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Território e História no Brasil

de Antonio Carlos Robert Moraes

Capítulo IV

Formação Colonial e Conquista de Espaço

Todo processo de colonização tem por origem a expansão territorial de um dado grupo humano, que

avança sobre um espaço novo com intuito de incorporá-lo à sua área de habitação. Contudo, nem toda

expansão resulta diretamente em colonização. Para que ela ocorra é necessário uma efetivação da

ocupação do espaço, isto é, a colonização é um assentamento com certa dose de fixação e perenidade

(mesmo que historicamente transitória). A colônia expressa a instalação do elemento externo, do que chega

àquele espaço.

À colônia corresponde a existência de uma metrópole, que atua como núcleo irradiador do dinamismo

que impulsiona a própria consolidação da colônia e o avanço do movimento colonizador. Portanto, as novas

estruturas criadas no solo colonial devem responder funcionalmente aos interesses da metrópole, aos quais

estão subordinados. A colônia deve ser um anexo territorial do território metropolitano, uma adição de

espaço à economia do país colonizador.

As particularidades inerentes a cada Estado metropolitano já determinam a variedade dos processos de

colonização e da estruturação dos aparatos coloniais. As características da organização sociopolítica de

cada Estado projetam-se nas instituições coloniais por eles geradas, dando uma marca dinástica (depois

nacional) para cada processo colonizador.

A necessidade de estruturas militares de apoio à colonização emerge em todas as situações, sendo

portanto elemento comum a qualquer processo colonial. Há um componente de violência que acompanha

de forma inelutável a apropriação de novas terras quando estas possuem habitantes autóctones, pois eles

devem ser submetidos ao novo poder que se instala. Em geral, tal apoio é conduzido pelo Estado, que

aproveita a ocasião ara reforçar seu controle dos territórios coloniais, com uma mais efetiva presença

institucional (militar, jurídica e administrativa).

O que cabe destacar é que a colonização envolve conquista, e esta se objetivava na submissão das

populações encontradas, na apropriação dos lugares, e na subordinação dos poderes eventualmente

defrontados. A colonização é, antes de tudo, uma afirmação militar, a imposição bélica (mesmo que, num

primeiro momento, diplomática) de uma nova dominação política. As estruturas produtivas preexistentes

devem ser assimiladas à nova ordem,seja pela sua incorporação, seja pela sua destruição.

Assim, a colônia pressupõe o domínio territorial, e este possui um custo para o empreendimento colonial

que necessita ser reposto para torná-lo viável. O processo colonial demandava uma retroalimentação, que

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só podia ser suprida pela apropriação de riquezas entesouradas ou pela exploração dos recursos naturais

da terra. A presença ou ausência de tais insumos atuou como outra mediação particularizadora dos lugares

no mundo extra-europeu.

O colonizador defrontava-se com realidades díspares nas variadas terras do além-mar. A diversidade

de situações locais imperava exigindo certa inventividade dos agentes coloniais para lograr êxito em suas

instalações.

Em meio à variedade, alguns elementos destacavam-se como atrativos locais, podendo ser

considerados verdadeiros vetores da colonização. A existência de estruturas produtivas em funcionamento ,

gerando produtos que possam ser qualificados como mercadoria em qualquer parte do império, emerge

como uma dessas favorabilidades. Outro atrativo que não pode ser minimizado são os estoques

populacionais. A existência de mão-de-obra local disponível aparecia como uma handicap significativo para

o empreendimento colonial. Porém, a presença de populações numerosas e de organizações políticas mais

complexas (estatais, por exemplo) também podia representar maior resistência à conquista, tornando-se

obstáculo ao processo de colonização.

Vetor sempre positivo da realidade local é a presença de recursos naturais raros, com destaque para os

metais preciosos. A existência do ouro ou da prata removia qualquer obstáculo à instalação colonial, pois a

lucratividade do empreendimento sempre compensava o risco e o investimento.

Em qualquer situação, entretanto, o colonizador necessitava montar uma base de assentamento para

suas operações, a qual – na sua perenização – constitui a origem do território colonial. Nessa ênfase,

diferenciam-se colônias de povoamento e de exploração. As primeiras, apresentam laços mais tênues com

os circuitos comerciais, logo são mais autocentradas e autárquicas, e atraem dissidentes religiosos e

minorias culturais europeias. As segundas, devem seu dinamismo às possibilidades de acumulação que

propiciam, sendo os lugares do capital mercantil por excelência, os quais constituem na época os principais

espaços capitalistas do mundo colonial.

Cabe mencionar que o trabalho compulsório – por meio de diferentes modalidades (servidão,

escravidão, etc.) – é outro traço unificador dos processos coloniais na maior parte do globo.

O devassamento e a apropriação de novas terras aparece como um dos componentes constantes dos

processos de colonização, os quais tem assim um caráter extensivo intrínseco. A existência de fronteiras de

ocupação em movimento é, assim, outro elemento caracterizador da realidade colonial.

A atração do interior desconhecido alimentou uma rica mitologia geográfica, composta por lugares

imaginários e espaços oníricos, que acompanha toda consolidação dos impérios coloniais. E essa

imaginação fantástica animou expedições, e contribuiu significativamente para o conhecimento dos espaços

extra-europeus, pois, motivado pelo mito, o colonizador adentrou-se nas hinterlândias de difícil acesso,

embrenhou-se em florestas fechadas e atravessou desertos. Nesse sentido, pode-se concluir que os

atrativos simbólicos imaginados atuaram fortemente na apropriação dos territórios coloniais, a conquista

sendo impulsionada também por mitos e lendas.

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O processo de colonização avança a partir de zonas de difusão, núcleos de assentamento original que

servem de base para os movimentos expansivos posteriores. A consolidação destes núcleos numa rede,

com o povoamento contínuo de seus entornos e a definição de caminhos regulares entre eles, cria a região

colonial.
A colônia é, geralmente, composta de um ou alguns desses conjuntos regionais (preexistentes ou

criados pelo colonizador). Porém, o território colonial vai além dessas unidades, incorporando também

áreas de trânsito sem ocupação perene, e os lugares recém-ocupados com uma colonização não

consolidada. Boa parte da vida colonial transcorre nestes espaços.

Completando essa breve caracterização geográfica da colônia, resta falar dos fundos territoriais,

constituídos pelas áreas ainda não devassadas pelo colonizador, de conhecimento incerto e, muitas vezes,

apenas genericamente assinaladas na cartografia da época. Trata-se dos “sertões”, das “fronteiras”, dos

lugares ainda sob domínio da natureza ou dos “naturais”. Na ótica da colonização, são os estoques de

espaços de apropriação futura, os lugares de realização da possibilidade de expansão da colônia.

O fato de esses espaços não estarem efetivamente colonizados não significa que não tenham sido

objeto de partilha no âmbito da geopolítica intra-europeia. Na verdade, os grandes Estados da Europa

(grandes dinastias) repartiram o mundo extra-europeu, delimitando até mesmo os espaços de expansão

potencial de seus impérios de além-mar. Com isso, definiram grandes áreas de jurisdição formal de cada

metrópole, incluindo nelas grandes extensões de áreas de jurisdição formal de cada metrópole, incluindo

nelas grandes extensões de áreas de expansão futura, isto é, de fundos territoriais. Tais delimitações

ancoravam-se em pactos diplomáticos e/ou em armistícios de guerra, necessitando de revisões a cada

mudança da conjuntura geopolítica interna à Europa. Assim, a cada alteração da hegemonia europeia

assiste-se a uma redivisão do mundo colonial, e, dentro desta, a redistribuição dos fundos territoriais.

