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A CIDADE, O PATRIMÔNIO E SEU ENTORNO: DIÁLOGOS E

DESAFIOS NAS POLÍTICAS URBANAS


THE CITY, THE HERITAGE AND ITS SURROUNDINGS: DIALOGUES AND CHALLENGES IN
URBAN POLICIES

LA CIUDAD, EL PATRIMONIO Y SU ENTORNO: DIÁLOGOS Y DESAFÍOS EN LAS POLÍTICAS


URBANAS
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

NITO, Mariana Kimie da Silva


Mestre em Preservação do Patrimônio Cultural; Universidade de São Paulo
mknito@usp.br; marykn@gmail.com
RESUMO

A discussão sobre a relação entre cidade preexistente e preservação aparece desde os primeiros textos
sobre valor histórico e cultural de bens materiais, tendo recebido diferentes enfoques de acordo com
sua trajetória conceitual. Entre as abordagens há a figura do “entorno” ou “vizinhança” como um
instrumento de restrição de uso para a preservação de bens tombados. Ampliaram-se significativamente
as potencialidades e significações do entorno como instrumento de preservação urbana, ganhando
jurisprudência e importância nas políticas empreendidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico
Nacional (Iphan). Este artigo tem como objetivo refletir sobre a história das políticas de entorno de bens
tombados pelo Iphan junto à história das cidades brasileiras e suas relações na atualidade. Pretende-se
contribuir ao entendimento da política de patrimônio brasileira nas cidades como parte da política
urbana.
PALAVRAS-CHAVE:​ ​Entorno de bens tombados. urbanismo. lphan.

ABSTRACT

The discussion about the relation between the preexisting city and conservation appears since the early
writings of the historical and cultural value of buildings, with different foci according to its conceptual
trajectory. Among the usual approaches, there is the figure of the "surroundings", "neighborhood" or
"buffer zone" as an instrument of usage restriction for the preservation of listed buildings and spaces.
The potentialities and meanings of the surroundings widened significantly as an instrument of urban
preservation, gaining jurisprudence and importance in policies enacted by the Institute of Historic and
Artistic Heritage (Iphan). This paper aims to reflect on the history of policies surroundings of listed
buildings by Iphan along with the history of brazilian cities and their relations today. We aim to
contribute to the understanding of brazillian heritage policy in cities as part of urban policy.

KEYWORDS: ​Surroundings of listed buildings. urbanism. Iphan. Brazil.

RESUMEN

La discusión sobre la relación entre la ciudad preexistente y la preservación aparece desde los primeros
textos sobre el valor histórico y cultural de los bienes materiales, habiendo recibido diferentes enfoques
según su trayectoria conceptual. Las potencialidades y significados del entorno se han ampliado
significativamente como un instrumento de preservación urbana, ganando jurisprudencia e importancia
en las políticas emprendidas por el Instituto Nacional del Patrimonio Histórico y Artístico (Iphan). Este
artículo tiene como objetivo reflexionar sobre la historia de las políticas que rodean los bienes
enumerados por Iphan junto con la historia de las ciudades brasileñas y sus relaciones actuales. Su
objetivo es contribuir a la comprensión de la política patrimonial brasileña en las ciudades como parte de
la política urbana.
PALABRAS-CLAVE​: Entorno de los bienes inmuebles de interes cultural. urbanismo. Iphan. Brasil.

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


INTRODUÇÃO

Discussões sobre a proteção às áreas urbanas estiveram presentes no Brasil mesmo antes do
início das políticas de preservação do patrimônio, no final dos anos 1930. Entorno, vizinhança,
área envoltória ou de tutela são algumas das denominações empregadas por órgãos de
preservação, legislações e cartas patrimoniais para formular um conceito que se refere à área
que circunda o bem tombado, sujeita a restrições de uso e ocupação, efetivando a
conservação pela relação do bem com seu espaço imediato. A menção ao entorno já estava
presente nas propostas que antecederam o Decreto-Lei nº25/1937, que cria o instituto do
tombamento e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), sendo, por fim,
incorporado pelo Artigo 18 desta lei. Codificada legalmente como área de possível perturbação
de visibilidade do patrimônio, significados e valores do entorno variaram ao longo do tempo e
da jurisprudência adquirida, passando a ser conceituado como área na qual a ambiência deve
ser mantida. Apesar de definido na legislação desde 1937 e do desenvolvimento conceitual
existente, o entorno é um assunto que não está plenamente resolvido nos órgãos de
preservação, pois não há consenso quanto à sua interpretação, à forma de demarcação de
perímetro e, ainda, às normas incidentes (Motta; Thompson, 2010; Meneses, 2006; Nito,
2015).

