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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA – MÚSICA E CULTURA

KELLY ELAINE DE OLIVEIRA

Vivências, usos e funções da música


na Casa de Auxílio e
Fraternidade Olhos da Luz

Belo Horizonte
2018
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA – MÚSICA E CULTURA

KELLY ELAINE DE OLIVEIRA

Vivências, usos e funções da música


na Casa de Auxílio e
Fraternidade Olhos da Luz

Dissertação apresentada ao Programa da Pós


Graduação em Música da Escola de Música da
Universidade Federal de Minas Gerais, como parte
das exigências para o cumprimento do curso de
Mestrado em Música, na linha de pesquisa
Música e Cultura.

Orientador:
Professor Doutor Ângelo Nonato Natale Cardoso

Belo Horizonte
2018
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Sumário provisório

Introdução
1 Contexto e Revisão
1.1 Alteridade, definições éticas e metodológicas
1.2 Definição de música, corpo, Saúde e espíritos
1.3 Cosmologia espírita e Dr. Fritz no Brasil
1.4 Allan Kardec – Biografia, codificação e a música
1.5 Categorias musicais nas obras de Kardec

2 A CAFOL
2.1 O problema e o campo
2.2 Do lado de lá e de cá
2.3 Funcionamento
2.4 Tempo ritual: um sábado e os atendimentos

3 Relatos, música, trocas e vivências


3.1 A toalha
3.2 Outro pedido
3.3 Qual a função da música?!
3.4 Perguntas e respostas

4 A performance musical na CAFOL


4.1 Aspectos sonoros e cosmológicos
4.2 O canto
4.3 Categorias musicais nativa
4.4 Análise e Apontamentos

Consideração Final
4

INTRODUÇÃO

Ao analisarmos a ciência nos tempos atuais, podemos refletir que não há mais
sentido em um mundo baseado na visão mecanicista, que faz distinções entre as ciências
naturais e sociais. Boaventura Santos (1987), em seu livro – Um discurso sobre as
ciências expõe a tese de que, desde o paradigma dominante na modernidade, até os
tempos atuais, todo conhecimento é, de algum modo, autoconhecimento; que a ciência
natural é, na verdade social; que um conhecimento pode ser local e total e que, poderá
se constituir em senso comum.
“Defendo que todo o conhecimento cientifico é socialmente construído, que
seu rigor tem limites inultrapassáveis e que a sua objetividade não implica a
sua neutralidade” (SANTOS, 1987:09)

Desse modo, na pós-modernidade, evidenciam-se questionamentos sobre formas de se


fazer ciência, ligadas principalmente a correntes anti-positivistas. Dentro desta
perspectiva complexa, a ciência social se repercute, refletindo o homem e o meio que
vive. Nesse processo, este homem se estabelece como ser social e cultural.

Enquanto ser social, se relaciona com os demais e estabelece estruturas que


garantem vínculos institucionais e pessoais, ao mesmo tempo em que se
elabora como sujeito e como parte dessa estrutura. Enquanto ser cultural,
produz um universo de significados e significantes que dão forma a sua
existência, como sujeito e como espécie. (OLIVEIRA e MOURA, 2012:07)

E assim, e também dentro de um panorama transdisciplinar é que se encontra o


presente estudo. A Casa de Auxílio e Fraternidade Olhos da Luz – CAFOL, localizado
geograficamente em Sabará e Congonhas, vinculado como um espaço híbrido
permanentemente mutável, ressignifica em suas práticas rituais, elementos culturais
para a construção de identidades sociais locais e individuais. Nesse espaço são
realizadas práticas de saúde, religião e de música, a partir de uma interlocução com a
dimensão espiritual, através da mediunidade1.

1
Mediunidade é a capacidade que o ser humano possuiu de interação, percepção e conexão com espíritos
e seu mundo.
Toda pessoa que sente, em um grau qualquer a influência dos Espíritos, por isso
mesmo, é médium. Esta faculdade é inerente ao homem e, por consequência, não é
privilégio exclusivo; também são poucos nos quais não se encontrem alguns
rudimentos dela. Pode-se, pois dizer que todo mundo é, mais ou menos médium.
Todavia, usualmente, esta qualificação não se aplica senão àqueles nos quais a
faculdade medianímica está nitidamente caracterizada, e se traduz por efeitos patentes
de certa intensidade, o que depende, pois, de um organismo mais ou menos sensível
(KARDEC, 1992, p. 181).
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Dentro dessas práticas, procuro apreender e refletir, através do estudo da música,


outros aspectos desse ambiente, que se expressam no porquê se faz música da maneira
como o fazem. O conceito de música no qual compartilho neste trabalho coaduna com
as idéias de autores, como a de Blacking (1973:07) “sons humanamente organizados”.
E também que buscam uma ligação com o contexto inserido, assim como nos sugere
Cardoso (2006:71) “o entendimento musical não deve se restringir apenas ao som”.
Assim busco refletir aspectos da performance desse campo, dentro de uma ótica
musical. Refletindo a partir das idéias de Seeger (2015:17), opto por uma antropologia
musical; tentando entender a partir das performances musicais, aspectos da cultura e da
vida social, analisando a maneira como a música ajuda a construir, organizar, modificar
e interpretar as relações sociais, conceituais e de saúde.

Buscando entender essas relações sociais, descrevo e reflito a sociedade CAFOL


entre dois planos: físico e espiritual. De um lado encontram-se: a médium, os tarefeiros,
alguns com cargos de direção e administração, e os demais freqüentadores, que são
identificados em três categorias: visitantes, pacientes e fiéis, onde não há uma separação
muito nítida entre tais categorias que chamaremos ao longo do trabalho de
pacientes/fiéis/visitantes; do outro, a dimensão espiritual, composta pelo espírito do
médico Dr. Adolf Fritz, mentores, trabalhadores e espíritos que chegam a Casa, também
em busca de atendimento.

Para tal trabalho de campo, assumi o cargo de tarefeira na equipe vibracional


(música), na CAFOL, no período compreendido entre os meses de setembro de 2016
aos dias atuais. Durante todo o trabalho de campo, nos seis primeiros meses, participava
aos sábados e domingos optando, posteriormente, apenas pelas idas aos sábados. Tal
decisão se deu, devido a compromissos de trabalho, aulas do mestrado e atividades que
assumi no próprio campo. Na quarta à tarde, integro o coral da CAFOL e por um curto
período de três meses, as quintas pela manhã, participava como auxiliar na cozinha da
escola Dr. Fritz, ajudando na preparação de lanches, almoço e na limpeza.

Durante esse período, a partir da interação com o campo, e à medida que


ganhava confiança, assim como nos conta Rabelo, vivenciei uma dupla função entre
pesquisadora e participante (RABELO, 2013: 19). Nesses encontros e desencontros; ora
como pesquisadora, buscando conexões e entendimentos em determinados fazeres; ora
pertencente ao grupo, compreendendo o campo, cumprindo tarefas a mim estipuladas e
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me tornando parte; pude compartilhar saberes e colocar sentido nessas vivências. Entre
membro religiosa e pesquisadora, Rabelo (2013) postula sobre a árdua e dupla função.

Duplicidade essa que conduziu à necessidade de reflexão sobre as formas


distintas de construção de conhecimento, ou seja, de duas epistemologias, a
nativa e a acadêmica. Os dilemas internos daí decorrentes, as fissuras entre as
duas experiências, por vezes vistas como intransponíveis, levaram à tentativa
de elaborar algo que pudesse conciliar ou, ao menos abrir caminhos a
trânsitos entre elas. (RABELO, 2013: 19)

Nesse sentido, essa pesquisa busca descrever e refletir sobre as construções


conceituais vindas do próprio campo, sobre o cantar e tocar na CAFOL; é também um
estudo sobre os fenômenos sonoros, saúde, de cura e mediunidade; que acontecem neste
ambiente, se entrelaçando, se opondo e exercendo papeis - ora sincrônicos, ora
anacrônicos em um processo social. Abordará questões complexas, subjetivas e
dialógicas relativas à performance - ao canto, ao rito, ao mito e ao sonoro musical, tais
como: Por que esse grupo valoriza tanto o canto; por que as performances desses cantos
apresentam certas estruturas, letras, timbres, estilos e ritmos? Qual a função da música
dentro do processo ritual? Qual a relação da música com o processo terapêutico na
CAFOL?

O modo de tentar responder a estas questões sugere uma metodologia para


estudos etnomusicológicos, através de relatos etnográficos; assim como pesquisa
bibliográfica, de obras sobre a religião encontrada na Olhos da Luz. Tal pesquisa
bibliográfica surge a partir de uma necessidade de maior entendimento junto ao campo,
já que o conjunto de normas e conceitos nativos partia de obras pertencentes ao
espiritismo Kardecista.

Para um melhor entendimento sobre os motivos possíveis a que me levaram a


uma mudança do campo etnográfico e de pesquisa, no curso de mestrado, faço uma
pequena contextualização desde início de 2010, quando tomei conhecimento da CAFOL
até meados de 2016, quando transfiro a pesquisa da Fraternidade Irmã Sheilla para meu
campo atual.

***

Tomei conhecimento da existência dessa casa em Sabará ainda em meados de


2010, através de uma colega, que me indicou para a criação de arranjos musicais para
piano para a e gravação de um CD de um coral, pertencente a uma Fraternidade em
7

Sabará. A então responsável pela produção daquele álbum fonográfico era Camila
Menezes2, que ainda não a conhecia. Na época Camila havia me ligado e combinamos
de nos encontrar em meu local de trabalho, para fecharmos os detalhes. Era um trabalho
voluntário e como naquela semana, minha agenda estava muito tranqüila, resolvi
aceitar. Camila chegou com duas gravações, apenas vocais de Dr. Fritz e Medicação de
Amor. Confesso que achei a música Medicação de Amor muito estranha, sem métrica e
um pouco sem sentido para mim, mas aceitei, e a incumbência de arranjar tais canções
em três dias foi realizada com sucesso e sem grandes dificuldades. Naquela época não
tinha a noção que se tratava das duas principais músicas daquela Casa. Pouco tempo
depois, Camila me convidou e aceitei para gravar saxofone, em estúdio, em uma faixa
do CD.

Camila não fez mais contato e apesar também de alguma curiosidade, só fui
conhecer a Casa de fato em 2011, no qual fui convidada a tocar com um grupo Espírita
chamado Pilares. Só anos mais tarde eu soube que, a pedido da direção da Casa, os
arranjos dos álbuns deveriam ser mais delicados, e que tal CD deveria soar como uma
medicação a quem ouvisse, e ritmos com velocidades mais rápidas, não caberiam.
Apesar das músicas que arranjei serem lentas, nem entraram para o registro em tal CD,
optando tanto a direção da Casa, quanto Camila, por realizarem os arranjos apenas
vocais desse primeiro trabalho em questão.

Em 2012 visitei a CAFOL, no qual fui convidada a segurar a bandeja3 nos


atendimentos. Como não coloquei sentido algum nesta ação, tal convite feito nesta
época, não gerou nehuma ação ou desejo de retornar a Casa, não voltando a CAFOL até
2016. Neste ano, Já fazendo parte do grupo de alunos do mestrado da pós-graduação ,
na linha de pesquisa em Música e Cultura, uma das matérias obrigatórias era
Etnomusicologia4. Um dos trabalhos da matéria era a realização de uma etnografia.
Desde então meu interesse e conseqüentemente meu campo foi transferido para lá.

2
Atualmente Camila Menezes é a regente do Coral Luiz Alberto da CAFOL.
3
Segurar a bandeja é a ação de auxiliar na fila de distribuição da medicação, chamada Vida. Para tanto o voluntário
deverá segurar uma bandeja, ao lado de Dr. Fritz, para que sejam colocadas as seringas com a medicação da pessoa
que passa pelo trabamento. Segurar a bandeja é um privilégio e significa sair da configuração de
paciente/fiel/visitante para o de tarefeiro. Nesta época Dr. Fritz me fez o convite para que o auxiliasse na bandeja. Tal
fato só me veio à memória no fim de 2016.
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A disciplina “Etnomusicologia” compõe o quadro de créditos a serem cursados no Programa de Pós-Graduação em
Música da Escola de Música da UFMG. A professora Dra. Glaura Lucas é a responsável pela disciplina, e, como uma
das atividades avaliativas do semestre letivo, propõe que se empreenda uma visita a algum campo e a consequente
descrição etnográfica de tal experiência. Esta matéria foi cursada no 2º semestre de 2016.
8

***

A partir dessa mudança de campo e através de relatos etnográficos, busco


descrever e refletir tais vivências, procurando não esvaziar o sentido do discurso nativo,
colocando no lugar uma interpretação não condizente a uma ideia do grupo, como
também nos mostra Rabelo (2013).

Vivenciei momentos de confusão e dificuldades na tentativa de não esvaziar


o sentido do discurso nativo (ao interpretá-lo) e ao mesmo tempo não me
“colar” a ele. Mais ainda: não esvaziar minha própria vivência do sagrado, a
partir do que Segato (1992) coloca como “operação
dessacralizadora”,“mecanismo moderno de autofagia”, no qual substituímos
a experiência colocando algo em seu lugar.(RABELO, 2013:19)

Essa qualificação estrutura-se em quase dois capítulos, que precede desta introdução,
que traz a metodologia, a justificativa e os objetivos. Nos capítulos contidos nesta etapa
de qualificação, trago em partes do capítulo dois, uma contextualização da CAFOL, do
conceito e descrição, a partir das concepções nativas, assim como o funcionamento da
Casa, relatando um dia dos trabalhos. No terceiro capítulo narro, através de texto
etnográfico, vivências que o campo me mostrou como importantes. Tais experiências
tiveram modificações ocasionadas pelo próprio campo, a medida em que pude por
sentido (LUCAS, 2011:66) e conviver com o grupo pesquisado, fui modificando minhas
percepções diante da performance.Tais relatos trazem posteriormente, reflexões de
alguns autores.
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CAPÍTULO 2 - A CAFOL

O objetivo de definir algo tendo por finalidade o conhecimento, assim como


descrever objetivando apresentar uma coisa, embora sua essência não seja revelada,
reflete um conceito postulado desde o século XI por Avicena (980-1037). A partir
dessa postulação faz-se necessário mostrar, como base a distinção, ante as outras coisas.
Para o referido autor “distinguir é conhecer a verdade da essência de uma coisa”.
(BONI apud AVISENA, 2005:107).

Definir consiste em encontrar o gênero mais próximo de algo, por exemplo


animal com relação a homem. Em seguida acrescenta-se sua diferença
essencial – no caso racional – e então dizes: “O homem é um animal
racional”. Tal é a definição de homem. (BONI apud AVISENA, 2005:107)

A partir desse ponto de vista, mostraremos a CAFOL – Casa de Auxílio e Fraternidade


Olhos da luz, objetivando conceituar a partir de perspectivas nativas. Algumas
definições são encontradas no próprio site, assim como na primeira faixa, dos dois
CDs, no trabalho medicação de Amor, do coral da CAFOL, assim como em descrições
feitas pelos próprios trabalhadores da Casa. Diante dos sentidos e significados
mostrados pelo campo, Religião, Casa de Auxílio, hospital e instituição fazem parte
das definições encontradas. No site da Olhos da Luz encontra-se tal definição:

A Instituição Casa de Auxílio e Fraternidade Olhos da Luz (...) é uma


associação sem fins econômicos, sendo, portanto, filantrópica, tendo por
finalidade incentivar junto à comunidade a promoção da ética, da paz, da
cidadania, dos direitos humanos. São da sua competência, também,
atividades que visam a capacitação do profissional, educação e a orientação
para a saúde nutricional.( SITE INSTITUCIONAL)

A palavra associação pode ser definida por um conjunto ou grupo de pessoas ou


empresas, que a partir de um conjunto de normas, se juntam com finalidades definidas
de compartilhamento e ajuda, para alcance de propósitos e metas, sustentadas através de
contribuições financeiras. (SZAZI, 2006)

No segundo trabalho fonográfico da Olhos da Luz, na primeira faixa de cada


CD, duplo, uma narrativa feita por uma tarefeira ilustra outra definição: “A Casa de
Auxílio e Fraternidade Olhos da Luz, conhecida como casa de todas as pessoas e
religiões” (CAFOL, registro fonográfico do segundo trabalho – Medicação de Amor,
faixa 1 dos volumes I e II. 2015). Traz a definição como um local que abriga, sem
distinções, todas as religiões e pessoas.
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Por outro lado, a presidente da Casa, Dona Zulmira, ao ser abordada por
mim, com a pergunta sobre o que é a Olhos da Luz, define como: “Aqui é um hospital”
( Diálogo entre a pesquisadora e Dona Zulmira, em Agosto de 20017).

