BERARD Tradução

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ

INSTITUTO DE HISTÓRIA
LABORATÓRIO DE HISTÓRIA ANTIGA – NÚCLEO HHAG
ORIENTAÇÃO: PROFA. DRA. MARTA MEGA DE ANDRADE

REFERÊNCIA:

BÉRARD, Claude. Iconographie. Iconologie. Iconologique. In Études des


Lettres. Revue de la Faculté des Lettres. Université de Lausanne. Lausanne:
1983. Vol. 4, pág. 5-37.

Versão para o português: André Luiz Frank e Silva – HAAG/LHIA - UFRJ

PÁG. 5.

ICONOGRAFIA – ICONOLOGIA - ICONOLÓGICO

A produção imagética grega é organizada de modo sistemático. A análise semiótica


permite fazer aparecer a lógica que preside a construção de cada imagem e a articula
ao conjunto da imagética. Além disso, o método permite estabelecer com mais
exatidão o sentido das imagens e aprofundá-lo. Esta semiótica da significação
desemboca também sobre uma semiótica da comunicação.

A. TEORIA
1. A imagética ática.

A imagética se constitui em um conjunto de imagens figuradas sobre


centenas de milhares de vasos produzidos em Atenas durante os séculos VI, V
e IV. Esta massa de imagens representa o tesouro de base (thesaurus)
suscetível de ser fracionado em um certo número de corpus de trabalho mais
limitados e organizados segundo regras de homogeneidade (formas, funções,
dimensões, qualidades, data-limite cronológica, etc.) e de representatividade
(valor de amostra, ligação do corpo ao tesouro). O lugar de achamento dos
documentos pouco importa: se dos milhares dentre eles provêm da Etrúria e
não da Grécia, não são eles testemunhos menores das atividades de seus
produtores. Como objetos exportados, eles podem ser estudados em outros
campos sob uma perspectiva econômica; mas a perspectiva cultural não é
menos digna de interesse: qual o impacto da imagética ática sobre a imagética
etrusca?

A imagética é uma produção anônima e coletiva. Ela se origina mais de


uma produção de ordem artesanal – algumas certamente de grande qualidade
– do que de uma ordem artística. Os nomes dos pintores são na maior parte
desconhecidos; os que assinaram suas obras não escapam às limitações de
gênero. Se muitas mãos são detectáveis sobre o mesmo vaso: estamos diante
de uma atelier. As mãos são identificadas segundo seu estilo, noção de ordem
estética que atua como uma espécie de traço na imagética (pouco importando
a virtuose individual no rendado da juba do leão no episódio de Hércules e o
monstro da Nemeia). Existe imagética de atelier, mas de todo modo a produção
de diferentes lojas dialogam e se completam, seja sobre o plano esquemático,
seja sobre o plano temático.

A imagética é popular; é uma produção de massa distinta do afresco ou


da pintura de cavalete. Pelo fato de ser veiculada por intermédio de vasos que
são funcionais, ela conhece a sua maior difusão. Os exemplares menores,
pintados muito rapidamente, em séries, estão nas bolsas mais modestas; e
eles são então infinitamente numerosos. O Ateniense médio não somente
possui muitos vasos figurados mas também está exposto a eles, vendo-os por
toda parte: na casa dos amigos, no mercado, nos santuários, sobre as tumbas.
Ele vive entre imagens.

A imagética é fria no sentido que falamos de sociedades frias vs


quentes. Ela evolui lentamente em longos períodos. Esta evolução se
manifesta antes de tudo sobre o plano estético, não sobre o plano semântico
(Heracles capturando o leão da Nemeia, o mais frequentemente barbudo no VI
século se torna imberbe na época clássica). Após dois séculos, constatamos
que os mesmos temas desaparecem e outros surgem, mas os elementos do
repertório permanecem os mesmos: a invenção se veste de novas
combinações.
Enfim, a imagética é essencialmente narrativa. Ela coloca em cena os
deuses, os heróis ou os homens; ela conta os episódios precisos de suas
aventuras. Ela não se limita à exploração dos temas heroico-mitológicos e
confere um grande lugar à apresentação de comportamentos sociais e
religiosos. À primeira vista ela ilustra cenas banais da vida cotidiana. Contudo,
assim que essas imagens são estudadas no quadro de um corpus, as
articulações inauditas aparecem e revelam a que ponto a imagética é
sustentada por uma organização lógica. A imagética não mostra qualquer
coisa; a imagética constrói uma antropologia na qual o imaginário impregna a
realidade. Aqui ela preconiza os modelos exemplares e denuncia os excessos,
lá ela trai os tabus e desvenda as fantasias.

A imagética não é inocente; as imagens não são explícitas.

Página 7

2. O repertório

Os artesãos criavam suas imagens a partir de um repertório comum de


elementos estáveis e constantes. Nós chamamos esses elementos de
unidades (icônicas) formais mínimas; é impossível desarticulá-las de qualquer
modo sob pena de ver desaparecer toda relação de referência. Na hipótese da
constituição de um banco de dados, são essas unidades que serão
classificadas.

Demos um exemplo: o herói Héracles pode ser descrito como um


homem vestido de uma pele de leão portando uma clava; as unidades formais
mínimas que compõem a figura de Héracles são então: homem/pele de
leão/clava. A combinação “homem/pele de leão/clava” representa um sintagma
mínimo que é suscetível de se articular com outras unidades e outros
sintagmas mínimos para constituir uma imagem de conteúdo narrativo, por
exemplo, Heracles capturando o javali de Erimanto. Dentro da combinação
“homem/pele de leão/clava), as unidades formais mínimas constituindo o
sintagma tornam-se os signos que se remetem a Héracles. Passamos assim da
relação de referência à relação de significação (significante)1.

