no intervalo de 1,4 a ximadamente 15 quilômetros de
3,2 massas solares se tornarão es- raio. Acima de 3,2 massas sola-
trelas de nêutrons. Estrelas que res, em princípio, nada poderá
produzam remanescentes acima segurar o colapso gravitacional
de 3,2 massas solares resultarão — a estrela se tornará um bura-
em buracos negros — a vitória fi- co negro.
nal da gravidade.
Curvando
O nosso Sol, que se encontra
queimando hidrogênio para pro- o Espaço-Tempo
duzir hélio, tem raio aproximada- A TRG de Einstein entende a gra-
mente igual a 700.000 quilômetros. vitação como resultado da curva-
Quando não tiver mais condições tura do “tecido espaço-temporal”
de produzir energia, suas camadas que a tudo permeia. A forma mais
externas desabarão comprimindo e direta de você entender a
compactando a matéria solar. Os e- gravitação, no contexto da TRG, é
létrons que compõem os átomos imaginar uma cama elástica mui-
do Sol serão “forçados” a se apro- to bem esticada (tipo de brin-
ximar dos núcleos atômicos, atin- quedo que as crianças certamen-
gindo uma situação que os astro- te adoram). Essa cama elástica re-
físicos, e os físicos, chamam de presenta o espaço-tempo. Coloque
degenerescência. A situação de e- uma esfera densa e massiva no
quilíbrio, para contrabalançar a centro do “nosso espaço-tempo”.
força gravitacional, será alcança- Devido à presença dessa esfera,

REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019 | 15


BURACOS NEGROS

a cama elástica se deformará. Se


Velocidade de Escape:
você soltar uma bolinha de gude Aproximando do Raio de
nas proximidades dessa esfera Schwarzschild
massiva, ela se deslocará em di-
reção a parte mais curvada da ca- A medida que a matéria vai
ma elástica. Algo parecido a esse sendo compactada para dimen-
exemplo é o que ocorre com o sões cada vez menores, aumenta
espaço-tempo. Na presença de um a velocidade de escape do seu
objeto massivo, o tecido do espa- campo gravitacional. A grosso mo-
ço-tempo se deformará, fazendo do, essa velocidade depende da
com que corpos de menor mas- razão entre a massa e o raio do
sa, e até mesmo a luz, desloquem- objeto. Por exemplo: a velocida-
se em direção ao objeto que a- de de escape da Terra é 11,2 qui-
tuou como fonte da curvatura do lômetros por segundo; para o Sol
espaço-tempo. é de 618 quilômetros por segun-
Os astrofísicos e os físicos cos- do. Imagine agora que toda a
tumam dizer que as equações de matéria da Terra seja comprimi-
campo de Einstein conectam ge- da para fazer com que a veloci-
ometria (através da curvatura do dade de escape se iguale a da luz.
espaço-tempo) com a física (atra- O resultado é que a Terra pas-
vés das matéria e radiação pre- saria a ter raio de 1 centímetro…
sentes numa certa região do es- dá para imaginar? O Sol passaria
paço). Matéria e radiação (ou luz) a ter raio de 3 quilômetros… In-
dizem ao espaço-tempo como se crível! Se fosse possível compri-
curvar; por outro lado, a curva- mir Terra ou Sol a essas dimen-
tura diz às matéria e luz como sões, geraríamos um buraco ne-
elas devem se comportar. A for- gro.
ça gravitacional é o resultado des- Quando um remanescente este-
sa “união” entre a curvatura do lar tem massa acima de 3,2 mas-
espaço-tempo e os campos (ma- sas solares, a sua própria gravi-
téria e radiação) que permitem a dade faz com que seja atingido o
tudo descrever no universo. raio de Schwarzschild. Você pode

Você sabia?
* O termo buraco negro somente foi introduzido em 1967 pelo físico John Archibald Wheeler.

* Flutuações quânticas do vácuo podem gerar pares partícula–antipartícula mesmo no espaço-tempo


plano. Isto é, em regiões do espaço-tempo longe de fontes de campo gravitacional. Contudo, próximo do
horizonte de eventos de um buraco negro, o processo pode ser bem mais eficiente.

* A colaboração científica LIGO reúne mais de 1.000 cientistas ao redor do mundo.

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BURACOS NEGROS

tomar o raio de Schwarzschild


Abaixo
do Sol, como referência, e a par- O painel “A” mostra a deformação produzida na estrutura do
tir dele calcular o respectivo va- espaço-tempo por uma estrela de alta massa durante a sequência
lor para qualquer massa de bu- principal (queima de hidrogênio para produzir hélio). O painel
raco negro que deseje. Um bu- “B” mostra a estrela no momento em que inicia o colapso para a
formação do buraco negro. A estrela vai se tornando cada vez
raco negro com 10 massas sola- mais compacta aumentando a curvatura do espaço-tempo. O
res terá, aproximadamente, 30 painel “C” mostra o buraco negro formado. (Crédito: figura
quilômetros. Um buraco negro adaptada pelo autor a partir da referência O Universo numa
com 10000 massas solares terá Casca de Noz de Stephen Hawking).

30000 quilômetros de raio. Para


um buraco negro sem rotação e
sem carga elétrica, o raio de
Schwarzschild representa a fron-
teira de não retorno — ou hori-
zonte de eventos — uma vez ul-
trapassada seria necessário atin-
gir velocidades acima da veloci-
dade da luz para retornar.

Os Diferentes Tipos de
Buracos Negros no
Universo
A grosso modo, em função da
massa, existem três diferentes ti-
pos de buracos negros: buracos
negros estelares, supermassivos e
os miniburacos negros. Esses bu-
racos negros teriam se formado
de diferentes maneiras.
Buracos negros estelares se
formam quando uma estrela mas-
siva entra em colapso (é o caso
que descrevemos acima). Os su-
permassivos, que podem ter mas-
sa da ordem de milhões a bilhões
de massas solares, provavelmen-
te existem nos centros da maioria
das galáxias, incluindo a nossa
própria Via Láctea. Não sabemos
exatamente como os buracos ne-
gros supermassivos se formam,
mas é provável que sejam um

REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019 | 17


BURACOS NEGROS

subproduto da própria formação em 1963, descreve um buraco


das galáxias. Devido à sua loca- negro em rotação mas sem carga
lização, perto de muitas estrelas e elétrica. Já a solução de Kerr-
nuvens de gás, os supermassivos Newman, obtida em 1965, des-
continuam a crescer em massa e creve um buraco negro em rota-
tamanho a partir da rica dieta ção e com carga elétrica. As so-
composta por matérias estelar e luções que ao menos por enquan-
gasosa. No centro da Via Láctea to os astrofísicos consideram as
encontra-se um buraco negro com mais interessantes são as de Kerr
4 milhões de massas solares (por- e Schwarzschild.
tanto, com raio de Schwarzschild Quando um buraco negro está
da ordem de 12 milhões de qui- em rotação, surgirá uma outra
lômetros). região de interesse chamada er‐
Miniburacos negros, com mas- gosfera. Por causa da rotação, o
sa muitíssimo menor que a mas- espaço-tempo ao redor do bu-
sa do Sol, ainda não foram en- raco negro não é apenas curva-
contrados. Contudo, é possível que do, ele é também torcido como
esses objetos tenham se formado um elástico!
logo após o "Big Bang", que su- A ergosfera toca o horizonte de
postamente marcou o surgimen- eventos (ou fronteira de não re-
to do nosso universo cerca de 13,7 torno) nos pólos, estendendo-se a
bilhões de anos atrás. Durante os um raio maior do que este na
primórdios de vida do universo, a região equatorial. Com baixa ro-
rápida expansão do espaço-tem- tação, a forma da ergosfera as-
po poderia ter comprimido maté- semelha-se a um esferóide oblato
ria numa região suficientemente (formato de uma bola de futebol
pequena para contrair, colapsar e americano), enquanto com rota-
formar os miniburacos negros. ções mais altas, a forma asseme-
lha-se a de uma abóbora. O hori-
Outras Soluções para
zonte de eventos de um buraco
Buracos Negros — Suas negro em rotação é menor do que
Implicações o de um buraco negro, de mesma
Embora a solução de Schwarz- massa, sem rotação. Objetos na
schild tenha sido a primeira a des- ergosfera de um buraco negro
crever esses objetos, ao longo do podem escapar da sua atração
século XX outras soluções foram gravitacional. O nome ergosfera
obtidas a partir da TRG de Ein- vem do grego ergon que significa
stein: a chamada solução de Reis- “trabalho” (termo que os físicos
sner-Nordström, obtida entre 1916 muitas vezes usam como sinô-
e 1918, descreve um buraco ne- nimo para energia). Do ponto de
gro sem rotação mas com carga vista teórico, a ergosfera é uma
elétrica. A solução de Kerr, obtida região a partir da qual seria pos-

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BURACOS NEGROS

sível extrair matéria e energia do cional (massa) do buraco negro. Em


buraco negro. Isso porquê a ener- resumo, esse processo faz com que
gia rotacional do buraco negro o buraco negro perca massa —
não está dentro do horizonte de e- fenômeno chamado de evaporação
ventos e sim na sua ergosfera. do buraco negro.
Como o buraco negro em rota- Como esses pares partículas–an-
ção além de curvar o espaço-tem- tipartículas são criados a partir
po ainda o enrola como se fosse de flutuações quânticas, a que
um elástico, quando uma porção escapa do buraco negro compor-
de matéria entra na ergosfera, ta-se como radiação: a radiação
ela poderá se dividir em duas de Hawking. Essa radiação tanto
partes. Caso uma dessas partes pode ser produzida por buracos
caia em direção ao centro do bu- negros em rotação quanto por
raco negro e a outra parte escape buracos negros de Schwarzschild.
da ergosfera então, sob certas con- Contudo, esse mecanismo, radia-
dições, a parte que escapa poderá ção de Hawking, somente se tor-
adquirir energia maior do que nará eficiente para evaporar bu-
quando entrou. Na prática, a fra- racos negros se eles tiverem mas-
ção de matéria que escapa tira sa muito pequena. Por exemplo:
parte da energia de rotação do um buraco negro com 1 massa so-
buraco negro. Esse mecanismo foi lar levará 1067 anos para evapo-
proposto nos anos 60 pelo físico rar (compare com a idade do u-
Roger Penrose. Caso esse processo niverso que é 1010 anos); se o bu-
seja sucessivamente repetido, po- raco negro tiver massa igual a da
deria-se retirar toda a rotação do Lua, levará 1044 anos. Assim, os
buraco negro, transformando-o num buracos negros em condições de
buraco negro de Schwarzschild. evaporar durante o tempo de vi-
Em 1974, Stephen Hawking i- da do universo, através da radi-
dentificou outro mecanismo físi- ação de Hawking, seriam os mini-
co associado aos buracos negros. buracos negros.
Hawking mostrou que próximo
2015: Consagração da TRG
ao horizonte de eventos poderia
ser criado um par partícula–anti- de Einstein
partícula, através de flutuações Desde os anos 70 avolumaram-
quânticas induzidas pela enorme se dados mostrando que buracos
curvatura do espaço-tempo. Esses negros são objetos comuns no u-
pares são produzidos por causa niverso. Contudo, esses dados for-
da energia gravitacional (sinôni- neciam a evidência indireta da e-
mo de massa) do buraco negro. xistência das estrelas escuras de
Caso uma delas ultrapasse o hori- Michell e Laplace. Quando um ob-
zonte de eventos e a outra não, isso jeto cai em um buraco negro, ele
equivalerá a retirar energia gravita- é fragmentado e aquece. À medi-

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BURACOS NEGROS

Acima da que se aquece, começa a emi- buracos negros e que não deixas-
Visão artística de um tir radiação na forma de raios X. se dúvida da sua assinatura obser-
buraco negro supermassivo Essa foi uma das primeiras técni- vacional.
se alimentando de uma
cas utilizadas para “observá-los”. A tão esperada medida direta
estrela próxima. À medida
que a matéria se aproxima Uma outra técnica consiste em ocorreu em 2015. Nesse ano, as-
do buraco negro, aquece observar o movimento de estrelas trônomos usando o Laser Interfe-
passando a emitir raios X. próximas a um buraco negro. A- rometer Gravitational-wave Obs-
(Crédito: NASA/JPL/
nalisando seus movimentos e pe- ervatory (LIGO) realizaram a pri-
CALTECH)
ríodos orbitais é possível estimar meira detecção de ondas gravita-
a massa do corpo central que pro- cionais. Desde então, o instrumen-
duziu esse movimento sobre as to observou vários outros even-
estrelas. É através dessa técnica tos. As ondas gravitacionais de-
que se estima a massa do buraco tectadas pelo LIGO vieram da fu-
negro no centro da Via Láctea. são de dois buracos negros este-
Contudo, todas as inferências a- lares. A forma da onda gravitaci-
través dessas técnicas são indire- onal detectada é a impressão di-
tas. Elas permitiram encontrar gital, única portanto, gerada pe-
um número enorme de candida- las ondulações produzidas no te-
tos a buraco negro ao longo de cido do espaço-tempo pelo movi-
quase quatro décadas… Mas fal- mento orbital de dois buracos ne-
tava a medida direta desses obje- gros.
tos; algo que fosse intrínseco dos As observações do LIGO trou-

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BURACOS NEGROS

Acima
xeram dois aspectos interessantes; escrevesse da seguinte forma: Visão artística da fusão de
em primeiro lugar, corroboraram dois buracos negros
a última previsão da TRG de Ein- “Existem nos céus corpos escu- estelares, um orbitando o
redor do outro. À medida
stein: a existência das ondas gravi- ros, tão grandes e tão nume-
que os objetos vão se
tacionais. Essas ondas foram pre- rosos quanto as próprias es- aproximando, ondulações
vistas por Einstein em 1916 e sua trelas”. ▪ — ondas gravitacionais —
detecção direta constituiu-se num crecentes vão sendo
produzidas no tecido do
dos grandes desafios da física ex-
Oswaldo Duarte Miranda espaço-tempo.
perimental ao longo do século Instituto Nac. de Pesq. Espaciais (Crédito: NASA.)
XX e início do século XXI. Em se- oswaldo.miranda@inpe.br
gundo lugar, mostraram que bu-
racos negros são objetos comuns
e abundantes no universo. Adici-
onalmente, os buracos negros po-
dem se agrupar formando siste-
mas binários e quem sabe múl-
tiplos de buracos negros.
Caso Laplace pudesse revisar
o texto que escreveu há 222 anos
tendo por base o conhecimento a-
cumulado ao longo dos últimos
cem anos, e com especial desta-
que para as recentes observações
do LIGO, quem sabe ele não o re-

REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019 | 21


ASTRONOMIA NO ENSINO BÁSICO

Astronomia na
Educação Básica É possível introduzir conceitos de Astronomia desde a Educação Básica. O tema
é muito importante para a formação de cidadãos conscientes.