Atualmente a CAFOL localiza-se em duas cidades: Sabará e Congonhas do


Campo. É também mantenedora da Escola Profissionalizante Dr. Adolph Fritz – EPAF,
com endereço, há poucos metros da CAFOL, de Sabará.

A Olhos da Luz de Sabará teve sua fundação em 22 de dezembro de 1998.


Surgiu a partir de um pedido de Dr. Fritz em uma reunião mediúnica no bairro
Esplanada em um centro espírita. Nessa época o médium que incorporava o médico
alemão era Kleber, conhecido popularmente como Aran. Nesta reunião em questão,
Dona Zulmira, presidente da Casa, que freqüentava tais reuniões, recebeu, a partir do
médium, uma comunicação de Dr. Fritz, que manifestou interesse em abrir um espaço,
para atendimentos em Sabará.

A partir desse pedido, foi aberto um espaço alugado, para atendimentos, no


bairro Arraial Velho, onde funcionou por quase três anos. O médium que recebia o Dr
Fritz nesta época, ainda era Aran. Neste período Dona Zulmira começou semanalmente
sua ida até a prefeitura da cidade, em busca de algum espaço ou loteamento para futuras
instalações da Olhos da Luz. Em Outubro de 2003 um loteamento foi cedido pela
prefeitura, pelo então prefeito Wander Borges, localizado na rua Rua Charles Bizet,
1250 Rosário II em Sabará - Minas Gerais.

A partir de um pedido de entrega do espaço alugado, no segundo semestre de


2004 os atendimentos já funcionavam no local cedido pela prefeitura, já com a médium
Eliane Gonçalves. Atualmente os atendimentos acontecem, de acordo com os horários
estipulados pela Casa. Descreveremos o funcionamento da Olhos da Luz a seguir.

2.3 Funcionamento

Além dos atendimentos aos sábados e domingos, a Olhos da Luz oferece


reuniões públicas temáticas em alguns dias da semana. Todas as sextas feiras, de
dezenove às vinte e uma horas, reuniões de desobsessão; Toque o manto de Jesus, toda
primeira terça-feira do mês, a partir das dezoito horas; Estudo das obras de Joana de
Ángelis, toda segunda quarta-feira do mês, a partir das dezoito horas; Reunião de Apoio
à Família, toda terceira quinta-feira, a partir das dezoito horas, Reunião dos
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desencarnados, todo segundo sábado, após os trabalhos de atendimentos de tratamento e


Cura e Reunião aos Sentimentos humanos, as quintas feiras, em todas, exceto na
terceira do mês, onde ocorre a Reunião de apoio a família, às dezenove horas.

Na CAFOL os trabalhos de atendimentos do final de semana se iniciavam por


volta das quatro horas da manhã, indiferente da cidade. Atualmente em Sabará os
atendimentos começam por volta das seis horas e em Congonhas, às sete horas da
manhã. Através de senhas, o paciente/fiel/visitante recebe um número, onde aguardará
por atendimento.
Após um período que pode variar entre trinta e sessenta minutos, onde é
colocado músicas do CD do coral no salão para harmonizar o ambiente, a entidade
espiritual – Dr. Fritz chega, incorporando na médium Eliane Gonçalves, onde através
do seu corpo dará condições para o espírito realizar procedimentos terapêuticos e
cirúrgicos.

O ritual é iniciado a partir da música Medicação de Amor, que ao ser cantada, a


capela, por todos presentes, auxilia a transformação da água em medicação, para ser
utilizada ao longo dos atendimentos do dia. Tal medicação é dada duas vezes, sendo
uma nas primeiras horas de trabalho, geralmente entre oito e nove horas, e no final, que
pode variar de onze horas da manhã, até às dezoito horas.

A partir daí, os trabalhos de atendimento aos pacientes se iniciam, enquanto no


salão são executadas músicas pertencentes ao hinário da Casa e dos três CDs do coral.
Em um primeiro momento, hinos dedicados a mentores são entoados, como Canção ao
Mestre Joel, Meimei, Hino ao José Grosso, Palminha, Irmã Sheilla, Maria de Nazaré,
Hino a Bezerra de Menezes, Dr. Fritz, entre outros. Assim que a numeração do paciente
é mostrada, ele se dirige a frente do salão, do lado direito, onde deverá se sentar em uma
das cinco cadeiras e aguardar até chegar a sua vez de ir até a cabine de passes.

O passe é aplicado por imposição de mãos de outra equipe de tarefeiros, enquanto


entoam melodias com letras, de forma cantada. Logo após é convidado a ir a cabine
para tratamento onde Dr. Fritz está, junto a aproximadamente vinte e cinco ajudantes
tarefeiros, de todas as idades. Algumas vezes tarefeiros cantam enquanto atuam
auxiliando ao Dr. Fritz. Logo após esse tratamento o paciente é convidado a voltar ao
salão, onde está acontecendo músicas e avisos sobre o tratamento. Durante todo o
atendimento há poucas palestras e muitas músicas. Às vezes Dr. Fritz pede uma hora de
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música ininterrupta. Assim que todos os pacientes e tarefeiros recebem a medicação, Dr.
Fritz dá uma benção final. Logo após essa benção todos os tarefeiros entoam juntos,
também a capela, Se caminhar uma pequena canção, que fala sobre caminhar juntos, fé,
esperança, compartilhar com os que não souberam perdoar; dando as mãos e braços,
formando uma pequena mandala.

2.4 Tempo ritual: um sábado e os atendimentos

No dia vinte e oito de Outubro de dois mil e dezessete, narro um dia de sábado,
no qual exerci minha dupla função: tarefeira, trabalhando como musicista; e como
pesquisadora, vivenciando, observando e anotando, através de relato etnográfico e
gravação de áudio em tais momentos. O objetivo é trazer apontamentos vindos dessas
experiências, os quais servirão de embasamento para discussões, que serão levantadas
ao longo deste capítulo e, de certa forma, desta pesquisa.

Assim, entre quatro horas da manhã e quinze horas da tarde, foram registrados
os áudios para análises posteriores, através de três celulares smatfones e uma câmera
fotográfica. Tais amostras não tiveram nenhum tipo de edição na qualidade sonora,
apenas cortes e fade out.

Há uma semana antes desse relato, dia 21 de outubro, em Congonhas, pedi


autorização ao Dr. Fritz para gravar o áudio de um dia inteiro, no salão, em
atendimentos. Após sua autorização, fui em busca de alguém que pudesse me auxiliar
em tais gravações. Cristina Araújo5 aceitou, e fiquei mais tranquila, podendo me
concentrar na tarefa no qual fui designada, tocar. Combinamos que assim que ela
acordasse, fosse para a CAFOL, levando seu celular, para auxiliar também nas
gravações.

Assim, neste relato apresento a performance do espaço e tempo ritual, em


Sabará, em um lugar específico da CAFOL – o salão, através do qual, busco entender
melhor tal processo.

5
Cristina Araújo esteve na CAFOL apenas duas vezes. É Cel. Reformada da polícia militar e professora de
fisioterapia respiratória na Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.
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Dia 28 de Outubro de 2017

É primavera. Saio de casa as três e vinte e cinco da manhã, rumo a CAFOL.


Mesmo não sendo muito distante de onde moro, demoro a chegar devido a uma chuva
fina, porém sem trégua, que cai, deixando aquela estrada sinuosa, ainda mais perigosa.
Saio da rodovia MG-5, à esquerda, quase em frente a uma placa rodoviária indicativa,
com os dizeres: Fraternidade Olhos da Luz. Subo. A essa hora, com a iluminação
promovida apenas pelo farol do meu carro, não é possível contemplar a exuberante
paisagem de serras, trilhos ferroviários e vegetação.

Chego à fraternidade e presencio o que é recorrente, centenas de pessoas


aguardando por atendimento. De fato, ao caminhar em direção a casa, certifico que a
fila para receber a senha chega ao estacionamento. Enquanto vou passando em direção
ao salão, dando bom dia, observo crianças bem pequenas, pessoas em cadeira de rodas,
com equipamentos para respirar, todas aguardando calmamente. Rostos já conhecidos,
de outros atendimentos, outros nem tanto. Chego até a porta, onde me coloco junto a
outros tarefeiros, que como eu, aguardam a abertura do salão, feita pela presidente da
casa – D. Zulmira.

Geralmente6, por volta das quatro horas da manhã, Dona Zulmira abre a porta do
salão principal e desliga os alarmes. Quando a médium Eliane Gonçalves chega antes
das quatro da manhã, o salão é aberto assim que ela chega. A distribuição das senhas
começa na lateral, e aos poucos, após pacientes\fiéis\visitantes pegarem a ficha com a
numeração, as pessoas vão entrando. Nós tarefeiros, que fazemos parte da equipe de
atendimentos, aguardamos toda a fila pegar a senha e só depois adentramos aquele
salão. Sou a primeira da minha equipe (vibracional) a chegar.

Ao entrar no salão ali neste dia, percebo diferenças no espaço físico. Como a
Casa está passando por reformas, todos os quadros e fotografias foram retirados.
Percebo também fios do lado de fora da parede. Isso me causou uma sensação de estar
faltando algo muito importante. Para mim, talvez. Os quadros dali me trazem
informações identitárias e simbólicas daquele ambiente, que ao serem retirados, me trás
uma sensação de estar em outro espaço físico.

6
Atualmente, os trabalhos de sábados e domingos se iniciam às seis horas, em Sabará e às sete horas em Congonhas
do Campo.
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O salão está com todos os seus lugares ocupados e presumo vinte pessoas de pé.
Enquanto preparo meus instrumentos musicais, afinando o violão e montando a flauta,
percebo aquela massa sonora densa, promovida principalmente por conversas dos
tarefeiros. Dentro dessa polifonia , com muitas conversas, passos, coisas se arrastando,
ouço Beth, uma criança com necessidades especiais, que me chama animadamente pelo
nome, - Kelly, Kelly, Kelly!!!!! Além de uma melodia vinda da ante-sala para a sala de
tratamento. Era Rebeka, uma tarefeira cantando.

Os planos de intensidade entre os sons variam, dentro daquele salão, e em alguns


momentos a voz da Rebeka que canta à capela, sobressai, e me traz a sensação de que
as conversas entre tarefeiros e pacientes/visitantes/fiéis diminui um pouco. Pela
primeira vez, me atento para o canto à capela no início dos trabalhos, ou talvez, ainda
não tivesse acontecido. Rebeka se coloca sentada, de olhos fechados. Ao cantar me
deixa a sensação que aquela expressão sonora se aproxima de uma rogativa, de uma
reza, com a canção - A padroeira7:

Óh, virgem santa,


Rogai por nós, pecadores
Junto a Deus Pai
E livrai-nos do mal e das dores
Que todo homem caminhe
Tocado pela fé
Crendo na graça divina
Esteja como estiver
Abençoai
Nossas casas, as águas,
As matas e o pão nosso
A luz de toda manhã,
O amor sobre o ódio
Iluminai
A cabeça dos homens,
Te pedimos agora
E que o bem aconteça
Nossa Senhora

ÁUDIO: https://drive.google.com/open?id=1t8gFKoO9gkwCkl6swt3zJ5ZahzwWN4QI

Essa canção traz em sua narrativa um pedido de proteção e iluminação a Nossa


Senhora. Com um ritmo quaternário simples e com um andamento lento, sua força se
mostra na melodia. Em alguns momentos, como no refrão a intensidade se torna mais
evidente na interpretação da Rebeka. Porém, se a atenção não estiver voltada para
aquela melodia, provavelmente não se ouvirá, devido ao adensamento sonoro no salão

7
Canção composta por Sérgio Saraceni e Ronaldo Monteiro de Souza, tema musical de uma telenovela de mesmo
nome, canção conhecida na voz da Cantora Joana.
15

promovido por conversas. A tarefeira Rebeka ainda canta mais algumas músicas a
capela, que não consigo identificar quais são, devido muito a Beth, que conversa
comigo e faz perguntas, intensificando minha atenção a ela. Logo em seguida é
colocado8 em um aparelho de som, o CD número um do trabalho do coral da Casa, Luiz
Alberto – Medicação de Amor.
Como a reprodução das músicas do CD são colocadas nas caixas amplificadas,
às canções ficam mais evidentes e em um primeiro plano de intensidade A música
Alvorada9 é a que se inicia:
De paz tão delicada
São os ares seus
Doce alvorada
Ensolarada
Colônia de Deus
Muralhas tão brancas
Plumas muralhas
Plumas muralhas
Plumas

De branco igual plumas


Plumas muralhas
Plumas as muralhas de Deus
Muralhas tão brancas
Plumas muralhas
Plumas muralhas
Plumas
De branco igual plumas
Plumas muralhas
Pluma alvorada de Deus

ÁUDIO: https://drive.google.com/open?id=12fsTA4XyDJgsbL9U6WQMiPxO6F74AgY1

Esta canção gravada pelo coral Luiz Alberto, da CAFOL, apresenta um ritmo ternário
simples, em velocidade acelerada, com dois planos de altura, cantados por homens e
mulheres. Sua narrativa nos fala das colônias espirituais. Tal colônia se chama Alvorada
de Deus. A segunda música a tocar nas caixas amplificadas, é Amparo Amigo10. A Beth,
que havia me chamado logo que cheguei, se anima ao ouvir essa canção do qual gosta
muito, começa a se expressar, batendo palmas e cantando muito forte, trazendo para si a
atenção das pessoas. Ela se levanta da cadeira em que estava, e se senta ao meu lado.
Nesse momento é ela quem canta as próximas músicas, junto com o CD. Ela se agita,
cantando forte e falando, fazendo com que a performance se torne mais confusa, ao
mesmo tempo as conversas quase cessam, levando pacientes/visitantes/fiéis a cantarem

8
Essa prática é recorrente na iniciação dos trabalhos, só sendo interrompido com a chegada do espírito do Dr. Fritz.
9
Faixa 01 do CD1 Medicação de Amor, psicografada pela médium Eliane Gonçalves, trazida pelo espírito Pedrinho.
10
Faixa número 02 do CD1 – Medicação de Amor. Música psicografada pela médium Eliane Gonçalves, trazida pelo
espírito Irmã Yone.
16

também. Várias outras músicas, também são interpretadas por ela, que acompanha a
gravação fazendo com que sua voz sobressaia. Essas canções ainda não fazem parte do
hinário da Casa. Entretanto, percebo que a maioria que estão no salão cantam, sem a
necessidade de recorrer a uma letra escrita.
A música Amparo amigo começa e Beth se levanta da cadeira e começa a
dançar, enquanto canta animadamente. Faço um comentário raso, diante da riqueza
experiência. – Olha, ela está com ritmo! E sorrio diante da minha aparente ingenuidade.
https://drive.google.com/open?id=10G7EE8XVzMsi0s-dpPqMa8SU7kvvyNSz

Várias outras músicas são tocadas em seguida respectivamente, como Dr. Hélio,
Conte sempre com Pedrinho e Deus. A alegria de Beth ao ouvir tais músicas, faz com
que ela bata palmas, cante, dance e sorria ao mesmo tempo. Percebo que o salão se
anima também com essa performance, fazendo com que os visitantes/pacientes/fiéis
também cantem mais animadamente.
A música é interrompida por uma tarefeira. Michelle, abaixando o volume do
aparelho de som, avisa a todos do salão:
Meus amores, bom dia! A médium Eliane Gonçalves está se esforçando para
chegar aqui. Os trabalhos têm sido muito intensos. No último fim de semana,
no sábado, Dr. Fritz atendeu em Congonhas do Campo, o atendimento foi até
a noite. Durante a semana a Casa também tem atividades muito intensas.
Como vocês viram, a Casa está em obras, pra melhorar um pouquinho. Como
teve a obra, a Casa precisava ser preparada para final de semana. Anteontem
e ontem, ela (Eliane Gonçalves), fez a faxina da Casa com uma equipe
ajudando, mas foi um trabalho muito pesado, que foi adicionado ao que ela já
faz normalmente, que é muito intenso. E ela já tem um desgaste muito grande
pela questão mediúnica, que é um desgaste natural da mediunidade de cura, e
que exige muito dela. É uma situação muito difícil. Mas ela está se
esforçando para chegar aqui. Enquanto isso, vamos ficar com o pensamento
elevado a Deus, pedindo em favor de todos que estão aqui, e dela também. E
que ela esteja bem. (Michele, aviso dado no dia 28 de Outubro de 2017, por
volta das cinco horas da manhã).