Essas observações não adquirem toda a sua importância senão no


quadro global da imagética, no quadro de um corpus de trabalho ao menos.
Com efeito, nem a clava, nem a pele de leão não são a priori os atributos de
Héracles. Elas se tornam pegas por um homem (relação gramatical) ou no
limite representadas no campo de uma cena que se remete a um homem com
javali (relação sintática).2 A clava não é nada mais que uma clava; ela pode se
encontrar nas mãos de “gigante” ou de qualquer caçador, vista entre as mãos
de um outro herói, Teseu, por exemplo. O mesmo para a pele de leão: Ártemis
Caçadora se apresenta, na ocasião, com a testa coberta de uma pele de leão
idêntica àquela de Héracles; Teseu, Atalante, as Amazonas podem também
usar uma pele de leão em torno do pescoço exatamente como Héracles. No
limite, a pele de leão e a clava podem se encontrar reunidas sem que seu
portador seja Héracles: um sátiro que as tenha roubado do herói (os aspectos
pertinentes são então a cauda de cavalo e a máscara satírica) ou Ônfale (o
aspecto pertinente é então a feminilidade da rainha).

Eu escolhi o exemplo de Héracles, herói bem conhecido de alto grau de


familiaridade. Mas nós adivinhamos facilmente o quanto a complexidade dos
problemas podem aumentar com outros personagens menos conhecidos, sem
falar das condições de mutilação dos objetos arqueológicos.

PÁG. 8

A demonstração feita acima com a clava e a pele de leão pode ser


repetida com todas as unidades formais mínimas do repertório, que sejam
elementos anatômicos (barba, rabo e orelhas de animais, chifres, etc.),
instrumentos, objetos, armas, mobiliário, elementos de arquitetura, etc. Na
perspectiva semiótica, esse repertório de unidades icônicas pode ser
caracterizado como sistemático-intrínseco-direto. Com efeito, a técnica é
1
Nota minha: Não cheguei a uma conclusão acerca de como traduzir essa expressão. Em se tratando de
um texto que fala sobre imagética, achei pertinente traduzi-lo como significante, levando em
consideração a percepção do receptor, daquele que recebe a mensagem por trás da imagem.
2
Nota minha: Nesse sentido ver o resumo da Marta. Reproduzo: “homem-pele de leão-bastão =
Héracles (gramática para Héracles; designação de Heracles); esse conjunto relacionado a uma cena de
matança de javali = Héracles (uma sintaxe; ‘ação’ própria a fazer reconhecer Heracles).
sistemática porque as imagens podem ser decompostas em signos estáveis e
constantes, mesmo após a passagem de muitos séculos (como a clava). É por
demais evidente que existe uma ligação intrínseca entre o sentido de unidade e
sua forma (como a clava, novamente), ainda que essa ligação seja direta,
como a palavra, desde que nada se interponha entre a forma da unidade e a
significação que lhe é atribuída (existe um punhado de unidades extrínsecas
substitutivas que é inútil de examinar aqui).

Sublinhemos ainda uma das principais consequências dos destaques


precedentes. Nós temos implicitamente demonstrado em quais condições
podemos falar de atributos. Os atributos são os signos. Mas, temos visto que
um signo já é o resultado de uma operação combinatória que transforma uma
relação de referência em relação de significação. Para a leitura das imagens,
esses cuidados são de uma importância capital. Eles permitem identificar uma
gama de interpretações abusivas. No primeiro momento da pesquisa, acreditei
que isso existia, apesar da lógica do sistema, das exceções, dos atributos
privilegiados que designavam automaticamente seu possuidor, por exemplo o
caduceu de Hermes, o relâmpago de Zeus, o tridente de Posseidon, a égide de
Atená. Ora, não é o caso: um atributo é sempre o resultado de uma
combinação de unidades formais mínimas. Não estou longe de acreditar que o
que vale para a produção imagética ática vale para todas as demais. Também,
renunciando a uma análise sincrônica, tentei seguir diacronicamente do século
IV antes da nossa era ao século XVII as relações semióticas das unidades:
jovem mulher/véu/barco/concha (tematicamente Afrodite – Isis – Fortuna). Os
resultados foram positivos.

Página 9

3. Sintagmático

A Antiguidade, ao menos nas épocas arcaica e clássica, não conheceu


de fato os manuais de iconografia e outras coleções de emblemas publicados
na Renascença. O repertório, portanto, não existe em lugar algum senão no
inconsciente coletivo alimentado pela contemplação incessantemente renovada
da imagética em circulação.

É por isso que, falando desse repertório, já introduzimos o termo


“sintagma”: na prática, as unidades formais mínimas, não existem senão sob a
forma de combinações. Acontece que encontramos representações do tipo
epifânica que não querem nem podem dizer nada além do que já está lá: uma
jovem mulher armada, encouraçada com escudo, figura sem dúvida Atená.
Mas, a partir do momento em que a imagem conta uma história, surge o
problema das relações entre sintagmas mínimos. De outro lado, as imagens
algumas vezes não se apresentam mais sob a forma de simples painéis
quadrangulares, mas sim em forma de longas tiras circulares desenhadas onde
os esquemas merecem ser descobertos.

No seu Código para análise das representações figuradas sobre os


vasos gregos publicado em 1980, Marie-Rose Salomé distingue uma
“gramática” que funciona com a ajuda de casos suscetíveis de serem
declinados; estes servem para precisar os diferentes papéis das personagens
segundo seu grau de participação na ação. Voltemos ao exemplo de Héracles
capturando o javali: opusemos o papel ativo de Héracles ao papel passivo de
Iolau, o companheiro do herói, que assiste à luta sem dela participar. A
gramática é completada por uma sintaxe que leva em consideração as
posições respectivas dos personagens no espaço, a composição geral da
imagem: Iolau está à esquerda, Atená à direita; a clava e a pele de leão estão
suspensas em uma galho de árvore no campo. A sintaxe se revela
particularmente preciosa nos estudos das laterais, quando problema da leitura
o espaço se sobrepõe sobre a leitura no tempo. A análise sintática permite
então reparar a ordem do discurso et as direções de leituras. O foco de Marie-
Rose não está, contudo, em compreender a imagem em profundidade mas
assegurar as descrições regulares e sistemáticas a fim de serem catalogados.

Eu creio ser impossível dissociar a sintaxe da semântica e que o


produtor da imagem não pode criar imagens absurdas a despeito de que no
plano linguístico qualquer um possa escrever uma frase perfeitamente correta
sob o ponto de vista gramatical e sintático, mas que não queira nada dizer
estritamente.