O
céu, numa noite estre- complexos, influenciando nossa re-
lada, por si só, proporci- lação com o ambiente e reconstru-
ona satisfação e admir- indo nossas bases sobre o que é e
ação, principalmente pe- como funciona o Universo.
la sua inegável e misteri- A curiosidade do ser humano
osa beleza, bem como pelas sen- pelo Universo tem sido reconhe-
sações de vazio e solidão provo- cida e explorada exaustivamente
cadas. Não é à toa que o fascínio (e até de maneira sensacionalis-
pelos fenômenos celestes tenha ta) pelos meios de comunicação:
levado diferentes culturas a criar são muitas as histórias fantásticas
teorias sobre o Universo desde a com naves espaciais, entes extra-
mais remota antigüidade. O in- terrestres e cientistas estereotipa-
teresse pelo céu levou a huma- dos em astros desconhecidos. Os
nidade a domínios cada vez mais livros infanto-juvenis são reche-

22
22 | REVISTA
REVISTA BRASILEIRA
BRASILEIRADE
DEASTRONOMIA
ASTRONOMIA | JAN-MAR
| JAN-MAR 2019
2019
ASTRONOMIA NO ENSINO BÁSICO

ados de imagens que personificam


os objetos celestes com característi-
cas espelhadas aos seres humanos:
Sol e Lua são representados com sor-
risos, olhos e boca; e planetas são do-
tados de sentimentos (como o de
tristeza em eventuais mudanças de
categorias).
A “ciência” implícita nessas in-
formações é, boa parte das ve-
zes, incorreta e ilógica. Porém,
sendo ela fantástica, cria uma alta
expectativa em relação a eventos
que pouco ou nada têm a ver
com os dados astronômicos reais.
São muito freqüentes, em filmes,
naves e astronautas sendo “engo-
lidos” por buracos negros ou ob- mesmo sobre o Sistema Solar são Acima
jetos sendo materializados pela pouco frequentes nos currículos Visita de turma de escola
pública ao Observatório
“captação” de energia ou, ainda, da formação de professor. O do Valongo.
duelos ruidosos no espaço galác- livro didático, por sua vez, apre- (Crédito: Daniel Mello)
tico. Em situações dessa natureza, senta, na maioria das vezes, os
Na página ao lado
é preciso compreender que esses conteúdos fragmentados, pouco
Observatório construído
eventos são característicos de u- profundos, quando não errôneos com peças de Lego.
ma pseudociência e, assim, sep- e, ainda, insuficientes para as ex- (Crédito:
arar o real do fictício. plicações das muitas questões vei- Efraimstochter/Pixabay)
Isso não significa que seja ne- culadas pelos meios de comuni-
cessário limitar a criatividade ima- cação e que povoam o imaginário
ginária das pessoas ou censurar dos estudantes.
filmes de ficção científica e/ou li- Se, por um lado, as temáticas
vros infanto-juvenis, mas não é da astronomia, que sempre nos
de se estranhar que os professo- instigaram ao longo da história
res tenham receio de levar Astro- da humanidade, ampliando nos-
nomia para a sala de aula, sentin- sa visão de mundo e nos conec-
do-se incapazes de suprir as ex- tando à nossa própria história e
pectativas tanto suas quanto de cultura, têm múltiplas possibili-
seus alunos. Aqueles que se aven- dades de interfaces com outras á-
turam, apegam-se aos conteúdos reas do conhecimento, sendo in-
dos livros didáticos, uma vez que clusive reconhecidas pelos distin-
os conceitos científicos envolvi- tos meios de comunicação, por
dos nos estudos sobre as estre- outro, a escola e a formação de
las, galáxias, o Universo, ou até professores de ciências da natu-

REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019 | 23


ASTRONOMIA NO ENSINO BÁSICO

reza negligenciam a necessidade tações do ano”, “dia e noite”, “e-


Acima de se apropriar desse patrimô- clipses” e “latitude ou longitude”
Criança observa Marte ao
nio da humanidade. são mais presentes. Por outro la-
telescópio. (Crédito: Daniel
Mello.) É curioso notar que, ainda que do, temas como “observação dos
essas temáticas sejam pouco a- astros no céu”, “caracterização do
profundadas na escola e que os Sol”, “nebulosas” ou “constelações”
professores tenham pouco conhe- nem sempre estão presentes nos
cimento em astronomia, seus te- programas curriculares no Brasil.
mas quase sempre estiveram pre- Uma análise do cenário pós
sentes nos programas curricula- LBD/1996 e Parâmetros Curricu-
res nacionais e em livros didáti- lares Nacionais (PCN), indica u-
cos de ciências naturais e/ou ge- ma maior consolidação da pre-
ografia. sença da astronomia na Educa-
No 1800 brasileiro, já se pode ção Básica. Ela ganha mais espa-
encontrar uma série de temáticas ço tanto em termos de abrangên-
da astronomia na educação bási- cia de temáticas quanto de fase de
ca. Uma análise de reformas edu- ensino a que se destina.
cacionais brasileiras entre 1850 e Um destaque é preciso ser feito
1950 indica que o ensino da astro- em relação ao Ensino Fundamen-
nomia na escola brasileira não o- tal 1 (EF1). Os PCNs não indicam
correu de forma linear, chegan- temáticas de astronomia para es-
do a existir uma disciplina chama- ta fase, mas a quase totalidade
da cosmographia. É interessante dos livros didáticos continua a
notar ainda que temas como “es- propor o tema. Além disso, o Pro-

