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| Rita Mineiro

Sermão de Santo António aos Peixes


Introdução ao estudo

Neste sermão, António Vieira apresenta os três elementos fundamentais de um


sermão: ouvintes, pregadores e Deus. Se um destes faltar à sua função, o sermão provar-se-
á ineficaz. Nas suas palavras, “a pregação deve ser sólida, apresentar palavras verdadeiras
e não falsas, ridículas, frívolas, deve propor assuntos que levem lágrimas. (…) A pregação
deve corrigir, para que os ouvintes corrijam a sua vida”.
De uma forma muito sintética, o discurso deve ter:
Exórdio: apresentação do tema: pretende-se alcançar a benevolência, a simpatia e
a atenção dos ouvintes;
Confirmação/Exposição: apresentação dos argumentos;
Peroração: deverão ser amplificados os melhores argumentos; o tom deverá ser
mais forte e mais dinâmico.

Contextualização do Sermão

O Sermão de Santo António aos Peixes é proferido no dia 13 de Junho de 1654 e, de


seguida, temos a partida de Padre António Vieira para Portugal, com o objetivo de denunciar
ao rei D. João IV as condições de vida e de trabalho deploráveis que os índios de São Luís do
Maranhão sofriam às mãos dos colonos portugueses e holandeses.
Na verdade, estes exploravam os índios de uma forma desumana. Os jesuítas não
podiam permitir tal atrocidade, visto que portugueses e holandeses eram homens sem
escrúpulos que enriqueciam à custa do seu suor e sangue. Ora, Vieira sempre foi contra este
comportamento por parte dos colonos, visto que defendia os direitos dos nativos e
pretendia a abolição de leis que os tornavam cativos.
Assim sendo, aproveitou o facto de o dia 13 de Junho ser o dia de Santo António no
calendário litúrgico para proferir este sermão, que deixou enraivecidos os colonos daquelas
paragens.
Concluindo, o tema do sermão é a denúncia das atrocidades que os índios padeciam
por causa dos colonos. Toda a crítica é feita com base numa alegoria na qual os peixes
simbolizam os vícios dos homens.

Sermão de Santo António aos Peixes

I. Introdução e Estrutura

A lei promulgada na colónia, regulando a liberdade dos índios e suas restrições foi
encoberta até sua quase completa inutilidade. O jesuíta, reconhecendo-a ineficaz, enquanto
não fosse evitada a intervenção civil na cristianização e civilização dos índios (selvícolas).
Ele procurou obter a assinatura de todos os principais da cidade de São Luís do Maranhão
afetos à Companhia, para uma representação a dirigir ao Rei. Logo que os colonos tiveram
do caso conhecimento, houve alarido breve, e é nesse momento que Vieira, do alto do seu
púlpito de pregador, tece duras críticas aos seus inimigos e inimigos dos índios.
A causticidade da ironia, a expressividade dos símbolos, o poder de observação no
descritivo, com trechos de imortal beleza clássica, o relevo, o brilho, a graça da linguagem,
até a própria orgânica do sermão – primeiro a alegoria da vida colonial em conjunto, depois

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as várias alegorias, representando em várias espécies de peixes os vários tipos de colonos


mais suscetíveis de caricatura.

In: António Sérgio e Hernâni Cidade, Prefácio de Sermões do Padre António Vieira (adaptado)

Estrutura1
Est. Interna Est. Ext.
“Conceito predicável”: “Vós sois o sal da Terra” – Santo António foi sal da
Exórdio Introdução I
terra e sal do mar.
“Ao menos têm os peixes duas qualidades
de ouvintes: ouvem e não falam”.
“Começando, pois, pelos vossos louvores II
Exposição (…) vós fostes as primeiras criaturas que
Em geral: Deus criou.”
“(…) a primeira que se me oferece aos
Louvores olhos hoje é aquela obediência (…)”
“(…) antes louvo este seu retiro (…)”.

- Santo Peixe Tobias;


Em particular
Confirmação - Rémora; III
Desenvolvimento “Descendo ao
- Torpedo;
particular”
- Quatro – olhos.
“(…) assim como ouvistes os vossos
louvores, ouvi também agora as vossas
IV
Em geral repreensões.”
“(…) é que vos comeis uns aos outros (…)”
Repreensões
- peixes roncadores;
Em particular
- peixes pegadores;
“Descendo ao V
- peixes voadores;
particular”
- polvo
“Com esta última advertência vos despido, ou me despido de vós, meus
Peroração Conclusão VI
peixes.”