A colonização pode, finalmente, ser equacionada como um processo de valorização do espaço,

realizando todas as modalidades já descritas de tal relação: apropriação de meios naturais, transformação

de tais meios numa segunda natureza, apropriação destes meios naturais transformados, produção de

formas espaciais, e apropriação do espaço produzido. A colônia, notadamente nos casos de uma instalação

pioneira, expressa talvez melhor do que qualquer outro exemplo estes momentos de ação da sociedade

sobre o espaço.

Pode-se considerar que as regiões coloniais mais dinâmicas constituíram os alicerces inicias de

construção dos Estados criados a partir das colônias, e os capitais locais desempenharam papel ativo nos

movimentos de emancipação política efetivados.

E óbvio que a variedade histórica desse processo foi imensa, sendo necessário desvendar toda uma

série de particularidades para dar conta de cada movimento de emancipação específico. De imediato, cabe

salientar tratar-se de um processo lento e com cronologia extremamente desigual do ponto de vista

geográfico. Contudo, dadas certas características gerais, é possível falar em Estados de formação colonial

como uma particularidade histórica.

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Para entender os processos de independência e a constituição dos Estados no mundo colonial, é

fundamental bem captar as diferentes heranças presentes em cada caso. As emancipações políticas das

antigas sociedades coloniais podem ser entendidas como processos de superação em seu sentido pleno,

isto é, de negação com assimilação. No geral, a condição periférica não se altera com o novo status político.

Tomando-se o caso americano, e seguindo a interpretação de Darcy Ribeiro, pode-se distinguir três

situações típicas na formação das identidades “nacionais” neste continente. Tem-se os “povos

testemunhos”, que constroem suas identidades remetendo a raízes de um passado pré-colonial (o México e

o passado asteca, ou o Peru e o império inca, aparecem como arquétipos dessa modalidade). Ao lado

destes, aparecem os “povos transplantados”, que se manifestam naqueles territórios onde o processo de

colonização apresentou origem nacional predominante dos povoadores, o que permite que se construa uma

identidade a partir do país de imigração. A terceira situação recobre os chamados “povos novos”, gerados

na mescla de influência dos diferentes povoadores da colônia, estabelecendo identidades específicas

criadas no próprio processo colonizador (para Ribeiro, o caso brasileiro seria paradigmático desse último

tipo).

Nos países de origem colonial, a geografia adquire centralidade ímpar, pois se trata de formações

criadas na conquista de espaços, de formações que tinham na apropriação das novas terras a sua razão de

ser. Nesses países, o espaço a conquistar aparece como eixo estruturador da vida social, que molda as

instituições e as relações vigentes.

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Capítulo V:
O Estado Territorial no Contexto Periférico

Sabemos que as fronteiras são construções históricas que possuem vários pressupostos, entre eles a

constituição dos Estados. Há um componente de submetimento e conquista na definição das fronteiras, que

geralmente tem em sua gênese um caráter bélico. Todavia, sobre este dado genético deve-se desenvolver

todo um processo legitimador, que torna a fronteira também um constructo jurídico, sendo esta dimensão

cada vez mais importante conforme avançamos na história.

A par da base militar, indispensável até hoje, a formação dos Estados nacionais necessita transitar

bastante pelas instâncias de legitimação e convencimento. A afirmação moderna dos Estados passa cada

vez mais pela afirmação de identidades nacionais que, por sua vez, necessitam de bases espaciais

estabelecidas.

A história da nação é sempre uma afirmação da nacionalidade, que no limite justifica a existência do

Estado nacional e o exercício legítimo de seu poder.

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É no contexto de países de passado colonial, mais do que em quaisquer outros, que a geografia e a

história se amalgamam na construção idológica das identidades nacionais. Afinal, como visto, são países

que se formaram num processo de contínua conquista de espaços, numa adição de novas terras ao

patrimônio espacial do colonizador. O apetite territorial sendo, assim, o clã da comunidade de interesses

que impulsionou esse processo, seu elemento básico de identidade, sobre o qual, em muitos casos, vão

apoiar-se os movimentos de emancipação e de afirmação da unidade política. Enfim, em tais países, Estado

e territórios são termos de uma mesma equação, a que introduz a questão nacional.

Em sociedades que têm a diferenciação como norma de estruturação político-social, o discurso liberal

clássico encontra dificuldades para se estabelecer como justificativa formal do poder estatal. O racismo vai

emergir em muitas partes como uma teorização adequada para justificar a ordem reinante, também o

determinismo geográfico aparece com frequência moldando condicionamentos naturais intransponíveis na

formação dos povos e dos Estados.

A construção dos Estados periféricos se faz a partir das heranças coloniais existentes, seja no que

importa aos sistemas de produção, à estrutura político-administrativas, ou mesmo à mentalidade vigente

entre os operadores desse processo. Após efetivar o rompimento dos laços coloniais, tais agentes

deparam-se com uma situação em que dispõem de um território e um projeto de Estado. Essa

disponibilidade ancora-se num reconhecimento externo do processo de independência, o qual deve contar

com a anuência das (ou, ao menos de uma ) potências hegemônicas no cenário internacional. O domínio

territorial e a existência do novo qual não se apõe – antes se articula – à necessidade também de uma

afirmação interna ao novo país.

Em face da dificuldade de delimitar a nação e de gerar uma justificativa nacional, o Estado que se forma

no contexto periférico pode ser definido como “territorial, mas dificilmente como “nacional”.

A formação do Estado muitas vezes sustentou-se num pacto em torno de um projeto “nacional” voltado

para o futuro. Um pacto que amarrava as elites das regiões coloniais incorporada no novo território num

compromisso político comum, o qual teve sempre por fundamento supremo a reprodução do poder de

mando dessas próprias elites sobre seu espaços de dominação, o que acarretava uma séria limitação para

o referido projeto, no que diz respeito a mudanças substanciais na estrutura da sociedade. Perpetuação

oligárquica e Estado patrimonial são faces do mesmo processo que, de berço, embaralhava interesses

públicos e privados na gestão estatal na periferia. Assim, internamente, a possibilidade de formulação de

um projeto nacional conhecia limites políticos bem-demarcados, os quais criavam elos de continuidade com

a anterior estrutura de produção e de poder colonial.

Trata-se, portanto, de Estados frágeis no sentido geral das potencialidades do poder estatal, o que não

significa que não sejam – muitas vezes – despóticos com as populações sob sua dominação política. São

fracos comparativamente aos Estados dos países centrais, no sentido de que não realizam todo o espectro

de ações pó estes desempenhadas. E são frágeis, sobretudo, nas negociações nos fóruns internacionais e

no confronto com os Estados centrais. Enfim, os Estados periféricos vivenciam com frequência uma

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soberania meramente formal sobre seu território, não sendo raros os casos de ingerência estrangeira direta

em seus domínios.

O motivo da subordinação mencionada reside, primeiro, na dependência econômica vivida pelos países

periféricos, que tem grande parte de sua produção comandada ou direcionada por interesses externos. Tal

fato acarreta uma performance da economia nacional reativa aos ditames internacionais, a qual impede um

pleno planejamento de seus destinos sem algum tipo de ruptura com essa posição subordinada.

Não poucas vezes, Estados tirânicos em suas relações internas revelam-se extremamente dóceis na

arena da política externa, devendo boa parte da manutenção de seu poder local a essa docilidade nas

relações com o exterior. Em síntese, quanto maior a fraqueza do Estado, maior a possibilidade tanto de sua

manipulação por interesses estrangeiros como de sua utilização interna por interesses privados.