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ASTRONOMIA NO ENSINO BÁSICO

grama Nacional do Livro Didático ra a existência da vida como a


(PNLD) cita como obrigatória a entendemos no planeta Ter-
presença da astronomia nos anos ra" (PCN+, 2002, p. 78).
iniciais. Já na educação funda-
mental II (atual 6o ao 9o ano), a Novamente, é preciso ressaltar
astronomia está presente com que uma astronomia nesta pers-
grande ênfase nos PCNs, chegan- pectiva é rara dentre os livros di-
do a ser identificada com o eixo dáticos de física propostos para o
temático Terra e Universo, direci- EM. Nestes, a astronomia é apre-
onada para uma compreensão his- sentada geralmente como motiva-
tórica do desenvolvimento do co- ção ou exemplificação para os es-
nhecimento científico e para uma tudos de outros conteúdos da Fi-
educação científica que valoriza ś ica, com exceção dos conteúdos
a observação dos fenômenos da da Gravitação.
natureza na formulação dos mo- Impossível não notar um des-
delos explicativos. No entanto, os compasso entre as proposições
livros didáticos desta faixa etária dos PCN e as indicações e avalia-
geralmente apresentam a astrono- ções feitas pelo PNLD, não ape-
mia apenas para o 6o ano e cen- nas no quesito "conteúdo" mas
trada na construção de modelos também na abordagem dos te-
abstratos sem muita relação com mas. Muito embora os PCNs te-
a observação da realidade. nham desempenhado um papel
No Ensino Médio (EM), a as- importante na proposição da as-
tronomia também ganha espaço, tronomia na educação básica bra-
nos PCN, com o tema estrutura- sileira, seu caráter foi apenas pro-
dor: Universo, Terra e Vida, trans- positivo. Não há obrigatoriedade de
cendendo o tradicional conteúdo as escolas se adequarem às suges-
“Gravitação” sinalizando uma am- tões dos Parâmetros. Dessa forma,
pliação da visão cosmológica, in- nem mesmo as políticas de gover-
cluindo o posicionar-se nas esca- no, como o PNLD, tem o compro-
las de tempo e espaço do Univer- misso de dialogar com os PCN.
so sem deixar de apresentar, nos Ao analisar livros didáticos de
termos do próprio documento: Ciências e de Física é possível ve-
rificar que a astronomia é abor-
“instrumentos para acompa- dada na maioria dos livros dida-
nhar e admirar, por exemplo, t́ icos de Ciências do Ensino Fun-
as conquistas espaciais, as no- damental e em alguns de Física
tícias sobre as novas descobertas do Ensino Médio. No entanto, seu
do telescópio espacial Hubble, in- enfoque, na maioria das coleções,
dagar sobre a origem do Uni- é distante de temas que propõem
verso ou o mundo fascinante observação do céu ou, ainda, que
das estrelas e as condições pa- objetivam a construção de uma

REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019 | 25


ASTRONOMIA NO ENSINO BÁSICO

visão de Universo como indicado de a observação direta de elemen-


pelo PCN. tos e fenômenos astronômicos a-
Em tom normativo, a Base Na- té a composição, estrutura e lo-
cional Comum Curricular (BNCC), calização do Sistema Solar no
prevista desde a Constituição de Universo, bem como, do Sol co-
1988 (art. 210), deve nortear a cons- mo uma estrela e seu processo
trução de currículos de toda a evolutivo. Nos anos iniciais, su-
Educação Básica brasileira. A a- gere-se maior foco na observa-
nálise deste documento nos per- ção do entorno, do céu e de fenô-
mite avaliar uma presença mar- menos astronômicos, enquanto
cante de temáticas da astronomia que para os anos finais, dá-se
durante todas as etapas da Edu- maior ênfase aos modelos cien-
cação Básica, ampliando os con- tíficos e às articulações entre as
teúdos, em relação aos PCN, tam- observações do céu e os modelos
bém para o EF1. A BNCC do Ensi- explicativos. Para o Ensino Médio,
Abaixo no Fundamental está alicerçada a área de Ciências da Natureza
Crianças de escola pública por unidades temáticas. No caso propõe três competências especí-
de Belo Horizonte de Ciências, são três as unidades ficas e uma delas refere-se à te-
apresentam projeto sobre o
temáticas sendo uma delas, "Ter- mática: "Vida, Terra e Cosmos",
Sistema Solar durante uma
Feira de Ciências em 2012. ra e Universo", proposta do 1o ao na qual a astronomia se faz pre-
(Crédito: Prefeitura de Belo 9o ano. Ela abrange temáticas re- sente, ampliando-se os saberes
Horizonte/Flickr.) lativas à astronomia que vão des- construídos no Ensino Fundamen-

26 | REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019


ASTRONOMIA NO ENSINO BÁSICO

tal, porém com maior ênfase na


dinâmica das interações entre os
corpos celestes, na modelagem
física e matemática dos fenôme-
nos envolvidos e no processo de
construção do conhecimento so-
bre o Universo ao longo da his-
tória e das diferentes culturas.
Pode-se dizer que, por meio da
BNCC, a astronomia está proposta
para toda a Educação Básica bra-
sileira, desde os anos iniciais até o
Ensino Médio. Dessa forma, espe-
ra-se que essas temáticas também
possam estar presentes na formação
de futuros professores, de tal forma
a ampliar os conhecimentos e as re-
lações estabelecidas com as demais
Acima
áreas do saber. Visita de alunos ao
Sabemos que o currículo é re- Observatório do Valongo
sultado de um processo constitu- (Crédito: Daniel Mello).
ído de conflitos e disputas entre
diferentes tradições e concepções
sociais. Apesar de continuidades e
rupturas estarem presentes na
historicidade da astronomia na
Educação Básica brasileira, é pos-
sível perceber que a sua perma-
nência e as ênfases dadas a essa
área de conhecimento nos últi-
mos anos indica o grande poten-
cial da astronomia na educação,
reconhecido por diferentes atores
educacionais e também por pes-
quisadores da área ▪

Cristina Leite
Universidade de São Paulo
crismilk@if.usp.br

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ARTIGO ESPECIAL

REFLEXÕES SOBRE COMO ENSINAMOS


AS "ESTAÇÕES DO ANO"
Ramachrisna Teixeira1, Danilo Miranda Rodrigues1, Letícia Lanza2,
João Paulo Delicato1, Messias Fidêncio Neto1, Michel Paschini Neto3

1
Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas, IAG-USP
2
Instituto de Física, IF-USP
3
Universidade Metodista, UNIMEP-Piracicaba