II. Descodificação da alegoria

Este Sermão (“Pregado na cidade de São Luís do Maranhão, ano de 1654, (que todo
é alegórico) pregou o Autor antes de se embarcar ocultamente para o Reino, a procurar o
remédio da salvação dos índios. Vos estis sal terrae (São Mateus, 5) ‘Vós sois o sal da terra’,
Sermão de Santo António aos Peixes).
Como o próprio Padre António Vieira o afirma, a alegoria é a figura de estilo que
domina todo o Sermão. A alegoria compara uma realidade de carácter abstrato com um
termo metafórico sempre concreto, visível e, frequentemente, uma personificação. No caso
deste Sermão, Padre António Vieira compara a cidade de São Luís do Maranhão com uma
colónia de peixes. Num caso mais simples, uma alegoria é termos a personificação de um
anjo para o Bem e de um Diabo para o Mal.

1 In: GUERRA, João Augusto da Fonseca e VIEIRA, João Augusto da Silva, Aula Viva, Português A, 11º Ano, Porto Editora, p. 48.

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Capítulo I

Exórdio: exposição do plano a desenvolver e das ideias a defender.


Conceito predicável: excerto bíblico que serve de tema e que irá ser desenvolvido de acordo
com a intenção e o objetivo do autor Vos estis sal terrae.
Invocação: pedido de auxílio divino.

As simetrias evidenciam e constituem um exemplo da estruturação do Sermão, um


exercício mental da grande lógica, que permite aos ouvintes atingir mais facilmente o
objetivo da mensagem: justificação do facto de a terra estar corrompida e ao que se há de
fazer ao sal que não salga e à terra que se não deixa salgar.
Para atingir a inteligência dos ouvintes, o orador usa argumentos lógicos, sucessivas
interrogações retóricas e a autoridade dos exemplos de Cristo, Santo António e da Bíblia.
Para atingir o coração dos ouvintes, usa interjeições e exclamações.
Ao relatar o que fez Santo António, quando foi perseguido em Arimino, usa frases
curtas (Deixa as praças, vai-se às praias…), ritmo binário, anáforas, enumeração. É evidente
que os tipos de frase têm relação direta com a entoação. A frase interrogativa termina num
tom mais alto, a declarativa num tom mais baixo, por exemplo.
O título do Sermão foi retirado do milagre ou lenda que se conta a respeito de Santo
António. Este terá sido mal recebido numa pregação em Arimino e, mesmo perseguido, ter-
se-á dirigido à praia e pregado o sermão aos peixes que o terão escutado atentamente,
contrastando com os homens.
O pregador invocou Nossa Senhora porque era habitual fazê-lo e ainda porque o
nome Maria quer dizer Senhora do mar; os seus ouvintes estavam perto do mar, faz todo o
sentido.

Capítulo II

O Sermão é uma alegoria, porque os peixes são metáfora dos homens, as suas
virtudes são por contraste metáfora dos defeitos dos homens e os seus vícios são
diretamente metáfora dos vícios dos homens. 0 pregador fala aos peixes, mas quem escuta
são os homens. Os peixes ouvem e não falam. Os homens falam muito e ouvem pouco.
O pregador argumenta de forma muito lógica. Partindo de duas propriedades do sal,
divide o sermão em duas partes: o sal conserva o são, o pregador louva as virtudes dos
peixes; o sal preserva da corrupção, o pregador repreende os vícios dos peixes.

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Para cumprir o seu objetivo, ele utiliza articuladores do discurso (assim, pois…),
interrogações retóricas, anáforas, gradações crescentes, antíteses, entre outros; demonstra
as afirmações que faz tirando partido do contraste entre o bem e o mal, referindo palavras
de S. Basílio, de Cristo, de Moisés, de Aristóteles e de St. Ambrósio, todas referidas aos
louvores dos peixes. Confirma-as com vários exemplos: o dilúvio, Santo António, Jonas e os
animais que se domesticam.