A complexidade do tema do entorno de bens tombados se dá por sua natureza dual, ou


mesmo ambígua, dada sua significância tanto para o bem quanto para a cidade. Em termos
gerais, é um instrumento para a preservação de bens tombados que possibilita diferentes
leituras dos mesmos no tempo e no espaço, ampliando o potencial de proteção do patrimônio
junto ao meio cultural em que está inserido. Nas palavras de Meneses (2006) o valor do
entorno é adjetivo, um espaço qualificador do bem tombado, trata-se de um invólucro espacial
que compõe seu valor. O entorno afirma a relação do bem tombado com a cidade, onde ele
participa da composição do espaço de diversas maneiras (morfológicas, sociais e econômicas)
que dizem respeito à preservação (Rabello, 2009). Portanto, o entorno está em função do bem
cultural, mas também é imagem de sua relação com a cidade (Nito, 2015), ao mesmo tempo
em que pode desempenhar diversos papéis relevantes para a dinâmica urbana.

A partir da década de 1970, os debates sobre a preservação do patrimônio em cidades se


tornam ainda mais intensos em consequência não apenas da valorização do solo urbano e da
verticalização das cidades, como da participação da sociedade civil na decisão sobre os
projetos para a cidade, promovida pelo processo de redemocratização do país. O campo do
patrimônio reivindica, então, pautas urbanas para articular preservação e desenvolvimento das
cidades, além da adoção de parâmetros urbanísticos para a preservação. O entorno era
entendido não como um instrumento que restringe a expansão urbana da cidade, mas como
indutor de sua ordenação e de uma gestão do patrimônio integrada ao planejamento urbano
(Motta e Thompson 2010, p. 75).

Por excelência, o entorno apresenta-se como um campo de acomodação de tensões, pois


envolve diferentes atores sociais e diferentes interesses. Contradições e fronteiras surgem no
diálogo entre preservação e ordenação urbana, de maneira que a conservação será pouco
efetiva se ocorrer de forma independente. Neste artigo iremos refletir sobre como a história
implementação das políticas de entorno pelo Iphan se articularam a história do planejamento
urbano e a condução da política urbana, problematizando também as relações entre
patrimônio e urbanismo na atualidade. Tal análise é fruto das primeiras investigações de
pesquisa de doutorado em andamento da autora e que possui financiamento do CNPq.

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


PATRIMÔNIO E SEU ENTORNO EM ÁREAS URBANAS

Entre os elementos que direcionaram as primeiras reflexões de interesse à preservação de


cidades estão o processo de industrialização e o adensamento urbano em diversas cidades,
sobretudo europeias, no século XIX, cujos registros de intelectuais como John Ruskin e William
Morris, ou ainda Charles-Pierre Baudelaire, manifestam as mudanças físicas e sociais ocorridas
em detrimento da cidade velha. A questão da cidade como bem cultural e a reflexão de
alternativas às práticas de intervenção urbana são levantadas pelos teóricos da estética
urbana, a exemplo de Camillo Sitte, Charles Buls, Max Dvořák e Gustavo Giovannoni (Rufinoni,
2013; Cabral, 2013). Surgem, então, críticas à preservação isolada, pautando a arquitetura
cotidiana e não monumentais.

Renata Cabral (2013) destaca que as contribuições teóricas e empíricas de Giovannoni sobre a
noção de ambiente foram fundamentais ao entendimento da relação entre desenho,
planejamento e conservação urbana. Os discursos desenvolvidos não se relacionavam
diretamente a preservação de determinado tecido urbano, mas estavam preocupados com
questões políticas muito mais amplas, como outro tipo de vida e outro modo de produção
urbana contrária aos urbanistas e higienistas do século XIX (Choay, 2001).

