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TRADIÇÃO NO OCIDENTE

E NO BRASIL

revista,
atualizada e
reformulada
Capítulo IV
PLURALIDADE DO DIREITO
NA AMÉRICA LUSO-HISPÂNICA 1

4.1 INTRO DUÇÃ O

O Direito que predom inou na América Latina tendo como cenário os


processos de Conqu ista e de Colonização luso-hispânicos entre os séculos
XV e XVIII foi resulta do de transplantes de tradição romano-germânico e
canônico, adapta dos aos interesses das metrópoles etnocêntricas na dinâmi-
ca de conquista, exploração e colonialidade. Tratou-se de uma pluralidade
normativa constit uída pelo velho Direito ibérico, pela imposição de uma
legislação regula dora do processo de conquista e pela efetivação de um tímido
e pouco eficaz Direito colonial de proteção aos índios. Ainda que se possam
reconhecer os intentos e o esforço das potências peninsulares em uniformizar e
sistematizar a vida jurídic a no território de suas extensas colônias, na verdade
as novas exigências e necessidades favoreceram a criação de norma s jurídicas
especiais e a multiplicação de regras para distintos espaços territoriais. O
complexo conjun to de regulamentações espanholas na América consolidaria
certo tipo de plurali smo edificador de um Direito indiano, combinação e
interação da varied ade de preceituações de controle, práticas disciplinares
e formas jurisdicionais protetoras. Além de contemplar a produç ão jurídica
na admin istraçã o espanh ola e a problematização dos direitos dos índios
levantada por Montesinos, Bartolomé de Las Casas e Francisco de Vitória, a
reflexão incidiria sobre as bases jurídicas que predom inaram na colonização
luso-hispânica, bem como a especificidade da justiça oficial em face da escra-
vidão de índios e negros no Brasil. Nessa trajetória, não menos ilnportante

Trata-se de capítulo revisto, publica do originar iamente em: WOLKM ER, Antonio
Carlos (Org.). Direito e Justiça na América Indígena. Da Conquista n Colonização.
Porto alegre: Livraria do Advoga do, 1998.
90 1 HISTÓRIA DO DIREITO - Antonio Carlos Wolkmer

é destacar O tipo de experiência jurídic a vivenciada nas "re~uções guaranis,,


controladas pelos jesuítas, bem como nas comun idades qmlombolas.
Em síntese, num períod o de pouco mais de três séculos, as metrópoles
1 nizadoras europeias impuse ram e consol idaram uma cultura jurídica
coo , · · · b
formalista e individualista de tradiçã o romano-canon1stica, 1nv1a ilizando
a dinâmica autonômica e consue tudiná ria de um plurali smo comunitário
indígena. Ademais, tal transplante norm: tivo está. apoiad o ªº. cenário eco-
nômico colonial extrativista e à constru çao poster ior de um sistema socio-
político elitista, segregador e excludente. Portanto, a trajetó ria da cultura
jurídica no continente latino-americano será marcad a pela inexistência de
um pensamento jurídico autêntico e emancipador, mas pelo saber formalista
embasado no ideário do human ismo de tipo retórico e erudito , dissociado
da valorização das diferenças multiétnicas e da vida em plenitu de de seus
povos e comun idades originárias.

4.2 COLONIZAÇÃO E INSTITUIÇÕES NA AMÉRICA INDÍGENA


Indepe ndente mente de discussões acadêmicas sobre se houve ou não
uma "descobertà: se o Novo Mundo foi ou não uma "invenção" dos europeus
do século XVI, privilegia-se aqui a hipótese convencional de um processo de
conquista desenvolvido na América Espanhola. Ainda que se possa configurar
muito mais uma "ocupação': certamente que a tal "conqu istà' da América não
foi um acontecimento isolado do cenário econômico ociden tal nos séculos
XV e XVI. Na venjade, a lógica da conquista está inserid a num leque con-
juntural maior do expansionismo europe u da época, assentado em critérios
econômicos (busca mercantil por metais preciosos) e político-ideológicos
(cristianizar os aborígenes e convertê-los em servos da Igreja e da Coroa).
A conquista, mais do que expressar atrocidades, genocídio e destruição das
populações indígenas, resultou na submissão de comun idades autóctones à
escravidão e ao confisco incontrolado de suas terras. 2 Ademais, a rapidez da
conquista da América Ibérica ocorre u em função da combinação de vários
fatores, dentre os quais a superioridade técnica militar dos invasores, as novas
doenças e epidemias trazidas pelos europeus, a divinização dos espanhóis
associada a crenças e superstições religiosas de antigas lendas indígenas, bem

FERREIRA, Jorge Luiz. Conquista e colonização da América Espanhola. São ~a~10'.


Ática, 1992, p. 90; O'GORMAN. El Proceso de la Invencion de América. Mexico.
Pondo de Cultura Económica, 1998; TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América.
A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
Parte li . Cap. IV • PLURALIDADE DO DIREITO NA AME RICA LUSO HISPAN IC A 1 91

como as rí\·alidades, cumplicidades e disputas que dividiram internamente


05 ameríndios.
O processo de conquista é sucedido pela colonização - que tem seu ponto
exploratório inicial nas Antilhas - sendo caracteri zado não como uma ação
plan ejada, ordenada e desencadeada oficial mente pelo Estado peninsular, mas
sim como um empreendimento privado. Num primeiro mmn ento, incenti -
var o perfil parti cular das expedições descobridoras foi .i for ma t'n cont rad:i
pelo Reino de Castela para manter o co nt ro le e a fis cali 7ação, se m implic u
o leva ntamento de grand es recursos, um a \ ' e 7 que c :ibia ::io n.wcgador gran -
de par te da res po nsabi lidade pelos fund0 s ncccs:drios. Assim, n:isccrn m as
Capit ulações, ve rd ad ei ros con tratl1S ;1 %in;1d0~ l.'nt rc a Coroa e os ch(·fcs de:
ex pc<l içôes interessados em cxplor.l r r dc~c obri r no vo~ ter rit órios. Fni desse
mod o qu e as céleb res Cap,111/açci ( s de S,mta F,:, acordo firm:1do entre C ris -
tóvão Colombo e o, Reis CJt0iicos, n5o só p0 ss ihilit ar;1rn a descoberta d:1
Am éri ca com o se revclan .im 0 embri ão de um futuro conflito : de um lado, a
ambi ção e a cobiça desenfreadJ dos empreendedores part icularcs que crescia
na med id a cm que .1~ co nquistas revcla\'am in co ntáve is rique zas; de o utro,
an tep unh am -se os intcrc~scs da Coro a C' m estabelece r limites à pilhagem
indi vidu ali z,ada e garantir o mo n opólio dos lucros cresce ntes para si. 1
Na col on i7.J.Ç.âo da America Ibé rica, há que se co nsidera r que a estrutura
político -admin istrati,·a não foi uni fo rme e idênti ca . Houve uma sé rie de mo -
dalidad es de co lonização colocadas cm prática por espa nh óis e po rtu gueses .''
Importa ter prese nte que o nível de dominação da Metrópole se definia em
conformidade co m a relevânc ia lucrati va que as colô nias assumiam cm de -
te rminado mom en to. Assim, dc<;dc o início um a di stin ção profunda marcou
acentuadamente os doi s model os desenvolvidos de colonização. Naturalmente
que a produção do açúcar na colónia po rtugu esa entre os séc ulos XVI e XVII
não pode ser comparada ao impact o da riqueza dos metais preciosos e do
ouro extraídos do Méxjco e do Peru, integrantes da Coroa Espanhola.
Nos primórdios da colonização, o reino lusitano, muito mais interessa -
do nas riquezas do Oriente (Índias) do que na exploração de seu território
na costa litorânea da América do Sul, reintroduziu o sistema das capitanias
hereditárias, que já havia sido aprovado com sucesso em algumas de suas
ilhas do Atlântico. Se O modelo de administração era pouco oneroso para