Após esse aviso, percebo que a médium ainda não havia chegado. Na maior parte das
vezes, Eliane Gonçalves chega antes da maioria dos tarefeiros. Olho para as pessoas
sentadas no salão e aquele recado aparentemente não modifica seus semblantes. Michele
aumenta o volume do aparelho de som e a música Missionária da Luz, em homenagem
a médium, é tocada.
O salão volta a cantar, assim como a Beth. A canção, quaternária simples,
composta pela coordenadora da equipe vibracional, da qual faço parte - Consolação, fala
17

das características da médium Eliane Gonçalves. Logo após, é tocado Medicação de


Amor, Jesus, Mensageiro e Irmã Eliane.
Enquanto as músicas Irmã Eliane e Você tocam, Márcio me diz que vai fazer a
oração inicial para início dos trabalhos, e diz que Consolação já havia chegado.
Repondo: “Graças a Deus, sim”. O que faz Márcio me perguntar o porquê de dar tanta
ênfase na chegada dela. Respondo que ainda não me sinto segura, principalmente no
quesito afinação, em relação à sustentação do salão com a música. Ele me diz que eu
estou enganada. Que para tanto, bastava pensar na espiritualidade, que já se encontrava
ao meu lado.
E assim , me conta um fato ocorrido na cidade de São João Del Rey, quando sua
voz e a da Consolação haviam ficado afônicos, no meio aos trabalhos, e que a partir de
sua mentalização nos mentores da casa, que suas vozes voltaram e conseguiram
terminar a tarefa. Quase no final dos atendimentos, quando tarefeiros são tratados pelo
Dr. Fritz, o mesmo fez comentários com o Márcio, sobre a potência vocal adquirida no
final dos trabalhos daquele dia, mesmo após suas vozes terem acabado. Enquanto
Márcio conversa comigo, muitas coisas acontecem simultaneamente no salão. A música
toca, tarefeiros passam apressados de um lado para o outro, algumas pessoas conversam
o trem passa, literalmente e a médium, chega.
Percebo alguma agitação, vinda do lado de fora, de tarefeiros que passam
apressados a frente do salão. Avisam: - Ela chegou! Enquanto observo ao meu ver, esse
aparente tumulto, a música Céu Azul é reproduzida no aparelho de CD. Beth está agora
no colo de sua mãe. Vários visitantes/fiéis/pacientes observam atentos o que se passa.
Tarefeiros vindos de outras partes da Casa, além do salão, começam a chegar ali, muito
rapidamente Voluntários dos banheiros, cozinha, apoio, passe, entre outros. Como o
salão já estava cheio, esses tarefeiros se encostam nas paredes, formando em volta dos
pacientes/fiéis/visitantes um círculo. A diferenciação se mostra pelas roupas brancas,
contrastando com as das pessoas dali, sentadas. O carro em que a médium veio, pára,
encostando próximo a porta. É o único carro autorizado a entrar na parte da frente da
CAFOL. A médium chega ao salão, acompanhada de alguns tarefeiros. Ela atravessa
aquele espaço, a passos pequenos, com uma certa dificuldade no caminhar, amparada
por uma bengala. Enquanto caminha, cumprimenta as pessoas com um sorriso tímido e
um pequeno balançar de cabeça. Beth se aproxima de Eliane Gonçalves e acaba
guanhando um afago da médium. Como todas às vezes, no qual participei, a médium e
sua equipe de auxiliares, vão direto para a sala de tratamento.
18

https://drive.google.com/open?id=1jxEyr3TcqLF1RzJ079wq0ivQRksLGc3l

A música Fritz é tocada, fazendo todo o salão cantar. A canção gravada é binária
composta, porém quando é tocada no salão, muitas vezes acaba se transformando em
ternária simples. A música após Fritz é Caminharmos juntos.
Letícia, a tarefeira mais próxima da médium, e responsável pela sala de
tratamento, conversa com Márcio e lhe entrega um papel, que imediatamente me pede
para abaixar o volume do som, para que possa dar um aviso:
“Queria transmitir a vocês um pedido da nossa irmã Eliane Gonçalves,
pedindo desculpas a todos, pelo transtorno. Nossa Casa recebeu uma doação
para troca de fios da parte elétrica. Por isso pedimos desculpas, pelo
transtorno, pela situação em que a Casa se encontra. Obrigado”

Volto com o volume do som e a música Mestre Joel já está quase no fim. A
tarefa de mostrar a numeração para que visitantes/fiéis/pacientes saiam de seus lugares e
se sentem em cinco cadeiras, localizadas no canto direito do salão, próximo dos músicos
– equipe vibracional, começa. E do número um a cinco são chamados. A partir dali
terão seus objetos recolhidos, como blusas de frio, sacolas e bolsas; e serão
encaminhadas para a sala de passes, e logo após, à sala de tratamento. Márcio avisa para
que até a numeração de número onze, fiquem todos atentos.
As músicas Presente, Destino de Amor e Irmã Alcione são reproduzidas. Após a
última, o CD agarra, fazendo com que o salão fique sem música por alguns instantes.
Michele e outra tarefeira tentam resolver o problema, voltando algumas músicas. A
música Mestre Joel é colocada novamente, assim como Fritz. Enquanto ouvimos a
canção ao Fritz, Consolação chega e afina seus dois violões. Me sinto um pouco irritada
com a mistura de sons contrastantes, entre a canção reproduzida e notas subindo em
comas, das cordas do violão. Penso mesmo que essa afinação não deveria acontecer
daquela maneira, após o início dos trabalhos, e se acontecesse, que não fosse dentro do
salão.
A música Medicação de Amor é reproduzida no salão, me fazendo lembrar do
primeiro contato11 que tive com a CAFOL. Enquanto penso, a música Jesus é
novamente colocada. Observo que enquanto a canção é reproduzida, Consolação
acompanha no violão. A presidente da Casa, D. Zulmira, olha em nossa direção,

11
Episódio narrado na introdução na página 06.
19

fazendo uma negativa com a cabeça, reprovando a ação de tocar violão em cima da
canção gravada. A Consolação olha pra mim e continua, sem qualquer sinal de inibir
seus movimentos ao instrumento.

https://drive.google.com/open?id=1rNmG3LWYai1xVt1KzWt6V1frI6NfLjO8

No instante em que a Música Mãe Maria chega ao refrão, o CD é retirado e


somos todos convidados a nos darem as mãos, para o momento de oração. Tarefeiros e
os demais presentes declamam o Pai Nosso com vigor, dando ênfase nas tônicas de
algumas palavras. Imediatamente após a oração, Michele volta a reprodução das
músicas do CD, tocando novamente Irmã Eliane e Mensageiro.
Enquanto toca o Pai Nosso, um tarefeiro se aproxima e nos avisa que Dr. Fritz
havia chegado12. Após uma hora de reprodução das músicas do CD do coral Luiz
Alberto, pertencente à Casa, é retirado de forma definitiva a gravação, para dar lugar a
música ao vivo nos trabalhos do dia de hoje.
A Consolação e outros tarefeiros se dirigem em direção à porta principal da sala
de tratamento. Sala esta onde já se encontram Dr. Fritz e toda a equipe da sala.
Novamente os tarefeiros se colocam no salão em volta dos pacientes/fiéis/visitantes,
formando um grande círculo, diferenciando da primeira vez, por agora estarem de mãos
impostas direcionadas a sala de tratamento. E de lá da sala de tratamento alguém
começa a cantar Medicação de Amor, fazendo com que um tempo cotidiano se
extinguisse, dando lugar à um tempo ritual, através do canto. Após ouvir a primeira
palavra do canto, todo o salão à capela entoa:
Lágrimas que caem por suas mãos, Doutor
É Jesus abençoando a todo teu amor,
A sublime medicação abençoada para todos nós
Pede a Deus, pelos doentes e oprimidos proteção
É a vida amparando a todos os irmãos
Por suas mãos, Doutor
Em nome de Jesus

https://drive.google.com/open?id=1838QaLWvJT2JHJZ3xCxMrBPZvJuPeg65

E no momento em que a canção é cantada, é utilizada pelo Dr. Fritz, na feitura da


medicação, transformando a água de um recipiente, semelhante a um aquário, em
fluídos terapêuticos, para auxiliar no tratamento após a cirurgia. Tal medicação se
12
A afirmativa “Dr. Fritz chegou!” faz menção ao processo de incorporação da médium Eliane
Gonçalves.
20

chama vida, e será dada a cada um individualmente, pelas mãos do dr. Dritz, com a
dosagem, de acordo com a necessidade de cada tratamento. Dessa forma, se iniciam os
trabalhos.
Márcio pega o microfone e diz: - Bom dia a todos! Que possamos, junto ao
convívio da espiritualidade amiga, cantar. Nos pede três hinos, para que a prece inicial
seja posteriormente, realizada. Consolação cumprimenta a todos no salão com um Bom
dia, e como em todos os trabalhos no qual participei, informa que iniciaremos com o
hino 29, Mestre Joel, dizendo: -Mestre Joel é o ministro da nossa Casa!

https://drive.google.com/open?id=1BM4sg3iBd295WEROdUDpmdnP373npZpK
Em seguida tocamos Oração de São Francisco e Fritz. A prece é realizada por
Dona Euzí e logo após, são dados os avisos13 referente aos atendimentos e tratamento.
Nestes avisos, havia recomendações sobre a restrição ao uso do álcool e carne
vermelha, vinte e quatro horas após a cirurgia. Falava também da medicação Vida e de
quais os passos a seguir naquele espaço, desde a chamada pelo número da ficha,
mudança de lugar, indo para as cadeiras, no canto direito do salão, passe e sala de
tratamento para a cirurgia. Caso quem entre na sala de tratamento, opte pelos não
procedimentos com cortes 14físicos, deverão avisar a equipe da sala de tratamento.

E enquanto Dona Euzí conclui os recados, chega da sala de tratamento uma


ordem de Dr. Fritz – sessenta minutos de vibração (música). Márcio pede ajuda a todos
os presentes a ação de cantarem, estimulando-nos, citando uma frase do Dr Fritz, escrita
em um quadro, no salão:

-“Quem canta ora duas vezes!”

Preparamos apressadamente nosso material com letras e cifras, instrumentos e


microfones, rapidamente; pois a partir do momento em que começamos, não deverão
existir muito tempo sem música, durante o período estipulado pelo Dr Fritz.

Cristina Araújo acena em minha direção, avisando que havia chegado para me
auxiliar na gravação do áudio. Lhe entrego rapidamente um celular, com a função
gravação de áudio já ligado, peço que grave do seu celular também, caso algo aconteça,
e aconselho a permanecer em um mesmo lugar, para não diferenciarem as amostras de
13
Dr. Fritz ao me autorizar a gravação em áudio de um dia de tratamento, foi taxativo quanto a não gravar avisos
dados no salão.
14
Os cortes físicos realizados por Dr. Fritz são muito raros atualmente.
21

som. Rapidamente volto pra perto da Consolação, que diz ao microfone apontando para
os pacientes/fiéis/visitantes:

-“Este é o coral Jardim Florido do Dr. Fritz. São vocês, acompanhados por nós. O
Jardim florido de Dr. Fritz se refere às rosas, que é o símbolo da Olhos da Luz”.

A partir dessa fala, cantamos sem interrupção por sessenta minutos. Como de costume,
é tocado e cantado canções do hinário. Foram interpretadas respectivamente: Canção do
perdão, Amar como Jesus amou, Um certo Galileu, As Conchinhas, Dr. Bezerra de
Menezes, Inpossível, Quero te dar a paz, Nossa Senhora, Maria de Nazaré, Irmã
Sheilla, Zaqueu ( Faz um Milagre em Mim) e Irmã Eliane. As músicas aconteciam em
um tempo contínuo, sem espaços para ajustes, como afinação e trocas de instrumentos.
Logo após finalizarem essas músicas, Consolação agradece e diz que daqui a instantes,
voltaremos.

https://drive.google.com/open?id=1-FpPnw8i-Vrnjn88XKGS9P9EFctlxp0d
https://drive.google.com/open?id=15o63nBP6UjS-ilv3LM1FFFpjCZZUXIJG

Márcio, ao microfone, avisa que chegara o momento do estudo do capítulo XIV


do Evangelho15 Segundo o Espiritismo. Já um pouco com fome e desperta, após tocar
por uma hora no salão, me levanto rumo à parte externa da Casa, para tomar um café.
Não sei ao certo quanto tempo fiquei ali, entretida. Enquanto tomava um café e
conversava discretamente com outros tarefeiros, percebi uma certa agitação, vinda do
salão. Fui chamada, às pressas a voltar ao salão, pois Dr. Fritz daria a primeira a
medicação as primeiras visitantes/paciente/fiéis que chegaram no salão e que já tenham
passado pela sala de tratamento.
Já dentro do salão, enquanto Dona Zulmira organiza a fila para a vida, observo
olhares curiosos em relação aquela movimentação, aparentemente confusa, enquanto
noto que Consolação já se prepara para voltar a tocar e cantar. Monto novamente minha
flauta. De dentro de uma ante-sala, Dr. Fritz vai começar a distribuição da medicação.
Novamente o tempo cotidiano é interrompido para dar lugar a um tempo ritual. A
música é iniciada e quase sincronicamente a VIDA também começa a ser distribuída
pelo Dr. A primeira dose é dada na boca e o restante é embalado em pequenos frascos
transparentes.
15
Livro Allan Kardec.
22

Sinto uma sensação diferente. Uma eletricidade que me faz emocionar a cada
frase tocada. Um misto de arrepios e lágrimas que me afeta, interrompendo o fluxo de
pensamentos e ampliando a carga de sensações. Apesar de estar tocando canções, as
quais estou acostumada, como José Grosso, Luar do Sertão (versão com letra
modificada), Fritz, Meimei e Oração de São Francisco, me emociono de uma maneira
diferente.
Depois dessa experiência, opto por tocar violão, já que as lágrimas me fizeram
perder o fôlego na flauta transversal. A medicação foi dada até o número 80. Dr. Fritz
volta à sala de tratamento, onde recomeça a atender imediatamente. A indicação é para
quem já passou pelo tratamento e recebeu a medicação, podem ir embora, porém
muitos preferem passar o dia e aguardar a benção final, quando Dr. Fritz vai até o salão.
Mais duas músicas são tocadas - Um pouco de perfume e A Barca, e logo em
seguida são dados alguns avisos. Muitos desses avisos se repetem, pois não param de
chegar pacientes/fiéis/pacientes, sendo necessário instruí-los diante dessa dinâmica
complexa dos atendimentos.

