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CAPÍTULO Diabetes mellitus - fisiopatologia

1 e classificação
Leandro Arthur Diehl / Rodrigo Antônio Brandão Neto

mentado a prevalência de diabetes tipo 2 entre crianças e


1. Definição adolescentes, o que tem íntima relação com o aumento do
O Diabetes Mellitus (DM) é uma síndrome complexa, número de casos de obesidade nessa faixa etária.
decorrente da deficiência de insulina, associada ou não à
incapacidade da mesma de exercer adequadamente seus Tabela 1 - Prevalência de distúrbios glicêmicos entre brasileiros de
30 a 69 anos de idade, em diferentes estudos
efeitos (resistência insulínica). Sua principal característica é
o metabolismo anormal dos carboidratos (hiperglicemia), Prevalência de intolerân-
Prevalência de
Estudo cia à glicose ou glicemia
embora também estejam presentes distúrbios do metabo- diabetes
de jejum alterada
lismo dos lipídios (dislipidemia) e das proteínas (catabolis-
Estudo mul-
mo muscular).
ticêntrico de 7,8% 7,6%
Como toda síndrome, o diabetes pode ter diversas etio- diabetes (1988)
logias, sendo as principais:
Estudo de
- O Diabetes Mellitus tipo 1 (DM1 – antigamente conhe- Ribeirão Preto, 12,1% 7,7%
cido como “diabetes juvenil” ou “diabetes insulino- SP (2003)
-dependente”); Estudo de
São Carlos, SP 13,5% 5%
- O Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2 – antigamente co- (2009)
nhecido como “diabetes do adulto” ou “diabetes não
insulino-dependente”). A - Diabetes mellitus tipo 2
O DM2, causa mais comum de diabetes (corresponden- Grande parte do aumento na prevalência de diabetes
do a aproximadamente 90% dos casos), está associado, na deve-se à elevação do número de casos de DM2, em parale-
maioria dos pacientes, a outros problemas clínicos como lo à epidemia de obesidade, bem como ao envelhecimento
hipertensão arterial, dislipidemia, excesso de peso e dis- populacional, ao sedentarismo e à urbanização. De fato, as
função endotelial (síndrome metabólica), acarretando um populações com maior proporção de diabéticos, hoje, são
importante aumento do risco de eventos cardiovasculares. aquelas cujo estilo de vida mudou rapidamente de rural e
fisicamente ativo para um estilo sedentário e urbanizado,
levando muitos adultos à obesidade (exemplo: índios Pima
2. Epidemiologia e moradores de Nauru, na Oceania, onde pelo menos 50%
Um grande aumento do número de casos de diabetes dos adultos são portadores de DM2.
tem ocorrido em todo o mundo nas últimas décadas. Em Um problema preocupante em relação ao DM2 é que
1985, existiam 30 milhões de adultos diabéticos no mundo; aproximadamente metade dos pacientes portadores da do-
esse número aumentou para 120 milhões em 1997; 173 mi- ença não sabe do seu diagnóstico, já que muitas vezes o DM
lhões em 2002; 245 milhões em 2010, e a previsão é de 380 é oligossintomático ou mesmo assintomático. Além disso,
milhões por volta do ano 2030. Dois terços desses indivídu- boa parte dos pacientes que sabem ter a doença não faz
os viverão em países em desenvolvimento. o tratamento correto, seja por falta de informação sobre a
Cerca de 11 milhões de brasileiros são diabéticos. Dados doença, seja por falta de condições sociais ou econômicas
sobre a prevalência de diabetes entre adultos brasileiros que garantam o acompanhamento médico. Com isso, au-
podem ser vistos na Tabela 1. A prevalência é ainda maior mentam vertiginosamente os riscos de complicações agu-
nas faixas etárias mais avançadas (Brasil: 17 a 21% dos in- das e crônicas do DM. Estima-se que haja um atraso médio
divíduos entre 60 e 69 anos). No entanto, também tem au- de aproximadamente 5 a 10 anos entre o surgimento da

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ENDOC RI N O LOG I A

hiperglicemia e o diagnóstico de DM na população geral. A C - Complicações


Tabela 2 mostra a frequência de indivíduos que relataram
As principais complicações em longo prazo decorrem
ter diagnóstico prévio de diabetes, em diferentes cidades
de alterações microvasculares e macrovasculares (Tabela
brasileiras, num estudo do Ministério da Saúde (Vigitel, 3). Para ilustrar o notável impacto do problema represen-
2009). Observa-se que a prevalência de diabetes diagnos- tado pelo DM e suas complicações sobre a saúde pública,
ticado, em adultos, foi de apenas 5,8%, praticamente me- podem-se citar alguns dados, apresentados na Tabela 4.
tade da prevalência estimada em estudos que dosaram a
glicemia de adultos assintomáticos, o que comprova a gran- Tabela 3 - Classificação das complicações agudas e crônicas do DM
de frequência de casos de diabetes não diagnosticado em Categoria Complicações
nosso meio. - Cetoacidose diabética (CAD);
Agudas - Estado Hiperosmolar Hiperglicêmico (EHH);
Tabela 2 - Prevalência de diagnóstico prévio relatado de DM e de
- Hipoglicemia.
obesidade (IMC >30kg/m2) entre adultos (≥18 anos) residentes em
diferentes cidades do Brasil - Doença Arterial Coronariana (DAC);
Prevalência de Prevalência de - Acidente Vascular Cerebral isquêmico (AVCi);
Cidade Crônicas macro-
DM (%) obesidade (%) - Insuficiência arterial periférica (IAPC);
vasculares
São Paulo 6,9 13,1 - Doença aterosclerótica da aorta e seus ra-
Salvador 6,5 15,2 mos (carótidas, artérias renais etc.).
Rio de Janeiro 6,4 17,7 - Nefropatia diabética;
Crônicas micro-
Natal 6,3 13,3 - Retinopatia diabética e edema macular;
vasculares
Recife 6,2 13,8 - Neuropatia diabética.
Maceió 5,9 13,1
Tabela 4 - Impacto do DM na saúde pública
Porto Alegre 5,8 14,3
DM é a 6ª maior causa de internação hos-
Curitiba 5,7 12,9
pitalar como diagnóstico primário e está
Campo Grande 5,4 17,3
presente em 30 a 50% de outras causas pri-
Fortaleza 5,0 15,3 Internação hos-
márias de internação, tais como cardiopatia
Belo Horizonte 4,7 11,2 pitalar
isquêmica, insuficiência cardíaca, colecisto-
Macapá 4,3 15,1 patias, acidente vascular cerebral e hiper-
Manaus 3,9 15,0 tensão arterial.
Brasília 3,6 9,3 Síndrome coro- Dos pacientes que se internam em unidades
Rio Branco 3,6 17,1 nariana aguda coronarianas, 30% são portadores de DM.
Total 5,8 13,9 Amputações de
DM é a principal causa de amputações não
Fonte: Brasil, Ministério da Saúde. Vigitel, 2009. membros infe-
traumáticas de membros inferiores.
riores
B - Diabetes mellitus tipo 1 DM também é a principal causa de cegueira
Cegueira
adquirida em adultos.
Além do aumento do número de casos de DM2, as úl-
timas décadas também têm presenciado um crescimento Nos países desenvolvidos, DM é a principal
Doença renal em
de 3% ao ano na quantidade de casos de DM1 em pes- causa de doença renal em estágio terminal,
estágio terminal
soas com menos de 15 anos (especialmente em crianças respondendo por cerca de 40 a 50% dos casos.
com menos de 5 anos). Curiosamente, ao contrário do O DM é a 3ª maior causa de mortalidade
DM2, que vem se tornando cada vez mais comum em Mortalidade no Brasil, segundo dados do Ministério da
todo o mundo, a incidência de DM1 é muito heterogênea Saúde divulgados em 2010.
quando analisada em diferentes regiões do planeta. As
maiores taxas de incidência do DM1 são observadas em 3. Classificação e etiologia
países de clima frio e de população caucasiana (exemplo: A classificação do DM baseia-se, atualmente, na sua
Finlândia, com 38 casos por 100.000 crianças/ano), e as etiologia, não sendo mais recomendado o uso dos ter-
menores, em países temperados ou tropicais de popula- mos “DM insulino-dependente (IDDM)” e “DM não in-
ção oriental ou negra (exemplos: China, Coreia, com 0,5 sulino-dependente (NIDDM)”. A Sociedade Brasileira de
caso por 100.000 crianças/ano). No Brasil, a incidência de Diabetes (SBD), em concordância com a American Diabetes
DM1 é intermediária: em torno de 7 casos por 100.000 Association (ADA), classifica, hoje, o diabetes em 4 grandes
crianças/ano. grupos (Tabela 5):

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Tabela 5 - Tipos de DM, segundo a American Diabetes Association Tabela 6 - Autoanticorpos contra antígenos das células beta-pan-
(ADA) creáticas, de uso na prática clínica
- DM1; Auto- Alvo (antíge- Frequência
Comentários
- DM2; anticorpo no) no DM1
- DG; É o mais sensível em
adultos e o mais uti-
- Outros tipos específicos de diabetes.
lizado clinicamente.

ENDOCRINOLOGIA
Mantém-se elevado
A - Diabetes mellitus tipo 1 Anti-GAD, Descarboxilase 60 a 90%
por vários anos após
ou anti- do ácido glutâ- ao diagnós-
O DM1 é causado pela destruição das células beta- o início do DM1.
-GAD65 mico tico
Também pode estar
-pancreáticas (responsáveis pela secreção de insulina), com
elevado em outras
consequente redução da capacidade secretora de insulina doenças (ex.: stiff-man
e deficiência severa (em geral, absoluta) desse hormônio. syndrome).
Além disso, responde por 5 a 10% dos casos de DM. Foi o 1º a ser utiliza-
Os pacientes são geralmente magros, embora a presen- do e exige amostras
ça de obesidade não descarte a possibilidade de DM1, e Vários an- 70 a 90%
de pâncreas humano
apresentam tendência a desenvolver cetoacidose. Anti-ilhota, tígenos de ao diagnós-
para sua detecção,
ou anti-ICA membrana da tico (em
A hiperglicemia costuma ter início abrupto e atingir níveis por isso está sendo
célula beta crianças)
elevados (>300mg/dL). A forma rapidamente progressiva, cada vez menos
com instalação dos sintomas em poucos dias, quadro clínico utilizado.
exuberante e rápida evolução para cetoacidose, é comumen- É o 2º mais preva-
te observada em crianças e adolescentes (embora também lente em adultos,
Tirosina-
possa ocorrer em adultos). Em adultos, é mais comumente 50 a 70% e o mais específico
Anti-IA2, ou fosfatase
observada uma forma com progressão mais lenta, em que a ao diagnós- para DM1A. Seus
antiICA512 (antígeno 2 do
tico títulos caem poucos
instalação da hiperglicemia e o desenvolvimento dos sinto- insulinoma)
anos após o início do
mas são mais insidiosos (algumas semanas). DM1.
Também é descrita, em adultos, uma forma de DM1
90% ao É mais comum em
de instalação gradual, na qual o paciente pode cursar com diagnóstico crianças ≤5 anos, e
hiperglicemia moderada, oligossintomática, inclusive com Anti-insulina Insulina
em crianças incomum em ado-
boa resposta a hipoglicemiantes orais durante vários me- <5 anos lescentes e adultos.
ses/anos, devido à perda mais lenta da massa de células Anticarboxi- Carboxi-
beta. Essa forma lentamente progressiva, com quadro clíni- peptidase H peptidase H - -
co inicial bastante semelhante ao DM2, é conhecida como Transportador
diabetes autoimune latente do adulto (LADA). Responde de zinco das
por, aproximadamente, 15% dos casos novos de DM em Anti-Znt8
células beta - -
adultos, e sua presença é sugerida pela manifestação de (Znt8)
altos títulos de autoanticorpos contra antígenos das célu-
las beta. Entretanto, com o passar do tempo, todos os pa- A presença de 1 ou mais desses autoanticorpos, em ní-
cientes eventualmente precisarão de insulina exógena para veis aumentados, num indivíduo diabético, define o DM1
manter a normoglicemia e prevenir a cetoacidose. autoimune, ou diabetes tipo 1A (imunomediado). O DM1A
O diagnóstico de DM1 é sugerido pelo início abrupto tem uma forte ligação com o sistema HLA (principalmente,
acometendo, principalmente, crianças e jovens. Um dado com o gene DQB) e só ocorre em portadores de HLA DR3 e/
laboratorial que pode ajudar a confirmar esse diagnóstico é ou DR4. Alguns alelos de HLA de alto risco para DM1A fo-
a presença de insulinopenia severa, indicada por valores de ram identificados, como o DQA1*0301 e o DQB1*0302. Da
peptídio C <0,7ng/mL em jejum. mesma forma, identificou-se o DQB1*0602 como um alelo
O DM1, em cerca de 90% dos casos, é de etiologia autoi- protetor contra o desenvolvimento de DM1A.
mune, com surgimento de resposta imune celular anormal Muitas vezes, os autoanticorpos estão presentes por vá-
contra antígenos das células beta, infiltração de linfócitos rios anos (até mesmo por 1 década) antes do surgimento de
T no pâncreas e destruição citotóxica das células beta nas hiperglicemia clínica. Além disso, familiares de 1º grau de
ilhotas de Langerhans (parte endócrina do pâncreas, que pacientes com DM1 apresentam risco aumentado de DM1,
corresponde a 1% da massa do órgão). A autoimunidade, especialmente se possuem autoanticorpos contra antíge-
nesses casos, pode ser confirmada em laboratório pela nos das células beta. Quanto maior o número de autoan-
presença de autoanticorpos dirigidos contra antígenos das ticorpos presentes, maior o risco de DM1. Na presença de
células beta (Tabela 6). Pelo menos 1 desses autoanticor- um autoanticorpo elevado, o risco de DM1 é em torno de
pos está presente em 80 a 95% dos pacientes com DM1 no 10%; com 3 ou mais autoanticorpos, o risco de DM1 passa
momento do diagnóstico. a ser >80%.

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Em alguns pacientes, entretanto (especialmente asiáti- pelo DM2, e sim a interação entre diversos genes e regiões
cos e afrodescendentes), pode ocorrer o DM1 na ausência cromossômicas, conferindo maior ou menor suscetibilidade
de autoanticorpos e sem evidência de doença autoimune. à doença, dos quais pelo menos 20 já foram identificados.
Nessa forma de diabetes, a história natural é de uma doen- Os fatores ambientais associados ao DM2, por sua vez,
ça progressiva, com hiperglicemia acentuada e necessidade já foram bem estudados e incluem envelhecimento, grande
de insulina para prevenção de cetose. Tais indivíduos são ingestão calórica, obesidade (principalmente quando o acú-
classificados como DM tipo 1B, ou DM1 idiopático, e res- mulo de gordura se dá na região abdominal), sedentarismo
pondem por cerca de 10% dos casos de DM1. e baixo peso ao nascer.
A Tabela 7 apresenta as principais características que
B - Diabetes mellitus tipo 2 distinguem o DM1 do DM2.
O DM2 é responsável pela maioria dos casos de DM (90 Tabela 7 - Características do DM1 e do DM2
a 95% dos casos). DM1 DM2
A fisiopatologia do DM2 envolve a resistência tecidu-
Predomínio em <20 anos. Predomínio em >40 anos.
al à ação da insulina (principalmente no fígado, no tecido
musculoesquelético e no tecido adiposo) e graus variados Resistência à ação da insulina
Deficiência absoluta de insuli-
associada a graus variados
de deficiência de secreção de insulina. Geralmente, o pa- na (na maioria dos casos, por
de deficiência de secreção da
ciente apresenta resistência à insulina por anos ou décadas destruição autoimune).
insulina.
antes de começar a manifestar glicemia alterada. Nessa
Indivíduos geralmente obesos,
fase, a única alteração laboratorial pode ser a hiperinsuli- Indivíduos magros.
sedentários, hipertensos.
nemia compensatória (associada ou não ao aumento dos
Início subagudo, com sintomas
ácidos graxos circulantes). De fato, a hiperglicemia só surge
de hiperglicemia acentuada Início insidioso, muitas vezes
quando, além da resistência insulínica, o paciente passa a (poliúria, polidipsia, polifagia, assintomático.
apresentar também uma deficiência (relativa ou absoluta) perda de peso).
de secreção de insulina, tornando-o incapaz de compensar
Descompensação típica: esta-
a resistência à insulina. Tendência à cetoacidose.
do hiperosmolar.
Pacientes com DM2 tipicamente apresentam um con-
Herança associada ao HLA. Herança poligênica.
junto de alterações metabólicas, não restritas apenas ao
metabolismo dos carboidratos, mas também envolvendo
C - Diabetes gestacional
o metabolismo das lipoproteínas, fatores inflamatórios e
regulação pressórica. O início é, em geral, insidioso e as- O Diabetes Gestacional (DG) compreende qualquer
sintomático por longos períodos. Cerca de 60 a 90% dos anormalidade da tolerância à glicose, de magnitude variá-
pacientes apresentam obesidade ou acúmulo de gordu- vel, que seja detectada pela 1ª vez durante a gravidez, po-
ra visceral, e ao menos 80% apresentam o diagnóstico de dendo ou não persistir após o parto.
Síndrome Metabólica (SM). História familiar positiva para Inclui, portanto, desde os casos de DG verdadeiro (ou
DM é encontrada em pelo menos 50% dos pacientes com seja, uma anormalidade do metabolismo dos carboidratos
DM2. Diabéticos tipo 2 não apresentam tendência à cetoa- associada à resistência insulínica própria da gestação, acar-
cidose, como os diabéticos tipo 1, mas podem desenvolver retada pelos grandes níveis de hormônios contrainsulínicos
essa complicação em situações de grande estresse (inter- – lactogênio placentário, progesterona etc. – e que costuma
corrências médicas graves: choque séptico, infarto agudo ter fim com o parto) até os casos de DM preexistente, que
do miocárdio, politraumatismo etc.). não havia sido previamente diagnosticado (geralmente, ca-
O diagnóstico de DM2, na maioria dos casos, é feito a sos oligossintomáticos ou assintomáticos de DM2) e que é
partir dos 40 anos (85 a 90% do total de casos), embora encontrado incidentalmente nos exames de rotina realiza-
esteja ocorrendo com cada vez mais frequência em pesso- dos durante o pré-natal (diabetes pré-gestacional).
as mais jovens (especialmente obesos). O risco de DM2 é O diagnóstico de DG inclui, também, desde alterações
determinado por uma combinação de fatores genéticos e limítrofes da glicemia (as quais, fora da gestação, seriam
ambientais. rotuladas apenas como pré-diabetes: glicemia de jejum al-
Os fatores genéticos foram comprovados por estudos terada e tolerância diminuída à glicose) até hiperglicemias
que mostraram que a concordância para DM em pares de severas compatíveis com o diabetes propriamente dito.
gêmeos monozigóticos foi de 90 a 100% (quando 1 dos gê- O DG é encontrado em cerca de 1 a 14% das gestações,
meos apresentava DM2), em comparação a cerca de 40 a sendo mais comum em gestantes de maior idade (>25 anos),
50% (quando 1 dos gêmeos apresentava DM1). Além disso, com excesso de peso, história familiar de DM, baixa estatura
familiares de 1º grau de pacientes com DM2 frequentemen- (<1,50m) e/ou pertencendo a minorias étnicas de alto risco
te apresentam resistência à insulina e hiperinsulinemia, para DM. É importante rastrear e tratar precocemente todos
mesmo com peso e glicemia normais. A genética do DM2 os casos de DG, mesmo que cursem com hiperglicemia leve
parece ser complexa. Não há apenas 1 gene responsável e sem sintomas, em razão do impacto que a glicemia alterada

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representa para a mãe e para o feto (especialmente, macros- Outras síndromes genéticas associadas ao DM
somia fetal e aumento da mortalidade perinatal). Mulheres - Síndrome de Down;
com DG apresentam risco elevado de desenvolver uma nova
- Síndrome de Turner;
DG em gestação subsequente (até 70%) e de desenvolver DM2
em longo prazo (40% nos próximos 5 anos, de acordo com al- - Síndrome de Klinefelter;
guns estudos), o que justifica o acompanhamento e o acon- - Ataxia de Friedreich;
selhamento dessas pacientes, visando à prevenção do DM2. - Doença de Huntington;

ENDOCRINOLOGIA
- Síndrome de Lawrence-Moon-Biedl;
D - Outros tipos de diabetes mellitus - Distrofia miotônica;
Esta categoria engloba uma grande gama de patologias - Síndrome de Prader-Willi;
distintas que, juntas, correspondem a cerca de 1 a 2% dos - Síndrome de Wolfram;
casos de DM na população. Dentre as principais etiologias - Mutações no fator de transcrição nuclear PPAR gama.
específicas de DM, podem-se citar o diabetes monogêni-
Formas incomuns de DM imunomediado
co (tipo MODY – Maturity-Onset Diabetes of the Young), o
- Anticorpos anti-insulina;
diabetes mitocondrial e o diabetes secundário a doenças
pancreáticas (pancreatite crônica) ou ao uso de medicações - Anticorpos antirreceptor de insulina (resistência à insulina tipo B);
tóxicas para o pâncreas (pentamidina, vácor) ou drogas que - Síndrome do homem rígido (stiff-man syndrome; anticorpos
interferem na ação (glicocorticoides, hormônio de cresci- anti-GAD).
mento, niacina, clozapina, olanzapina, inibidores de protea- DM associado a outras doenças endócrinas
se) ou na secreção da insulina (diazóxido, beta-bloqueado- - Síndrome de Cushing;
res, tiazídicos, fenitoína, octreotide). - Feocromocitoma;
O diabetes tipo MODY é um diabetes monogênico, com
- Hipertireoidismo;
padrão de herança autossômica dominante, que pode va-
riar desde quadros de hiperglicemia muito leve e sem ne- - Acromegalia;
cessidade de tratamento (MODY 2) até quadros mais seve- - Hiperaldosteronismo;
ros, de difícil tratamento (MODY 1, MODY 3). Os tipos mais - Glucagonoma;
comuns são o MODY 3 e o MODY 2. - Somatostatinoma.
O diabetes mitocondrial é transmitido da mãe para a Doenças do pâncreas exócrino
prole, e deve-se suspeitar dele quando há diabetes de início - Pancreatite crônica;
precoce e surdez. A Tabela 8 apresenta as principais causas
- Pancreatectomia (trauma/neoplasia);
específicas do DM.
- Pancreatite fibrocalculosa;
Tabela 8 - Etiologias específicas de DM - Hemocromatose;
Defeitos genéticos da célula beta - Fibrose cística.
- MODY 1 – Fator hepatocítico nuclear 4-alfa (HNF4-alfa, cro- DM induzido por drogas
mossomo 20);
- Glicocorticoides;
- MODY 2 – Glicoquinase (cromossomo 7); - Ácido nicotínico;
- MODY 3 – Fator hepatocítico nuclear 1-alfa (HNF1-alfa, cro- - Agonistas beta-adrenérgicos;
mossomo 12);
- Tiazídicos;
- MODY 4 – Fator promotor da insulina 1 (IPF1, cromossomo 13);
- Pentamidina;
- MODY 5 – Fator hepatocítico nuclear 3-beta (HNF3-beta, cro-
- Vácor (raticida);
mossomo 17);
- Diazóxido;
- MODY 6 – NeuroD1/beta2 (cromossomo 2);
- Fenitoína;
- Diabetes mitocondrial (mutação A3243G no DNA mitocon-
drial, síndrome MELAS); - Interferon alfa;
- Mutações do KCNJ11 (subunidade Kir6.2 dos canais de potás- - Clozapina;
sio das células beta); - Olanzapina;
- Defeitos na conversão de pró-insulina em insulina; - Inibidores de protease.
- Mutações no gene da insulina. Infecções
Defeitos genéticos na ação da insulina - Rubéola congênita;
- Mutações do receptor de insulina (resistência à insulina tipo A); - Citomegalovírus;
- Leprechaunismo; - Coxsackie tipo B;
- Diabetes lipoatrófica; - Caxumba;
- Síndrome de Rabson-Mendenhall. - Adenovírus.

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ENDOC RI N O LOG I A

Outro tipo monogênico de diabetes, de início na vida ne-


onatal, é a mutação do gene KCNJ11, que codifica os canais
de potássio Kir6.2, os quais regulam a secreção de insulina
pela célula beta. Esse tipo de diabetes pode ser tratado com
sulfonilureias em altas doses, razão pela qual é importante
sua identificação.
Em pacientes sem história familiar de DM ou sem evi-
dência de resistência insulínica (obesidade), deve-se excluir
hemocromatose por meio da dosagem de ferro sérico, fer-
ritina e capacidade de ligação do ferro (como exames de
rastreamento inicial); se alterados, realizar biópsia hepática
ou estudo genético para sua confirmação.
Em pacientes com início do diabetes após os 60 anos,
com necessidade do uso de insulina precocemente, reco-
menda-se investigar carcinoma de pâncreas por meio de
exames de imagem, como ultrassonografia ou, idealmente,
tomografia computadorizada de pâncreas. Em pacientes
etilistas, magros e com diarreia crônica, deve-se considerar,
ainda, a pancreatite crônica.

4. Resumo
Quadro-resumo
- O DM é uma síndrome caracterizada por alterações do meta-
bolismo dos carboidratos, lipídios e proteínas, que se associa a
risco elevado de complicações crônicas macrovasculares (coro-
nariopatia, AVC, insuficiência arterial periférica) e microvascu-
lares (nefropatia, retinopatia, neuropatia), acarretando grande
morbimortalidade;
- O DM pode ser classificado em 4 grandes grupos: DM tipo 1, DM
tipo 2, DM gestacional e outros tipos de DM (DM secundário);
- O DM2 é causado por uma combinação de fatores genéticos
(risco familiar) e ambientais (obesidade central). Sua fisiopato-
logia envolve resistência à insulina + graus variados de defici-
ência de insulina;
- O DM1 caracteriza-se por deficiência severa de insulina, com ne-
cessidade de reposição de insulina exógena. Noventa por cento
dos casos se devem à autoimunidade contra células beta-pan-
creáticas (DM tipo 1A), enquanto 10% ocorrem na ausência de
evidências de autoimunidade (DM tipo 1B, ou idiopático);
- Outros tipos somam 1 a 2% dos casos de DM. As principais cau-
sas de DM secundário são DM monogênico (MODY, DM mitocon-
drial), doenças pancreáticas (pancreatite crônica), uso de medica-
mentos (corticoides, niacina, olanzapina, inibidores de protease) e
endocrinopatias (Cushing, acromegalia, hipertireoidismo);
- O DM é a maior causa de cegueira em adultos, maior causa de
amputação não traumática de membros inferiores, 6ª maior
causa de internação no Brasil e uma das maiores causas de do-
ença renal em estágio terminal, além de representar a 3ª maior
causa de mortalidade em nosso país;
- Nas últimas décadas, tem ocorrido um grande aumento na
prevalência de DM2 (associado à obesidade, sedentarismo,
dieta inadequada e envelhecimento populacional). Além disso,
observou-se um aumento de 3% ao ano na incidência de DM1,
especialmente em crianças com <5 anos vivendo em países dis-
tantes da linha do Equador.

