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Antes Do Angelo Corrigir
Antes Do Angelo Corrigir
Belo Horizonte
2018
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Orientador:
Professor Doutor Ângelo Nonato Natale Cardoso
Belo Horizonte
2018
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Sumário provisório
Introdução
1 Contexto e Revisão
1.1 Alteridade, definições éticas e metodológicas
1.2 Definição de música, corpo, Saúde e espíritos
1.3 Cosmologia espírita e Dr. Fritz no Brasil
1.4 Allan Kardec – Biografia, codificação e a música
1.5 Categorias musicais nas obras de Kardec
2 A CAFOL
2.1 O problema e o campo
2.2 Do lado de lá e de cá
2.3 Funcionamento
2.4 Tempo ritual: um sábado e os atendimentos
Consideração Final
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INTRODUÇÃO
Ao analisarmos a ciência nos tempos atuais, podemos refletir que não há mais
sentido em um mundo baseado na visão mecanicista, que faz distinções entre as ciências
naturais e sociais. Boaventura Santos (1987), em seu livro – Um discurso sobre as
ciências expõe a tese de que, desde o paradigma dominante na modernidade, até os
tempos atuais, todo conhecimento é, de algum modo, autoconhecimento; que a ciência
natural é, na verdade social; que um conhecimento pode ser local e total e que, poderá
se constituir em senso comum.
“Defendo que todo o conhecimento cientifico é socialmente construído, que
seu rigor tem limites inultrapassáveis e que a sua objetividade não implica a
sua neutralidade” (SANTOS, 1987:09)
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Mediunidade é a capacidade que o ser humano possuiu de interação, percepção e conexão com espíritos
e seu mundo.
Toda pessoa que sente, em um grau qualquer a influência dos Espíritos, por isso
mesmo, é médium. Esta faculdade é inerente ao homem e, por consequência, não é
privilégio exclusivo; também são poucos nos quais não se encontrem alguns
rudimentos dela. Pode-se, pois dizer que todo mundo é, mais ou menos médium.
Todavia, usualmente, esta qualificação não se aplica senão àqueles nos quais a
faculdade medianímica está nitidamente caracterizada, e se traduz por efeitos patentes
de certa intensidade, o que depende, pois, de um organismo mais ou menos sensível
(KARDEC, 1992, p. 181).
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me tornando parte; pude compartilhar saberes e colocar sentido nessas vivências. Entre
membro religiosa e pesquisadora, Rabelo (2013) postula sobre a árdua e dupla função.
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Sabará. A então responsável pela produção daquele álbum fonográfico era Camila
Menezes2, que ainda não a conhecia. Na época Camila havia me ligado e combinamos
de nos encontrar em meu local de trabalho, para fecharmos os detalhes. Era um trabalho
voluntário e como naquela semana, minha agenda estava muito tranqüila, resolvi
aceitar. Camila chegou com duas gravações, apenas vocais de Dr. Fritz e Medicação de
Amor. Confesso que achei a música Medicação de Amor muito estranha, sem métrica e
um pouco sem sentido para mim, mas aceitei, e a incumbência de arranjar tais canções
em três dias foi realizada com sucesso e sem grandes dificuldades. Naquela época não
tinha a noção que se tratava das duas principais músicas daquela Casa. Pouco tempo
depois, Camila me convidou e aceitei para gravar saxofone, em estúdio, em uma faixa
do CD.
Camila não fez mais contato e apesar também de alguma curiosidade, só fui
conhecer a Casa de fato em 2011, no qual fui convidada a tocar com um grupo Espírita
chamado Pilares. Só anos mais tarde eu soube que, a pedido da direção da Casa, os
arranjos dos álbuns deveriam ser mais delicados, e que tal CD deveria soar como uma
medicação a quem ouvisse, e ritmos com velocidades mais rápidas, não caberiam.
Apesar das músicas que arranjei serem lentas, nem entraram para o registro em tal CD,
optando tanto a direção da Casa, quanto Camila, por realizarem os arranjos apenas
vocais desse primeiro trabalho em questão.
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Atualmente Camila Menezes é a regente do Coral Luiz Alberto da CAFOL.
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Segurar a bandeja é a ação de auxiliar na fila de distribuição da medicação, chamada Vida. Para tanto o voluntário
deverá segurar uma bandeja, ao lado de Dr. Fritz, para que sejam colocadas as seringas com a medicação da pessoa
que passa pelo trabamento. Segurar a bandeja é um privilégio e significa sair da configuração de
paciente/fiel/visitante para o de tarefeiro. Nesta época Dr. Fritz me fez o convite para que o auxiliasse na bandeja. Tal
fato só me veio à memória no fim de 2016.
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A disciplina “Etnomusicologia” compõe o quadro de créditos a serem cursados no Programa de Pós-Graduação em
Música da Escola de Música da UFMG. A professora Dra. Glaura Lucas é a responsável pela disciplina, e, como uma
das atividades avaliativas do semestre letivo, propõe que se empreenda uma visita a algum campo e a consequente
descrição etnográfica de tal experiência. Esta matéria foi cursada no 2º semestre de 2016.
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Essa qualificação estrutura-se em quase dois capítulos, que precede desta introdução,
que traz a metodologia, a justificativa e os objetivos. Nos capítulos contidos nesta etapa
de qualificação, trago em partes do capítulo dois, uma contextualização da CAFOL, do
conceito e descrição, a partir das concepções nativas, assim como o funcionamento da
Casa, relatando um dia dos trabalhos. No terceiro capítulo narro, através de texto
etnográfico, vivências que o campo me mostrou como importantes. Tais experiências
tiveram modificações ocasionadas pelo próprio campo, a medida em que pude por
sentido (LUCAS, 2011:66) e conviver com o grupo pesquisado, fui modificando minhas
percepções diante da performance.Tais relatos trazem posteriormente, reflexões de
alguns autores.
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CAPÍTULO 2 - A CAFOL
Por outro lado, a presidente da Casa, Dona Zulmira, ao ser abordada por
mim, com a pergunta sobre o que é a Olhos da Luz, define como: “Aqui é um hospital”
( Diálogo entre a pesquisadora e Dona Zulmira, em Agosto de 20017).
2.3 Funcionamento
música ininterrupta. Assim que todos os pacientes e tarefeiros recebem a medicação, Dr.
Fritz dá uma benção final. Logo após essa benção todos os tarefeiros entoam juntos,
também a capela, Se caminhar uma pequena canção, que fala sobre caminhar juntos, fé,
esperança, compartilhar com os que não souberam perdoar; dando as mãos e braços,
formando uma pequena mandala.
No dia vinte e oito de Outubro de dois mil e dezessete, narro um dia de sábado,
no qual exerci minha dupla função: tarefeira, trabalhando como musicista; e como
pesquisadora, vivenciando, observando e anotando, através de relato etnográfico e
gravação de áudio em tais momentos. O objetivo é trazer apontamentos vindos dessas
experiências, os quais servirão de embasamento para discussões, que serão levantadas
ao longo deste capítulo e, de certa forma, desta pesquisa.
Assim, entre quatro horas da manhã e quinze horas da tarde, foram registrados
os áudios para análises posteriores, através de três celulares smatfones e uma câmera
fotográfica. Tais amostras não tiveram nenhum tipo de edição na qualidade sonora,
apenas cortes e fade out.
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Cristina Araújo esteve na CAFOL apenas duas vezes. É Cel. Reformada da polícia militar e professora de
fisioterapia respiratória na Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.
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Geralmente6, por volta das quatro horas da manhã, Dona Zulmira abre a porta do
salão principal e desliga os alarmes. Quando a médium Eliane Gonçalves chega antes
das quatro da manhã, o salão é aberto assim que ela chega. A distribuição das senhas
começa na lateral, e aos poucos, após pacientes\fiéis\visitantes pegarem a ficha com a
numeração, as pessoas vão entrando. Nós tarefeiros, que fazemos parte da equipe de
atendimentos, aguardamos toda a fila pegar a senha e só depois adentramos aquele
salão. Sou a primeira da minha equipe (vibracional) a chegar.