Cf. MAHN-LOT, Marianne. A conquista da América Espanhola. Campinas: Papirus,


1990, p. 11-25; LOPEZ, Luiz Roberto. História da América Latina . Porto Al egre:
Mercado Aberto, 1986, p. 19-25.
Cf. SOTELO, Ignácio. Sociologia da América Latina. Rio de Janeiro: Palias, 1975, p. 55 .
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Portugal _ como escrevem Franco Júnior e Pan _Chacon - _era _igualmente


pouco eficaz. Ass im , pcr~ntc o f::acasso da ~estao das_ cap1tamas _e di~nte
das potencialidades promissoras da eco nomia a~u~are1r~ ~o Bra~1l, cnou-
-sL' cm 1548 0 Governo Geral, tornando o dom11110 pohtlco mais efetivo,
cL'n trali zando a administração, enfim, garantindo os interesses portugueses
11 , 1 colônüt': A organização institucional portuguesa foi exercida de forma
5

menos disciplinada que a espanhola. É possível que a solidez e o ímpeto


maior encontrado na dominação política espanhola se deva à experiência
adquirida com a destruição dos grandes impérios indígenas (astecas e incas),
o que implicou um "empenho e um rigor na conquista e na evangelização
inteiramente desconhecidos no Brasil". 6 Já sob o aspecto administrativo,
ainda que houvesse uma necessária centralização em Lisboa com relação
a todas as questões coloniais, a estrutura burocrática também não era das
mais eficientes. Depois do período das capitanias hereditárias, o aparato
político-institucional passou a funcionar por meio de um governador-geral
auxiliado pelo ouvidor-geral, destinado a cuidar da aplicação da justiça, pelo
provedor-mor da Fazenda, a quem competia fiscalizar a cobrança de tributos
e o resguardo dos direitos da metrópole, e pelo capitão-mor, encarregado da
defesa da colônia.
Já na colonização hispânica, a potência ibérica, poderosa e enriquecida
com o ouro advindo de suas colônias, impôs um "sistema político-adminis-
trativo complexo e rígido, que se muitas vezes não funcionou foi por falta de
meios e pessoal adequados': 7 Em toda a época da colonização, o centro maior
de domínio estava na Coroa de Castela, tendo como coadjuvante a Casa da
Contratação de Sevilha e o Conselho das Índias. Como escrevem Franco Jú-
nior e Pan Chacon, enquanto a Casa da Contratação controlava «as relações
comerciais entre Metrópole e colônias, organizava as frotas que ligavam as
duas regiões e fiscalizava o recebimento das rendas reais': o Conselho das Índias
detinha a suprema autoridade para regular as questões coloniais, quer seja
ditando as leis necessárias, quer designando os funcionários para as visitas ou

FRANCO JÚNIOR, Hilário e CHACON, Paulo Pan. História econômica gemi e do


Brasil. São Paulo: Atlas, 1980. p. 171-172.
(,

PRA DO, Maria Ligia. A formação das nações latino -mnericanns. 12. ed. São Paulo:
Atual, 1994. p. 18.
FftANCO JÚNIOR, 1-filúrio e CHACON, Paulo Pan. Op. cit., p. 172. Sobre a discussão
acerca de um "cap italismo colonial" vigente ao longo do período econômico luso-
-hi spân ico, observar as interpretaçôes clássicas de BAGÚ, Sergio. Economía de la
sociedad Colonial. Ensayo de Historia Compa rada de América Latina. Buenos Aires:
EI Ateneo, 1949.
Parte li • Cap. IV· PLURALIDADE DO DIREITO NA AMÉRICA LUSO-HISPÂNICA 1 93

inspeções. Já os "vice-reis, em número de quatro (sediados no México, Peru,


Nova Granada, iS t o é, noroeste sul-americano, e Prata), eram assessorados
pelas audiencias, originarian1ente tribunais que depois receberam também
atribuições administrativas. As extensas áreas abrangidas pelas audiencias
estavam divididas em corregimientos, enquanto as cidades estavam sob o poder
de conselhos municipais, os cabildos". 8 A firme e hierarquizada organização
burocrático-administrativa dos espanhóis foi reestruturada posteriormente
com as mudanças da era dos reis bourbônicos. Essas reformas possibilitaram,
para Maria Ligia Prado, um sistema de intendências, substituindo aquele
dos governadores e dos corregedores, "uniformizando a administração e
eliminando a superposição de funções e poderes. Na verdade, as intendên-
cias tiveram por finalidade restringir as liberdades municipais, centralizar o
poder e controlar energicamente o recolhimento dos impostos. O processo
foi inaugurado em 1764, com a intendência de Havana, [e] espalhou-se por
todas as colônias ( ... )': 9
O processo da colonização não se reduz tão somente às suas instituições
político-administrativas, mas compreende as instituições socioeconômicas
e jurídicas. Sob o ponto de vista social, nas colônias hispano-americanas
prevaleceu, de um lado, os privilégios de uma aristocracia dos segmentos
brancos, nascidos na Espanha ou na América; de outro, a submissão de
uma maioria despossuída e explorada como mão de obra escrava, composta
por indígenas, negros e mestiços. A sustentação da economia na sociedade
colonial foi constituída, primeiramente, pelas populações indígenas, setor
mais numeroso sujeito às condições de trabalho, institucionalizada na mita
(modalidade de prestação compulsória de origem incaica, existente nas minas
espanholas da América) e na encomienda.
Certamente que o principal regime de trabalho do período colonial
foi a encomienda, consistindo na outorga estatal para que um conquistador,
proprietário de terra ou colono, pudesse dispor para si de um grupo de
índios "livres" que pagariam por proteção, assistência material e evangeli-
zação, tributos sob a forma de prestação de serviços. Isso favoreceu diversas
e controvertidas interpretações, ora vendo o sistema de encomienda como
uma forma disfarçada de escravidão, ora como uma instituição social que
desempenhou uma função importante de preservar comunidades indígenas

FRANCO JÚNIOR. Hilário e CHACON, Paulo Pan. Op. cit., p. 172. Vide também:
LOPEZ, Luiz Roberto. Op. cit., p. 32-33; CARDOZO, Efraim. La legislación de Indias.
Apuntes de historia cultural dei Paraguay. Assunción, s/d., P· 67-72.
9
PRADO, Maria Ligia. Op. cit., p. 6-7.
94 1 HISTÓRIA DO DIREITO - Antonio Carlos Wolkm er

e cns. t1amzat
. . . os 11 u'lt 1·vos· , ,
imnlantando
r-
ce rtas obrigações e incumbências aos
co iorn.za d Oh.,,.,.. ,s. 'º
Se a coloni zação cspi! n hola se voltou basicamente para_ a aquisição de
met~1ís preciosos, dei x:11H.lo de lado a explora çã~ agrkoJa) o sistema_ co.lonial
na América port ugucsa prí mou pela exp loraçao de produtos trop1ca1s que
passa ram a ser co merc iali zados na Europa pela ~~trópole. Nesse co~texto,
a re ntabilidade da produção açucareira, o extermm10 das culturas nativas e a
resistencia à escravidão por parte dos índios abriram espaço para que esta fosse
:-ubstituída pe.l a mão de obra do negro africano. A plantação açucareira, expli-
ca Ignacio Sotelo) "utilizando o trabalho escravo, constitui a base da primeira
colonização portuguesa no Nordeste do Brasil, chegando ao auge em fins do
século XVI e começo do século XVII': 11 O prejuízo para a colônia lusa em
função da concorrência comercial das Antilhas anglo-francesas bem como a
crise na produção açucareira em fins do século XVIII desencadearam um novo
ciclo econômico que veio a implantar a colonização assentada no minério. 12
Em suma, a economia das colônias ao longo dos primeiros séculos após a
conquista orientou-se no sentido de produzir aqueles bens que eram exigidos
pelas metrópoles ibéricas, tanto os metais preciosos (Espanha), quanto os
produtos agrícolas (Portugal). Nesse afã, o início da modernidade do Ocidente
foi profundamente marcado pela interação do discurso evangelizador com a
prática mercantil. Sem dúvida, foi o triunfo de uma combinação ideológica
bem articulada, em que o mercantilismo e a evangelização se revelaram, no
dizer de Héctor H. Bruit, as duas faces "da mesma moeda, e seria impossível
entender o processo de conquista, eliminando ou negando a importância
de um deles. Contraditórios em princípio, ambos se complementaram na
prát ica, sem que os colonizadores tivessem a pretensão de esconder um atrás
do out ro". 13
ProbJematizada a conquista e a colonização luso-hispânica, bem como
algumas ca ra cterizações de sua estrutura político-administrativa e suas

w ~obre o 1,isten~a da "e nco mi end a", co nsultar: HOFFN ER, Jose ph. Co/011i.:nç,io t'
evangelho - f:t,ca r/(1 co/011iznçiio cspw,/iola 110 século de ouro. 3. ed . Ri o dt: Janeiro:
Pre~ença , 1~86 . p. 168 - 17 1; OTS Y C APDEQUI, José M. E/ Estado Espanol en las
111d1 ~s. ~éx_ico : F_o ndo de Cultu ra Econó mica , 1993 . p. 25 -27; ZAVALA, Silvio A
La s mst1tu c1011es ;11rfdicns m la rn nq11ista de J\ 111 ericn. 2. ed. México: Porrúa, 1971;
MAH N-LOT, Ma rienne, Op. cit. , p. 7 1.
11
SOTELO, Ignacio. Op. cit. , p. 63.
12
Idem, ibidem.
13
BRUIT, Hécto~ Hernan. Bartolomé de Las Casns e a simulação dos vencidos. Campinas:
UNICAMP/Sao Paulo: Iluminuras, 1995. p. 89.
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instituições socioeconômicas, cabe avançar, de imediato, na direção de suas


instituições jurídicas e em seus processos de normatividades.