PÁG. 10

Diante de seu repertório de unidades formais mínimas, o artista se esforça por


representar uma cena precisa onde a significação serás a menos ambígua
possível e facilmente compreensível por sua clientela. As combinações que ele
desenvolve estão longe de ser gratuitas e a composição será enriquecida até
que a passagem da relação de referência à relação de significação esteja
assegurada. Não se trata simplesmente de acumular as unidades de modo
paratático (arrumado em sequência), mas de fabricar um sistema coerente
onde todos os elementos sejam solidários. Para pegar um exemplo, cito Pierre
Guiraud, a sintaxe da imagética é mais comparável àquela da heráldica – ainda
que o brasão seja um processo fortemente codificado após termos definido as
unidades intrínsecas diretas – do que uma simples acumulação de “signos”
justapostos como os guias de hotéis ou placas de trânsito. Com efeito, é
simplesmente retirar a clava ou a pele de leão do ciclo de Heracles para que
não saibamos mais de se trata de Hercules, de Teseu ou de qualquer caçador
em situação heroico-agonística.

Essa definição resulta na seguinte consequência: uma imagem não


pode ser compreendida se não em relação à toda produção imagética. O eixo
sintagmático é totalmente solidário ao eixo paradigmático, e a construção de
cada imagem hic et nunc3 não pode deixar de levar em consideração todas as
outras imagens das quais ela deve se distinguir para guardar seu próprio
sentido. A sintaxe, então, é composta de regras de combinação e de exclusões
rigorosas que conferem uma grande solidariedade à armadura que sustente o
sistema imagético. Não é fácil estudar uma imagem porque, teoricamente ao
menos, a presença ou ausência de tal signo não se explica senão que por
referência às imagens ausentes! É indispensável então, restringir o corpus de
modo a permitir o domínio da situação. Aos critérios de homogeneidade
indicados acima, somemos um critério temático: tanto necessário quanto
vantajoso estudar Heracles em relação a Teseu, ou Afrodite em relação à Isis.

3
Nota minha: aqui e agora.
Voltemos aos sintagmas. A construção de sintagmas mínimos e sua
articulação em grandes unidades sintagmáticas que conduzem à criação da
imagem como tal, obedecem sempre a uma finalidade semântica. Todavia, as
unidades formais mínimas por conta do fato de não serem arbitrárias –
diferentemente dos signos linguístico (nós vimos que o processo era
intrinsicamente direto) – são em número limitado.

PÁG 11

Por evidentes razões gráficas, as combinações não podem ser multiplicadas ao


infinito. Esquematicamente a imagética constitui um sistema fechado e relativo
e rapidamente saturado. Todas as faculdades criativas dos artistas são
mobilizadas para transformar os esquemas em temas e abrir o sistema
diferenciando as imagens. É nessa tentativa que se manifesta o que podemos
chamar de uma intenção de comunicação, intenção de comunicar tal sentido e
não outro. A abertura temática não é detectável senão na fase de organização
sintagmática. Notaremos a dificuldade da operação, dificuldade que prova o
quão fechado é o sistema. Acontece de o artesão ser incapaz de praticar a
abertura temática e capitula, abandonando as unidades icônicas em benefício
de um comentário escrito; iconograficamente a imagem corresponde a tal tema
mas linguisticamente ela significa outra coisa.

Peguemos o exemplo do esquema “homem contra javali”. Muitos temas


podem ser visualizados segundo a elaboração e articulação dos sintagmas.
Pode se tratar de Heracles e o javali de Erimanto; de Teseu e do javali de
Crômion, da caça de Caledônia, mas também de uma simples cena de gênero
a ser analisada sob o prisma da antropologia social, caça iniciática da qual
depende a integração ao grupo de adultos ou caça de valor agonístico
destinada a exaltar as qualidades do guerreiro (cf. fig. 1). A identificação do
protagonista pode por outro lado se encontrar singularmente complicada pelo
fato de que as façanhas heroicas são exemplares e que os homens têm
tendência a calcar seu comportamento sobre os desses heróis. A função da
imagem é precisamente reforçar essa assimilação ao nível da representação.
Não é por acaso que o artesão recorre a tal combinação, deixa de modificá-la
pela ajunção ou supressão de uma unidade a fim de que não se possa
confundir tal tema com algum outro. Não somente as unidades desempenham
um papel capital – por exemplo as armas (clava-espada-lança-tridente) – mas
também o número de membros ou mesmo a distância do protagonista do
monstro são determinantes: quanto mais ela aumenta, menos heroico é o
episódio.

Após esse breve sobrevoo, admitiremos que a maneira pelas quais as


unidades formais mínimas são combinadas é fundamental para a compreensão
da imagem. As combinações transformam as unidades em signos e os
esquemas em temas; elas devem responder a certas exigências de lógica não
somente na organização própria da imagem mas ainda por conta das relações
associativas que cada imagem estabelece senão com toda a imagética, ao
menos com um corpus.

PÁG 12 E 13

Figura 1: Heracles e o leão da Nemeia.


Essa ânfora de figuras negras assinada por Nikóstenes faz parte de uma
série produzida após um estudo de mercado: com efeito, ela reproduz uma
forma etrusca metálica muito popular na Itália. As imagens, por outro lado,
pertencem ao repertório ático.
A cena pintada no pescoço4 se articula com as duas alças. Então é
necessário girar o vaso para compreender a relação sintagmática. O homem
barbudo com a clava não pode ser identificado como Heracles senão quando
se descobre o leão da Nemeia do outro lado do vaso. Diante do herói um arco,
flechas (Heracles era arqueiro por excelência), uma roupagem.

Abaixo do leão, nos ombros do vaso, está figurada uma nova cena: um
jovem portando uma vara (seria uma espécie de clava?), tendo enrolado suas
vestes entorno de seu braço esquerdo, enfrenta um leão que salta. O combate
é emoldurado por duas personagens; o da direita chega correndo para um
resgate. Sob o leão, uma ânfora quebrada.

Do outro lado do vaso, no mesmo registro, figura uma variante da cena


precedente: o adversário do leão é um homem barbudo; atrás dele, um efebo
com uma vara. A esquerda, outro efebo se põe em fuga; um quarto
personagem contempla o combate.

Todos os comentadores descreveram essas duas últimas imagens do


mesmo modo que aquela do pescoço: se trataria então três vezes de Héracles
nas presas do leão da Nemeia.

Quanto a mim eu destaco as diferenças: elas são mais supreendentes


quando os registros são diretamente superpostos, se bem que uma leitura
horizontal e circular do pescoço pode se somar uma leitura vertical do pescoço
aos ombros.