6
CAPÍTULO

2 Diabetes mellitus - diagnóstico


Leandro Arthur Diehl / Rodrigo Antônio Brandão Neto

acima de 200mg/dL constituem um fator de risco impor-


1. Testes empregados tante para o desenvolvimento de eventos cardiovasculares,
1 - Glicemia de jejum: medida da glicose no soro ou no mesmo em indivíduos com glicose plasmática em jejum
plasma, após jejum de 8 a 12 horas. dentro dos limites normais (<100mg/dL). Essa situação é
2 - Teste padronizado de tolerância à glicose (GTT): comum em pacientes com mais de 60 anos.
após a administração VO de glicose anidra (na dose de É importante a indicação de GTT em todos os pacientes
1,75mg/kg, ou 75g para adultos) ou de dose equivalen- com glicemia de jejum alterada (entre 100 e 125mg/dL),
te de dextrose (82,5g), diluída em 250 a 300mL de água, uma vez que vários estudos mostram que ao menos 25%
ingerida em até 5 minutos, sendo coletado sangue para dos indivíduos com glicemia de jejum nessa faixa já são dia-
mensuração da glicemia nos tempos 0 e 120 minutos após béticos (diagnosticados apenas por meio do GTT). Portanto,
a ingestão. o GTT é mais sensível (e discretamente mais específico)
3 - Glicemia casual: medida de glicose no sangue venoso, para o diagnóstico de DM, especialmente em pacientes de
colhida a qualquer momento do dia, independentemente do alto risco de desenvolver diabetes.
paciente ter se alimentado ou não. É aceita como método
diagnóstico de Diabetes Mellitus (DM) apenas em indivídu- Tabela 1 - Situações em que está indicada a realização de teste oral
os com sintomas característicos (perda de peso involuntária, de tolerância à glicose (GTT)
polidipsia, poliúria etc.). - Todos os pacientes com glicemia de jejum alterada (entre 100 e
125mg/dL);
Pela sua praticidade e baixo custo, a medida da glicose - Indivíduos com >45 anos de idade em investigação de síndrome
plasmática em jejum é o procedimento mais utilizado na re- metabólica;
alização do diagnóstico de DM.
- Indivíduos com 2 ou mais fatores de risco para DM (Tabela 2);
O uso de tiras reagentes de glicemia capilar ou glicosúria
não é adequado para o diagnóstico do DM, assim como a - Puérperas que apresentaram diabetes gestacional (testar nova-
mente com 6 a 12 semanas de puerpério).
glicemia venosa pós-prandial não tem utilidade para esse
fim.
Tabela 2 - Fatores de risco para DM
Observação: a partir de janeiro de 2010, a Associação
Americana de Diabetes (ADA) passou a recomendar tam- - Sedentarismo;
bém a hemoglobina glicada (A1c) como método diagnóstico - Familiar de 1º grau com DM;
adicional para DM, bastando, para definição do diagnósti- - Grupos étnicos ou raciais de alto risco;
co, a presença de 2 medidas de A1c ≥6,5%. Em nosso meio, - Hipertensão arterial (PA ≥140x90mmHg);
entretanto, a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) ainda - HDL <35mg/dL ou triglicérides >250mg/dL;
não recomenda a adoção da A1c como método diagnóstico
- Diabetes gestacional prévio ou história de ter dado à luz recém-
de DM.
-nascido com peso >4kg;
A - Quando realizar o GTT? - História de abortos de repetição ou mortalidade perinatal (pos-
sivelmente associada com diabetes gestacional não diagnosti-
O teste oral de tolerância à glicose (GTT) deve ser reali- cada);
zado em pacientes com glicemia de jejum alterada (ou seja, - Intolerância à glicose ou glicemia de jejum alterada prévia;
entre 100 e 125mg/dL), e também naqueles pacientes com
- Síndrome dos ovários policísticos;
alto risco de diabetes (Tabelas 1 e 2).
Valores de glicose plasmática 2h após 75g de glicose oral - Outras condições associadas à resistência insulínica (exemplo:
obesidade severa com acantose nigricans);
acima dos limites normais de 140mg/dL e, particularmente,

7
ENDOC RI N O LOG I A

- História de doença cardiovascular; A A1c tem uma ótima correlação com os valores mé-
- Uso de medicações com potencial de elevar a glicemia (glico- dios da glicemia nos últimos 60 a 90 dias. Até 2008, a ADA
corticoides etc.). e a SBD adotavam, para correspondência entre a A1c e a
glicemia média, dados do DCCT, publicados em 1993. No
B - Considerações sobre a hemoglobina glicada entanto, o DCCT não tinha o objetivo específico de avaliar
(A1c) essa correlação. Em 2008, foi publicado um importante es-
tudo, o ADAG (A1c-Derived Average Glucose), especifica-
No decorrer dos anos ou das décadas, a hiperglicemia mente desenhado para avaliar a correlação entre a A1c e a
prolongada promove o desenvolvimento de lesões orgâ- glicemia média, que mostrou que a glicemia estimada, para
nicas extensas por meio de vários mecanismos diferentes, cada nível de A1c, era, na verdade, um pouco mais baixa do
que incluem: a glicação de proteínas, a hiperosmolaridade, que os valores sugeridos pelo DCCT. Assim, a partir de 2008,
o aumento do estresse oxidativo e o aumento dos níveis de as sociedades de diabetes reformularam a glicemia média
sorbitol intracelular. correspondente a cada nível de A1c, devendo-se adotar,
Existem vários métodos para avaliar o nível de glicemia atualmente, os valores definidos pelo ADAG.
apresentado pelo indivíduo e, consequentemente, seu risco A seguir, a Tabela 3 demonstra a relação entre níveis de
de complicações do DM. A1c e glicemia média.
A automonitoração da glicose sanguínea fornece infor-
mação útil para o controle diário do DM. Entretanto, esses Tabela 3 - Correspondência entre a A1c (%) e a glicemia média
testes não são capazes de prover ao paciente e à equipe de estimada nos últimos 2 a 3 meses, de acordo o DCCT e o ADAG
atendimento de saúde uma avaliação quantitativa e confiá- Glicemia correspondente ao nível da média
vel da glicemia durante um período prolongado, mostrando Nível de de 24 horas (mg/dL)
apenas a situação da glicemia no momento da medida. A1c (%)
Já a hemoglobina glicada (HbA1c, ou simplesmente A1c) DCCT, 1993 ADAG, 2008*
é formada por uma reação irreversível entre a glicose san- 5 100 97
guínea e a hemoglobina, como resultado do processo de 6 135 126
glicação, que liga a glicose sanguínea a muitas proteínas
6,5 152 140
do organismo. Esse é o mesmo processo de glicação rela-
7 170 154
cionado ao desenvolvimento das complicações crônicas.
A dosagem de A1c mostrou-se capaz de avaliar o risco de 8 205 183
desenvolvimento de muitas das complicações crônicas do 9 240 212
DM, do mesmo modo que as determinações de colesterol
10 275 240
podem predizer o risco de desenvolvimento de doença car-
diovascular. 11 310 269
Tradicionalmente, a A1c tem sido considerada represen- 12 345 298
tativa da média ponderada global das glicemias médias di-
* Valores recomendados pela SBD (2009) e pela ADA (2011).
árias (incluindo glicemias de jejum e pós-prandial) durante
os últimos 2 a 3 meses. Na verdade, a glicação da hemoglo-
Outra mudança nas diretrizes da ADA e da SBD com
bina ocorre ao longo de todo o período de vida do glóbulo
relação às medidas de A1c, também decorrente dos resul-
vermelho, que é de aproximadamente 120 dias.
tados do ADAG, é a recomendação de que os laboratórios
Porém, dentro desse período, a glicemia recente é a
clínicos passem a emitir laudos de exames contendo tanto
que mais influencia o valor da A1c. De fato, os modelos te-
a unidade habitual da A1c, em porcentagem (por exemplo,
óricos e os estudos clínicos sugerem que um paciente em
7%), como o valor de glicemia média estimada (estima-
controle estável apresentará 50% de sua A1c formada no
ted Average Glucose – eAG) correspondente (por exem-
mês precedente ao exame, 25% no mês anterior a esse e os
plo, 154mg/dL). Essa medida tem por objetivo facilitar o
25% remanescentes no 3º e/ou no 4º mês antes do exame
entendimento do significado da A1c, por médicos e pelos
(Figura 1).
próprios pacientes diabéticos, ressaltando sua importância
como ferramenta indispensável para a obtenção do contro-
le glicêmico adequado.
A glicemia média estimada (eAG) pode ser calculada a
partir dos valores da A1c, usando a fórmula a seguir ou cal-
culadoras específicas, como a disponível no site da ADA, no
endereço http://professional.diabetes.org/glucosecalcu-
lator.aspx.
Figura 1 - Importância do intervalo de tempo prévio para a forma-
eAG (em mg/dL) = 28,7 x A1C - 46,7
ção da A1c. Fonte: SBD, 2009

8
DIABETES MELLITUS - DIAGNÓSTICO

A hemoglobina glicada deve ser medida rotineiramente A importância dessas alterações discretas da glicemia
em todos os pacientes com diagnóstico confirmado de DM, reside no risco aumentado que tanto os pacientes com GJA
para documentar o grau de controle glicêmico. Em pacien- como aqueles com TDG apresentam de progredir para DM
tes com bom controle, deve ser dosada ao menos 2 vezes franco (4 a 12% ao ano) e de apresentar doença cardiovas-
por ano. Em pacientes instáveis ou em ajuste do tratamen- cular (principalmente, aqueles com TDG). Segundo alguns
to, deve ser dosada mais frequentemente (a cada 3 meses). estudos, há maior risco de os pacientes com TDG evoluí-
Vários fatores podem interferir no resultado do exame rem para diabetes, em comparação com os portadores de

ENDOCRINOLOGIA
de hemoglobina glicada (A1c). Os mais importantes estão GJA. Entretanto, esses estudos sinalizaram que, em ambos
descritos na Tabela 4, a seguir: os casos, existem alterações precoces no metabolismo dos
carboidratos que podem progredir para diabetes nos anos
Tabela 4 - Fatores que podem interferir na leitura da hemoglobina seguintes. Por isso, tais estados (GJA e TDG) podem ser cha-
glicada (A1c) mados de pré-diabetes.
Fatores causando redução da A1c A SBD, ao contrário da ADA, classifica as alterações in-
- Anemias hemolíticas; termediárias tanto da GJA como da glicemia pós-sobrecarga
- Hemoglobinopatias*; TDG sob uma denominação comum de “tolerância à glicose
- Comprometimento da medula óssea por radiação, fibrose, to-
diminuída”.
xinas, tumores; Dos pacientes com pré-diabetes, aproximadamente 1/3
apresenta apenas GJA; 1/3 apresenta apenas TDG e 1/3
- Deficiência de ácido fólico, vitaminas B6 e B12;
apresenta ambas as alterações.
- Hipertireoidismo;
Os critérios diagnósticos para diabetes, TDG e GJA estão
- Queimaduras graves; expostos na Tabela 5.
- Leucemia, mieloma múltiplo;
Tabela 5 - Valores de glicose plasmática (mg/dL) para diagnóstico
- Anemia da insuficiência renal;
de DM e pré-diabetes (de acordo com a ADA, 2011)
- Intoxicação por chumbo;
2h após 75g
- Excesso de vitamina C e E. Categoria Jejum* Casual **
de glicose
Fatores causando elevação da A1c Glicemia
- Presença de hemoglobina carbamilada, na insuficiência renal; normal
<100 <140 -
- Deficiência de ferro; TDG <126 140 a 199 -
- Presença de hemoglobina acetilada, devido ao uso de doses Glicemia de
elevadas de salicilatos; jejum alte- 100 a 125 <140 -
- Poliglobulia; rada
- Hemoglobinopatias*. ≥200 com sintomas
DM ≥126 ≥200
* A influência das hemoglobinopatias depende do método labo- clássicos***
ratorial utilizado para dosagem da A1c. * O jejum é definido como a falta de ingestão calórica por, no
mínimo, 8 horas.
** Glicemia plasmática casual é definida como aquela realizada
2. Diagnóstico de diabetes mellitus e ou- a qualquer hora do dia, sem observar o intervalo desde a última
tros estados de tolerância à glicose refeição.
*** Os sintomas clássicos de DM incluem poliúria, polidipsia e
A evolução da normoglicemia para o DM2 ocorre ao lon- perda inexplicável de peso.
go de um período de tempo variável, durante o qual o in- Nota: o diagnóstico de DM deve sempre ser confirmado pela re-
divíduo frequentemente passa por estágios intermediários petição do teste em outro dia, a menos que haja hiperglicemia
de disglicemia. Essas alterações intermediárias da glicose inequívoca com descompensação metabólica aguda ou sintomas
plasmática, que ainda não preenchem os critérios diagnós- óbvios de DM. Duas medidas ≥126mg/dL em dias distintos con-
ticos de diabetes, podem ser classificadas, de acordo com firmam o diagnóstico de DM.
a American Diabetes Association (ADA), como Glicemia de
Jejum Alterada (GJA), quando a alteração ocorre no jejum, Observação: a partir de janeiro de 2010, a American
ou como Tolerância Diminuída à Glicose (TDG), quando a Diabetes Association (ADA) adotou a hemoglobina glicada
anormalidade glicêmica ocorre após uma sobrecarga de (A1c) como um método diagnóstico para DM e pré-diabe-
carboidratos. Enquanto a GJA decorre da secreção aumen- tes. Pelas últimas diretrizes da ADA, pode-se considerar um
tada de glicose pelo fígado durante o jejum (refletindo pos- indivíduo diabético quando o mesmo apresentar pelo me-
sivelmente resistência hepática à insulina), a TDG provavel- nos 2 medidas de A1c ≥6,5%, e pré-diabético quando apre-
mente sinaliza um distúrbio precoce da secreção de insulina sentar A1c entre 5,7 e 6,4%. Em nosso meio, no entanto, a
pela célula beta (perda da 1ª fase de secreção de insulina, SBD ainda não recomenda a adoção da A1c como método
em resposta a uma sobrecarga glicêmica). diagnóstico para DM ou pré-diabetes.

9
ENDOC RI N O LOG I A

3. Rastreamento (screening) populacional - Letargia, cansaço, desânimo;

Medidas de prevenção do DM são provavelmente efica- - Infecções de repetição (dermatites, balanopostites, vulvovaginites);
zes em reduzir o impacto desfavorável sobre a morbimorta- - Incontinência urinária, nictúria e enurese noturna;
lidade desses pacientes, principalmente pelo fato de que al- - Sinais e sintomas de doença aterosclerótica: insuficiência vascu-
gumas medidas simples são capazes de evitar complicações lar periférica, doença cardiovascular, acidente vascular cerebral;
cardiovasculares. Ainda assim, existem controvérsias quan- - Neuropatia periférica, disfunção erétil;
to à necessidade de exames de screening ou rastreamento - Quadro clínico compatível com complicações crônicas de
para DM. A ADA recomenda o screening em pacientes com DM.
risco elevado de DM, enquanto a US Task Force e a SBD não
tomam posição definitiva sobre o assunto. O exame de escolha para o rastreamento de DM é a gli-
A ADA recomenda a coleta de glicemia de jejum em to- cemia de jejum, devido ao seu baixo custo e sua praticida-
dos os adultos a partir dos 45 anos (pelo menos 1 vez a cada de. Entretanto, em situações de alto risco (Tabelas 1 e 2),
3 anos). Entretanto, se o paciente apresentar mais algum pode ser preferível a realização do teste oral de tolerância à
fator de risco para DM, o screening deverá ser iniciado mais glicose (GTT), usando 75g de glicose VO.
cedo, realizado com maior frequência ou utilizando méto-
dos mais sensíveis (como o teste de tolerância oral à glicose,
em vez da glicemia de jejum isolada), conforme orientações 4. Pré-diabetes
expostas na Tabela 6. Além disso, em pacientes com sinais Tendo em vista o alto risco de progressão dos pacientes
ou sintomas sugestivos de hiperglicemia descompensada com pré-diabetes para o diabetes (5 a 6 vezes maior do que
(Tabela 7), a avaliação laboratorial deverá ser imediata. na população geral), é importante implementar estratégias
Tabela 6 - Indicações de screening para DM em indivíduos assinto- com potencial de reduzir essa progressão, visando à pre-
máticos, conforme recomendações da ADA (2011) venção do DM.
- Todos os adultos que estão com excesso de peso (IMC >25kg/m2) e
apresentam pelo menos 1 dos seguintes fatores de risco para A - Diagnóstico de pré-diabetes
DM: Os critérios diagnósticos para pré-diabetes (que incluem
· Sedentarismo;
todas as alterações intermediárias do metabolismo glicêmi-
· Familiar de 1º grau com DM;
· Grupos étnicos ou raciais de alto risco;
co, como a GJA e a TDG) são apresentados na Tabela 8.
· Hipertensão arterial (PA ≥140x90mmHg); Tabela 8 - Diagnóstico de pré-diabetes
· HDL <35mg/dL ou triglicérides >250mg/dL;
· DG prévio ou história de ter dado à luz a recém-nascido com Teste empregado Valor
peso >4kg; Glicemia de jejum Entre 100 e 125mg/dL.*
· Intolerância à glicose ou GJA prévia; Teste de tolerância
· Síndrome dos ovários policísticos; Entre 140 e 199mg/dL (2 horas).*
oral à glicose
· Outras condições associadas à resistência insulínica (exem-
Hemoglobina glica- Entre 5,7 e 6,4% (critério aceito nos Estados
plo: obesidade severa com acantose nigricans);
da (A1c) Unidos e Europa, mas não no Brasil).*
· História de doença cardiovascular*.
* Desde que o paciente não apresente outro exame que preencha
- Na ausência dos fatores de risco citados, em todos os indivídu-
os critérios diagnósticos para DM. Se o indivíduo apresenta, por
os com idade ≥45 anos (usando glicemia de jejum);
exemplo: glicemia de jejum entre 100 e 125mg/dL, mas glicemia 2
- Se os resultados forem normais, o exame deverá ser repetido horas após o teste de tolerância à glicose >200mg/dL, o diagnós-
pelo menos a cada 3 anos**. tico é de DM, pois o valor do teste já satisfaz os critérios para DM
* Outros possíveis fatores de risco para DM são história de abor- (mesmo que a glicemia de jejum seja <126mg/dL).
tos de repetição ou mortalidade perinatal (possivelmente asso-
ciada a DG não diagnosticado); uso de medicações com poten- B - Prevenção de DM
cial de elevar a glicemia (glicocorticoides etc.).
** Considerar repetições mais frequentes do exame (a cada 6 a Recomenda-se a adoção de um estilo de vida saudável,
12 meses) ou utilização do GTT (em vez de glicemia de jejum) em para a prevenção de DM, a todos os pacientes, com ou sem
grupos de alto risco (GJA ou TDG prévia, com piora progressiva alterações de glicemia de jejum, com dieta balanceada e
dos níveis glicêmicos; presença de complicações crônicas compa- exercícios físicos regulares. A restrição energética mode-
tíveis com DM – retinopatia, neuropatia; hipertensão arterial ou rada, baseada no controle de gorduras saturadas, acompa-
doença coronariana). nhada de atividade física leve, como caminhar 30 minutos
diários, 5 vezes por semana (num total de 150 minutos por
Tabela 7 - Sintomas sugestivos de DM que indicam avaliação ime-
diata da glicemia
semana), associada a uma perda de 5% do peso inicial, mos-
trou boa eficácia em prevenir a evolução de pacientes pré-
- Paciente apresentando poliúria e polidipsia;
-diabéticos para o DM2, com redução do risco de DM2 da
- Perda de peso; ordem de 58% num período de 4 a 6 anos.

10
DIABETES MELLITUS - DIAGNÓSTICO

Alguns medicamentos também demonstraram reduzir o gestação. Caso a glicemia de 2 horas após a sobrecarga de
risco de evolução para DM em pacientes de alto risco, em glicose seja ≥140mg/dL, está definido o diagnóstico de DG.
vários estudos (Tabela 9). Se a 1ª glicemia de jejum for ≥110mg/dL, entretanto, o GTT
pode ser dispensado, bastando, para confirmar o diagnós-
Tabela 9 - Intervenções capazes de reduzir o risco de progressão
para diabetes em indivíduos de alto risco (pré-diabéticos)
tico, uma 2ª glicemia de jejum no mesmo nível (Figura 2).
Nas gestantes com maior risco de DM gestacional
Redução de risco
Intervenção (mais velhas, com história prévia de alterações glicêmi-

ENDOCRINOLOGIA
de DM
cas ou que deram à luz recém-nascidos macrossômicos),
Mudanças de estilo de vida 58%
esse rastreamento pode ser feito mais precocemente. O
Metformina 31%
diagnóstico de DG deve ser realizado de acordo com os
Acarbose 25% critérios da Tabela 10.
Troglitazona* 56%
Pioglitazona 72%
Orlistate 37%
Inibidores da ECA/bloqueadores do recep-
26%
tor da angiotensina
* Retirada do mercado devido a relatos de hepatotoxicidade grave.

Esses medicamentos, portanto, poderiam ser utilizados


quando houvesse impedimento ou falência das medidas
modificadoras do estilo de vida. Entretanto, por conta da
preocupação com o custo-benefício e com a tolerabilidade
dos medicamentos em comparação com um programa de
modificação de estilo de vida, a SBD atualmente não reco-
menda o tratamento farmacológico rotineiro para a pre-
venção do DM até que surjam novas informações sobre o
custo-efetividade dessa intervenção. A ADA, por outro lado,
recomenda que o uso de metformina “seja considerado em
pacientes de risco muito alto para DM”.
5. Diabetes mellitus gestacional (rastrea-
mento e diagnóstico)
Existem muitas controvérsias na literatura sobre a me-
lhor forma de rastreamento e diagnóstico do Diabetes
Gestacional (DG). Figura 2 - Recomendações para rastreamento e diagnóstico do
diabetes gestacional (SBD e FEBRASGO, 2008)
A - Recomendações nacionais (SBD/FEBRASGO,
2008) Tabela 10 - Critérios diagnósticos para o DM gestacional (SBD e
As últimas diretrizes da SBD para diagnóstico de DG FEBRASGO, 2008)
foram lançadas em 2008, em esforço conjunto com a - Glicemia de jejum ≥110mg/dL em pelo menos 2 medidas (o
Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e valor de corte de 100mg/dL, utilizado para adultos em geral;
Obstetrícia (FEBRASGO), finalmente unificando as reco- não foi ainda validado na gestação);
mendações de endocrinologistas e obstetras, que anterior- - Glicemia 2h após 75g de glicose (TTGO) ≥140mg/dL;
mente eram diferentes em vários aspectos. - Glicemia ao acaso ≥200mg/dL em pacientes com sintomas tí-
De acordo com essas diretrizes, o rastreamento de DM picos.
na gestação deve ser realizado com coleta de glicemia de
* Basta 1 dos 3 critérios para o diagnóstico.
jejum em todas as pacientes na 1ª consulta de pré-natal.
Nas pacientes com glicemia inicial <85mg/dL, o rastrea-
B - Recomendações internacionais (2010)
mento é considerado negativo e a glicemia de jejum deve
ser repetida após a 20ª semana. Caso a glicemia de jejum Em março de 2010, foi publicado na Diabetes Care um
seja ≥85mg/dL em qualquer momento, a paciente deve ser consenso da International Association of Diabetes and
submetida à confirmação do diagnóstico, usando o teste Pregnancy Study Groups, contendo novas recomendações
de tolerância oral à glicose (75g), com coleta de glicemia para o diagnóstico do DG, com base em resultados de estu-
a zero e aos 120 minutos, entre a 24ª e a 28ª semanas de dos prospectivos recentes que demonstraram aumento de

11
ENDOC RI N O LOG I A

risco de complicações maternas e fetais a partir de valores - Glicemia de jejum entre 100 e 125mg/dL configura “glicemia
glicêmicos mais baixos do que os classicamente utilizados de jejum alterada”, enquanto glicemia 2h após GTT entre 140
para detecção de DG (Tabela 11). e 199mg/dL configura “TDG”. Ambas as condições são consi-
Acredita-se que a adoção desses novos critérios, usan- deradas “pré-diabetes”, com alto risco de evolução para DM.
do valores de corte bem mais baixos de glicemia, poderá Outro critério adicional, para identificar pré-diabetes, é a he-
aumentar em 2 ou até 3 vezes o número de gestantes iden- moglobina glicada (A1c) entre 5,7 e 6,4%, um critério aceito
tificadas com DG. Mesmo assim, uma grande parcela dos nos Estados Unidos e Europa, mas não no Brasil;
serviços vem adotando esses novos valores de corte para - A principal medida para a prevenção do aparecimento de dia-
diagnóstico de DG, tendo em vista sua boa correlação com
betes em pacientes pré-diabéticos é a alteração dos hábitos de
o risco de complicações maternas e fetais.
vida (redução de risco: 58%);
Tabela 11 - Critérios diagnósticos para o DG (IADPSG, 2010) - A hemoglobina glicada (A1c) reflete a média das glicemias do
indivíduo ao longo dos últimos 2 a 3 meses. Cerca de 50% da
- Glicemia de jejum ≥92mg/dL; A1c são determinados, no entanto, pelas glicemias do último
- Glicemia 1h após 75g de glicose (GTT) ≥180mg/dL; mês. Devem-se usar os dados do estudo ADAG para correlação
- Glicemia 2h após 75g de glicose (GTT) ≥153mg/dL. entre os valores de A1c e a glicemia média estimada (eAG), e
* Basta 1 dos 3 critérios para o diagnóstico. os valores correspondentes de glicemia média também devem
ser descritos no laudo do exame de A1c;
C - Acompanhamento pós-gestacional - As diretrizes mais recentes sobre o Diabetes Gestacional
Após o término da gravidez, as pacientes com DG de- (DG) definem como critérios diagnósticos: glicemia de jejum
vem ser classificadas novamente com a realização de novo >92mg/dL, glicemia 1 hora após a ingestão de 75 de glicose
GTT 6 a 12 semanas após o parto. Na maioria dos casos, há >180mg/dL, e 2 horas após >153mg/dL. Basta um dos critérios
reversão para a tolerância normal à glicose após o término para confirmar o diagnóstico de DG.
da gestação, mas vários estudos prospectivos mostram que
o risco de evoluir para DM2 varia de 17 a 63% dentro de 5
a 16 anos.

6. Resumo
Quadro-resumo
- O rastreamento do diabetes é recomendado em pacientes com
mais de 45 anos, ou em indivíduos mais jovens que apresen-
tem fatores de risco para o desenvolvimento da doença (espe-
cialmente obesidade e síndrome metabólica);
- O diagnóstico de DM é definido por glicemia de jejum ≥126mg/dL
(em pelo menos 2 medidas feitas em dias diferentes), glicemia
2 horas após GTT ≥200mg/dL, ou glicemia ocasional ≥200mg/
dL em paciente com sintomas clássicos de diabetes (poliúria,
polidipsia). Glicemia capilar e glicosúria não servem para o
diagnóstico;
- Algumas sociedades internacionais (IDF, EASD) recomendam o
uso da hemoglobina glicada (A1c) como método diagnóstico
para DM, considerando-se DM na presença de 2 medidas de
A1c ≥6,5%. A SBD, entretanto, ainda não recomenda o uso da
A1c para o diagnóstico de DM, mas apenas como método de
acompanhamento do tratamento (até suas últimas diretrizes,
de 2008);
- Deve-se solicitar GTT, com 75g de glicose, em todos os pacien-
tes com glicemia de jejum limítrofe (entre 100 e 125mg/dL),
visto que aproximadamente 25% desses indivíduos já são dia-
béticos (com predominância de hiperglicemia pós-prandial);
- O GTT também está bem indicado em indivíduos de alto risco de
diabetes (presença de vários fatores de risco, história familiar,
DM gestacional prévio, síndrome metabólica, pré-diabetes);

12
CAPÍTULO

3 Diabetes mellitus - tratamento


Leandro Arthur Diehl / Rodrigo Antônio Brandão Neto

A1c média foi significativamente mais baixa no grupo da te-


1. Introdução rapia intensiva (7,2%) que no da terapia convencional (9,1%).
O tratamento do Diabetes Mellitus (DM) envolve o con- Essa redução da A1c no grupo da terapia intensiva associou-
trole não só da glicemia, mas também dos demais fatores de -se a uma redução marcante no risco de complicações mi-
risco associados (hipertensão arterial, dislipidemia, obesidade, crovasculares (76% de redução de retinopatia, 50% de nefro-
estado inflamatório e protrombótico sistêmico etc.) visando à patia e 60% de neuropatia). O seguimento desses pacientes
prevenção de complicações crônicas micro e macrovasculares. por 4 a 8 anos após o final do protocolo do DCCT (publicado
Para o adequado manejo do diabetes, é necessário co- sob o nome de Epidemiology of Diabetes Interventions and
nhecer as evidências que suportam o tratamento intensivo, Complications – EDIC) mostrou que o fato de o paciente ter
as metas a serem atingidas e as vantagens e desvantagens pertencido previamente a um grupo de terapia intensiva,
das diferentes intervenções comportamentais e medica- continuou exercendo proteção contra complicações micro-
mentosas em cada fase evolutiva do diabetes. vasculares e também contra eventos cardiovasculares (risco
42% menor para qualquer evento), mesmo que a HbA1c mé-
2. Justificativas para o tratamento intensivo dia atual não diferisse entre os grupos originais.