Ao entrar no salão ali neste dia, percebo diferenças no espaço físico. Como a
Casa está passando por reformas, todos os quadros e fotografias foram retirados.
Percebo também fios do lado de fora da parede. Isso me causou uma sensação de estar
faltando algo muito importante. Para mim, talvez. Os quadros dali me trazem
informações identitárias e simbólicas daquele ambiente, que ao serem retirados, me trás
uma sensação de estar em outro espaço físico.
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Atualmente, os trabalhos de sábados e domingos se iniciam às seis horas, em Sabará e às sete horas em Congonhas
do Campo.
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O salão está com todos os seus lugares ocupados e presumo vinte pessoas de pé.
Enquanto preparo meus instrumentos musicais, afinando o violão e montando a flauta,
percebo aquela massa sonora densa, promovida principalmente por conversas dos
tarefeiros. Dentro dessa polifonia , com muitas conversas, passos, coisas se arrastando,
ouço Beth, uma criança com necessidades especiais, que me chama animadamente pelo
nome, - Kelly, Kelly, Kelly!!!!! Além de uma melodia vinda da ante-sala para a sala de
tratamento. Era Rebeka, uma tarefeira cantando.
ÁUDIO: https://drive.google.com/open?id=1t8gFKoO9gkwCkl6swt3zJ5ZahzwWN4QI
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Canção composta por Sérgio Saraceni e Ronaldo Monteiro de Souza, tema musical de uma telenovela de mesmo
nome, canção conhecida na voz da Cantora Joana.
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promovido por conversas. A tarefeira Rebeka ainda canta mais algumas músicas a
capela, que não consigo identificar quais são, devido muito a Beth, que conversa
comigo e faz perguntas, intensificando minha atenção a ela. Logo em seguida é
colocado8 em um aparelho de som, o CD número um do trabalho do coral da Casa, Luiz
Alberto – Medicação de Amor.
Como a reprodução das músicas do CD são colocadas nas caixas amplificadas,
às canções ficam mais evidentes e em um primeiro plano de intensidade A música
Alvorada9 é a que se inicia:
De paz tão delicada
São os ares seus
Doce alvorada
Ensolarada
Colônia de Deus
Muralhas tão brancas
Plumas muralhas
Plumas muralhas
Plumas
ÁUDIO: https://drive.google.com/open?id=12fsTA4XyDJgsbL9U6WQMiPxO6F74AgY1
Esta canção gravada pelo coral Luiz Alberto, da CAFOL, apresenta um ritmo ternário
simples, em velocidade acelerada, com dois planos de altura, cantados por homens e
mulheres. Sua narrativa nos fala das colônias espirituais. Tal colônia se chama Alvorada
de Deus. A segunda música a tocar nas caixas amplificadas, é Amparo Amigo10. A Beth,
que havia me chamado logo que cheguei, se anima ao ouvir essa canção do qual gosta
muito, começa a se expressar, batendo palmas e cantando muito forte, trazendo para si a
atenção das pessoas. Ela se levanta da cadeira em que estava, e se senta ao meu lado.
Nesse momento é ela quem canta as próximas músicas, junto com o CD. Ela se agita,
cantando forte e falando, fazendo com que a performance se torne mais confusa, ao
mesmo tempo as conversas quase cessam, levando pacientes/visitantes/fiéis a cantarem
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Essa prática é recorrente na iniciação dos trabalhos, só sendo interrompido com a chegada do espírito do Dr. Fritz.
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Faixa 01 do CD1 Medicação de Amor, psicografada pela médium Eliane Gonçalves, trazida pelo espírito Pedrinho.
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Faixa número 02 do CD1 – Medicação de Amor. Música psicografada pela médium Eliane Gonçalves, trazida pelo
espírito Irmã Yone.
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também. Várias outras músicas, também são interpretadas por ela, que acompanha a
gravação fazendo com que sua voz sobressaia. Essas canções ainda não fazem parte do
hinário da Casa. Entretanto, percebo que a maioria que estão no salão cantam, sem a
necessidade de recorrer a uma letra escrita.
A música Amparo amigo começa e Beth se levanta da cadeira e começa a
dançar, enquanto canta animadamente. Faço um comentário raso, diante da riqueza
experiência. – Olha, ela está com ritmo! E sorrio diante da minha aparente ingenuidade.
https://drive.google.com/open?id=10G7EE8XVzMsi0s-dpPqMa8SU7kvvyNSz
Várias outras músicas são tocadas em seguida respectivamente, como Dr. Hélio,
Conte sempre com Pedrinho e Deus. A alegria de Beth ao ouvir tais músicas, faz com
que ela bata palmas, cante, dance e sorria ao mesmo tempo. Percebo que o salão se
anima também com essa performance, fazendo com que os visitantes/pacientes/fiéis
também cantem mais animadamente.
A música é interrompida por uma tarefeira. Michelle, abaixando o volume do
aparelho de som, avisa a todos do salão:
Meus amores, bom dia! A médium Eliane Gonçalves está se esforçando para
chegar aqui. Os trabalhos têm sido muito intensos. No último fim de semana,
no sábado, Dr. Fritz atendeu em Congonhas do Campo, o atendimento foi até
a noite. Durante a semana a Casa também tem atividades muito intensas.
Como vocês viram, a Casa está em obras, pra melhorar um pouquinho. Como
teve a obra, a Casa precisava ser preparada para final de semana. Anteontem
e ontem, ela (Eliane Gonçalves), fez a faxina da Casa com uma equipe
ajudando, mas foi um trabalho muito pesado, que foi adicionado ao que ela já
faz normalmente, que é muito intenso. E ela já tem um desgaste muito grande
pela questão mediúnica, que é um desgaste natural da mediunidade de cura, e
que exige muito dela. É uma situação muito difícil. Mas ela está se
esforçando para chegar aqui. Enquanto isso, vamos ficar com o pensamento
elevado a Deus, pedindo em favor de todos que estão aqui, e dela também. E
que ela esteja bem. (Michele, aviso dado no dia 28 de Outubro de 2017, por
volta das cinco horas da manhã).
Após esse aviso, percebo que a médium ainda não havia chegado. Na maior parte das
vezes, Eliane Gonçalves chega antes da maioria dos tarefeiros. Olho para as pessoas
sentadas no salão e aquele recado aparentemente não modifica seus semblantes. Michele
aumenta o volume do aparelho de som e a música Missionária da Luz, em homenagem
a médium, é tocada.
O salão volta a cantar, assim como a Beth. A canção, quaternária simples,
composta pela coordenadora da equipe vibracional, da qual faço parte - Consolação, fala
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https://drive.google.com/open?id=1jxEyr3TcqLF1RzJ079wq0ivQRksLGc3l
A música Fritz é tocada, fazendo todo o salão cantar. A canção gravada é binária
composta, porém quando é tocada no salão, muitas vezes acaba se transformando em
ternária simples. A música após Fritz é Caminharmos juntos.
Letícia, a tarefeira mais próxima da médium, e responsável pela sala de
tratamento, conversa com Márcio e lhe entrega um papel, que imediatamente me pede
para abaixar o volume do som, para que possa dar um aviso:
“Queria transmitir a vocês um pedido da nossa irmã Eliane Gonçalves,
pedindo desculpas a todos, pelo transtorno. Nossa Casa recebeu uma doação
para troca de fios da parte elétrica. Por isso pedimos desculpas, pelo
transtorno, pela situação em que a Casa se encontra. Obrigado”
Volto com o volume do som e a música Mestre Joel já está quase no fim. A
tarefa de mostrar a numeração para que visitantes/fiéis/pacientes saiam de seus lugares e
se sentem em cinco cadeiras, localizadas no canto direito do salão, próximo dos músicos
– equipe vibracional, começa. E do número um a cinco são chamados. A partir dali
terão seus objetos recolhidos, como blusas de frio, sacolas e bolsas; e serão
encaminhadas para a sala de passes, e logo após, à sala de tratamento. Márcio avisa para
que até a numeração de número onze, fiquem todos atentos.