https://drive.google.com/open?id=1iFnvZpSVCykiZd_3kqwOsEdzYv40ERZp

O relógio marca nove e trina da manhã. Márcio diz que é hora da oração do Pai
Nosso. Novamente a oração do Pai Nosso é proferida. Desta vez com menos vigor.
Consolação me avisa que terá que buscar sua irmã. Pede para que eu não saia do salão.
Não se passa muito tempo e Márcio autoriza mais quinze minutos de vibração,
cantada. Canto Mestre Joel, e ao ouvir que o salão cantava em peso, me sinto um pouco
mais segura, como cantora.

https://drive.google.com/open?id=1aHyEBxEY0AfsNvkZDvAuGgN3WWh-GZOr

Ao iniciar Impossível, vejo que uma tarefeira chega muito próxima a mim e começa a
cantar. Ela sem microfone consegue abafar minha voz, fazendo com que a performance
saia um pouco diferente. Canto por último Segura na mão de Deus e tento perceber o
cantar daquele salão. Vejo uma pessoa chorando e me emociono
Márcio agradece, e a segunda palestra do dia se inicia, sobre o livro - Sementes
da Esperança, de Ignácio de Antioquia, psicografado por Wander Cardoso Campolina,
23

na lição 76. A palestra terá uma duração de uma hora e dez minutos. Saio do salão a
procura de Cristina Araújo. Ela acabara de sair dali.
Do lado de fora da Casa, converso reservadamente com Cristina Araújo, que
narra uma experiência extra-sensória que teve, enquanto Márcio falava sobre o
Evangelho Segundo o Espiritismo. “Aconteceu algo que nunca havia acontecido
comigo”, relata. Enquanto estava sentada, prestando atenção na palestra, ouviu de
dentro da cabeça, uma melodia. Era com pouquíssima intensidade. E quando fechou os
olhos a música ficou mais em evidência. Tombou um pouco a cabeça, na tentativa de
direcionar o som e viu como fosse uma alucinação, um coral com muitas vozes,
instrumentistas e um homem alto, calvo, com cabelos avermelhados, na extremidade
esquerda daquele grupo. Era uma música bela e confortante ao coração. Para ela, essa
imagem não durou muito. Porém continuou ouvindo a música por algum tempo. Como
nos atendimentos o passe é dado cantado, às vezes, do salão, conseguimos ouvir aquela
melodia. Perguntei se por algum acaso, ela não ouviu a música de lá, do passe. Ela me
disse que não saberia responder. Voltamos ao salão, mas dessa vez, pedi a ela que se
concentrasse naquela pequena sala, que para receber os visitantes/fiéis/pacientes precisa
abrir a porta, deixando a sonoridade dos seus cantos um pouco mais nítida. Cristina se
aproximou da entrada da sala de passe e por alguns instantes ouviu atentamente. Não
era aquela música, me disse. A que ela ouviu na cabeça dela era muito mais bela, havia
sons de instrumentos musicais, além de contrastar pela quantidade de vozes. Não veio
do passe definitivamente, relatou.
Voltei para o lugar de onde toco, um pouco anestesiada, pelo relato que acabara
de ouvir. A palestra ainda acontece. Consolação afina um pouco seu violão, enquanto
olho para o salão. Percebo dois grupos contrastados apenas pela cor da roupa. Vejo
pessoas dos dois grupos, de várias idades. Algumas aparentemente saudáveis; outros
com lenços na cabeça e muito magros, aparelhos ligados ao nariz, muletas, machucados,
crianças com síndromes, pessoas jovens e mais velhas em cadeiras de rodas – conto
quatro no salão. Das de branco, tarefeiros, percebo necessidades do corpo que ao meu
olhar, não atrapalham o trabalho, nem a força em auxiliar. Tão logo a palestra se finda,
Consolação anuncia as músicas de número: quatorze, quinze, quarenta e sete e trinta e
Sete. Uma após outra, vai anunciando a numeração do hinário e logo em seguida,
interpretamos a canção. Quando eu quero falar com Deus, Fim dos tempos, Tema da
vida, Amar é possível. Quando anuncia Palminha, de número 36, diz:
- Palminha também é um dos mentores da casa. Companheiro de José grosso.
24

Ainda tocamos Você, canção que não está no hinário, fazendo parte do trabalho do
Coral Luiz Alberto, apenas.
Outro palestrante é chamado. Dessa vez o livro a ser estudado é Vinha de
16
Luz. Aproveito esses momentos em que há palestras no salão para ir ao banheiro, me
alimentar, conversar um pouco e anotar em meu diário, alguns acontecimentos e
percepções. No caminho para o banheiro, passando por dentro da casa, há um corredor
onde são colocados os objetos de quem está passando pelo tratamento no passe e na sala
onde há cirurgia. Continuo pelo corredor e a minha direita é a cozinha, onde preparam o
café e a sopa. O pão é preparado na sexta na padaria da EFAF. Terminando o corredor
há o refeitório, pouco menor que o salão, onde acontecem pequenos estudos de várias
obras, para pessoas que já passaram pelo tratamento, mas ou não conseguiram lugar no
salão principal, ou a distribuição de sopa entre onze e treze horas. Passando por uma
grade de ferro, chego finalmente ao banheiro.
Após anotar algumas impressões em meu diário e descansar um pouco, volto ao
salão. Me acomodo em uma das cadeiras para visitantes/fiéis/pacientes e tento prestar
atenção na palestra. Percebo que, apesar do assunto estar em concordância ao que
vivenciamos ali dentro, há muita conversa paralela, interrupções por parte do dirigente,
para dar pequenos avisos, como a retirada de veículos que atrapalham a livre circulação
na estrada ou até mesmo para reforçar o que o palestrante profere. Vivencio um salão
conturbado, em estado diferenciado ao que estamos acostumados, quando fazemos
música.
A palestra termina e volto rapidamente para a frente do salão, junto a
Consolação e a Elizana17. É Anunciado - Pelos prados e campinas, canção que não
pertence ao hinário. Ao tocar presto atenção que não há tumultos ou conversas, apenas
nas estrofes a voz da cantora e poucas pessoas que acompanham de memória, e no
refrão, um salão inteiro que canta:
- Tu és Senhor, o meu pastor /Por isso nada em minha vida, faltará
Consolação, talvez percebendo a força do refrão, executa A Barca. O salão
inteiro canta, do início ao fim da canção. Após essa música Márcio avisa:
“Estão passando os tarefeiros, depois o Dr. Fritz vai tratar todos seus
cooperadores, que fazem parte da equipe médica dele lá dentro. Depois disto
é que ele vem aqui para fora para nos atender. Lembrando que quando
estivermos na fila, vocês vão colocar bolsas e envelope que estão com vocês,

16
Livro de Emmanuel, psicografado por Francisco Cândido Xavier, em 1951.
17
Elizana é uma das tarefeiras passistas. Porém, quando há rodízios para substituição de tarefeiros,
muitas vezes ela auxilia a equipe vibracional, tocando violão.
25

na mao direita, vão estar de frente pra Dr. Fritz. Abram a boca mantendo a
língua dentro da boca. Assim ó (demonstrando). Ele vai tirar a medicação,
colocar na boca de vocês, vocês vão engolir a medicação. O envelope será
retirado da mão de vocês, e sobre o envelope será colocado mais medicação.
Depois desse procedimento vocês acompanhem a pessoa que está com a
bandeja até lá (aponta para o fundo do salão), e vão para o refeitório.
Aguardem até que o nome de vocês sejam chamado, e lhe seja entregue a
medicação. Normalmente é uma por dia, a partir de amanhã. Hoje vocês vão
tomar. Se tiver outra recomendação será dado a vocês. O que nós pedimos
após vocês receberem a medicação, quem tiver algum compromisso
inadiável, pode embora. Quem quiser aguardar a benção final, que eu
convido a todos a participarem, aguardem aqui fora, depois serão colocados
aqui dentro do salão para participarem.”(Fala do Márcio, explicando como
proceder no atendimento deste dia)

Após esse aviso, anuncio: Segura na mão de Deus. E enquanto canto, vejo Dona
Zulmira em minha frente. Pega o microfone e aguarda a canção terminar o refrão pela
primeira vez e diz:
Gente, agora chegou o momento de a gente preparar para receber o
medicamento. Para ficar mais fácil vou pedir a vocês que saiam ( do salão). E
vão se colocando em fila. Hoje pela manhã nós fomos até o número 80. Então
eu quero até o número 150 em fila ali e os outros vão se colocando em
seguida. Então vocês vão se retirando do salão em silêncio, para fazer a fila
em ordem numérica. Só ficam no salão pessoas que não tem condição de
caminhar.

A partir desse recado, uma aparente algazarra, muita conversa e tumulto se forma no
salão. As pessoas se levantam, mas não sabendo exatamente onde a fila começa ou
termina, acabam procurando informações, deixando o ambiente confuso. Talvez não
percebendo que uma música conhecida, pudesse talvez rearranjar o espaço ritual,
Consolação começa a Cantar a música Oração e Cura, desconhecida até para mim.

Toca senhor
Toca senhor
Com teu amor
Com teu amor

Tira todo medo


Angustia e aflição
Toca nessa alma
e cura o coração

Cura da doença
que faz o irmão sofrer
Toca neste corpo,
Jesus com teu poder

Tira toda magoa


Que faz alguém chorar
Tira todo ódio,
Ensina-me a perdoar

Cura do pecado
26

Que lava com o perdão


Faz das nossas perdas
Com todo o coração

Toca nossos lábios


E o nosso interior
Vamos te louvar
Jesus com muito amor

Tira todo medo


Angustia e aflição
Toca nessa alma
E cura o coração
Cura da doença
Que faz o irmão sofrer
Toca neste corpo
Jesus com teu poder

Logo após é executado a canção número quarenta - hino ao Glacus, e em seguida


Márcio orienta:
Somente para esclarecer a todos que neste momento Dr. Fritz está tratando
dos tarefeiros que compõem a sua equipe médica lá dentro. Tão logo ele
termine, vai sair e nos dar a medicação Vida. Fiquem atentos aos avisos e
instruções das pessoas que estão na fila, orientando vocês. Não vão embora
sem levar a medicação para casa. Porque ela é única e é feita para vocês que
estão aqui, não poderá ser dada a outras pessoas. Quando Dr. Fritz olha
vocês, ele faz a mediação ali, na hora.

O salão aguarda, ansiosamente, pela chegada do Dr. Fritz. Após muitas horas ali,
o cansaço começa a deixar as pessoas um pouco mais impacientes e agitadas. Tocamos
várias músicas, como de mentores, do hinário: Eric Wagner, José Cleber, Oração de São
Francisco e Irmã Alcione. Dona Neuzí avisa novamente que Dr. Fritz ainda está
tratando sua equipe de dentro. Márcio ainda reforça, dizendo exatamente a mesma
coisa.
Começamos a tocar Amparo Amigo, e observamos que o tom está extremamente
baixo, tanto para minha voz, quanto para o salão. Apenas alguns tarefeiros nos
acompanham, cantando. E ainda, respectivamente: Deus, Fritz, Joana de Angelis,
Eliane Gonçalves e Eurípedes Barsanufo. Percebo que Dr. Fritz está prestes a chegar no
salão, pois alguns dos tarefeiros que o auxilia, chegam apressadamente ao salão.

https://drive.google.com/open?id=1tPbJI9m5QFVz73Y16AkCdlkb-xvIIlgC

Dr. Fritz chega e em uma dinâmica confusa aos olhos, porém extremamente ágil
e eficiente são colocadas duas filas em caracol. Uma de tarefeiros com bandejas de
27

alumínio, onde recolherão as seringas com a medicação do paciente, que estará


auxiliando na fila. Ao lado outra fila de pacientes/fiéis/visitantes que receberão a
primeira dose na boca e as demais irão para a bandeja.
A responsável pela organização da fila da bandeja, Marina, está aparentemente
nervosa. Sua voz se coloca quase em um primeiro plano. Ouço palavras enérgicas,
ultrapassando a intensidade da melodia da música que acontece também naquele
momento.
Enquanto Fritz distribui a medicação, a música deverá acontecer
ininterruptamente. As músicas Cantin de Amô, Irmã Sheilla e Força e Vitória são
cantadas, recebendo a ajuda dos tarefeiros que enquanto auxiliam na bandeja, cantam
animadamente. A música Salve Rainha (Ave Maria de Gounod/Bach) recebe
características próprias da Consolação, conferindo uma nossa apropriação desta canção
muito conhecida. Entoamos Canção do Perdão, Graças, Gratidão a Deus e Espírito.
Dr. Fritz começa a distribuir a medicação aos tarefeiros, enquanto Dona Zulmira
e André trazem os pacientes/fiéis/visitantes novamente, ao salão. É formado no espaço
ritual, uma mandala. Com um espaço para Dr. Fritz caminhar pelo salão. No meio da
canção ouvimos: SCh! De tarefeiros. Era momento de interromper a música para Dr.
Fritz dar a benção.
Imediatamente desligo o áudio, pois não consegui a autorização para registrar
esse momento. Após a fala que conferia o poder da fé e de todos também, ali presentes,
o médico pediu que levantássemos as mãos, em direção ao céu. Enquanto fala Dr. Fritz
anda a passos rápidos, em direção anti-horário, entre os pacientes, com tarefeiros
rodeados. Rezamos o Pai Nosso. Agradece aos tarefeiros. Faz pequenas brincadeiras
sobre o cansaço de cada um, sobre o amor e o prazer de estar aqui, auxiliando. Se
despede e entra novamente para a sala de tratamento.
Márcio pega o microfone e pede para que façamos silêncio, pois toda a
espitualidade ainda estava ali trabalhando. Pede para que rezemos novamente o Pai
Nosso. Após a oração, diz:
E com a gratidão, a Deus, ao plano espiritual e nossa amiga Eliane
Gonçalves, encerramos nossas atividades do plano físico mas os trabalhos do
plano espiritual continuam.

Um tarefeiro pega o microfone e como em todas as vezes em que estive presente,


profere:
28

Dr. Fritz e o plano espiritual agradecem os trabalhos realizados nessa casa no


dia de hoje. Neste momento vamos aplaudir com muito entusiasmo os
trabalhos realizados.

Com muito entusiasmo, todos batemos palmas. Sinto minha energia completamente
renovada. Não há cansaço aparente no corpo neste momento. Apenas gratidão por
participar de mais um trabalho naquela Casa.
Rapidamente a maioria dos tarefeiros se dão as mãos ou se abraçam, cantando
forte e animadamente, no salão:
Se caminharmos juntos
Com fé e com Amor
Lutaremos contra o mal
E venceremos nossas dores
Jesus mostrou o caminho
E nos disse para amar
E os nossos corações
Iluminados vão ficar
E neste caminho flores vamos encontrar
Repartiremos com os irmãos
Que não souberam perdoar
Lá no infinito as estrelas vão bailar
É o amor que nesta casa vai reinar
É o amor que nesta casa vai reinar

https://drive.google.com/open?id=1horaHEw85iDa29E1Pt-T8HvpjBx69gha

Uma mulher presente fala: “Louvado seja nosso Senhor, Jesus Cristo! E
respondemos, quase que por um impulso vindo de outros ritos: Para sempre seja
louvado”. E os trabalhos terminam, neste dia.