I. Estações do ano: algo de novo? o Sol em um de seus focos, o Homem continu-


ou, corretamente, associando essas alternânci-
As alternâncias cíclicas de variáveis meteoro- as cíclicas observadas na natureza não à varia-
lógicas (temperatura, índice pluviométrico, etc.) ção da distância Terra-Sol, mas sim à inclinação
e da vegetação, entre outras, facilmente obser- do movimento orbital do nosso planeta (mo-
váveis em muitas regiões da Terra, sempre mar- vimento de translação) em relação à sua ro-
caram a vida do Homem civilizado. Com ob- tação, além de outros fatores locais ou globais
servações atentas, sistemáticas e cuidadosas, no caso das variáveis meteorológicas.
há muito tempo pôde associar esses fenômenos Apesar do tema estações do ano estar, de
às mudanças de posição do Sol em relação às maneira recorrente, presente nas aulas de ci-
estrelas, isto é, à posição que ocupa em sua ências e de geografia, nos respectivos livros di-
trajetória anual aparente ao redor da Terra dáticos, em livros de Astronomia, em textos a-
(ponto de vista geocêntrico) e, posteriormente, cadêmicos voltados para ensino de Astronomia,
à posição da Terra em seu movimento em torno em um grande número de textos na internet e
do Sol (ponto de vista heliocêntrico). na mídia em geral, não é raro nos depararmos
A partir de muitas observações, foi possível com problemas relacionados a uma má compre-
compreender e explicar esses fenômenos celes- ensão desse fenômeno ou a uma simplificação um
tes, inicialmente de um ponto de vista geocên- tanto quanto descuidada em sua abordagem.
trico quando nem se suspeitava que a distância Um erro grosseiro, mas felizmente, não mais
Terra-Sol era variável. A explicação fornecida, tão presente, sobretudo no ambiente escolar, é
corretamente, baseava-se na inclinação da tra- pensar que as variações sazonais do padrão me-
jetória do movimento anual aparente do Sol (e- teorológico e as estações do ano são consequên-
clíptica) em relação ao equador celeste (movi- cias da maior ou menor aproximação da Terra
mento aparente das estrelas de leste para oeste ao Sol ao longo do ano. Esse erro foi tratado de
— rotação). As esferas e os movimentos circula- forma magistral em um texto inspiradíssimo do
res e uniformes do principal modelo de Univer- Prof. Rodolpho Caniato, "Joãozinho da Maré",
so dos gregos antigos tornavam, entretanto, es- que pode ser facilmente encontrado.
sa explicação incompleta e imperfeita. Por outro lado, embora este erro grosseiro es-
Há pouco mais de 400 anos, a ideia de que a teja menos presente, existem ainda incorre-
Terra se movimenta no espaço se incorporou ções, equívocos sutis ou simplesmente aborda-
ao conhecimento. Apesar da órbita elíptica com gens que induzem a erros e que estão se perpe-

28 | REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019


ARTIGO ESPECIAL

tuando. riáveis meteorológicas, embora periódicas, não


Dada a importância e a riqueza desse tema de definem ciclos precisos. Em outras palavras, as
base, convidamos o leitor a refletir sobre a de- estações do ano, digamos, astronômicas, defi-
finição das estações do ano, que nos parece nidas em função dessas 4 posições notáveis que
confusa, sobre sua causa, em geral muito mal a Terra ocupa em seu movimento orbital (sols-
ou erroneamente explicada, suas representa- tícios e equinócios) não coincidem necessaria-
ções através de figuras que podem induzir a er- mente com o início e término de um determi-
ros e suas durações em geral ignoradas ou a- nado padrão meteorológico. Portanto, a tentati-
bordadas com erros. va de encaixar esses padrões em intervalos mui-
to bem definidos por fenômenos naturais,
II. Estações do ano: o que são? deslocamento da Terra entre solstícios e equi-
nócios, não é possível e nem seguida por todos
É muito comum quando tratamos desse os povos.
tema, pensarmos e falarmos em termos de fe- Convenções foram adotadas seguindo a defi-
nômenos meteorológicos e de paisagem. Embo- nição astronômica em alguns casos e em ou-
ra possamos nos deparar com exceções, in- tros, voltando-se para o padrão meteorológico
veste-se muito pouco no conceito de insolação, local. Temos países onde as estações em núme-
na variação de sua intensidade e em alguns ou- ro de 4 têm início e fim em datas distintas da-
tros eventos marcantes associados às estações quelas que utilizamos no Brasil, não correspon-
do ano: duração do dia e da noite, nascer e o- dem aos solstícios e equinócios. Em alguns, os
caso do Sol, altura máxima do Sol, etc. Pior solstícios e equinócios são aproximadamente, ins-
ainda, raras vezes nos perguntamos o que são tantes médios das estações e assim por diante.
as estações do ano. As estações do ano são as Como consequência dessa “indecisão” ou
alterações cíclicas das variáveis meteorológicas “liberdade” em sua definição acabamos encon-
ou regimes distintos da incidência da radiação trando frases como: há lugares que as estações
solar em nosso planeta? do ano são mal definidas; as estações do ano es-
Fica bastante confuso definirmos ou colocar- tão alteradas; no inverno faz frio e no verão faz
mos quase que exclusivamente o foco desse tema calor como se fosse uma regra para todos os lu-
nas alterações das variáveis meteorológicas, gros- gares. Claro que isso não está errado quando es-
seiramente periódicas e dependentes de muitos tamos pensando nas variações dos padrões me-
outros fatores e depois, encaixá-las em intervalos teorológicos em determinados lugares, mas que-
de tempo muito bem definidos, que a Terra gasta rer encaixar isso em uma definição astronômica
para percorrer trechos entre pontos notáveis de não é possível e gera confusão.
sua órbita. Em resumo, a correspondência entre as esta-
Os intervalos de tempo com padrões meteoro- ções do ano e as alterações cíclicas das variáveis
lógicos relativamente distintos não têm a mes- meteorológicas, mesmo onde essas ocorrem de
ma duração em todas as regiões da Terra, não forma marcante, é grosseira. Assim, apesar de
iniciam e nem terminam em datas precisamente sua grande importância, como o início e a dura-
definidas e nem mesmo são necessariamente ção de um ciclo com determinado padrão meteo-
em número de 4. rológico é bastante incerto devido ao grande nú-
Assim, diferentemente dos dias, dos anos, dos mero de variáveis envolvidas, parece-nos funda-
solstícios e dos equinócios as alterações das va- mental investir em outras direções ou, pelo

REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019 | 29


ARTIGO ESPECIAL

menos, também em ou-


tras direções. Em particu-
lar, o cenário no Brasil a-
juda muito pois as esta-
ções do ano são definidas,
ou pelo menos anuncia-
das na mídia e nas escolas,
do ponto de vista astronô-
mico, iniciam e terminam
nos solstícios e equinócios,
muito embora, em diferen-
tes regiões as palavras in-
verno, verão, etc., possam
representar condições me- Figura 1 — Representação da Terra em uma posição qualquer de seu movimento orbital,
teorológicas distintas. ilustrando a maneira equivocada frequentemente utilizada para explicar as estações do ano:
Do ponto de vista astro- inclinação do eixo de rotação em relação ao plano da eclíptica.
nômico existem quatro estações que correspon- hemisfério é máxima ou mínima (solstícios).
dem a quatro regimes distintos de insolação pelos A partir dessa visão, podemos, então, explicar
quais passa a Terra ao longo de um ano. Em ou- por que a insolação total se altera ao longo do
tras palavras, quatro intervalos de tempo, não ano, e não será difícil perceber esse ciclo e dis-
idênticos, gastos para a Terra percorrer ao longo cutir suas consequências aqui na Terra: altera-
do ano, de forma intercalada, o trajeto entre dois ções nos padrões meteorológicos, na paisagem, na
de quatro pontos notáveis, não únicos, de sua ór- agricultura, na duração do dia e da noite, nos
bita: 2 equinócios e 2 solstícios. Nesses intervalos pontos de nascer e ocaso do Sol, na altura máxi-
a diferença de insolação total entre os dois he- ma que o Sol alcança a cada dia, na configura-
misférios da Terra apresenta características dis- ção do céu noturno, etc. Certamente, no caso do
tintas (veja abaixo). padrão meteorológico, com ênfase deve-se mos-
Os equinócios e solstícios são pontos notáveis trar que depende também, de muitos outros fa-
justamente por sinalizarem quando a insolação tores: correntes oceânicas, correntes atmosféricas,
total nos dois hemisférios da Terra é a mesma latitudes, relevos locais, efeito estufa, etc.
(equinócios) e quando a insolação total em um Não se trata aqui de redefinirmos estações do

Definições astronômicas para as estações do ano


Primavera — diferença de insolação total entre os dois Outono — diferença de insolação negativa e decrescente.
hemisférios positiva e crescente. Inicia-se no equinócio dito Inicia-se no equinócio de outono e termina no solstício de
de Primavera (diferença de insolação zero) e termina no inverno (diferença de insolação mínima);
solstício de verão (diferença de insolação máxima);

Verão — diferença de insolação positiva e decrescente. Inverno — diferença de insolação negativa e crescente.
Inicia-se no solstício de verão e termina no equinócio de Inicia-se no solstício de inverno e termina no equinócio de
outono (diferença de insolação zero); primavera.