As músicas Presente, Destino de Amor e Irmã Alcione são reproduzidas. Após a
última, o CD agarra, fazendo com que o salão fique sem música por alguns instantes.
Michele e outra tarefeira tentam resolver o problema, voltando algumas músicas. A
música Mestre Joel é colocada novamente, assim como Fritz. Enquanto ouvimos a
canção ao Fritz, Consolação chega e afina seus dois violões. Me sinto um pouco irritada
com a mistura de sons contrastantes, entre a canção reproduzida e notas subindo em
comas, das cordas do violão. Penso mesmo que essa afinação não deveria acontecer
daquela maneira, após o início dos trabalhos, e se acontecesse, que não fosse dentro do
salão.
A música Medicação de Amor é reproduzida no salão, me fazendo lembrar do
primeiro contato11 que tive com a CAFOL. Enquanto penso, a música Jesus é
novamente colocada. Observo que enquanto a canção é reproduzida, Consolação
acompanha no violão. A presidente da Casa, D. Zulmira, olha em nossa direção,
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Episódio narrado na introdução na página 06.
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fazendo uma negativa com a cabeça, reprovando a ação de tocar violão em cima da
canção gravada. A Consolação olha pra mim e continua, sem qualquer sinal de inibir
seus movimentos ao instrumento.
https://drive.google.com/open?id=1rNmG3LWYai1xVt1KzWt6V1frI6NfLjO8
https://drive.google.com/open?id=1838QaLWvJT2JHJZ3xCxMrBPZvJuPeg65
chama vida, e será dada a cada um individualmente, pelas mãos do dr. Dritz, com a
dosagem, de acordo com a necessidade de cada tratamento. Dessa forma, se iniciam os
trabalhos.
Márcio pega o microfone e diz: - Bom dia a todos! Que possamos, junto ao
convívio da espiritualidade amiga, cantar. Nos pede três hinos, para que a prece inicial
seja posteriormente, realizada. Consolação cumprimenta a todos no salão com um Bom
dia, e como em todos os trabalhos no qual participei, informa que iniciaremos com o
hino 29, Mestre Joel, dizendo: -Mestre Joel é o ministro da nossa Casa!
https://drive.google.com/open?id=1BM4sg3iBd295WEROdUDpmdnP373npZpK
Em seguida tocamos Oração de São Francisco e Fritz. A prece é realizada por
Dona Euzí e logo após, são dados os avisos13 referente aos atendimentos e tratamento.
Nestes avisos, havia recomendações sobre a restrição ao uso do álcool e carne
vermelha, vinte e quatro horas após a cirurgia. Falava também da medicação Vida e de
quais os passos a seguir naquele espaço, desde a chamada pelo número da ficha,
mudança de lugar, indo para as cadeiras, no canto direito do salão, passe e sala de
tratamento para a cirurgia. Caso quem entre na sala de tratamento, opte pelos não
procedimentos com cortes 14físicos, deverão avisar a equipe da sala de tratamento.
Cristina Araújo acena em minha direção, avisando que havia chegado para me
auxiliar na gravação do áudio. Lhe entrego rapidamente um celular, com a função
gravação de áudio já ligado, peço que grave do seu celular também, caso algo aconteça,
e aconselho a permanecer em um mesmo lugar, para não diferenciarem as amostras de
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Dr. Fritz ao me autorizar a gravação em áudio de um dia de tratamento, foi taxativo quanto a não gravar avisos
dados no salão.
14
Os cortes físicos realizados por Dr. Fritz são muito raros atualmente.
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som. Rapidamente volto pra perto da Consolação, que diz ao microfone apontando para
os pacientes/fiéis/visitantes:
-“Este é o coral Jardim Florido do Dr. Fritz. São vocês, acompanhados por nós. O
Jardim florido de Dr. Fritz se refere às rosas, que é o símbolo da Olhos da Luz”.
A partir dessa fala, cantamos sem interrupção por sessenta minutos. Como de costume,
é tocado e cantado canções do hinário. Foram interpretadas respectivamente: Canção do
perdão, Amar como Jesus amou, Um certo Galileu, As Conchinhas, Dr. Bezerra de
Menezes, Inpossível, Quero te dar a paz, Nossa Senhora, Maria de Nazaré, Irmã
Sheilla, Zaqueu ( Faz um Milagre em Mim) e Irmã Eliane. As músicas aconteciam em
um tempo contínuo, sem espaços para ajustes, como afinação e trocas de instrumentos.
Logo após finalizarem essas músicas, Consolação agradece e diz que daqui a instantes,
voltaremos.
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https://drive.google.com/open?id=15o63nBP6UjS-ilv3LM1FFFpjCZZUXIJG
Sinto uma sensação diferente. Uma eletricidade que me faz emocionar a cada
frase tocada. Um misto de arrepios e lágrimas que me afeta, interrompendo o fluxo de
pensamentos e ampliando a carga de sensações. Apesar de estar tocando canções, as
quais estou acostumada, como José Grosso, Luar do Sertão (versão com letra
modificada), Fritz, Meimei e Oração de São Francisco, me emociono de uma maneira
diferente.
Depois dessa experiência, opto por tocar violão, já que as lágrimas me fizeram
perder o fôlego na flauta transversal. A medicação foi dada até o número 80. Dr. Fritz
volta à sala de tratamento, onde recomeça a atender imediatamente. A indicação é para
quem já passou pelo tratamento e recebeu a medicação, podem ir embora, porém
muitos preferem passar o dia e aguardar a benção final, quando Dr. Fritz vai até o salão.
Mais duas músicas são tocadas - Um pouco de perfume e A Barca, e logo em
seguida são dados alguns avisos. Muitos desses avisos se repetem, pois não param de
chegar pacientes/fiéis/pacientes, sendo necessário instruí-los diante dessa dinâmica
complexa dos atendimentos.
https://drive.google.com/open?id=1iFnvZpSVCykiZd_3kqwOsEdzYv40ERZp
O relógio marca nove e trina da manhã. Márcio diz que é hora da oração do Pai
Nosso. Novamente a oração do Pai Nosso é proferida. Desta vez com menos vigor.
Consolação me avisa que terá que buscar sua irmã. Pede para que eu não saia do salão.
Não se passa muito tempo e Márcio autoriza mais quinze minutos de vibração,
cantada. Canto Mestre Joel, e ao ouvir que o salão cantava em peso, me sinto um pouco
mais segura, como cantora.
https://drive.google.com/open?id=1aHyEBxEY0AfsNvkZDvAuGgN3WWh-GZOr
Ao iniciar Impossível, vejo que uma tarefeira chega muito próxima a mim e começa a
cantar. Ela sem microfone consegue abafar minha voz, fazendo com que a performance
saia um pouco diferente. Canto por último Segura na mão de Deus e tento perceber o
cantar daquele salão. Vejo uma pessoa chorando e me emociono
Márcio agradece, e a segunda palestra do dia se inicia, sobre o livro - Sementes
da Esperança, de Ignácio de Antioquia, psicografado por Wander Cardoso Campolina,
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na lição 76. A palestra terá uma duração de uma hora e dez minutos. Saio do salão a
procura de Cristina Araújo. Ela acabara de sair dali.
Do lado de fora da Casa, converso reservadamente com Cristina Araújo, que
narra uma experiência extra-sensória que teve, enquanto Márcio falava sobre o
Evangelho Segundo o Espiritismo. “Aconteceu algo que nunca havia acontecido
comigo”, relata. Enquanto estava sentada, prestando atenção na palestra, ouviu de
dentro da cabeça, uma melodia. Era com pouquíssima intensidade. E quando fechou os
olhos a música ficou mais em evidência. Tombou um pouco a cabeça, na tentativa de
direcionar o som e viu como fosse uma alucinação, um coral com muitas vozes,
instrumentistas e um homem alto, calvo, com cabelos avermelhados, na extremidade
esquerda daquele grupo. Era uma música bela e confortante ao coração. Para ela, essa
imagem não durou muito. Porém continuou ouvindo a música por algum tempo. Como
nos atendimentos o passe é dado cantado, às vezes, do salão, conseguimos ouvir aquela
melodia. Perguntei se por algum acaso, ela não ouviu a música de lá, do passe. Ela me
disse que não saberia responder. Voltamos ao salão, mas dessa vez, pedi a ela que se
concentrasse naquela pequena sala, que para receber os visitantes/fiéis/pacientes precisa
abrir a porta, deixando a sonoridade dos seus cantos um pouco mais nítida. Cristina se
aproximou da entrada da sala de passe e por alguns instantes ouviu atentamente. Não
era aquela música, me disse. A que ela ouviu na cabeça dela era muito mais bela, havia
sons de instrumentos musicais, além de contrastar pela quantidade de vozes. Não veio
do passe definitivamente, relatou.