4.3 PLURALIDADE NORMATIVA NA ADMINISTRAÇÃO


ESPANHOLA NA AMÉRICA

4.3.1 Legislação e instituições no tempo da conquista


Em todo o processo de conquista, exploração e colonização do Novo
Mundo, reveste-se de importância a questão da regulamentação e do con-
trole jurídicos. Com a descoberta das novas terras, adquire significado uma
pluralidade normativa constituída, por um leque de direitos e obrigações que
se entrecruzam: o velho e histórico direito espanhol de matriz castelhana e
a emergente «legislação indianà, que se vai legitimando, sem considerar a
manutenção de um direito consuetudinário indígena. 14 A antiga cultura ju-
rídica hispânica, que receberia a influência do Direito romano, germânico,
canônico e islâmico, era essencialmente difusa, mas sofreria um processo de
secularização e posterior unificação de suas instituições jurídicas, no reinado
dos Reis Católicos. Nos primeiros tempos da conquista, na falta de legislação
adequada recorria-se às fontes de um direito oficial já uniforme, como o
Código das Siete Partidas (elaborado no Reino de Castela, entre 1256 e 1265,
sob o reinado de Alfonso X, o Sábio); o Ordenamento de Alcalá de Henares
(promulgado por Alfonso XI, em 1348), os Fueros Municipales (normas de
aplicação local, formadas entre o Rei/Senhor e a vizinhança da cidade), o
Fuero Real (entre 1252 e 1255, disposições que objetivavam substituir o direito
local pelo direito territorial) e a Lei de Toro.
De todas as leis, merecem destaque, por sua utilização em caráter suple-
tivo nos territórios coloniais da América, o Código das Siete Partidas e a Lei
de Toro. No dizer de Ots y Capdequi 15 , o Código das Siete Partidas, produzido

14
Observar, a propósito: TAU ANZOÁTEGUI, Víctor. El Poder de la Costumbre. Estu-
dios sobre el Derecho Consuetudinario en América Hispana hasta la Emancipación.
Buenos Aires: Instituto de Investigaciones de Historia del Derecho, 2001. Sobre o
Direito Indiano nas colônias hispânicas de América, ver: DOUGNAC RODRf GUEZ,
Antonio. Manual de História de[ Derecho Indiano. 2. ed. México: UNAM, 1998. LE-
VAGGI, Abelardo. Manual de História dei DerechoArgentino (Castellano - Indiano/
Nacional). Tomo 1 Parte General. Buenos Aires: Depalma, 1991. p. 144-153;RA-
BINOVICH -BERKMAN, Ri ca rdo D. Direito Indiano na América Hispânica. ln:
WOLKMER, Antonio C. Fundamentos de Historia do Direito. Op. cit., p. 429-442; TAU
ANZOÁTEGUI, Víctor. Qué fue e/ Derecho Indiano? 3. ed. Buenos Aires: Perrot, 2004.
15
Cf. OTS Y CAPD EQ UÍ, José M. Historia dei Derecho Espafíol en America y de[ Derecho
Indiano. Madrid: Aguilar, 1968. p. 34 e 45; El Estado Espafwl en las Indias. p. 9-10.
96 1 HISTÓRIA DO DIREITO - Antonio Carlos Wolkmer

· fluência romanístico-justiniana integrou, de forma sistemática e ge-


so b a 1n « ..
, · em grande parte, a legislação fragment ada dos Fueros Mun1c1pales»
nenca, .
no território peninsular. De todas as fontes, foi as Stete Parti·das a "o bramais
.
importante do Direito histórico castel~a~? e uma das que al~ançaram :°1aior
difusão, por sua alta autoridade doutnnan a, em _t_odos os pa1ses do ~c1dente
europeu': 16 Já a Lei de Toro, nascida de uma re~niao das Cortes e_reahzada na
cidade de Toro, em 1SOS, constituiu-se numa importan te coleçao de 83 leis,
desempenhando, como fonte jurídica, papel relevante na formação histórica
de algumas das instituições jurídicas de povo ibérico. 17
Importa, numa breve síntese, destacar o emergent e pluralism o legisla-
tivo colonial que regulamentou as relações entre a metrópol e e as colônias
hispânicas na América. Tal política jurídica, refletindo as chamada s Leyes
de Indias, "oscilou de acordo com as condições e circunstâncias" 18 e foram
editadas em grande parte não exatamente por administ radores estatais ou
juristas profissionais, mas pelo esforço e pelo trabalho incansável de teólogos
e moralistas.
O primeiro esforço de regulamentação foi represent ado pelas Capitula-
ções que, segundo Ots Capdequí, foram a fonte primeira e principal do novo
Direito nos território s recém-descobertos. Tratavam-se de um contrato que
consagrava o acerto de vontades criadoras de direitos e obrigações, lembrando,
por sua natureza e essência, «as velhas 'cartas de población' da Idade Média
castelhanà: 19 Suas cláusulas destacavam os direitos que competia m à Coroa
de Castela sobre os novos territórios encontra dos e a autorização atribuída
aos participantes ou chefes de expedições planejadas. Entretanto, as Capitula-
ções não disciplinavam juridicam ente as relações entre os próprios membros
da expedição. Era necessário formar um pequeno convênio ou acordo de

16
OTS Y CAPDEQU Í, José M. Historia del Derecho Espafzol en America y del Derecho
Indiano. Op. cit., p. 45.
17
OTS Y CAPDEQU Í, José M. Op. cit., p. 44 e 46. Vide também sobre o pluralismo
legal no período da colonização: GARCÍA-GALLO, Alfonso. La penetració n de los
Derechos Europeos y el pluralismo jurídico en la América espafiola 1492-1824. ln:
DAL RI, Luciene; DAL RI JR., Arno (Orgs.). Latinidade da América Latina. Enfoques
histórico-jurídicos. São Paulo: Hucitec, 2008, p. 97-107; GONZÁLE Z HERNANDEZ,
Juan Carlos. Influencia dei Derecho Esparzo[ en América. Madrid: Fundación Mapfre,
1992.
18
BRUIT, Héctor Hernan. Op. cit., p. 22.
19
OTS Y CAPDEQU I, José M. El Estado Espanol en las Jndias. p. 15-17. Ver também:
ZAVALA, Silvio A. Las instituciones jurídicas en la conquista de América. p. 1O1-1 OS;
Tomás YValiente, Francisco. Manual de Historia dei Derecho Espafwl. 4. ed.Madrid:
Tecnos, 1997.
Parte li• Cap. IV· PLURALIDADE DO DIREITO NA AMÉRICA LUSO-HISPÂNICA 1 97

organização, chamado de «huestes indianas", entre o chefe da empreitada e


aqueles que o acompanha vam na viagem para definir as orientações gerais,
bem como regras sobre guerra, prisão e punições. 2º
Além das Capitulações, outra fonte jurídica imediata foram as «ins-
truções" que representav am normas gerais que estabeleciam as diretrizes,
a organização e o exercício de uma administração, delegando poderes aos
descobridores, conquistado res e governantes, legitimando sua ação coativa
e sua jurisdição militar e civil. Com a descoberta do Novo Mundo, a Coroa
Espanhola necessitou exercer um controle sobre suas colônias ultramarinas,
daí a importânci a das Instruções como uma espécie de mandato que regula-
mentava «a ação de seus súditos, demarcando as funções dos altos funcionários
e traçando a política colonizadora". 21
Assim, as fontes primeiras do Direito «indiano" que regeram o Novo
Mundo na etapa relacionada à conquista e à colonização foram o Direito
Espanhol aplicado à América hispânica, as Capitulações e as Instruções.
Posteriorme nte, o conj unto de disposições norteadoras foram ampliadas e
atualizadas com a incorporação de leis protetoras, dando origem à minuciosa
e monumenta l Recompilação das Leis dos Reinos das Índias. Essa Recompilação
de Leis, promulgad a em 1680 e publicada em 1681, constava de nove livros,
divididos em 2 18 títulos e 6.3 77 leis, e veio a tratar não só das instituições de
direito privado e de controle das penalidades, como das referentes à situação
jurídica dos índios. 22 No que tange ao corpo de leis protetoras dos índios,
importa destacar as Leis de Burgos (1512) e as Leis Nuevas (1542).
Em 2 7 de dezembro de 1512, uma junta de juristas e teólogos, reunidos
em Burgos por convocação de Fernando de. Aragão e influenciado~ pe!as
críticas dos dominicano s aos colonos das Antilhas, promulgaram o pnme1ro
estatuto indígena. No dizer de Héctor H. Bruit, as Leis de Burgos r~velam-se
como ccuma regulament ação bastante completa e avançada para a epoc:. (... )
em seus trinta e cinco artigos, as Leis de Burgos mostram a preocupaçao -~º
Estado em cumprir a finalidade religiosa da conquista. Ordenavam a reumao

20 Cf. ZAVALA, Sílvio. Las instituciones jurídicas en la conquista de America. p. 10_8-112.


G AZEVEDO , p· LN G. G. (Orgs.). A conquista da
21
DAYRELL, E. ., · ., SCHMIDT' .
, . l · R"o de Janeiro: FUJB/UFRJ, 1982. p. 170, ZAVALA,
Amerzca Espanhola -Anto ogia. 1

S1·1 · O · 123-131
· • d . TOMÁS y VALIENTE, Francis-
vio. P· cit., P·
o
22 Cf O
· CAR~OZ ' rai~.
Ef ·

co. Op. c1t., p. 34_1,-345, LA
cit p 64-66. Ver am a.
R·RE RANGEL, Jesus Antonio. Notas histórico-jurídicas
O . _ ; SANCHEZ, Luiz Alberto. América
21 22
sobre la fundacwn de Aguascaltentes. P: . , M drid· E-DAF' 1981. p. 213-218·'
precolombian a, descu brzmien °
· · t y colonzzacwn
144
·
157
a
65
·

LEVAGGI, Abelardo. Op. cit., P· 133 - e -l .