***
Neste relato narro um dia inteiro dos atendimentos da CAFOL de Sabará, onde
através de relato etnográfico e gravações em áudio, conhecemos um pouco mais sobre o
funcionamento da Casa. A partir da performance desse dia busco analisar seus aspectos
temporais.
Na CAFOL há um tempo ritual, onde se estrutura com a colocação do CD do
coral até quando Dr. Fritz chega. Após a música Medicação de Amor os atendimentos
são iniciados. A música ao vivo também se inicia no salão, com uma sequencia de
canções que fazem referência aos mentores da Casa. Logo após os avisos dados no
salão, Dr. Fritz pede uma hora de música ininterrupta. No salão passa-se a alternar entre
palestras e músicas, orientados e pedidos pelo dirigente do salão, no dia. Na distribuição
da medicação Vida, tanto na ante-sala, quanto no salão, a música acontece
29

ininterruptamente. No final dos trabalhos a canção Se Caminharmos Juntos finalizam os


trabalhos, assumindo nesse tempo uma função fenomenal de quebra do que é
considerado tempo cotidiano, introduzindo uma nova realidade. Através da música tanto
os pacientes/fiéis/visitantes quanto os próprios tarefeiros, podem vivenciar um tempo
conectado a uma nova perspectiva, projetando um tempo ritual.
Ao estudar sobre a música do Congado, Lucas (2006:400) analisa três aspectos
do tempo ritual: A dinâmica das performances, mostrando como os grupos do Congado
constroem seu espaço-tempo ritual ou como reagem a eles; O terno e a trindade, através
de uma rede de significados simbólicos e rítmicos, reforçando com padrões sonoros
ternários, em uma representação da trindade no Congado; Crono-interações sócio-
musicais, através da música as características do tempo ritual nas relações sociais.
Assim como no Congado, os aspectos Crono-interações sócio-musicais e a dinâmica
das performances da CAFOL constroem o espaço-tempo ritual, onde reagem às
circunstâncias, apontando características desse tempo, através da música nas suas
relações sociais.
A dinâmica das performances na CAFOL é moldada e molda de acordo com
alguns fatores, como a etapa e momento rituais. Assim como no início e fim dos
trabalhos, a canção ajuda a entender em qual momento estamos, do mesmo modo que
quando há muita conversa entre os tarefeiros no salão, a equipe vibracional (músicos)
automaticamente optam por canções alegres, do CD do coral, que todos os trabalhadores
dali saibam cantar.
30

Capítulo II – Relatos, música trocas e vivências


“A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá”.
Mas não pode calcular quantos cavalos de força existem nos
encantos de um sabiá.”(...)
Manuel de Barros18
A partir de muitas vivências em campo, procuro assumir nestes relatos um olhar
etnomusicológico, onde reflito, a partir das narrativas, sobre a performance musical na
CAFOL, tendo como foco os fenômenos sonoros, seus usos e significados na
construção de sentidos, assim como nos propõe Rice (2001):

Significado como intenção e significado como interpretação localizam


o conceito de significado não no objeto, forma ou ação, mas nas
pessoas que fazem e refletem sobre os significados. (RICE; 2001: 21)

Vivenciar e decidir o que é de fato importante para a pesquisa, dentro de


uma miríade de possibilidades geraram-me, de certa forma, uma angústia a qual se
tornou menos dolorosa após meses, pois, na minha inserção no campo pude deixar cada
experiência me trazer sentidos e se ordenar em um campo de perspectivas. Somada a
isso, a conscientização de que as possibilidades abordadas deveriam ser elencadas em
função de objetivos traçados atenuaram minha ansiedade.
Assim, nesta mesma perspectiva narra Cardoso (2006:10) ao descrever sua
pesquisa de campo. E desta forma, assim como o autor pude ao longo dessas
atividades, conhecer o dia-a-dia institucional da Casa, conviver com pessoas essenciais
para a realização dos trabalhos, como por exemplo, a médium19 atuante da CAFOL e
vice-presidente, Eliane Gonçalves, que media a comunicação também com alguns
espíritos, como Dr. Fritz, Pedrinho, Zé Pelintra, Dr. Bezerra de Menezes, entre outros;
e a presidente D. Zulmira, assim como todos os tarefeiros.
Após esta pequena introdução transcreverei alguns dias, a partir da escrita
etnográfica, os quais como veremos, foram significativos para mim e relevantes para o
desenvolvimento dessa pesquisa, no qual ao longo deste estudo, serão desdobrados em
reflexões, análises e apontamentos aqui e em capítulos posteriores.
No primeiro relato, A toalha, narro minha vivência inicial como
pesquisadora no campo, um pedido de autorização para desenvolver uma pesquisa
inicial naquela casa, para um trabalho em uma matéria do mestrado e meu consequente
18
BARROS, Manuel de. Livro sobre Nada. 1996. Trecho do poema número 9, página 55.
19
Toda pessoa que sente a presença ou influência dos Espíritos, em qualquer grau de intensidade, segundo
o livro dos Médiuns possui mediunidade sendo, portanto médium. Segundo Kardec essa faculdade é
inerente ao ser humano. (KARDEC, 1861:171)
31

“credenciamento”. Desta forma, procuro familiarizar o leitor com a CAFOL, local onde
desenvolvo esta pesquisa. Ainda neste relato, pode-se perceber o início de minha
familiarização com o campo como observador-observada.
Após a leitura de alguns livros da coleção “No mundo Maior” de André
Luiz, psicografado20 por Francisco Cândido Xavier para estudo e talvez uma futura
escrita de um artigo, tomei conhecimento da importância de uma pesquisa voltada ao
sensível, ao espiritual, aliada ao trabalho voluntário. Diante desse conhecimento, senti
que não queria apenas estudar a CAFOL, mas também fazer parte, contribuindo com
meu trabalho semanal junto aos atendimentos. Assim, de forma contrária a Fonseca
(2000:289), que aponta em seu livro, Brasil Afro-brasileiro, relatando certa
obrigatoriedade do pesquisador em fazer parte do grupo, senti o desejo de participar, o
que me levou a refazer um pedido de permissão ao Dr. Fritz, desta vez para trabalhar
como tarefeira, sendo este, o foco central de minha segunda exposição: Um pedido.
No terceiro e quarto relatos, Qual a função da música?! E Perguntas e
respostas, a partir de uma perspectiva nativa, apresento uma explicação da função e
relevância da música, para o trabalho de tratamento e cura. A colocação destas duas
narrativas juntas se justifica pela explicação do Dr. Fritz, trazendo postulações
21
coincidentes que vão além do objeto sonoro .
Na descrição desses quatro relatos opto pelo uso do “presente etnográfico”,
relacionando-as com as reflexões de Seeger (2015, p.20). Para o autor, apesar de
críticas22 em relação a esse estilo de escrita, por distanciar os acontecimentos do seu
contexto histórico e criar, por vezes, falsas ideias de relatos de caráter normativo, há
também a possibilidade de enfatizar a particularidade de cada evento. Assim ao
descrever no tempo presente o desenrolar da performance, pode-se demonstrar seu
caráter único, particular. Coadunando com as ideias desse autor, utilizo o tempo
presente como narrativa para demonstrar a singularidade dos fatos ocorridos.

1.1 A toalha – 18 de setembro de 2016

20
Psicografia, do grego, escrita da mente ou da alma, segundo o vocabulário espírita, é a capacidade atribuída a
certos médiuns de escrever mensagens ditadas por Espíritos.
21
Também Blacking, do mesmo modo, acredita que uma prática musical tem, em sua constituição, aspectos que
ultrapassam o objeto sonoro, podendo favorecer aspectos compartilhados socialmente em experiências culturais.
Para Blacking (1995: 223) “fazer música é um tipo especial de ação social que pode ter consequências importantes
para outros tipos de ações sociais”.
22
Ver SEEGER, Anthony Por que cantam os Kisêdjê (2015) pág. 20.
32

É domingo. Já amanhece, quando me levanto da cama. No relógio o ponteiro


marca cinco horas e meia. Preciso sair rápido, pois os atendimentos começaram desde
as quatro horas da manhã. O local, em uma serra, bem ao alto, afastado do centro de
Sabará, em Minas Gerais, interage com a natureza. Ali, no meio a flores, árvores e
poucas construções, situa-se uma casa aparentemente pequena e de contornos simples.
Seu nome: Casa de Auxílio e Fraternidade Olhos da luz (CAFOL).
Já havia amanhecido quando alcanço a Casa, que para acessar, após subir a
uma sinuosa serra, e pegar uma estrada reta, de terra, deveria andar uns duzentos
metros, devido a única vaga que encontro disponível para meu carro. Ali, já com todos
os espaços preenchidos para um possível estacionar de veículos, no canto esquerdo,
deduzo que a melhor opção, talvez fosse chegar mesmo, às quatro horas da manhã.
De onde estacionei, ao sair do carro, consigo ouvir, mesmo com pouquíssima
intensidade, uma canção que logo identifico como parte do repertório da religião
católica. Caminho apressada, a passos largos, portando uma câmera fotográfica em sua
pequena bolsa, um tripé de aproximadamente cinquenta centímetros para sua fixação e
no bolso celular e chaves do carro.
Caminhei em direção aos portões e antes de propriamente entrar naquele
espaço, devido à minha proximidade, ouço um pouco mais forte aquela música. O som
do vento, de alguns insetos e de pássaros se misturava ao ruído dos meus passos e a
melodia daquela canção. À medida que andava, mais a intensidade musical se
intensificava. Chegara aos portões. Pressupus que naquele momento a música vinha de
dentro da casa. E estava certa. A canção soava forte.
Segura nas mãos de Deus 23

Se as águas do mar da vida quiserem te afogar,


Segura na mão de Deus e vai.
Se as tristezas desta vida quiserem te sufocar,
Segura na mão de Deus e vai.
Segura na mão de Deus, segura na mão de Deus,
Pois ela, ela te sustentará.
Não tema, segue adiante, e não olhes para trás,
Segura na mão de Deus e vai...

Se a jornada é pesada e te cansas da caminhada,


Segura na mão de Deus e vai.
Jesus Cristo prometeu que jamais te deixará,
Segura na mão de Deus e vai.

23
Composição de Nelson Monteiro da Mota. Dados anotados em campo, dia 18 de Setembro de 2016. Essa canção
foi escrita e gravada em 1966. É encontrada em diversas religiões, apesar de ter sido composta por um pastor
evangélico.
33

Apesar de ser uma música conhecida por mim, mesmo antes de chegar dentro
daquela casa, pude notar diferenças na estrutura sonora - entre os contornos melódicos,
harmonia e andamento, e principalmente, no ritmo – naquele momento era outra
configuração musical: em alguns compassos, a música apresentava uma métrica
quaternária, em outros, ternária. O canto se mostrava denso, com dezenas ou talvez
centenas de vozes, masculinas e femininas, em uníssono, aparentemente afinados
conforme o temperamento euro-ocidental, um violão com som de cordas de aço ao
fundo, levemente desafinado, tocado de forma quase percussiva, com palheta, sem a
utilização de amplificador, e uma voz feminina, grave, que sobressaia em meio às outras
vozes devido ao uso de um microfone.
Dentro dos portões posso perceber melhor os aspectos em torno da casa. Há
uma estrada de cimento, com aproximadamente oitenta centímetros de largura que
divide os canteiros de alvenaria, com plantações de rosas, árvores e plantas de diversas
espécies; bancos e estátuas de ferro, em tamanhos naturais, que mais tarde vim tomar
conhecimento de se tratar de homenagem aos mentores espirituais daquela casa.
Próximo da casa, quase em frente à porta principal, há duas fontes artificiais em
formato de estrela de seis pontas, com alguns peixes pequenos, talvez carpas. Acima da
casa uma placa com os dizeres “Casa de Auxílio e Fraternidade Olhos da Luz”. De
fronte, uma varanda, com telhado de amianto, três cadeiras de rodas, alguns bancos de
madeira, uma pequena porta que dá acesso à parte interna da casa com algumas pessoas.
Nessa porta, ainda na varanda, vislumbrando a parte de dentro da casa, noto um
salão branco, lotado de pessoas. Logo nessa entrada há uma pilastra que, para minha
surpresa, possui um pequeno cartaz com uma ilustração de uma criança com o dedo em
riste verticalmente na boca e abaixo escrito: silêncio. Percebo que ali se sugeria um
silêncio com outras configurações, não representando uma ausência de frequências
sonoras e sim uma delimitação do que poderia ou não fazer naquele salão. Pelo que
acabara de ouvir, cantar estava autorizado.
No salão tanto as paredes quanto os azulejos, do chão até um metro e vinte de
altura, aproximadamente eram brancos. Além da porta que adentrei, percebo mais
quatro portas evidenciando acesso a outros ambientes. Há muitos quadros nas paredes,
cartazes, esculturas e fotografias.
Nos quadros pintados vejo rostos, dos quais na maioria não consigo definir
quem são essas pessoas. Ao fundo do salão, onde há uma pintura da região georgráfica e
a CASA, com Jesus sentado com olhos meditativos, aparentemente contemplando a
34

natureza. À frente do salão, logo atrás de uma mesa: o rosto de Jesus; e um quadro em
maiores proporções de um menino loiro, com pouco mais de oito ou dez anos de nome
Pedrinho, que ilustrava também com os dizeres: “É Pedro, Pedrinho. Vem de Nosso
Lar. Contar sobre a vida. Do lado de lá. Mensageiro de Luz, da colônia de paz, o canto
de Pedro nos faz acreditar que a vida é Amor e a alma imortal”. 24
Nos cartazes, frases apontando a autoria do espírito Dr. Fritz, pela médium
Eliane Gonçalves: “Se não houvessem pétalas não existiriam rosas. Cada um de vocês é
uma pétala de rosa. Unam-se e formem uma linda rosa." E também: “Eu não ligo para
o que vocês falam. Eu olho é o coração de vocês. A boca às vezes é insana. O coração
não.”
Nas fotografias imagens de cirurgias feitas pelo Dr. Fritz, incorporado em uma
mulher. Ali, pessoas em procedimentos cirúrgicos com retirada de tumores, raspagem
de feridas, cortes físicos e operações em olhos. Há também a foto da mesma mulher, de
cabelos loiros longos, presos que após uma pergunta a uma moça que estava ao lado,
descubro ser a médium da CAFOL: Eliane Gonçalves.
Há duas esculturas de metal, de aproximadamente um metro e oitenta cada,
localizado na frente do salão, aparentemente de um homem e outra próxima a porta de
entrada, de uma criança, com suspensório e boné, também de mesmo material.
No teto, além das lâmpadas, uma instalação com estrutura de metal, formando
uma estrela de seis pontas de quase um metro e pequenas flores brancas dependuradas
nessa mesma estrutura. Ainda no salão se encontram alguns bancos de madeira na
lateral, e cento e vinte cadeiras de plástico, também brancas. Á frente do desse espaço
identifico a música que ouvira, tocada e cantada ao vivo por músicos de branco.
Não há como identificar a intenção de cada um ali presente. Percebo muitos
grupos fazendo coisas distintas ao mesmo tempo. Entretanto, dois pareciam sobressair:
os que ali estavam por buscar um tratamento físico, psíquico ou espiritual; e aqueles que
procuravam servir como voluntários, auxiliando as pessoas e a organização daquela
casa. Noto que tal separação torna-se nítida em função das atitudes e da indumentária,
uma vez que aqueles que pertenciam a casa como tarefeiros se vestiam de branco. A
maioria das pessoas cantava. Com o salão lotado, agora não apenas ouço, mas faço parte
deste grupo, cantando a canção A Barca25:

24
Quadro com tais dizeres incluídos.
25
Composição de Padre Zezinho, de 1979.
35

Tu te abeiraste na praia.
Não buscastes nem sábios, nem ricos.
Somente queres que eu te siga...