Os objetivos no tratamento do DM (tanto do tipo 1 B - Controle glicêmico intensivo no diabetes


como do tipo 2) vêm mudando ao longo das últimas déca- mellitus 2 (UKPDS)
das, em razão do acúmulo de evidências mostrando que o
tratamento intensivo, ou seja, o controle rigoroso da glice- Em 1998, foi publicado o United Kingdom Prospective
mia visando à obtenção de níveis glicêmicos próximos dos Diabetes Study (UKPDS), o mais importante estudo avalian-
normais, é capaz de reduzir substancialmente a incidência do o benefício do controle glicêmico intensivo em diabé-
de complicações crônicas. Além disso, cada vez mais a lite- ticos tipo 2. O UKPDS incluiu 3.867 adultos com DM2 re-
ratura mostra que, além do manejo da glicemia, o paciente cém-diagnosticado, que foram randomizados para receber
diabético deve ser alvo de uma abordagem multifatorial, terapia intensiva (com sulfonilureia e/ou insulina, visando à
incluindo o controle adequado dos níveis pressóricos e li- obtenção de glicemia de jejum <108mg/dL) ou terapia con-
pídicos, orientação para perda de peso (nos pacientes com vencional (com dieta apenas). Ao final de um seguimento
sobrepeso ou obesidade), cessação do tabagismo e uso de médio de 10 anos, a A1c média foi de 7% no grupo intensivo
antiagregantes plaquetários nos pacientes de alto risco car- e de 7,9% no grupo convencional. Essa redução de A1c no
diovascular (a maioria dos diabéticos). grupo de terapia intensiva se associou à redução de 12%
no risco de qualquer evento associado ao DM e 25% de
A - Controle glicêmico intensivo no diabetes redução no risco de complicações microvasculares (princi-
mellitus 1 (DCCT) palmente retinopatia). Ao contrário do observado no DM1,
no DM2 o controle glicêmico intensivo não se associou à
Um marco no tratamento do DM1 foi a publicação, em redução do risco de eventos cardiovasculares durante o es-
1993, do Diabetes Control and Complications Trial (DCCT), tudo, embora uma discreta redução de eventos tenha sido
que foi um grande estudo randomizado, com follow-up mé- observada no grupo originalmente submetido a tratamento
dio de 6,5 anos, avaliando os benefícios de uma terapia in- intensivo, 10 anos após o final do estudo.
tensiva (com 3 ou mais doses de insulina/dia, ajustadas fre-
quentemente de acordo com os resultados da monitorização
frequente da glicemia capilar, visando a uma A1c <7%) em
3. Metas no tratamento
comparação com a terapia convencional (2 doses diárias de As metas de tratamento devem ser baseadas em re-
insulina) em 1.441 diabéticos do tipo 1. Ao final do estudo, a sultados de estudos clínicos prospectivos e randomizados,

13
ENDOC RI N O LOG I A

como o DCCT e o UKPDS. Esses estudos mostraram uma Em pacientes idosos, o alvo da A1c deve ser individu-
correlação entre o controle glicêmico, quantificado por de- alizado. Os idosos que estão em boas condições clínicas e
terminações seriadas de A1c, e os riscos de desenvolvimen- apresentam complicações microvasculares são os que, pro-
to e progressão das complicações crônicas do DM (Figura vavelmente, mais se beneficiariam de um controle glicêmi-
1). Níveis de hemoglobina glicada acima de 6,2 a 7,5% (de- co intensivo. No entanto, os riscos desse controle, incluindo
pendendo do estudo avaliado) estão associados a um risco hipoglicemia, tratamentos concomitantes múltiplos, intera-
progressivamente maior de complicações crônicas. ções entre as drogas e os seus efeitos colaterais, devem ser
considerados na equação do risco-benefício. Nos idosos já
fragilizados, nos indivíduos com esperança de vida limitada
e em outros nos quais os riscos do controle glicêmico inten-
sivo são maiores do que os benefícios potenciais, um nível
de A1c de 7,5% ou mesmo de 8% pode ser mais apropriado.
Da mesma forma, metas diferenciadas de A1c devem
ser utilizadas para crianças e adolescentes, devido às par-
ticularidades dessa fase do desenvolvimento (crescimento,
potenciais sequelas neurológicas acarretadas pela hipogli-
cemia em crianças menores). A Tabela 2 apresenta as metas
toleráveis de A1c para cada faixa etária, segundo a SBD e
segundo a ADA.
Figura 1 - A1C e risco relativo de complicações microvasculares em Tabela 2 - Metas de A1c em crianças e adolescentes, segundo a
pacientes com DM1 (DCCT, 1993) Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) e a American Diabetes
Association (ADA)
O último algoritmo da Sociedade Brasileira de Diabetes
SBD 2009 ADA 2009
(SBD), publicado em agosto de 2009, definiu os níveis “de-
Níveis toleráveis
sejáveis” (ideais) e os níveis “toleráveis” das metas labora- Faixa etária Faixa etária Meta de A1c
de A1c
toriais consideradas na avaliação do controle glicêmico e da
0 a 6 anos 7,5 a 8,5% Pré-escolares >7,5 e <8,5%
adequação da conduta terapêutica. Torna-se necessária a
adequação do tratamento em pacientes com valores acima 6 a 12 anos <8% Escolares <8%
dos valores “toleráveis”. As metas atuais para o tratamento 13 a 19 Adolescentes,
<7,5% <7,5%
do DM, de acordo com a SBD, portanto, estão apresentadas anos adultos jovens
na Tabela 1. Adultos <7% Adultos <7%

Tabela 1 - Metas no tratamento do DM em adultos, de acordo com


Idosos <8% - -
a SBD (2009)
Os testes de A1c devem ser realizados pelo menos 2 ve-
Metas zes ao ano em todos os pacientes diabéticos, e 4 vezes ao ano
Parâmetro Metas desejáveis
toleráveis
(a cada 3 meses) nos pacientes que se submeterem a altera-
Glicemia de ções do esquema terapêutico ou que não estejam atingindo
jejum e pré- <110mg/dL <130mg/dL
os objetivos recomendados com o tratamento vigente.
prandial
Glicemia pós-
prandial
<140mg/dL <180mg/dL 4. Tratamento do diabetes mellitus tipo 2
Tabela 2, a Para adequado controle, prevenção e retardo do apa-
A1c <7%
seguir recimento de complicações relacionadas à doença, é indis-
Colesterol total <200mg/dL - pensável, além do controle glicêmico adequado, o controle
>40mg/dL em homens dos níveis pressóricos e lipídicos.
HDL-colesterol
e>50mg/dL em mulheres -
<100mg/dL(<70mg/dL se A - Estratégias de tratamento
LDL
prevenção secundária) -
O tratamento do DM deve sempre incluir as estratégias
Triglicérides <150mg/dL - apresentadas na Tabela 3.
<130x80mmHg
Pressão arterial (<125x75mmHg se IRC ou - Tabela 3 - Estratégias de tratamento do paciente portador de DM
proteinúria >1g/24h) - Modificações do estilo de vida (incluindo educação alimentar e
Índice de massa prática regular de exercícios físicos);
corporal
20 a 25kg/m2 - - Perda de peso, nos indivíduos com sobrepeso ou obesidade;

14
D I A B E T E S M E L L I T U S - T R ATA M E N T O

- Uso de medicamentos: hipoglicemiantes orais e/ou insulina; Fracionamento das refeições


- Controle de outros fatores de risco cardiovascular (hipertensão, O fracionamento da dieta em 3 refeições básicas e 2 a 3 refeições
dislipidemia, cessação do tabagismo etc.). intermediárias complementares, incluída nelas a refeição notur-
na (composta preferencialmente por alimentos como leite ou
O tratamento concomitante de outros fatores de risco fontes de carboidratos complexos), é benéfico, principalmente
cardiovascular é essencial para a redução da mortalidade. naqueles pacientes em uso de sulfonilureias e/ou insulina, visto
O paciente deve ser continuamente estimulado a adotar que a falta de alimentação durante mais de 3 a 4 horas expõe

ENDOCRINOLOGIA
hábitos de vida saudáveis (manutenção do peso adequado, estes pacientes ao risco de hipoglicemia.
prática regular de exercício, cessação do tabagismo e baixo Tipos de carboidratos
consumo de bebidas alcoólicas). Preferir sempre os carboidratos complexos e com maior teor de
Mudanças no estilo de vida são difíceis de serem imple- fibras, como os cereais integrais, e restringir a ingesta de carboi-
mentadas na vida real, mas podem ocorrer se houver esti- dratos simples (amido e açúcar).
mulação constante, pelo médico, ao longo do acompanha- Índice glicêmico
mento, e não apenas na 1ª consulta. Isso é particularmente Dietas baseadas em carboidratos de baixo índice glicêmico po-
importante, porque já foi demonstrado que, após o apare- dem ter um benefício modesto sobre a glicemia, mas são difíceis
cimento do DM2, há uma piora progressiva e inexorável do de manter em longo prazo.
controle glicêmico, independente do emprego de agentes Uso de adoçantes
antidiabéticos. É possível que essa piora possa ser atenuada Os adoçantes artificiais e alimentos dietéticos podem ser reco-
ou evitada com modificações no estilo de vida (perda de mendados, considerando-se o seu conteúdo calórico e de nu-
peso e incremento na atividade física) e/ou uso de medica- trientes. Aspartame, ciclamato, sacarina, acessulfame K e sucra-
mentos anti-hiperglicemiantes. lose são praticamente isentos de calorias, enquanto a frutose
tem valor calórico idêntico ao da sacarose. Os efeitos danosos
dos adoçantes artificiais não têm fundamentação científica. A
B - Educação alimentar Organização Mundial de Saúde recomenda seu uso dentro de
A educação alimentar é um dos pontos fundamentais no limites seguros, em termos de quantidade e, do ponto de vista
tratamento do DM2. Não é possível um bom controle meta- qualitativo, recomenda alternar os diferentes tipos.
bólico sem uma alimentação adequada. O plano alimentar Alimento diet ou light
do paciente diabético deve ser individualizado, baseado na Vale ressaltar a importância de se diferenciar alimentos diet
avaliação nutricional do indivíduo e no estabelecimento de (isentos de sacarose, quando destinados a indivíduos diabéticos,
objetivos terapêuticos específicos, considerando aspectos mas que podem ter valor calórico elevado, por seu teor de gor-
nutricionais, médicos e psicossociais, não sendo suficiente a duras ou outros componentes) e light (de valor calórico reduzido
em relação aos alimentos convencionais). Em função dessas ca-
restrição de carboidratos simples. A ingestão de açúcar sim-
racterísticas, o uso de alimentos dietéticos, diet e light deve ser
ples (sacarose), embora condenada por muitos anos no tra- orientado pelo profissional (nutricionista ou médico), que terá
tamento do diabetes, atualmente pode ser autorizada, desde por base o conhecimento da composição do produto para incluí-
que faça parte de um plano alimentar equilibrado e individu- -lo no plano alimentar proposto.
alizado (exceto em pacientes com mau controle glicêmico). Consumo de álcool
De forma geral, a alimentação adequada do diabético é Deve ser desencorajado no diabético, pois aumenta o risco de
semelhante à dieta ideal de qualquer adulto saudável, exce- variações glicêmicas e hipertrigliceridemia.
to se há necessidades nutricionais específicas (por exemplo, Contagem de carboidratos
relacionadas a comorbidades como nefropatia etc.). Dietas
Deve ser estimulada em diabéticos tipo 1, como forma de flexibi-
restritivas, além de nutricionalmente inadequadas, são de lizar sua alimentação e melhorar o controle glicêmico com baixo
difícil adesão. O objetivo geral da orientação nutricional é risco de hipoglicemias.
auxiliar o indivíduo a fazer mudanças em seus hábitos ali-
mentares, favorecendo o melhor controle metabólico (glicí- Quanto à composição da dieta do paciente diabético em
dico e lipídico) e pressórico, e a prevenção de complicações. termos de macro e micronutrientes, as principais recomen-
dações estão expostas na Tabela 5.
Tabela 4 - Recomendações gerais quanto à dieta para portadores de DM
Restrição calórica Tabela 5 - Composição do plano alimentar do diabético
Indicada para diabéticos com obesidade ou sobrepeso. Reco- Componente Quantidade recomendada
menda-se uma redução de 500kcal a 1.000kcal do gasto calórico Calorias totais Dependendo das necessidades do indivíduo
diário previsto, com o objetivo de promover perdas ponderais Carboidratos 50 a 60% do VCT (preferir os integrais)
de 0,5kg a 1kg por semana. Devem ser evitadas dietas com me-
Gorduras totais <30% do VCT
nos de 1.200kcal/dia (mulheres) e 1.800kcal (homens), a não ser
em situações especiais e por tempo limitado, quando até dietas Gorduras
<7% do VCT
com valor calórico muito baixo (menos de 800kcal/dia) podem saturadas
ser utilizadas. Gorduras trans Restringir

15
ENDOC RI N O LOG I A

Componente Quantidade recomendada não conseguem um bom controle metabólico ou perda de


Proteínas 0,8 a 1g/kg/dia (<0,8 se nefropatia) peso com ao menos 2 anos de tratamento clínico. A técnica
mais utilizada é a de Fobi-Capella, que parece levar à cura
Fibras 15 a 20g/dia
do diabetes tipo 2 em pelo menos 70 a 90% dos pacientes,
Sal de cozinha <6g/dia
embora essa taxa de remissão pareça ser um pouco menor
Vitaminas e Em quantidade suficiente para as nos previamente insulino-dependentes.
minerais necessidades do indivíduo Os efeitos benéficos da cirurgia bariátrica sobre o me-
VCT = Valor Calórico Total da dieta, correspondendo ao total de tabolismo dos carboidratos decorrem não só da perda de
calorias ingeridas num dia. peso, mas também da modificação da secreção dos hormô-
nios intestinais (“incretinas”), com aumento da secreção do
C - Atividade física Glucagon-Like Peptide 1 (GLP-1) e consequente melhora da
A prática regular de atividade física leva à melhora secreção de insulina.
no controle glicêmico (independentemente da perda de Pacientes submetidos à cirurgia bariátrica necessitam
peso) e reduz o risco cardiovascular em diabéticos tipo 2. de acompanhamento médico e suporte aos cuidados com
Recomenda-se atividade preferencialmente aeróbica, du- estilo de vida durante toda a vida. Embora alguns estudos
rante 30 a 60 minutos diários, em pelo menos 3 a 5 dias da tenham mostrado benefício da cirurgia bariátrica sobre os
semana (mínimo de 150 minutos/semana), com intensida- parâmetros metabólicos em diabéticos tipo 2 com IMC me-
de moderada (atingindo frequência cardíaca entre 50 e 70% nor (de 30 a 35kg/m2), as evidências ainda são fracas para
da máxima para a idade). Pacientes de alto risco cardiovas- recomendar esse tratamento como rotina nessa categoria
cular (hipertensos, dislipidêmicos, tabagistas, portadores de pacientes, devendo esse tipo de procedimento ser res-
de complicações crônicas do DM ou com mais de 35 anos trito a ambientes de pesquisa.
ou 10 a 15 anos de diabetes) devem se submeter ao teste
ergométrico antes do início de um programa de atividade E - Eficácia das mudanças de estilo de vida
física regular. Quando se conseguem implementar as mudanças nos
hábitos de vida (dieta nutricionalmente equilibrada, ativi-
D - Manejo da obesidade dade física regular e perda de 5 a 10% do peso inicial em
Tendo em vista o frequente excesso de peso observado indivíduos com excesso de peso), a redução média obtida
em diabéticos tipo 2, o tratamento agressivo da obesidade na A1c é em torno de 1 a 2 pontos percentuais (1 a 2%) e,
é parte essencial do manejo desses pacientes. Pequenas na glicemia de jejum, de 40 a 50mg/dL.
reduções de peso (5 a 10%) se associam à melhora signifi-
cativa do controle metabólico/pressórico e reduzem a mor- 5. Drogas antidiabéticas
talidade. O tratamento da obesidade deve iniciar-se com a
prescrição de um plano alimentar hipocalórico e o aumento A história natural do DM2 é caracterizada pela piora gra-
da atividade física. No entanto, essas medidas usualmente dual e inexorável da glicemia ao longo do tempo, atribuída
não ocasionam perda de peso sustentada na maioria dos principalmente à perda progressiva da secreção de insulina
pacientes. Nesses casos, podem-se empregar medicamen- endógena pelas células beta-pancreáticas, como demons-
tos antiobesidade. trado pelo clássico estudo UKPDS. Por isso, geralmente há a
Na escolha do medicamento, levam-se em conta os necessidade, com o passar dos anos, de aumentar a dose dos
possíveis fatores causais da obesidade e os eventuais efei- medicamentos e/ou de acrescentar outras drogas. A combi-
tos colaterais. Deve-se evitar o uso dos redutores da fome nação de agentes com diferentes mecanismos de ação é útil.
(anorexígenos), como mazindol, anfepramona e fempro- As drogas antidiabéticas podem ser divididas em várias
porex em pacientes diabéticos, devido à falta de estudos classes, de acordo com seu mecanismo de ação. As princi-
que comprovem sua segurança. Sibutramina passou a ser pais classes de antidiabéticos disponíveis no mercado brasi-
contraindicada em diabéticos tipo 2, após a publicação dos leiro estão expostas na Tabela 6.
resultados do estudo SCOUT, em 2010, que mostrou au-
mento de risco cardiovascular nessa população. O melhor Tabela 6 - Mecanismos de ação dos medicamentos antidiabéticos
disponíveis no Brasil
medicamento para auxiliar na perda de peso em diabéti-
cos, portanto, é o orlistate, que é seguro se usado por até Categoria Ação Classes
2 a 3 anos (desde que respeitadas suas contraindicações) e Aumentam a secreção de - Sulfonilureias;
Secretagogos
ajuda a melhorar a pressão arterial, a glicemia e os níveis insulina pelas células beta - Glinidas (metigli-
de insulina
lipídicos. Metformina e exenatida são hipoglicemiantes que do pâncreas nidas).
também induzem perda de peso, e podem ser boas opções - Biguanidas (me-
Aumentam a ação bioló-
para o diabético obeso. Sensibilizado- tformina);
gica da insulina nos seus
Outra opção de tratamento é a cirurgia bariátrica, indi- res à insulina - Glitazonas
tecidos-alvo
(TZDs).
cada para os pacientes diabéticos com IMC >35kg/m2 e que

16
D I A B E T E S M E L L I T U S - T R ATA M E N T O

Inibidores da Retardam a digestão e ab- - Glinidas: ou metiglinidas, têm início de ação mais rápi-
alfa-glicosida- sorção de carboidratos no - Acarbose. do, meia-vida mais curta, ligam-se num sítio diferente
se intestino delgado do mesmo receptor SUR1 nas células beta e, por causa
Aumentam a secreção de - Inibidores da de seu curto tempo de ação, são indicadas principal-
I n c ret i n o m i -
insulina e reduzem a se- DPP-IV (glipti- mente para o controle da hiperglicemia pós-prandial.
creção de glucagon em res- nas); Existem 2 drogas dessa classe no Brasil: a repaglinida
méticos
posta às refeições (efeito - Análogos de GLP- (um derivado do ácido benzoico) e a nateglinida (um
incretina) 1 (exenatida).

ENDOCRINOLOGIA
derivado da fenilalanina). Têm custo mais elevado do
- Insulinas hu- que as sulfonilureias.
manas: NPH,
Estimulam a captação de
regular; b) Posologia e modo de uso
glicose pelos tecidos e blo-
Insulinas - Análogos de in-
queiam a secreção de gli- As sulfonilureias são administradas 1 a 2x/dia, em geral
sulina: glargina,
cose pelo fígado 30 minutos antes do café e do jantar. Já as glinidas devem
detemir, lispro,
aspart, glulisina. ser administradas 15 minutos antes das principais refei-
ções (1 a 3x/dia). Deve-se começar com doses pequenas e
As características das classes de drogas antidiabéticas progressivamente crescentes, até a obtenção do controle
estão resumidas na Tabela 7. glicêmico adequado ou a dose máxima recomendada. As
apresentações e a posologia dos principais secretagogos de
Tabela 7 - Principais características das classes de drogas antidia-
béticas
insulina são descritas na Tabela 8.
Antidiabéticos Efeitos clínicos Tabela 8 - Posologia, apresentação e nome comercial dos secreta-
Redução gogos de insulina
Redução
da glicemia Peso Hipo
Medicamento da A1c
de jejum corporal glicemia Apresen-
(%) Dose Nº de
Classe

(mg/dL) tação Nome


Droga diária doses/
Sulfonilureias 60 a 70 1a2 Aumento Sim (compri- comercial
(mg) dia
midos)
Repaglinida 20 a 30* 0,8 a 1,5 Aumento Sim
Clorpropa- 125 a
Nateglinida 20 a 30* 0,5 a 1 Aumento Sim 1 250mg Diabinese®
mida 750
Metformina 60 a 70 1a2 Redução Não
Daonil®,
Glitazonas 35 a 40 0,8 a 1,5 Aumento Não Gliben®,
Glibencla-
Sem 2,5 a 20 1a2 5mg Diaben®,
Acarbose 20 a 30* 0,5 a 1 Não mida
efeito Gliben-
Sulfonilureias

Inibidores da Sem diab®


20 a 30* 0,6 a 1,8 Não
DPP-IV efeito Glipizida 2,5 a 20 1 5mg Minidiab®
Análogos de Diamicron
10 a 25* 0,6 a 1 Redução Não Gliclazida
GLP-1** MR®,
de ação 30 a 120 1 30mg
Insulina (adi- Azukon
60 a 150 1,5 a 3,5 Aumento Sim prolongada
cional)** MR®
* Atuam predominantemente na redução da glicemia pós-pran- Amaryl®,
Bioglic®,
dial, mas podem reduzir discretamente a glicemia de jejum em Glimepirida 1a8 1 1, 2 e 4mg
médio e longo prazos. Glimepil®,
** Injetáveis. Azulix®
Novo-
A - Secretagogos de insulina 0,5 a 0,5, 1 e norm®,
Repaglinida 1a3
Glinidas

16mg 2mg Prandin®,


Estes compreendem as sulfonilureias e as glinidas. Posprand®
a) Modo de ação 120 a
Nateglinida 1a3 120mg Starlix®
360mg
- Sulfonilureias: ligam-se ao receptor das sulfonilureias
(SUR1), presente no canal de potássio ATP-dependente c) Eficácia
das células beta-pancreáticas, promovendo o fecha- Em média, as sulfonilureias diminuem a glicemia de je-
mento dos canais de K-ATP-dependentes, a despo- jum em 60 a 70mg/dL e reduzem a A1c em 1,5 a 2 pontos
larização do potencial de membrana, a abertura dos percentuais.
canais de cálcio voltagem-dependentes, o influxo de As glinidas promovem redução maior da glicemia pós-
cálcio na célula e a consequente exocitose de grânulos -prandial (50 a 80mg/dL) do que da glicemia de jejum (20 a
de insulina pré-formada pelas células beta; 30mg/dL). A repaglinida tem uma potência hipoglicemiante

17
ENDOC RI N O LOG I A

maior que a nateglinida, com redução média de 1,5 a 2% na Hepatotoxicidade, icterícia colestática, anemia hemolí-
A1c (comparada a 0,8 a 1% com a nateglinida). tica, trombocitopenia e agranulocitose são efeitos adversos
Evidentemente, os secretagogos de insulina são eficazes menos comuns.
apenas a pacientes que ainda apresentam secreção endó- Um seguimento de longo prazo dos pacientes que par-
gena residual de insulina (pacientes com <5 anos de DM, ticiparam do UKPDS mostrou que pacientes em tratamento
com peso normal ou apenas discretamente aumentado, intensivo, inclusive com sulfonilureias, apresentaram risco
sem perda de peso marcante). Somente cerca de 25 a 40% discretamente menor de eventos cardiovasculares.
dos pacientes vão conseguir obter controle glicêmico ape- f) Contraindicações
nas com o uso de um secretagogo, e mesmo essas pessoas
que têm boa resposta inicial à droga acabarão evoluindo, no Os secretagogos são ineficazes e, portanto, contraindi-
cados no DM1 e outros tipos de diabetes com deficiência
prazo de alguns anos, para elevação progressiva da glicemia
severa de insulina, como o diabetes secundário à pancre-
decorrente da deterioração também progressiva da função
atite crônica ou pancreatectomia. Outras contraindicações
das células beta, que faz parte da própria história natural do
são gravidez, insuficiência hepática ou renal, sensibilidade a
DM2. Essa piora progressiva do controle glicêmico, mesmo
sulfas e intercorrências médicas graves (cirurgia de grande
com a manutenção do secretagogo inicialmente efetivo, é
porte, politrauma, infecções severas).
denominada falência secundária e ocorre em cerca de 5 a
7% dos pacientes/ano. B - Metformina
d) Características de algumas medicações dessa classe Trata-se de um sensibilizador à insulina, pertencente
- Clorpropamida e glibenclamida (gliburida): são me- ao grupo das biguanidas. Apresenta diversas vantagens em
tabolizadas no fígado, e seus metabólitos têm efeito relação ao uso de outras medicações hipoglicemiantes e
hipoglicemiante. Conferem grande risco de hipoglice- não está associada a aumento de peso, podendo, inclusive,
mia, por conta de suas meias-vidas longas. Devem ser determinar uma diminuição de 2 a 3kg durante os primei-
evitadas em idosos e pacientes com insuficiência renal; ros 6 meses de tratamento. Reduz os níveis de triglicérides
- Glimepirida: tem início de ação rápido e duração lon- (em 10 a 15%) e do inibidor-1 do ativador do plasminogê-
ga, mas com baixo risco de hipoglicemia, por preservar nio (PAI-1), uma molécula com ação pró-trombótica, e a
a supressão fisiológica de insulina nos períodos de je- agregação plaquetária, e estimula a fibrinólise. Foi a única
jum. Boa opção para pacientes idosos e com insufici- medicação que determinou uma diminuição significativa
ência renal moderada (em baixas doses); da incidência de infarto do miocárdio e morte em pacien-
- Glipizida: metabolizada extensivamente no fígado. tes obesos com DM2, durante o estudo UKPDS. Também é
Juntamente com a glimepirida, parece ter menor ação capaz de evitar a progressão para DM2 nos pacientes com
que a glibenclamida nos receptores SUR2 dos vasos e intolerância à glicose (redução de 31% no risco). Além disso,
do coração e, por isso, parece conferir um menor pre- reduz a esteatose hepática não alcoólica e é útil para o tra-
juízo ao pré-condicionamento isquêmico cardíaco; tamento da síndrome dos ovários policísticos (em que esti-
mula a ovulação e aumenta a fertilidade). Também reduz o
- Gliclazida: foi a droga usada no estudo ADVANCE, por- risco de neoplasias associadas ao diabetes (cólon, pâncreas
tanto parece ser a droga com melhor nível de evidên- e mama pós-menopausa) e tem baixo custo (semelhante
cia de que é segura para uso em pacientes de alto risco ao das sulfonilureias), além de bom perfil de segurança.
cardiovascular. Tradicionalmente, era indicada apenas para diabéticos com
e) Efeitos adversos excesso de peso, mas, como tem a mesma eficácia em in-
divíduos com peso normal, as diretrizes hoje recomendam
A hipoglicemia, o efeito colateral mais comum, acontece
seu uso como 1ª opção de droga hipoglicemiante na maio-
com menor frequência com as glinidas do que com as sul-
ria dos casos de DM2. É o hipoglicemiante oral mais utiliza-
fonilureias, por causa do curto tempo de ação das glinidas. do nos Estados Unidos.
O ganho de peso também é muito comum e está rela-
cionado ao próprio mecanismo de ação das medicações a) Modo de ação
(mais importante com as sulfonilureias), sendo estimado Seu mecanismo de ação ainda não está totalmente
em torno de 2 a 4kg (ou 7% de ganho sobre o peso inicial, esclarecido, mas provavelmente envolve a ativação, pela
no UKPDS). droga, de uma enzima hepática chamada proteína-quinase
Dermatite (tipo urticária) e até mesmo síndrome de ativada pelo AMP (AMPK), um importante regulador da si-
Stevens-Johnson podem ocorrer por sensibilidade ao gru- nalização da insulina e do metabolismo da glicose e dos lipí-
pamento “sulfa” das sulfonilureias. dios. Age diminuindo a resistência à insulina principalmente
Hiponatremia, retenção hídrica e elevação pressórica no fígado, onde reduz a gliconeogênese e a glicogenólise, e,
(por ação semelhante à do hormônio antidiurético, ADH), portanto, a glicemia de jejum, além de aumentar a oxidação
bem como efeito “antabuse” (mal-estar intenso com a in- de ácidos graxos. Alguns estudos sugerem que a metformi-
gesta concomitante de álcool), são efeitos adversos espe- na possa ter ação sobre a resistência à insulina também em
cíficos da clorpropamida, razão pela qual esta droga vem outros tecidos (exemplo: músculos, coração), por mecanis-
caindo em desuso. mos dependentes ou não da AMPK.