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ARTIGO ESPECIAL

ano, mas sim de trabalharmos com uma defini- ro induzido pela maneira como negamos a relação
ção que facilite a compreensão daquilo que que- distância–estações do ano. Mesmo que a excentri-
remos descrever: as estações do ano correspon- cidade da órbita da Terra fosse grande, a causa
dem a quatro períodos de insolação distintos pe- das diferenças de insolação entre os dois hemis-
los quais passa a Terra ao longo de um ano e são férios ao longo do ano continuaria sendo a in-
consequência da inclinação entre seus movimen- clinação entre a rotação e translação da Terra,
tos de rotação e de translação. muito embora, nesse caso, as consequências pu-
Notemos que desse ponto de vista, em todas as dessem ser muito diferentes do que são.
regiões da Terra, teremos quatro estações do ano É a inclinação entre os movimentos de rota-
com datas precisamente definidas para seus iní- ção e de translação que define a diferença variá-
cios e términos. Por outro lado, suas consequên- vel ao longo do ano, de insolação total entre os
cias não serão sentidas da mesma maneira em to- dois hemisférios da Terra. Uma maior excentri-
do lugar e sobretudo, dependerão fortemente da cidade alteraria as durações das estações, como
latitude em que nos encontramos. veremos mais adiante, e também, a intensidade
da insolação nos dois hemisférios, mas não os
III. Estações do ano: por que ocorrem? regimes distintos das diferenças de insolação to-
tal entre os dois hemisférios.
Outro aspecto, agora relacionado às suas causas Por outro lado, mais importante ainda, é mui-
e que parece ser uma preocupação grande, to comum nos depararmos com a ideia de que a
principalmente de quem está trabalhando na á- causa das estações do ano, com uma ou outra
rea de ensino de Astronomia ou escrevendo tex- variante, é a inclinação do eixo de rotação da
tos com um cuidado maior do que aquele habi- Terra em relação ao plano de sua órbita ou mais
tual, é realçar que as estações do ano não depen- simplificadamente, em relação à eclíptica (Fi-
dem da distância Terra–Sol. gura 1).
Entretanto, muitas vezes encontramos um A Figura 1 ilustra o que comumente encon-
complemento onde é suge-
rido que a distância não
explica as estações do ano
pois a diferença da distân-
cia Terra–Sol quando a
Terra está no afélio (ponto
de maior afastamento en-
tre a Terra e o Sol) e no pe-
riélio (ponto de maior a-
proximação entre a Terra e
o Sol) é desprezível. Quan-
do levamos alguém a pen-
sar dessa forma, estamos
induzindo-a a acreditar que
Figura 2 — Representação da Terra em uma posição qualquer de seu movimento orbital com
se essa diferença fosse mai-
seu eixo de rotação sem inclinação em relação à eclíptica, deixando claro que ao contrário do
or ela explicaria as estações
que a definição equivocada ressaltada acima sugere, neste caso teremos sim estações do ano.
do ano. Claro, isso é um er-

REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019 | 31


ARTIGO ESPECIAL

Estando atento, não será


difícil perceber que expli-
car as estações do ano como
consequência da inclinação
do eixo de rotação da Terra
em relação ao plano de sua
órbita ao redor do Sol (e-
clíptica) nos leva às seguin-
tes conclusões:
• Se o eixo de rotação da
Terra não estiver inclinado
(Figura 2) em relação ao
plano da órbita, não tere-
Figura 3 — Representação da Terra em uma posição qualquer de seu movimento orbital com mos estações do ano.
seu eixo de rotação perpendicular à eclíptica, deixando claro que ao contrário do que a • Se o eixo de rotação da
definição equivocada ressaltada acima sugere, neste caso não teremos estações do ano. Terra fosse perpendicular
ao plano da órbita, portan-
to a 90° em relação à eclíp-
tica (Figura 3), deveríamos
ter estações do ano extre-
mas.
Na realidade, como sabe-
mos, o que ocorre é exata-
mente o inverso. Se a Ter-
ra tivesse seu eixo de ro-
tação no plano da órbita,
inclinação nula em relação
à eclíptica, como é aproxi-
madamente o caso do pla-
Figura 4 — Representação da Terra em uma posição qualquer de seu movimento orbital neta Urano, teríamos esta-
assinalando a inclinação de seu eixo de rotação em relação à normal à eclíptica (eixo de ções do ano e, neste caso,
translação) como deve ser considerado quando discutimos a causa das estações do ano. com diferenças extremas de
insolação entre os solstícios
tramos para explicar as estações do ano. Chama- de verão e de inverno. Por outro lado, se seu eixo de
mos a atenção para a medida da inclinação do rotação fosse perpendicular ao plano da órbita, 90°
eixo de rotação em relação ao plano da órbita da em relação à eclíptica, como é aproximadamente o
Terra ao redor do Sol. caso de Júpiter, simplesmente não teríamos esta-
Essa e todas as demais figuras utilizadas para ções do ano.
ilustrar essas reflexões encontram-se totalmente Onde está o “erro”? As estações do ano ocorrem
fora de escala, incluindo a excentricidade da órbita devido à inclinação entre os movimentos de rota-
e representam uma visão grosseira do sistema Ter- ção e de translação. Assim, se falamos do eixo de ro-
ra–Sol em perspectiva. tação (definido pelo momento angular do movimen-