Voltei para o lugar de onde toco, um pouco anestesiada, pelo relato que acabara
de ouvir. A palestra ainda acontece. Consolação afina um pouco seu violão, enquanto
olho para o salão. Percebo dois grupos contrastados apenas pela cor da roupa. Vejo
pessoas dos dois grupos, de várias idades. Algumas aparentemente saudáveis; outros
com lenços na cabeça e muito magros, aparelhos ligados ao nariz, muletas, machucados,
crianças com síndromes, pessoas jovens e mais velhas em cadeiras de rodas – conto
quatro no salão. Das de branco, tarefeiros, percebo necessidades do corpo que ao meu
olhar, não atrapalham o trabalho, nem a força em auxiliar. Tão logo a palestra se finda,
Consolação anuncia as músicas de número: quatorze, quinze, quarenta e sete e trinta e
Sete. Uma após outra, vai anunciando a numeração do hinário e logo em seguida,
interpretamos a canção. Quando eu quero falar com Deus, Fim dos tempos, Tema da
vida, Amar é possível. Quando anuncia Palminha, de número 36, diz:
- Palminha também é um dos mentores da casa. Companheiro de José grosso.
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Ainda tocamos Você, canção que não está no hinário, fazendo parte do trabalho do
Coral Luiz Alberto, apenas.
Outro palestrante é chamado. Dessa vez o livro a ser estudado é Vinha de
16
Luz. Aproveito esses momentos em que há palestras no salão para ir ao banheiro, me
alimentar, conversar um pouco e anotar em meu diário, alguns acontecimentos e
percepções. No caminho para o banheiro, passando por dentro da casa, há um corredor
onde são colocados os objetos de quem está passando pelo tratamento no passe e na sala
onde há cirurgia. Continuo pelo corredor e a minha direita é a cozinha, onde preparam o
café e a sopa. O pão é preparado na sexta na padaria da EFAF. Terminando o corredor
há o refeitório, pouco menor que o salão, onde acontecem pequenos estudos de várias
obras, para pessoas que já passaram pelo tratamento, mas ou não conseguiram lugar no
salão principal, ou a distribuição de sopa entre onze e treze horas. Passando por uma
grade de ferro, chego finalmente ao banheiro.
Após anotar algumas impressões em meu diário e descansar um pouco, volto ao
salão. Me acomodo em uma das cadeiras para visitantes/fiéis/pacientes e tento prestar
atenção na palestra. Percebo que, apesar do assunto estar em concordância ao que
vivenciamos ali dentro, há muita conversa paralela, interrupções por parte do dirigente,
para dar pequenos avisos, como a retirada de veículos que atrapalham a livre circulação
na estrada ou até mesmo para reforçar o que o palestrante profere. Vivencio um salão
conturbado, em estado diferenciado ao que estamos acostumados, quando fazemos
música.
A palestra termina e volto rapidamente para a frente do salão, junto a
Consolação e a Elizana17. É Anunciado - Pelos prados e campinas, canção que não
pertence ao hinário. Ao tocar presto atenção que não há tumultos ou conversas, apenas
nas estrofes a voz da cantora e poucas pessoas que acompanham de memória, e no
refrão, um salão inteiro que canta:
- Tu és Senhor, o meu pastor /Por isso nada em minha vida, faltará
Consolação, talvez percebendo a força do refrão, executa A Barca. O salão
inteiro canta, do início ao fim da canção. Após essa música Márcio avisa:
“Estão passando os tarefeiros, depois o Dr. Fritz vai tratar todos seus
cooperadores, que fazem parte da equipe médica dele lá dentro. Depois disto
é que ele vem aqui para fora para nos atender. Lembrando que quando
estivermos na fila, vocês vão colocar bolsas e envelope que estão com vocês,
16
Livro de Emmanuel, psicografado por Francisco Cândido Xavier, em 1951.
17
Elizana é uma das tarefeiras passistas. Porém, quando há rodízios para substituição de tarefeiros,
muitas vezes ela auxilia a equipe vibracional, tocando violão.
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na mao direita, vão estar de frente pra Dr. Fritz. Abram a boca mantendo a
língua dentro da boca. Assim ó (demonstrando). Ele vai tirar a medicação,
colocar na boca de vocês, vocês vão engolir a medicação. O envelope será
retirado da mão de vocês, e sobre o envelope será colocado mais medicação.
Depois desse procedimento vocês acompanhem a pessoa que está com a
bandeja até lá (aponta para o fundo do salão), e vão para o refeitório.
Aguardem até que o nome de vocês sejam chamado, e lhe seja entregue a
medicação. Normalmente é uma por dia, a partir de amanhã. Hoje vocês vão
tomar. Se tiver outra recomendação será dado a vocês. O que nós pedimos
após vocês receberem a medicação, quem tiver algum compromisso
inadiável, pode embora. Quem quiser aguardar a benção final, que eu
convido a todos a participarem, aguardem aqui fora, depois serão colocados
aqui dentro do salão para participarem.”(Fala do Márcio, explicando como
proceder no atendimento deste dia)
Após esse aviso, anuncio: Segura na mão de Deus. E enquanto canto, vejo Dona
Zulmira em minha frente. Pega o microfone e aguarda a canção terminar o refrão pela
primeira vez e diz:
Gente, agora chegou o momento de a gente preparar para receber o
medicamento. Para ficar mais fácil vou pedir a vocês que saiam ( do salão). E
vão se colocando em fila. Hoje pela manhã nós fomos até o número 80. Então
eu quero até o número 150 em fila ali e os outros vão se colocando em
seguida. Então vocês vão se retirando do salão em silêncio, para fazer a fila
em ordem numérica. Só ficam no salão pessoas que não tem condição de
caminhar.
A partir desse recado, uma aparente algazarra, muita conversa e tumulto se forma no
salão. As pessoas se levantam, mas não sabendo exatamente onde a fila começa ou
termina, acabam procurando informações, deixando o ambiente confuso. Talvez não
percebendo que uma música conhecida, pudesse talvez rearranjar o espaço ritual,
Consolação começa a Cantar a música Oração e Cura, desconhecida até para mim.
Toca senhor
Toca senhor
Com teu amor
Com teu amor
Cura da doença
que faz o irmão sofrer
Toca neste corpo,
Jesus com teu poder
Cura do pecado
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O salão aguarda, ansiosamente, pela chegada do Dr. Fritz. Após muitas horas ali,
o cansaço começa a deixar as pessoas um pouco mais impacientes e agitadas. Tocamos
várias músicas, como de mentores, do hinário: Eric Wagner, José Cleber, Oração de São
Francisco e Irmã Alcione. Dona Neuzí avisa novamente que Dr. Fritz ainda está
tratando sua equipe de dentro. Márcio ainda reforça, dizendo exatamente a mesma
coisa.