Vale bem assinalar as razões que estimulam os países centrais do capitalismo a exercitarem

continuamente esse controle político da periferia. Em primeiro lugar, cabe apontar o acesso aos fundos

territoriais como uma motivação de grande importância na história deste modo de produção. A utilização

atual ou futura de recursos raros e/ou escassos demanda essa possibilidade de acesso aos patrimônios

naturais localizado – em sua maior parte – nos territórios periféricos.

A segunda razão que motiva o controle dos Estados periféricos pelos países centrais deriva de uma

função fundamental que deve ser operada pelos organismos estatais nesse contextos: a de adaptar o

território nacional aos requerimentos postos pelos padrões de acumulação internacionais, a cada período

técnico. Isto é, o ritmo e a dinâmica das economias centrais – em constante transformação – demandam

periódicos ajustes tem por agentes principais d difusão os próprios Estados periféricos. Estes suprem seus

territórios das infra-estruturas e equipamentos requeridos por cada nova onda de penetração do capitalismo

naqueles espaços.

A condição periférica expressa, assim, um conjunto de particularidades que necessitam ser

consideradas na análise da história singular de cada país englobado em tal denominação. Existem,

portanto, mediações próprias qualificadoras dessa condição, entre as quais as de cunho geográfico

adquirem relevo ímpar.

A história do Brasil é exemplar no sentido mencionado. O país tem sido concebido como um espaço,

cuja apropriação – erigida como projeto nacional básico – legitimou a ação do Estado desde sua gênese. A

conquista territorial, posta como eixo estruturador da formação brasileira, conheceu várias formulações

legitimadoras, uma das principais é expressa por meio de um personagem paradigmático, que tem na

mobilidade espacial expansiva o seu elemento caracterizador: o “bandeirante”.

A interpretação da “justa” aplicação do princípio do uti possidetis na definição das fronteiras brasileiras,

trazia seu herói implícito, aquele que “desbravando a natureza” e “combatendo índios hostis” havia dilatado

a presença portuguesa nas terras sul-americanas, os bandeirantes: construtores do território e da

“brasilidade”.

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Capítulo VI

Ideologias Geográficas e Projetos Nacionais no Brasil

Nos países de formação colonial a dimensão espacial adquire considerável potência na explicação de

suas dinâmicas históricas, pois a colonização é em si mesma um processo de relação entre a sociedade e o

espaço. A colonização envolve uma sociedade que se expande e os espaços onde se realiza tal expansão,

implicando apropriação da terra e submissão das populações autóctones defrontadas.

Vale salientar que muitas das determinações coloniais permanecem vigentes mesmo após os processos

de emancipação política de tais países, uma vez que a nova ordem política é construída sobre arcabouço

econômico e social gerado no período colonial. No caso brasileiro, a manutenção do escravismo como

relação de produção básica bem atesta o afirmado, constituindo-se no principal elemento de continuidade

na vida social e econômica do novo país.

Se a manutenção do escravismo aparece como elemento de coesão entre elites bastante

regionalizadas, sem dúvida também a manutenção do domínio sobre os fundos territoriais emerge como

outro elemento agregador dos diversos interesses regionais, pelo fato de que todas as economias regionais

vivenciavam processos ou perspectivas de expansão sobre tais fundos. Por isso, manter a integridade do

território herdado da colônia, com as fronteiras estabelecidas nos tratados de Madri, Santo Idelfonso e

Badajós, emerge como importante fator interveniente não apenas na agregação das elites, mas também na

definição da forma monárquica – bastante atípica em solo americano – assumida para o novo Estado.

A adoção da monarquia como forma de governo implicou uma continuidade dinástica que amenizava o

fato emancipatório, visto como perigoso pelos Estados europeus possuidores de vasto impérios coloniais. A

manutenção do Brasil sob o domínio da Casa de Bragança permitia que o processo de independência fosse

equacionado pelas monarquias europeias como uma questão de família, principalmente na conflituosa

conjuntura sucessória de Portugal na época. Com a consolidação da emancipação política as elites

brasileiras iniciam a instalação do novo Estado, num contexto em que dispõem de vasto território dotado de

amplas reservas de espaços ainda não ocupados pela economia agora nacional e de população

relativamente pequena e profundamente clivada pela vigência da escravidão (que, como visto, não apenas

dicotomiza a sociedade como influi na próprias sociabilidade praticada entre homens-livres). O Brasil não

será concebido como um povo e sim como uma porção do espaço terrestre, não uma comunidade de

indivíduos mas como um âmbito espacial.

Tal concepção enraíza-se no pacto oligárquico firmado entre as elites regionais que sustenta as bases

políticas do novo Estado. Controlar a terra e o trabalho, e expandir fisicamente a economia nacional

constituem os alicerces do pacto, que expressa bem a ótica geopolítica que o fundamenta.

A ideia de construir o país atua em primeiro lugar como elemento de coesão entre as próprias elites, ao

dotá-las de um projeto nacional comum. A ideia de construir país legitima plenamente a ação do Estado,

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pois lhe é atribuída a condução desse projeto, e pela magnitude da missão assumida justificam-se também

seus traços autoritários, Omo o centralismo e o uso da violência.

Tal visão instrumental dos segmentos populares expressa-se claramente num debate que atravessa o

pensamento brasileiro por todo o século XIX, adentrando nas primeiras décadas do século XX: com que

povo contamos para construir o país. De novo a ideia de que o Brasil positivo é um lugar, cuja negatividade

advém dos habitantes (o projeto nacional, em certo momento, sendo a substituição da população, leia-se:

seu branqueamento).

Enfim, a ideia de que o país não está pronto e de que urge construí-lo permite uma série de

desdobramentos lógicos bastante úteis para o exercício do poder estatal ou privado. Em síntese, ali onde a

história pouco fornece para a elaboração de uma identidade nacional, os argumentos de índole geográfica

vão possibilitar a elaboração de discursos legitimadores onde o país é visto como um espaço, e mais, um

espaço a ser conquistado e ocupado.

O padrão discursivo básico do século XIX que conforma essa concepção estrutura-se em torno do

conceito de civilização, atribuindo portanto à monarquia brasileira uma missão civilizadora.

A ideia de levar as Luzes para o interior longínquo acaba por conformar uma mentalidade em que a

natureza e os meios naturais originais são associados à situação de barbarismo e atraso, ao passo que é a

devastação do quadro natural e entendida como progresso. Enfim, civilizar é uma outra forma de qualificar a

expansão territorial, que reafirma as determinações da conquista colonial: apropriação da terra e submissão

dos “naturais”.

As ideias aqui expostas vão aparecer em variados discursos e em diferentes propostas de distintos

atores políticos e de diversos setores das elites ao longo do século XIX e das primeiras décadas do século

XX.

Por serem dominantes numa época tais juízos projetam-se nas formulações posteriores que os

superam, constituindo o conteúdo do velho pensar que se reproduz (ao menos como referência negativa)

nos novos discursos. E os anos 30 começam com um novo padrão de interpretação do país, transição já

bastante estudada pela literatura especializada. O papel catalisador que a noção de “civilização” cumpriu

para a antiga mentalidade será agora ocupado pelo conceito de modernização. Modernização implicava no

caso brasileiro necessariamente valorização do espaço. Nesse sentido, o país podia ser novamente

equacionado como âmbito espacial no qual o Estado devia agir para instalar o novo projeto nacional: a

construção do Brasil moderno. E o primeiro governo Vargas, notadamente no período do Estado Novo,

opera a adequação do aparato estatal para realizar tal tarefa, com a criação de órgãos, programas e

normas dedicados à execução de políticas territoriais.