Senhor, Tu me olhaste nos olhos,


A sorrir, pronunciaste meu nome.
Lá na praia, eu deixei o meu barco.
Junto a Ti, buscarei outro mar.

Tu sabes bem que em meu barco...


Eu não tenho nem espadas nem ouro.
Somente redes e o meu trabalho...

Senhor, Tu me olhaste nos olhos,


A sorrir, pronunciaste meu nome.
Lá na praia, eu deixei o meu barco.
Junto a Ti, buscarei outro mar.

Tu minhas mãos solicitas.


Meu cansaço, que a outros descansem.
Amor que almeja seguir amando...

Senhor, Tu me olhaste nos olhos,


A sorrir, pronunciaste meu nome.
Lá na praia, eu deixei o meu barco.
Junto a Ti, buscarei outro mar.

Tu, pescador de outros lagos.


Ânsia eterna de almas que esperam.
Bondoso amigo assim me chama...

Senhor, Tu me olhaste nos olhos,


A sorrir, pronunciaste meu nome.
Lá na praia, eu deixei o meu barco.
Junto a Ti, buscarei outro mar...
Junto a Ti, buscarei outro mar...

A canção A Barca, parte do repertório muito conhecido da religião católica não


se diferencia muito da melodia como cantava e tocava na época em que participava do
grupo de jovens da igreja do bairro. Contudo há uma aceleração na velocidade, uma
modificação percebida auditivamente por mim no campo harmônico e na batida, sinto
sons percussivos do violão. A voz feminina grave sobressai às vozes do salão pelo
microfone. Agora são dois violões.
Ainda ao som da música, pergunto para um voluntário da casa, o qual se
diferenciava das outras pessoas dali pela postura pró ativa e pela cor branca da sua
vestimenta, se há uma ordem de atendimento, onde prontamente me orienta a entrar em
uma fila, do lado de fora da casa, na lateral esquerda para pegar uma ficha.
Dirijo-me até a lateral e contando comigo, há vinte pessoas na fila. Percebo
uma ordem e certa organização no funcionamento. Minha ficha é de número cento e
três. Serei a centésima terceira pessoa a ser atendida neste dia. De volta ao salão, me
36

sinto parte daquele grupo tão conectado pela música, que por ora, parece-me tão
uníssono e sincrônico. Sento-me ao fundo do salão para observar. A música executada
agora se chama Quando eu quero falar com Deus:26

Quando eu quero falar com Deus eu apenas falo.


Quando eu quero falar com Deus às vezes me calo.
E elevo o meu pensamento.
Peço ajuda no meu sofrimento.
Ele é Pai, Ele escuta o que pede o meu coração.
Quantas vezes eu falando com Deus desabafo e choro.
E alívio pro meu coração eu a Ele imploro.
E então sinto a sua presença.
Seu amor, sua luz tão intensa.
Que ilumina o meu rosto e me alegra em minha oração.
Quanta paz, quanta luz.
Deus nos ouve, nos mostra o caminho que a Ele conduz.
Deus é pai, Deus é luz.
Deus nos fala que a ele se chega seguindo Jesus.
É tão lindo falar com Deus em qualquer momento.
Deus que vê uma folha que cai e é levada ao vento.
Não existe onde ele não esteja.
Ele pode escutar nossa voz.
Deus no céu, Deus na Terra, aonde seja, está dentro de nós.
Quanta paz, quanta luz.
Deus nos ouve, nos mostra o caminho que a Ele conduz.
Deus é pai, Deus é luz.
Deus nos fala que a ele se chega seguindo Jesus.

Presto atenção na mulher que canta ao microfone e toca violão. Além da


vestimenta branca, usa um jaleco e uma toca de mesma cor. Seus olhos se fecham
quando canta. Consigo perceber que ela se emociona em vários momentos daquela
canção. Pela minha percepção musical, educada em parâmetros tradicionais europeus,
condicionados, há um desequilíbrio entre os volumes do violão e da voz. Voz com
muito volume, microfonada, e violão sem amplificação. Olho em volta e noto pessoas
sentadas nas cadeiras à minha frente e algumas, de diferentes idades cantam, muitas
emocionadas. Algumas com um livro encadernado nas mãos, que pelo visto, aparenta
um tipo de hinário. Consigo um exemplar e constato oitenta e oito canções organizadas
por uma numeração anterior à música.
Folheando mais um pouco, identifico músicas de três religiões distintas, além
de músicas ao estilo MPB. Músicas populares, católicas, evangélicas e espíritas formam
aquela coletânea de músicas, que em sua capa há o nome de hinário, objeto que logo
percebo desempenhar um papel que auxilia na coesão do canto entre pessoas que
provavelmente nunca se juntaram antes.
26
Composição de Roberto Carlos e Erasmo Carlos
37

Há uma conexão entre as letras dessas canções: Deus, Jesus, Maria (mãe de
Jesus), espíritos mentores da casa, natureza e pessoas que trabalharam para o próximo,
entes encarnados e desencarnados, compõem os temas que prevalecem nas músicas
transcritas naquela coletânea de canções.
Na frente do salão, ao lado dos músicos observo uma mesa grande. Em cima:
flores vermelhas um pequeno busto de gesso, de um homem barbudo, que identifico
pela imagem como Dr. Bezerra de Menezes. Ao lado esquerdo desta mesa há duas
fileiras com cadeiras brancas dispostas de cinco em cinco, e um banco de madeira, com
capacidade também para cerca de cinco pessoas.
Próxima a mim observo uma moça de branco, de pé, encostada na parede ao
lado direito do salão. Olho para trás e também há uma senhora, também de branco,
cantando, embora mais timidamente. Instintivamente olho para o lado esquerdo e
identifico, do outro lado do salão, um senhor que além de estar cantando, gesticula com
as mãos, como se quisesse mostrar a palma das mãos para as pessoas. Pergunto para um
senhor, sentado ao meu lado, para quê aquele senhor gesticulava com as mãos e
descubro que não só ele, mas aquelas pessoas são tarefeiros de sustentação do salão, os
quais, segundo outros trabalhadores da casa, sua função seria a de equilibrar as energias
daquele ambiente.
Desde que entrei naquele salão, observo que o aspecto sonoro que predomina é
a música, sendo esta interrompida apenas por pequenos avisos. Um homem de voz
marcadamente grave lembrava-nos dos horários do início dos atendimentos aos sábados
e domingos, da preparação para receber o tratamento. Segundo ele quem fosse passar
nos atendimentos, não podem comer carne vermelha nem fazer sexo durante doze horas
após o tratamento.
No mesmo aviso fala que o espírito do Dr. Fritz realiza cortes físicos em alguns
casos, mas quem não desejasse tal procedimento, deveria avisar para os auxiliares na
sala de tratamento. E que os lanches e a sopa são oferecidos gratuitamente. Avisa das
palestras durante dias de semana, e que também são oferecidos uma medicação
chamada VIDA, no qual era preparada pelo espírito do Dr. Fritz.
Enquanto ouço aqueles avisos, vejo outra moça de branco com jaleco, sair
apressada de uma das portas e se direcionar até a mesa do salão. Traz um recado do Dr.
Fritz: que se façam sessenta minutos de vibração ininterruptos. Imediatamente os avisos
cessam e posso perceber que a vibração mencionada é, de fato, a música, ou seja: deve-
se fazer música ininterruptamente no tempo pedido.
38

Das canções das quais identifico posso mencionar Maria de Nazaré, José
Grosso, Irmã Sheila, Oração de São Francisco, Faz um Milagre em mim. Outras mais
também são cantadas, fazendo parte desse momento. Percebo que em algumas dessas
canções a letra ao ser cantada se apresenta diferente do hinário que está em minhas
mãos. Noto uma semelhança na interpretação dessas canções, sempre forte, lembrando
em alguns momentos, músicas de seresta.
Enquanto aguardamos nossa vez para o atendimento, cantamos. Em alguns
momentos aquelas músicas me arrepia e uma sensação de choro me inunda. Basta me
concentrar na letra e esquecer o que acontece ao redor. Mas a concentração muitas
vezes fica difícil, devido a muitas coisas que acontecem simultaneamente naquele
ambiente.
Ao redor, alguns tarefeiros entram e saem do salão, a passos apressados, muitas
vezes portando nas mãos instrumentos cirúrgicos e bandejas; e mesmo andando não
deixam de cantar. Noto que aquelas pessoas de branco mais se assemelham a
profissionais de um hospital do que pessoas trabalhando em uma casa religiosa.
Mesmo ouvindo pessoas cantando, ao meu ver sem parâmetros melódicos de
altura ou sem ritmo, por exemplo, percebo que o resultado gerado é tão tocante e lindo
que vivencio uma outra realidade musical. Penso mesmo que devemos ser mais
cuidadosos quanto a consensos quanto à universalidade da música, pois sinto que o que
acontece aqui, são fenômenos sonoros genuí, onde não só vivencio o que a literatura
etnomusicológica postula sobre significado musical ir além dos aspectos sonoros, como
a presença de músicas, no plural e não A música.
Ao término de mais uma música, o senhor que ficava na mesa, dá um pequeno
aviso sobre um triângulo de madeira localizado ao fundo do salão pregado na parede.
Ali as pessoas podem anotar em um papel nomes de familiares, amigos e conhecidos
que necessitassem de auxílio físico ou espiritual e que não estão naquele local. Segundo
ele, uma equipe espiritual direcionará tratamento às pessoas cujos nomes sejam ali
colocados. Agora ouvimos o Hino do Dr. Bezerra de Menezes.
Enquanto acompanhávamos as músicas, percebo dentro do salão a formação de
uma fila que começa ao lado direito, frente a uma porta, e se estende por todo o recinto,
formando uma meia-lua ao redor das cadeiras posicionadas no centro. Conto
aproximadamente cinquenta pessoas naquela fila. Nas mãos há um pequeno saco de
papel pardo com o nome, onde pressuponho que seja o da pessoa que o segura e uma
numeração. A música termina e avisam que aquelas pessoas que se encontram na fila
39

irão receber um medicamento e que devem se posicionar de frente para a médium.


Segundo a explicação que obtive posteriormente, as pessoas na fila receberam a
medicação de forma oral, onde Dr. Fritz, através de uma seringa sem agulha, injeta o
remédio na boca de cada um, daqueles pacientes, e prepara outras doses para serem
levadas para casa.
A execução e organização do atendimento contam com a ajuda de dezenas de
voluntários. Assim que adentrei o salão, com a senha em mãos, pude observar que
enquanto a música acontece, há um tarefeiro, com cartazes de pouco mais de oito
centímetros de altura e setenta de largura com numerações, sempre de cinco em cinco.
Com uma cartolina ele tampa o número que ainda serão chamados. Quando chega a vez,
através desse sistema, nos levantamos e caminhamos até a frente, onde há cinco
cadeiras encostadas na parede ao lado direito do salão.
Meu número é chamado. Levanto e me dirijo até aquelas cadeiras encostadas
na parede. Uma moça de branco pede para entregar minha blusa de frio e a bolsa com
minha câmera fotográfica com a ela, e logo em seguida sou conduzida para uma sala
pequena, com cinco pessoas de pé, de branco e cadeiras para recebermos um passe27.
Sento-me e uma das pessoas de pé se dirige a mim, e muito sutilmente diz ao meu
ouvido:
– Pense em Jesus.
Ela impõe as duas mãos próximas a minha cabeça e começa a cantar, uma
música que já ouço vindo dos outros passistas e do salão principal. Essa imposição de
mãos não dura mais que um minuto, e logo em seguida sou convidada a trocar de lugar
e me sentar em outra cadeira. Fico de frente para uma porta na qual ainda não entrei.
Uma moça é orientada a se levantar e se põe próxima a ela.
Aquela moça entra e pela porta percebo uma agitação vinda do outro lado. A
moça é direcionada para esse outro ambiente. A porta se fecha novamente. A minha
vez chega e me colocam de pé, preparada também para adentrar aquele outro ambiente.
A porta se abre e entro, e o que vejo é um ambiente esverdeado, graças a luzes dessa cor
no teto. Há sete macas, já com algumas pessoas deitadas nelas, e auxiliares do espírito
do Dr. Fritz, incorporado na médium Eliane Gonçalves, que caminham, acompanhando-
o de forma cuidadosa, porém agitada. Tenho neste segundo a impressão de estar em um
ambulatório dentro de um hospital, no meio a uma guerra, devido à agitação.

27
“ato de passar as mãos repetidas vezes por diante ou por cima de pessoa que se pretende magnetizar ou curar
pela força mediúnica.” Francisco Cândido Xavier. O Consolador, questão 99, pág. 84.
40

Uma pessoa me pergunta o que eu estava sentindo e digo estar ali para fazer
uma pergunta ao Dr. Fritz. Como se não me ouvisse, conduziu-me até uma maca e de
forma carinhosa, porém pontual, ajudou-me a deitar. Dentro da minha cabeça refaço a
pergunta ao Dr. Fritz e sinto alguém pegando na minha mão esquerda. Então, uma moça
diz ao meu ouvido:
– Pense em Jesus minha irmã. Você está muito ansiosa. Quando Dr. Fritz
chegar você poderá perguntar o que quiser a ele.
Neste instante, um rapaz pede licença e levanta minha blusa até a altura do
sutiã e desabotoa minha calça jeans, deixando minha barriga inteiramente a mostra.
Ainda ouço ao fundo, com pouca intensidade, a música vinda do salão e da cabine de
passe. Sinto neste momento um misto de ansiedade, medo de ser cortada, curiosidade,
vontade de desistir, levantar dali e ir embora. Todas essas sensações tomam conta da
minha cabeça.
Dr. Fritz chega com alguns auxiliares até a minha maca e pergunta:
– O que a filha sente?
Digo que quero perguntar algo. Ele, de forma rápida, pede algo a um dos seus
assistentes, e com as mãos em minha barriga sinto como se algo muito frio, como uma
lâmina passasse nela. O frio me recordava um bisturi, porém não sentia nenhuma dor.
Imediatamente, com uma voz rouca, pede curativo. Auxiliares colocam na região
superior da barriga um curativo. Esse procedimento não dura mais que quinze segundos.
A presença desse espírito me traz uma calma inexplicável, mesmo com toda a agitação
que acontece a minha volta. O corpo que o Dr. Fritz utiliza ali é de uma médium, de
cinquenta e dois anos, pouca estatura, cabelos louros e um pouco franzina. Mas naquele
momento a sensação que aquele corpo me traz é de um homem de aproximadamente
dois metros. Não há como explicar.
Ele fala algo se dirigindo a mim. Há um sotaque que não consigo identificar de
onde vem. Pelo que conheço da história desse espírito, sei que, conforme a crença
espírita, viveu na época da Primeira Guerra Mundial, na Alemanha, quando nesta
guerra, foi médico socorrista.
Digo que gostaria de pedir a autorização dele para fazer um trabalho de
descrição etnográfica do que acontecia lá e se posso fotografar o salão. Com um
sotaque, enquanto falava, ele dizia: Iá, iá. Termino minha pergunta e ele fica alguns
segundos em silêncio. Pede a seus assistentes para me sentarem na maca. De frente pra
mim, estende sua mão, aperto minha mão a dele, como um pacto acertado entre nós.
41

Sinto-me conectada àquele espírito, de uma forma estranha, porém intensa. Meu
coração se acelera e lágrimas saltam dos meus olhos, como se perdesse o controle do
meu corpo. Ele diz algumas frases direcionadas a mim que, pela emoção, não consigo
entender e com um gesto de carinho, leva minha cabeça de encontro a seu peito. Eu
agradeço mentalmente e por palavras. Então, o Dr. Fritz coloca uma toalha branca, de
rosto, com seu nome gravado, em minhas mãos, e sai para o próximo atendimento.
Outros auxiliares me ajudam a descer da maca e rapidamente me conduzem à
porta de saída. Chego até uma pequena sala com alguns jalecos dependurados, um
banco de madeira e uma senhora me oferece um copinho com água. Enquanto fico ali
sentada, tomando aquela água, Letícia - uma auxiliar, que mais tarde teria conhecimento
tratar-se do braço direito do Dr. Fritz, pede um contato telefônico e meu nome
completo. Neste momento me dou conta que há uma toalha em que o Dr. Fritz
“esqueceu” em minhas mãos. Estendo minha mão devolvendo aquela toalha para
Letícia, dizendo eu que o Doutor havia se esquecido de pegar de volta, a sua toalha. A
tarefeira imediatamente me diz em resposta:
– Essa toalha é um presente a você. Centenas de trabalhadores daqui, há anos,
gostariam de receber esse carinho, ao qual você hoje teve o privilégio. Nela, contém a
energia viva do Doutor. Guarde com carinho e leve essa toalha com você para toda a
sua vida.
Meu pedido foi aceito.
Volto ao salão me lembrando de pegar minha câmera e blusa de frio que estavam no
corredor em um cabideiro. Dirijo-me até o fundo do salão, já disposta a começar a
fotografar. Como minhas mãos estão ocupadas com a toalha, a blusa e a câmera, coloco
a agasalho na bolsa da câmera e a toalha jogo no ombro, do lado esquerdo, para ter as
mãos desocupadas. Mal começo a fotografar e um rapaz, de branco, se dirige a mim, me
informando que eu não posso fotografar ali. Mal termina a frase e me pede desculpas e
diz que se equivocou. Não entendo muito e continuo a tirar fotos. De repente, uma
senhora, de pouca estatura, que mais tarde venho a saber, se tratar da presidente da casa,
D. Zulmira, me pega pelo braço e de forma pontual, com voz em tom de ordem, diz:

- O que você está fazendo? Aqui não pode fotografar!