Seja a cena embaixo do leão: por que o protagonista está imberbe


enquanto que Heracles está babudo no pescoço do vaso? Por que as armas
não são extamente semelhantes? E sobretudo, o que faz a ânfora quebrada
sob o leão que não pode deixar de atrair a atenção do comprador?

Todos esses detalhes me parecem significar que não se trata


precisamente de de Hercules mas de efebos surpreendidos por um ataque de
leão e se preparando para abatê-lo. A cena é completamente fantasmagórica,
bem entendido; ele propõe um modelo de coragem onde Heracles é a
referência sobre o plano do imaginário social. Do outro lado do vaso, a cena
4
Nota minha: https://clasicaenestudio.wordpress.com/2015/02/03/ceramica-partes-de-un-anfora/
simétrica será lida com a mesma chave: os Atenienses “caçam” o leão com
uma vara, imitando, assim, Héracles. Sabemos, também, graças ao eixo
paradigmático, que o heroi estrangula o leão com suas próprias mãos enquanto
que os homens sonham em abatê-lo com a golpes de vara. A clava de
Héracles, no pescoço, não é funcional: ela serve para identificar o heroi , seu
valor é puramente semiótico. As imagens dos ombros, ao contrário, por
relações associativas, se articulam à imagética das caçadas humanas.

Esse exemplo mostra não somente que o vaso é decorado segundo um


programa preciso, mais ainda que a imagética é regida por um sistema
coerente.

PÁG. 14

Figura 2: Héracles conduz um touro ao sacrifício.

Esquematicamente a imagem corresponde a uma cena de gênero muito


comum. O animal é conduzido em procissão dentro santuário; este está
indicado à esquerda por uma coluna dórica suportando uma arquitrave e por
um altar iluminado. Observemos de passagem, que a coluna e sua arquitrave
poderiam também se remeter a um propileu5 ou a um palácio; é a sua
combinação com o altar que em verdade permite inferir se tratar de uma coluna
de um templo dórico. Heracles é reconhecível graças à pele de leão e à clava.

A cena é composta com a ajuda de diversos sintagmas. Em princípio, o


sintagma “Héracles + touro” representa um dos doze trabalhos tradicionais: a
captura do touro de Creta. A adjunção do sintagma “santuário” (templo + altar)
transforma o sentido da imagem.

As relações paradigmáticas conduzem a duas direções: por substituição


do santuário por Euristeu, a cena passa da façanha heroica à prática ritual.
Mas por relações associativas à imagética do sacrifício, a cena coloca em
questão o comportamento de Héracles. Ele está sozinho enquanto que o
sacrifício é uma atividade comunitária que diz respeito à política; ele não porta
os elementos rituais indispensáveis – ele brandiu a sua clava no lugar do
machado e do grande cutelo de degola. O sacrifício de Héracles se opõe ao
sacrifício da cidade. Isso é mostrado como uma prática anormal.

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B. PRÁTICAS
1. Dossier tridente

“Um emblema perto de uma efígie divina, tem, sobretudo nas épocas
mais antigas, uma significação muito precisa; é o caso onde ele equivale a um
nome...ter aqui o emblema de um deus, é como se tivéssemos o seu nome.” F.
Chapouthier escreveu essas linhas em 1935; elas ainda são o credo da maioria
dos arqueólogos, aqueles que trabalham sobre as altas e baixas épocas.

Desde o alto arcaísmo grego aqté a época contemporânea, passaando


pelo Império Romano e a Renascença, o tridente permite identificar Posseidon
ou Netuno, deus do mar. Este instrumento é então consdierado como o signo
de Posseidon. A pássagem da relação de referência “tridente (em grego triaina

5
Nota minha: Porta monumental na entrada de um templo – minha referência.
ou triodous), arpão de três pontas para a pesca” à relação de significação
“emblema do deus do mar” , se justifica sem dúvidas por razões evientes.

Na perspectiva da nossa pesquisa, me permito lembrar o caso tópico da


grande estátua em bronze de estilo forte, retitrado do mar no cabo Artemision,
que podemos admirar no Museu Nacional de Atenas e que todos conhecemos
desde que sua foto foi colocada a serviço de uma marca de camisas.
Esquematicamente se trata de um mhomem barbudo, na flor da idade, que
brande qualquer coisa. Eu digo “qualquer coisa” porque, sabemos, o
instrumento brandido desapareceu por ocasião do naufrágio. Periodicamente
uma arqueólogo escreve um artigo para demonstrar que o objeto era um
relâmpago e que a estátua representa Zeus, o que permite que um colega
cientista possa replicar provando que era de fato um tridente e que a estátua
encarna Poseidon. Debate estéril e sem resultado; somente a conjuntura
histórica poderia trazer argumentos decisivos.

Vejamos uma taça (fig. 3) sobre a qual figura um homem grisalho portando um
tridente: ele cavalga um cavalo marinho.

PÁG. 16

Beazley propôs reconhecê-lo como Posseidon, adicionando imediatamente


entre parênteses ; “ou quem sabe Nereu”; ele justifica a sua observação dando
referências a cenas figurando Heracles invadindo o palácio de Nereu. Eu
reproduzi aqui uma ânfora de Vila Guilia (fig. 4); o heroi se apossa do tridente
de Nereu que ele utiliza como uma espécie de forquilha; as águas adentram o
palácio e seu fluxo arrastam a mobília. Encontramos Héracles na mesma ação
destrutiva em um lécito de fundo branco do início do século V (figura 5);

A imagem é interessante porque Heracles é identificável por referência à


imagem anterior: é o sintagma “tridente/objetos quebrados na água” que,
paradoxalmente, entrega o nome do protagonista, exemplo perfeito para
verificar a que ponto uma imagem isolada poderia se tornar fechada sem
relações associativas à imagética (o episódio em questão não é atestado pela
tradição literária).