Entre os elementos a se destacar nas ideologias geográficas do Estado Novo salienta-se a

mitologização da hinterlândia e a emergência da tática regional como central na interpretação do Brasil. No

que importa ao regionalismo, a ditadura Vargas não apenas realiza a primeira regionalização oficial do

Brasil, como também assimila o conceito de região no vocabulário oficial do Estado. Vargas define a

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brasilidade como o somatório das culturas regionais do país, concepção que estimula um surto de

construção de identidades e de criação de tradições em diferentes partes do território nacional, como

estratégia mesma de alocação das elites locais no projeto de construção do Brasil moderno.

A consolidação de identidades regionais no país possibilitou que, no pensamento das elites brasileiras,

conflitos sociais fossem equacionados como disputas territoriais, isto é, que embates de classes sociais

fossem tomados como luta entre lugares (repondo visão geográfica da nação). O equacionamento da

questão regional nos anos 50 bem corrobora o afirmado, inicialmente em sua própria centralidade, ao se
definir superação das desigualdades regionais como o projeto nacional básico do país.

O governo JK e o Plano de Metas expressam um momento onde o ajuste entre as ideologias

geográficas e as políticas territoriais do Estado é total e explícito. O discurso e a materialização física das

metas caminham em consonância, com a tarefa estatal de construir o país objetivando-se em agressivas

políticas territoriais, num esforço de produção de espaço ímpar na história brasileira. Nesse turbilhão de

mudanças, em que se destaca um veloz fluxo urbanizador, e num contexto político mais democrático, a

ideia do povo começa a ganhar peso na discussão da identidade nacional.

O golpe militar de 1964 afasta tal discussão da esfera do Estado, reafirmando com força uma visão

geopolítica da atuação governamental, que repõe integralmente a concepção autoritária que identifica o

Brasil com seu território. A Doutrina de Segurança Nacional, que a fundamenta, cabalmente expressa tal

entendimento ao qualificar o cidadão brasileiro contrário à ditadura como o “inimigo interno”, que põe em

risco a integridade e a soberania do país. As noções de modernização e de desenvolvimento perdem seu

componente social e político, passando a qualificar apenas os aparatos produtivos e as infra-estruturas.

Pode-se dizer que a ocupação e ordenamento do espaço atuaram como eixo estruturador do planejamento

autoritário e profundamente centralizado. Essa visão centrada no território fica bem evidente na estrutura

institucional do aparelho de Estado adotada pela ditadura, com o agrupamento de todas as políticas

territoriais – pela primeira vez na história brasileira – num único órgão executor, no caso o Ministério do

Interior, que englobava agências tão distintas (como o Incra, a Funai, o BNH, a Sema, as Superintendências

de Desenvolvimento Regional, entre outras), sendo o nexo entre tais instituições o fato de todas operarem

políticas de produção e organização do espaço.

A Constituição Federal de 1988 espelha bastante essa mentalidade localista e antiestatista, que – de

forma inovadora – não concebe o país numa visão integrada e total do território, e portanto, não estrutura

sua administração em bases geopolíticas. No tocante à gestão das políticas públicas assiste-se na Nova

República a uma grande segmentação e setorização das ações e programas, num processo que já foi

definido como de “balconização” do Estado. Alie-se a isso, como um acentuador do processo, o fato de a

democratização brasileira ter ocorrido num cenário de crise econômica e de forte recessão mundial. E,

também em termos internacionais, de emergência da teses neoliberais, entre elas a proposta do Estado

“!mínimo” e da desregulamentação das economias nacionais.

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Décadas “perdidas”, desmonte do aparato estatal, privatizações, fragmentação das políticas públicas

são elementos associados a um conceito que começa a se hegemonizar nas últimas décadas: a

globalização. Este conceito nomearia um movimento de novos e profundos ajustes nos espaços periféricos,

constituindo segundo seus formuladores uma etapa superior da modernização que ultrapassaria os

Estados, as fronteiras e os territórios.

Finalizando, cabe constatar que a política brasileira – na conjuntura recente – pela primeira vez pensada

sem o território acabou por gerar níveis de conflito institucional interno de grande significado, que revelam

graves fissuras no pacto federativo vigente. A guerra fiscal é um resultado de tal situação, também as várias

disputas judiciais em curso entre os níveis de governo pela competência de legislar em diversas matérias,

entre elas o uso do solo e a utilização dos recursos naturais. Não há como negar uma conjuntura de crise

no federalismo brasileiro, chegando alguns autores a sugerir que se vive um processo de “fragmentação” da

economia nacional.

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Capítulo VII

Geografia Política e História da Geografia no Brasil

A geografia moderna – e, dentro desta, a geografia humana em particular – originou-se no contexto de

afirmação nacional dos Estados europeus, conhecendo grande importância e rápido desenvolvimento

exatamente nos países que vivenciaram dificuldades nesse processo. O caso alemão, com sua tardia

unificação nacional, aparece como paradigmático, fazendo desse país o centro teórico da reflexão

geográfica ao longo de todo o século XIX. Na verdade, as teorias modernas dessa disciplina foram, em

muito, veículos de legitimação das nacionalidades e dos respectivos projetos nacionais.

A plena superação da fragmentação política feudal e da legitimidade dinástica implicava a construção

simbólica de novos laços de coesão social legitimadores da forma estatal de dominação. Nesses países, as

representações espaciais forneceram um elemento de referência negado pela história, pondo a discussão

geográfica no centro do debate ideológico.

A eficácia da visão da geografia, que terá o aparelho escolar como veículo básico de divulgação, residia

na exata correspondência entre as escalas de dominação estatal e de auto-identificação dos sujeitos

individuais. A primeira expressa o princípio fundante da própria soberania, a área de indivisibilidade do

poder do Estado. A segunda fornece aos indivíduos um referencial que os qualifica numa comunidade

(imaginada) de interesses, objetivada pelas próprias ações do Estado nacional.

Meio, paisagem, ambiente, região, são conceitos tomados de outra áreas do conhecimento e

recontextualizados no discurso geográfico num sentido naturalizante que se presta bastante a práticas

retificadoras. Mesmo sem a acentuação finalista do determinismo, as várias correntes da geografia (hoje

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denominada) tradicional, apresentavam enfoque – se não diretamente naturalista – pelo menos altamente

coisificador com respeito aos processos sociais. A qualificação das sociedades pela sua especialidade

aparece como expressão clara de tal enfoque, a naturalização das fronteiras e das nacionalidades serve

bem como exemplificação histórica.

É óbvio que o movimento de constituição do pensamento geográfico moderno conheceu conjunturas e

contextos de formulação díspares, o que alimentou diferenciações internas e polêmicas entre correntes (até

porque essa geografia institucionalizou-se em “escolas nacionais”, assumindo as rivalidades entre os

respectivos países. Um traço, todavia, parece aproximar as várias situações: a centralidade do discurso

geográfico nos momentos de ordenamento ou reordenamento das bases da dominação estatal,

necessariamente momentos de dificuldade na afirmação das identidades grupais. Nos países de formação

colonial, como visto, a questão nacional emerge num quadro de identidade problemática. A ruptura com os

laços tradicionais de dominação (os coloniais) implicava a construção de um novo Estado.

Seria sustentável a hipótese de a centralidade da dimensão espacial nesses países vir acompanhada de

uma valorização explícita da geografia (como a ocorrida nos países centrais), o que redundaria em forte

institucionalidade deste campo no contexto periférico.

O Brasil, nesse sentido, é geneticamente uma invenção lusitana, resultado da expansão de Portugal.

Ontologicamente falando, não existe Brasil sem a instalação portuguesa em terras sul-americanas, e mais,

sem efetiva consolidação dessa presença, processo que leva cerca de dois séculos para se completar.