Nas discussões internacionais, referências à vizinhança e à ambiência de monumentos estão


presentes nas duas Cartas de Atenas de 1931 e de 1933. Ambas as cartas, mesmo com nuances
diferentes, influenciaram o Iphan desde seu início como evidente na inclusão dos termos
vizinhança e visibilidade no Artigo 18 do Decreto-Lei nº25/37 e na atuação dos profissionais
ligados ao movimento modernista brasileiro, que estavam à frente da instituição: “​sem prévia
autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da
coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade […]” (BRASIL, 1937).

Debates e enfrentamentos jurídicos pela aplicabilidade do Decreto-Lei nº 25/37 fortaleceram a


noção de entorno e ganharam jurisprudência no seu entendimento mais amplo. A história das
políticas de entorno de bens tombados no Brasil, no panorama da atuação do Iphan, foi
sintetizada por Motta e Thompson (2010), que em pesquisa nos arquivos institucionais
propuseram a periodização a seguir:

Períodos Duração Nomenclatura Características

Primeiro 1937 a 1965 Memoráveis batalhas judiciais Embates legais e jurisprudência

Segundo 1965 a 1980 Preservação como política Relação gestão urbana e qualidade de
urbana vida

Terceiro 1980 a 1986 Procedimentos e normas Institucionalização e debates teóricos

Quarto 1986 a 2003 Rotinização da prática Aplicação instrumental e estudos

Quadro 1: Periodização do entorno no Iphan com base nos estudos de Motta e Thompson (2010).

O primeiro período, com nomenclatura de “memoráveis batalhas judiciais”,expressão cunhada


por Márcia Sant’Anna, é caracterizado pelo cenário de maior intervenção do Estado, das
ideologias no planejamento urbano e de novas formas de organização social que promovem
outras formas de organização do espaço (Feldman, 2001). As práticas de preservação do
patrimônio na cidade, na aplicação de sua política e de seus conceitos, entram na concorrência

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


na produção do urbano. Às cidades é atribuído um valor de uso mais expressivo, no qual a
verticalização assume sentido e se revela a potência do binômio urbanização e industrialização
(Somekh, 1996; Souza, 1994).

Caso emblemático do primeiro período do Quadro 1 foi o entorno do Outeiro da Glória no Rio
de Janeiro/RJ que se prolongou de 1949 a 1965, acumulando processos judiciais, com sentença
final favorável ao Iphan. Um dos processos resultou na demolição de quatro andares de um
edifício que comprometeria a apreensão topográfica da área, baseado no conceito de
visibilidade não limitada a relação física (Motta; Thompson, 2010). Para Nascimento, não
conseguindo impedir as modificações urbanas e a verticalização, o patrimônio tornou-se fonte
de acordos na cidade, tendo o Iphan como “ente de negociação entre os vestígios do Rio de
Janeiro colonial e imperial e a transformação da cidade no século XX” (2018a, p. 304).

Nas décadas de 1960 a 1980, as práticas de preservação por meio do entorno se relacionaram
com o alargamento do conceito de patrimônio, devido ao “monumento ser inseparável da
história e do meio em que se situa”, como postulado na Carta de Veneza, de 1964 do Icomos.
A preocupação com a proteção por meio de outros critérios para além da monumentalidade
era evidente. Essa perspectiva foi potencializada no Brasil ao se agravarem as críticas sobre os
efeitos do tombamento aplicado a conjuntos urbanos (Sant’Anna, 2015. p. 288). Dessa forma o
Iphan, mesmo não sistematicamente, procurou articular suas políticas de preservação com as
novas questões urbanas e os desafios que as cidades impõem ao patrimônio.

A questão urbana torna-se primordial nessa época em decorrência da industrialização e do


intenso fluxo migratório campo-cidade. Segundo Rolnik (2000), os dados do IBGE apontam que
a população urbana em 1960 era de 44,7% e dez anos depois passa a ser 55,9% da população
brasileira. Para Milton Santos (2018), o processo de urbanização que ocorre a partir de 1970,
alcança outro patamar com o aumento do número de cidades, principalmente as médias, e da
metropolização. O aumento dos índices de urbanização e da escala urbana é acompanhado por
uma disparidade em relação aos instrumentos e métodos de intervenção pública sobre o
espaço urbano, que estavam em seu auge de criação1, indicando um processo de urbanização
excludente (Rolnik, 1997; Villaça, 2001).