98 1 HISTÓRIA DO DIREITO -Antonio Carlos Wolkmer

, . avoados com igrejas e não muito distantes dos povo-


dos mdws em novos p . . , .
, • . obrigavam os encomendeiros a evange 11zar os 1nd1os e a
ados de espan h 01s, .
. - f'lhos dos caciques· ordenavam bons tratos e
. . alimentação
dar mstruçao aos 1 '
. • t além do pagamento de um salário. (... ) Era pr01b1do, também,
su fic1en e, d 'd " 23 N-
enviar às minas as mulheres com quatro meses e grav1 ez . ao conse-
guindo as Leis de Burgos lograr o êxito desejado, num cont~xt~ de crescente
ganância e violência por parte dos colonizadores, da~ denuncias veementes
dos defensores dos índios, em especial de Bartolome de Las Casas, o cená-
rio histórico favoreceria, em 1542, a publicação das Leis Novas. Tratava-se
mais uma vez de ordenanças editadas pelo Estado para o bo1n tratamento
e a conservação das populações indígenas. Certamente que as Leis Novas
representavam uma última tentativa da Coroa Espanhola para bloquear "as
tendências sociais derivadas do processo de conquista. Não se destinavam a
proteger a vida dos índios, mas tinham o claro propósito de frear o ímpeto
demolidor e individualista dos conquistadores. A investida mais forte dessa
legislação foi proibir novas conquistas, e as Audiências só poderiam auto-
rizar expedições de descoberta. (...) As reações políticas negativas na Nova
Espanha, Peru, Novo Reino de Granada, Guatemala impediram que fosse
aplicada integralmente a nova legislação':2 4 Ainda que dois anos depois, como
escreve Héctor H. Bruit, altos funcionários espanhóis estivessem no Novo
Mundo para obrigar o cumprimento das Novas Leis, na verdade essas leis não
foram aplicadas eficazmente, e, ainda que tenham contribuído para conter e
moderar a violência, não foram suficientes para acabar definitivamente com
os maus-tratos e a escravidão aos índios.

4.3.2 A Escola de Salamanca, Las Casas e o Direito Indígena

Desde cedo o problema do "descobrimento e conquista da Américà'


levantou a discussão sobre o direito que a Espanha teria ou não de dominar
as Índias. Tal missão de evangelização das terras recém-descobertas era
reconhecida oficialmente pelo Papa Alexandre VI na bula Inter Caetera, de
1493. Uma vez reconhecida, a missão da Coroa de Castela, pela autoridade
soberana do pontífice, o que passa a preocupar era até que ponto a evangeli-

23
~RUIT, Héctor H. Op. cit., p. 27-28. Idem: TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Op.
p. 332-335.
Clt.,
24
BRUIT, Héctor ~- Op. cit., p. 29. Para uma leitura na íntegra da Bula Inter Caetera de
1493 , do Requerimento de 1513, da Lei de Burgos de 1512 e das Leis Novas de 1s43 ,
ver: SUESS, Paulo (Org.). A conquista espiritual da América Espanhola. Petrópolis:
Vozes, 1992.
Parte li· Cap. IV· PLURALIDADE DO DIREITO NA AMÉRICA LUSO-HISPÂNICA 1 99

zação dos pagãos implicaria a guerra e a servidão dos indígenas. Diante dos
acontecimentos, afloraram duas tendências sobre os fundamentos jurídicos
e sobre a questão da justiça da invasão e da ocupação hispânica na América.
Uma prüneira tendência, buscando sustentação na autoridade temporal
do Papa e na jurisdição universal do Rei, advogava que, em função da supe-
rioridade e universalidade dos valores ocidentais e da condição de bárbaros
e pecadores dos aborígenes, o domínio jurídico dos europeus se legitimava,
cabendo aos índios o dever de submeter-se pacificamente, e que, se resistis-
sem, poder-se-ia declarar-lhes guerra justa. 25 Nesse contexto de controvérsias,
surge o famoso Requerimento, documento jurídico datado de 1514 e escrito
por Palacios Rubios, conselheiro dos Reis Católicos. Tal instrumento do
legalismo hispânico autorizava claramente a intervenção estatal nas Índias
e estatuía que a declaração de guerra seria considerada justa se os indígenas
não aceitassem a entrada dos conquistadores em suas terras. 26
Como reação à irracionalidade desses argumentos e às arbitrariedades
de documentos como o Requerimento, surgem a contestação e o repúdio de
um grupo de teólogo-juristas, a "segunda escolásticà' (Francisco de Vitória,
Domingo de Soto, Francisco Suarez) e de religiosos missioneiros (Montesinos,
Las Casas, Alonso de Vera Cruz, Vasco de Quiroga y Valdivieso). Aparece,
assim, uma segunda tendência representada por esses que, amparados num
Direito natural, entendiam não ser correto colocar a jurisdição dos coloni-
zadores para além de suas fronteiras, e que os indígenas, ainda que gentios,
possuíam dignidade e direitos humanos. Esses doutrinadores não reconhe-
ciam o poder do Papa e a pretensa jurisdição universal dos monarcas sobre
os infiéis. 27
É nessa perspectiva que urna primeira frente contestatária pode ser
representada pela Escola de Salamanca e por seu renomado professor,
Francisco de Vitória (1480-1546), o mais contundente e crítico das políticas
de conquista, administração e legislação espanhola do século XVI, desen-
volvendo teses marcadas pela preocupação em proteger com dignidade a
condição de vida e de existência das nações nativas. Partindo de assertivas
tomistas, Vitória arguia da existência de uma lei natural comum a cristãos e

25
Cf. ZAVALA, Sílvio. Op. cit., p. 15.
26
Cf. DAYRELL, E. G., AZEVEDO, F. L. N., SCHMIDT, G. G. (Orgs). Op. cit.,
p. 169-170.
27
Cf. ZAVALA, Sílvio. Op. cit., p. 16. Sobre Alonso de Vera Cruz e Vasco de Quiroga,
consultar: ROSILLO MARTINEZ, Alejandro. La Tadición Hispoamericana de De-
rechos Humanos. Quito: Corte Constitucional dei Ecuador/CED,2012. p. 223-449.
100 1 HISTÓRIA DO DIREITO -Antonio Carlos Wolkmer

-
pagaos, e que estes teriam soberanos que não poderiam d
ser destituídos sob
1
t xto de infidelidade. Além de questiona r o po er tempora do Papa _
o pre e
sua tarefa era essencialmente esp1ntual - apregoava que "o o·ir:1to .
. .
de levar
0
Evangelho ao mundo inteiro subsistia, mas a recusa dos pagaos de acei-
tarem a Boa Nova nem por isso autorizava a guerra contra eles, sobretudo
quando a revelação cristã lhes era apresentada, (... ), por ~r~st_ãos de conduta
escandalosà? 8 Inegavelmente, a influência da obra de Vitona desencadeou
assertivas possibilitadoras, tanto do moderno direito internacional, quanto
da doutrina filosófica de uma comunida de político-cristã.
Outro teólogo de Salamanca que granjeou prestígio a favor da legitimi-
dade da causa indígena foi Domingo de Soto, assumind o algumas posturas
até mais extremadas do que seu mestre Vitória. 29
Ainda que tenha sido professor em diversas universid ades da época, o
jesuíta Francisco Suarez (1548-1617) integrou, também, o grupo de Salaman-
ca, expressando, em matéria de filosofia jurídica e de apreciação da lei, a clara
transição "do sistema tomista medieval para a nova escolástica católica da
contrarre forma (... ). Suárez, pode-se dizer, é um voluntari sta na concepção
do direito. Já não se reconhece nele a filosofia tomista da lei como regra de
razão. A lei é ordem e comando, logo, a obediência à lei pode ser submissão
a um soberano por conveniência ou por temor. Não é difícil para a filosofia
de Suárez justificar fórmulas modernas de Estado e até de absolutismo:' 30
Um direcionamento prático, ardoroso e mais radical, não só com relação
à conquista, mas contra toda a política de colonização espanhol a na América,