Além disso, é interessante relembrar que foi somente no bojo da finalização de tal processo que começou a

emergir a existência de interesses autocentrados na colônia, base de uma identidade autóctone. Cabe,

portanto, discutir o que caracterizava o “Brasil” nesse contexto.

De início, vale lembrar que o Brasil é, primeiro, uma figura da administração colonial portuguesa,

denominação que circunscrevia uma parte do império ultramarino, abarcando as áreas do impreciso

domínio lusitano na América do Sul.

Nesse sentido, o Brasil foi sendo composto como entidade político-territorial num processo lento e

cumulativo.

Na verdade, a identidade brasileira no império português afirma-se com sua importância econômica e

estratégica para a metrópole, que se tornou crescente após a restauração portuguesa em 1640, a perda de

posições no Oriente, e a descoberta do ouro nas Minas Gerais.

Tal importância foi bem reconhecida pela geopolítica imperial do Estado português no século XVIII.

Tanto que essa é a matéria central das suas ações diplomáticas na arena europeia no período, o que

resulta na sucessão de acordos de legitimação da posse do Brasil. Estava claro para o Estado

metropolitano que a garantia de sobrevivência da dinastia portuguesa se assentava em muito na

manutenção do domínio sobre as terras brasileiras, maior fonte de ingressos das finanças do reino.

Uma primeira manifestação dessa influência pode ser observada no reforço à centralidade da capital

fluminense no território colonial, que passa a desempenhar função coordenadora antes realizada por

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Lisboa. Cria-se, portanto, um efetivo centro interno no espaço de dominação português na América

meridional.

Vale apontar que a vinda da família real estimulou um surto de conhecimento do território brasileiro,

acelerando um processo de levantamento de lugares que vinha das décadas finais do século XVIII, o qual

objetivou os primórdios da atividade científica no Brasil. Foi realizada uma série de expedições (muito

financiadas diretamente pela coroa) e constituídas as primeira coleções sistemáticas das províncias

minerais, da flora e da fauna dos diferentes quadrantes do espaço sob controle português.

Contudo, se a unidade do Brasil se solidificava aos olhos da geopolítica imperial e da administração

metropolitana (agora instalada em solo americano), tal percepção não é comungada com as elites coloniais.

Estas permanecem imersas num profundo localismo, que não lhes permite pensar um projeto para além dos

limites de suas economias regionais, possuindo posições variadas quanto a suas relações com o conjunto

do império português. Ninguém falava de uma unidade brasileira ou de uma posição unitária da vontade

política desse reino, do qual cada um representava uma parte fragmentada.

A construção do novo país ocorre a partir da herança colonial existente, cuja inércia é particularmente

sensível na estrutura do espaço econômico. Este era constituído por zonas monoprodutoras contínuas e

diferenciadas, funcionando em ritmos e ciclos diacrônicos.

Os perfis e as performances das várias unidades e zonas econômicas que compunham o novo país não

compartilhavam o mesmo tempo. Conviviam no espaço brasileiro desde áreas de grande dinamismo e ritmo

de expansão (como o Vale do Paraíba) até zonas de forte inércia estrutural imersas em estruturas já

arcaicas (como certas áreas da Zona da Mata nordestina).

Num contexto em que a unidade nacional (ou mesmo territorial) não encontrava estruturas materiais de

objetivação, o estabelecimento de um poder central só poderia ocorrer pela sua alocação num dos polos

econômicos preexistentes. Sua instalação acarretou, de imediato, uma hierarquização dos lugares no

interior do antigo território colonial, a qual em certo sentido moldou a conformação territorial do Brasil até a

atualidade.

A localização da corte no Rio de Janeiro atraiu, e ao mesmo tempo em parte explica, o desenvolvimento

e a proeminência do sudeste e da zona cafeeira no território brasileiro. Emergia, assim, a figura do pacto

federativo, instrumento recorrente de aglutinação de interesses e de distribuição espacial do poder político

na história do Brasil. Um bom exemplo das “transformações pelo alto” tão comuns m nossa formação.

O período monárquico representa uma fase de centralização do poder na história política do Brasil, se

comparando à maior autonomia e autarquização da administração dos lugares durante o período colonial,

quando o poder local era – na prática de muitas localidades – quase soberano. O Estado imperial era um

somatório de sistemas de poder espacialmente delimitados, organizado numa estrutura na qual – a partir de

certo nível de abrangência territorial – as esferas públicas e privadas plasmavam-se totalmente, sendo por

isso qualificado por muitos autores como um Estado “patrimonial”. Nesse quadro, o poder local não perde

sua efetividade, antes reforça-se ao se inserir nas redes mais amplas que englobam sua localização.

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A vigência da monarquia amenizava a questão da identidade nacional, pois fornecia uma base dinástica

para a construção do Estado e a legitimação de sua soberania. A forma monárquica definia um centro (não

só geográfico, mas sobretudo político) para uma estrutura de poder altamente pulverizada, razoavelmente

desconexa e que, como visto, funcionava em ritmos diacrônicos; no qual o monarca, mais do que o Estado,

personificava a unidade nacional. De outro lado, a vigência do escravismo e de outras formas de trabalho

compulsório também tornava menos premente a necessidade da doutrinação ideológica e de geração de

ideologias para o consumo popular, num quadro em que a dominação política se exercitava mais pela

violência do que pela hegemonia. Em razão disso, foi na crise da monarquia e do escravismo que a questão

da identidade se aguçou, pondo em pauta uma questão “nacional”.

Tem-se um debate apoiado em argumentos marcadamente geográficos (com muitas alusões a autores,

teorias e conceitos, da geografia), sem que existam geógrafos profissionais ou cursos de geografia no país.

O “geógrafo” do período imperial era uma autodidata, voraz leitor da bibliografia europeia da matéria

copilador de seus antecessores, e atento observador de seu meio regional.

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi fundado em 1838, no bojo do processo de afirmação do

poder do Estado monárquico, tendo por núcleo dirigente exatamente a parcela da elite brasileira que

impulsionou tal processo, e por objetivo atuar para melhor conhecimento do país. Vale mencionar que foi

dos recém-criados cursos de direito (São Paulo em 1897 e em Pernambuco em 1828) medicina (Bahia e

Rio de Janeiro) e engenharia (Rio de Janeiro) que saiu a maioria dos quadros d sócios do IHGB, estando a

discussão sobre os temas da geografia diluída em todas estas faculdades.

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro apresentava-se como representante da Ilustração nos

trópicos, expressão da monarquia ilustrada, que tinha como missão levar a civilização aos sertões,

incorporando as terras brasileiras no cenário das nações sertões, incorporando as terras brasileiras no

cenário das nações civilizadas. Para tanto, tinha em sua pauta de atuação a elaboração da história e da

geografia do Brasil, a serem construídas segundo os padrões de excelência vigentes nos centros europeus.

A recuperação simbólica dos povos indígenas na memória nacional (notadamente por meio do movimento

“indigenista” de inspiração romântica) foi em muito obra de autores do instituto, assim como o foi a definição

inicial das efemérides nacionais.

Ao longo da segunda metade do século XIX, esta instituição foi um dos principais aparatos privados de

hegemonia existente no país, o qual expressava em sua prática a interpenetração com a gestão da coisa

pública imperante na vida estatal brasileira. Dom Pedro II era o presidente de honra da agremiação desde

1851, que apresentava ainda entre seus associados as principais lideranças políticas do período, sendo por

isso um dos fóruns importantes de discussão das questões nacionais.