Os peixes não foram castigados por Deus no dilúvio, sendo, por isso, exemplo para
os homens que pouco ouvem e falam muito, pouco respeito têm pela palavra de Deus.
Neste ponto, evidencia-se que os animais que convivem com os homens foram
castigados, estão domados e domesticados, sem liberdade. Por sua vez, Santo António foi
muito humilde, aceitando sem revolta o abandono a que foi votado por todos, ele que
conhecia a sua sabedoria. O pregador pretende condenar os homens que possuem vícios
opostos às virtudes dos peixes.
Convém referir que o discurso é pregado; por isso, envolve toda a pessoa do orador.
Os gestos, a mímica, a posição do corpo - a linguagem não verbal - têm um lugar importante
porque completam a mensagem transmitida.

Alguns recursos estilísticos


. A antítese Céu/Inferno, que repete semanticamente a antítese bem/mal, está
ligada quer à divisão do Sermão em duas partes, quer às duas finalidades globais do mesmo.
. A apóstrofe refere diretamente o destinatário da mensagem e do pregador,
aproximando os dois polos da comunicação: emissor e recetor.
. A interrogação retórica como meio de convencer os ouvintes.
. A personificação dos peixes associada à apóstrofe e às atitudes dos mesmos.
. A gradação crescente na enumeração dos animais que vivem próximos dos
homens mas presos.
. A comparação, "como peixes na água", tem o carácter de um provérbio que
significa viver livremente.

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Capítulo III

No capítulo III, Vieira passa a enumerar as virtudes de alguns peixes em particular,


iniciando este capítulo por contar a história do peixe de Tobias (história bíblica). Na
sequência desta, o orador fala de Santo António que também ele curava a cegueira aos
hereges e afastava os maus espíritos.
Neste ponto, Vieira fala de si. À semelhança dos anteriores, também ele possui o
poder de cuidar da cegueira e os homens também fogem dele com medo de serem comidos
pela verdade. É nesta parte que o orador chega àquilo que pretende – criticar os habitantes
do Maranhão e a sua malvadez para com os índios.
De seguida, o pregador continua a falar das virtudes dos peixes e centra a sua
atenção em três espécies: rémora, torpedo e quatro-olhos. À medida que vai apresentando
os argumentos, vai tirando partido do contraste entre o Bem e o Mal, referindo as palavras
de São Basílio, de Cristo, de Moisés, de Aristóteles e São Ambrósio, todas referidas aos
louvores dos peixes.
A língua de Santo António teve a força de dominar as paixões humanas
(Sensualidade, Cobiça, Vingança e Soberba), guiando a razão pelos caminhos do bem; foi o
freio do cavalo porque impediu tantas pessoas de caírem nas mais variadas desgraças. A
língua de Santo António foi a rémora dos ouvintes enquanto estes ouviram; quando o não
ouvem, são atingidos por muitos naufrágios (desgraças morais).
O pregador usa o imperativo verbal, a repetição anafórica, a exclamação, a apóstrofe,
a leve ironia ("Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não prego a vós, prego aos peixes!").

Alguns recursos estilísticos


. Anáforas: Ah homens… Ah moradores… Quantos, correndo… Quantos,
embarcados… Quantos, navegando… Quantos na nau… A interjeição visa atingir o coração
dos ouvintes; a repetição do pronome indefinido realiza uma enumeração.
. Gradações: Nau Soberba, Nau Vingança, Nau Cobiça, Nau Sensualidade; "passa a
virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço
do pescador." O sentido é sempre uma intensificação para mais ou para menos.

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. Antíteses: mar/terra, para cima/para baixo, Céu/Inferno. Palavras de sentido


oposto indicam as duas direções do Sermão: peixes - homens, bem - mal.
. Comparações: "… parecia um retrato marítimo de Santo António"; o peixe de
Tobias, com um burel e uma corda, era uma espécie de Santo António do mar: as suas
virtudes eram como as de Santo António. "… unidos como os dois vidros de um relógio de
areia,": o peixe Quatro-Olhos possuía grande visão e precisão.
. Metáforas: "… águias, que são os linces do ar; os linces, que são as águias da terra":
sentido de rapidez e de visão excecional.

Conclusões: primeira, os homens pescam muito e tremem pouco; segunda, "Se eu pregara
aos homens e tivera a língua de Santo António, eu os fizera tremer."; terceira, "… se tenho fé
e uso da razão, só devo olhar direitamente para cima, e só direitamente para baixo". Os
peixes são o sustento dos membros de várias ordens religiosas. Há peixes para os ricos e
peixes para os pobres. Esta distinção tem por finalidade criticar a exploração dos ricos sobre
os pobres.