O processo de redemocratização do país nos anos 1980 acarretou na organização de


segmentos da classe média urbana para reivindicação aos setores públicos de ações que
visassem melhor qualidade de vida urbana pelo patrimônio. Essa mobilização ocorreu em
contraposição ao crescimento e à verticalização excessiva das cidades, decorrentes da
valorização do solo urbano (Fonseca, 1996. p.158). A política de entorno era visto como uma
alternativa de preservação junto à gestão urbana e pautado como uma política urbana que
ainda estava se formulando. O entorno era entendido não como um instrumento que restringe
a expansão urbana da cidade, mas como indutor de sua ordenação e de uma gestão do
patrimônio integrada ao planejamento urbano (Motta e Thompson 2010, p. 75).

O entorno foi tratado como “uma proposta de preservação sem tombamento” (Arnaut, 1984),
ou seja, houve uma preferência pela utilização do entorno para a proteção de áreas urbanas
sem o uso do tombamento para toda a região. Como exemplos, temos os processos de
1
Entre 1960 e 1970, houve a construção de vários planos urbanos, em sua maioria financiados pelo Serviço Federal
de Habitação e Urbanismo (SERFHAU) (Cymbalista; Santoro, 2009). Feldman (2005) questiona os tratamentos
simplistas geralmente atribuído a esses planos e instrumentos apontados como tecnocráticos. A autora revela que
eles precisam ser mais estudados, como exemplo, Nascimento (2018b) destaca como o Plano Urbanístico Básico da
Cidade do Rio de Janeiro de 1976 era sensível às preexistências urbanas da cidade e seu valor a qualidade urbana.

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regulamentação do entorno da Igreja N. S. do Desterro e do Morro da Conceição, no Rio de
Janeiro/RJ e Igreja do Carmo de Goiás/GO. Por outro lado, houve casos em que alguns bens
foram tombados para assegurar o entorno qualificador de um bem previamente acautelado. É
o caso dos tombamentos Conjuntos arquitetônicos à Avenida Nazareh e Avenida Governador
José Malcher, ambos em Belém/PA e da Área Central da Praça XV e imediações, no Rio de
Janeiro/RJ.

O terceiro período estabelecido por Motta e Thompson (2010) esteve marcado por
investimentos internos do Iphan na reflexão sobre os processos feitos até então. Houve a
discussão teórica por meio de dois seminários internos e da formulação de um método para
atuação em 1983, e a criação de procedimentos administrativos específicos (Portarias nº 10 e
11, de 1986) para tornar os processos mais claros e transparentes, apropriados ao momento
de redemocratização do país. As discussões institucionais se apressaram e intensificaram
devido ao processo de redemocratização, principalmente, para debater “a extensão do poder
discricionário da SPHAN e sua competência legal para intervir no controle do uso do solo
urbano” (Sant’Anna, 2015, p.293).

Entre os procedimentos administrativos, foi instituída a abertura de Processos de Entorno para


estudos específicos que seriam feitos separados e/ou abertos paralelamente ao de
tombamento. A diferença para com o de tombamento decorria da definição de parâmetros de
ordenação urbana, dentro dos quais as alterações não dependeriam de aprovação do Iphan
(Motta e Thompson, 2010 p.85). Outra ideia que estava em pauta, mas que não chegou a ser
efetivada, era a criação de um Livro de Entorno de registro das áreas aprovadas pelo Conselho
Consultivo, assim como ocorre com os bens tombados.

Devido à extensão burocrática, além de terem sido pouco utilizados, os processos específicos
para as áreas entorno caíram em desuso, sendo o entorno regulamentado de outras formas de
acordo com a necessidade de cada região. Uma maior concentração de estudos de entorno se
deu no Rio de Janeiro, local que concentrava o grupo de técnicos defensores de sua utilização.
Tais ações de preservação e discussões normativas demonstram a preocupação dos técnicos e
dirigentes do Iphan em regulamentar os procedimentos sobre as áreas de entorno na década
de 1980. A regulamentação do entorno contribuiu para manter a relevância do Artigo 18 do
Decreto-Lei nº27/1937. Para Sant’Anna (2015, p. 294 e 295), isso corroborou com o poder
discricionário de atuação do Iphan, que manteve sua atuação em áreas urbanas.