No decorrer do século mencionado, o instituto conheceu mudanças teóricas que sinalizavam as

transformações nos paradigmas do pensamento social brasileiro. É possível distinguir três gerações que

recobrem o “período áureo” do IHGB. A primeira, a de seus fundadores (em grande parte formados em

Coimbra), preocupou-se fundamentalmente com os levantamentos, os diagnósticos e as coleções,

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manifestando a postura própria dos “naturalistas” em face do meio tropical desconhecido. A meta assumida

por eles era “conhecer o Brasil”, que implicava de início explorar os lugares ainda não cientificamente

analisados, descrevendo suas características.

A segunda geração, já oriunda das recentes faculdades brasileiras, expressava a influência

preponderante do pensamento romântico e, tal como no romantismo europeu, animava-se com os temas

como no romantismo europeu, animava-se com os temas históricos e com o projeto de elaboração de uma

história nacional (como em Michelet). A recuperação simbólica do elemento indígena foi, como visto, traço

marcante do pensamento romântico no país, o qual apontava uma meta de “interpretação do Brasil”, daí a

importância atribuída à construção de uma historiografia nacional, com símbolos e mitos de origem.

Um terceiro agrupamento geracional emerge no bojo da crise do Estado monárquico, agregando vários

dos publicistas republicanos, com auge na belle époque brasileira. Trata-se da geração “cientificista”, que

realizou a importação de modelos teóricos rígidos de corte conservador das matrizes europeias e sua

aplicação na explicação da realidade brasileira. A teoria racista pode ser indicada como uma das principais

importações realizadas, sendo amplamente utilizada na legitimação de diferentes propostas políticas, num

momento de crise do escravismo e, logo, do abastecimento de mão-de-obra no país. Trata-se de uma

geração que usou diretamente a ciência (e a autoridade científica) como instrumento legitimador de ações

político-práticas, entre elas a instalação do regime republicano.

Nesse contexto, vale lembrar a rápida difusão e assimilação das teses do determinismo geográfico, que

constituirão outra vertente interpretativa importante no equacionamento da formação brasileira. No geral,

contudo, o determinismo geográfico foi utilizado para naturalizar um “destino nacional”, inscrito na

conformação territorial do país.

Um número mais restrito de autores vai remeter-se diretamente às formulações de Friedrich Ratzel,

entendendo que as potencialidades contidas no patrimônio natural e territorial só poderiam ser

substantivadas com o concurso de um Estado forte. O pensamento geopolítico desponta então como

variante nas teorizações que afirmavam a necessidade de um Estado forte, dando clara ênfase na ideia da

expansão territorial como caminho do progresso nacional.

Enfim, no período de substituição o trabalho escravo pelo trabalho livre, e de construção da ordem

republicana, a visão da identidade pelo espaço parece adquirir singular relevo na representação simbólica

do Brasil. A mudança da forma de governo repunha o tema da unidade nacional e do ordenamento (ou

reordenamento) do Estado. Tem-se uma época de desenvolvimento tanto do processo de produção material

do espaço brasileiro, isto é, de valorização objetiva de seu território (de construção de sua geografia

material), quanto de sua produção simbólica, com a apropriação intelectual e a representação discursiva de

variados lugares do país (logo, de sua valorização subjetiva). As instituições dedicadas ao tema

multiplicaram-se n virada do século XX, com um surto de criação de institutos históricos e geográficos

estaduais e de outros órgãos congêneres, num quadro no qual merece se destacada a fundação da

Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro em 1883. Tal agremiação foi responsável por uma renovação do

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debate geográfico local, estimulando a realização dos primeiros congressos e a criação do pioneiro curso

superior da matéria no país.

Os primórdios da República Velha estimularam um ensaísmo denso de argumentação própria da

geografia, que reafirmavam a legitimação do Estado na ocupação do espaço.

A experiência descrita repousava num pacto político no qual as elites das áreas economicamente

decadentes trocavam a perpetuação de suas posições de comando nas respectivas redes locais e

regionais, pelo apoio à implementação de projetos que acentuavam gradativamente a posição subalterna de

tais áreas na divisão territorial do trabalho em montagem no país.

As primeiras décadas do século XX foram de grande dinamismo na formação brasileira, experimentando

não apenas um significativo crescimento econômico e demográfico, mas também uma complexização

considerável na composição da população. O trabalho livre, a industrialização e a urbanização atuaram para

tornar a sociedade brasileira mais diversificada culturalmente e submetida a relações econômicas e políticas

mais variadas.

Nesse contexto, alargava-se também o espaço d atuação dos intelectuais, alçados muitas vezes à

condição de arautos da modernidade por exemplo na defesa das grandes intervenções urbanísticas em

curso nas grandes cidades brasileiras.

Pode-se considerar que o conhecimento geográfico acompanhou essa efervescência cultural vivida pelo

país, que se expressou em novo surto de divulgação da disciplina, agora capitaneado pela Sociedade de

Geografia do Rio de Janeiro. Nova onda de explorações do território ocorre no período, impulsionada seja

por motivações diplomáticas (de delimitação de fronteiras, como as de Euclides da Cunha na Amazônia)

seja científicas (exemplificada nas pesquisas médicas de Osvaldo Cruz). Cabe salientar a estruturação

institucional do exército brasileiro no período, processo que mostra uma progressiva profissionalização (que

culmina com a vinda de instrutores franceses em 1920) e no qual o conteúdo de geografia ensinado era

significativo, fato já é visível na marcante presença de militares nos quadros do IHGB e da SGRJ.

Também observa-se no período em foco uma dinamização no que tange à publicação de estudos e

manuais de geografia do Brasil. Destacam-se no grupo as figuras d Delgado de Carvalho, Everardo

Backheuser, Raja Gabaglia, Artur Orlando e José Veríssimo, como os pioneiros de uma geografia

profissional no país.

A revolução de 1930 foi, de certo modo, o desembocadouro desse dinamismo, expressando as

demandas de uma sociedade que se tornava mais complexa que a estrutura político-estatal existente.

Novamente, pensar o Brasil aparece na pauta de todas as forças políticas presentes no cenário nacional, e

várias dessas vertentes se orientam por ideários autoritários que repõem a visão do país como espaço a ser

conquistado.

Vale comentar a preponderante influência da escola possibilista sobre a nascente geografia universitária

do Brasil, a qual exprime um padrão geral de estruturação das pioneiras universidades, mais demarcado no

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caso paulista. A meta era elaborar um conhecimento efetivamente “científico”, distanciado dos preconceitos

e paixões muito evidentes nos discursos até então elaborados no país

A tese da neutralidade política da ciência cabia bem ao projeto d uma elite economicamente dominante,

mas que havia sofrido sensível derrota política (na Revolução Constitucionalista, de 1932), fato constatável

em seu alijamento do comando do poder central. . Trata-se de uma conjuntura d elaboração de um forte

regionalismo paulista, que vai buscar nos bandeirante um elemento de ancestralidade na afirmação de uma

conjuntura de elaboração de um forte regionalismo paulista, que vai buscar nos bandeirantes um elemento

de ancestralidade na afirmação de uma identidade política. Com os discursos produzidos sendo legitimados

pelo conteúdo empírico de um conhecimento científico pretensamente neutro.

Um afastamento das discussões políticas imediatas marca a produção das primeiras gerações da

geografia paulista, apesar da participação ou relação política de alguns de seus membros. O caso de Caio

Prado Jr. Aparece como paradigmático nesse contexto, com sua militância não sendo diretamente visível

em sua produção geográfica.

No Rio de Janeiro, então capital da república, a localização do governo federal era por demais presente,

acabando por acentuar a galvanização da vida intelectual na órbita do aparelho de Estado. A criação do

Conselho nacional de Geografia em 1937, e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística no ano

seguinte, representou a plena institucionalização do campo disciplinar no país, ao gerar um explícito

discurso geográfico oficial. Isso num contexto governamental no qual a ótica geopolítica ocupava posição

destacada.