Prossigamos na análise. Em numerosos documentos, o tridente não está


mais ligado às divindades do mar; muito ao contrário, ele é apresentado como
uma arma de caça, a caça ao javali, e mais precisamante, sobre o plano
heróico, aquela da Caledônia. Reproduzi aqui a face principal da famosa taça
assinada por Glaukites e Archicles (fig. 6); entre as lanças brandidas ou presas
no couro do monstro, distinguimos nitidamente dois tridentes. Da mesma forma
sobre uma ânfora tirrena dos meados do século VI (fig. 7), o heroi enfrentando
o javali , lhe planta o tridente entre seus dois olhos. K. Schauenburg catalogou
toda uma série de imagens nas quais os caçadores utilizam um tridente que
aparece então como uma arma usual contra o javali. Mais ainda, o cientista
alemão dá uma lista de personagens que encontramos ocasionalmente com o
tridente nas mãos e entre os quais estão Apolo, Belerofonte, Eros, Hades, um
Centauro, uma Nike6 , Pã, o próprio Zeus! Isso lembra também que o tridente
estava sempre em uso nos anfiteatros e na temporada de caça.

PÁG. 17

6
Nota minha: Deusa Vitória
Pág. 18

No contexto do nosso corpus de trabalho, a larga difusão do tridente nos


parece arruinar todas as identificações de Poseidon que possam repousar
sobre esta única unidade. Vejamos uma ânfora do Louvre (fig. 8) sobre a qual
figuram um guerreiro conduzindo um cão, uma mulher com uma lança e um
homem barbudo com tridente.

P. Devambez descreve prudentemente o quadro como uma partida de


guerreiro. É de dizer que ele renunciou a identificar Poseidon e que ele colocou
a imagem em relação com um corpus de guerreiros deixando sua família,
contexto no qual encontramos os cães, efetivamente. Nessas cenas, as
esposas ou as mães estão geralmente presentes e estendem suas armas
enquanto os pais assistem ao acontecimento ou supervisionam a consulta às
entranhas dos animais sacrificados (hepatoscópias). Aqui, a única variação
esquemática reside na coleira do cão, mas esse detalhe é insuficiente, me
parece, para passar ao tema “Pandareu roubando o cão do santuário de Zeus”.
Para que essa hipótese possa ser validada, teria que explicar não somente a
presença da mulher mas também aquela do personagem com tridente, Zeus
mais que Posseidon, o que me parece desesperado. Por outro lado o tridente
não é deslocado da mão do pai do guerreiro como símbolo de autoridade e
lembrança de caçadas vitoriosas; ele representaria, se nós quisermos, uma
espécie de cetro; eu demonstrei , antes, que a tradição grega admite de bom
grado a equivalência da lança e do cetro.

PÁGINA 19

A atitude científica de P. Devambez, que recusa de tratar a priori o tridente


como um atributo, me parece, então, justificada. Outros vasos de figuras
negras demostram homens de certa idade portadores de tridentes e os
comentadores se esforçaram por descobrir os temas representados. As
personagens figuradas sobre a ânfora de Copenhague (fig. 9) foram assim
denominadas, da esquerda para a direita, Zeus, os Dióscuros7 , Posseidon e
Ares.

7
Nota minha: Os gêmeos Castor e Polideuces – filhos de Zeus. Minha nota.
Essas soluções são puramente gratuitas. Da mesma forma, sobre uma
taça de figuras negras, um ancião barbudo tendo um tridente, entre dois
hoplitas, foi identificado com Posseidon e os dois Ajax por causa do texto da
Ilíada, 13, verso 43 e seguintes (enquanto que Homero especifica que o deus
aparece sob a forma de Calchas e segura um cetro, não um tridente, v. 59:
skêpanion!). Novamente a hipótese é engenhosa, erudita sem dúvidas, mas da
maior fragilidade. Além disso, os outros guerreiros que circundam o grupo
central contradizem essa interpretação.Me parece muito mais enriquecedor
trabalhar no plano de organização social arcaico e procurar aprofundar a
dimensão antropológica dessas imagens. Dessa forma colocamos em
evidência a verdadeira função do tridente na aristocracia ática, instrumento de
prestígio e autoridade.

Um exame mais detalhado do corpus Posseidon nos revelará que os


pintores aliam o tridente a um animal marinho, o mais comum um golfinho,
quando eles querem representar o deus do mar. Mais uma vez, é a
combinação de unidades formais mínimas que produz uma significação
precisa.

Mencionemos para concluir que encontramos o tridente nas cunhagens


dos Ptolomeus. Ladeando a efígie dos soberanos, apresentados como os
“novos” Posseidon, eles proclamam ao mundo suas pretensões de dominação
dos mares. Assim, o tridente acumula não somente as qualidades do atributo
com as de autoridade social e mais ainda política, mas também ele assume
sua função semiótica comunicando a mensagem urbi et orbi.

PÁGINA 20

2. Erotismo e violência na fonte.

Os problemas do abastecimento de água frequentemente obrigaram os


gregos a construir fontes no exterior das muralhas urbanas, ao pé das cidades
que se desenvolviam em torno das alturas acropolitanas. Sabemos que as
mulheres e não somente os escravos, vão encher suas hidrias nessas fontes,
lugar de encontros, falação, repouso. Sobre uma hidria de Londres (fig. 10), os
animais familiares, mais ainda que os galhos com folhas no campo, localizam a
cena no exterior. Mas as fontes não são lugares de encontros apenas
femininos: os efebos, no retorno da caça, lá vão refrescar sua montaria e dar
descanso aos seus cães – a hidria sugere a mulher (fig. 11).
Página 21

Sobre uma terceira hidria, os homens são introduzidos no edículo


abrigando os reservatórios e mantêm uma conversa animada com as jovens
mulhres que lá enchem suas hidrias (fig. 12).
A fonte também é um lugar de trocas entre sexos diferentes; não
estamos distantes do flerte. Isso acontece quando uma jovem se encontra
sozinha, ocasião aguardada por um jovem mais vigoroso (fig. 13).
PÁGINA 22

Se tais encontros ocorrerem mais de uma vez podem acabar mal para a
imprudente! É o que poderia corroborar uma série de imagens heoico-
mitológicas que traduzem uma aventura talvez relativamente banal. Essas
cenas, figuradas com frequência em vasos utilizados por mulheres, nos
inclinanos a crer, se constituem em advertência. Implicitamente, a imagética
condena os comportamentos hybrísticos8 uma vez, sabemos ao menos pela
tradição legendária, os violentos, os violadores, Aquiles, Ajax, Neoptolemo e
outros açougueiros serão punidos e expiarão seus crimes.