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ARTIGO ESPECIAL

to de rotação), temos que relacioná-lo com o “eixo pode ser facilmente encontrado diz respeito à
da translação” (definido pelo momento angular do representação do movimento da Terra ao redor
movimento orbital da Terra: translação), ou seja, com do Sol com o intuito de explicar as estações do
a direção da normal ao plano da órbita terrestre ano. Trata-se de uma simplificação que induz o
como ilustrado na Figura 4. Por outro lado, se leitor a erros,
quisermos falar do plano ou da trajetória do movi- Uma representação da órbita terrestre circu-
mento de translação (eclíptica), neste caso, teremos lar com o Sol no centro tem a vantagem de di-
que relacioná-lo com o equador (plano da rotação) minuir essa “crença” de que as estações do ano o-
e não com o eixo da rotação terrestre. No mínimo, correm devido à alteração da distância Terra–Sol.
se quisermos manter a relação eixo com plano te- Por este motivo, esse caminho tem sido aconse-
mos que ser mais cuidadosos e nos expressarmos lhado por muitos colegas como mais adequado
de outra forma. do ponto de vista didático. O fato de a excentrici-
Assim, se o eixo de rotação da Terra fosse per- dade da órbita terrestre ser muito baixa, também
pendicular à eclíptica (Figura 3) teríamos que sua reforça a utilização da circunferência.
inclinação em relação ao “eixo da translação” ou à Entretanto, embora compreendendo essa su-
normal a eclíptica, seria zero. Os planos do equa- gestão, acreditamos que como trabalhamos com
dor e da eclíptica coincidiriam. Neste caso, não te- a noção de que a órbita da Terra é uma elipse
ríamos, portanto, estações do ano. com o Sol em um dos focos, a utilização da e-
Por outro lado, quando o eixo de rotação estiver lipse para representá-la é mais coerente, nos a-
no plano da eclíptica (Figura 2), significa que equa- proxima da realidade e se torna mais interes-
dor e eclíptica, ou eixos da rotação e da translação, sante, rica e atraente. Essa figura geométrica é
são perpendiculares entre si, e, portanto, ao con- menos comum, deve aguçar a curiosidade, sua
trário do que muitas vezes somos induzidos a pensar, construção é mais complexa e deve gerar mais
teremos sim estações do ano, com invernos e verões discussões, inclusive a respeito da maneira prá-
extremos. tica de traçá-la. Além disso, diante da realidade
Duas maneiras que nos parecem simples e cla- atual das pesquisas em Astronomia, onde já nos
ras de explicar esse fenô-
meno é dizer: as estações
do ano ocorrem devido à
não coincidência dos pla-
nos da rotação (equador)
com o plano da translação
(eclíptica) ou devido à não
perpendicularidade do eixo
de rotação da Terra em re-
lação ao plano de sua ór-
bita (eclíptica).

IV. Estações do ano:


representação gráfica
Figura 5 — Representação das posições da Terra nos supostos instantes de início de verão/
Outro problema sutil que inverno em determinado hemisfério como assinalado na figura.

REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019 | 33


ARTIGO ESPECIAL

deparamos com a descoberta de milhares de e- madas dos inícios de cada estação para 2019.
xoplanetas e inúmeros outros corpos do Sistema É também interessante sempre assinalar nes-
Solar, com órbitas para todos os gostos, talvez sas figuras o início das estações nos dois hemis-
seja preferível trabalharmos com uma órbita férios de tal forma que o leitor perceba algo de di-
mais genérica, elipse, do que com um caso par- ferente do que esperaria encontrar. Em outras pa-
ticular, circunferência. lavras, seria informado, uma vez mais, que quando
Em todo caso, mesmo considerando a órbita é inverno em um hemisfério temos verão no outro
da Terra ao redor do Sol como circular, na re- e vice-versa. Um tom mais claro na porção da Terra
presentação em perspectiva o que se vê é uma voltada para o Sol, ajuda a percepção das diferentes
elipse. Assim, de uma forma ou de outra, en- intensidades de insolação em cada hemisfério ao
contrarmos uma elipse representando a órbita longo das estações.
da Terra com o Sol em um dos focos, e nesses
casos, o problema é que quase sempre a Terra V. Todas elas têm a mesma duração?
no início do verão e do inverno encontra-se po-
sicionada nos vértices da elipse, o que coincide As estações do ano do ponto de vista astro-
com a maior ou menor aproximação Terra–Sol nômico iniciam-se em “pontos notáveis” da ór-
(Figura 5). Note como esta figura induz um lei- bita terrestre: nos equinócios e solstícios. Como
tor menos atento a associar verão/inverno com o módulo da velocidade da translação da Terra é
a distância Terra-Sol. Certamente, o Sol no cen- variável, maior no periélio e menor no afélio, o
tro seria uma solução, a nosso ver menos ade- intervalo de tempo entre esses eventos não é o
quada e em todo caso não única, para esse pro- mesmo. Por exemplo, a Terra levará um tempo
blema. menor para percorrer o trecho entre o solstício
Portanto, dessa forma, além de induzir o lei- de verão e equinócio de outono para o hemis-
tor descuidado ao erro de associar esses ins- fério sul (trecho mais próximo ao periélio) do
tantes à distância Terra-Sol, perde-se uma boa que entre o solstício de inverno ao equinócio de
ocasião de se aproximar da realidade. O verão primavera, trecho mais próximo ao afélio (Figu-
no hemisfério sul, por exemplo, tem início por ra 6). Em resumo, para o hemisfério sul, o interva-
volta do dia 21 de dezembro enquanto que a lo de tempo gasto entre o equinócio de primavera
Terra passa pelo periélio em 4 de janeiro. Como e de outono, trecho que contém o solstício de ve-
consequência, nos aproximaremos mais da re- rão e o periélio, é menor que aquele entre o equi-
alidade com uma representação como sugerida nócio de outono e de primavera, trecho que con-
na Figura 6. Essa figura tem ainda a vantagem tém o solstício de inverno e o afélio. Ou seja, as
de fugir do que se espera levando assim a ques- durações do outono e inverno são maiores que
tionamentos. Como se pode ver, a Terra é mos- aquelas da primavera e verão no caso do hemis-
trada em algumas posições ao longo de sua ór- fério sul. Naturalmente, para habitantes do hemis-
bita (pontos notáveis — solstícios e equinócios), fério norte temos o inverso.
diferentes daquelas, usualmente utilizadas, que Assim, embora a variação da distância Terra-
correspondem grosseiramente ao início das esta- Sol não explique as estações do ano, ela as in-
ções como indicado. Nessa representação, a Terra fluencia definindo, por exemplo, suas durações.
encontra-se exagerada e intencionalmente fora Ainda com relação ao início das estações cabe
dos vértices. Esses pontos correspondem, como outra reflexão quase nunca explorada, mas mui-
assinalado, à posição da Terra nas datas aproxi- to presente nos pensamentos e nas indagações

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ARTIGO ESPECIAL

de alunos, professores e
público em geral: por que,
por exemplo, o solstício de
verão define o início des-
sa estação e não o seu, di-
gamos, ponto médio? Ou,
desprezando-se as peque-
nas diferenças nas dura-
ções das estações, o que di-
fere a primavera do verão?
Como foi dito, o início
das estações do ano na so-
ciedade civil é uma con-
venção e cada sociedade Figura 6 — Representação das posições da Terra na eclíptica nos instantes aproximados para
pode ter a sua. Em Astro- 2019 do início das estações do ano: solstícios e equinócios.
nomia, é diferente e não depende do país ou um tema riquíssimo nas mãos e em geral esque-
do povo. Assim, embora do ponto de vista da di- cido, inclusive do ponto de vista cultural e histó-
ferença da intensidade total de insolação em rico, como consequência de seu vínculo com mui-
ambos hemisférios a primavera e o verão se- tas datas festivas e religiosas que ainda come-
jam praticamente simétricos, do ponto de vista moramos.
dos movimentos e de suas consequências não Como sabemos, de um ano para o outro, o ins-
são. Por exemplo, durante a primavera em um tante de início e/ou término de uma determina-
certo hemisfério a insolação é crescente atin- da estação varia de pouco menos de 6 horas. Isso
gindo um máximo no solstício de verão. Já no se deve ao fato de que o ano das estações, ligado ao
verão, a insolação é decrescente. Onde as alter- Sol, tem aproximadamente 365 dias e 6 horas, en-
nâncias das variáveis meteorológicas acompa- quanto que o ano civil (ano do calendário), con-
nham mais de perto as estações do ano, o verão vencional, tem apenas 365 dias e mais ou menos
será mais quente que a primavera pois inicia-se a cada 4 anos 366 dias (ano bissexto). Assim, um
depois de um período onde o respectivo hemis- ano civil normal irá começar aproximadamente
fério já foi mais aquecido por uma incidência 6 horas antes do ano das estações, isso significa
da radiação solar crescente. que os instantes de início das estações ocorrerão
Os instantes em que se iniciam as estações são aproximadamente 6 horas mais tarde que no
em geral ignorados, mas não pela mídia. Isso é ano anterior. A cada quatro anos, essa defasa-
uma pena, pois discuti-los nos leva a falar da di- gem é compensada com a introdução de mais
ferença entre ano civil e ano das estações. Temos um dia no calendário.