Capítulo IV

Para comprovar a tese de que os homens se comem uns aos outros, o orador usa
uma lógica implacável, apelando para os conhecimentos dos ouvintes e dando exemplos
concretos. Os seus ouvintes sabiam a verdade do que ele afirmava, pois conheciam que os
peixes se comem uns aos outros, os maiores comem os mais pequenos. Além disso, cita
frequentemente a Sagrada Escritura, em que se apoia. As conclusões são implacáveis, pois
são fruto claríssimo dos argumentos usados.
O ritmo é variado: lento, rápido e muito rápido. Quando as frases são longas, o ritmo
é repousado; quando as frases são curtas, quando se usam sucessivas anáforas nessas
frases, o ritmo torna-se vivo, como acontece no exemplo do defunto e do réu. Uma das
características do discurso de Vieira é a mudança de ritmo, que prende facilmente os
ouvintes.
A repetição da forma verbal "vedes", que deverá ser acompanhada de um gesto
expressivo, serve para criar na mente dos ouvintes (e dos leitores) um forte visualismo do
espetáculo descrito. O uso dos deícticos demonstrativos tem por objetivo localizar os atos
referidos, levando os ouvintes a revê-los nos espaços onde acontecem. A substantivação do
infinitivo verbal está também ao serviço do visualismo. O verbo deixa de indicar ação
limitada para se transformar numa situação alargada. Há uma passagem semelhante no
momento em que o orador refere a necessidade de o bem comum prevalecer sobre o apetite
particular: "Não vedes que contra vós se emalham…".
O orador expõe a repreensão e depois comprova-a como fez com a primeira
repreensão: dá o exemplo dos peixes que caem tão facilmente no engodo da isca, passa em
seguida para o exemplo dos homens que enganam facilmente os indígenas e para a
facilidade com que estes se deixam enganar. A crítica à exploração dos negros é cerrada e
implacável. Conclui, respondendo à interrogação que fez, afirmando que os peixes são muito
cegos e ignorantes e apresenta, em contraste, o exemplo de Santo António, que nunca se
deixou enganar pela vaidade do mundo, fazendo-se pobre e simples, e assim pescou muitos
para salvação.

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Capítulo V

No capítulo V, o pregador vira-se para os vícios de quatro peixes em particular,


sendo o primeiro o roncador, cuja imponente voz contrasta com o pequeno tamanho.
Para nos apresentar o segundo peixe, ele recorre ao conhecimento que tem dos
homens e constata que o parasitismo também existe entre os peixes. Assim, Vieira fala do
pegador, aquele que vive colado aos outros fazendo disso o seu modo de vida.
Seguidamente, o orador volta-se para o voador e chama-o a atenção de que ele é um
peixe, o seu elemento natural é a água, por isso devia manter-se nela. Desta forma, por via
de querer sempre mais, acabava por correr os riscos de um peixe normal, juntamente com
os dos outros elementos.
Por último, ele centra a sua atenção no polvo (“peixe aleivoso e vil”), alvo de uma
crítica severa e implacável, acabando por ser comparado a Judas, se bem que este é menos
traidor.

Comparação entre os peixes e Santo António

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Capítulo VI

Peroração: conclusão com a utilização de um desfecho forte, capaz de impressionar o


auditório e levá-lo a pôr em prática os ensinamentos do pregador.

O orador quer que os homens imitem os peixes, isto é, guardem respeito e


obediência a Deus. Numa palavra, pretende que os homens se convertam.