Começamos a tocar Amparo Amigo, e observamos que o tom está extremamente
baixo, tanto para minha voz, quanto para o salão. Apenas alguns tarefeiros nos
acompanham, cantando. E ainda, respectivamente: Deus, Fritz, Joana de Angelis,
Eliane Gonçalves e Eurípedes Barsanufo. Percebo que Dr. Fritz está prestes a chegar no
salão, pois alguns dos tarefeiros que o auxilia, chegam apressadamente ao salão.
https://drive.google.com/open?id=1tPbJI9m5QFVz73Y16AkCdlkb-xvIIlgC
Dr. Fritz chega e em uma dinâmica confusa aos olhos, porém extremamente ágil
e eficiente são colocadas duas filas em caracol. Uma de tarefeiros com bandejas de
27
Com muito entusiasmo, todos batemos palmas. Sinto minha energia completamente
renovada. Não há cansaço aparente no corpo neste momento. Apenas gratidão por
participar de mais um trabalho naquela Casa.
Rapidamente a maioria dos tarefeiros se dão as mãos ou se abraçam, cantando
forte e animadamente, no salão:
Se caminharmos juntos
Com fé e com Amor
Lutaremos contra o mal
E venceremos nossas dores
Jesus mostrou o caminho
E nos disse para amar
E os nossos corações
Iluminados vão ficar
E neste caminho flores vamos encontrar
Repartiremos com os irmãos
Que não souberam perdoar
Lá no infinito as estrelas vão bailar
É o amor que nesta casa vai reinar
É o amor que nesta casa vai reinar
https://drive.google.com/open?id=1horaHEw85iDa29E1Pt-T8HvpjBx69gha
Uma mulher presente fala: “Louvado seja nosso Senhor, Jesus Cristo! E
respondemos, quase que por um impulso vindo de outros ritos: Para sempre seja
louvado”. E os trabalhos terminam, neste dia.
***
Neste relato narro um dia inteiro dos atendimentos da CAFOL de Sabará, onde
através de relato etnográfico e gravações em áudio, conhecemos um pouco mais sobre o
funcionamento da Casa. A partir da performance desse dia busco analisar seus aspectos
temporais.
Na CAFOL há um tempo ritual, onde se estrutura com a colocação do CD do
coral até quando Dr. Fritz chega. Após a música Medicação de Amor os atendimentos
são iniciados. A música ao vivo também se inicia no salão, com uma sequencia de
canções que fazem referência aos mentores da Casa. Logo após os avisos dados no
salão, Dr. Fritz pede uma hora de música ininterrupta. No salão passa-se a alternar entre
palestras e músicas, orientados e pedidos pelo dirigente do salão, no dia. Na distribuição
da medicação Vida, tanto na ante-sala, quanto no salão, a música acontece
29
“credenciamento”. Desta forma, procuro familiarizar o leitor com a CAFOL, local onde
desenvolvo esta pesquisa. Ainda neste relato, pode-se perceber o início de minha
familiarização com o campo como observador-observada.
Após a leitura de alguns livros da coleção “No mundo Maior” de André
Luiz, psicografado20 por Francisco Cândido Xavier para estudo e talvez uma futura
escrita de um artigo, tomei conhecimento da importância de uma pesquisa voltada ao
sensível, ao espiritual, aliada ao trabalho voluntário. Diante desse conhecimento, senti
que não queria apenas estudar a CAFOL, mas também fazer parte, contribuindo com
meu trabalho semanal junto aos atendimentos. Assim, de forma contrária a Fonseca
(2000:289), que aponta em seu livro, Brasil Afro-brasileiro, relatando certa
obrigatoriedade do pesquisador em fazer parte do grupo, senti o desejo de participar, o
que me levou a refazer um pedido de permissão ao Dr. Fritz, desta vez para trabalhar
como tarefeira, sendo este, o foco central de minha segunda exposição: Um pedido.
No terceiro e quarto relatos, Qual a função da música?! E Perguntas e
respostas, a partir de uma perspectiva nativa, apresento uma explicação da função e
relevância da música, para o trabalho de tratamento e cura. A colocação destas duas
narrativas juntas se justifica pela explicação do Dr. Fritz, trazendo postulações
21
coincidentes que vão além do objeto sonoro .
Na descrição desses quatro relatos opto pelo uso do “presente etnográfico”,
relacionando-as com as reflexões de Seeger (2015, p.20). Para o autor, apesar de
críticas22 em relação a esse estilo de escrita, por distanciar os acontecimentos do seu
contexto histórico e criar, por vezes, falsas ideias de relatos de caráter normativo, há
também a possibilidade de enfatizar a particularidade de cada evento. Assim ao
descrever no tempo presente o desenrolar da performance, pode-se demonstrar seu
caráter único, particular. Coadunando com as ideias desse autor, utilizo o tempo
presente como narrativa para demonstrar a singularidade dos fatos ocorridos.
20
Psicografia, do grego, escrita da mente ou da alma, segundo o vocabulário espírita, é a capacidade atribuída a
certos médiuns de escrever mensagens ditadas por Espíritos.
21
Também Blacking, do mesmo modo, acredita que uma prática musical tem, em sua constituição, aspectos que
ultrapassam o objeto sonoro, podendo favorecer aspectos compartilhados socialmente em experiências culturais.
Para Blacking (1995: 223) “fazer música é um tipo especial de ação social que pode ter consequências importantes
para outros tipos de ações sociais”.
22
Ver SEEGER, Anthony Por que cantam os Kisêdjê (2015) pág. 20.
32
23
Composição de Nelson Monteiro da Mota. Dados anotados em campo, dia 18 de Setembro de 2016. Essa canção
foi escrita e gravada em 1966. É encontrada em diversas religiões, apesar de ter sido composta por um pastor
evangélico.
33
Apesar de ser uma música conhecida por mim, mesmo antes de chegar dentro
daquela casa, pude notar diferenças na estrutura sonora - entre os contornos melódicos,
harmonia e andamento, e principalmente, no ritmo – naquele momento era outra
configuração musical: em alguns compassos, a música apresentava uma métrica
quaternária, em outros, ternária. O canto se mostrava denso, com dezenas ou talvez
centenas de vozes, masculinas e femininas, em uníssono, aparentemente afinados
conforme o temperamento euro-ocidental, um violão com som de cordas de aço ao
fundo, levemente desafinado, tocado de forma quase percussiva, com palheta, sem a
utilização de amplificador, e uma voz feminina, grave, que sobressaia em meio às outras
vozes devido ao uso de um microfone.
Dentro dos portões posso perceber melhor os aspectos em torno da casa. Há
uma estrada de cimento, com aproximadamente oitenta centímetros de largura que
divide os canteiros de alvenaria, com plantações de rosas, árvores e plantas de diversas
espécies; bancos e estátuas de ferro, em tamanhos naturais, que mais tarde vim tomar
conhecimento de se tratar de homenagem aos mentores espirituais daquela casa.
Próximo da casa, quase em frente à porta principal, há duas fontes artificiais em
formato de estrela de seis pontas, com alguns peixes pequenos, talvez carpas. Acima da
casa uma placa com os dizeres “Casa de Auxílio e Fraternidade Olhos da Luz”. De
fronte, uma varanda, com telhado de amianto, três cadeiras de rodas, alguns bancos de
madeira, uma pequena porta que dá acesso à parte interna da casa com algumas pessoas.
Nessa porta, ainda na varanda, vislumbrando a parte de dentro da casa, noto um
salão branco, lotado de pessoas. Logo nessa entrada há uma pilastra que, para minha
surpresa, possui um pequeno cartaz com uma ilustração de uma criança com o dedo em
riste verticalmente na boca e abaixo escrito: silêncio. Percebo que ali se sugeria um
silêncio com outras configurações, não representando uma ausência de frequências
sonoras e sim uma delimitação do que poderia ou não fazer naquele salão. Pelo que
acabara de ouvir, cantar estava autorizado.
No salão tanto as paredes quanto os azulejos, do chão até um metro e vinte de
altura, aproximadamente eram brancos. Além da porta que adentrei, percebo mais
quatro portas evidenciando acesso a outros ambientes. Há muitos quadros nas paredes,
cartazes, esculturas e fotografias.