18
D I A B E T E S M E L L I T U S - T R ATA M E N T O

b) Posologia nos pacientes que usam a metformina por mais de 6 me-


Os comprimidos de liberação simples (disponíveis nas ses; portanto, talvez seja interessante dosar os níveis séri-
concentrações de 500mg, 850mg e 1g; Glifage, Dimefor, cos dessa vitamina e indicar reposição (se necessária) em
Glucoformin, genéricos) devem ser tomados juntamente usuários crônicos da droga. Anemia macrocítica, associada
com as refeições, preferencialmente em doses fracionadas à deficiência clínica de B12, é rara.
(de 1 a 3x/dia). A dose máxima é de 2.550mg/dia (850mg e) Contraindicações
em 3 tomadas).
É contraindicada para pacientes com qualquer con-

ENDOCRINOLOGIA
Outra opção é a metformina de liberação prolongada
dição que predisponha ao acúmulo de lactato e à acido-
(Glifage XR, Metta SR), que tem melhor tolerabilidade gas-
se láctica: insuficiência renal (creatinina sérica >1,4mg/
trintestinal e pode ser usada em dose única diária após o
dL em mulheres ou >1,6mg/dL em homens, ou clearance
jantar ou, eventualmente, em 2 doses diárias (comprimidos
<50mL/min/1,73m2), insuficiência respiratória (DPOC grave),
de 500mg, 750mg ou 1.000mg, dose diária 500 a 2.000mg).
Insuficiência Cardíaca Congestiva (ICC) classes funcionais III
Também estão disponíveis as apresentações de metfor-
e IV da NYHA e insuficiência hepática/alcoolismo crônico.
mina associada à glibenclamida (Glucovance), glimepirida
Também deve ser evitada durante intercorrências agu-
(Amaryl Flex, Meritor), nateglinida (Starform), vildagliptina
das graves (infecções, sepse, cirurgias de grande porte).
(Galvus-Met) e sitagliptina (Janumet).
Recomenda-se sua suspensão pelo menos 48 horas an-
c) Eficácia tes e depois de qualquer procedimento envolvendo aplica-
A metformina tem potência hipoglicemiante semelhan- ção de contraste nefrotóxico IV.
te à das sulfonilureias: reduz a glicemia de jejum em 50 a Também é contraindicada na gravidez e na lactação,
70mg/dL e a A1c em 1 a 2%. A eficácia máxima parece ser embora já existam estudos sugerindo que possa ser segura
obtida com doses em torno de 2 a 2,5g/dia. para uso durante a gestação.

d) Efeitos adversos C - Tiazolidinedionas


Os efeitos colaterais mais comuns são os gastrintesti-
As tiazolidinedionas (glitazonas), como a metformina,
nais (aproximadamente 30%), como náusea, vômito, cólica,
são sensibilizadores à insulina, mas enquanto a metformina
diarreia, gosto metálico e flatulência. Esses sintomas são
age principalmente no fígado, o principal alvo das glitazo-
mais comuns no início do tratamento e podem ser minimi-
nas é o tecido musculoesquelético.
zados quando a metformina é iniciada em doses baixas (por
exemplo, 500mg, 1 a 2x/dia) e progressivamente titulada a) Modo de ação
para doses maiores em intervalos de pelo menos 2 sema- Diminuem a resistência insulínica nos tecidos periféricos
nas. Com esses cuidados, apenas 5% dos pacientes perma- (principalmente no musculoesquelético, mas também, em
necem intolerantes à droga. A apresentação de liberação menor grau, no tecido adiposo e no fígado), por meio do
prolongada apresenta melhor tolerabilidade gastrintestinal estímulo sobre o receptor nuclear PPAR-gama (Peroxisome
que as formas de absorção simples, e deve ser tentado seu Proliferator-Activated Receptor gamma), levando a um au-
uso em pacientes com queixas gastrintestinais devidas ao mento da expressão dos transportadores de membrana de
uso da metformina de absorção rápida. glicose (GLUT4). Favorecem ainda a diferenciação de pré-adi-
A metformina, usada isoladamente, não causa hipogli- pócitos em adipócitos pequenos, mais sensíveis à insulina
cemia, pois não aumenta a secreção de insulina endógena. (principalmente no subcutâneo), enquanto induzem a apop-
Por isso, apresenta vantagens sobre as sulfonilureias para tose dos adipócitos grandes (menos sensíveis) no tecido adi-
uso em pessoas com risco aumentado de hipoglicemias, poso visceral. Dessa forma, reduzem a glicemia, por estimu-
como indivíduos idosos ou com glicemias apenas discreta- larem a captação de glicose pelos músculos, e diminuem os
mente elevadas. níveis de ácidos graxos livres e triglicérides, por estimularem
Metformina também não causa ganho de peso, o que sua deposição no tecido adiposo periférico. Uma decorrência
representa uma vantagem para diabéticos obesos, e, em dessa deposição de gordura subcutânea é o ganho ponderal.
alguns estudos, seu uso esteve associado a uma discreta Outro fenômeno observado durante o uso das glitazonas é
perda de peso (em torno de 2kg). Uma complicação muito a conversão de partículas pequenas e densas de LDL (mais
temida do uso de metformina é a acidose láctica, uma en- aterogênicas) em partículas maiores e menos densas.
tidade rara, porém com grande mortalidade (>50%). Uma Outros efeitos das glitazonas, além daqueles exercidos
grande meta-análise publicada recentemente, incluindo sobre o metabolismo de carboidratos ou lipídios, são o au-
quase 50.000 pacientes que usaram metformina, não en- mento da expressão de adiponectina, a redução de marca-
controu aumento do risco de acidose láctica associado ao dores de inflamação sistêmica (proteína C reativa, fibrinogê-
uso da droga. Portanto, esse risco permanece apenas teó- nio, TNF-alfa, interleucina-6), redução da resistência vascular
rico, desde que respeitadas as contraindicações ao seu uso periférica (com queda da pressão arterial), inibição da agre-
– principalmente a insuficiência renal. gação plaquetária, redução da microalbuminúria e redução
Recentemente, alguns estudos voltaram a chamar a da expressão de moléculas de adesão endotelial (ICAM-1,
atenção para a possibilidade de deficiência de vitamina B12 VCAM-1), refletindo melhora da função endotelial.

19
ENDOC RI N O LOG I A

Além disso, alguns estudos sugerem que as glitazonas zes (principalmente no quadril e nos punhos), independen-
podem reduzir a espessura da camada íntima média das temente de idade ou sexo.
carótidas e amenizar o acúmulo de gordura no fígado em Um efeito adverso específico da rosiglitazona, demons-
pacientes com esteato-hepatite não alcoólica. trado por 2 meta-análises publicadas em 2007 e confirma-
b) Posologia do por outra meta-análise de 2010, é o aumento de risco de
infarto agudo do miocárdio (43% maior) e de morte cardio-
No Brasil, atualmente, apenas 1 droga desta classe está vascular. Embora esse achado não tenha sido observado em
disponível no comércio: a pioglitazona (Actos). Essa medi- estudos prospectivos como o RECORD, o VADT (de 2009) e
cação está disponível sob a forma de comprimidos de 15, 30 o ACCORD (de 2008), a Agência Europeia de Medicamentos
ou 45mg. Deve ser ingerida em dose única diária, sem ne- (EMEA) e a ANVISA suspenderam a comercialização da ro-
cessidade de associação com as refeições. A dose máxima siglitazona em territórios europeu e brasileiro, respectiva-
é de 45mg/dia, ou 30mg/dia quando associada à metformi- mente, a partir de setembro de 2010.
na, sulfonilureias ou insulina.
A pioglitazona, por sua vez, parece se associar a uma re-
A rosiglitazona (Avandia) foi retirada dos mercados eu-
dução de 16% no risco de infarto do miocárdio, AVC e mor-
ropeu e brasileiro, em setembro de 2010, devido à sua asso-
te, conforme achados do estudo PROactive.
ciação com risco aumentado de eventos cardiovasculares.
Um achado novo foi a divulgação, em 2011, dos resulta-
c) Eficácia dos parciais de um grande estudo prospectivo com a piogli-
Quando usadas isoladamente, diminuem a glicose plas- tazona, em que o uso crônico (por mais de 24 meses) des-
mática de jejum em cerca de 50mg/dL (35 a 65mg/dL) e a sa medicação esteve associado a um discreto aumento de
A1c em 0,8 a 1,5 pontos percentuais. A redução da glicemia risco de câncer de bexiga (risco relativo 1,4). Embora esse
acontece após um período de, pelo menos, 6 a 8 semanas achado ainda precise ser confirmado, a droga já teve sua
de uso e atinge seu máximo após cerca de 12 semanas. comercialização suspensa na França devido a preocupações
Ambas as drogas aumentam os valores de HDL-c em com a segurança do seu uso.
5 a 10% e reduzem os ácidos graxos livres em 20 a 30%. e) Contraindicações
Entretanto, a rosiglitazona parece aumentar os níveis de
LDL-colesterol em cerca de 10 a 15%, enquanto a pioglita- As glitazonas são contraindicadas no DM1, na doença
zona não tem efeito sobre esses níveis. A pioglitazona, por hepática em atividade e na gravidez. Essas drogas também
apresentar também uma modesta ação como agonista do devem ser evitadas na ICC com classe funcional III ou IV da
receptor nuclear PPAR-alfa (alvo terapêutico dos fibratos), NYHA e em mulheres pós-menopausa com alto risco de
também parece reduzir os triglicérides de forma mais signi- fraturas osteoporóticas. Uma nova contraindicação para a
ficativa que a rosiglitazona. pioglitazona são os pacientes com câncer de bexiga ou com
hematúria inexplicada.
d) Efeitos adversos
Um dos paraefeitos mais comum das glitazonas é a re- D - Inibidores da alfa-glucosidase (acarbose)
tenção hídrica, com consequente edema periférico e dis-
creta anemia por hemodiluição. Esse efeito, observado em a) Modo de ação
cerca de 5% dos usuários, decorre da ação direta da droga A acarbose inibe competitivamente a ação das alfa-
sobre os túbulos coletores renais, levando à retenção de -glucosidases na borda “em escova” do intestino delgado,
sódio. O uso de amilorida pode aliviar o edema. Outra quei- retardando a quebra de oligossacarídeos e dissacarídeos
xa frequente é o ganho de peso, da ordem de 2 a 3kg (à nas suas formas mais simples (monossacarídeos). Como re-
custa do aumento da gordura subcutânea e da diminuição sultado, ocorre retardo (mas não redução) da absorção de
da gordura visceral), que acontece na maioria dos pacien- glicose, culminando na redução da glicemia e da insuline-
tes. O edema e o ganho de peso costumam ser maiores em mia no período pós-prandial. Alguns estudos mostram que
pacientes que também usam insulina ou sulfonilureias. A a acarbose é capaz de prevenir doença cardiovascular, gra-
retenção de líquido pode desencadear ou descompensar ças a seu efeito predominante sobre a glicemia pós-pran-
uma insuficiência cardíaca (risco relativo de 2,5), razão pela dial. Finalmente, há evidência de que a acarbose seja útil
qual na Europa é vetada a associação de uma glitazona à na prevenção da progressão para DM em indivíduos com
insulina. pré-diabetes (redução de 25% no risco). Não interfere na
As glitazonas não causam hipoglicemia quando usadas digestão da lactose.
isoladamente. Outros efeitos possíveis são sinusite, farin-
gite, mialgia e, mais raramente, hepatotoxicidade (mais b) Posologia
comumente descrita com a troglitazona, retirada do mer- A acarbose (Glucobay, Aglucose) está disponível em
cado por esse motivo). Até o momento, não existem casos comprimidos de 50 ou 100mg. Deve ser iniciada em doses
comprovados de hepatotoxicidade fatal com o uso de ro- baixas (25mg no almoço e no jantar), tomada junto às prin-
siglitazona e pioglitazona, ao contrário do ocorrido com a cipais refeições do dia (2 a 3 tomadas diárias, no início da
troglitazona. refeição) e titulada semanalmente até atingir a dose dese-
Usuários de glitazonas por mais de 12 a 18 meses apre- jada (em geral, 50 a 100mg nas refeições maiores). A dose
sentam, ainda, um aumento do risco de fraturas em 2,5 ve- máxima é de 300mg/dia, fracionados em 3 tomadas.

20
D I A B E T E S M E L L I T U S - T R ATA M E N T O

O miglitol e a voglibose são inibidores das alfa-glucosi- íleo) e o Glucose-dependent Insulinotropic Polypeptide (GIP,
dases não disponíveis no mercado brasileiro. secretado pelas células K no jejuno).
Logo se observou que a secreção do GLP-1 estava dimi-
c) Eficácia
nuída em pacientes com DM, mas sua atividade biológica
A acarbose reduz em 40 a 60mg/dL a glicemia pós-pran- estava preservada, o que motivou pesquisas para tentar
dial, diminui discretamente a glicemia de jejum (10 a 30mg/ desenvolver agentes terapêuticos que resgatassem a ação
dL) e leva a uma queda de 0,5 a 1% na A1c. Também diminui fisiológica desse hormônio, já que, entre seus vários efeitos,
de forma significativa a trigliceridemia pós-prandial (20%).

ENDOCRINOLOGIA
se incluem estímulo à secreção de insulina dependente dos
níveis de glicose circulante; inibição da secreção de gluca-
d) Efeitos adversos
gon; retardo do esvaziamento gástrico; e redução do ape-
A acarbose não causa hipoglicemia. Entretanto, indiví- tite – todos contribuindo para melhor controle glicêmico,
duos que a utilizam associada a sulfonilureias ou insulina principalmente no período pós-prandial.
podem apresentar hipoglicemia relacionada a essas últimas A molécula nativa de GLP-1 humano não tem uso tera-
drogas. Quando isso acontecer, o tratamento da hipoglice- pêutico, já que sua meia-vida é extremamente curta (menos
mia deverá ser feito com monossacarídeos (glicose ou fru- de 5 minutos). Uma alternativa, portanto, foi desenvolver
tose), pois a absorção de moléculas maiores de carboidra- agentes que bloqueassem a ação da enzima naturalmente
tos (como o açúcar de mesa ou sacarose, um dissacarídeo) responsável pela degradação do GLP-1 endógeno, conhe-
estará lentificada pela ação da acarbose. cida como dipeptidilpeptidase IV (DPP-IV). Estes agentes
Os principais efeitos adversos da acarbose decorrem da aumentam os níveis de GLP-1 ativo em 2 a 3 vezes e são
permanência prolongada dos carboidratos na luz intestinal, eficazes para melhorar o controle glicêmico de pacientes
com fermentação aumentada dos mesmos e produção de com DM2, em monoterapia ou associados a outras drogas.
gases pela flora intestinal: flatulência, meteorismo, cólicas, Uma ação dessas drogas observada em estudos animais
distensão abdominal e diarreia. Para reduzir esses sintomas, é o aumento da massa de células beta, por estímulo à pro-
deve-se iniciar a acarbose em doses baixas e titular progres- liferação/neogênese e inibição da apoptose dessas células.
sivamente. Cerca de 5% dos pacientes são intolerantes à dro- Se esse efeito também for comprovado em humanos, as
ga. Eventualmente, pode haver elevação das transaminases indicações dessa classe de drogas poderão ser ampliadas,
durante o uso de acarbose, geralmente reversível com a sus- tendo em vista o interessante potencial de preservação da
pensão da droga. Não provoca alteração do peso. secreção endógena de insulina.

e) Contraindicações b) Posologia
Os inibidores de alfa-glucosidases são contraindicados Existem 3 drogas dessa classe disponíveis no mercado
brasileiro: a vildagliptina, a sitagliptina e a saxagliptina.
a pacientes com doença inflamatória intestinal, obstrução
A vildagliptina (Galvus) é vendida em comprimidos de
intestinal, síndromes disabsortivas, doenças hepáticas, in-
50mg. A dose é de 50mg, 2x/dia, para monoterapia ou
suficiência renal (creatinina acima de 2mg/dL), na gravidez,
associação com metformina ou glitazona, ou 50mg 1x/dia
na lactação e a crianças abaixo dos 12 anos.
para associação com sulfonilureia ou insulina. Também exis-
te a apresentação de 50mg associada a 500mg, 850mg ou
E - Inibidores da DPP-IV (gliptinas) 1.000mg de metformina (Galvus-Met). Em pacientes com
Correspondem a uma nova classe de drogas antidiabéti- insuficiência renal (clearance >30mL/min), deve ser usada
cas, com ação potencializadora dos hormônios pró-insulíni- na dose máxima de 50mg/dia.
cos intestinais (incretinas). A sitagliptina (Januvia) é comercializada na forma de
comprimidos de 25, 50 ou 100mg, para uso em dose única
a) Modo de ação diária. Também está disponível a associação de sitaglipti-
As drogas desta classe estimulam a ação de hormônios na 50mg com metformina 500mg, 850mg ou 1.000mg, que
intestinais conhecidos como incretinas. O efeito incretina foi deve ser usada 2x/dia (Janumet). Deve ter sua dose ajusta-
primeiramente descrito em experiências que compararam a da na insuficiência renal: 50mg/dia para clearance entre 30
secreção de insulina em resposta a uma mesma sobrecarga e 50mL/min e 25mg/dia para clearance <30mL/min.
de carboidratos administrada por 2 vias diferentes: VO ou A droga mais recente é a saxagliptina (Onglyza), comer-
IV. Esses estudos observaram que a secreção de insulina era cializada em comprimidos de 2,5 ou 5mg, para uso em dose
bem maior após a administração VO dos carboidratos, ape- única diária. A dose de 2,5mg é preferida para pacientes
sar de a quantidade de carboidratos ser a mesma. A expli- com disfunção renal.
cação proposta para esse fenômeno foi que a passagem de Várias outras drogas dessa classe estão em estudo, de-
carboidratos pelo tubo digestivo estimulava a secreção de vendo chegar em breve ao mercado, tais como a linagliptina
(Tradjenta).
hormônios intestinais, que potencializavam a secreção de
insulina pelas células beta-pancreáticas em resposta à refei- c) Eficácia
ção. Mais tarde, esses hormônios intestinais, inicialmente As gliptinas apresentam efeito preferencial sobre a gli-
batizados de incretinas, foram identificados como sendo o cemia pós-prandial, a exemplo das glinidas e da acarbose.
Glucagon-Like Peptide 1 (GLP-1, secretado pelas células L no Reduzem em 50mg/dL a glicemia após as refeições, em

21
ENDOC RI N O LOG I A

20mg/dL a glicemia de jejum e em 0,6 a 1,8% a A1c. O efei- e a A1c em aproximadamente 0,6 a 1%. Outro efeito muito
to redutor da glicemia parece ser maior em pacientes com interessante dessas drogas é a redução do peso: em média,
níveis glicêmicos mais elevados. perdem-se 1,6 a 3,6kg em 6 a 12 meses. Portanto, podem
d) Efeitos adversos servir como alternativa à insulinoterapia em diabéticos tipo
2, obesos com mau controle glicêmico apesar do uso de vá-
São drogas extremamente bem toleradas. Náuseas, ce-
rios hipoglicemiantes orais.
faleia, artralgia e faringite são os sintomas mais comuns em
pacientes tratados com gliptina, entretanto não foram mais d) Efeitos adversos
frequentes do que com o placebo na maioria dos estudos. As queixas mais comuns dos pacientes em uso de exe-
Têm efeito neutro sobre o peso corporal e não provo- natida ou liraglutida foram a náusea e a perda de apetite
cam hipoglicemia. O efeito mais preocupante observado (mais intensas no início do tratamento), além de descon-
em estudos clínicos foi a hepatotoxicidade, principalmente forto intestinal, pirose e cefaleia. O risco de hipoglicemia é
quando era utilizada a vildagliptina, 100mg em dose única maior em pacientes tratados com exenatida + sulfonilureia.
diária (cerca de 0,6% dos pacientes), razão pela qual essa
Por isso, recomenda-se reduzir a dose de sulfonilureia pela
apresentação foi retirada do mercado. O risco dessa com-
metade quando o paciente iniciar o uso de um análogo de
plicação parece ser menor com o uso da vildagliptina em
GLP-1. O uso dessas medicações pode interferir na absor-
doses fracionadas (50mg, 2x/dia).
ção de outros medicamentos utilizados por via oral (por
e) Contraindicações exemplo, antibióticos), por retardar o esvaziamento gástri-
As gliptinas são contraindicadas a pacientes hepatopa- co; portanto, outras medicações devem ser tomadas pelo
tas (transaminases acima de 2,5 vezes o limite superior do menos 1 hora antes da aplicação da exenatida.
normal). Não foram estudadas, portanto devem ser evita- Recentemente, foram descritos vários casos de pancrea-
das, no DM1, na gravidez, na lactação e em pacientes com tite (alguns deles, fatais) em pacientes utilizando exenatida.
<18 anos.
e) Contraindicações
F - Análogos de GLP-1 A exenatida é contraindicada no DM1, na cetoacidose
diabética, na insuficiência renal grave ou terminal (clearan-
A exenatida e a liraglutida são agonistas (análogos) do ce <30mL/min), e a pacientes com distúrbio gastrintestinal
GLP-1, que apresentam meia-vida bem maior do que a do
grave (gastroparesia).
hormônio natural, o que possibilita seu uso terapêutico
para controle glicêmico no DM. A exenatida foi obtida a par-
tir da saliva de um réptil comum no sudoeste dos Estados
G - Associações
Unidos e no noroeste do México, o “monstro de Gila”, único A associação de medicamentos com diferentes mecanis-
lagarto venenoso do mundo. mos de ação (por exemplo: um secretagogo de insulina +
a) Modo de ação um sensibilizador à insulina) geralmente consegue um efei-
to aditivo na redução da glicemia e da A1c. Além disso, pou-
As medicações desta classe ligam-se aos receptores en-
cos pacientes conseguem permanecer bem controlados, do
dógenos para GLP-1. Entre seus efeitos, podem-se citar au-
ponto de vista glicêmico, usando apenas 1 medicação, em
mento da secreção de insulina dependente de glicose, po-
razão da própria história natural do DM2, que cursa com
tencialização da 1ª fase de secreção de insulina, inibição da
resistência à insulina duradoura desde o início do quadro
secreção de glucagon, retardo do esvaziamento gástrico e
diminuição do apetite. Os efeitos dos análogos de GLP-1 são (muitas vezes, iniciando-se décadas antes do diagnóstico do
mais intensos que os dos os inibidores da DPP-IV, apesar de diabetes) e deficiência de secreção de insulina progressiva
ambas as classes agirem no mesmo eixo. São usados como com o passar dos anos. Por esta razão, associar diferentes
monoterapia ou como adjuvantes em pacientes com DM2 medicamentos (com diferentes mecanismos de ação) em
que já estão em uso de outros hipoglicemiantes (metformi- diferentes fases do DM2 (quando mais de 1 defeito do me-
na e/ou sulfonilureia) sem atingir as metas do tratamento. tabolismo glicídico está presente) é uma estratégia interes-
b) Posologia sante para obter um bom controle durante todo o acompa-
nhamento do paciente.
A exenatida (Byetta) deve ser administrada por via sub-
As associações mais estudadas são: sulfonilureia + me-
cutânea, em 2 doses diárias (de 5 ou 10ug) aplicadas de 30
tformina; sulfonilureia + glitazona; metformina + glitazona;
a 60 minutos antes do café e do jantar. Geralmente, inicia-
sulfonilureia + acarbose; metformina + gliptina; e sulfonilu-
-se com a dose menor (5ug, 2x/dia) durante pelo menos 4
semanas, para depois passar à dose plena (10ug, 2x/dia). reia + gliptina. Deve-se evitar a associação de 2 secretago-
A liraglutida (Victoza) pode ser usada por via subcutâ- gos de insulina (sulfonilureia + glinida).
nea em dose única diária. Eventualmente, em pacientes de controle mais difícil,
podem ser necessárias 3 ou mais drogas diferentes para
c) Eficácia atingir as metas de tratamento (exemplo: sulfonilureia +
O uso da exenatida (20ug/dia) reduz a glicemia de jejum metformina + glitazona, ou metformina + sulfonilureia +
em 10 a 25mg/dL, a glicemia pós-prandial em 60 a 70mg/dL gliptina). Entretanto, quando mais de 2 drogas passam a ser

22
D I A B E T E S M E L L I T U S - T R ATA M E N T O

necessárias, sempre é interessante considerar a adição de diabetes de acordo com o nível glicêmico e o quadro clínico
insulina como 3º ou 4º agente, tendo em vista sua boa efi- do paciente (Tabela 10).
cácia, baixo custo e boa tolerabilidade.
Muitos autores sugerem que, se for necessário adicio- Tabela 10 - Tratamento do DM2 em adultos (SBD, 2009)
nar uma 3ª medicação para controle do diabetes, prova- Etapa 1 - Conduta inicial conforme a situação clínica atual
velmente será melhor adicionar a insulina, em comparação Descompensa-
Manifesta- Manifestações Manifesta-
com a adição de um 3º agente hipoglicemiante oral. Nesse ção severa ou
ções leves moderadas ções severas

ENDOCRINOLOGIA
intercorrência
caso, deve-se optar por uma insulina de ação basal.
Qualquer
Cetoacidose
Tabela 9 - Comparação da potência hipoglicemiante de diferentes Glicemia Qualquer glicemia
diabética
<200mg/dL glicemia >300mg/dL
abordagens terapêuticas ou estado
+ sintomas entre 200 e ou cetonúria
Terapia Redução potencial da A1c hiperosmolar
leves ou 300mg/dL + ou perda
ou doença
Mudanças de estilo de vida 1 a 2% ausentes + ausência de de peso
grave
ausência de critérios para importante
Monoterapia (nateglinida ou intercorrente ou
0,5 a 1% doença aguda manifestação ou sintomas
acarbose comorbidade
concomitante. leve ou severa. graves e sig-
Monoterapia (demais drogas) 1 a 2% grave.
nificativos.
Associação de drogas orais 2 a 3,5% Metformina
(500 a
Insulina +/- drogas orais Ampla
2.000mg/ Metformina Iniciar terapia
dia)* + (500 a conforme
Iniciar insu-
6. Diretrizes para tratamento farmacoló- mudanças de 2.000mg/dia)*
linoterapia
algoritmo
estilo de vida. + mudanças e conforme
gico do diabetes mellitus 2 Se não atingir de estilo de
imediata-
mente.
o controle
A1c<7% em 4 vida + 2ª droga glicêmico após
O DM do tipo 2, uma doença evolutiva, resulta de 2 de- a 6 semanas: antidiabética. a alta.
feitos básicos: resistência à insulina e deficiência de secre- associar 2ª
ção da mesma. Assim, seu tratamento deve ser dinâmico e droga.
adaptado à fase da doença (Figura 2). Etapa 2 - adicionar ou modificar o 2º agente
conforme o nível da A1c
A1c 7 a 8% A1c 8 a 10% A1c >10%
Sulfonilureia, ou
inibidor de DPP-IV, Sulfonilureia, ou
Insulinização: basal
ou glitazona inibidor da DPP-
+ doses prandiais
se predomínio de IV, ou glitazona,
(bolus), associada ou
hiperglicemia pós- ou insulina
não à metformina,
prandial: glinida basal ao deitar
ou sulfonilureia, ou
ou acarbose se sobrepeso
(possivelmente) inibidor
se sobrepeso ou obesidade:
da DPP-IV.
ou obesidade: exenatida.
exenatida.
Monitorização e ajustes no tratamento após 2 a 3 meses com
doses máximas efetivas das drogas, para atingir as metas: A1c
<7%; glicemia de jejum <130mg/dL; glicemia 2 horas pós-
prandial <160mg/dL.
Etapa 3 - adicionar um 3º agente, ou intensificar o
tratamento insulínico
Sem uso de insulina Já em uso de insulina
Adicionar um 3º ADO com
diferente mecanismo de
ação. Se em 2 ou 3 meses
Intensificar a insulinização até atingir
não atingir as metas de
Figura 2 - Tratamento para o diabetes tipo 2 (SBD, 2009) as metas de A1C <7%, glicemia de
A1C <7%, glicemia de
jejum <130mg/dL ou glicemia 2
jejum <130mg/dL ou
Mudança de estilo de vida deve ser orientada e refor- horas pós-prandial <160mg/dL.
glicemia 2 horas pós-
çada em todas as consultas, em qualquer fase do DM2. prandial <160mg/dL,
Entretanto, o paciente com diabetes não deve ser tratado iniciar insulinização.
apenas com mudança de estilo de vida, estando sempre in- * Se houver intolerância (gastrintestinal) à metformina, pode-se
dicado o uso de pelo menos 1 droga antidiabética. tentar o uso de formulações de ação prolongada. Se, mesmo
O algoritmo do tratamento do DM2, publicado pela SBD assim, persistir a intolerância, substituir por uma das opções da
em 2009, orienta a escolha da droga inicial para controle do etapa 2.