As interrogações têm por objetivo atingir preferencialmente a inteligência,


enquanto as exclamações visam mais o sentimento dos ouvintes. As repetições põem em
realce o paralelismo entre o orador e os peixes; as gradações intensificam um sentido.
A repetição do som /ai/ (11 vezes) cria uma atmosfera sonora cada vez mais
intensa e otimista; a repetição das palavras "Louvai" e "Deus" apontam para a finalidade
global do Sermão: o louvor de Deus, que todos devem prestar. O verbo no imperativo realiza
a função apelativa da linguagem: depois de ter inventariado os louvores e os defeitos dos
peixes/homens, não poderia deixar de apelar aos ouvintes para que louvem a Deus. A
escolha do hino Benedicite cumpre fielmente esse objetivo, encerrando o Sermão com um
tom festivo, adequado à comemoração de Santo António, cuja festa se celebrava. A palavra
Ámen significa "Assim seja", "que todos louvem a Deus". O quiasmo realizado na colocação
em ordem inversa das palavras “glória” e “graça” sugere a transposição dos peixes para os
homens: já que os peixes não são capazes de nenhuma dessas virtudes, sejam-no os homens.
Sugere também uma mudança: a conversão, porque só em graça os homens podem dar
glória a Deus.

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Frei Luís de Sousa

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Frei Luís de Sousa, representado em particular em 1843, é a obra-prima de Garrett e


merece atenção mais demorada. Façamos, por forma esquemática, uma breve análise do
conteúdo e características literárias do drama.

Frei Luís de Sousa: tragédia ou drama?

Uma das questões que se colocam frequentemente sobre a obra Frei Luís de Sousa,
de Almeida Garrett, é se esta se encontra mais próxima da tragédia ou do drama.
Garrett disse que o conteúdo de Frei Luís de Sousa tem todas as características de
uma tragédia. No entanto, chama-lhe drama, por não obedecer à estrutura formal da
tragédia.
Frei Luís de Sousa é uma tragédia porque:
• as personagens desafiam o destino: Madalena casa com Manuel de Sousa Coutinho
sem ter a certeza de que o primeiro marido está morto e Manuel incendeia o seu palácio
para não receber os governantes castelhanos;
• o sofrimento e a aflição das personagens vai-se acentuando, à medida que a ação
progride e atinge também os “inocentes” (Maria, a filha);
• há uma mudança repentina na ação, desencadeada por alguém que vem de fora,
sucedendo o “reconhecimento”: o Romeiro é identificado como D. João de Portugal, o
primeiro marido de D. Madalena;
• a partir deste momento, é impossível evitar a “catástrofe”: as consequências
terríveis que atingem todos os que estão próximos de quem desafiou o Destino: Maria morre
e os pais “morrem para o mundo”, vão para o convento;

Frei Luís de Sousa é um drama romântico porque:


• a ação decorre numa época histórica de resistência, de afirmação e defesa do
nacionalismo (século XVII, perda da independência, ocupação castelhana);
• remete para a crença no mito do Sebastianismo: D. Sebastião tinha “desaparecido”
em Alcácer- Quibir e o seu regresso era a esperança que restava para a recuperação da
independência de Portugal;
• referências várias a Camões, poeta de expressão do patriotismo;
• afirmação constante do nacionalismo, com a rejeição da presença dos castelhanos
em território português;
• expressão hiperbólica de sentimentos, de estados de alma, frequentemente
contraditórios e caóticos;
• crença em agoiros, superstições, simbologia premonitória dos sonhos (Madalena,
Maria e Telmo);
• o cristianismo: Madalena e Manuel encontram o conforto na crença em Deus e na
ida para o convento, em vez da morte violenta das tragédias;
• uso da prosa (e não o verso, como era habitual na tragédia);
• divisão em três atos (e não os cinco da tragédia);

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Definição de drama romântico

Este subgénero dramático foi doutrinado por Victor Hugo, grande escritor
romântico francês. O drama corresponde à valorização do Homem como brinquedo não do
destino, mas das suas próprias paixões. Desta forma, pretende ser uma aproximação da
realidade, por isso mistura o sublime com o grotesco, a alegria com a tristeza, visto que a
vida real é assim constituída.
O drama romântico é escrito em prosa e a personagem do coro da tragédia clássica
desaparece.

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Personagens

Manuel de Sousa Coutinho – segundo marido de Madalena, ama a esposa; pai de Maria; teme
que a saúde débil da sua filha progrida para uma doença grave; decidido, patriota (incendeia
o seu palácio porque este iria ser ocupado pelos governadores espanhóis); sofre, sente
remorsos ao pensar na cruel situação em que ficará a sua querida Maria; amor paternal.