28
MAHN-LOT, Marianne. Op. cit., p. 118. Para um aprofunda mento sobre Francisco de
Vitória e sobre a Escola de Salamanca, ver: VITÓRIA, Francisco de. Doctrina sobre los
índios. Salamanca: Editorial San Esteban, 1992; Os Índios e o Direito da Guerra. Ijuí:
Unijuí, 2006; PRATS, Jaime Brufau. La Escuela de Salamanca ante el descubrimiento
dei Nuevo Mundo. Salamanca: Editorial San Esteban, 1989; _ _ . La Ley. Estudio
preliminar y traducción de Luis Frayle Delgadoi. Madrid: Tecnos, l 995;TRUYOL
Y SERRA, Antonio. Historia de la filosofia dei derecho y dei Estado. II v. II, Madrid:
Rev~sta de Occidente, 1976. p. 53-58; HÕFFNER , Joseph. Op. cit., p. 227-237; PEREZ
LUNO, Antonio-H enrique. La polémica sobre el Nuevo Mundo. Madrid: Trota, 1992;
RUIZ, Rafael. Francisco de Vitoria e os Direitos dos Índios Americanos. A Evolução
da Legislação Indígena Espanhola no Século XVI. Porto alegre: PUC/RS, 2002.
29
WOLKMER, Antonio C. (Org.). Direito e Justiça na América Indígena. p. 84.
30
LOP~S, José Reinaldo de L. Op. cit., p. 169; FASSÔ, Guido. Op. cit., v. 2. p. 64-66.
~ma I~teressante análise sobre os juristas-teó logos de Salamanca , ver: DUSSEL, En-
r
nque. Las Casas, Vitoria and Suárez, 1514-161 ln: BARRETO, José-Manuel (Ed.)
Human Rights from a Third World Perspective: Critique, History and International
Law. UK: Cambridge Scholars Publishing , 2012. p. 172-207.
Parte 11 • Cap. IV· PLURALIDADE DO DIREITO NA AMÉRICA LUSO-HISPÂNICA 1101

foi desencadeado por Bartolomé de Las Casas. Aclamado como um incansá-


vel protetor e defensor dos direitos dos índios, Las Casas, crítico contumaz
do Requerimento, oponente do siste1na da "encomienda" e denunciante das
práticas de genocídio com as populações ameríndias, não só influenciou a
formação de uma legislação mais humana e protetora (particularmente as
Leis Novas), como lutou pela garantia de direitos aos índios, amenizando seu
sofrimento e libertando-os das injustiças e até da escravidão. O implacável
bispo de Chiapas, às vezes reconhecido como o veemente e polêmico "após-
tolo dos índios': outras retratado por seus inimigos como o autor da" leyenda
negra" antiespanhola, transcende a historicidade de seu tempo, tornando-se
o paladino de uma ética libertária não só de base indígena, mas de dimensão
adequada a todos os povos oprimidos da América. 31 A força doutrinária de
sua mensagem e o valor de sua obra expressam um projeto de convivência
pacífica entre todos os povos, "com respeito absoluto pela diversidade de
raças, religiões, e culturas, o que faz dele (Las Casas) o precursor do conceito
moderno de pluralismo racial, cultural, político, religioso" 32 e jurídico.

4.3.3 A legislação das reduções jesuíticas


Buscando integrar ao processo de colonização espanhola nos territórios
ainda não explorados e interiorizando os crescentes interesses expansionistas
ibéricos na região meridional da América do Sul, surgem, entre os séculos
XVII e XVIII, na província de La Guaiara, os primeiros povoados missioneiros
de indígenas guaranis submetidos ao controle e à administração de religiosos
da Companhia de Jesus. As reduções que acabaram estendendo-se pela Bacia
Platina (Paraguai, Argentina e Brasil) alcançaram um extraordinário desen-
volvimento em termos de bem-estar material, padrão moral e qualidade de
vida, impedindo a exploração, a escravidão e o extermínio das populações

31 Para uma leitura mais atenta sobre Bartolomé de Las Casas, ver: LAS CASAS, Frei
Bartolomé de. O Paraíso Destruído. A Sangrenta história da conquista da América
1:·
espanhola. 5. ed. Porto Alegre: LPM, 1991; BRUIT, Héctor, Bartolomé de Las Ca~as
e a simulação dos vencidos; TORRE RANGEL, Jes~s Antomo_ de 1~. El uso a~ternatzvo
dei Derecho por Bartolomé de Las Casas. Aguascahe~tes: Umvers1_dad Autonom~ de
Aguascalientes, 1991; VÁRIOS AUTOR~S. ~~ el quzn~o centenano de B~:tolome de
Las Casas. Madrid: Ediciones Cultura H1spamca/Inst1tuto de Cooperac1on Iberoa-
mericana 1986; DUSSEL, Enrique D. Caminhos de libertação Latino Americana. t.
2. São Pa~lo: Paulinas, 1985. p. 135-150; HANKE, Lewis. La lucha por la justicia en
la conquista espanola de América. Madrid: Aguilar, 1967.
32 LOSADA, Angel. Bartolomé de Las Casas - ~ Apóstol~ dos índios da América
Espanhola no século XVI. Correio da Unesco. Rio de Janeuo: FGV, p. 9.
102 1 HISTÓRIA DO DIREITO - Antonio Carlos Wolkmer

indígenas. Ainda que as missões jesuíticas pertencesse~ ao sistem~ ~olonial


espanhol, nem seinpre as relações entre o Estado e a IgreJa foram equ1hbradas,
ois em 1767 os jesuítas foram expulsos e as reduções missioneiras acaba-
~am sendo entregues e1n grande parte a funcionários civis. Nesse sentido, 0
acordo entre as potências ibéricas para a redefinição de fronteiras traçando
uma integração no Cone Sul, representado pelo Tratado d~ ~adrid (1750),
desencadeou uma crise que culminou com a Guerra Guaran1tlca ( 1754-1756)
e a posterior desintegração das missões. 33
A presença e a função dos jesuítas tem sido matéria de controvérsias:
de un1 lado, a ideia de que o sucesso das reduções foi alcançado graças ao
esforço e à rígida disciplina imposta pelos inacianos, que protegeram e
defenderam as comunidades de índios contra a exploração administrativa
espanhola e contra as investidas devastadoras de bandeirantes luso-brasileiros;
de outro, a de que as missões jesuíticas integraram e serviram aos interesses
do colonialismo hispânico, na medida em que a catequese e a evangelização
desempenharam a função ideológica de ((domesticar" e ((disciplinar" as massas
de aborígines pagãos e rebeldes. Por esse viés passa tanto o reconhecimento
da cumplicidade de uma prática religiosa com os interesses do poder quanto
a própria pretensão imperialista dos membros da Companhia de Jesus. 34
Até que ponto o governo temporal das missões não acabou projetando uma
república teocrática?
O sistema jurídico da posse social era comunal (junção de práticas
político-legais europeias como solidarismo das reduções indígenas), sendo
utilizado e incentivado pelos ((padres jesuítas espanhóis aos povos guaranis
aí reduzidos. Foi um coletivismo indígena de bases municipais, surgido e
desenvolvido graças à autonomia com que, nessa área, incidiu a legislação da
Coroa de Castela sobre uma realidade nativa suficientemente respeitadà:3 5

33
QUEVEDO, Julio. As Missões - Crise e Redefinição. p. 93-95. Sobre as Reduções
Jesuíticas, observar também: KERN, Arno A. Missões: uma utopia política. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1982; BRUXEL, Arnaldo. 2. ed. Os trinta povos Guaranis.
Porto Alegre: EST/Nova Dimensão, 1987; MELIA, Bartomeu; NAGEL, Liane M.
Guaraníes Y Jesuitas en Tiempo de las Misiones. Una bibliografia didáctica. Santo
Angelo: CEPAG/URI,1995; EISENBERG, José. As Missões Jesuíticas e o Pensamento
Político Moderno. Encontros culturais, Aventuras teóricas. Belo Horizonte: UFMG,
2000.
34
FLORES, Moacyr. Colonialismo e missões jesuíticas. Porto Alegre: EST/ICHRS, 1983 ·
p. 7-18.
35
· RUSCHEL, Ruy Ruben. O direito de propriedade dos índios missioneiros. Veritas.
Porto Alegre: PUC. v. 33, n. 153, março 1994, p. 107.
Parte li. Cap. IV· PLURALIDADE DO DIREITO NA AMÉRICA LUSO-HISPÂNICA 1 103

Nesse contexto histórico, como breve ilustração, mencionam-se aqui as ob-


servações de Arno A. Kern sobre a organização da Justiça missioneira: nas
missões jesuíticas do Paraguai, o "Código Penal estava inserido no Livro de
Ordens, onde se registravam todas as determinações que emanavam quer
das autoridades da Companhia de Jesus, quer das próprias da administra-
ção espanhola. O Código Penal proibia as punições privadas, pois o castigo
deveria servir como exemplo aos demais e assim também se impediam os
excessos. O pior crime que se poderia cometer, o homicídio, era punido com
prisão perpétua, não havendo pena de morte. Cada crime tinha estipulada
a pena, não podendo jamais ser aumentada, mas somente diminuída, pois
eram levadas em conta as boas disposições do culpado (... ). As referências
a prisões nas Missões são inexistentes, ou se referem a prisões domiciliares
(... ). Seguindo os costumes espanhóis, que jamais permitiam a punição de
autoridades em praça pública, os caciques também não sofriam essa pena. Os
culpados jamais eram acorrentados ou algemados, seus casos eram sempre
estudados e as testemunhas ouvidas e acareadas. A punição usual nas Missões
era a reprimenda. Ocorria também, em casos muito extremos, o ostracismo
de certos criminosos para Missões longínquas e mesmo o banimento (... ). O
sistema penal nunca se mostrou rigoroso em excesso, o que foi extraordinário
para uma época em que as punições, mesmo na Europa, eram ainda violentas.
A coercitividade era, assim, mínima, e durante um século e meio não fizeram
os guaranis nenhuma revolta contra os jesuítas, enquanto no mesmo período
as reações contra os encomendeiros foram violentas e frequentes (... ). Só um
sistema penal não rigoroso pode explicar como apenas dois padres podiam
controlar uma Missão inteirà'. 36
Não há dúvida, portanto, de que, no interior das reduções, os jesuítas
se constituíram, ao mesmo tempo, em juízes e em tribunais superiores das
causas indígenas, sendo possível recorrer diretamente ao superior das Mis-
sões. Uma vez que as Missões eram parte da Coroa Espanhola, a legislação