23
ENDOC RI N O LOG I A

A - Escolha da 1ª medicação pós-prandial; e exenatida pode ser uma boa opção na


presença de sobrepeso ou obesidade;
Na grande maioria dos pacientes (pelo menos, nos pri-
meiros anos de DM), o predomínio é de resistência à in-
- Com A1c mais alta (de 8 a 10%, ou glicemia entre 200
e 300mg/dL), deve-se optar por drogas com maior po-
sulina, evidenciada por obesidade androide, hipertensão
tência hipoglicemiante: sulfonilureia, inibidor de DPP-
arterial e dislipidemia. Devido ao seu bom perfil de eficá-
IV, glitazona ou insulina basal ao deitar; ou exenatida,
cia (redução da resistência à insulina, redução do peso),
se excesso de peso;
segurança (risco nulo de hipoglicemia) e baixo custo, a
metformina (na dose de 500 a 2.000mg/dia) é a medicação - Com A1c acima de 10% (ou glicemia acima de 300mg/
de escolha para uso como 1ª opção na maioria dos pacien- dL), a melhor opção é a insulinização do paciente (basal-
tes com DM2. -bolus), associada ou não à metformina ou sulfonilureia
A exceção são os pacientes com glicemias extremamen- ou, possivelmente, um inibidor da DPP-IV (Tabela 10).
te elevadas (acima de 300mg/dL) ou com cetonúria, ou
então na presença de perda de peso significativa, sintomas
evidentes ou intercorrências agudas graves, em que a droga
inicial de escolha passa a ser a insulina (Tabela 10).

B - Escolha da 2ª medicação
Na impossibilidade do uso da metformina, ou quando
esta não é suficiente para obter controle glicêmico adequa-
do num período de 6 a 8 semanas, ou quando os níveis gli-
cêmicos iniciais estão mais elevados (entre 200 e 300mg/
dL), deverá ser associada uma 2ª droga oral (Tabela 10).
A escolha da melhor medicação para uso como 2ª opção
vai depender de vários fatores, como os apresentados na
Tabela 11:

Tabela 11 - Fatores a serem considerados na escolha da droga an-


tidiabética
Características da droga Figura 3 - Escolha da 2ª medicação antidiabética de acordo com os
níveis de A1c (SBD, 2009)
- Potência hipoglicemiante;
- Ação na glicemia de jejum ou na glicemia pós-prandial. C - Escolha da 3ª medicação
Segurança da droga
Quanto aos pacientes que já fazem uso de 2 medica-
- Comorbidades do paciente (IRC, ICC, hepatopatia); mentos e ainda não atingiram os níveis desejados de con-
- Contraindicações da droga. trole glicêmico, devem-se considerar 3 opções principais:
Características da doença - Adicionar um 3º agente oral da lista inicial;
- Grau de resistência à insulina; - Adição de insulina de ação intermediária/prolongada
- Grau de deficiência de insulina (relativa ou absoluta). ao deitar, mantendo-se 2 agentes orais: a combinação
que parece ser mais eficaz é a de insulina com metfor-
Características do paciente
mina, pois não levou ao aumento de peso; comporta-
- Peso corporal (eutrófico ou com excesso de peso); mento semelhante é observado com a associação de
- Nível socioeconômico (custo da droga); acarbose à insulinoterapia;
- Risco de hipoglicemia; - Suspender os medicamentos orais e utilizar ape-
- Preferência pessoal. nas insulina: esse esquema frequentemente exige
a combinação de insulina de efeito intermediário ou
Frequentemente, é necessária a combinação de 2 ou 3 lento com insulinas de efeito rápido ou ultrarrápido,
medicamentos orais, com mecanismos de ação diferentes. em doses múltiplas, e algumas vezes muito elevadas.
O algoritmo de tratamento da SBD de 2009 simplificou a Usualmente, esse tratamento causa aumento de peso.
escolha da 2ª droga, baseando essa decisão no nível de A1c
do paciente após o uso da 1ª medicação (Figura 3). A recomendação mais recente da SBD, de 2009, orienta
- Se a A1c estiver discretamente elevada (entre 7 e 8%), optar entre:
pode-se usar praticamente qualquer outra droga em - Uso de um 3º agente oral, com mecanismo de ação
associação: sulfonilureia, inibidor da DPP-IV ou glitazo- diferente, durante 2 ou 3 meses; se não for obtido con-
na são as primeiras opções; glinida e acarbose podem trole adequado, iniciar insulinoterapia;
ser usadas, se houver predomínio de hiperglicemia - Iniciar ou intensificar insulinoterapia.
24
D I A B E T E S M E L L I T U S - T R ATA M E N T O

7. Insulina Tabela 13 - Classificação das insulinas quanto à origem


Insulinas animais
A - Características Insulina suína ou bovina; atualmente em desuso. Provocavam
lipoatrofia no local de aplicação por reação alérgica, em alguns
a) Modo de ação pacientes.
A ligação da insulina aos seus receptores, nos diversos Insulinas humanas
tecidos-alvo, promove efeitos anabólicos e anticatabólicos
Correspondem a moléculas de insulina idênticas à endógena hu-

ENDOCRINOLOGIA
(Tabela 12).
mana (51 aminoácidos, em 2 cadeias peptídicas – A e B – unidas
por 2 pontes dissulfeto). A insulina humana pura, cristalina, é
Tabela 12 - Efeitos biológicos da insulina
conhecida como insulina regular. Outra insulina humana é a NPH
Efeitos anabólicos
(Neutral Protamine Hagedorn), que recebeu a adição de zinco e
- Estímulo à captação de glicose pelos tecidos (fígado, muscu- algumas proteínas para retardar sua absorção e prolongar sua
loesquelético, tecido adiposo) devido à maior expressão do ação farmacológica.
transportador de membrana GLUT4;
Análogos de insulina
- Estímulo à síntese de glicogênio (glicogênese) no fígado e mus-
culoesquelético; Correspondem a moléculas de insulina que sofreram alguma
modificação na sua composição básica (pela troca ou adição/
- Estímulo à captação tecidual de aminoácidos;
retirada de alguns aminoácidos), a fim de obter perfis diferen-
- Estímulo à expressão gênica e à síntese de DNA; ciados de tempo de ação. Incluem as insulinas: lispro, aspart,
- Estímulo à síntese de proteínas e ácidos graxos; glulisina, detemir e glargina.
- Estímulo à atividade da bomba de sódio e potássio (Na-K-
ATPase). As diferentes preparações de insulina podem ser classifi-
Efeitos anticatabólicos cadas quanto à sua origem (Tabela 13) ou quanto ao tempo
- Inibição da síntese de glicose (gliconeogênese) e da quebra do de ação, em 2 grandes grupos: basais e de bolus (Tabela 14).
glicogênio (glicogenólise) pelo fígado e musculoesquelético;
Tabela 14 - Características principais das insulinas basais e de bolus
- Inibição da síntese de corpos cetônicos (cetogênese) pelo fí-
gado; Características Insulina basal Insulina de bolus
- Inibição da lipólise em tecido adiposo; - Controle da glice- - Controle da glicemia
mia nos períodos nos períodos pós-
- Inibição da apoptose celular;
Objetivo pré-prandiais e nos -prandiais (de 2 a 3
- Inibição da secreção de glucagon pelas células alfa. intervalos entre as horas após as refei-
refeições. ções).
Duração de - Intermediária ou
- Curta.
ação prolongada.
Pico de ação - Pouco pronunciado. - Pronunciado.
- De acordo com
- De acordo com a glice-
Ajuste de dose a glicemia pré-
mia pós-prandial.
-prandial.
- Intermediária: NPH; - Rápida: regular;
Tipos - Prolongadas: glargi- - Ultrarrápidas: lispro,
na e detemir. aspart e glulisina.

Uma classificação mais detalhada das insulinas quanto


ao seu início e duração de ação pode ser vista na Tabela 15
e também na Figura 5.
Figura 4 - Estrutura da molécula de pró-insulina, que dá origem à Tabela 15 - Comparação entre o perfil de ação das diferentes pre-
insulina (peptídeos A + B) e ao peptídio C parações de insulina
b) Classificação Início
Prepara- Duração
Existem diversas preparações farmacológicas de insuli- Classifi- Tipo de da Pico de
ções de de ação
cação ação ação ação (h)
na, cada uma delas com características próprias quanto à insulina (h)
(h)
absorção e perfil de ação biológica. As antigas insulinas de
origem animal (bovina e suína), antigamente muito utiliza- Aspart,
Rápidas, Ultrar-
lispro e <0,25 0,5 a 1,5 4a6
das para tratamento do diabetes, já saíram de uso, sendo ou pran- rápida
glulisina
substituídas por insulinas sintéticas, produzidas por tecno- diais
Rápida Regular 0,5 a 1 2a3 5 a 10
logia de DNA recombinante (Tabela 13).

25
ENDOC RI N O LOG I A

Início ras), sendo indicada como insulina de bolus (prandial). Sua


Prepara- Duração
Classifi- Tipo de da Pico de aplicação era mais cômoda (por dispensar as injeções), mas
ções de de ação
cação ação ação ação (h) apresentava um custo proibitivo, razão pela qual foi retirada
insulina (h)
(h) do mercado. Era contraindicada a fumantes, crianças, as-
Inter- máticos e gestantes.
mediá- NPH 2a4 4 a 10 10 a 16
ria B - Como prescrever insulina
Basais Prolon-
Detemir 2a4 6a8 12 a 24
gada a) Doses de insulina no DM2
Prolon- Para pacientes recém-diagnosticados com DM2 e com
Glargina 2a4 Sem pico 20 a 24
gada muito mau controle, exigindo insulinoterapia plena já no
início do tratamento, a dose inicial de insulina recomenda-
da é de 0,4 a 0,8U/kg/dia. Entretanto, geralmente a dose
final de insulina necessária para bom controle glicêmico
costuma ficar na faixa de 1 a 1,5U/kg/dia. A dose média
de insulina (em unidades por quilo de peso) costuma ser
significativamente maior a pacientes com DM2 do que a
pacientes com DM1, devido à importância da resistência à
insulina no 1º grupo. Considera-se resistência severa à insu-
lina quando o paciente necessita de mais do que 2,5U/kg/
dia, ou 200U/dia.
b) Esquemas de aplicação de insulina no diabetes
mellitus 2
No paciente com DM2 que já vem fazendo uso (geral-
mente, há vários anos) de 1 ou vários hipoglicemiantes
orais e, mesmo assim, vem evoluindo com piora progres-
Figura 5 - Tempo de ação das insulinas
siva da glicemia (um fenômeno denominado “falência se-
c) Características específicas de alguns tipos de insulina cundária”, decorrente da perda progressiva da secreção
A insulina de ação rápida (regular) deve ser aplicada 30 endógena de insulina), geralmente utiliza-se um esquema
a 45 minutos antes das refeições. Já os análogos de insuli- de insulina simples, conhecido como “insulinização bedti-
na de ação ultrarrápida (aspart, lispro, glulisina) podem ser me” (Figura 6). Este é, caracteristicamente, um esquema
aplicados 15 minutos antes, durante ou até 15 a 20 minutos de transição entre a terapia exclusivamente oral e a insu-
após a refeição. linoterapia plena. Em geral, prescreve-se uma insulina de
Todas essas apresentações podem ser misturadas, na ação intermediária ou prolongada bedtime (administrada
mesma seringa, com insulinas de ação intermediária, para na hora de dormir), pois a resistência à insulina acontece
facilitar sua aplicação. A única insulina que não pode ser principalmente pela manhã, na maioria dos indivíduos,
misturada a nenhum outro tipo é a glargina, em razão de por causa da elevação circadiana de hormônios contrarre-
seu baixo pH, responsável pela sua absorção lenta no pH guladores hiperglicemiantes nesse horário. Uma sugestão
fisiológico do tecido subcutâneo. é a insulina NPH, em doses baixas – 0,1U/kg de peso, ou
A detemir costuma provocar um ganho de peso menor, 10UI por via subcutânea – ao deitar, com aumentos gra-
em comparação a doses similares da glargina. Alguns pa- duais da dose até a obtenção de glicemias de jejum ade-
cientes conseguem ficar controlados com apenas 1 injeção quadas (abaixo de 110mg/dL), sem evidência de hipogli-
diária de detemir, enquanto outros exigem 2 aplicações cemia durante a madrugada. O uso de glargina ou detemir
para adequada cobertura basal. Em geral, quanto maior a noturna tem eficácia semelhante e menos hipoglicemias
dose de insulina detemir utilizada, maior parece ser a du- noturnas, em comparação com o uso de NPH bedtime.
ração da sua ação (que pode variar de 12 a 24 horas em Usando esse esquema, muitas vezes a obtenção de níveis
diferentes indivíduos e com diferentes dosagens). mais baixos de glicemia em jejum permite um melhor con-
A insulina inalatória (Exubera), que esteve disponível no trole glicêmico também durante todo o dia. Nesse tipo de
mercado durante o ano de 2007, apresentava início de ação insulinização (bedtime), recomenda-se manter todos os
semelhante ao dos análogos ultrarrápidos (<15 minutos) e hipoglicemiantes orais em uso durante o dia (inclusive os
duração de ação semelhante à da insulina regular (4 a 6 ho- secretagogos).

26
D I A B E T E S M E L L I T U S - T R ATA M E N T O

d) Esquemas de insulina no DM1


A terapia insulínica convencional consiste no uso de 1 a
2 doses de NPH por dia, associada ou não à insulina regular.
Esse esquema, muito utilizado no passado para DM1, está
sendo progressivamente abandonado por não permitir, na
maioria dos casos, um controle glicêmico adequado.
O tratamento intensivo, geralmente mais eficiente,

ENDOCRINOLOGIA
consiste na administração subcutânea diária de 2 ou mais
doses de insulina de ação intermediária ou de 1 a 2 doses
de insulina prolongada (como insulina basal), associada à
insulina rápida (R) ou à ultrarrápida (UR) antes das refeições
(como insulina bolus, ou prandial). A aplicação de insulina
de ação intermediária antes do jantar pode resultar em pico
de ação desta insulina entre as 2 e as 4 horas da manhã,
com consequente hipoglicemia. Em muitos pacientes, é
necessária a aplicação da insulina de ação rápida antes do
jantar e da insulina de ação intermediária ou prolongada
antes de dormir.
Em geral, o tratamento mais fisiológico (ou seja, que
obtém níveis de glicemia mais próximos do normal, com
menor risco de hipoglicemia) costuma ser o basal-bolus,
usando análogos de insulina de ação prolongada (dete-
Figura 6 - Introdução do esquema bedtime em diabéticos tipo 2 em mir ou glargina) para cobertura das necessidades basais
falência secundária (aproximadamente 50% da dose diária total de insulina), e
análogos ultrarrápidos para cobertura das excursões pran-
Caso haja hipoglicemia durante a madrugada, incapaci-
diais, na forma de bolus distribuídos nas principais refeições
dade de controle adequado (hiperglicemia) durante o dia
(Figura 7).
ou uso de doses maiores que 30 a 40U de insulina à noite,
deve-se considerar o uso de 2 ou mais doses de insulina.
Em relação aos hipoglicemiantes orais, quando o paciente
passa para um tratamento insulínico com 2 ou mais doses
de insulina/dia, a maioria dos endocrinologistas prefere
suspender (ou reduzir) os secretagogos e manter os sensi-
bilizadores de insulina (metformina e/ou glitazona).
Outra situação é o paciente que já se apresenta com gli-
cemias muito elevadas (>270 a 300mg/dL), extremamente
sintomático, com perda de peso importante ou necessidade
de redução rápida da glicemia devido a intercorrências clíni-
cas concomitantes. Nesse caso, é melhor optar por um es-
quema de insulinização intensificado desde o início do tra-
tamento. Inicia-se com dose aproximada de 0,4 a 0,8U/kg/
dia, divididas idealmente em esquema basal-bolus, ou seja,
cerca de 50% da dose total do dia na forma de insulina ba-
sal e os restantes 50% na forma de insulinas rápidas distri-
buídas em 2 a 3 doses (bolus) junto às principais refeições,
com correções posteriores da dose conforme resultados de
automonitorização da glicemia capilar. Esse esquema é co-
nhecido como basal-bolus.
c) Doses de insulina no DM1
No DM1, a dose inicial de insulina varia de acordo com
a apresentação clínica. Em pacientes pediátricos (pré-púbe- Figura 7 - Níveis de insulina plasmática durante as 24 horas do
res), a dose média é de 0,25 a 0,5U/kg/dia (na ausência de dia: (A) paciente não diabético, com secreção endógena normal de
cetoacidose diabética) ou de 0,5 a 0,75U/kg/dia (com ce- insulina e (B) paciente diabético em insulinoterapia basal-bolus,
toacidose); para adolescentes, de 0,5 a 0,75U/kg/dia (sem usando glargina (como insulina basal) e lispro (como insulina de
cetoacidose) ou de 0,75 a 1U/kg/dia (com cetoacidose). bolus)

27
ENDOC RI N O LOG I A

e) Contagem de carboidratos As vantagens do esquema de insulinoterapia basal-bo-


Esta é uma estratégia de insulinoterapia intensiva, do lus com contagem de carboidratos incluem a maior flexibi-
tipo basal-bolus, em que a dose de insulina basal é fixa, mas lidade com relação à dieta (podendo o paciente variar mais
a dose de insulina rápida ou ultrarrápida aplicada nas re- o horário e o tamanho das refeições), com bom controle gli-
feições (bolus) é variável e calculada pelo próprio paciente, cêmico e menor risco de hipoglicemias desde que seja feito
dependendo da quantidade de carboidratos consumida. o ajuste adequado das doses de insulina basal (com base
Usa-se uma dose de insulina basal suficiente para obter nas glicemias de jejum e pré-prandiais) e de bolus (com
controle adequado das glicemias de jejum e pré-prandiais base nas glicemias pós-prandiais, medidas 2 horas após as
(meta: <110mg/dL). principais refeições).
O paciente, então, deve receber um treinamento para
aprender a estimar a quantidade de carboidratos (em gra- C - Misturas de insulinas
mas, ou em porções) nas refeições, usando listas ou tabelas Nos pacientes em tratamento intensivo, na forma de
com o conteúdo de carboidratos dos alimentos mais comuns. várias aplicações diárias de, pelo menos, 2 tipos diferentes
A relação entre a quantidade de carboidratos ingerida de insulina (a basal e a de bolus), é comum a prática de mis-
e a dose de insulina de bolus (relação Carboidrato/Insulina, turar as insulinas (na mesma seringa ou na mesma caneta)
ou C/I) é variável, de acordo com as características do pa- para reduzir o número de injeções diárias.
ciente e o horário do dia. Em geral, começa-se com uma Algumas das misturas mais comuns são NPH + regular,
relação C/I de 1/15, ou seja, 1 unidade de insulina rápida/ NPH + lispro e NPH + aspart (para aplicação antes do café e
ultrarrápida para cada 15g de carboidratos. Pacientes ma- do jantar, ou antes das 3 principais refeições). Usando essas
gros podem precisar de menos insulina (relação C/I maior, misturas para aplicação 2 a 3x/dia, o paciente receberá co-
de até 1/18 ou 1/20), enquanto pacientes obesos ou com bertura insulínica praticamente durante as 24 horas.
resistência à insulina geralmente precisam de doses maio- A Tabela 17 e a Figura 8 ilustram o horário de ação de
res de insulina (relação C/I menor, de 1/12 ou até 1/10). No cada dose de insulina num paciente hipotético.
café e no almoço, a necessidade de insulina também cos-
tuma ser maior do que no jantar ou na ceia. O ajuste da Tabela 17 - Horários de ação de cada dose de insulina em um pa-
relação C/I para cada paciente deve ser feito pelo médico, ciente diabético que aplica mistura de NPH + regular 2x/dia (no
usando os resultados das glicemias pós-prandiais (medidas café da manhã e no jantar)
2 horas após as refeições), objetivando valores <140mg/dL Horário do dia Insulina agindo neste horário
nesse período. Após o café e antes do almoço Regular do café da manhã
A Tabela 16 apresenta um exemplo do cálculo da dose de
Após o almoço e antes do
insulina prandial, ou de bolus, a ser aplicada em uma deter- NPH do café da manhã
jantar
minada refeição, para um paciente com relação C/I = 1/15.
Após o jantar Regular do jantar
Tabela 16 - Exemplo do cálculo da dose de insulina prandial em Madrugada e manhã seguinte NPH do jantar
uma determinada refeição, para um paciente que utiliza a relação Observação: lembrar o tempo de ação das diferentes preparações
C/I = 1/15 (ou seja, 1 unidade para cada 15g de carboidratos) insulínicas. NPH: início de ação em 1 a 2 horas, pico em 6 a 10 horas
Medida Quantidade de Quantidade e duração do efeito de até 14 a 16 horas. Regular: início em 30 a 60
Alimento minutos, pico em 2 a 4 horas e duração do efeito de até 6 a 8 horas.
caseira alimento (g) de CH (g)
Arroz 3 colheres de
60 15 Por exemplo: um paciente que aplica mistura de NPH +
cozido sopa
regular no café da manhã e no jantar estará recebendo ação
Feijão 2 colheres de
36 08 das insulinas da seguinte forma: após o café da manhã – in-
cozido sopa
sulina regular do café; após o almoço – insulina NPH do café
Carne da manhã; após o jantar – insulina regular do jantar; madru-
1 porção 100 00
assada
gada até a manhã seguinte – NPH do jantar (Figura 8).
Beterraba 3 colheres de As misturas podem ser feitas:
42 03
cozida sopa
- No momento da aplicação, pelo próprio paciente, as-
Salada de pirando as 2 diferentes preparações insulínicas, nas
1 pires de chá 22 01
alface doses prescritas, em uma mesma seringa, para aplicar
1 unidade ambas as insulinas numa única injeção subcutânea;
Laranja 150 18
média
- Pelo fabricante das insulinas, disponibilizando frascos
Total 45 com pré-misturas, ou seja, 2 insulinas diferentes (ge-
Calculando 1 unidade de insulina para cada 15g de carboidratos, ralmente, NPH mais uma insulina rápida ou ultrarrápi-
teremos: 45/15 = 3 unidades de insulina prandial (bolus) a serem da) em proporções fixas. Estão disponíveis no mercado
aplicadas nesta refeição. pré-misturas contendo 10, 15, 20, 25, 30 e 50% de in-
Observações: CH = carboidratos.
sulina rápida ou ultrarrápida.

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D I A B E T E S M E L L I T U S - T R ATA M E N T O

Frequência
Situação clínica Horários
mínima
- DM1 estável; Diferentes
- DM2 usuário de 3 testes/dia horários, conforme
insulina estável. necessidade.
Diferentes
- DM2 não usuário de 1 ou 2 testes/
horários, conforme

ENDOCRINOLOGIA
insulina estável. semana
necessidade.

O ajuste das doses das insulinas utilizadas será feito pelo


médico, de acordo com os resultados da automonitoriza-
Figura 8 - Horário de ação das insulinas administradas na forma de ção realizada pelo paciente nos diferentes horários. Cada
misturas, no café da manhã e no jantar
insulina deverá ser ajustada de acordo com a glicemia obti-
da no momento do seu pico de ação. Assim, num paciente
D - Automonitorização utilizando mistura de NPH + regular no café da manhã e no
A automonitorização da glicemia capilar (obtida por pun- jantar, por exemplo, deve-se ajustar a dose da NPH do café
ção das polpas dos dedos das mãos), usando aparelhos glicosí- conforme o valor da glicemia no final da tarde (pré-jantar),
metros e fitas reagentes, é essencial para a obtenção de bom enquanto a dose da regular do café da manhã será ajustada
controle glicêmico em todos os pacientes diabéticos, especial- conforme a glicemia antes do almoço.
mente os que fazem uso de insulina. Deve ser realizada em
diferentes horários do dia, permitindo o diagnóstico de hiper- E - Fator de correção
glicemia e, principalmente, da hipoglicemia assintomática. Nos pacientes em tratamento intensivo, especialmente
A American Diabetes Association (ADA) recomenda, no aqueles em esquema basal-bolus com contagem de carboi-
mínimo, 3 glicemias capilares (pré-prandiais) ao dia para os dratos, é importante observar se as glicemias pré-prandiais
portadores de DM1. Os portadores de DM2 deverão reali- estão dentro dos objetivos glicêmicos do paciente (em ge-
zar glicemia capilar quantas vezes forem necessárias para ral, <110mg/dL sem hipoglicemias), antes da aplicação da
atingirem o controle glicêmico adequado, a depender das insulina de bolus daquela refeição. Caso a glicemia esteja
características do paciente (mais frequente em crianças, acima do alvo, o paciente deve aplicar, além da dose de in-
gestantes, idosos e indivíduos com alto risco de hipoglice- sulina de bolus correspondente à quantidade de carboidra-
mia), do nível de controle glicêmico (mais frequente em pa- tos a ser ingerida, uma quantidade suplementar de insulina
cientes mal controlados) e do tipo de medicação utilizada rápida para correção da glicemia.
(mais frequente em pacientes que fazem tratamento inten- Uma unidade de insulina rápida ou ultrarrápida provo-
sivo com múltiplas doses de insulina diárias). ca uma redução média de 50mg/dL na glicemia. Portanto,
A SBD, em 2008, publicou um documento em que es- se o alvo glicêmico pré-prandial é 100mg/dL e o paciente
tabelece a frequência mínima de testes de glicemia capilar apresenta, por exemplo, uma glicemia de 200mg/dL antes
para pacientes diabéticos em diferentes situações clínicas do almoço, o paciente deverá aplicar a dose da insulina de
(Tabela 18). bolus calculada pela contagem de carboidratos + 2 unida-
des adicionais como correção (para reduzir a glicemia em
Tabela 18 - Frequência mínima recomendada para realização dos 100mg/dL, objetivando um alvo de 100mg/dL, já que 1 uni-
testes de glicemia capilar, conforme situação clínica do paciente dade reduz 50mg/dL).
(SBD, 2008) Outra forma, mais individualizada, de calcular a dose
Frequência suplementar para correção é usar o Fator de Correção (FC),
Situação clínica Horários
mínima calculado por meio de uma fórmula simples (a “regra do
- Início de tratamento; 1.800”), que leva em conta a dose total diária de insulina
- Mau controle Três pré-prandiais (basal + rápida):
glicêmico; (antes do café, almoço
- Mudança ou ajuste e jantar); 3 pós- FC = 1.800 ÷ dose diária de insulina
da medicação; prandiais (2 horas
- Durante após o café, almoço e
Como exemplo, pode-se considerar um paciente hipo-
intercorrências 6 testes/dia, 3 jantar). Em pacientes tético que está em uso de 20UI de NPH com 10UI de lispro
agudas; dias/semana com DM1, e nos no café, 10UI de lispro no almoço e 10UI de NPH com 10UI
- Hipoglicemias graves pacientes com DM2 de lispro no jantar (dose total diária de insulina = 60UI).
recorrentes; usuários de insulina, Calculando o seu fator de correção, teremos:
- Uso de drogas testes adicionais na
hiperglicemiantes; hora de deitar e às 3 FC = 1.800 ÷ 60 = 30
- A1c alta com glicemia horas da madrugada. Portanto, para esse paciente, 1UI de lispro levaria à re-
de jejum normal.
dução da glicemia capilar em 30mg/dL.