Início e duração das próximas estações do ano VI. Finalmente...


Outono: 20 de março de 2019, às 18:58 (92,7 dias)
Chamamos a atenção e
Inverno: 21 de junho de 2019, às 12:54 (93,7 dias)
discutimos alguns aspectos
Primavera: 23 de setembro de 2019, às 04:50 (89,8 dias)
Verão: 22 de dezembro de 2019, às 01:19 (89,0 dias) relacionados com a defini-
ção, explicação e a caracte-

REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019 | 35


ARTIGO ESPECIAL

rização das estações do ano. São aspectos que Agradecemos ao Divulgador e Youtuber
trazem consigo incorreções que se tornam mais Schwarza do canal Poligonautas pelas figuras e
relevantes tendo em vista a frequência com aos Professores Drs. Mauro Carlos Romanatto e
Roberto Boczko pelas sugestões e
que aparecem. De maneira mais geral, essas
encorajamento.
considerações devem nos alertar e nos levar a
refletir sobre as diferenças ou sobre a fidelida-
de entre o conhecimento científico e aquilo que
circula.
As estações do ano constituem um tema bas-
tante rico que pode e deve ser abordado e ex-
plorado de forma mais cuidadosa e demorada
do que aquela que temos visto. Sua boa com-
preensão está ao alcance de todos. Incorreções
como essas em muitos outros domínios podem
existir também, e neste sentido deixamos o a-
lerta para que estejamos sempre atentos mes-
mo quando o tema abordado seja “muito bem
conhecido”. ▪

36 | REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019


Con h eça a SAB

A Sociedade Astronômica Brasileira (SAB) foi fundada em 1974 pela comunidade de astrônomos
brasileiros e desde então tem promovido reuniões anuais para discussões de trabalhos científicos, além da
promoção de simpósios, reuniões de trabalho e servir de contato com os órgãos vinculados à pesquisa no
país.

Historicamente, a atividade de pesquisa em astronomia no Brasil teve início bem antes da fundação da
SAB, ainda no século passado com a criação do Observatório Nacional (ON), através de um decreto de D.
Pedro I em 15 de outubro de 1827 no estado do Rio de Janeiro. Em São Paulo, a atividade astronômica
remonta ao início deste século e teve prosseguimento com a instalação, no fim da década de 30, do
Instituto Astronômico e Geofísico (IAG), atualmente intitulado Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências
Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP). Ainda hoje, estas duas instituições congregam o
maior número de astrônomos titulados em atividade no país (aproximadamente 60%). O restante da
comunidade está distribuída em algumas Universidades: UFRGS, UFSM, UFSC, UFMG, UFRJ e UERJ, UFES,
UEFS, UESC, UFRN, em Porto Alegre, Santa Maria, Florianópolis, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Vitória,
Feira de Santana, Ilhéus e Natal, respectivamente, e em outros órgãos federais: INPE, ITA e LNA.

Desde o final da década de 60, a pesquisa em astronomia no Brasil experimentou um grande


desenvolvimento graças ao retorno de jovens doutores recém-formados no exterior ao nosso país, que a
partir de então iniciaram a formação de uma nova geração de astrônomos com estudantes formados pelos
vários departamentos de Física, existentes nas universidades. Esta nova fase da astronomia brasileira é
marcada por um grande salto tecnológico provocado pela entrada em operação de vários telescópios de
pequeno porte, do radiotelescópio de Itapetinga e posteriormente pelo telescópio óptico nacional de 1.6 m.
Em consequência as pesquisas astronômicas que antes eram predominantemente teóricas passaram a ter
um caráter mais observacional, sendo baseadas em dados diretamente obtidos pelos nossos
pesquisadores.

Podemos estimar que cerca de 70% dos nossos astrônomos ativos foram formados nesta fase, que inclui
também o processo de implantação de uma estrutura de pós-graduação em astronomia. Normalmente, a
política adotada para a formação deste pessoal consiste ainda hoje, em dar uma formação básica, a nível
de mestrado e doutoramento, e posteriormente enviá-los a centros importantes no exterior para
complementar a sua formação acadêmica e de pesquisa. Atualmente, a formação de mestres e doutores
no país está concentrada no IAG/USP, ON, INPE, UFRGS, UFMG, UFRJ, UFRN e em outras instituições
federais de ensino e pesquisa no país.

Quase todos os doutores em astronomia existentes no Brasil tiveram a oportunidade de estagiar durante
pelo menos 2 anos em observatórios europeus ou americanos. Desta forma, é possível contar no país com
pesquisadores bastante qualificados, com inúmeras publicações em revistas internacionais com
arbitragem. Um bom indicador do nível dos nossos pesquisadores está no fato de que vários dos nossos
astrônomos têm conseguido ver os seus projetos aprovados em observatórios europeus e americanos,
onde o regime de competição é bastante elevado. Além disso, vários astrônomos brasileiros têm mantido
projetos em colaboração com pesquisadores no exterior garantindo assim um contato permanente com
centros mais avançados.

REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2019 | 37


Associe-se à SAB
A SAB aceita candidaturas não só de profissionais que
trabalhem com Astronomia e que tenham concluído a
graduação, mas também alunos de ensino médio,
graduação e astrônomos amadores. Há duas modalidades
de associados da SAB: os individuais e os institucionais

Individuais

Aspirante: Bacharéis ou estudantes de mestrado em


cursos relacionados à Astronomia.

Efetivo: Estudantes de doutorado e pesquisadores


doutores em áreas relacionadas à Astronomia.

Júnior: Estudantes de nível médio ou estudantes


universitários.

Astrônomo Amador: Aqueles que atuam na área de


Astronomia do ponto de vista amador ou que
mantenham colaboração com pesquisadores na área de
Astronomia.

Institucionais

Para Institutos de pesquisa e universidades.

Como se associar

Visite https://sab-astro.org.br/associacao/adesao/

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Detalhe da Via Láctea. Crédito: O12/Pixabay

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Crédito: Heiko Otto/Unsplash
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