36
KERN, Arno A. Op. cit. p. 57-59. Para maior aprofundamento acerca do Direito e
da Justiça na experiência das reduções guaraníticas, ~xaminar: HERRERO, Beatriz
Fernández. La Utopía de América: Teoría, Leyes, Exper~me~tos. B~rcelona: A~t?ropo~,
1992; CHASE-SARDI, Miguel. El Derecho Consuetudinarw Indigena y su Bibliografia
Antropológica en el Paraguay. Assunción: Biblioteca ~~ragua~a de ~ntro~ol?gia, 1990'.
COLAÇO, Thais L. Incapacidade indígena: tutela religiosa e vwla~ao do direito guaram
nas missões jesuíticas. Curitiba: Juruá, 2~00;_ M~~HAD~, ~lm1res M.; O~TIZ, ~o-
salvo Ivarra. o Sistema Jurídico Guaram: H1stona, Memoria e Cosmologia. Revista
Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS. V.20, nº 40,jul./dez. 2018. p. 61-79; MOREIRA,
Manuel. La Cultura Jurídica Guaraní: Aproximación Etnogr~fica a la Justicia Mbya-
-Guaraní. Buenos Aires: Centro de Estudios de Antropologia e Derecho, 2005.
104 1 HISTÓRIA DO DIREITO -Antonio Carlos Wolkmer

aplicada nas reduções eram as Leis das Índias. À insuficiência ou inadequação


das Leis das Índias na resolução de casos concretos, facultava-se aos jesuítas
da América, por concessão do Papa Paulo III, a elaboração de estatutos ou
normas para suprir essa falta. Assim, como escreve B. Fernandez Herrero, os
jesuítas elaboraram regras específicas "para a sua circunstância local e estas
normas que compuseram o corpo legislativo das reduções foram recolhidas
no Livro de Ordens que cada padre devia ter em sua redução, e que, seguindo-
-o, não daria lugar para improvisações que fizessem diferentes os sistemas
administrativos de cada povo, com vistas a alcançar uma uniformidade (... )".37

4.4 FONTES JURÍDICAS NA COLONIZAÇÃO DA


AMÉRICA PORTUGUESA
Tendo problematizado as origens e as bases da cultura jurídica no
processo de colonização da América espanhola, há de se fazer, igualmente,
algumas observações sobre a legislação e as instituições jurídicas na principal
colônia portuguesa da América. Entretanto, antes do exame da legislação
portuguesa aplicada à sociedade brasileira, cumpre levantar alguns aspectos
de sua estrutura social, econômica e política no período colonial.
Nos primeiros séculos após o descobrimento, o Brasil, colonizado sob
a inspiração do mercantilismo e integrante do Império Português, refletia os
interesses econômicos exclusivos da metrópole. Sendo assim, o país edificou-
-se como uma sociedade agrária baseada no latifúndio, existindo como uma
economia complementar, em que o monopólio exercido era fundamental para
a burguesia mercantil lusitana. A organização social definia-se, de um lado,
pela existência de uma elite constituída por grandes proprietários rurais; de
outro, por pequenos proprietários, indígenas, mestiços e negros. Num dado
momento da colonização, diante do fracasso da tentativa de escravizar os
índios, os grandes proprietários assentaram seu poder econômico e social
no incremento do tráfico escravo negreiro. Já no que concerne à estrutura
política, a Coroa Portuguesa instaurou extensões de seu poder real na Colônia,
implantando um espaço institucional que evoluiu para a montagem de uma
burocracia patrimonial legitimada pelos donatários, senhores de escravos e
proprietários de terras. 38
O empreendimento do colonizador lusitano, caracterizando muito mais
uma ocupação do que uma conquista, trouxe consigo uma cultura considerada

37 HERRERO, Beatriz Fernández. La Utopía de América: Teoría, Leyes, Experimentos.


. p. 322-323.
38
Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. Capítulo VI, desta obra.
Parte li º Cap. IV· PLURALIDADE DO DIREITO NA AMÉRICA LUSO-HISPÂNICA 1 105

mais "evoluída': herdeira de uma tradição jurídica projetada como univer-


. t a que advinha
sa11s ~ .
· R0111ano, mas sem descartar a presença dos
d 0 o·ueito
direitos Canonico e Germânico. O Direito Português acabou constituindo-se
na fonte quase exclusiva da legislação aplicada no Brasil enquanto colônia.
A organização da Justiça, durante a primeira metade do século XVI - no
período das capitanias hereditárias-, estava entregue aos senhores donatá-
rios que exerciam as funções de administradores, chefes militares e juízes.
Posteriormente, com a reforma político-administrativa implantada na fase
dos governadores gerais, impôs-se um sistema de jurisdição centralizadora
e formalista controlado pela metrópole. A primeira autoridade da justiça
colonial foi o ouvidor, que aos poucos teve ampliadas suas responsabilidades
burocráticas e fiscais, a tal ponto que, ao tornar-se ouvidor-geral, acabou
transformando-se num dos cargos mais importantes, juntamente com o de
governador-geral e o de provedor-mor da Fazenda. A criação e o funciona-
mento do Tribunal da Relação, na Bahia, nos primórdios do século XVII,
consolidou uma forma de justiça não mais efetuada pelo ouvidor-geral, mas
realizada por funcionários civis preparados na metrópole. O sistema judicial
lusitano dos séculos XVI e XVII tinha seus tribunais superiores em Lisboa,
funcionando a Casa de Suplicação (último órgão de apelação) e o Desembargo
do Paço (supremo conselho destinado à correção da legislação e à promoção
funcional). Ainda como integrante da organização do judiciário da época,
as juntas de Justiça atuavam como pequenos tribunais em algumas regiões
do país. 39
No que se refere à legislação positiva regulamentadora da colônia por-
tuguesa na América, pode-se dizer que as primeiras disposições legais dessa
fase foram compostas pela legislação eclesiástica, pelas cartas de doação, pelos
forais, pelas cartas-régias, alvarás e regimentos dos governadores gerais. Aos
poucos tornara-se vigente a "legislação portuguesa contida nas compilações
de leis e costumes conhecidos como Ordenações Reais, que englobavam as
Ordenações Afonsinas ( 1446), as Ordenações Manuelinas ( 1521) e as Or-
denações Filipinas (1603). Em geral, a legislação privada com~m, fundada
nessas Ordenações do Reino, era aplicada sem qualque: alteraçao_ em todo o
território nacional. Concomitantemente, a inadequaçao no Brasil de certas
normas e preceitos de Direito Público que vigoravam em Portugal, deter-

39 06 . SCHWARTZ Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil Colonial. São Paulo:


servar. , . J , D· · J (
Perspectiva, 1979; WEHLING, Arno: WE~LING, ~ar(1a ose.808,r)eiRt~ eduJs iça_ n~
Brasil Colonial. o Tribunal da Relação do R10 de Janeiro 1751-1 . 10 e ane1ro.
Renovar, 2004.
106 1 HISTÓRIA DO DIREITO - Antonio Carlos Wolkmer

islação especial que regulasse a organização


laboração de UJna leg
l " . E tretanto a insuficiência as o r d enaçoes
· · d ~
mmava a e para
administrativa da Co o~diad. nda Colôi~ia tornava obrigatória a promulgação
1 todas as necess1 a es d 1
reso ver . d d , rias Leis Extravagantes, fun amenta mente de
avu Isa e mdepen ente e va
cunho comercial. .
, • 1 ~0 referente à política indigenista portuguesa aplicada no
Ja a 1eg1s aça . d - ,. .
. , . d , 1 XVI estava subordinada ao tipo e expansao econom 1ca
1111 c10 o secu o . 1
e u1tramanna p · roJ·etada pela metrópole, divergindo comp
_ etamente . da
Coroa Hispânica. Desde O início da conquista e da ocupaçao das Antilhas,
a Coroa Espanhola preocupou-se com a colonização, com os ~roblemas
da escravidão dos nativos e com uma política jurídica de proteçao e defesa
dos índios. Distintamente, só com o declínio português no Oriente e com a
invasão dos franceses no litoral brasileiro é que se instaurou a colonização.
Desse modo, seguindo as diretrizes do expansionismo lusitano do século
XV, o comércio de escravos não só foi praticado desde os primórdios da
ocupação do Brasil, como a própria Coroa Portuguesa passou a conceder
o privilégio, para pessoas particulares, de uma licença especial para o co-
mércio de escravos. 40
A preocupação e a atenção da Metrópole com uma política regulamen-
tadora das práticas da escravidão do índio nos domínios portugueses só
começaram a aparecer com a instauração do sistema político-administrativo
dos governadores gerais.
As linhas essenciais e gerais da futura política indigenista da Coroa
Portuguesa na colônia principiava a ser traçada, no dizer de Georg Thomas,
com o Requerimento do primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, que
ditava claramente, como propósitos: «a) a conversão dos pagãos à fé cristã;
b) a preservação da liberdade dos índios, assim como a luta contra as tribos
inimigas; c) a fixação dos indígenas". 41 É também com Tomé de Sousa, em
1549, que chegam os primeiros padres da Companhia de Jesus, supervisio-
nados por Manuel da Nóbrega. De todas as ordens religiosas, os inacianos
foram ~s q~e rec~ber~m o maior apoio oficial de Portugal no projeto de
e:7a~gelizaçao. Os Jesmtas, particularmente José de Anchieta foram respon-
save~s p~los primeiros esforços na defesa pela liberdade e con~ra a escravidão
dos mdigena~; Não menos verdade ta1nbém, como recorda Georg Thomas,
que Portugal encontrou na O rdem dos Jesmtas , o instnunento para rea1·1zar