Nos quadros pintados vejo rostos, dos quais na maioria não consigo definir
quem são essas pessoas. Ao fundo do salão, onde há uma pintura da região georgráfica e
a CASA, com Jesus sentado com olhos meditativos, aparentemente contemplando a
34
natureza. À frente do salão, logo atrás de uma mesa: o rosto de Jesus; e um quadro em
maiores proporções de um menino loiro, com pouco mais de oito ou dez anos de nome
Pedrinho, que ilustrava também com os dizeres: “É Pedro, Pedrinho. Vem de Nosso
Lar. Contar sobre a vida. Do lado de lá. Mensageiro de Luz, da colônia de paz, o canto
de Pedro nos faz acreditar que a vida é Amor e a alma imortal”. 24
Nos cartazes, frases apontando a autoria do espírito Dr. Fritz, pela médium
Eliane Gonçalves: “Se não houvessem pétalas não existiriam rosas. Cada um de vocês é
uma pétala de rosa. Unam-se e formem uma linda rosa." E também: “Eu não ligo para
o que vocês falam. Eu olho é o coração de vocês. A boca às vezes é insana. O coração
não.”
Nas fotografias imagens de cirurgias feitas pelo Dr. Fritz, incorporado em uma
mulher. Ali, pessoas em procedimentos cirúrgicos com retirada de tumores, raspagem
de feridas, cortes físicos e operações em olhos. Há também a foto da mesma mulher, de
cabelos loiros longos, presos que após uma pergunta a uma moça que estava ao lado,
descubro ser a médium da CAFOL: Eliane Gonçalves.
Há duas esculturas de metal, de aproximadamente um metro e oitenta cada,
localizado na frente do salão, aparentemente de um homem e outra próxima a porta de
entrada, de uma criança, com suspensório e boné, também de mesmo material.
No teto, além das lâmpadas, uma instalação com estrutura de metal, formando
uma estrela de seis pontas de quase um metro e pequenas flores brancas dependuradas
nessa mesma estrutura. Ainda no salão se encontram alguns bancos de madeira na
lateral, e cento e vinte cadeiras de plástico, também brancas. Á frente do desse espaço
identifico a música que ouvira, tocada e cantada ao vivo por músicos de branco.
Não há como identificar a intenção de cada um ali presente. Percebo muitos
grupos fazendo coisas distintas ao mesmo tempo. Entretanto, dois pareciam sobressair:
os que ali estavam por buscar um tratamento físico, psíquico ou espiritual; e aqueles que
procuravam servir como voluntários, auxiliando as pessoas e a organização daquela
casa. Noto que tal separação torna-se nítida em função das atitudes e da indumentária,
uma vez que aqueles que pertenciam a casa como tarefeiros se vestiam de branco. A
maioria das pessoas cantava. Com o salão lotado, agora não apenas ouço, mas faço parte
deste grupo, cantando a canção A Barca25:
24
Quadro com tais dizeres incluídos.
25
Composição de Padre Zezinho, de 1979.
35
Tu te abeiraste na praia.
Não buscastes nem sábios, nem ricos.
Somente queres que eu te siga...
sinto parte daquele grupo tão conectado pela música, que por ora, parece-me tão
uníssono e sincrônico. Sento-me ao fundo do salão para observar. A música executada
agora se chama Quando eu quero falar com Deus:26
Há uma conexão entre as letras dessas canções: Deus, Jesus, Maria (mãe de
Jesus), espíritos mentores da casa, natureza e pessoas que trabalharam para o próximo,
entes encarnados e desencarnados, compõem os temas que prevalecem nas músicas
transcritas naquela coletânea de canções.
Na frente do salão, ao lado dos músicos observo uma mesa grande. Em cima:
flores vermelhas um pequeno busto de gesso, de um homem barbudo, que identifico
pela imagem como Dr. Bezerra de Menezes. Ao lado esquerdo desta mesa há duas
fileiras com cadeiras brancas dispostas de cinco em cinco, e um banco de madeira, com
capacidade também para cerca de cinco pessoas.
Próxima a mim observo uma moça de branco, de pé, encostada na parede ao
lado direito do salão. Olho para trás e também há uma senhora, também de branco,
cantando, embora mais timidamente. Instintivamente olho para o lado esquerdo e
identifico, do outro lado do salão, um senhor que além de estar cantando, gesticula com
as mãos, como se quisesse mostrar a palma das mãos para as pessoas. Pergunto para um
senhor, sentado ao meu lado, para quê aquele senhor gesticulava com as mãos e
descubro que não só ele, mas aquelas pessoas são tarefeiros de sustentação do salão, os
quais, segundo outros trabalhadores da casa, sua função seria a de equilibrar as energias
daquele ambiente.
Desde que entrei naquele salão, observo que o aspecto sonoro que predomina é
a música, sendo esta interrompida apenas por pequenos avisos. Um homem de voz
marcadamente grave lembrava-nos dos horários do início dos atendimentos aos sábados
e domingos, da preparação para receber o tratamento. Segundo ele quem fosse passar
nos atendimentos, não podem comer carne vermelha nem fazer sexo durante doze horas
após o tratamento.
No mesmo aviso fala que o espírito do Dr. Fritz realiza cortes físicos em alguns
casos, mas quem não desejasse tal procedimento, deveria avisar para os auxiliares na
sala de tratamento. E que os lanches e a sopa são oferecidos gratuitamente. Avisa das
palestras durante dias de semana, e que também são oferecidos uma medicação
chamada VIDA, no qual era preparada pelo espírito do Dr. Fritz.
Enquanto ouço aqueles avisos, vejo outra moça de branco com jaleco, sair
apressada de uma das portas e se direcionar até a mesa do salão. Traz um recado do Dr.
Fritz: que se façam sessenta minutos de vibração ininterruptos. Imediatamente os avisos
cessam e posso perceber que a vibração mencionada é, de fato, a música, ou seja: deve-
se fazer música ininterruptamente no tempo pedido.
38
Das canções das quais identifico posso mencionar Maria de Nazaré, José
Grosso, Irmã Sheila, Oração de São Francisco, Faz um Milagre em mim. Outras mais
também são cantadas, fazendo parte desse momento. Percebo que em algumas dessas
canções a letra ao ser cantada se apresenta diferente do hinário que está em minhas
mãos. Noto uma semelhança na interpretação dessas canções, sempre forte, lembrando
em alguns momentos, músicas de seresta.
Enquanto aguardamos nossa vez para o atendimento, cantamos. Em alguns
momentos aquelas músicas me arrepia e uma sensação de choro me inunda. Basta me
concentrar na letra e esquecer o que acontece ao redor. Mas a concentração muitas
vezes fica difícil, devido a muitas coisas que acontecem simultaneamente naquele
ambiente.
Ao redor, alguns tarefeiros entram e saem do salão, a passos apressados, muitas
vezes portando nas mãos instrumentos cirúrgicos e bandejas; e mesmo andando não
deixam de cantar. Noto que aquelas pessoas de branco mais se assemelham a
profissionais de um hospital do que pessoas trabalhando em uma casa religiosa.
Mesmo ouvindo pessoas cantando, ao meu ver sem parâmetros melódicos de
altura ou sem ritmo, por exemplo, percebo que o resultado gerado é tão tocante e lindo
que vivencio uma outra realidade musical. Penso mesmo que devemos ser mais
cuidadosos quanto a consensos quanto à universalidade da música, pois sinto que o que
acontece aqui, são fenômenos sonoros genuí, onde não só vivencio o que a literatura
etnomusicológica postula sobre significado musical ir além dos aspectos sonoros, como
a presença de músicas, no plural e não A música.
Ao término de mais uma música, o senhor que ficava na mesa, dá um pequeno
aviso sobre um triângulo de madeira localizado ao fundo do salão pregado na parede.
Ali as pessoas podem anotar em um papel nomes de familiares, amigos e conhecidos
que necessitassem de auxílio físico ou espiritual e que não estão naquele local. Segundo
ele, uma equipe espiritual direcionará tratamento às pessoas cujos nomes sejam ali
colocados. Agora ouvimos o Hino do Dr. Bezerra de Menezes.