No final da década de 1980, a adoção de novos instrumentos legais para promoção do


desenvolvimento urbano que contemple a preservação só seria possível a partir de outro
regime jurídico da propriedade urbana. A política urbana só é concretizada nos Artigos 182 e
183 da Constituição Federal de 1988. Da mesma forma, é a Carta Magna que dá alicerces às
práticas ampliadas de preservação, pelos Artigos 215 e 216, reconhecendo o patrimônio
imaterial e o papel fundamental da sociedade civil na proteção do patrimônio cultural.

Porém, segundo Sant’Anna (2015), na década de 1990, a adoção de novos instrumentos e


políticas de desenvolvimento urbano que contemplem a preservação não registraram nenhum
avanço. De acordo com a autora, apesar do avanço das discussões conceituais, a preservação
do patrimônio nas cidades se voltou para investimentos grandes e pontuais, voltadas apenas à
restauração de imóveis. Para Scifoni (2017) a realidade do patrimônio na gestão urbana no
Brasil é marcada por constantes demolições e pela degradação de edificações que são
pensadas como atrativos para projetos de revalorização imobiliária. Isso ocorreu devido ao

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modelo neoliberal que se configurou no final do século XX, no qual o padrão urbano de
segregação socioespacial transforma as cidades em locus de exploração intensiva do capital,
em geral favorecendo as classes sociais dominantes. (Deák, 1991; Maricato, 1997).

Já em âmbito internacional, o destaque ao entorno é firmado com especificidades ampliadas


como fator integrador dos aspectos materiais e imateriais contribuintes de significado e
caráter ao bem tombado, conforme a Convenção do Patrimônio Imaterial de 2003, da Unesco,
e a Declaração de Xi’An2, específica sobre entornos, de 2005, do Icomos. Junto à percepção
visual e aos aspectos paisagísticos e formais da cidade, também destacam-se as dimensões
sociais e econômicas, como elementos importantes para a preservação. Ao englobar mais
condicionantes na preservação por meio do entorno, trata-se de um conjunto de ações
presentes no espaço urbano que ganha outro sentido se somado ao desenvolvimento das
políticas urbanas brasileiras. Esses avanços nas políticas urbanas ocorrem com a aprovação do
Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/01; a criação do Ministério das Cidades em 2004; e a
retomada de investimentos federais em larga escala (como o Programa de Aceleração do
Crescimento). Sant’Anna (2015 [1995] e Meneses (2006) tratam as contradições e as fronteiras
entre preservação e ordenação urbana em entornos de bens tombados, ressaltando sua
potente figura como instrumento de política urbana. Rabello (2010) introduz tais discussões
com base em interpretações dos dispostos pelo Estatuto da Cidade. A autora reconhece ser
indispensável investigações sobre as práticas de sua aplicação junto a outros instrumentos em
vigor, como o tombamento.

Devido ao alto grau de complexidade da regulamentação jurídica e urbana, a questão do


entorno tem sido pesquisada em associação ao instituto do tombamento e ao direito
urbanístico (Rabello, 2009; Miranda, 2014), bem como em sua evolução conceitual na
jurisprudência e no direito comparado (Santos, 2002; Cureau, 2009; Marchesan, 2010 e 2013;
Tiago et al., 2016). Ressaltamos que, nessa bibliografia, há o entendimento de que as
restrições no entorno do bem tombado são fundamentais para sua visibilidade e compreensão
no espaço urbano, e sua existência é um dos efeitos do ato administrativo do tombamento.
Nesse sentido, existem estudos sobre formas de delimitar e gerir as áreas de entorno, a partir
do estudo de casos europeus e brasileiros (Ruiz, 1997; Andrade, 2009; Prata, 2009).

Segundo Carina Mendes Melo (2016), a partir de 2007 o Iphan ressaltou a importância de
regulamentação das áreas tuteladas, em especial as áreas de entorno, sendo criado um
caderno de orientações e diretrizes aos estudos (Iphan, 2010). A preocupação do Iphan
decorreu do grande passivo de bens protegidos para os quais as áreas de entorno nunca foram
oficializadas. As problemáticas também são evidentes em artigos produzidos por técnicos do
Iphan que apresentam reflexões sobre a prática de preservação (Leal e Freitas, 2008;
Balthazar, Nito e Oliveira, 2015; Nascimento et al., 2013; Melo, 2016). A importância do
instrumento também é visível pela demanda de estudos sobre entorno feitas nas
superintendências estaduais como atividade a ser desenvolvida pelos bolsistas do Mestrado
Profissional do Iphan3.