29
ENDOC RI N O LOG I A

Outra forma ainda mais simples de calcular o fator de tratados com insulina (DM2 em tratamento intensivo e, es-
correção, sugerida por alguns autores, usa o peso corporal pecialmente, crianças com DM1). O fenômeno conhecido
do paciente: como efeito Somogyi consiste na ideia de que pacientes em
insulinoterapia poderiam desenvolver hipoglicemia assinto-
FC = 1.500 ÷ peso em kg
mática à noite, durante o sono (em consequência de uma
Como exemplo, pode-se considerar um paciente hipo- dose excessiva de insulina de ação intermediária no jantar,
tético, pesando 75kg. Calculando o seu fator de correção, ou da falta de alimentação à noite), levando à liberação de
teremos: hormônios contrarreguladores insulínicos (glucagon, cate-
colaminas, GH) durante a madrugada e a uma consequente
FC = 1.500 ÷ 75 = 20 hiperglicemia pela manhã (hiperglicemia de rebote).
A importância de identificar esse fenômeno tem rela-
Portanto, para esse paciente específico, 1UI de lispro le- ção com o adequado manejo da insulina noturna para con-
varia à redução da glicemia capilar em 20mg/dL. O cálculo trole da glicemia matinal, pois em pacientes com o efeito
do FC pelo peso pode ser usado em pacientes com diagnós- Somogyi a conduta correta seria reduzir a dose noturna de
tico recente de diabetes, que ainda não estão em uso de insulina de ação intermediária, ao invés de aumentá-la.
insulinoterapia plena, para cálculo aproximado das doses O diagnóstico diferencial entre o efeito Somogyi e o fe-
de insulina rápida para correção. nômeno do alvorecer é realizado pela coleta de glicemia ca-
pilar de madrugada (às 3 horas da manhã). A hiperglicemia
8. Situações especiais do diabetes nesse horário identifica fenômeno do alvorecer (cujo trata-
mellitus mento é o aumento da dose noturna de insulina); glicemia
baixa, por outro lado, estabelece o efeito Somogyi (em que
A - “Lua de mel” do DM a conduta correta seria reduzir a dose de insulina noturna).
Trata-se de um período imediatamente posterior ao Estudos mais recentes, usando monitorização contínua
diagnóstico do DM1, em que o paciente ainda apresenta da glicemia capilar (CGMS) em pacientes sob insulinotera-
alguma secreção insulínica residual. Identifica-se a fase de pia, entretanto, não conseguiram comprovar a ocorrência
“lua de mel” quando o paciente com diagnóstico recente de do efeito Somogyi como uma causa comum de hiperglice-
DM1 necessita de uma dose muito reduzida de insulina exó- mia matinal. Por isso, a existência do efeito Somogyi vem
gena (<0,25 a 0,5U/kg/dia) para manter níveis glicêmicos sendo questionada.
normais. Alguns pacientes podem manter-se euglicêmicos
até mesmo sem insulina exógena, mas é recomendável que Tabela 19 - Exemplo de fenômeno do alvorecer e efeito Somogyi
a aplicação de insulina seja continuada (mesmo que em do- Fenômeno do alvorecer Efeito Somogyi
ses baixas) para efeito educativo do paciente e para possível Glicemia às
preservação da função residual das células beta. Em geral, 110 110
22 horas
esta fase dura, no máximo, de 6 a 12 meses na maioria dos Glicemia às 3
pacientes, e ao seu final é necessário aumentar a dose de 110 40
horas
insulina ou intensificar o esquema de tratamento insulínico, Glicemia às 8
em razão da perda progressiva de secreção insulínica endó- 150 200
horas
gena e do consequente descontrole glicêmico progressivo.
Aumentar insulina basal Diminuir insulina
Conduta
noturna basal noturna
B - Efeito do alvorecer
Durante a madrugada e nas primeiras horas da manhã, 9. Controle das comorbidades
ocorre um pico fisiológico de liberação do GH e do corti-
sol, hormônios com ação hiperglicemiante (“contrainsulíni-
cos”), um fenômeno que pode desencadear hiperglicemia A - Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS)
matinal por aumento da resistência à insulina e consequen- A hipertensão arterial é muito comum em pacientes
te aumento da secreção de glicose pelo fígado (glicogenóli- portadores de diabetes tipo 2 (presente em 40% já no diag-
se, gliconeogênese). No diabético sob insulinoterapia inten- nóstico do DM), enquanto nos diabéticos tipo 1 tipicamente
siva, que apresenta hiperglicemia matinal pelo fenômeno se associa à presença de nefropatia.
do alvorecer, a conduta correta é aumentar a dose da insuli- O tratamento rigoroso da HAS, independente do tipo de
na de ação intermediária/prolongada da noite, para corrigir droga utilizada, retarda a progressão da lesão de órgãos-al-
a glicemia de jejum. vo. Os níveis de pressão arterial atingidos são mais impor-
tantes, para a prevenção de comorbidades, do que o tipo de
C - Efeito Somogyi droga utilizada para o seu controle.
Durante muitos anos, o efeito Somogyi foi considerado A HAS sempre deve ser avaliada em 3 posições (com o
uma causa possível de hipoglicemia matinal em pacientes paciente deitado, sentado e em pé), para detectar possível

30
D I A B E T E S M E L L I T U S - T R ATA M E N T O

variação pressórica associada à neuropatia autonômica. cautela em associação aos beta-bloqueadores, pelo risco de
Quando houver valor pressórico elevado (considerando-se bloqueio atrioventricular. Amlodipina e diltiazem são boas
elevada a PA >130x80mmHg em diabéticos), este deverá ser opções, pois provocam menos hipotensão postural e têm
confirmado em pelo menos 2 ocasiões em dias diferentes. efeito nefroprotetor.
Além das medidas associadas aos hábitos de vida, o tra- A maioria dos diabéticos precisa de 3 ou mais medica-
tamento medicamentoso da HAS deve ser iniciado precoce- ções para o adequado controle da pressão arterial. Em pa-
mente em diabéticos, por causa do seu alto risco cardiovas- cientes refratários a múltiplas medicações, deve-se consi-

ENDOCRINOLOGIA
cular. Portanto, o uso de anti-hipertensivos está indicado a derar a pesquisa de causas de hipertensão secundária.
todos os diabéticos hipertensos. O resumo das recomendações da ADA para o tratamen-
As drogas de 1ª escolha para o tratamento da hi- to da hipertensão em diabéticos está na Tabela 20.
pertensão em diabéticos são aquelas que agem no eixo
renina-angiotensina: Inibidores da Enzima Conversora Tabela 20 - Recomendações para manejo da hipertensão arterial
da Angiotensina (IECA) ou Bloqueadores do Receptor da em diabéticos (ADA, 2011)
Angiotensina (BRA). Os IECAs têm boa tolerabilidade, além Diagnóstico
de retardar a evolução da nefropatia diabética, principal- - Avaliar PA em todas as consultas;
mente no DM1, mas também no DM2. Portanto, estão in- - Diagnosticar hipertensão se houver 2 medidas de PA
dicados a diabéticos hipertensos e mesmo a normotensos ≥130x80mmHg.
com microalbuminúria ou proteinúria. Outras vantagens Tratamento não farmacológico
dessa classe incluem a ausência de efeitos adversos lipídi- - Recomendar restrição de sódio e álcool, perda de peso,
cos, o efeito protetor contra eventos cardiovasculares em cessação do tabagismo e atividade física em todos os
diabéticos de alto risco e o potencial de prevenir o apareci- pacientes.
mento de diabetes em pacientes de risco, por aumento da Tratamento farmacológico
sensibilidade à insulina. Não devem ser utilizados em ges- - Iniciar medicação anti-hipertensiva, junto com mudanças de
tantes, pacientes com estenose bilateral de artérias renais estilo de vida, em todos os diabéticos com PA ≥140x90mmHg
ou creatinina >3mg/dL. ou naqueles com PA ≥130x80mmHg após 3 meses de trata-
mento não farmacológico.
Os Bloqueadores dos Receptores de Angiotensina II
Escolha das drogas
(BRA) são bem tolerados e previnem a progressão da nefro-
patia diabética, principalmente em diabéticos tipo 2, sendo - 1ª opção: iniciar IECA, ou BRA se houver intolerância ao
primeiro (tosse);
uma boa opção para aqueles com intolerância aos IECAs
(tosse ou reações alérgicas). Além disso, há evidências de - 2ª opção: associar diuréticos tiazídicos (baixas doses), ou
furosemida, se houver insuficiência renal ou cardíaca;
que os BRA, como os IECAs, também protegem contra even-
tos cardiovasculares em diabéticos de alto risco. - 3ª opção: associar bloqueadores de canais de cálcio
(amlodipina ou diltiazem);
Os diuréticos são geralmente a 2ª opção de medica-
- 4ª opção: associar beta-bloqueadores.
ção. O uso de tiazídicos associa-se à diminuição de even-
tos cardiovasculares. Em doses baixas (12,5 a 25mg/dia de Objetivos do tratamento
hidroclorotiazida ou clortalidona), produzem um aumento - PA <130x80mmHg, ou <125x75mmHg em pacientes com
discreto da glicemia, sem importância clínica, mas deve-se proteinúria >1g/24h ou perda de função renal.
evitar seu uso em doses maiores. A indapamida parece in-
terferir menos com a glicemia. Nos pacientes com insufici-
B - Dislipidemias
ência renal (clearance <30mL/min, ou creatinina >2,5mg/ Dislipidemias devem ser pesquisadas ativamente e tra-
dL) ou ICC, devem-se preferir os diuréticos de alça (furose- tadas agressivamente em diabéticos, dado seu alto risco de
mida). eventos ateroscleróticos.
O uso de beta-bloqueadores é eficaz na prevenção se- O perfil lipídico deve ser avaliado anualmente, em todos
cundária de IAM, arritmias e na regressão de hipertrofia os diabéticos. A manutenção de níveis glicêmicos adequa-
ventricular. Apesar da piora do controle glicêmico, induzida dos melhora o perfil lipídico, enquanto beta-bloqueadores
pela droga, o atenolol reduziu o risco de doença macrovas- e tiazídicos em altas doses podem piorar esse perfil.
cular e microvascular em diabéticos de risco leve a modera- As metas lipídicas em diabéticos incluem: LDL abaixo de
do, sendo equivalente ao captopril. Lembrar que esta classe 100mg/dL (ou abaixo de 70mg/dL em pacientes de altíssi-
de droga pode mascarar e prolongar a hipoglicemia. mo risco, como os infartados prévios), triglicérides abaixo
Os bloqueadores de canais de cálcio também são boa de 150mg/dL e HDL acima de 40mg/dL (em homens) ou
opção terapêutica, capazes de reduzir a incidência de infar- >50mg/dL (em mulheres). Existem algumas pequenas di-
to do miocárdio e morte cardiovascular. Entretanto, aumen- ferenças quanto às metas lipídicas recomendadas por dife-
tam o risco de internações por ICC e devem ser usados com rentes sociedades, como pode ser visto na Tabela 21.

31
ENDOC RI N O LOG I A

Tabela 21 - Metas lipídicas em pacientes diabéticos, propostas por suficiente para reduzir o LDL até as metas. Se não for possí-
diferentes sociedades vel a obtenção dos níveis de LDL propostos, pode-se associar
NCEP- ezetimiba (redução adicional do LDL de 18%, associado à es-
ATP III ADA (2009) SBC (2007) SBD (2007) tatina) ou resinas de troca, ou usar como objetivo substituto
(2004) uma redução de 30 a 40% do LDL. Vários estudos já compro-
- <100mg/ - <100mg/ varam a redução de eventos coronarianos e morte cardiovas-
- <100mg/dL cular com o uso de estatinas em diabéticos, independente-
dL (opcional dL
LDL-co- - <70mg/ - Se DAC:
<70mg/dL) - Se DAC; mente do nível inicial de LDL (exemplo: HPS, CARDS).
lesterol dL. opcional
<70mg/dL.
- Se DAC; <70mg/ De forma geral, as estatinas devem ser prescritas a todos
<70mg/dL. dL. os diabéticos em prevenção secundária (ou seja, portadores
- >40mg/ - >40mg/dL - >40mg/dL de doença aterosclerótica prévia), independente do nível
HDL-
dL (M); (M); (M); de colesterol; e aos diabéticos em prevenção primária que
-coles- - >50mg/dL.
- >50mg/ - >50mg/dL - >50mg/dL não atinjam o alvo terapêutico com a terapia não farmaco-
terol
dL (F). (F). (F). lógica. As indicações para início de estatinas, de acordo com
Trigli- - <150mg/ - <150mg/ a SBD (2007) e a ADA (2011), estão expostas na Tabela 22.
- <150mg/dL. - <150mg/dL.
cérides Dl. dL.
NCEP-ATP III = National Cholesterol Education Program, Adult Tabela 22 - Indicações para uso de estatinas em diabéticos, confor-
Treatment Panel III; ADA = American Diabetes Association; SBC = me recomendações da ADA (2011) e da SBD (2007)
Sociedade Brasileira de Cardiologia; SBD = Sociedade Brasileira ADA, 2009 SBD, 2007
de Diabetes; (M) = sexo masculino; (F) = sexo feminino; DAC =
Pacientes
Doença Aterosclerótica Clínica prévia. Pacientes com doença
com doença
Prevenção cardiovascular prévia
cardiovascular prévia
Nos pacientes com triglicérides >400mg/dL, pode-se secundária
(independente do
(independente do nível de
usar o colesterol não HDL como uma medida substituta do colesterol)
nível de LDL)
LDL-colesterol, visto que este não pode ser calculado pela Pacientes com >40
fórmula de Friedwald (ou dosar LDL de forma direta); a anos e um ou mais
meta de colesterol não HDL é <130mg/dL (ou <100mg/dL fatores de risco Pacientes com LDL
se prevenção secundária). cardiovascular >130mg/dL
Em pacientes com dislipidemia mista (aumento tanto (independente do
do LDL quanto dos triglicérides), geralmente se deve tratar, nível de LDL)
em 1º lugar, o aumento do LDL (mais aterogênico). A ADA Pacientes com LDL
Prevenção Pacientes com <40
recomenda que a ordem de prioridades para tratamento da persistentemente >100mg/
primária anos com múltiplos
dL, apesar do tratamento
dislipidemia diabética seja a apresentada na Figura 9. fatores de risco
não farmacológico
Pacientes com LDL
persistentemente
>100mg/dL, apesar -
do tratamento não
farmacológico

Em pacientes com hipertrigliceridemia, devem-se orien-


tar inicialmente a mudança do estilo de vida e a obtenção de
Figura 9 - Ordem das prioridades no tratamento da dislipidemia bom controle glicêmico (os triglicérides elevam-se na presen-
mista no diabético ça de hiperglicemia e costumam reduzir-se consideravelmen-
te quando esta é corrigida). Alguns hipoglicemiantes podem
Modificações do estilo de vida (redução do consumo de ajudar a reduzir a trigliceridemia: redução de 10 a 15% com a
gorduras saturadas, gorduras trans e colesterol; perda de metformina e de 15 a 25% com as tiazolidinedionas.
peso, e atividade física) devem ser recomendadas a todos Entretanto, quando a trigliceridemia é muito alta
os diabéticos com dislipidemia. O tratamento não farma- (>400mg/dL), deve-se iniciar a terapia farmacológica, em
cológico pode levar a grande redução dos triglicérides, ele- conjunto com as mudanças de estilo de vida, para reduzir
vação modesta do HDL e redução de 15 a 25mg/dL no LDL. o risco de pancreatite aguda. Além disso, pode-se consi-
O tratamento medicamentoso, por sua vez, deve ser ini- derar a associação de fibratos aos pacientes de alto risco
ciado mais precocemente em diabéticos que em não dia- cardiovascular, com LDL (ou colesterol não HDL) dentro da
béticos. meta e que permanecerem com triglicérides elevados (200
Estatinas (sinvastatina, atorvastatina ou rosuvastatina) a 400mg/dL), apesar de um bom controle glicêmico.
são os agentes de 1ª escolha na maioria das situações, visto Se for necessária a associação a estatinas, deve-se pre-
que o LDL (ou o colesterol não HDL) são os objetivos primá- ferir o fenofibrato (mais seguro) e evitar o genfibrozila (as-
rios da terapia. Devem-se prescrever as estatinas em dose sociado à miosite e rabdomiólise em associação). Também

32
D I A B E T E S M E L L I T U S - T R ATA M E N T O

se recomenda a monitorização cuidadosa das transamina- Doença celíaca também é comum e pode ser encontra-
ses e enzimas musculares (CPK total) do paciente. da em 1 a 6% dos pacientes com DM1. Portanto, deve ser
Em pacientes com doença cardiovascular prévia (altíssi- investigada com a coleta de anticorpos antiendomísio em
mo risco), com LDL normal ou discretamente elevado e HDL todo paciente com DM1 e sintomas sugestivos (diarreia,
baixo, a elevação do HDL com o uso de niacina ou fibratos perda de peso, déficit de crescimento, desnutrição).
também pode ser útil para reduzir o risco de novos eventos.

C - Antiagregação plaquetária 10. Acompanhamento

ENDOCRINOLOGIA
O uso de ácido acetilsalicílico, na dose de 75 a 162mg/ O diabetes é uma doença crônica, que exige acom-
dia, é útil para prevenção primária ou secundária de doen- panhamento médico constante para ajustes do trata-
ça cardiovascular em diabéticos. Não aumenta o risco de mento, rastreamento e prevenção de complicações.
hemorragia retiniana ou vítrea em pacientes com retinopa- Preferencialmente, o acompanhamento deve ser feito por
tia diabética. Entretanto, é contraindicado em menores de uma equipe multidisciplinar, incluindo médico experiente
21 anos, pelo risco de síndrome de Reye, e em pacientes no manejo do diabetes, nutricionista, enfermeira, psicólo-
com alergia à droga, tendência a hemorragias, uso de an- go, assistente social etc.
ticoagulantes, hemorragia gastrintestinal recente e doença Pacientes diabéticos estáveis e com bom controle po-
hepática em atividade. Além disso, não foi estudado em pa- dem ser avaliados pela equipe multidisciplinar a cada 3
cientes com menos de 30 anos, razão pela qual a ADA não ou 4 meses. Em toda consulta, deve-se realizar a medida
recomenda seu uso antes dessa idade. do peso e da pressão arterial, e avaliar a glicemia e a A1c.
Nos pacientes com intolerância ao AAS (principalmente Anualmente, deve-se realizar exame cuidadoso dos pés e
gástrica), podem-se usar outros antiagregantes plaquetá- avaliação do perfil lipídico.
rios, como o clopidogrel (75mg/dia) ou a ticlopidina. O uso A automonitorização da glicemia capilar é uma parte
de formulações de AAS de liberação entérica não reduz o fundamental do tratamento. Os resultados dos testes de
risco de hemorragia gastrintestinal. A associação de AAS a glicemia devem ser revisados periodicamente com a equi-
outros antiagregantes não parece produzir benefício adicio- pe multidisciplinar, e os pacientes, orientados sobre os ob-
nal (exceto no 1º ano após revascularização do miocárdio, jetivos do tratamento e as providências a serem tomadas
quando está indicada a associação ao clopidogrel). quando os níveis de controle metabólico são constante-
As indicações de antiagregantes plaquetários em diabé- mente insatisfatórios. A frequência do automonitoramen-
ticos estão expostas na Tabela 23:
to depende das características do paciente e da terapêuti-
Tabela 23 - Indicações de antiagregantes plaquetários nos pacien- ca utilizada, variando de 1 vez ao dia (para pacientes bem
tes com DM (ADA, 2011) controlados em uso apenas de drogas orais) até 7 vezes ao
dia (em pacientes em uso de insulina e com mau controle).
- DM1 ou DM2 com doença cardiovascular prévia (prevenção
Além disso, a medida da glicose capilar deve ser realizada
secundária).
sempre que houver suspeita clínica de hipoglicemia. Muitos
- DM ou DM2 em prevenção primária com risco de eventos >10% pacientes atribuem alguns sintomas inespecíficos, como
em 10 anos, ou seja:
fome, mal-estar e nervosismo, à presença de hipoglicemia
· Homens com >50 anos de idade com, pelo menos, mais 1
fator de risco adicional; e ingerem alimentos doces e calóricos. Por isso, todo sin-
· Mulheres com >60 anos de idade com, pelo menos, mais 1 toma sugestivo de hipoglicemia deve ser cuidadosamente
fator de risco adicional. avaliado.

D - Outros cuidados 11. Novidades, controvérsias e perspectivas


Todos os pacientes com DM devem receber vacinação Em virtude da sua alta prevalência e do grande impacto
anti-influenza anualmente, no início do inverno, a partir dos em saúde pública, muitas pesquisas vêm sendo realizadas
6 meses. Além disso, a vacina antipneumocócica está indi- com relação ao DM, tornando este campo de estudo um
cada, pelo menos 1 vez na vida, a todos os portadores de dos mais férteis em novas descobertas e formas de trata-
DM, e deve ser repetida em condições de imunossupressão
mento.
(idade avançada, síndrome nefrótica).
Por isso, serão apresentados alguns tópicos de maior
Higiene dental adequada e cuidados odontológicos
importância em relação aos resultados das pesquisas mais
frequentes também são indicados, visto que os diabéticos
recentes sobre o DM.
apresentam maior risco de doença dental ou periodontal.
Pacientes com DM1 devem ter avaliada sua função ti-
reoidiana e o nível de autoanticorpos (anti-TPO e anti-Tg),
A - Controle glicêmico e risco cardiovascular no DM2
no diagnóstico do diabetes e a cada 1 a 2 anos, já que dis- A publicação do DCCT, em 1993, e dos 2 estudos EDIC,
funções da tireoide são muito comuns nessa população (17 que avaliaram, após 4 e 8 anos, a evolução dos participan-
a 30% dos pacientes). tes originais do DCCT, mostrou, de forma bastante clara,

33
ENDOC RI N O LOG I A

que o controle glicêmico intensivo, nos primeiros anos de o diagnóstico do diabetes. Além disso, em pacientes com
diabetes, é capaz de reduzir o risco de eventos macrovascu- DM2, frequentemente portadores de diversos fatores de
lares (bem como os microvasculares) no DM1. risco cardiovascular, é fundamental uma abordagem multi-
Entretanto, o efeito do controle glicêmico intensivo so- fatorial, envolvendo o controle rigoroso não só da glicemia,
bre o risco cardiovascular no DM2 não é tão claro. Durante mas também da pressão arterial, dos níveis lipídicos, antia-
o estudo UKPDS, por exemplo, o grupo de tratamento inten- gregação plaquetária etc., visando à prevenção da doença
sivo não apresentou redução significativa do risco de infarto aterosclerótica.
do miocárdio ou morte cardiovascular, em comparação ao
grupo de tratamento convencional (embora tenha ocorrido B - Novas drogas
uma redução clara do risco de complicações microvascula-
Como o diabetes é uma doença comum e de grande
res). Interessantemente, redução de risco cardiovascular só
impacto na saúde pública, muitas pesquisas estão em an-
foi observada, durante o UKPDS, no subgrupo de pacientes
damento para tentar obter novas opções de tratamento
obesos tratados com metformina. Apenas em 2008, com a
medicamentoso.
publicação de um estudo de seguimento de 10 anos dos pa-
Entre as novas drogas antidiabéticas que estão em fase
cientes que participaram do UKPDS, ficou evidente que o
avançada de estudo, podemos citar:
controle glicêmico intensivo reduz o risco de complicações
a) Inibidores do transportador 2 de sódio e glicose
macrovasculares em diabéticos tipo 2, embora essa redu-
(SGLT2): inibem a reabsorção da glicose nos túbulos proxi-
ção de risco tenha sido mais tardia e discreta do que a ob-
mais A1c), perda de peso e redução dos níveis pressóricos,
servada em diabéticos tipo 1.
sem aumento do risco de infecções urinárias ou hipoglice-
Alguns novos estudos, também publicados nos últi-
mia. A droga mais estudada é o dapagliflozin, embora exis-
mos 2 anos, tentaram auxiliar na resposta desta questão.
tam estudos com o remogliflozin e o sergliflozin. O dapagli-
O ACCORD foi um grande estudo prospectivo no qual se
flozin não conseguiu obter registro nos Estados Unidos em
compararam pacientes diabéticos tipo 2 em tratamento
2011 devido a uma associação da droga com risco aumen-
convencional (objetivo de A1c 7 a 7,9%) ou em um trata-
tado de câncer de bexiga e de mama, que ainda precisa ser
mento “superintensivo”, com objetivo de A1c <6%. Neste
mais bem estudado.
estudo, a mortalidade total e a mortalidade por causas car-
b) Análogos da amilina: a amilina é um peptídio se-
diovasculares foram paradoxalmente maiores no grupo de
cretado pelas células beta juntamente com a insulina, em
tratamento intensivo, num seguimento de 3,5 anos. Muitos
resposta às refeições; age inibindo a secreção de glucagon,
autores acreditam que a causa dessa mortalidade aumen-
retardando o esvaziamento gástrico e inibindo o apetite. O
tada pode ter sido a maior incidência de hipoglicemias gra-
pramlintide é um análogo da amilina para uso subcutâneo,
ves no grupo intensivo (risco 3 vezes maior). Outro estudo
junto às refeições, que reduz a glicemia pós-prandial, sem
prospectivo com grande número de pacientes com DM2 foi
ganho de peso, e é aprovado pelo FDA para uso em DM1
o ADVANCE, em que se comparou um grupo em tratamento
ou DM2.
convencional (com meta de A1c de 7%) com um grupo em
c) Agonistas PPAR gama e alfa: são drogas que agem
tratamento intensivo (meta: A1c <6,5%). Neste estudo, ao
tanto nos receptores nucleares PPAR-gama (alvo da ação
contrário do ACCORD, não se observou qualquer diferença
das glitazonas) como nos PPAR-alfa (alvo da ação dos fibra-
no risco de morte ou de doença cardiovascular entre os 2
tos), e apresentam ação hipoglicemiante por aumento da
grupos (seguimento de 5 anos). Um 3º estudo foi o VADT,
sensibilidade hepática à insulina, além de melhorarem o
publicado em 2009, em que o controle glicêmico intensi-
perfil lipídico (reduzindo triglicérides e aumentando HDL).
vo também não determinou distinção no risco de eventos
Da mesma forma que as glitazonas, também causam ede-
macrovasculares num acompanhamento de 7,5 anos. Em
ma, ICC e ganho de peso. Drogas dessa classe em estudo
todos esses 3 estudos, os pacientes já apresentavam vários
são o muraglitazar (que aumentou o risco de eventos car-
anos de história de diabetes, diferentemente do UKPDS, em
diovasculares em um Trial), o tesaglitazar (associado a fi-
que apresentavam diagnóstico recente de DM. É provável,
brossarcomas subcutâneos) e o aleglitazar.
portanto, que o controle glicêmico intensivo não seja capaz
d) Novos análogos de GLP-1: incluem o taspoglutide e o
de reduzir os eventos macrovasculares em pacientes com
lixisenatide, além da apresentação do exenatida de libera-
hiperglicemia de longa duração, já portadores de lesões
ção prolongada (uso semanal).
ateroscleróticas instaladas, mas apenas em diabéticos com
e) Novas vias de aplicação de insulina: já estão avança-
diagnóstico recente, ainda não afetados pela doença ate-
dos os estudos clínicos avaliando apresentações de insulina
rosclerótica.
para uso oral (na forma de cápsulas protegidas, tabletes ou
As conclusões que podem ser tiradas desses estudos
são de que o controle glicêmico intensivo no DM2, apesar spray oral) e retal (na forma de supositórios).
de ser fundamental para a prevenção de complicações crô-
nicas microvasculares, tem um efeito tardio (que pode levar C - Cirurgia metabólica
vários anos para se manifestar) e de pequena magnitude Uma abordagem recente, que vem ganhando muita
na prevenção de doença cardiovascular, mais visível em pa- atenção do público e da mídia, é o uso de uma cirurgia
cientes submetidos ao controle glicêmico intensivo desde intestinal para tentar reverter o DM2, pela mudança do

34
D I A B E T E S M E L L I T U S - T R ATA M E N T O

padrão de secreção dos êntero-hormônios (incretinas). E - Imunossupressão


Uma das técnicas mais estudadas consiste na associação
de uma pequena redução do volume gástrico a um bypass Tendo em vista que o DM1 é uma doença autoimune,
intestinal, excluindo o duodeno e o jejuno proximal do tentativas de reduzir ou reverter o dano imunológico às célu-
trânsito alimentar. Outra técnica é a “interposição ileal”, las beta do paciente, na fase inicial do diabetes, podem aju-
em que um segmento de íleo é interposto entre o duo- dar a preservar a massa de células beta residual e manter,
deno e o jejuno, proximalmente. Em ambas as técnicas, pelo menos transitoriamente, um bom controle glicêmico
sem uso de medicação. Um protocolo de pesquisa interes-