Enquanto acompanhávamos as músicas, percebo dentro do salão a formação de
uma fila que começa ao lado direito, frente a uma porta, e se estende por todo o recinto,
formando uma meia-lua ao redor das cadeiras posicionadas no centro. Conto
aproximadamente cinquenta pessoas naquela fila. Nas mãos há um pequeno saco de
papel pardo com o nome, onde pressuponho que seja o da pessoa que o segura e uma
numeração. A música termina e avisam que aquelas pessoas que se encontram na fila
39
27
“ato de passar as mãos repetidas vezes por diante ou por cima de pessoa que se pretende magnetizar ou curar
pela força mediúnica.” Francisco Cândido Xavier. O Consolador, questão 99, pág. 84.
40
Uma pessoa me pergunta o que eu estava sentindo e digo estar ali para fazer
uma pergunta ao Dr. Fritz. Como se não me ouvisse, conduziu-me até uma maca e de
forma carinhosa, porém pontual, ajudou-me a deitar. Dentro da minha cabeça refaço a
pergunta ao Dr. Fritz e sinto alguém pegando na minha mão esquerda. Então, uma moça
diz ao meu ouvido:
– Pense em Jesus minha irmã. Você está muito ansiosa. Quando Dr. Fritz
chegar você poderá perguntar o que quiser a ele.
Neste instante, um rapaz pede licença e levanta minha blusa até a altura do
sutiã e desabotoa minha calça jeans, deixando minha barriga inteiramente a mostra.
Ainda ouço ao fundo, com pouca intensidade, a música vinda do salão e da cabine de
passe. Sinto neste momento um misto de ansiedade, medo de ser cortada, curiosidade,
vontade de desistir, levantar dali e ir embora. Todas essas sensações tomam conta da
minha cabeça.
Dr. Fritz chega com alguns auxiliares até a minha maca e pergunta:
– O que a filha sente?
Digo que quero perguntar algo. Ele, de forma rápida, pede algo a um dos seus
assistentes, e com as mãos em minha barriga sinto como se algo muito frio, como uma
lâmina passasse nela. O frio me recordava um bisturi, porém não sentia nenhuma dor.
Imediatamente, com uma voz rouca, pede curativo. Auxiliares colocam na região
superior da barriga um curativo. Esse procedimento não dura mais que quinze segundos.
A presença desse espírito me traz uma calma inexplicável, mesmo com toda a agitação
que acontece a minha volta. O corpo que o Dr. Fritz utiliza ali é de uma médium, de
cinquenta e dois anos, pouca estatura, cabelos louros e um pouco franzina. Mas naquele
momento a sensação que aquele corpo me traz é de um homem de aproximadamente
dois metros. Não há como explicar.
Ele fala algo se dirigindo a mim. Há um sotaque que não consigo identificar de
onde vem. Pelo que conheço da história desse espírito, sei que, conforme a crença
espírita, viveu na época da Primeira Guerra Mundial, na Alemanha, quando nesta
guerra, foi médico socorrista.
Digo que gostaria de pedir a autorização dele para fazer um trabalho de
descrição etnográfica do que acontecia lá e se posso fotografar o salão. Com um
sotaque, enquanto falava, ele dizia: Iá, iá. Termino minha pergunta e ele fica alguns
segundos em silêncio. Pede a seus assistentes para me sentarem na maca. De frente pra
mim, estende sua mão, aperto minha mão a dele, como um pacto acertado entre nós.
41
Sinto-me conectada àquele espírito, de uma forma estranha, porém intensa. Meu
coração se acelera e lágrimas saltam dos meus olhos, como se perdesse o controle do
meu corpo. Ele diz algumas frases direcionadas a mim que, pela emoção, não consigo
entender e com um gesto de carinho, leva minha cabeça de encontro a seu peito. Eu
agradeço mentalmente e por palavras. Então, o Dr. Fritz coloca uma toalha branca, de
rosto, com seu nome gravado, em minhas mãos, e sai para o próximo atendimento.
Outros auxiliares me ajudam a descer da maca e rapidamente me conduzem à
porta de saída. Chego até uma pequena sala com alguns jalecos dependurados, um
banco de madeira e uma senhora me oferece um copinho com água. Enquanto fico ali
sentada, tomando aquela água, Letícia - uma auxiliar, que mais tarde teria conhecimento
tratar-se do braço direito do Dr. Fritz, pede um contato telefônico e meu nome
completo. Neste momento me dou conta que há uma toalha em que o Dr. Fritz
“esqueceu” em minhas mãos. Estendo minha mão devolvendo aquela toalha para
Letícia, dizendo eu que o Doutor havia se esquecido de pegar de volta, a sua toalha. A
tarefeira imediatamente me diz em resposta:
– Essa toalha é um presente a você. Centenas de trabalhadores daqui, há anos,
gostariam de receber esse carinho, ao qual você hoje teve o privilégio. Nela, contém a
energia viva do Doutor. Guarde com carinho e leve essa toalha com você para toda a
sua vida.
Meu pedido foi aceito.
Volto ao salão me lembrando de pegar minha câmera e blusa de frio que estavam no
corredor em um cabideiro. Dirijo-me até o fundo do salão, já disposta a começar a
fotografar. Como minhas mãos estão ocupadas com a toalha, a blusa e a câmera, coloco
a agasalho na bolsa da câmera e a toalha jogo no ombro, do lado esquerdo, para ter as
mãos desocupadas. Mal começo a fotografar e um rapaz, de branco, se dirige a mim, me
informando que eu não posso fotografar ali. Mal termina a frase e me pede desculpas e
diz que se equivocou. Não entendo muito e continuo a tirar fotos. De repente, uma
senhora, de pouca estatura, que mais tarde venho a saber, se tratar da presidente da casa,
D. Zulmira, me pega pelo braço e de forma pontual, com voz em tom de ordem, diz:
E antes que eu me justifique, ela pede pra eu guardar a câmera e me sentar. Eu digo que
já conversei com o Dr. Fritz e ela imediatamente olha para a toalha, e dá um pequeno
42
sorriso, quase como um pedido de desculpas. Percebo que ali aquela toalha tem outras
significações. Um objeto que ganha outras funções e significados, como uma música,
que pode servir para concentrar, para unir, mas também para inúmeras coisas, das quais
aqui, estou disposta a entender melhor.
Termino de bater as fotos do salão e vou até a parte externa da casa para tomar
um café. Apesar de já ter guardado a câmera fotográfica na bolsa, continuo com a toalha
no ombro. A senhora de voz grave, que estava tocando violão e cantando no salão me
pergunta o por quê de eu estar fotografando. Digo que era para um trabalho de
faculdade. Ela ao ver a toalha se emociona, deixando os olhos marejados de lágrimas.
Diz que ali era sua casa e que o lugar é abençoado. Termino meu café com pão e vou de
encontro ao carro, para voltar para casa, deixando aquele lugar ainda com dezenas,
talvez centenas de pessoas ainda aguardando sua vez para serem atendidas.
***
Ainda é noite. Mesmo o relógio tendo marcado que ainda era madrugada,
eu e Letícia Martins, uma pessoa muito querida por mim, acordamos, para irmos a
CAFOL. Ela vai tratar os dedos polegares dos pés, e eu depois de muito pensar,
estimulada por uma sensação de querer, aconselhada e autorizada pelo meu orientador
do mestrado Dr. Angelo Nonato, tentarei mudar meu campo etnográfico, transferindo
do Grupo e Fraternidade Espírita Irmã Sheilla, para a CAFOL. Além disso,
influenciada pelas leituras de André Luiz, escritas por Chico Xavier, descobri que
apenas observar, sem contribuir com o auxílio a outras pessoas dali, enquanto vivencio
e observo não trará muitos benefícios. Pretendo além de pedir autorização ao Dr. Fritz
para pesquisar a música de lá, conseguir trabalhar em algum setor como
voluntária/tarefeira.
Chegamos. Ainda escuro, estacionamos. Eu e Letícia pegamos a ficha para
o atendimento na lateral da casa e seguimos para o salão. Sentamos e observo que a
música ora cantada, está sem acompanhamento instrumental. Não vejo a senhora que
da outra vez tocava e cantava na frente do salão. Um homem que aparentemente era o
dirigente do salão, de voz marcante e grave, cantava ao microfone. Não transcorre
muito tempo e somos chamadas a sentar na frente, para entregarmos nossos pertences e
entrar na cabine de passes.