O Estado Novo representou um período de grande modernização do aparelho de Estado brasileiro, com

a criação de vários órgãos que poderiam ser definidos como gestores de política territoriais. Ocupar o

território era novamente o mote da atuação governamental, sendo tal objetivo claramente explicitado pelos

ideólogos da ditadura varguista.

A exemplo de muitas situações de afirmação nacional no capitalismo tardio, a ideologia do Estado Novo

justificou o autoritarismo como uma peculiaridade da sociedade brasileira, vendo a centralização do poder

político como uma decorrência de nossa particularidade histórica.

No que importa à história da geografia o Brasil, o mais significativo elemento que emergiu no período foi

a assimilação e difusão pelo discurso estatal do conceito de região. O IBGE elaborou, no início dos anos 40,

a primeira regionalização do território brasileiro.

Conforme a concepção defendida por Getúlio Vargas, a identidade brasileira era constituída pelo

somatório de suas “culturas regionais”, visão que punha o recorte da região no centro da repartição do

poder no âmbito d pacto político vigente, já definido por vários autores como um “estado de compromisso”.

Isto acarretou um surto de emergência de regionalismos e de construção de identidades regionais no país,

pois para as elites locais sua ausência significava descredenciamento no jogo da política nacional.

A partir do período enfocado, o conceito de região consolidou-se como uma forma quase natural de se

conceber o território brasileiro, incrustando-se na reflexão e na prática geográfica tanto estatal quanto

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universitária. Identificar as regiões (em diversas escalas), caracterizá-las do ponto de vista natural e social,

posta para as instituições dedicadas à pesquisa no campo da geografia a partir de então. A hegemonia de

tal orientação foi inconteste ao longo das décadas de 50, 60 e 70, quando a região passa a ser questionada

como um “conceito obstáculo” na reflexão da própria geografia francesa.

Nesse percurso, no pensamento social brasileiro, a realidade regional transformou-se de um elemento

cultural para um objeto da economia. De algo tido como positivo e benéfico (a cultura regional), passou-se

para uma avaliação negativa, em que a particularidade regional é vista como problema econômico (que o

planejamento regional deveria solucionar).

As concepções geográficas do Instituto Superior de Estados Brasileiros (Iseb), órgão de formulação

teórica da política desenvolvimentista do governo JK, bem ilustra este entendimento negativo da questão

regional, que em verdade apenas aplica no país a visão espacial d desenvolvimento contida na teorização

da Cepal. Segundo esta orientação o desenvolvimento resultaria em homogeneização do território, a qual

expressaria a meta básica perseguida pelos cepalinos: a consolidação do mercado nacional.

O meio urbano passava a ser qualificado como lócus da modernidade que se perseguia, e a ruralidade

vista como causa dos males do país. A construção de Brasília e o grande adensamento da rede urbana e

da malha viária brasileira inscrevem-se nesse esforço modernizante, o qual desemboca numa série de

impasses políticos.

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Capítulo VIII
Formação Territorial e Políticas Ambientais no Brasil

A determinação colonial inscreve-se nos padrões de organização do espaço, na conformação da

estrutura territorial, nos modos de apropriação da natureza e de usos dos recursos naturais, na fixação d

valor ao solo e nas formas de relacionamento entre os lugares. As ideologias geográficas povoam o

imaginário social das ex-colônias.

Nestes países, mais do que em qualquer outra parte, o Estado aparece antes de tudo Omo um

organizador do espaço, um gestor do território. O Estado se impondo como mediação básica na relação

social entre a sociedade e o meio que a abriga.

Nesse contexto, o fazer política trafega em muito pelas formas e modo de valorização dos lugares. Já

disse um presidente brasileiro: “governar é construir estradas”. O território, e não o povo, sendo o alvo

prioritário das políticas públicas. E a geografia toma sentido como inventário de recursos, como descrição

dos lugares, como orientação dos planos de governo.

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No que importa à formação cultural, os argumentos de corte geográfico ganham importância nos

processos de legitimação dos discursos. Foi assim no aniquilamento das populações autóctones, ou para

justificar a vigência (“inevitável”) do escravismo, ou mesmo para explicar o subdesenvolvimento.

A dimensão territorial recorta profundamente as formações sociais geradas na expansão europeia

moderna, que cria e economia-mundo capitalista. Os processos econômicos, políticos e culturais trazem

forte marca da geografia nos países de passado colonial.

A formação brasileira é exemplar em face das características expostas. A expansão territorial –

despovoadora na perspectiva dos índios, povoadora na do colonizador – marcou o desenvolvimento

histórico do Brasil.

Neste quadro, a natureza brasileira é vista como pura riqueza a ser apropriada, e o espaço e os

recursos naturais são tomados como inesgotáveis. Daí a ideia do país-celeiro de riquezas, o “gigante

deitado em berço esplêndido”, em certo momento “a vaquinha-de-leite de Portugal”. Uma ótica expoliativa

domina a relação da sociedade com o meio no Brasil, a qual se expressa com clareza no ritmo e na forma

como avançam as “frentes pioneiras” na história do país, deixando ambientes degradados em suas

retaguardas. O bom governo, nesse sentido, é o que propicia, antes de tudo, o acesso aos lugares e aos

seus recursos. Por isso que “governar é construir estradas”.

A forma monárquica de governo adotada visava em muito garantir a soberania sobre o vasto território

(em grande parte ainda não incorporado) definido nos tratados de limites do período colonial. A manutenção

da Casa de Bragança no domínio desse espaço trazia o argumento da legitimidade dinástica para a

afirmação internacional do movimento de emancipação política. Garantir seu território foi a primeira tarfa

posta para o Estado recém-constituído.

No contraponto, também o povo é qualificado como instrumento de concretização desta meta. Daí o

tema recorrente do pensamento conservador brasileiro: com que o povo contamos para construir o país? A

visão elitista vai além, não raro defendendo a tutela popular em nome da integridade territorial, como na Lei

de Segurança Nacional do período da ditadura militar.

As determinações externas atuam continuamente na história do Brasil, pois as economias periféricas

são estruturalmente “áreas de ajuste”, que necessitam de tempos em tempos adequar sua produção às

inovações empreendidas no centro do sistema mundial. Cada redefinição das matrizes produtivas nos

países hegemônicos, reverbera nos territórios da periferia, estimulando ou contendo fluxos, direcionando

explorações, intensificando ou estagnando atividades. Tais ajustes manifestam-se como vagas

modernizantes que periodicamente emergem na formação brasileira.

Um destes surtos, nos anos 30, institui o moderno aparelho de Estado no Brasil, gerando várias

agências e normas governamentais de ordenamento do espaço.

Na década de 1950, consolida-se uma estrutura de planejamento estatal, que tem na intervenção no

território a linha mestra de atuação. O papel desempenhado pela construção de Brasília, no plano simbólico

e material, já foi bastante destacado por vários comentaristas. A capacidade geográfica do Estado, como

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produtor de espaço, mostrou-se em sua plena potência nessa obra e no adensamento da malha rodoviária

realizado no governo JK. Contudo a conjuntura internacional começa a reverter em meados da década de

70, findando os “Trinta Anos Gloriosos” de ascensão contínua do capitalismo. E os ventos da crise e da

recessão acabam por impor-se à economia brasileira, levando de roldão muito da capacidade de

intervenção do Estado, alimentada – desde a década de 50 – por endividamento externo.