4
° Cf. THOMAS Georg Pol't' · d' ·
· 1 ica m igemsta portuguesa no Brasil· 1500-1640 São Pau10 ··
Loyo Ia, 1982, 'p. 34, 36-37. · ·
41
THOMAS, Georg. Op. cit., p. 60 _
Parte li· Cap. IV· PLURALIDADE DO DIREITO NA AMÉRICA LUSO-HISPÂNICA 1 107

as tarefas da política indigenista real, que fomentava, simultaneamente, a


conversão, a educação e a civilização dos índios". 42
Ainda que o Requerimento de Tomé de Sousa se constituísse no primeiro
passo, na verdade a política indigenista portuguesa começava a ser mesmo
efetivada com as medidas legais de Mem de Sá (1557-1572) que, para Georg
Thomas, foi o "mais importante administrador português do século XVI':
Além das disposições provisórias do governador Mem de Sá, que garantiram
a liberdade e segurança aos índios contra os ataques dos colonos portugue-
ses, acrescentam-se igualmente, no lento, descuidado e esporádico processo
de solidificação de uma política indigenista, os decretos da Junta de 1566,
que ampliaram as determinações sobre a defesa das populações indígenas e,
finalmente, a Lei dos Índios, de 1570, decretada por D. Sebastião. Essa Lei dos
Índios é apontada por Georg Thomas como a primeira lei portuguesa sobre
a liberdade dos índios brasileiros: estabelecia um controle sobre a escravidão
existente, ou seja, a lei definia "a liberdade completa unicamente a uma parte
dos indígenas; a escravidão subsistiu numa certa medida. O Decreto Real
pode ser interpretado como aprovação de uma escravidão controlada, sobre
cuja necessidade, para a conservação da Colônia, até os jesuítas estavam de
acordo': 43 Outras inúmeras leis de proteção e reconhecimento do direito à
liberdade indígena se sucederam entre fins do século XVI e início do século
XVII (período de domínio espanhol), sem profundas nem decisivas mudanças
na tradicional política do colonialismo português.
A prática político-jurídica colonial reforçou uma realidade que se repe-
tiria constantemente na história posterior do Brasil: a profunda dissociação
entre o Direito feito para garantir os interesses da elite administradora e a
justiça permanentemente almejada e negada para uma população composta
por indígenas, escravos negros e imensos segmentos societários excluídos.
Entretanto, a problematização da justiça e da legalidade durante a coloniza-
ção lusitana não incide somente na efetivação e no controle das populações
indígenas, mas compreende também a regulamentação da violência física às
comunidades apropriadas da África e da discriminação social da cultura negra.
Após os primórdios da conquista, a escravidão dos indígenas foi substituída
pelo monopólio e pela exploração da força de trabalho dos escravos africanos.
Ainda que a escravidão negra tenha sido a instituição social e econômica mais
marcante da sociedade colonial brasileira, a cultura legalista da época e seus
juristas não trataram com a devida atenção a questão da escravidão. A legis-

42
THOMAS, Georg. Op. cit., p. 62 e 93.
43
THOMAS, Georg. Op. cit., p. 104.
108 1 HISTÓRIA DO DIREITO -Antonio Carlos Wolkmer

_ .t tava fundada na lógica dualista de uma sociedade natural


laçao escravis a es (b , b
. .d.d t homens livres (brancos e cristãos) e escravos ar aros). Os
d1vi 1 a en re d 1· ' ·
" tri·cos supostamente universalistas a _e ite agrana negavam
.
va1ores eurocen
, . d.irei·t os dos escravos uma vez que eles nao _eram considerados
os poss1ve1s . .' . _
ou coisas suJeitos a apropnaçao, doaçao, . venda ou heran-
pessoas, ma S bens _ .
ça. o sistema jurídico assentava-~e n~ma concepç~o de JUStlça qu~ tratava
os sujeitos capazes e livres como iguais e os escravizados co~o obJet? sem
capacidade e vontade próprias, passív~l de um tr~ta_m ent~ desigual. Alem _do
desprezo e da negação às práticas plurais de um Direito nativo e ~e uma Justiça
informal, o projeto de colonização expansionista portuguesa implementou
as condições necessárias para institucionalizar uma ordem de controle e de
regulamentação essencialmente formalista, elitista e segregadora.
De fato, ao total descaso das autoridades coloniais, cabe sublinhar a
ausência de uma legislação estatal contempladora da proteção, de garantias
e de direitos das comunidades subjacentes e populares.

4.5 PARADOXOS E AMBIGUIDADES DO HUMANISMO NA


CULTURA JURÍDICA LATINO-AMERICANA44
Se havia identidade na cultura jurídica europeia, de fins da Idade Média
quanto a ênfase pelos estudos de Direito Canônico e pelo legado clássico, por
outro lado, o ideário do humanismo renascentista não se fazia chegar em
algumas regiões do Velho Contine .nte, como a Península Ibérica. 45 Por longos
séculos, a Ibéria conquistada e povoada por diferentes etnias (fenícios, gregos,
romanos, germânicos e sarracenos) constituiu o rico cenário da mescla de
diferentes culturas e da pluralidade de padrões de normatividade social. Na
verdade, o escolasticismo ortodoxo da Espanha e de Portugal transformou-se
na principal defesa de sustentação da Contrarreforma, reação do papado aos
surtos renascentistas e reformistas.
Ante a expansão econômica, política e militar dos países ibéricos na
América, e com a obrigatoriedade de regulamentar e garantir a transferên-
cia da riqueza extraída das colônias conquistadas para as metrópoles, fez-se
necessário organizar um sistema normativo prático e eficaz. Torna-se, assim,
fundamental desenvolver uma regulamentação jurídica capaz de legitimar

44
Trata-se
.
· J·á_ expostas e adaptadas, originariamente, em textos
aqui d 0 re~ga te d e I·d e ias
anteriores: Humanismo e Cultura Ju rídica no Brasil. Florianópolis: Fundação BoiteUX,
2004. p. 22 -36.
45
Obse~var, a ~r?p_ósito: CANNATA, Cario A. Op. cit., p. 148-149; COSTA, Mario J. de
Almeida. Historia do Direito Português. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999. p. 319-3 24 ·
Parte li· Cap. IV· PLURALIDADE DO DIREITO NA AMÉRICA LUSO-HISPÂNICA 1 109

o processo de exploração e colonização, uma legislação montada a partir do


velho Direito vigente na Península ibérica, com acréscimos de dispositivos
emergentes em razão de situações novas.
Além do transplante do Direito positivo colonizador, torna-se relevante
desenvolver fundamentações de autoridade para uma cultura jurídica impo-
sitiva e legitimadora, supostamente superior e universalista, o que explica a
necessária importação de pressupostos jusfilosóficos para a inserção como
referência norteadora.
Em tal direcionamento oficializante, e no contraponto de resistência,
compreende-se o porquê da adoção, no apagar das luzes do cenário medie-
val de uma filosofia jurídica de tipo "humanistà', questionadora da tradição
escolástica (que dá substrato à legitimação ordenadora dos colonizadores
ibéricos) e defensora da legislação em defesa dos inocentes aborígines do
Novo Mundo.
Antes de mais nada, trata-se de verificar as diferenciações entre o
humanismo jurídico que, centrado na investigação erudita das fontes
antigas, expressa impulso individualista e faz-se portador de certos ideais
críticos às tradições medievais e o espírito humanístico e renovador - de
matiz escolástico - materializado pelos juristas-teólogos, principalmente
de Salamanca.
Explica-se, assim, o sopro dos ventos da Renascença e do Humanismo
de circulação na Península ibérica, como igualmente o pensamento jurídico
erudito centrado na valoração e na reprodução dos estudos romanísticos
e canonísticos. Mas qual foi o impacto do humanismo nessa tradição do
Direito no final do medievo. Ora, como ressalta Mário J. de Almeida Costa,
não se deve conceber o ((humanismo jurídico como um simples movimento
cultural dominado pela filosofia e pela investigação erudita das fontes que
continham as normas do direito romano (studia humanitatis). Convirá
encará-lo num horizonte mais amplo, abrangendo o conjunto das correntes
espirituais e intelectuais, mormente os impulsos racionalistas e individua-
listas, que definem esse período. O humanismo jurídico desenvolveu-se, de
fato, sob diversas tendências: desde as filológico-críticas, orientadas para o
estudo e a reconstrução dos textos clássicos, até a que reivindicava liberdade e
autonomia ao jurista na exegese da lei, portanto, perante a opinião comum ou
interpretação mais aceita:' 46 Certamente, o advento do humanismo jurídico,
entre os séculos XV e XVI, na Europa, e, particularmente, na Itália, surge
como um contraponto teórico à tradição mais prática dos comentadores