Entramos na salinha. O passe cantado me trás uma sensação de calma e de
amparo. As vozes das passistas quase conseguem diminuir o som da sala de tratamento,
que fica do outro lado da parede. Há uma sonoplastia de movimentação que ouço, com
pouca intensidade lá dentro da sala de tratamento. As passistas me orientam a ficar de
pé em frente a porta. Sei que é minha vez de entrar.
Mal começo a organizar as perguntas a serem feitas ao Dr. Fritz em minha
mente e a porta se abre, revelando um ambiente escuro esverdeado, com muitas macas,
já conhecido por mim. Deito em uma das macas e circulo em vão meu olhar em busca
de Letícia, até que uma senhora coloca uma gase molhada em meus olhos, e com uma
voz doce, pede pra eu pensar em Deus. Tento pensar, mas acabo repassando minhas
perguntas a serem feitas ao Dr.
45
28
Composição de Padre Zezinho.
46
Ao cantar, fui deixando ser levada pelo coro de vozes no salão. Percebi
diferenças em algumas frases cantadas, com as do hinário. Pequenas mudanças nas
frases. Notei também que a maneira que o salão cantava era muito diferente da que
ouvia quando tocava na igreja, ou mesmo na fraternidade espírita que frequentava. O
canto, em uníssono, continha mais velocidade e força, quase como se fosse um hino
cívico, onde as palavras ganhavam mais entonação nas tônicas, e as frases eram mais
articuladas. Não consegui localizar a delicadeza e o modo quase romântico em que a
ouvia. Contudo, o texto ficava tão evidente, que conseguia talvez pela primeira vez,
não apenas entender a letra, mas em minha mente enquanto cantava e ouvia, pude
acompanhar a narrativa da canção, percebendo e refletindo sobre a personagem
principal dessa música, Maria de Nazaré.
Com pouco mais de quatro músicas cantadas no microfone por mim, me
entregam um violão, no qual, apesar de não estar amplificado, me auxilia um pouco a
encontrar a entonação vocal.
Ao pensar que Letícia se encontra no salão e ouve aquela desafinação, me
coloco mais tímida e constrangida. Porém, aos poucos, começo a perceber que as
frequências sonoras eram importantes, mas talvez havia algo mais importante para
quem estava naquele salão: a intenção quando se canta ou a concentração.
47
Irradiando-a a todos
48
29
Canção de Dinah Lemos Reis e Célia Tomboly.
49
https://drive.google.com/file/d/0BxUtoWn-7smKUFdYQU52VmM1T3M/view?usp=sharing
***
Nesta narrativa - Um Pedido, relato minha vivência em um dia de outubro
de 2016, onde faço dois pedidos ao espírito Dr. Fritz, incorporado na médium Eliane
Gonçalves. A partir dos meus pedidos e de sua autorização, me inserindo em
sequencia, na função de musicista na equipe vibracional, narro minhas percepções
diante do campo.
Dentro destas perspectivas reflito sobre uma interlocução com a dimensão
espiritual e a distinção da noção de religião e espiritualidade, buscando construir
conceitos a partir das práticas no campo. Essa interlocução com a dimensão
espiritual acontece a partir da dinâmica do campo, na construção de sentidos
identificadas nas músicas, através das letras das canções, da presença de Dr. Fritz, na
explanação de temas ocorridos neste dia, assim como também, nas falas da musicista
Consolação.
passe, seguido com a cirurgia/ tratamento realizada pelo plano espiritual, comandado
pelo Dr. Fritz, podendo ser com ou sem a realização de cortes físicos. Fui encaminhada
até a sala de passe, onde para minha surpresa30, Dr. Fritz já se encontrava ali.
Há poucas pessoas sentadas para receberem o passe e muitos auxiliares do Dr.
Fritz de pé, como também alguns passistas. Conto duas pessoas e eu que receberiam o
passe. Mas não há movimentação dos passistas. Dr. Fritz, através do corpo da médium
Eliane Gonçalves pára em minha frente. Com gestos firmes, quase impositivos e voz
rouca, sem que eu pergunte nada, começa a falar comigo.
- A filha quer saber. Vou te explicar o porquê da melodia no tratamento de cura.
Comparando a fisioterapia, Dr. Fritz me explica que quando há uma lesão em uma
região no corpo, o local fica enrijecido. Para tratá-la poderá ser preciso compressas de
água quente, para que seja amolecido o local. Se comparar a música, a melodia toca o
sentido do ser, possibilitando a espiritualidade atuar. A música para Dr. Fritz seria como
a compressa quente em um local enrijecido, capaz de amolecer o coração. Ele diz:
- A música nos desmaterializa!
Coloca o dedo em minha barriga e aperta, dizendo que o tratamento serve para amolecer
o coração e de certa forma, auxiliar no tratamento.
Não consigo explicar a sensação, mas as lágrimas saltam aos meus olhos,
embaçando minha percepção visual, ao mesmo tempo em que há calma e paz nas
sensações, talvez sentimentos. Saio da sala com os olhos vermelhos e uma necessidade
de transcrever toda essa vivência para o papel.
30
Dr. Fritz na grande maioria das vezes atende na sala de tratamento. Foi a única vez que o vi na cabine
de passes.
52
homem de mais de dois metros. Sua narrativa começa, e vejo em minha volta, que a
grande maioria da equipe de tarefeiros daquela sala se coloca em volta para ouvir o Dr.
Segundo o espírito Dr Fritz, a música tem a função de afetar o paciente, de trazer-lhe
sentimento. Quando há uma escuta consciente, esse sentir através da música pode ser
atingido, possibilitando assim penetrar em campos sutis de cada ser.
E assim, e a partir dessa dinâmica, que a equipe espiritual terá uma abertura
neste corpo que se permitiu ouvir, e ser tocado pela vibração, dando permissão para um
tratamento sutil. Corpo este, que antes poderia estar antes da música, como uma
armadura, diante do sentir.
“- É preciso que o sentimento seja atingido!” Diz, dr. Fritz.
Segundo o espírito, a música, assim como a prece, conecta cada ser com a dimensão
espiritual, permitindo tratamento. E esse fenômeno acontece na maioria das religiões,
assim como na ação de uma prece.
Do mesmo modo, Dr. Fritz fazendo um paralelo com a luz diz que:
- A luz é como a voz. Tudo atravessa. Nada a detém. A luz consegue tocar no
instrumento táctil, no olfato. Deus harmoniza através das flores, do vento, do sorriso. A
luz alcança dimensões espirituais. Esta casa alcança a dimensão espiritual. Não tem
fronteira. Não existe fronteira para a luz, para Jesus Cristo.
Do mesmo modo, mesmo para aqueles que não conseguem ouvir através dos
tímpanos, o benefício da ação musical pode chegar através dos outros sentidos, como
pelo tato, ou chegar pelos poros.
No entanto, mesmo para aqueles que apesar de se encontrarem no ambiente, não
estarem conscientes diante da música, exemplifica, não poderão sentir seus efeitos.
***
Nestes dois relatos narro explicações nativas, do espírito de Dr. Fritz, para a
utilização da música na CAFOL, entendendo seus possíveis usos e funções. Tais
diálogos, entre eu e o espírito, leva a análise e reflexões com alguns autores. Dr. Fritz
nos fala que a música tem a função de afetar, permitindo que dimensões outras sejam
acessadas pelo sentimento, possibilitando atingir outro nível de vibração,
consequentemente legitimando uma autorização a outros planos para tratamento.
Vários autores, também postulam sobre a função da música de se atingir o
subjetivo, o sensível. Para Oliveira e Moura (2012:46), “A condição de proporcionar
54
Referências:
CAMP, Marc-Antoine. Quem tem autorização para cantar o cântico ritual? Notas sobre
o status legal da música tradicional. Revista USP, n. 77, p. 76-89, março/maio 2008.
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