Faltam recursos para concluir ao menos as estradas projetadas, sendo o abandono das obras na

Rodovia Transamazônica um clara imagem da conjuntura recessiva. A estrutura de planejamento estatal

retrai-se e é grande parte desmontada ao longo da “década perdida”. O Brasil vive a democratização das

instituições políticas em situação de crise econômica, ao longo dos anos 80.

A visão integrada do território se perde nesse processo de “balconização” das políticas públicas. A crise

freia o próprio ritmo da expansão territorial. E as fronteiras virtuais de acumulação tornam-se mais atrativas

que os investimentos materiais, envolvendo a economia brasileira pesadamente nos circuitos da circulação

financeira.

A composição da estrutura de planejamento e gestão especificamente ambiental no aparato

governamental brasileiro ocorre na contramão da tendência geral de desmonte do aparelho de Estado

operada nas últimas décadas. A Secretaria Especial de Meio Ambiente da Presidência, assim como

diversos órgãos estaduais do setor, foi criada na primeira metade dos anos 70.

Em 1981 é promulgada, com força de lei, a Política Nacional de Meio Ambiente, que disciplina o

Sistema Nacional de Meio Ambiente (integrando as esferas federal e estaduais) e cria o Conselho Nacional

de Meio Ambiente (organismo intergovernamental e com ampla representação da sociedade civil). Os ecos

da democratização começam a se fazer sentir na estrutura setorial. Nessa segunda fase, a concepção

imperante prioriza as ações de conservação e preservação de áreas dotadas de condições naturais pouco

alteradas pela ação antrópica.

Uma terceira fase da política ambiental brasileira pode ser identificada a partir do Programa “Nossa

Natureza”, de 1988, o qual cria o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis,

agrupando os vários órgãos dedicados à matéria existentes no governo federal, como o Instituto Brasileiro

de Desenvolvimento Florestal e a Superintendência de Desenvolvimento da Pesca. A criação de um

ministério específico para tratar do tema e, notadamente, a escolha do Brasil como sede da Conferência

das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, completam a nova orientação do

setor, que terá por guia teórico a noção de “desenvolvimento sustentável”.

Uma das novidades introduzidas por essa nova orientação é a retomada de um enfoque territorial na

condução das ações, com maior espacialização dos projetos e programas desenvolvidos.

Todavia, os propósitos enunciados tem de operar no complicado quadro político e econômico em que

trafega o país, marcado por uma dívida social imensa e em meio a uma conjuntura internacional altamente

insegura do ponto de vista financeiro.

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Em virtude de tal situação, a vantagem comparativa representada pelos fundos territoriais não se

objetiva como riqueza nacional realizada, restando como um potencial continuamente dilapidado por formas

tradicionais de exploração, muitas delas de baixíssimo rendimento econômico.

Em síntese, o Brasil dispõe d aprimorados instrumentos de planejamento e gestão ambiental, que

contemplam a espacialização dos processos, que estimulam a participação dos atores locais das áreas de

ação, que possuem uma retaguarda técnica substantiva, e que se amparam num quadro legislativo bem

discriminado. Existem leis, metodologias, colegiados e propostas definidas à exaustão. Contudo, a

efetivação das ações e metas revela-se ainda bastante problemática, muito aquém do requerido pela

dinâmica territorial e populacional vivenciada pelo país.

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Capítulo IX:
Território, Globalização e Periferia

Aqueles que acreditaram no fim dos Estados e das fronteiras nacionais terão dificuldade de explicar a

atualidade de um mundo que reitera os fracionamentos geopolíticos e a diferenciação dos lugares. As

culturas nacionais não mostram a diluição numa identidade global, apregoada por muitos há poucos anos,

ao contrário, assiste-se a certo revigoramento na luta pela autodeterminação e da manutenção de

vantagens de sociedades espacialmente circunscritas.

A idílica equalização da “aldeia global” não se realiza num mundo cada vez mais dividido pelo acesso

diferenciado aos benefícios da modernidade, o que distingue os países entre si e cada um internamente.

Nesse sentido, os próprios elementos de homogeneização, em sua distribuição social, se revelam

elementos de diferenciação dos lugares.

O desfoque do nacional como escala de apreensão básica para se estender a realidade geográfica

emerge Omo o problema político central das orientações teóricas aqui criticadas. A concepção de um

mundo estruturado em redes e da existência de cidades globais (supranacionais), por exemplo, bem revela

a adesão a pressupostos teóricos neoliberais (mesmo que tal aproximação não seja consciente, por seus

praticantes). Esta concepção perde de vista as desigualdades espaciais, não oferecendo nada para explicar

e transformar os lugares e segmentos sociais excluídos dos fluxos dos grandes capitais. Estes verdadeiros

“não-lugares” (na ótica das redes) são, contudo, os predominantes em muitas das partes do mundo

periférico, qualificando as situações locacionais de baixo ou nenhum interesse para a acumulação

capitalista.

As novas posturas repetem em muito a estratégia teórica da geografia possibilista francesa no início do

século XX, que – para desligitimar o fundamento ratzeliano da expansão territorial alemã – removeram

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profunda despolitização da reflexão geográfica, elegendo uma escala de análise e um objeto (a região)

avessos ao estudo da ação estatal. Hoje, o culto do globalismo ou o localismo (ou da relação entre eles)

reproduz o mesmo efeito diluidor das instâncias básicas de atuação política, e da própria atividade política

no limite.

O novo momento do capitalismo ancorado num imenso desenvolvimento tecnológico (informática,

robótica, telemática, etc.), não anulou a existência do centro e da periferia e nem a persistência de

estruturas estatal-nacionais como fundamentais na ordem política vigente, e muito menos a presença de

classes sociais dotadas de interesses antagônicos. Entre as novidades importantes de serem assimiladas

pela reflexão geográfica, salientam-se as novas funções atribuídas aos países periféricos e a reavaliação do

papel dos patrimônios naturais e dos fundos territoriais para a acumulação capitalista.

Após meio século de avanço exponencial e interrupto da fronteira das inovações tecnológicas, as forças

produtivas capitalistas deparam-se com um novo momento de requalificação da própria noção de recurso

natural e de identificação de seus estoques e fontes na superfície terrestre em face da nova qualidade
definida.

A diferenciação entre recursos renováveis e não renováveis é ainda mais explícita quanto à nova ótica

de equacionar o relacionamento da sociedade com a natureza. Pode-se dizer que essa visão – que

contempla bem as ideias de finitude de recursos e de limites naturais do planeta – constitui parte da

mentalidade contemporânea, conhecendo já em seu interior um intenso debate ideológico, o que permitiria

falar hoje de teorias ambientalistas de esquerda e de direita ( o que contraria a formulação neoliberal de ver

a questão ambiental como supra-ideológica). Enfim, a consciência das limitações impostas pela natureza à

produção e a catalogação quantitativa precisa dos recursos disponíveis no globo impõe uma nova

geopolítica mundial que tem como um de seus eixos essenciais o controle dos estoques e fontes de riqueza

natural.

Enquanto a preservação das florestas tropicais, por exemplo, é equacionada no que se refere a

interesses globais, o patenteamento industrial é pensado em marcos genuinamente acionais. Tal

descompasso nos enfoques permite atuação diplomática seletiva de alguns países centrais nos fóruns

internacionais, movimentando seu poder de pressão para compromissos de proteção das florestas tropicais,

ao mesmo tempo que se exime de responsabilidade o tema do aquecimento global e das emissões d

carbono.

Enfim, a contemporaneidade reafirma – em novas formas – velhos conflitos, cujo equacionamento

demanda uma fundamentação teórica em que a história emerge como a única orientação segura para

captar o sentido dos processos políticos numa era marcada por transformações sociais em velocidade

desconhecida antes.

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