D. João de Portugal – primeiro marido de Madalena, mas desaparecido na batalha de Alcácer


Quibir; austero; sentimento amoroso por Madalena; sonhador; crente (quando pensa, por
momentos, que Madalena o ama); sempre que alguém lhe pergunta quem ele é, responde
espontaneamente "Ninguém", o que significa que D. João de Portugal já não tinha Pátria, não

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tinha família, não tinha lugar na sociedade, tinha morrido para todos, não fazia sentido
“regressar dos mortos”.

D. Madalena – viúva de D. João de Portugal; casa com Manuel de S. Coutinho; nasce Maria,
filha de Manuel; angustiada em relação à situação insegura do seu casamento; remorso por
ter gostado de Manuel de Sousa enquanto era ainda casada com D. João; inquietação em
relação a Manuel de Sousa e a Maria; insegurança e hesitação; profunda, feminina; mulher
para as lágrimas e para o amor, ela sofre e sofrerá sempre, porque a dúvida não a deixará
ser feliz; perfil romântico; solidão.

Maria de Noronha – filha de D. Madalena e D. Manuel de Sousa; amor filial, curiosidade;


sonho, fantasia, idealismo, filha fatal, adolescente fantasista, sebastianista por influência de
Telmo, adivinhava " lia nos olhos e nas estrelas "; sempre febril, cresceu de repente, criança
precoce; gosto pela aventura, frágil, alta, magra, faces rosadas, patriota, intuitiva,
inteligente.

Telmo Pais – escudeiro de família dos condes Vimioso, anseia pela volta de D. João, mas
sofre, pois esta tirará a tranquilidade da sua "menina”; sofre porque é forçado a ver o seu
velho amo como um intruso que nunca deveria ter vindo; por amor a Maria, dispõe-se a
declarar o Romeiro como um impostor; fiel, confiante, desentendido, supersticioso,
sebastianista, humilde, enorme sabedoria.

A crença do sebastianismo

O mito sebastianista está espalhado por toda a obra. Logo no início, Madalena afirma
a Telmo "mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei
de D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda quis acreditasse que morresse, por
quem ainda espera em sua leal incredulidade!".
No sebastianismo, como ele é representado em Frei Luís de Sousa, por Telmo e Maria,
reside somente na crença de que o Rei ao voltar conduzirá a uma época mundial do direito
e da grandeza, a qual será última no plano de salvação dos Homens.

O simbolismo de algumas referências temporais

• «Sexta-feira» e a sua carga semântica negativa; dia considerado aziago e fatal para
Madalena; coincidência ou não, todos os acontecimentos marcantes da vida de Madalena
ocorreram a uma sexta-feira: primeiro casamento, primeiro encontro com Manuel, Batalha
de Alcácer Quibir e desaparecimento de D. João, regresso de D. João;
• Ambiente crepuscular/noturno, caracteristicamente romântico.
• A preferência pelos ambientes noturnos, característica romântica, pode simbolizar
a morte que se abaterá sobre a família.
• A permanência do número 7:
- 7 anos de procura de D. João;
- 14 anos de casamento com Manuel de Sousa Coutinho (7+7);
- 21 anos desde o desaparecimento de D. João (7+7+7).

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A atmosfera

Há, ao longo da intriga dramática, uma atmosfera psicológica do sebastianismo com


a crença no regresso do monarca desaparecido e a crença no regresso da liberdade. Telmo
Pais é quem melhor alimenta estas crenças, mas Maria mostra-se a sua melhor seguidora.
Percebe-se também uma atmosfera de superstição, nomeadamente desenvolvida em redor
de D. Madalena.

Frei Luís de Sousa


Análise

O tempo

Tempo histórico: conjunto de referências a acontecimentos reais que conferem cor epocal
ao texto e que permitem a sua inserção numa determinada época. No Frei Luís de Sousa
encontramos referências a:
1. Batalha de Alcácer Quibir (4 de Agosto de 1578);
2. Reforma - meados do séc. XVI;
3. Governação por Castela, D. Filipe II de Espanha, I de Portugal, aclamado rei em 1580, pelo
que se conclui que a ação representada se situa nos finais do século XVI, início do século
XVII.

Tempo representado: tempo que medeia entre o início e o fim da ação representada. Assim,
através das falas das personagens, conclui-se que os Atos I e II estão separados por oito dias
e que entre os Atos II e III, decorrem apenas algumas horas. Logo, o tempo representado
será de oito dias (e mais algumas horas...).