46
COSTA, Mário J. de Almeida. Op. cit., p. 321 -322.
11 O I HISTÓRIA DO DIREITO - Antonio Carlos Wolkmer

ade tos de Bártolo de Sassoferrato, introdu zindo, por meio ~a crítica e da


eru~ição, "novas técnicas históri cas e filológicas" no trato da ciência jurídica
e da recepção do Direito roman o. 47
Ora, enquan to o human ismo jurídic o favoreceu a supera ção de interpre-
tações consideradas demas iadame nte pragm áticas e a valoriz ação da pesquisa
crítica histórica, o human ismo de inspira ção cristã irá influen ciar e despertar
aspirações políticas diversas ao longo do proces so de coloni zação das Índias
e do cenário cultural, sob a égide do impéri o espanh ol de Carlos V. 48
Ainda que se reconh ecesse m as teses acerca do Direito dos indígenas,
e os partidá rios da escravatura houves sem sido vencid os, assinal a Touchard
que o regime da exploração do trabalh o human o não chegou a ser banido.
Na verdade, os defensores human istas dos nativos, dentre os quais aparece
com destaq ue Bartol omé de Las Casas,

não conseguiram mudar por completo o curso dos acontecimentos,apesar


de alguns êxitos obtidos ao princípio, como seja, sobretudo, a promulgação,
em 1542, das Novas Leis. Embora o idealismo human ista só parcial-
mente tenha conseguido humanizar a colonização das Índias Ocidentais,
a verdade é que não deixou de estimular nessa época, no âmbito da vida
intelectual da Espanha, o pensamento político e o pensamento religioso,
estreitamente ligados. 49

Certam ente, a cultura jurídic a moder na e europe ia, formal izada teórica
e instrum entalm ente entre os séculos XVII e XVIII, teve, como uma de suas
diretriz es fundan tes, um jusnatu ralism o human ista de base racionalista.
No cenário da socied ade moder na, pode-s e destac ar dois momen tos dessa
tradição centrad a em princíp ios do human ismo realista e secularizado de
ruptura . Primei rament e, a manife stação renova dora e raciona lista de um
human ismo que se opôs ao model o jurídic o-pena l e proces sual - ligado à
tradição clerical inquisitorial e à antiga estrutu ra monár quica de privilégios.
Assim, em oposição ao discurs o intoler ante dos proces sos inquisitoriais e
ao absolutismo sacralizado emerge o jusraci onalism o, como base de uma
nova cultura jurídica, enquan to expressão da vontad e e razão humanas. Esse
processo de laicização do Direito decorr eu, no dizer de Salo de Carvalho, da
práxis jurispr udenci al revolucionária dos magist rados, do human ismo penal

47
Cf. CANNATA, Cario A. Op. cit., p. 148-149; SKINNER, Quentin . Op. cit., P· 220 -
227; CAENEGEM, R. C. van. Op. cit., p. 58-61.
48
Cf. TOUCH ARD, Jean. Op. cit., v. II, p. 34.
49
Cf. TOUCH ARD, Jean. Op. cit., p. 34.
Parte li• Cap. IV• PLURALIDADE DO DIREITO NA AMÉRICA LUSO-HISPÂNICA 1 111

do racionalismo jurídico. Ora, esse processo que consolida o Iluminismo,


e campo d o D1re1to,
. . representará
110

( .. . ) uma mudança nuclear em matéria de legitimidade dos sistemas jurí-


dicos. Enquanto a Inquisição era justificada a partir de uma teoria jus-
naturalista de ênfase teológica, o Iluminismo utilizaria uma justificativa
também jusnaturalista, só que de cunho humanitário, para exercer papel re-
volucionário. ( ... ).Não se pode negar de maneira alguma o aspecto positivo
que o Iluminismo jurídico, através da jurisprudência, do humanismo e do
racionalismo, teve na laicização do direito e na formulação principiológica
de garantias de liberdades.50

Outro momento em que a "crítica" humanista reaparece no Direi-


to Ocidental situa-se no processo de sistematização e de dogmatização
formalista que se sucedeu às grandes codificações do século XIX. Natu-
ralmente, a dinâmica "desencadeada pela Revolução Industrial (século
XIX) e suas consequências na modernidade tecno-científica, bem como
os vastos movimentos de codificação e consolidação sociopolítica da
burguesia acabaram propiciando a expressão máxima do racionalismo
formal moderno, ou seja, o positivismo:' 51 A doutrina contemporânea do
positivismo jurídico acabou desempenhando uma função de legitimação
da cultura liberal-individualista desumanizadora, ocultando as desigual-
dades socioeconômicas da estrutura capitalista de poder. Daí, a retomada
do ideário humanista no Direito, por meio de concepções jusfilosóficas
que questionam os estatutos epistemológicos da dogmática legalista. Desse
modo, como assinala Arno Dai Ri Jr, "a crítica à ditadura da lei, a exalta-
ção das estruturas antilegalistas e do uso da jurisprudência são fontes de
humanização da aplicação da esfera jurídica."52
Foi, sem dúvida, significativo esse humanismo secularizado, raciona-
lista e iluminista predominante na cultura jurídica moderna. Entretanto,
a utilização e aplicação retórica de seus princípios, na América luso-
-hispânica colonizada, não representaram manifestações autênticas de

5()
CARVALHO, Saio de. "Da D escon strução do Modelo Jurídico Inquisito rial''. ln:
WOLKM ER, Anto ni o C. (Org.). Funda mentos de História do Direito. 9. ed. Belo
Horizonte: Dei Rey, 201 6. p. 316-3 17.
Si
WOLKME R, An to nio C. Ideologia, .Estado e Direito. 2. ed. São Paulo : Revista dos
Tri bunais, 1995. p. 59
52
DAL RI JÚ NI OR , Arn o. " Hum a ni sm o La tino e C ultu ra Jurídi ca''. ln: PAVIANI,
Jayme; DAL RI JÚNI O R, Arn o (Org.) . Globalização e Hu manismo Latino. Po rto
Alegre: ED IP UC/RS - Cassa m arca, 2000. p. 133 - 134.
112 1 HISTÓRIA DO DIREITO -Anton io Carlos Wo/kmer

ru Ptura , transformação e de emancipação, mas revelaram-s «


e proclamações
abstratas, portad oras de efeitos contra ditóri os, entre suas pretensões e
. - » 51
suas rea 11zaçoe s .· ·
É inegável que Espanha e Portug al edific aram os prime iros grande
s
impérios europeus no Atlântic~, tr~nsmiti~do, co~ ~ proces~~ de ~ol?~iza-
ção, formas decisivas de organ1zaçoes soc10econom1cas, pohhco-Jund1cas,
culturais e institucionais, nas suas possessões coloniais do centro e do sul
da América. Impor ta ter presente, assim, que as naçõe s latino-americanas
se estrut uram confo rme o mode lo das metró poles ibéricas, perfazendo
características e tendências que, alteradas em maior ou meno r nível, perdu-
raram até princípios do século XIX, quand o do processo de independência. 54
Certamente, um fator estratégico que deve ser consid erado na formação
das nações do Novo Mund o é o pouco impac to exercido sobre as metró-
poles ibéricas dos grand es movim entos revolucionários, constitutivos da
mode rnidad e. Portugal e Espan ha perma necer am distan tes de processos
mode rnizan tes e de movim entos sociopolíticos (Rena scime nto, Reforma
Protestante, emergência do Capitalismo, revoluções liberais burguesas) que se
manif estara m no resto da Europa. 55 Naturalmente, o legado transm itido para
as colônias luso-h ispâni cas reproduzia, no dizer de Howa rd J. Wiarda, (([ ... ]
uma cultur a polític a e uma ordem sociopolítica essen cialm ente biclassista,
autori tária, tradic ional, elitista, patrim onial, católica, estratificada, hierár-
quica e corpo rativa :' 56 Tais traços estrut urais vão se revelar durad ouros e
persev erante s até o mund o conte mporâ neo. Na verda de, ainda que fluxos de
mode rnidad e, far-se-ão presentes na evolução das naçõe s latino-americanas,
a«[ ... ] cultur a política e as instituições tradicionais mostr aram- se permeáveis,
acomo datíci as e absorventes, ceden do à muda nça sem deixa r-se sobrepujar
por ela, prese rvand o dessa forma sob muito s aspec tos sua essência [... ]" 57
elitista, patrim oniali sta e conse rvado ra.
De toda manei ra, o século XV mostr a uma Espan ha unificada, marcada
pelo processo de Reconquista (toma da de Grana da em 1492) e pela expansão
ultram arina na América, inicia ndo a polític a de colon ização e passando de

53
CHATELET, François; PISIER-KOUCHNER, Évelyne. As Concepções Política
s do
Século XX. História do pensam ento político. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p. 84.
54
Cf. KAPLAN, Marcos. Formación dei Estado Nacional en América Latina.
Buenos
Aires: Amorr ortu, 1983. p. 55.
55
Cf. WIAR DA, Howar d J. O Modelo Corporativo na América Latina e a
Latino-
-Americanização dos Estados Unidos. Petrópolis: Vozes, 1983. p. 17.
56
WIARDA, Howar d J. Op. cit., p. 17.
57
Idem.

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