2
A Declaração de Xi’An é elaborada a partir de discussões as transformações urbanas ocorridas em cidades de
países em desenvolvimento, em particular no continente Asiático (Icomos, 2005).
3
​Existem 8 dissertações de mestrado desenvolvidas sobre a temática de entorno que estão disponíveis
online pelo site do mestrado do Iphan: ​http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/308​. Acesso em: fev.
2020.

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


Aprofundar questões e interpretações sobre como articular as competências, principalmente
no que diz respeito à relação de tutela indireta pelo entorno se faz necessário. Casos recentes
evidenciam que, na prática, ainda não há consenso quanto à regulamentação do entorno.
Além disso, ainda persistem os conflitos com o planejamento da cidade e o controle de uso do
solo. Para os órgãos de preservação, o entorno acaba sendo apenas um processo de
licenciamento e fiscalização de aspectos formais que, por vezes, discorda ou concorda com a
legislação local. Como exemplos, podemos citar as obras no terreno do Grupo Silvio Santos, no
caso do Teatro Oficina, em São Paulo/SP (Baratto, 2007; Cury, 2017; Nito, 2019); e as obras do
edifício La Vue, vinculadas ao ministro Geddel Vieira Lima, no entorno do forte e farol de Santo
Antônio da Barra, do forte de Santa Maria, e o conjunto arquitetônico e paisagístico da Igreja
de Santo Antônio, em Salvador/BA (Simono, 2016; Fisherman, 2016).

O patrimônio tombado dos exemplos citados possuem localizações estratégicas de acesso aos
centros urbanos, onde o zoneamento incentiva a verticalização da área, sem apresentar
diálogo com os bens tombados e ignorando suas áreas de entorno como parte da historicidade
desses. Para Meneses (2006, p. 41), se por um lado é constatada a dificuldade de incorporar as
dimensões sociais da cidade nas práticas de preservação, por outro, políticas urbanas se
distanciam de questões patrimoniais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência institucional do patrimônio brasileiro (federal, estadual ou municipal) nos


delegou em sua maioria um conjunto coeso e homogêneo de bens culturais, em sua maioria
formada por bens excepcionais artísticos ou históricos representantes da elite e pouco
representativa da diversidade cultural brasileira, advindos até o século XVIII, frutos da
sociedade branca, masculina e católica (Fonseca, 2005; Rubino, 1996). Esses bens quando
estão em cidades, geralmente se localizam em áreas centrais ou em regiões historicamente
ocupadas pelas classes dominantes. Se os municípios brasileiros possuem como regra a
regulamentação dos espaços centrais e ocupados pela população de alta renda, em
detrimento de outras regiões (Rolnik, 1997). Essa lógica de produção do espaço urbano pelo
estado brasileiro faz com que exista uma oferta de melhor infraestrutura em um território do
que em outro, que associada a outros fatores físicos determina o valor do solo urbano (Villaça,
2001; Ferreira, 2010). Então, a área de entorno entra em uma arena que pode confrontar ou
favorecer disputas e interesses locais, de forma que o patrimônio entra na disputa econômica,
política e simbólica da cidade.

O que a pesquisa de doutorado em andamento pretende é a ampliação e aprofundamento da


abordagem do entorno de forma a compreender seu papel como instrumento de preservação
por meio da análise do impacto e da relação dessa política na gestão e no planejamento das
cidades. Trata-se de um olhar para os efeitos do tombamento de bens, pelo instrumento de
entorno, voltado para as influências na vida e no tecido urbano, considerando as políticas
públicas em sua historicidade, estabelecendo relações entre leis e práticas urbanísticas sob a
perspectiva do patrimônio. Ainda que a análise esteja apoiada na atuação do Iphan, o que
buscamos é investigar a forma de pensar e fazer a política de patrimônio brasileira em sua
relação com a política urbana e com as demandas da sociedade civil.

REFERÊNCIAS

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


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