ENDOCRINOLOGIA
a passagem mais rápida do bolo alimentar ao íleo parece
potencializar a secreção de GLP-1 pelas células L, presen- sante é o que vem sendo desenvolvido na USP de Ribeirão
tes nessa região. Preto, com diabéticos tipo 1 com menos de 6 semanas de hi-
Estudos preliminares, em diabéticos tipo 2 com IMC perglicemia: os pacientes são submetidos à coleta de células-
entre 20 e 35kg/m2, mostram 80 a 90% de remissão do -tronco hematopoéticas, que são armazenadas para uso pos-
diabetes num seguimento de alguns meses. Entretanto, terior, e quimioterapia para ablação do sistema imunológico.
a eficácia e a segurança em longo prazo do procedimento Após o tratamento quimioterápico, recebem o transplante
ainda necessitam ser mais bem avaliadas em estudos com autólogo de células-tronco, que vão reconstituir seu sistema
seguimento mais longo e maior número de pacientes, para imunológico. Dessa forma, ocorre um reset imunológico, eli-
que sua indicação seja mais bem estabelecida. minando a memória das células T e a agressão autoimune
O CFM, em julho de 2011, não aprovou esse tipo de ci- às células das ilhotas. Resultados preliminares mostram que
rurgia (gastrectomia vertical com interposição ileal) como 14 dos 15 pacientes tratados dessa forma conseguiram ficar
uma técnica reconhecida para o tratamento de obesidade independentes de insulina por algum tempo. Entretanto, os
e/ou DM2, tendo em vista a relativa carência de estudos riscos da quimioterapia inicial e da consequente imunossu-
bem desenhados a respeito. Portanto, até o momento, ain- pressão não são desprezíveis. Também permanece como
da se trata de um procedimento experimental, devendo ser uma terapia experimental.
realizado apenas em ambientes de pesquisa. Alguns centros
no Brasil atualmente pesquisam esse tipo de procedimento, F - Pâncreas artificial
como a Unicamp e o Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo.
Cada vez mais progressos, vêm sendo obtidos no sen-
D - Transplante de ilhotas tido de desenvolver um sistema automatizado que integre
3 funções necessárias ao controle glicêmico: medição da
O transplante de pâncreas (órgão sólido) é uma alter- glicemia do paciente, infusão controlada de insulina e ajus-
nativa de tratamento eficaz para normalizar ou melhorar o te contínuo em tempo real da infusão de insulina, baseado
controle glicêmico em pacientes com DM1. Entretanto, sua nas medidas de glicemia. Uma vez disponível um sistema
indicação é restrita, em razão dos riscos da imunossupres- fechado como esse, será possível tratar os pacientes com
são. Atualmente, o transplante de pâncreas está indicado DM1 de forma a quase dispensar sua atenção do problema,
para diabéticos tipo 1 com controle muito difícil e hipogli- já que o sistema de “pâncreas artificial” poderá efetuar to-
cemias frequentes com o tratamento convencional (o cha- das as ações necessárias ao controle glicêmico adequado
mado diabetes hiperlábil), ou em associação ao transplante do paciente. Atualmente, já existem bombas de infusão de
renal nos diabéticos tipo 1 com insuficiência renal crônica insulina e sistemas eletrônicos (softwares) capazes de efe-
(transplante duplo pâncreas-rim). tuar esse controle, mas ainda não foi possível desenvolver
Uma nova forma de transplante em estudo é o de ilho- um sistema eficiente de medição da glicemia, capaz de fun-
tas pancreáticas, que produz bons resultados quanto à cionar por longos períodos sem a intervenção do paciente.
melhora do controle glicêmico, necessita de imunossupres-
são mais leve e tem, portanto, menos riscos. Consiste na G - Insulina glargina e câncer
digestão química do pâncreas do doador, eliminando seu
componente exócrino (numa metodologia conhecida como Em junho de 2009, a publicação simultânea de 4 estu-
protocolo de Edmonton) e na infusão do componente en- dos retrospectivos, de base populacional, avaliando a cor-
dócrino do pâncreas (ilhotas) na veia porta do receptor, por relação entre o uso de insulina exógena e o risco de câncer,
meio de punção transcutânea guiada por ultrassonografia. gerou uma grande polêmica entre os diabetologistas. Os 4
As ilhotas se estabelecem no fígado do receptor, de onde estudos foram realizados a partir de informações obtidas de
passam a secretar insulina. Entretanto, o número de ilhotas bancos de dados de âmbito nacional na Alemanha, Suécia,
necessárias para atingir bom controle glicêmico exige que 2 Escócia e Reino Unido e geraram resultados conflitantes.
a 3 pâncreas de doadores cadáveres sejam coletados e pro- O estudo alemão, por exemplo, mostrou que, em diabéti-
cessados, tornando muito difícil o fornecimento de ilhotas cos tipo 2 em insulinoterapia, o uso de NPH ou glargina em
suficientes para o uso disseminado dessa técnica. Técnicas doses >50U/dia estava associado a um risco aumentado de
para cultivar células beta funcionantes a partir de células- câncer, em geral, embora, quando analisadas doses seme-
-tronco poderiam contornar esse problema, mas ainda es- lhantes, o uso de glargina estivesse associado a um risco re-
tão distantes da realidade. lativo de câncer maior do que a NPH. O estudo escocês tam-

35
ENDOC RI N O LOG I A

bém encontrou associação entre o uso de glargina (isolada) - O DM2 é uma doença progressiva, e a associação de diferentes
e risco aumentado de câncer em geral (principalmente cân- antidiabéticos para atingir o controle glicêmico adequado, no
cer de mama). O estudo sueco, por sua vez, não encontrou início ou no decorrer da doença, é a regra nos diabéticos tipo 2;
risco aumentado para câncer em geral, apenas para câncer - A orientação de mudanças do estilo de vida deve fazer parte do
tratamento de todos os pacientes diabéticos, e sua importância
de mama, em usuários de glargina isolada, comparados com deve ser reforçada em todas as consultas; entretanto, não
usuários de outras insulinas ou outras insulinas + glargina. se deve tratar o paciente diabético apenas com mudança de
Já o estudo britânico não encontrou qualquer diferença de estilo de vida, devendo-se iniciar medicação hipoglicemiante
risco de câncer comparando usuários de glargina com usuá- imediatamente após o diagnóstico do DM em todos os casos;
rios de outros tipos de insulina. Um achado interessante do - A escolha da melhor medicação hipoglicemiante inicial para os
pacientes com diagnóstico recente de DM vai depender das
estudo britânico, no entanto, foi o menor risco de câncer de
suas características clínicas e laboratoriais:
cólon e pâncreas em usuários de metformina. · No diabetes leve (glicemia <200mg/dL, oligo ou assintomático),
Todos esses estudos são extremamente difíceis de inter- a droga de escolha geralmente é a metformina;
pretar, tendo em vista sua natureza retrospectiva e baseada · No diabetes moderado (glicemia entre 200 e 300mg/
em dados populacionais. Além disso, na maioria dos estu- dL, oligo ou assintomático), deve-se iniciar 2 medicações
hipoglicemiantes, das quais geralmente uma é a metformina;
dos, os grupos de pacientes não eram comparáveis (geral- · No diabetes grave (glicemia >300mg/dL, ou perda de peso
mente, os pacientes em uso apenas de glargina eram mais importante, ou sintomas graves, ou presença de cetose), a
idosos que os outros grupos). medicação inicial de escolha é a insulina.
Na época, várias sociedades científicas manifestaram- - Após início da medicação hipoglicemiante, o paciente deve ser
-se a respeito dessas pesquisas. A opinião mais prevalente reavaliado em 6 semanas, e a medicação deve ser ajustada
imediatamente se o paciente ainda não atingiu as metas de
entre os especialistas era a de que os estudos eram insufi- tratamento;
cientes para comprovar uma relação clara entre o uso de - Ao iniciar insulina nos pacientes com DM2 que já vêm usando
glargina e o risco aumentado de câncer, portanto não ha- cronicamente um ou mais hipoglicemiantes orais, mas
via necessidade de troca da glargina por outras insulinas, apresentam mau controle glicêmico, pode-se tentar a adição
em pacientes bem controlados, com base nesses achados de insulina bedtime (NPH, glargina ou detemir), visando à
melhora da glicemia de jejum, enquanto se mantém o uso dos
(exceção, talvez, seriam as pacientes pós-menopausa com hipoglicemiantes orais durante o dia;
história familiar de câncer de mama ou alto risco da do- - O tratamento do DM1 exige sempre o uso de insulina exógena,
ença, em que poderia ser mais prudente o uso de outras desde o início da doença;
preparações insulínicas). Entretanto, é importante que mais - O tratamento do DM1 deve ser feito preferencialmente com
estudos, bem desenhados, sejam realizados para responder esquemas de insulinoterapia intensificada, se possível desde o
definitivamente a esta questão. início do DM;
- A insulinoterapia intensiva do tipo basal-bolus com contagem
12. Resumo de carboidratos é mais fisiológica e consegue melhor controle
glicêmico, com mais flexibilidade das refeições e menos
Quadro-resumo hipoglicemias;
- O tratamento do diabetes deve ser guiado por metas, sendo - A automonitorização da glicemia capilar é parte importante da
necessária intervenção médica para ajuste em pacientes que terapêutica do DM, sendo útil para avaliar o controle glicêmico,
ainda não atingiram os alvos propostos. guiar o ajuste do tratamento e prevenir hipoglicemias graves;
- As metas da SBD para o tratamento de adultos com DM incluem: - Hipertensão arterial é comum em DM2 e em DM1 com
· Glicemia de jejum (ou pré-prandial) <110mg/dL (tolerável até nefropatia. É diagnosticada quando se detectam 2 medidas de PA
130mg/dL); >130x80mmHg, em dias diferentes, em pacientes com diabetes;
· Glicemia 2 horas após as refeições (pós-prandial) <140mg/dL - O manejo da hipertensão arterial em diabéticos deve ser fei-
(tolerável até 180mg/dL); to com medidas não farmacológicas + medicamentos anti-
· Hemoglobina A1c <7%; -hipertensivos, desde o seu diagnóstico, em pacientes com PA
· PA <130x80mmHg (ou <125x75mmHg na presença de IRC ou ≥140x90mmHg. Em pacientes com PA 130 a 139x80 a 89mmHg,
proteinúria >1g/24h); pode-se tentar tratamento não farmacológico isolado por até
· LDL <100mg/dL (ou <70mg/dL em portadores de doença 3 meses; tratamento farmacológico deve ser iniciado se a PA
aterosclerótica prévia); ainda permanecer >130x80mmHg;
· HDL >40mg/dL (em homens) ou >50mg/dL (em mulheres); - A 1ª escolha de droga para tratamento da hipertensão em
· Triglicérides <150mg/dL; pacientes com DM são os inibidores da ECA e/ou bloqueadores
· IMC normal (20 a 25kg/m2). do receptor da angiotensina. Os diuréticos (tiazídicos, ou de
- O tratamento intensivo, visando à obtenção de valores quase alça se houver IRC ou ICC) são a 2ª opção. Bloqueadores de
normais de glicemia e A1c, é capaz de prevenir complicações canais de cálcio e beta-bloqueadores também podem ser
microvasculares em DM1 e DM2. Além disso, previne utilizados;
complicações macrovasculares em DM1, mas tem efeito - Estatinas reduzem o risco de eventos cardiovasculares em
protetor modesto e tardio (embora significativo) contra eventos diabéticos. Devem ser prescritas para todos os pacientes
cardiovasculares no DM2; diabéticos já portadores de doença aterosclerótica clínica
- O tratamento do DM2 deve ser multifatorial, sendo importante (prevenção secundária), independentemente do nível de LDL
o controle não apenas da glicemia, mas também dos níveis apresentado. Também devem ser prescritas para os diabéticos
pressóricos, lipídicos, cessação do fumo, adoção de hábitos sem doença aterosclerótica prévia, mas que apresentem LDL
saudáveis, antiagregação plaquetária etc.; acima das metas, apesar do tratamento não farmacológico.

36
CAPÍTULO

4 Complicações crônicas do diabetes mellitus


Leandro Arthur Diehl

to do miocárdio, acidente vascular cerebral, insuficiência


1. Introdução arterial periférica, aterosclerose das artérias renais etc.).
A hiperglicemia crônica associa-se a um grande aumen- Entretanto, a hiperglicemia não é o único fator responsá-
to de risco de complicações crônicas macro e microvascula- vel pela doença macrovascular, visto que outros fatores de
res, que incluem a retinopatia, a nefropatia e a neuropatia. risco comumente presentes nos diabéticos (hipertensão
Esse risco parece começar a aumentar com níveis de he- arterial, dislipidemia, obesidade, resistência à insulina) pa-
moglobina glicada (A1c) a partir de 6,5%, e é maior quanto recem contribuir com a glicemia elevada para aumentar o
mais elevadas são a A1c e a glicemia média do paciente. risco de aterosclerose nessa população.

Tabela 1 - Mecanismos fisiopatológicos das complicações micro-


vasculares relacionadas ao DM
2. Retinopatia diabética
Aumento do metabolismo de glicose pela via dos polióis A retinopatia diabética é a complicação ocular mais se-
Em níveis glicêmicos elevados, ocorre aumento da conversão de vera do diabetes e representa a maior causa de cegueira
glicose em sorbitol intracelular, o que consome NADPH e diminui adquirida em adultos (cerca de 12% dos casos de amaurose
a defesa celular contra espécies reativas de oxigênio. em indivíduos entre 16 e 64 anos). Os diabéticos apresen-
Formação de produtos finais de glicação avançada (AGEs) tam risco de cegueira 25 vezes maior que os não diabéticos.
O acúmulo de glicose nos tecidos leva à produção de AGEs intra- A retinopatia é extremamente comum. Quando se rea-
celulares, que alteram a função de diversas proteínas (enzimas, liza exame de Fundo de Olho (FO) em pacientes com mais
componentes estruturais) e aumentam o estresse oxidativo. de 20 anos de duração do DM, alterações sugestivas de re-
Ativação da proteína-quinase C (PKC) tinopatia são encontradas em mais de 90% dos pacientes
A hiperglicemia acarreta acúmulo de diacilglicerol (DAG) no com DM1 e em mais de 60% dos pacientes com DM2. Já a
interior das células do endotélio. O DAG age como um ativador retinopatia proliferativa (forma mais grave da doença) ocor-
da via da PKC, que provoca disfunção endotelial por redução da re em cerca de 50% dos pacientes com DM1 e em 10% dos
produção de óxido nítrico e estímulo à endotelina. pacientes com DM2, com mais de 15 anos de doença, com
Síntese aumentada de hexosaminas risco de evolução para cegueira em 5 anos (sem tratamen-
Na presença de altos níveis de glicose, uma parte da frutose-6-
to) de 50%. Nos pacientes com DM2 (que podem cursar
-fosfato intracelular é desviada da via glicolítica e convertida com vários anos de hiperglicemia assintomática antes do
pela glicosamina em glicosamina-6-fosfato e, depois, em UDP-N- diagnóstico do diabetes), já se pode detectar algum grau de
acetilglicosamina, uma molécula que estimula a síntese de PAI-1, retinopatia em 23 a 38% daqueles com menos de 2 anos de
regula a expressão de alguns genes e liga-se covalentemente a diagnóstico do diabetes.
algumas proteínas, alterando a sua função. O estágio inicial (retinopatia de fundo) é caracterizado
Aumento do estresse oxidativo por edema retiniano, microaneurismas capilares, hemor-
A hiperglicemia sustentada leva ao consumo de moléculas pro- ragias e exsudatos. Em seguida, na fase pré-proliferativa,
tetoras contra a formação de espécies reativas de oxigênio, o ocorrem exsudatos algodonosos ou áreas de infarto retinia-
que leva ao aumento do estresse oxidativo e ao dano celular por no com isquemia progressiva. A fase proliferativa é carac-
modificação de macromoléculas (peroxidação de lipídios, desna- terizada por disco óptico, íris e neovascularização da retina
turação de proteínas etc.). que desencadeia hemorragia vítrea e descolamento tracio-
nal da retina que levam à cegueira.
O DM também aumenta significativamente (em 2 a 4 As lesões mais precoces são representadas pelos micro-
vezes) o risco de doenças ateroscleróticas, que são consi- aneurismas retinianos, causados pela perda dos pericitos
deradas complicações macrovasculares do diabetes (infar- (células delgadas únicas que se estendem ao longo do eixo

37
ENDO C RI N O LOG I A

do vaso capilar e circundam suas paredes), importantes Existem vários fatores que aumentam o risco de desen-
na manutenção da integridade do vaso, angiogênese e na volvimento de retinopatia diabética, os quais são apresen-
remodelagem vascular. Os exsudatos duros também são tados na Tabela 2. Curiosamente, alguns estudos sugerem
lesões iniciais provocadas pelo extravasamento de substân- que o tabagismo diminui o risco de retinopatia diabética.
cias (lipídios) por alteração da permeabilidade tecidual. As Fatores genéticos podem ser importantes para determinar
lesões endoteliais progridem até formar áreas não perfun- o risco de formas mais graves de retinopatia (proliferativa),
didas (isquêmicas), que podem se manifestar na forma de já que nem todos os pacientes com a modalidade leve evo-
edema ou de exsudatos algodonosos (manchas algodono- luem para formas mais severas da doença.
sas). O achado de microaneurismas, edema ou exsudatos
Tabela 2 - Fatores de risco para o desenvolvimento de retinopatia
define a retinopatia não proliferativa (Figura 1).
diabética
- Duração do DM (surgimento, em geral, a partir de 5 a 7 anos
de diabetes);
- Nível de controle glicêmico (risco mais alto quanto maior a
A1c);
- Hipertensão arterial (associada à retinopatia proliferativa);
- Dislipidemia (associada aos exsudatos duros);
- Doença renal/proteinúria;
- Baixo hematócrito;
- Fatores genéticos (associados às formas graves de retinopatia).

Os pacientes com retinopatia diabética, em geral, evo-


luem assintomáticos até a perda de visão (que pode ser
abrupta, no caso de uma hemorragia), o que dificulta a de-
Figura 1 - Retinopatia diabética não proliferativa: notar a presença tecção da retinopatia. Daí decorre a importância do rastrea-
de exsudatos duros (as manchas amarelas bem definidas) e ex- mento (screening) de todos os diabéticos, mesmo assintomá-
sudatos algodonosos (manchas amarelas mal delimitadas), bem ticos, com exames de fundo de olho periódicos, a fim de de-
como de alguns pequenos microaneurismas (dilatações saculares tectar precocemente as alterações da retinopatia e instituir
dos vasos retinianos) medidas eficazes para prevenir a progressão da perda visual.
Outro tipo de lesão ocular é o edema macular, que pode
Em uma fase mais avançada, a isquemia de retina pro- apresentar, como manifestação inicial, a perda de visão
voca a neoformação vascular (mediada por sinalizadores central. Ao contrário da retinopatia proliferativa, em que a
como o TGF-beta, o VEGF, IGF-1 e outros). Os vasos neofor- perda visual é geralmente severa e permanente, o edema
mados acabam recobrindo áreas mais ou menos extensas macular pode causar perda visual moderada e reversível.
da retina, provocando perda visual, e podem cursar com A presença de edema macular também deve constar da
hemorragias intrarretinianas ou no humor vítreo, com o ris- classificação de risco do paciente (se presente ou ausente),
co de cegueira súbita. A presença de neovascularização e/ sendo independente do grau de retinopatia.
ou de hemorragia vítrea define a retinopatia proliferativa A retinopatia pode ser classificada em diversos graus de
(Figura 2). severidade, conforme a classificação da American Academy
of Ophthalmology, apresentada na Tabela 3.
Tabela 3 - Classificação da retinopatia diabética (American
Academy of Ophthalmology, 2007)
Retinopatia não proliferativa
Leve Apenas microaneurismas.
Moderada Graus intermediários entre a leve e a severa.
Mais de 20 micro-hemorragias nos 4 quadrantes;
ou dilatação venosa em, pelo menos, 2 quadrantes;
Severa
ou anormalidades microvasculares intrarretinianas
(IRMAs) em pelo menos 1 quadrante.
Retinopatia proliferativa
- Presença de neovascularização retiniana e/ou hemorragia
vítrea.
Figura 2 - Retinopatia diabética proliferativa: notar a presença de Edema macular
neovasos (sobre o disco óptico e ao redor dele) e de algumas pe-
- Ausente ou presente.
quenas áreas de hemorragia retiniana

38
COMPLICAÇÕES CRÔNICAS DO DIABETES MELLITUS

A Tabela 4 sumariza as recomendações para o rastrea- sidade da hiperglicemia crônica. Em um estudo realizado
mento de retinopatia em pacientes diabéticos, conforme a nos Estados Unidos, pacientes diabéticos com 30 a 54 anos
SBD. Embora a fundoscopia direta seja o exame mais sim- apresentaram catarata com frequência 5 vezes maior (59%)
ples, barato e disponível, há muita diferença na sua eficácia, em comparação a não diabéticos da mesma idade (12%).
dependendo da experiência do profissional. O exame mais
sensível para detecção da retinopatia parece ser a fotogra- B - Glaucoma
fia da retina (fotorretinografia), de múltiplos campos, prefe- O glaucoma ocorre em 6% dos diabéticos; após cirurgia

ENDOCRINOLOGIA
rencialmente com a pupila dilatada. de catarata pode haver neovascularização da íris, que pode
Em diabéticas que engravidam, a fundoscopia deve ser predispor ao glaucoma de ângulo fechado.
realizada trimestralmente, já que há grande risco de piora
da retinopatia durante a gestação (77% de progressão).
3. Nefropatia diabética
Tabela 4 - Recomendações para rastreamento de retinopatia dia-
A nefropatia diabética, a maior causa de insuficiência re-
bética (SBD, 2007)
nal em estágio terminal em países desenvolvidos, responde
- Realizar exame fundoscópico (preferencialmente fotografia, por 40 a 44% dos casos que iniciam programa dialítico nos
com a pupila dilatada) em todos os pacientes diabéticos;
Estados Unidos. Além disso, a mortalidade de diabéticos
- Começar o rastreamento nos DM2, desde o diagnóstico do DM; que ingressam em diálise é maior do que a de não diabé-
e nos DM1, após a puberdade e com mais de 5 anos de DM; ticos (sobrevida média de 26 meses, ou aproximadamente
- Pacientes com exame normal ou retinopatia não proliferativa 50% de sobrevida em 2 anos).
leve devem repetir o exame anualmente; Além de se associar à perda de função renal, a presen-
- Pacientes com retinopatia não proliferativa moderada ou grave ça de albuminúria aumenta, significativamente, o risco de
devem ser reavaliados com mais frequência; eventos cardiovasculares, principal causa de morte nessa
- Gestantes diabéticas devem ser examinadas a cada 3 meses, população.
pois há piora da complicação neste período; Entre os diabéticos, cerca de 20 a 40% dos pacientes
- Pacientes com retinopatia não proliferativa severa, retinopatia acabam evoluindo para nefropatia clínica (macroalbuminú-
proliferativa ou edema macular devem ser encaminhados ria) em algum momento da doença. Em média, a nefropatia
ao oftalmologista para possível intervenção terapêutica se instala 7 anos após o início da hiperglicemia.
(fotocoagulação a laser); No DM2, como a hiperglicemia pode estar presente
- Pacientes com queixa de perda de visão devem ser anos antes do diagnóstico do diabetes, estima-se que 14
encaminhados com urgência ao oftalmologista. a 24% dos pacientes já apresentem microalbuminúria no
momento do diagnóstico do DM. Dos pacientes com micro-
Quanto ao tratamento, todos os pacientes com retino-
albuminúria negativa no diagnóstico do DM, cerca de 30 a
patia devem receber intervenção agressiva para controle 35% evoluem para nefropatia inicial (microalbuminúria) em
rigoroso da glicemia, pressão arterial e níveis lipídicos. A um período de 10 anos.
cessação do tabagismo também é benéfica. Pacientes com
retinopatia não proliferativa severa, retinopatia proliferati- A - Fisiopatologia
va ou edema macular podem beneficiar-se da fotocoagula-
ção da retina com laser de argônio, a fim de prevenir a ne- O principal mecanismo da nefropatia diabética é a hi-
oformação vascular e a progressão para cegueira. Estudos perfiltração glomerular. De fato, vários estudos demons-
mostram que a fotocoagulação reduz em cerca de 50% o tram que as anormalidades hemodinâmicas glomerulares
risco de progressão da retinopatia e perda visual. A vitrec- são mais importantes, na fisiopatologia da nefropatia dia-
tomia pode estar indicada a pacientes com descolamento bética, que as anormalidades metabólicas. Anormalidades
tracional da retina ou hemorragia vítrea grave. funcionais do aparelho justaglomerular levam à vasocons-
Perspectivas futuras de tratamento envolvem o uso de trição das arteríolas glomerulares. Em conjunto com a hi-
agentes anti-VEGF (reduzindo a neoangiogênese) e o uso de pertensão arterial sistêmica e a hiperglicemia (levando à
diurese osmótica), ocorre um aumento inicial da pressão
corticoide intravítreo (para edema macular). Não há con-
intraglomerular e da taxa de filtração glomerular. A hiperfil-
traindicação para AAS a pacientes com neovascularização
tração glomerular decorrente desses fenômenos aumenta
retiniana ou hemorragia vítrea, pois seu uso nas doses pre-
a permeabilidade dos glomérulos à passagem de macro-
conizadas (75 a 162mg/dia) não aumenta o risco de novos
moléculas, inclusive a albumina. A albuminúria elevada
sangramentos.
contribui para potencializar a injúria tubulointersticial, por
mecanismos complexos. Portanto, a 1ª anormalidade clini-
A - Catarata
camente detectável é o aumento da excreção urinária de
A catarata ocorre prematuramente nos pacientes diabé- albumina (EUA), configurando a fase inicial da doença renal,
ticos pela glicosilação não enzimática de proteínas do cris- de microalbuminúria (nefropatia incipiente, ou pré-clínica).
talino, correlacionada com a duração da doença e a inten- Nessa fase, a alteração renal ainda é reversível, se houver

39
ENDO C RI N O LOG I A

um controle rigoroso da pressão arterial e dos níveis lipídi- B - Diagnóstico e classificação


cos e glicêmicos.
Se o paciente continuar mantendo níveis pressóricos O diagnóstico da nefropatia diabética, classicamente,
elevados, o acúmulo de proteínas na matriz mesangial vai é realizado pela medida da Excreção Urinária de Albumina
levar à esclerose focal e à perda de função dos glomérulos (EUA). A EUA é o marcador mais importante e mais preco-
afetados. Com isso, os glomérulos restantes vão ser expos- ce da nefropatia diabética e um bom preditor de risco de
tos a um aumento ainda maior da sua taxa de filtração, com progressão da doença renal. Em pacientes com DM1 e mi-
grande perda de proteínas, esclerose do mesângio e perda croalbuminúria, estima-se que, após 10 anos, 30% regridam
de função, configurando uma cascata que vai desencade- para normoalbuminúria, 25 a 30% permaneçam com micro-
ar aumento progressivo da excreção urinária de albumina albuminúria e 40 a 45% progridam para macroalbuminúria.
(macroalbuminúria). Essa já é uma fase mais avançada da Daqueles que atingem macroalbuminúria, metade evolui
doença renal (nefropatia clínica). Nessa fase, geralmente para doença renal em estágio terminal em 10 anos, e 75%
já é observada queda significativa da função renal. O dano em 20 anos. Devido ao seu bom valor preditivo, portanto, a
renal, nesta etapa, já é irreversível e a progressão para sín- EUA é o exame mais utilizado atualmente para rastreamen-
drome nefrótica e doença renal em estágio terminal é ine- to de nefropatia em diabéticos.
vitável (embora possa ser retardado pelo controle rigoroso A EUA pode ser medida em coletas de urina de 24h,
da pressão arterial, inibição do eixo renina-angiotensina- amostras de tempo determinado (4 ou 12h, noturno) ou
-aldosterona e restrição da ingesta de proteínas). em amostras isoladas de urina, associada ou não à dosa-
A presença de glomerulosclerose focal, à biópsia renal, gem de creatinina urinária (para a determinação da relação
é um achado patognomônico de nefropatia diabética e é albumina/creatinina urinária). A amostra isolada de urina é
conhecida como “nódulos de Kimmestiel-Wilson”. o exame preferido para rastreamento da nefropatia diabéti-
Finalmente, depois de um intervalo de tempo variável, ca, em vista de sua praticidade, coleta mais simples, menor
o paciente evolui para síndrome nefrótica (perda de proteí- custo e boa acurácia, de acordo com as últimas diretrizes
nas >2 a 3,5g/24h) e para doença renal em estágio terminal. da SBD (2007).
Uma característica da insuficiência renal causada pela Qualquer alteração nos exames de EUA (microalbumi-
nefropatia diabética é que o paciente continua a apresentar núria) deve ser confirmada, em pelo menos 2 de 3 amostras
rins de volume normal (ou mesmo aumentado) e excreção colhidas em um intervalo de 3 a 6 meses, antes do diagnós-
urinária de proteínas aumentada, mesmo na presença de tico de nefropatia diabética.
uma taxa de filtração glomerular extremamente reduzida. A SBD classifica os pacientes, de acordo com os valores
Em diabéticos tipo 2, a doença renal costuma ser mais da EUA, conforme o exposto na Tabela 5.
heterogênea, visto que esses pacientes frequentemente
apresentam outras comorbidades (hipertensão, dislipide- Tabela 5 - Classificação da nefropatia diabética conforme a EUA
mia, aterosclerose, obesidade, hiperuricemia) que contri- (SBD, 2007)
buem para o prejuízo da função renal. Por isso, cerca de Amostra isolada
25% dos pacientes diabéticos tipo 2 que evoluem com que- Coleta Tempo de urina
da significativa da taxa de filtração glomerular não apresen- de 24h marcado Alb./
(mg/24h) (ug/min) Albumina
tam aumento da excreção urinária de albumina. creatinina
(mg/L)
A história natural da nefropatia diabética está ilustrada (mg/g)
na Figura 3. Normal
(normoal <30 <20 <17 <30
buminúria)
Nefropatia
inicial
30 a 299 20 a 199 17 a 173 30 a 299
(microal
buminúria)
Nefropatia
clínica
≥300 ≥200 ≥174 ≥300
(macroal
buminúria)
Observação: sempre confirmar o achado de EUA anormal em,
pelo menos, 2 de 3 coletas em um período de 3 a 6 meses, para
reduzir o risco de falsos positivos.