8
Nota minha: comportamentos plenos de desmedida.
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O tema mais célebre é aquele de Aquiles e Troilos; ele faz parte do ciclo
troiano. Conhecemos a história: Troia não poderia ser tomada se o jovem filho
de Príamo atingisse a idade de vinte anos. Aquiles o espreita e lhe surpreende
em um dia em que ele acompanha sua irmã Polyxena à fonte para lá dar de
beber a seus cavalos. Uma outra versão conta mais simplesmente que Aquiles
se apaixona por ele e, repelido, termina por assassiná-lo em uma crise de
raiva. Qualquer que seja, Troilos é assassinado em condições abobináveis, que
a imagética gosta de remarcar. Pierre Ducrey me chamou a atenção para esse
predileção dos artesãos atenienses pela pintura dos horrores da guerra e
particularmente o massacre de inocentes. Aqui Aquiles decapitou o jovem
homem no altar de Apolo, fixou sua cabeça na ponta de uma lança que ele
brandiu contra Heitor que correu para resgatá-lo; lá ele se apreessa a esmagar
o pequeno corpo infantil sobre o tripé do santuário, suspenso por sua pequena
perna, insensível às súplicas do velho pai de cabelos grisalhos que lá está
limitado a praticar uma “prece de mãos postas” ineficaz.; os troianos que se
precipitam fora das portas chegaram muito tarde. Nas muralhas da cidade, as
mulhres gritam e arrancam os cabelos. Aquiles encarna então o monstro ímpio
por excelência e ainda Atená, no centro da imagem, parece bloquear a saída
dos reforços troianos: ela estaria garantindo essa violência?
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Não antecipemos. Necessário, contudo, revelar o fim dessa grande tira


desenhada in absentia que todo ateniense conhecia: a aventura, iniciada de
modo benigno na fonte, terminará de modo atroz sobre o altar como uma
espécie de sacrifício pervertido marcado por um selo de iversão maligna.
Na fonte, Polyxena acaba de encer seu jarro (fig. 15). Atrás dela, seu
jovem irmão, está montado em um cavalo que é agarrado pelas rédeas por um
homem nu; talvez ele esteja tentando prevenir Troilos, cujo nome consta de
uma incrição. À extrema esquerda, o primeiro hoplita de uma falange troiana;
na extrema direita, Aquiles, emboscado, que vai se precipitar. A ação não está
ainda completa mas o suspense é intenso. Outras imagens nos revelam o fim
dos acontecimentos, tal como o célebre vaso François do Museu de Florença:
Aquliles salta; Polyxdene deixa cair a sua hydra que se quebra; Troilos dá
maia-volta e lança seu cavalo em inútil galope; ela será alcançado.

Mas o que diz a semiótica sobre tudo isso? Aqui: sobre uma parte das
imagens do corpus , Troilos desapareceu. De um lado e de outro da fonte
ficaram somente uma jovem mulher e um guerreiro (fig. 16 a-b). Sempre me
pareceu estranho que em uma cena onde o protagonista é Troilos (tradição
literária de apoio), ele poderia ser pretendido e deixar como principal, ouso
dizer, à sua grande irmã, que desempenha, no mito, nessa fase do discurso,
um papel subalterno. Com efeito, a supressão do sintagma “Triolos” modifica
completamente a história tal como resumi. Aquiles se apaixonará por Polyxena:
ele a espreita na fonte? A imagem que reprouzi aqui (fig. 16) não seria mais
que uma versão heroico-mitológica da cena de gênero apresentada
anteriormente (fig. 13).
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O equipamento do hoplita bastaria para apontar o esquema do lado da guerra


de Troia. Nós estaríamos então na presença de duas versões diferentes: uma,
tradicional e literária, centrada em Aquiles e Troilos; a outra, atestada pela
imagética centrada no episódio da emboscada, centrada sobre Polyxena. Esta
é que é difícil de acreditar; que Polyxena desaparecesse da cena, no resumo
do episódio, em nada o afetaria; Troilos omitido, toda a face das imagens
evocadas acima por relações associativas é privada de seu ponto de partida.

Meu propósito é resolver essa dificuldade sem que a coerência da


imagética seja quebrada e sem que a semântica seja violentada. A fim de
propor uma solução ao problema, contemos uma outra história, qualquer que
seja a obscuridade das fontes e abordemos o ciclo tebano. Ismmene, irmã de
Etéocles, apaixonada por um jovem homem chamado Theoclymenos, marcou
com ele um encontro perto de uma fonte fora da cidade. Tideu, outro herói que
aqcumula os crimes de hybris (ele é célebre por ter devorado a cabeça de seu
inimigo Melânipo), espreita e surpreende os amantes. Theoclimenes consegue
escapar; ismênia é massacrada. Compreendemos imediatamente que esse
discurso é a contrapartida exata, simetricamente invertida, da história de
Aquiles e Troils. Enquanto Polixena escapa. Ismênia é capturada; enquanto
Troilos é assassinado, Theoclimenes se salva.

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Essas permutas no destino das personagens correspondem àquelas que nos


tem assinalado na imagética. Se um guerreiro é emboscado atrás de uma fonte
e diante de um mhomem jovem, se trata de Aquiles e Troilos; se a protagonista
é uma jovem mulher, pode se tratar seja de Troilos e Polyxena, seja de Ismênia
e Theoclymenos. Eu me pergunto se os pintores não são sensíveis a essa
possibilidade de confusão temática a qual parece difícil de remediar com a
ajuda de um repertório iconográfico, de onde o recurso desesperado às
inscrições (cf. fig. 15). Será necessário retomar aqui cuidadosamente toda a
imagética prestando a maior atenção às relações sintáticas entre os jovens.
Poderíamos opor por exemplo as cenas sobre as quais o jovem homem segue
a jovem mulher que lhe dá as costas àquelas onde ela o encara e parece
acolhê-lo. No primeiro caso se trataria de Polyxena e Troilos, no segundo de
Ismene e de Theoclimenos. Não faço mais que sugerir aqui uma perspectiva de
epsquisa que satisfaça à lógica da imagética.