E antes que eu me justifique, ela pede pra eu guardar a câmera e me sentar. Eu digo que
já conversei com o Dr. Fritz e ela imediatamente olha para a toalha, e dá um pequeno
42

sorriso, quase como um pedido de desculpas. Percebo que ali aquela toalha tem outras
significações. Um objeto que ganha outras funções e significados, como uma música,
que pode servir para concentrar, para unir, mas também para inúmeras coisas, das quais
aqui, estou disposta a entender melhor.
Termino de bater as fotos do salão e vou até a parte externa da casa para tomar
um café. Apesar de já ter guardado a câmera fotográfica na bolsa, continuo com a toalha
no ombro. A senhora de voz grave, que estava tocando violão e cantando no salão me
pergunta o por quê de eu estar fotografando. Digo que era para um trabalho de
faculdade. Ela ao ver a toalha se emociona, deixando os olhos marejados de lágrimas.
Diz que ali era sua casa e que o lugar é abençoado. Termino meu café com pão e vou de
encontro ao carro, para voltar para casa, deixando aquele lugar ainda com dezenas,
talvez centenas de pessoas ainda aguardando sua vez para serem atendidas.

***

Neste relato de 18 de setembro, um domingo de 2016, narro minha ida inicial


como estudante pesquisadora na CAFOL. E nesse dia me foi concedida uma
autorização, pelo espírito do Dr. Fritz, incorporado na médium Eliane Gonçalves para
uma etnografia daquele mesmo dia, onde obtive também meu consequente
credenciamento e de uma certa forma, também através da toalha ganhada. Nesta
vivência, pude refletir sobre o significado musical nativo, dentro de uma visão
multidimensional do fenômeno musical, frente à diversidade de suas manifestações,
como também compreender o compartilhamento de sentidos, tanto musicais, quanto de
objetos.
Quando ouvia uma música, como a que ouvi logo quando cheguei ao salão da
CAFOL, sendo interpretada ao vivo, com voz e instrumento, me remeto a categorias
aprendidas em um contexto acadêmico tradicional, como afinação, melodia, harmonia,
tessitura, forma e texto. E quando alguns desses parâmetros apresentam variações do
que se considera pela academia como “certo”, logo julgava ser um objeto sonoro de
qualidade ou não. Porém, após observar e vivenciar o campo compreendi que o que
julgava “certo e errado” não era, na maioria das vezes, nem compreendido pelos nativos
e aspectos que passavam despercebidos por mim, era valorizado naquele fazer musical.
Ali as categorias musicais eram outras.
43

Segundo Nattiez (2004:05), a partir do momento em que a etnomusicologia


passou a se orientar com olhares antropológicos, se interessando pela música inserida na
sociedade, surge o que podemos chamar de significado musical, dentro de uma
relativização cultural. Segundo o mesmo autor (NATTIEZ, 2004:05) supor certo
consenso quanto ao significado musical sem uma preocupação analítica frente ao
conjunto de fatos extrassonoros no qual o fenômeno musical está inserido, pode gerar
interpretações equivocadas.

Para Nattiez, Merrian (1964) e Blacking (1973) com o lançamento de seus


livros, inaugura os interesses “veiculados pela música numa determinada sociedade e
pelos laços que o autóctone estabelece entre a música e sua vivência, (assim) surge a
questão da significação musical”. (NATTIEZ, 2004:05)

Do mesmo modo Seeger (1992:26) também postula a importância de se


observar fatos extra-sonoros, como dados textuais, cenográficos e contextuais para
entender o significado musical em uma cultura. Nonato (2006:83) também aponta a
música como parte integrante de um todo ao postular que:
(...) Música não é uma entidade autônoma. A manifestação musical
pode não apenas se apresentar ligada a outras ações humanas, mas,
sim, estar estritamente mesclada com essas. (NONATO, 2006:83)

Green (1997: 29) considera o significado musical a partir de duas categorias:


inerentes e delineados. Os inerentes fazem parte de aspectos do objeto sonoro, enquanto
que os delineados constituem aspectos sociais. Ela ainda qualifica a categoria inerente
como afirmativa, caso haja aceitação do fenômeno por parte do ouvinte ou de negação,
caso não haja. Também qualifica a categoria delineado como positivo ou negativo.
Positivo se os aspectos sociais forem aceitos pelo ouvinte e negativo, caso haja repulsa.
Refletindo a partir das vivências em campo e de importantes considerações de
Green (1997) e também de outros autores aqui citados (CARDOSO, 2006),
(MERRIAM, 1964), (BLACKING, 1973), (NATTIEZ, 2004) e (SEEGER, 1992), pude
compreender que o significado musical está intimamente ligada a relativização cultural,
no qual só através de sensibilidade e vivências, podemos identificar categorias musicais
nativas. A partir deste relato, e de minha estadia por quase dois anos na CAFOL, pude
identificar e entender um pouco mais sobre as categorias musicais de lá, no qual
44

descreverei e aprofundarei posteriormente, no capítulo três em: Categorias Musicais


Nativa.

3.2 Outro pedido – Outubro de 2016

Ainda é noite. Mesmo o relógio tendo marcado que ainda era madrugada,
eu e Letícia Martins, uma pessoa muito querida por mim, acordamos, para irmos a
CAFOL. Ela vai tratar os dedos polegares dos pés, e eu depois de muito pensar,
estimulada por uma sensação de querer, aconselhada e autorizada pelo meu orientador
do mestrado Dr. Angelo Nonato, tentarei mudar meu campo etnográfico, transferindo
do Grupo e Fraternidade Espírita Irmã Sheilla, para a CAFOL. Além disso,
influenciada pelas leituras de André Luiz, escritas por Chico Xavier, descobri que
apenas observar, sem contribuir com o auxílio a outras pessoas dali, enquanto vivencio
e observo não trará muitos benefícios. Pretendo além de pedir autorização ao Dr. Fritz
para pesquisar a música de lá, conseguir trabalhar em algum setor como
voluntária/tarefeira.
Chegamos. Ainda escuro, estacionamos. Eu e Letícia pegamos a ficha para
o atendimento na lateral da casa e seguimos para o salão. Sentamos e observo que a
música ora cantada, está sem acompanhamento instrumental. Não vejo a senhora que
da outra vez tocava e cantava na frente do salão. Um homem que aparentemente era o
dirigente do salão, de voz marcante e grave, cantava ao microfone. Não transcorre
muito tempo e somos chamadas a sentar na frente, para entregarmos nossos pertences e
entrar na cabine de passes.
Entramos na salinha. O passe cantado me trás uma sensação de calma e de
amparo. As vozes das passistas quase conseguem diminuir o som da sala de tratamento,
que fica do outro lado da parede. Há uma sonoplastia de movimentação que ouço, com
pouca intensidade lá dentro da sala de tratamento. As passistas me orientam a ficar de
pé em frente a porta. Sei que é minha vez de entrar.
Mal começo a organizar as perguntas a serem feitas ao Dr. Fritz em minha
mente e a porta se abre, revelando um ambiente escuro esverdeado, com muitas macas,
já conhecido por mim. Deito em uma das macas e circulo em vão meu olhar em busca
de Letícia, até que uma senhora coloca uma gase molhada em meus olhos, e com uma
voz doce, pede pra eu pensar em Deus. Tento pensar, mas acabo repassando minhas
perguntas a serem feitas ao Dr.
45

Dr. Fritz, incorporado na médium Eliane Gonçalves, chega e uma sensação


incrivelmente boa, de paz me invade. O cumprimento fraterno e calmo é feito por ele:
- Como a filha tem passado?
- Bem doutor!
Ele de forma cuidadosa põe algo molhado em minha cabeça e trata
novamente, no mesmo local em que fez a primeira cirurgia em setembro. Minha parte
superior da barriga. Enquanto termina o tratamento digo que quero pedir-lhe algo. No
que diz:
- Coloquem a filha sentada!
Dr. Fritz fica em minha frente e digo que gostaria de pesquisar, de forma
mais aprofundada a música que acontecia lá. Ele me diz rapidamente, que já tinha
minha autorização para isso. Digo que gostaria de trabalhar com ele e se seria possível.
Ele pensou por alguns segundos e me disse que ficaria na equipe vibracional. Chamou
alguém ao lado e pediu para chamar o dirigente do salão até a minha maca. Quando o
senhor que estava cantando ao microfone no salão chega, é encaminhado até a mim,
onde doutor Fritz, de forma pontual nos orienta que devo dividir as tarefas com a
senhora que canta e toca na frente do salão. E que era para eu começar imediatamente.
Ainda quando estava saindo da sala de tratamento, diz:
- Quero ouvi-la cantando daqui! Microfone!
Eu sempre fui tímida para cantar em público, devido a uma desafinação de
décadas, que não foi corrigida nem com anos de aulas de solfejo e canto coral. Fui
dirigida até a frente do salão, e sem violão, comecei a cantar timidamente. Mas como
não memorizo quase letra nenhuma de música pedi a coletânea de canções, que eles
denominam de hinário. Lancei mão das canções que tocava na Fraternidade Casa do
Caminho e mesmo as que tocava na época em que era do grupo de jovens da igreja
católica. Como notei que as canções continham uma numeração, que ia até o número
oitenta e oito, fui anotando em um papel rapidamente os números das que conhecia,
para cantar. O dirigente Márcio, que se apresentou como coordenador dos trabalhos do
salão aos sábados, me pede para cantar. Sugere uma canção que não conheço e
pergunto se podemos cantar Maria de Nazaré28, de número 25 do hinário. Ele então no
microfone diz o número e aguarda o início da música.

Maria de Nazaré, Maria me cativou

28
Composição de Padre Zezinho.
46

Fez mais forte a minha fé


E por filho me adotou
As vezes eu paro e fico a pensar
E sem perceber, me vejo a rezar
E meu coração se põe a cantar

Pra Vigem de Nazaré


Menina que Deus amou e escolheu
Pra mãe de Jesus, o Filho de Deus
Maria que o povo inteiro elegeu
Senhora e Mãe do Céu

Ave Maria, Ave Maria, Ave Maria, Mãe de Jesus!

Maria que eu quero bem, Maria do puro amor


Igual a você, ninguém
Mãe pura do meu Senhor
Em cada mulher que a terra criou
Um traço de Deus Maria deixou
Um sonho de Mãe Maria plantou

Pro mundo encontrar a paz


Maria que fez o Cristo falar
Maria que fez Jesus caminhar
Maria que só viveu pra seu Deus
Maria do povo meu.

Ao cantar, fui deixando ser levada pelo coro de vozes no salão. Percebi
diferenças em algumas frases cantadas, com as do hinário. Pequenas mudanças nas
frases. Notei também que a maneira que o salão cantava era muito diferente da que
ouvia quando tocava na igreja, ou mesmo na fraternidade espírita que frequentava. O
canto, em uníssono, continha mais velocidade e força, quase como se fosse um hino
cívico, onde as palavras ganhavam mais entonação nas tônicas, e as frases eram mais
articuladas. Não consegui localizar a delicadeza e o modo quase romântico em que a
ouvia. Contudo, o texto ficava tão evidente, que conseguia talvez pela primeira vez,
não apenas entender a letra, mas em minha mente enquanto cantava e ouvia, pude
acompanhar a narrativa da canção, percebendo e refletindo sobre a personagem
principal dessa música, Maria de Nazaré.
Com pouco mais de quatro músicas cantadas no microfone por mim, me
entregam um violão, no qual, apesar de não estar amplificado, me auxilia um pouco a
encontrar a entonação vocal.
Ao pensar que Letícia se encontra no salão e ouve aquela desafinação, me
coloco mais tímida e constrangida. Porém, aos poucos, começo a perceber que as
frequências sonoras eram importantes, mas talvez havia algo mais importante para
quem estava naquele salão: a intenção quando se canta ou a concentração.
47

Após estar aproximadamente há um tempo no salão, onde não consigo


precisar se foram horas ou minutos, devido ao tempo relativo a meu literal desespero,
chamo Letícia por um gesto com os dedos até a frente, entrego as chaves do carro,
explicando que ficaria ali até o término dos trabalhos. E que quando quisesse, poderia
ir embora.
A senhora que eu havia ouvido na minha ida anterior, chega. Se apresenta
pra mim: Consolação. O dirigente imediatamente explica a ela o que Dr. Fritz orientou.
Recebo o seu – bem vinda! E confesso respirar ali, após sua chegada, um pouco mais
aliviada. O dirigente pede atenção para começar uma palestra. Percebo que os cânticos
serão interrompidos para uma exposição sobre um texto de um livro de Francisco
Cândido Xavier, no qual não me recordo o nome.
Aproveito para observar por outro ângulo o salão e as pessoas ali, naquela
dinãmica. Agora me encontro na frente do salão, onde a visão se torna privilegiada
diante dos visitantes /pacientes/fiéis. Alguns se mostravam alheios à explanação na
frente do salão, outros ouviam atentamente, acompanhando com o olhar cada
movimento do palestrante. A agitação ainda se fazia presente por alguns tarefeiros que
passavam rápido levando ou trazendo pessoas. E ao observar os tarefeiros/voluntários
encostados nas paredes de pé, percebi que em cada parede havia uma pessoa de branco,
ou de olhos fechados imagino eu fazendo uma oração, ou impondo as mãos em direção
aos pacientes/visitantes/fiéis. A palestra chega ao fim e Márcio informa que teremos
trinta minutos de música ao vivo. Pela primeira vez vou tocar e tocar com a
Consolação.
Ela de uma forma performática, com sua voz grave, olhos brilhantes e uma
alegria aparente, cumprimenta o salão e informa que ali estava presente um coral
chamado: Jardim florido de Dr. Fritz. E que cada um era uma rosa daquele jardim. Ali,
segundo ela, era um coral de vozes onde através dessa energia, poderemos auxiliar o
plano espiritual nos trabalhos do dia de hoje. Avisa que neste momento serão tocadas
apenas músicas de mentores. Não entendo o que seria isso, mas não há tempo de
perguntar nada agora. Consolação então diz:
-Cantaremos o hino: Canção ao Mestre Joel, de número 29!
Mestre Joel muito amado
Trabalhador de Jesus
Estamos dispostos ao seu lado
A conquistar muita luz

Irradiando-a a todos
48

Que nesta casa conduz


Casa de Amor e bondade
Aos olhos de Jesus

Fraternidade Espírita Olhos da Luz


Fraternidade Espírita Olhos da Luz

Enquanto Consolação canta e toca, visivelmente emocionada, tento


acompanhá-la no violão. Observando sua mão no braço do instrumento, identifico os
acordes e acabo localizando um centro tonal na música, que está em Lá menor
harmônico. O ritmo ternário, com violão batido, que ela toca, me deixando dúvidas se é
simples ou composto. Há uma diferença gritante na afinação dos nossos violões, o que
me faz tocar quase que inaudível, para não serem percebidas as diferenças de altura
entre nossas cordas. A maneira em que ela toca, apesar de notar uma força que vêm do
conjunto entre sua potência vocal, a intenção - que acaba levando sua força quase
agressiva nas mãos, e a tradução do que acontece no salão, não consigo entender o que
há de tão distorcido e ao mesmo tempo, tão lindo.
Ela termina a canção e peço para me dar uma nota lá para igualar nossas
frequências do instrumento. Afinamos os instrumentos e Consolação me pergunta se
conheço o hino a Irmã Scheilla29. Digo que sim e ela imediatamente me passa o
microfone e comunica a numeração da próxima música.
Hino a Scheilla

Vamos unidos a Scheilla


Numa alegria sem fim
Cantar como os passarinhos
Que esvoaçam no jardim
Essa flor tão delicada
Quando está juntinho a nós
Deixa sempre o seu perfume
E o calor de sua voz

Irmã Scheilla, tão querida,


Vem trazer-nos esta luz
Que ilumina nossas vidas
Nos caminhos de Jesus

Ao enfermo que espera


Caridade, paz e amor
Levaremos nesta noite
Lenitivo a sua dor

Como bons samaritanos


E a Scheilla a nos guiar
Seguiremos confiantes
Sempre alegres a cantar

29
Canção de Dinah Lemos Reis e Célia Tomboly.
49

Irmã Scheilla, tão querida,


Vem trazer-nos esta luz
Que ilumina nossas vidas
Nos caminhos de Jesus.