Tempo da diegese dramática: tempo global referido no texto dramático. Nesta obra, será
definido a partir da Batalha de Alcácer Quibir (4 de Agosto de 1578) referida por D.
Madalena na cena 10 do Ato II. Assim, assume especial importância para a definição dos
limites da diegese dramática a cena 2, do Ato I.

Conclusão: Após o estudo do tempo, pode-se concluir que, no Frei Luís de Sousa, não há
respeito pela unidade de tempo, regra básica das tragédias clássicas (a ação dever-se-ia
desenrolar em doze ou vinte e quatro horas, facto que ajudava à construção da tensão
dramática), mas que a concentração temporal progressiva (vinte e um anos – catorze anos
– sete anos – oito dias – um dia, cinco horas da madrugada) constitui um dos elementos
fundamentais para a estruturação dessa mesma tensão dramática. De facto, existe um
afunilamento temporal que reduz as hipóteses de «saída» para as personagens que ficam
presas numa espécie de rede da qual a única fuga possível é a morte (física ou psicológica).

O espaço

ATO I

Palácio de Manuel de Sousa Coutinho, em Almada: num primeiro momento este espaço
simboliza a paz e a aparente harmonia que domina a família. No entanto, o incêndio (final

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do Ato I) e a destruição do retrato de Manuel de Sousa Coutinho são já um prenúncio da


catástrofe final.

ATO II

Palácio de D. João de Portugal, também em Almada: este salão está imbuído de uma forte
carga simbólica, não só pela quase ausência de luz pressagiadora da catástrofe final, mas
também pelos retratos que, para além do carácter nacionalista que transmitem (D.
Sebastião, Camões), evocam um passado ameaçador que inviabiliza o presente e, também,
o futuro.

ATO III

Parte baixa do palácio de D. João de Portugal: os espaços foram-se progressivamente


obscurecendo e afunilando, tornando-se severos e despojados. Este último local é bem o
símbolo da morte, e da impossibilidade de a superar, já que a única saída para uma família
católica, que assume as suas convicções religiosas e sociais de forma clara e rígida, é a
renúncia ao mundo e à luz.

Conclusão: Assim, e tal como o tempo, o espaço assume, logo desde o início, um carácter
pressagiador do desenlace final, contribuindo também para a intensificação progressiva da
tensão dramática.

As personagens

• Madalena: é sobretudo uma personagem romântica, pela sua sensibilidade e submissão


total à paixão por Manuel de Sousa Coutinho. Antes de ser mãe, Madalena é, acima de tudo,
uma mulher apaixonada: «Em tudo o mais sou mulher, muito mulher». No entanto, ela
também é o produto da sociedade em que se insere, uma vez que a indissolubilidade do
matrimónio a torna uma personagem infeliz e atormentada pelo pecado e remorso.

• Maria: é uma personagem marcada pelo «pecado», porque fruto proibido entre Madalena
e Manuel, é o símbolo do nacionalismo romântico (defesa da pátria, empolgamento em face
da atitude de Manuel em incendiar o palácio) e também do sebastianismo dos finais do séc.
XVI/ início do séc. XVII. Um sebastianismo voltado para o passado, centrado num hipotético
e mais que improvável regresso de D. Sebastião e que integrará, para sempre, o imaginário
e a personalidade nacionais. Maria é a única personagem que morre, simbolizando a sua
morte, e bem ao jeito romântico, a impossibilidade de viver sem o amor (dos pais), sem o
sonho e o aspeto irreconciliável entre o «eu» e a sociedade.

• Telmo: simboliza a presença constante do passado, que, quando regressa na figura de D.


João, também o aniquila. No fim, fica só e sem ninguém, sem a família à qual está ligado por
laços afetivos. O regresso de D. João e o conflito interior que daí resulta abalam-lhe as
certezas, destruindo-o também.