Um indício importante para corroborar as interpretações avançadas


propostas aqui é fornecido por uma ânfora etrusca chamada pôntica9. Nela
encontramos, de uma parte e outra do vaso, as duas cenas que irei diferenciar.
Sobre a face A (fig. 17 a), à direita da fonte, Aquiles pegpu o infeliz Troilos
pelos cabelos que tenta blhe escapar ainda que sobre a face B (fig. 17 b),
Tideu está em vias de desembainhyar sua espada e assassinar Ismênia., que
procura se refugiar sobre uma espécie de altar. Assim esse vaso apresenta um
programa completamente coerente: nos dois casos, um guerreiro monstruoso
massacra o corpo que ele não pode possuir; eis a prova de que os dois temas
eram próximos nos tesouros das imagéticas.

9
Difícil de traduzir. Pôntica = originária do Ponto.
Mais uma vez constatamos que não se deve procurar fabricar um
corpus que não se baseie em supostas aparências. Ao contrário, são as
diferenças que precisam ser exploradas se desejarmos salvaguardar a riquesa
do sistema. Nesse perspectiva, o instrumento semiótico, mesmo se ele não
aparente ser de utiloidade fundamental a cada etapa da pesquisa, tem ao
menos o mérito de nos tornar sensíveis a certos problemas que não podem e
nem devem ser negligenciados.

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3. Imagens e mensagens.

Na manhã de 28 de julho de 514 AEC se produziu, na face norte da


ágora de Atenas um acontecimento que a exploração ideológica teria
centuplicada seu real significado histórico: dois atenienses, Harmodios e
Aristogiton, mataram o tirano Hiparco, filho de Pisístrato e irmão de Hippias, o
qual escapara do atentado e continuaria a oprimir a cidade. Meu propósito não
é fazer o papel do historiador mas sim de analisar como o símbolo de
esperança e liberdade, encarnados nos dois tiranicidas, foi largamente
explorado pela media da época, a imagética.

Após a queda da tirania, Antenor, um escultor que havia trabalhado para


os Alcmoônidas (famíla a qual pertencia Clísitenes, o reformador que
remodelou a organização da cidade e de seu território), produziu um
momumental grupo em bronze representando Harmodios e Aristogiton. Essas
estátuas foram colocadas no centro da ágora, lugar da palavra política por
excelência. Elas foram levadas pelos persas durante o saque de Atenas, se
bem que um novo grupo tenha sido encomendado a dois escultores, Critios e
Nesíostes. A inauguração do novo monumento ocorreu em 477 ou 476.
Infelizmente hoje em dia somente o conhecemos por uma sérire de réplicas em
mármore da ápoca romana onde a mais completa e restaurada senão a mais
fiel é aquela do Museu de Nápoles (fig. 18). Essas cópia, retiradas de seu
contexto arqueológico original, podem não estar dispostas na posição correta
em relação à outra; a relação sintática está quebrada. Mas isso pouco importa.
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Os tiranicídias estão representados de maneira idealizada. Eles estão


figurados maiores que o natural, em estado de nudez heroica, e suas faces não
possuem valor de retrato. Estamos na presença de esculturas com função
política destinadas a comemorar um aocnteciumento reputado capital para a
comunidade e à chamar a cada um aos sacrifícios necessários para obter e
conservar a liberdade. A conjuntura arqueológica, muito completa, precisa a
natureza da mensagem; sua situação na orquestra da ágora atesta sua posição
privilegiada em um quadro político; a inscrição gravada sobre a base do
monumento impõe uma leitura correta das efígies; diante do monumento enfim,
uma estela estabelece os sacrifícios a ciumprir e apresenta dos privilégios
concedidos aos descendentes. É necessário destacar em último lugar que,
nesse grupo esculpido, falta o tirano, a despeito de todo o seu realismo; sua
ausência confirma que todo o monumento constitui um símboilo em toda a sua
pureza e simplicidade.

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A imagética, em si, trata o sujeito de suas maneiras diferentes. A


primeira versão é “realista” ao menos em relação à segunda. Reproduzo aqui a
cena mais completa (fig. 19).
Aristogon, à esquerda, enfia sua espada no ventre de Hiparco que tenta em
vão repelir seu agressor e volta a cabeça em direção de Harmodios, prester a
lhe dar o golpe de misericórdia. Cewrtamente a imagem não é um instantâneo
fotográfico e as faces dos eprsonagens não apresentam nenhuma qualidade de
retrato. Ainda que os atores estejam vestidos e as espadas afundem
visivelmente na carne do opressor. Eu diria que é precisamente por causa
desse realismo da imagem que esta não saberia funcionar como um signo e
transmitir alguma mensagem; ela permanece apenas ao nível de relação de
referência.

A imagem seguinte, por outro lado, obedece a um esquema diferente


(fig. 20). Os dois heróis apresentam o mesmo estado de nudez que aquele das
estátuas; suas atitudes são calcadas sobre aquelas do grupo esculpido. Lá o
tirano também não aparece. Consequentemente a cena é incomp-reensível; ela
somente encontra um sentido por relação ao monumento ao qual ela pegou de
empréstimo as formas significantes. A leitura da imagem está condicionada por
uma relação de referência ao grupo do ágora que em si simboliza a liberdade
da pátria. Notamos que o suporte d aiamgem é um vaso funerário; em
consequência podemos supor que tal oferenda transmite sua mensagem ao
defunto: você foi motro em combate (qualquer que ele seja) por servir à pátria,
por sua liberdade; você se tornou um herói, semelhante a Harmodios e
Aristogiton.

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A imagem seguinte confirma leitura similar (fig. 21). Ela decora um vaso
que por sorte nós temos a conjuntura arqueológica precisa. Ele provém da
tumba de Dexileos, jovem oficial de cavalaria morto em 394 durante um
enfrentamento perto de Corinto contra os espartiatas: ele foi heroisado por sua
família como testemunha seu momumento funerário. A imagem se apresenta
aqui como uma reprodução do monumento dos Tiranicidas na ágora; a base
figurada sob seus pés confirma que se trata de estátuas. O pintor ainda
desenhou a estela que continha os dizeres do túmulo. O exame dessa imagem
mostra que o grupo de Crítios e Nesiostes funciona como um signo e que este
é largamente reconhecido como tal. É certo que, nesse caso em particular, a
família escolheu esse vaso para dizer a seu filho caído combatendo os
Espartiatas, sugeridos como “tiranos”, que ela o considera como um herói
nacional e que ele então viverá para sempre na ordem dos valores da cidade,
como sempre foram os tiranicidas.