Já no início da canção percebo que a tonalidade está muito grave para


minha voz. Ela notando isso me ajuda a cantar. Sua voz é tão potente em comparação a
minha, que mesmo eu ao microfone, sua voz ao natural sobressai em intensidade. A
música em tonalidade maior, está em sol. Seu campo harmônico não varia muito, se
alternando entre tônica, dominante e subdominante. Na última estrofe percebo uma
variação harmônica interessante, mas que não foi possível identificar. Talvez em
relativas, ou até mesmo, uma dissonância.
Entre as canções que tocamos e cantamos, nem todas as conhecia, mas
procurei acompanhar utilizando o recurso de intensidade. Tocava bem baixinho para
aprender e acompanhava no hinário a letra, já que a cifra não se encontrava no mesmo.
Não sei se Consolação conhece bem de campo harmônico, ou se decorou todas as
músicas que tocava, já que eram todas de cor, utilizando o hinário algumas vezes para
acompanhar as letras das canções.
Ao final dos trabalhos deste dia recebo de presente da musicista
Consolação, três CDs do coral da CAFOL, um hinário com as letras do repertório, mais
dois hinários. Um com letras de canções do trabalho do coral da CAFOL, e outro que
segundo Consolação eram músicas já escolhidas, de um trabalho de hinário ainda por
finalizar, de organização de letras que foram incluídas, mas que não receberam a
autorização de Dr. Fritz, ainda.
Chego a minha casa e a primeira coisa que faço é colocar um dos CDs para
tocar. Escolho Medicação de Amor. Logo na primeira faixa me surpreendo, ao ouvir
este texto, narrado por uma mulher:
A Casa de Auxílio e Fraternidade Olhos da Luz, conhecida como
casa de todas as pessoas e religiões, inclui neste trabalho uma música
trazida pelo espírito Pedrinho. As portas da Casa de Auxílio e
Fraternidade Olhos da Luz sempre estão abertas para as pessoas de
todas as religiões. Como prova desse respeito, que esta instituição
sempre afirmou ter para com todos os credos, lembrando que Jesus
Cristo disse: “Sobre esta rocha erguei a casa de meu Pai”. É com
respeito que incluímos a música – O Socorrista, trazida para estar nos
volumes 1 e 2 deste trabalho em homenagem a Zé Pelintra, da
religião da umbanda. A partir de agora em todos os trabalhos desta
casa, estaremos demonstrando nosso respeito aos irmãos de outras
casas. Casa de Auxílio e Fraternidade Olhos da Luz (CAFOL,
registro fonográfico do segundo trabalho – Medicação de Amor,
faixa 1 dos volumes I e II. 2015)
50

https://drive.google.com/file/d/0BxUtoWn-7smKUFdYQU52VmM1T3M/view?usp=sharing

***
Nesta narrativa - Um Pedido, relato minha vivência em um dia de outubro
de 2016, onde faço dois pedidos ao espírito Dr. Fritz, incorporado na médium Eliane
Gonçalves. A partir dos meus pedidos e de sua autorização, me inserindo em
sequencia, na função de musicista na equipe vibracional, narro minhas percepções
diante do campo.
Dentro destas perspectivas reflito sobre uma interlocução com a dimensão
espiritual e a distinção da noção de religião e espiritualidade, buscando construir
conceitos a partir das práticas no campo. Essa interlocução com a dimensão
espiritual acontece a partir da dinâmica do campo, na construção de sentidos
identificadas nas músicas, através das letras das canções, da presença de Dr. Fritz, na
explanação de temas ocorridos neste dia, assim como também, nas falas da musicista
Consolação.

3.3 Qual a função da música?!

Treze de Novembro de 2016. É domingo. A dinâmica dos trabalhos acontece


mais veloz do que de costume. Hoje desde que cheguei aqui tenho feito a mesma
pergunta a vários tarefeiros da casa. Qual a função da música que acontece aqui?
Sempre em uma conversa rápida, pergunto para entender como eles veem a música.
Minha colega da equipe vibracional Consolação, enquanto aguardávamos para
voltar ao salão para tocar e cantar, me relata um caso muito especial para ela. É sobre a
música e sua relação com a dimensão espiritual e suas implicações no tratamento. Conta
ela que em um dia de tratamento Dr. Fritz disse que utilizou a música como recurso
anestésico em um paciente. Pergunto se a música serve ali sempre como anestesia, mas
ela não soube me informar. Outros tarefeiros também relatam a importância da música
ali, e apesar de não existir uma recorrência em suas falas, suas narrativas ajudam a
mapear alguns aspectos simbólicos.
Um tarefeiro me diz que já é hora de passarmos no tratamento. Me sento em
uma das cadeiras na lateral do salão e aguardo, pois em dias de tratamento, é comum
após fiéis/pacientes/visitantes passarem pelo Dr. Fritz, todos os tarefeiros também
serem submetidos ao mesmo procedimento. Essa dinâmica acontece primeiro com um
51

passe, seguido com a cirurgia/ tratamento realizada pelo plano espiritual, comandado
pelo Dr. Fritz, podendo ser com ou sem a realização de cortes físicos. Fui encaminhada
até a sala de passe, onde para minha surpresa30, Dr. Fritz já se encontrava ali.
Há poucas pessoas sentadas para receberem o passe e muitos auxiliares do Dr.
Fritz de pé, como também alguns passistas. Conto duas pessoas e eu que receberiam o
passe. Mas não há movimentação dos passistas. Dr. Fritz, através do corpo da médium
Eliane Gonçalves pára em minha frente. Com gestos firmes, quase impositivos e voz
rouca, sem que eu pergunte nada, começa a falar comigo.
- A filha quer saber. Vou te explicar o porquê da melodia no tratamento de cura.
Comparando a fisioterapia, Dr. Fritz me explica que quando há uma lesão em uma
região no corpo, o local fica enrijecido. Para tratá-la poderá ser preciso compressas de
água quente, para que seja amolecido o local. Se comparar a música, a melodia toca o
sentido do ser, possibilitando a espiritualidade atuar. A música para Dr. Fritz seria como
a compressa quente em um local enrijecido, capaz de amolecer o coração. Ele diz:
- A música nos desmaterializa!
Coloca o dedo em minha barriga e aperta, dizendo que o tratamento serve para amolecer
o coração e de certa forma, auxiliar no tratamento.
Não consigo explicar a sensação, mas as lágrimas saltam aos meus olhos,
embaçando minha percepção visual, ao mesmo tempo em que há calma e paz nas
sensações, talvez sentimentos. Saio da sala com os olhos vermelhos e uma necessidade
de transcrever toda essa vivência para o papel.

3.4 Perguntas e respostas

Em Congonhas, no dia 17 de Fevereiro de 2018, após os


fiéis/visitantes/pacientes se submeterem ao tratamento pelo Dr. Fritz, incorporado na
médium Eliane Gonçalves, na CAFOL; fomos avisados que chegara a vez dos tarefeiros
passarem pelo mesmo procedimento.
Logo após concedida a autorização pela responsável da equipe da música,
Consolação; me dirijo até o fundo do salão, onde ainda há uma pequena fila de pessoas
a serem atendidas. Aguardo, enquanto minha atenção se volta à palestra que acontece
ali. Hoje tentarei fazer outra pergunta ao Dr. Fritz.

30
Dr. Fritz na grande maioria das vezes atende na sala de tratamento. Foi a única vez que o vi na cabine
de passes.
52

Em um dia de domingo em campo, a tarefeira Consolação narrou, em uma


conversa informal, que Dr. Fritz havia dito a ela, que utilizara naquele dia, a energia da
música para efeitos anestésicos. Precisava entender melhor isso. Talvez até em termos
quânticos.
Após passar pelo passe, sou encaminhada para a sala de tratamento. Entro. Ali,
percebo movimentações menos ágeis do que de costume. Mesmo com muitas pessoas
trabalhando nesse espaço, não vejo muita correria, hoje. Um tarefeiro da equipe me
direciona até a uma maca, indagando-me se sentia algo. Digo que estou bem, mas que
gostaria de fazer uma pergunta ao Dr. Fritz. De maneira rápida, porém gentil, sou
colocada sentada nessa maca, onde assim, poderei aguardar pelo atendimento. Não se
passa muito tempo e Dr. Fritz se coloca em minha frente. Com sua voz firme e sotaque
alemão, me pergunta:
- “Como a filha tem passado?”
Respondo que bem e que gostaria de perguntar algo. De maneira precisa, ao mesmo
tempo em que se direciona a minha nuca com seu instrumento cirúrgico, responde que
sim, poderei perguntar, mas que eu fosse breve.
- Dr, há benefício da música aqui no atendimento, dentro da sala de tratamento?
E se sim, como acontece?
Neste momento Dr. Fritz, em um tom enérgico diz que não iria responder a essa
pergunta, me orientando a pensar melhor em minhas indagações, pois já havia
respondido a essa pergunta. Como de fato, não formulei a questão de maneira clara,
acabando por chegar em um mesmo questionamento, respondido por ele no ano de
2016.
De maneira pontual diz que há interferência da música tanto aqui, na sala de
tratamento, quanto onde quer que se possa ouvir, pois não há paredes, nem barreiras
para tais fenômenos. Dr. Fritz então se movimenta para o lado esquerdo, e vai para um
próximo atendimento.
Letícia, a responsável pela sala de tratamento, ao mesmo tempo em que me
perguntava se eu havia entendido, me auxiliava a descer da maca e a sair da sala. Eu um
pouco assustada, ainda não me dou conta que fizera a pergunta errada ao Dr Fritz.
Saio da sala e antes de conseguir me mover, a porta se abre novamente e Letícia me
avisa que Dr. Fritz quer falar comigo.
Sou colocada diante do Dr. Fritz. Percebo que apesar da médium ter pouco mais
que a minha altura, um metro e sessenta, a sensação é de estar de frente para um
53

homem de mais de dois metros. Sua narrativa começa, e vejo em minha volta, que a
grande maioria da equipe de tarefeiros daquela sala se coloca em volta para ouvir o Dr.
Segundo o espírito Dr Fritz, a música tem a função de afetar o paciente, de trazer-lhe
sentimento. Quando há uma escuta consciente, esse sentir através da música pode ser
atingido, possibilitando assim penetrar em campos sutis de cada ser.
E assim, e a partir dessa dinâmica, que a equipe espiritual terá uma abertura
neste corpo que se permitiu ouvir, e ser tocado pela vibração, dando permissão para um
tratamento sutil. Corpo este, que antes poderia estar antes da música, como uma
armadura, diante do sentir.
“- É preciso que o sentimento seja atingido!” Diz, dr. Fritz.
Segundo o espírito, a música, assim como a prece, conecta cada ser com a dimensão
espiritual, permitindo tratamento. E esse fenômeno acontece na maioria das religiões,
assim como na ação de uma prece.
Do mesmo modo, Dr. Fritz fazendo um paralelo com a luz diz que:
- A luz é como a voz. Tudo atravessa. Nada a detém. A luz consegue tocar no
instrumento táctil, no olfato. Deus harmoniza através das flores, do vento, do sorriso. A
luz alcança dimensões espirituais. Esta casa alcança a dimensão espiritual. Não tem
fronteira. Não existe fronteira para a luz, para Jesus Cristo.
Do mesmo modo, mesmo para aqueles que não conseguem ouvir através dos
tímpanos, o benefício da ação musical pode chegar através dos outros sentidos, como
pelo tato, ou chegar pelos poros.
No entanto, mesmo para aqueles que apesar de se encontrarem no ambiente, não
estarem conscientes diante da música, exemplifica, não poderão sentir seus efeitos.

***

Nestes dois relatos narro explicações nativas, do espírito de Dr. Fritz, para a
utilização da música na CAFOL, entendendo seus possíveis usos e funções. Tais
diálogos, entre eu e o espírito, leva a análise e reflexões com alguns autores. Dr. Fritz
nos fala que a música tem a função de afetar, permitindo que dimensões outras sejam
acessadas pelo sentimento, possibilitando atingir outro nível de vibração,
consequentemente legitimando uma autorização a outros planos para tratamento.
Vários autores, também postulam sobre a função da música de se atingir o
subjetivo, o sensível. Para Oliveira e Moura (2012:46), “A condição de proporcionar
54

afetos é intrínseca à música. Afetos geram sentimentos e atuam na subjetividade


daquele que é afetado por ela”. Seeger (2008) ao citar Merrian (1964) postula que:
Se a música é usada para efeito de cura, por exemplo, sua função mais
“profunda” pode ser uma função inconsciente, passível de ser descoberta por
observadores do “alívio emocional”. (SEEGER: 2008:249 apud MERRIAN,
1964:221-225).

Referências:

BLACKING, John. Quão musical é o homem? Som humanamente organizado (6-23);


Música na Sociedade e na Cultura , 1977.

BONI, Luis Alberto de. Filosofia Medieval – Textos. 2005.

CAMBRIA, Vincenzo. Etnomusicologia aplicada e “pesquisa ação participativa”:


reflexões teóricas iniciais para uma experiência de pesquisa comunitária no Rio de
Janeiro. V Congresso Latinoamericano da Associação Internacional para o Estudo da
Música Popular. (Anais). Rio de Janeiro, 2004

CAMP, Marc-Antoine. Quem tem autorização para cantar o cântico ritual? Notas sobre
o status legal da música tradicional. Revista USP, n. 77, p. 76-89, março/maio 2008.

CASTRO, Eduardo Viveiro de. O nativo relativo. 2002.

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