• Manuel de Sousa Coutinho: é talvez a personagem que maior evolução/transformação


sofre ao longo da peça. Segura de si, no início, é racional, corajosa, capaz de lutar pelos seus

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ideais, é nas palavras de Telmo «guapo cavalheiro, honrado fidalgo, bom português». No
entanto, a partir do momento em que vê o seu retrato devorado pelas chamas que ele
próprio ateou, os pressentimentos de que algo poderá ensombrar o seu futuro começam a
ganhar forma. O destino de Manuel de Sousa será idêntico ao do seu pai, no sentido de que
são eles próprios que «provocam» o destino e atraem a fatalidade e a morte. Manuel de
Sousa Coutinho é, também, o símbolo da luta pela liberdade, da não subjugação à tirania (e
daí a sua atemporalidade) e de um certo nacionalismo e é através destes dois aspetos que
ele se aproxima de Maria. Aliás, ao contrário de Madalena, Manuel é primeiro pai e depois
marido. É também o símbolo do Portugal novo e racional (transposto para a época de
Garrett) que pode ser «engolido» pelo passado, se não souber evoluir.

• D. João de Portugal: é a «ausência mais presente» ao longo do texto. É um fantasma, uma


entidade abstrata, apenas nomeada no Ato I, que só existe nas palavras de Telmo e de D.
Madalena; depois vai-se progressivamente materializando no Ato II, primeiro pelo retrato,
depois pela presença física (Ato II, cena 13). No final, também ele é uma vítima de toda uma
situação para a qual ninguém contribuiu diretamente, mas que acabou por tragar a todos.
Simboliza o Portugal do passado e, por isso mesmo, o seu carácter inviável. D. João
desmistifica o sebastianismo passadista e fechado de Maria e de Telmo, mostrando a
impossibilidade do regresso do passado.

• Frei Jorge: impõe uma certa racionalidade tentando manter o equilíbrio no meio da família
angustiada e desfeita.

Sebastianismo

A leitura interpretativa de Frei Luís de Sousa não pode esquecer a atuante presença
do Sebastianismo e o que este mito do "Desejado" significava na conceção de Portugal: uma
nação à procura da sua identidade, assombrada por mitos do passado.
A possibilidade teórica do regresso de D. Sebastião é simbolicamente representada
na peça pelo regresso de D. João de Portugal, na figura do Romeiro. As personagens que
melhor simbolizam a esperança no seu regresso são Telmo e Maria. Ao longo da peça, são
várias as referências expressas à mítica figura de D. Sebastião [...]: no primeiro diálogo entre
D. Madalena e Telmo, D. Madalena censura ao velho aio as suas crendices sebásticas ("(...)
as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado
povo ainda não quis acreditar que morresse, por quem ainda espera em sua leal
incredulidade" Ato I, cena II).
As crenças sebastianistas de Telmo são assimiladas pela influenciável jovem Maria
de Noronha, que acredita indubitavelmente no regresso do desejado monarca, D. Sebastião
("(...) que não morreu e que há de vir, um dia de névoa muito cerrada (...)" Ato I, cena III).
Esta influência de Teimo no espírito de Maria provoca grande aflição a D. Madalena de
Vilhena ("(...) não vês que estás excitando com tudo isso a curiosidade daquela criança,
aguçando-lhe o espírito (...)" Ato I, cena II).
Podemos, então, concluir que o mito do Encoberto assume uma conotação negativa
em Frei Luís de Sousa, sendo perspetivado como sinal de paragem no tempo, de estagnação.
[...] Mais do que meras personagens de um drama familiar, na peça de Garrett, temos seres
simbólicos, representativos do destino coletivo português, num momento de profunda crise

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| Rita Mineiro

política, devido à perda da independência. Neste sentido, a resposta "Ninguém!" do Romeiro


a Frei Jorge pode ser associada a Portugal, um país subjugado pelo domínio filipino.
in http://www.escolavirtual.pt

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| Rita Mineiro

Bibliografia utilizada:

COELHO, Jacinto do Prado (direção), Dicionário de Literatura, Livraria Figueirinhas


GUERRA, João e VIEIRA, João, Aula Viva, Português A, 11º Ano e 12º Ano, Porto Editora
MAGALHÃES, Olga e DINE, Madalena, Preparar o Exame Nacional 2018 – Português, Raiz Editora
PEREIRA, José Carlos Seabra, História Crítica da Literatura Portuguesa – Do fim de século ao
Modernismo, Vol. VII, Editorial Verbo
REIS, Carlos e PIRES, Maria da Natividade, História Crítica da Literatura Portuguesa – O Romantismo,
Vol. V, Editorial Verbo
SARAIVA, António José e LOPES, Óscar, História da Literatura Portuguesa, Porto Editora

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