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O valor de signo estável e constante que tomam essas efígies é


corroborado pelo grande número de objetos que o veicularam: citamos apenas
as moedas e fichas. Mas não é tudo. Quando Atenas revive a tradição
democrática depois da Tirania dos Trinta suscitada pela derrota na Guerra do
Peloponeso, o escudo da estátua de Atená pintado sobre as ânforas
paratenaicas portará como signo distintivo, comoa rmas falantes, a imagem dos
tiranicidas (fig. 22). A função heráldica dos signos é evidente. O escudo da
deusa é utilizado como um suporte destinado a identificar as plaquetas próprias
a propagar as mensagens iconográficas patrióticas. Com isso superamos a
simples intenção de comunicação e ficamos presos a um verdadeiro ato de
comunicação porque o observador do escudo-cartaz reconhece como tal o
signo e nisso compreende imediatamente o sentido por haver contemplado
diariamente seu modelo na ágora. Por outro lado, como recompensas
ofertadas aos vencedores dos jogos, as séries panatenaicas conhecem uma
vasta difusão e asseguram à mensagem uma excelente publicidade. Esse
exemplo mostra que a imagética se beneficia do tratamento semiótico não
somente sobre o plano da significação mas também pelo plano da
comunicação.
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Esse sucesso nas manipulações iconográficas e a exploração de um


signo-símbolo repercutiu em numerosos corpus de imagens, no ciclo de Tesus
por exemplo. Esse herói é ele mesmo o objeto de recuperações ideológicas
das mais variadas. Ele passava, entre outras, por campeão dos direitos
democráticos e então por um tiranicida. Contrariamente à imagética de
Hercules, aquela de Teseu, posteriormente, apresenta uma coerência bem
superior. Sobre uma taça de Londres (fig. 23) se desenvolve uma verdadeira
face desenhada “à antiga”; ela conta as façanhas de Teseu na estrada

de Trezena, lugar de sua infância, até Atenas, sua pátria. No centro, dentro do
medalhão, figura o episódio do Minotauro que simbolisa, ele também, o fim de
uma tirania, , aquela de Minos e dos Cretenses (estamos no plano dos mito,
bem entendido). Ao redor, como no exterior da bacia, de qualquer maneira, se
sucedem os combates conduzidos contra os bandidos e os monstros que
infestavam a rota e tiranizavam os viajantes. Ou, por duas vezes, a atitrude de
Teseu está calcada esquematicamente sobre aquela dos tiranicidas do nosso
monumento. No alto à esquerda, no confronto com a javalina de Cromion, o
herói está representado em Aristogon e, em baixo, à direita, ele brandiu contra
Sinis (derrubado sobre um rochedo contra o qual se aproxima uma tartaruga)
uma grande bacia em bronze, na mesma postura que Harmodios.

O imagista, como o desenhista das tiras modernas, recorre então às


citações. As unidades formais mínimas permanecem neutras mas os sintagmas
não são inocentes e às vezes já estão carregadas de significações. Novamente
essas alusões não poderiam escapar ao apelo habitual de decifrar e comentar
essas imagens, familiar dos grandes monumentos que ele encontrava
diariamente. Se nosso conhecimento da Atenas momumental – em particular
dos grandes frescos – fosse menos lacunar, indubitavelmente poderíamos
multiplicar esse tipo de leitura e penetrar mais profundamente nesse mundo
fascinante. Não estando mais dentro de boas condições de recepção, não
temos o direito portanto de acusar os iamgistas de maus emissores.

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CONCLUSÃO

A semiótica permite colocar em evidência o sistema que organiza a


imagética considerada como um conjunto coerente. O método não está sem
dúvida perfeitamente acabado; mas as impecisões são suscetíveis de ser
suprimidas muito facilmente. Esse otimismo se apoia sobre a relativa
simplicidade do “objeto” estudado. O processo implementado na imagética
sendo do tipo sistemático-intrínseco-direto, não somente as unidades formais
mínimas não são arbitrárias mas também sãodiscretas; esses são os
benefícios inestimáveis para relacionar os signos linguísticos ou às “uinidades”
inventadas pelos artistas.

Por outro lado, nós vimos que as relações gramaticais e sintáticas entre
as unidades e os sintagmas mínimos são, elas também, relativamente simples.
As combinações se fazem antes de tudo por justaposições, mesmo se estas
não devam nada ao acaso.

A principal dificuldade me parece residir na ginástica mnemônica a qual


o analista deve se livrar ao longo do eixo paradigmático, de tudo o mais que os
arquólogos tem o hábito de trabalhar fracionando e isolando o que não tem
sentido senão no todo. É verdade que as relações associativas são facilitadas
graças ao fechamento do sistema, limitado pelas restrições formais rígidas –
daí essa pesquisa de aberturas temáticas que não pode finalmente se exprimir
senão pelo recurso a um processo estrangeiro, as inscrições nominais.

Eu gostraria de ressaltar mais uma vez um benefício que me parece


representar uma conquista decisiva: o caráter científico da metodologia; os
resultados podem se submeter à prova da “falseabilidade”. Desde que algumas
das regras de associação e de exclusão que subjazem a sintaxe foram
detectadas, podem ser colocadas à prova sem que mesmo que seja
indispensável conhecer todas as cenas das quais sejam suscetíveis de analisar
com o um todo. Uma demonstração do tipo estruturalista oferece então a
vantagem paradoxal de poder ser, se for o caso, irremediavelmente arruinada.
Nas ciências humanas é uma bela revolução.

Mas os instrumentos semióticos não se limitam à aperfeiçoar as técnicas


de leitura e compreensão. Apesar das semelhanças estruturais que elas fazem
aparecer entre a imagética e o mito, eles colocam questões mais profundas
que pertencem, finalmente, ao funcionamento do espírito humano. A imagética
como tal, em sua totalidade, não tem para o pintor existência senão de modo
virtual. Este não cria as imagens. São as imagens que se materializam graças
a ele.

O verdadeiro problema talvez ainda não possa ter sido abordado pelos
priviligiados que nós somos. Nós possuímos, nós, a imagética; nós podemos
projetar imagens que foram descobertas um dia e alcançá-las pelo computador.
Nós constatamos as estruturas mas não lhes explicamos a origem.

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