Algumas situações comuns podem provocar valores ele-


vados de EUA sem, necessariamente, indicar a presença de
Figura 3 - Evolução da nefropatia diabética nefropatia (falsos positivos). Recomenda-se, portanto, ex-

40
COMPLICAÇÕES CRÔNICAS DO DIABETES MELLITUS

cluir essas condições antes da coleta de microalbuminúria. Tabela 7 - Classificação da doença renal conforme a NKF
As principais causas de falsos positivos são apresentadas na Estágio TFG (mL/min/1,73m2)
Tabela 6. 1 >90, na presença de lesão renal
2 60 a 90
Tabela 6 - Causas de elevação da excreção urinária de albumina
3 30 a 59
- Hiperglicemia severa;
4 15 a 29
- Hipertensão arterial descontrolada;

ENDOCRINOLOGIA
5 (terminal) <15 ou tratamento dialítico
- Rim único;
- Idade avançada; Portanto, o rastreamento para nefropatia diabética deve
- Gestação; ser feito com dosagem da EUA, de preferência em amostra
- Infecção urinária; isolada de urina, além da dosagem de creatinina para cál-
- Febre;
culo da TFG, preferencialmente usando a fórmula MDRD,
conforme orientações da SBD, expostas na Tabela 8.
- Doença aguda;
- Insuficiência cardíaca congestiva; Tabela 8 - Rastreamento da nefropatia diabética, de acordo com
- Exercício extenuante; a SBD (2007)
- Glomerulonefrite difusa aguda. - Avaliar a EUA e a TFG, em todos os diabéticos, anualmente;
- O método de escolha para avaliação da EUA é a dosagem de
Apesar de a EUA ser o melhor marcador para nefropa- microalbuminúria em amostra isolada de urina;
tia, alguns pacientes (principalmente com DM2) evoluem - O método de escolha para avaliação da TFG é a dosagem de
com piora progressiva da função renal sem elevação sig- creatinina sérica, com cálculo da TFG usando a equação MDRD;
nificativa dos níveis de proteinúria, o que pode provocar - Qualquer alteração nos exames de EUA deverá ser confirmada,
em pelo menos 2 de 3 amostras colhidas num intervalo de 3 a
alguns rastreamentos falsos negativos quando o screening
6 meses;
é realizado apenas com microalbuminúria. Além disso,
- No DM2, o rastreamento deve ser feito a partir do momento do
novos estudos sugerem que já há aumento do risco de diagnóstico do DM;
progressão da doença renal mesmo com níveis de micro-
- No DM1, o rastreamento deve ser feito a partir da puberdade e
albuminúria discretamente elevados, mas ainda dentro da com mais de 5 anos de DM.
faixa considerada normal (a partir de 5ug/min). Por isso,
as recomendações mais recentes da ADA e da SBD orien- C - Manejo
tam que o rastreamento de nefropatia deve ser realizado
Uma vez confirmada a presença de microalbuminúria
não só com a dosagem da EUA, mas também com a esti-
(nefropatia inicial, ou incipiente) ou de macroalbuminúria
mativa da Taxa de Filtração Glomerular (TFG) utilizando a
(nefropatia clínica), está indicado o bloqueio do eixo renina-
dosagem de creatinina sérica.
-angiotensina-aldosterona, usando um Inibidor da Enzima
O cálculo da TFG deve ser feito, preferencialmente, por Conversora da Angiotensina (IECA) ou um Bloqueador do
meio da equação MDRD, mais acurada do que a fórmula de Receptor da Angiotensina II (BRA), mesmo em pacientes
Cockroft-Gault (que costuma superestimar a TFG em diabé- normotensos.
ticos). A fórmula MDRD é um pouco mais complexa (fórmu- Em diabéticos tipo 1, os IECAs são a 1ª opção, já que o
la a seguir), mas podem ser utilizadas calculadoras online uso dessas drogas diminuiu o risco combinado de morte,
(como a disponível no endereço: www.mdrd.com). diálise e transplante nos pacientes com DM1 com nefropa-
a) Estimativa da TFG pela fórmula de Cockroft-Gault tia e proteinúria. Em diabéticos tipo 2, por outro lado, tanto
os IECAs como os BRAs podem ser utilizados, com eficácia
TFG = (140 – idade) x peso (x 0,85 se mulher) semelhante. Entretanto, em DM2 com proteinúria ou com
Cr x 72 perda de função renal (creatinina acima de 1,5mg/dL), os
(Cr = creatinina sérica em mg/dL). BRAs (losartana ou irbesartana) são superiores aos IECAs.
b) Estimativa da TFG pela fórmula MDRD Na intolerância a uma das classes (tosse com IECA, por
exemplo), pode-se substituir a medicação por uma da outra
TFG = 186 x (Cr) – 1,154 x (idade) – 0,203 x (0,742, se mulher) x classe.
(1,212, se negro) Objetiva-se a redução ou a normalização da microalbu-
minúria, com manutenção da TFG (na nefropatia incipien-
De acordo com o valor estimado de TFG, o paciente te) ou a redução da EUA para <0,5g/dia com queda da TFG
pode ser classificado em diferentes estágios de gravida- <2mL/min/1,73m2 (na nefropatia clínica). Se essas metas
de da doença renal, conforme a classificação da National não forem atingidas, pode-se considerar a associação de
Kidney Foundation (NKF), apresentada na Tabela 7. IECA + BRA, ou mesmo com antagonistas da aldosterona

41
ENDO C RI N O LOG I A

(espironolactona) ou inibidores diretos da renina (alisquire- Parâmetro Metas


no), visto que a associação de drogas parece reduzir ainda - <0,8g/kg/dia (<0,6g/kg/dia se houver
mais a perda urinária de proteínas. Ingesta proteica redução da TFG);
Após o início de IECA ou BRA, pode haver aumento da - Preferir carne de frango à carne vermelha.
creatinina em 30 a 35% nos primeiros 2 meses, em pacien-
A1c - <7%.
tes com creatinina basal >1,4mg/dL, mas isso não indica
- Indicar eritropoetina se hemoglobina
a suspensão da droga. Entretanto, aumentos mais signifi- Anemia
<11g/dL.
cativos devem levantar a suspeita de estenose de artéria
- <100mg/dL (<70mg/dL se doença
renal. Hiperpotassemia pode ser vista, principalmente, em LDL-colesterol
aterosclerótica prévia).
pacientes com perda de função renal. Por isso, deve-se mo-
- <130x80mmHg (<125x75mmHg se houver
nitorar a creatinina e o potássio mensalmente nos primei- PA
proteinúria >1g/24h ou redução da TFG).
ros 3 meses. - DM1: IECA;
Outras medidas importantes para prevenir a piora da Bloqueio do
sistema renina- - DM2: IECA ou BRA;
função renal são o controle glicêmico estrito (visando a A1c angiotensina-
<7%), a manutenção dos lípides em níveis adequados (obje- - DM2 com proteinúria ou redução da TFG:
aldosterona BRA.
tivando LDL <100mg/dL), o uso de antiagregantes plaquetá-
- Indicada em pacientes com TFG <20mL/
rios e a cessação do tabagismo. Diálise
min/1,73m2.
O controle pressórico é fundamental para evitar a pro-
- Possivelmente indicado a pacientes com
gressão da nefropatia. Recomenda-se manter a PA abaixo Transplante renal indicação de diálise e boa expectativa de
de 130x80mmHg, ou ainda mais baixa (<125x75mmHg), se vida (por exemplo, ausência de DCV grave).
o paciente apresenta proteinúria >1g/24h ou redução da
TFG. Geralmente, é necessária a associação de 3 a 4 drogas 4. Neuropatia diabética
anti-hipertensivas para atingir tais objetivos. O nível pressó-
A neuropatia diabética é uma complicação crônica co-
rico atingido parece ser mais importante para proteção re-
mum, que afeta mais de 50% dos diabéticos. Atinge grande
nal do que a classe de agentes anti-hipertensivos utilizados. número de órgãos e sistemas, causando grande morbidade
A ingesta de proteínas deve ser restrita em todos os pa- e aumento da mortalidade. Além disso, compromete tanto
cientes com nefropatia para <0,8g/kg/dia, visto que essa o sistema nervoso somático como o autonômico e pode ter
medida ajuda a prevenir a piora da proteinúria. Em nefropa- uma ampla gama de apresentações e de sintomatologias, a
tas com redução significativa da TFG, a restrição de proteí- depender do órgão acometido.
nas deve ser ainda mais severa: <0,6g/kg/dia. Há evidências O risco de neuropatia tem uma relação estreita com a
de que o uso de carne de frango ao invés de carne vermelha duração do diabetes e o nível de controle glicêmico. Pode
seja benéfico para esses pacientes. estar presente já no momento do diagnóstico do DM2, in-
A anemia pode piorar o prognóstico, portanto o pacien- clusive em indivíduos pré-diabéticos com graus discretos de
te nefropata deve começar a receber eritropoetina recom- hiperglicemia. No DM1, costuma surgir a partir de 5 anos do
binante humana quando apresentar hemoglobina abaixo início da doença.
de 11g/dL. O tipo mais comum de neuropatia é a polineuropatia
Os pacientes em estágio 4 ou 5 da NKF devem ser enca- simétrica distal (também conhecida como polineuropatia
minhados prontamente para um nefrologista, para manejo sensitivo-motora crônica), com prevalência de 25 a 50%
adequado. (dependendo do método utilizado para diagnóstico). A neu-
O tratamento dialítico nos pacientes diabéticos costuma ropatia diabética pode ser classificada da seguinte forma:
ser um pouco mais precoce do que nos outros pacientes Tabela 10 - Classificação da neuropatia diabética
nefropatas, indicado quando o clearance de creatinina cai Rapidamente reversível
abaixo de 20mL/min/1,73m2. Se não houver contraindica- - Neuropatia hiperglicêmica.
ções, como doença cardiovascular (DCV) avançada, estará
Polineuropatia simétrica
indicado o transplante renal, pois a mortalidade dos pa-
cientes diabéticos em esquema de diálise é extremamen- - Sensitivo-motora crônica;
te elevada (75% em 5 anos, comparada a apenas 20% em - Autonômica;
transplantados). - Sensitiva aguda.
O resumo das recomendações da SBD para manejo da Focal e multifocal
nefropatia diabética está exposto na Tabela 9. - Cranial;
Tabela 9 - Recomendações para o manejo do paciente com nefro- - Toracolombar;
patia diabética (SBD, 2007) - Amiotrofia diabética;
Parâmetro Metas - Mononeuropatias.
Medidas gerais - Cessação do tabagismo, uso de AAS. Neuropatia inflamatória crônica desmielinizante

42
COMPLICAÇÕES CRÔNICAS DO DIABETES MELLITUS

A - Neuropatia hiperglicêmica Uma pesquisa realizada em 2011 pela SBEM entre pa-
cientes diabéticos mostrou que 60% deles não têm seus pés
Geralmente, acomete indivíduos com diagnóstico re- examinados habitualmente durante o atendimento médico.
cente de DM e níveis de glicemia muito elevados. Cursa Também é importante a avaliação dos reflexos tendino-
com anormalidades reversíveis da condução nervosa, ma- sos em membros inferiores (o 1º a ser perdido é o aquileu).
nifestando, principalmente, hipoestesias e parestesias em Diapasão (para avaliar a sensibilidade vibratória nos pés),
extremidades. Trata-se de um distúrbio funcional do ner- aparelhos para avaliar a distribuição de pressão na região
vo, com regressão rápida à normalidade após a melhora do

ENDOCRINOLOGIA
plantar e eletroneuromiografia podem ser indicados, de-
controle glicêmico. pendendo da apresentação. Além disso, sempre se devem
afastar outras causas comuns de neuropatia: deficiência de
B - Polineuropatia simétrica distal (ou sensitivo- vitamina B12, hipotireoidismo, insuficiência renal, neopla-
-motora crônica) sia, alcoolismo, neuropatias compressivas, hepatites virais.
Esta é a forma mais comum de neuropatia diabética, - Tratamento da polineuropatia simétrica distal:
com prevalência em torno de 25 a 50% dos pacientes com O tratamento da neuropatia periférica dolorosa inclui os
DM. Em 10% dos DM2, já está presente no momento do controles glicêmico, lipídico e pressórico, que são úteis para
diagnóstico. retardar a progressão da neuropatia, além da cessação do
Cursa com alterações da sensibilidade, com progressão tabagismo.
centrípeta, e os primeiros sintomas são a hipoestesia ou a Drogas com ação antioxidante também podem ser uti-
parestesia “em botas e luvas” (Figura 4). As primeiras sen- lizadas. O ácido alfa-lipoico (ou ácido tióctico), na dose de
sações perdidas, em geral, são a térmica e a dolorosa, e a 600mg/dia, demonstrou melhorar a microcirculação e re-
propriocepção é a última a ser acometida. A queixa mais verter os déficits neurológicos e os sintomas neuropáticos,
comum do paciente é dor, principalmente noturna, do como demonstrado por vários estudos clínicos. Tiamina é
tipo queimação ou choque, associada ou não à alodinia e frequentemente usada para alívio da dor neuropática, mas
cãibras. Evolui, após um período variável, para anestesia há poucas evidências para suportar seu uso rotineiro.
completa nas extremidades, o que determina (em pés) a Medicações sintomáticas são indicadas, principalmente,
distribuição anormal da pressão, provocando deformidades para alívio da dor neuropática (Tabela 11). Dentre as medi-
(artropatia de Charcot), com alto risco de amputação. cações que podem ser utilizadas, citam-se:
a) Antidepressivos tricíclicos
Primeira linha no tratamento da neuropatia periférica
dolorosa. As drogas mais usadas são a amitriptilina, a imi-
pramina e a nortriptilina, nas doses iniciais de 12,5 a 25mg/
dia em dose única (noturna) que é elevada, posteriormen-
te, em 25mg a cada 3 a 7 dias, de acordo com os efeitos
colaterais e a demanda do paciente. A dose pode chegar a
200mg/dia (dose máxima da nortriptilina de 150mg).
b) Anticonvulsivantes
A gabapentina e a pregabalina também são drogas de 1ª
linha, juntamente com os tricíclicos, para alívio da dor neu-
ropática. A gabapentina é iniciada com dose de 300mg (à
noite), com aumento gradual (300mg/semana), até doses
Figura 4 - Distribuição das anormalidades sensitivas “em botas e de 1.800 a 3.600mg/dia. É uma droga eficaz, mas efeitos
luvas” na polineuropatia simétrica distal
adversos são frequentes (sedação, tontura, parestesias). A
Uma forma comum dessa manifestação é o mal perfu- pregabalina (150 a 300mg/dia) tem eficácia semelhante,
rante plantar, em que o paciente, por perda da sensibilida- com menos efeitos colaterais.
de, evolui com lesão necrótica crônica da região plantar dos Outra opção, tradicionalmente usada para dor neuropá-
tica, é a carbamazepina, iniciada em dose de 100mg, 2x/dia,
pés, indolor, de difícil cicatrização.
com aumento de 100mg a cada 2 dias, até chegar à dose
Sintomas motores também podem estar presentes, mas
habitual de 400 a 800mg/dia, dividida em 2 a 4 tomadas.
costumam ser mais tardios e leves, atingindo, principal-
Entretanto, sua eficácia é menor em comparação com a ga-
mente, a musculatura intrínseca distal das mãos e dos pés. bapentina, pregabalina ou tricíclicos. O topiramato é outra
O rastreamento da neuropatia diabética é muito impor- opção, na dose de 25 a 100mg/dia.
tante. A pesquisa de sensibilidade com monofilamento de
10g (também conhecido como monofilamento de Semmes- c) Inibidores seletivos da recaptação de serotonina
Weinstein) deve ser realizada anualmente, do mesmo São drogas de 2ª linha. Podem ser usados: a duloxetina
modo que o exame detalhado dos pés faz parte da rotina (60 a 120mg/dia), a venlafaxina (75 a 150mg/dia), a paroxe-
ambulatorial de pacientes diabéticos. tina (40mg/dia) ou o citalopram (40mg/dia).

43
ENDO C RI N O LOG I A

d) Outras medicações Arritmias cardíacas Taquiarritmias, fibrilação ventricular.


Outras drogas, como a mexiletina (um antiarrítmico), a 2 vezes mais comuns em portadores de
Morte súbita
clonidina (um anti-hipertensivo) e a flufenazina (um neuro- neuropatia autonômica cardiovascular.
léptico), podem ser úteis para o manejo da dor. Agentes tó-
picos, como a capsaicina (um derivado da pimenta caiena,
modulador da substância P) ou o dinitrato de isossorbida Alguns testes funcionais podem ser realizados nesses
em spray, podem ser úteis para o controle da hiperestesia pacientes, como o tilt-table-test para aqueles com impor-
após 2 semanas de uso. Analgésicos opioides (tramadol, tante hipotensão postural sintomática, ou a avaliação da
oxicodona) são reservados para os casos de dor refratária. variação do intervalo R-R no ECG.
O ácido alfalipoico parece ter algum benefício, mas precisa Os pacientes com síncopes de repetição, ou que apre-
de maiores estudos. Combinações de medicamentos tam- sentam hipoaldosteronismo hiporreninêmico com hiper-
bém podem ser necessárias, em casos graves ou refratários. calemia, podem beneficiar-se do uso de fludrocortisona
(Florinef® 0,1 a 0,4mg/dia), embora essa medicação não
Tabela 11 - Opções para tratamento da dor na polineuropatia si- deva ser usada rotineiramente, devido ao risco de hiperten-
métrica distal são arterial e edema periférico. Medidas simples, como a
1ª linha Tricíclicos, gabapentina, pregabalina.
elevação da cabeceira da cama e o uso de meias elásticas
compressivas, podem reduzir os episódios de hipotensão
2ª linha Duloxetina, venlafaxina, opioides, tramadol.
postural. Beta-bloqueadores cardiosseletivos (atenolol ou
3ª linha Carbamazepina, clonidina, mexiletina. metoprolol) podem ser úteis. Pacientes com neuropatia
Fonte: NEURALAD, 2010. cardiovascular devem ser muito bem avaliados antes de
iniciar um programa de atividade física, devido ao risco de
C - Neuropatias autonômicas arritmias e de isquemia silenciosa.
Estas envolvem múltiplos órgãos e sistemas, com sinto- b) Trato gastrintestinal
matologia variada. Provavelmente, são subdiagnosticadas, Manifesta-se com anormalidades de motilidade, absor-
apesar de constituírem importante causa de morbidade, ção e secreção do aparelho gastrintestinal e está presente
perda de qualidade de vida e mortalidade. Pacientes com em cerca de 15% dos diabéticos. A neuropatia autonômica
neuropatia autonômica (principalmente, cardiovascular)
gastrintestinal é caracterizada, clinicamente, por 2 proble-
apresentam risco 2 vezes aumentado de isquemia miocár-
mas principais:
dica silenciosa e morte súbita. As principais manifestações
são as citadas a seguir.
- Gastroparesia diabética: apresenta-se com náuseas,
vômitos e plenitude pós-prandiais e outros sintomas
a) Sistema cardiovascular dispépticos. O tratamento é realizado inicialmente
A neuropatia autonômica cardiovascular está presente com agentes procinéticos, como a domperidona e a
em 7 a 20% dos pacientes com DM e é, provavelmente, uma bromoprida. Em pacientes não respondedores, pode-
causa importante de morte súbita em diabéticos. A morta- -se utilizar a eritromicina, que se liga aos receptores de
lidade em 5 anos varia de 16 a 53% em portadores de neu- motilina no trato gastrintestinal melhorando a motili-
ropatia cardiovascular reconhecida, sendo mais importante dade, sendo sua dose inicial de 250mg a cada 8 horas;
nas fases avançadas da neuropatia. - Enteropatia diabética: os pacientes podem alternar
A Tabela 12 apresenta as principais manifestações clíni- períodos de obstipação e diarreia, esta predominan-
cas da neuropatia autonômica cardiovascular. temente noturna, de caráter explosivo e com vários
episódios de evacuações escurecidas. A maioria dos
Tabela 12 - Manifestações da neuropatia autonômica cardiovascular pacientes apresenta remissão espontânea, mas, em
Queda de 20mmHg na pressão sistólica, caso de persistência, antibioticoterapia com ciproflo-
ou 10mmHg na diastólica, medidas em xacino ou macrolídeos podem ser realizados por 5 a 7
Hipotensão postural
decúbito dorsal e 1 minuto após assu- dias. A eritromicina também pode ser benéfica, como
mir a posição ortostática. na gastroparesia. Caso não exista resposta, é possível
Taquicardia em repouso, falta de varia- usar a loperamida 4 a 8mg/dia e, em alguns casos, os
ção da frequência cardíaca com exercí- pacientes apresentam resposta ao uso da clonidina.
Regulação anormal da
cio ou manobra de Valsalva (intervalo
frequência cardíaca
RR fixo ao ECG), pouca tolerância ao c) Aparelho geniturinário
exercício físico. Apresenta-se com 2 manifestações principais:
Isquemia silenciosa (10 a 15% dos epi- - Disfunção erétil: está presente em cerca de 28% dos
sódios de infarto agudo do miocárdio homens com DM. Costuma ser multifatorial, porém,
Denervação do
ocorrem de forma indolor em portado- na maioria dos pacientes, a neuropatia autonômica
miocárdio
res de neuropatia autonômica cardio- é o determinante mais importante. Pode apresentar
vascular).
melhora com o uso de inibidores da fosfodiesterase

44
COMPLICAÇÕES CRÔNICAS DO DIABETES MELLITUS

(sildenafila, vardenafila ou tadalafila), mas algumas ve- Os pacientes podem ainda apresentar quadro de mo-
zes pode necessitar de altas doses dessas medicações. noneurite múltipla, com mais de 1 neuropatia isolada no
Drogas de uso intracavernoso ou intrauretral (papave- paciente. É importante o diagnóstico diferencial com outras
rina, fentolamina e prostaglandinas) também podem causas de mononeuropatia de nervo craniano, realizando-
ser úteis. Nos casos sem resposta, deve-se encaminhar -se procedimentos de imagem, como tomografia ou resso-
o paciente para avaliação urológica e avaliação da ne- nância magnética de crânio. O diagnóstico de mononeuro-
cessidade de prótese peniana; patia focal diabética é feito após a exclusão de outras pos-

ENDOCRINOLOGIA
- Bexiga neurogênica: é uma importante causa de in- sibilidades, e o tratamento consiste no controle glicêmico
fecção urinária de repetição, devido à retenção uri- rigoroso.
nária. Os pacientes devem ser orientados a realizar a
E - Amiotrofia diabética
manobra de Credé (compressão da bexiga) durante a
micção. O betanecol em dose de 10 a 50mg, 3x/dia Trata-se de uma forma de neuropatia motora proximal,
também pode auxiliar, mas alguns pacientes necessi- que acomete, principalmente, idosos. Os pacientes apre-
tam de cateterização intermitente de vias urinárias. A sentam-se com dor, fraqueza muscular e atrofia em cintura
antibioticoterapia profilática pode ser necessária em pélvica e coxas, podendo ser uni ou bilateral, mas geralmen-
casos de infecção de repetição. te assimétrica, o que causa dificuldade de deambulação. Há
importante perda de peso em até 40% dos casos, devido
d) Outras manifestações de neuropatia autonômica à dor e à anorexia, por isso alguns autores preferem a de-
Os olhos podem ser afetados, cursando com anormali- nominação “caquexia diabética”. Não existe um tratamento
dades da acomodação pupilar (cegueira noturna) ou pupi- específico, todavia o controle estrito do diabetes e sessões
las de Argyll-Robertson. de fisioterapia motora geralmente são indicados.
O sistema sudomotor também pode ser acometido, de- Na maioria dos casos, ocorre recuperação gradual, mas
terminando anidrose de extremidades ou, eventualmente, esta pode levar meses e, em alguns casos, até anos para
um quadro conhecido como sudorese gustatória, em que uma melhora satisfatória. Além disso, alguns pacientes
o paciente apresenta sudorese intensa na face e no tronco apresentam vasculite, que pode responder à imunossu-
superior logo após a ingesta de alguns alimentos. pressão.
A resposta fisiológica às hipoglicemias (secreção de ca-
tecolaminas e glucagon) pode ser diminuída, expondo o 5. Pé diabético
paciente ao risco de episódios hipoglicêmicos graves e re-
correntes. A mais terrível complicação da neuropatia diabética é
a úlcera neuropática (mal perfurante plantar), que consti-
D - Neuropatias periféricas focais tui a principal causa de internação de pacientes diabéticos
nos EUA, sendo também responsável por 40 a 60% das am-
A maioria ocorre em pacientes idosos, cursando com re- putações não traumáticas de membros inferiores naquele
cuperação parcial ou completa do déficit motor na maioria país. De fato, 85% das amputações de membros inferiores
dos casos, embora a recuperação total possa levar várias em diabéticos são precedidas por 1 ou mais úlceras em pés
semanas ou meses. Pode ocorrer em nervos periféricos e (Figura 6).
cranianos. Nos casos de mononeuropatia craniana, o ner- Diabéticos têm um risco 17 vezes maior de amputação
vo mais comumente envolvido é o III par craniano, com de pés em comparação a não diabéticos. Úlceras tendem a
oftalmoplegia (Figura 5), enquanto o nervo periférico mais tornar-se infectadas em pelo menos 50% dos casos.
envolvido é o nervo mediano. Outros nervos comumente Além disso, os pacientes submetidos a uma amputação
atingidos são o VI e o VII pares cranianos e o nervo ulnar. apresentam alta mortalidade (50% em 3 anos) devido às
comorbidades comumente associadas (nefropatia, neuro-
patia autonômica, aterosclerose).

Figura 5 - Mononeuropatia diabética, afetando o III par craniano


à direita

Outra forma de apresentação é a mononeuropatia trun-


cal, acometendo as raízes nervosas da região toracolombar.
Geralmente, apresenta-se com dor intensa no trajeto da Figura 6 - Úlcera neuropática em pé diabético com distribuição
raiz nervosa acometida (mais comumente, T9 ou T10). anormal da pressão na região plantar

45
ENDO C RI N O LOG I A

Em 60% dos casos, as úlceras devem-se à neuropatia


(por perda da sensibilidade protetora nos pés), e em 30%, à
associação de neuropatia e isquemia. Apenas 10% das úlce-
ras são causadas, exclusivamente, por isquemia.
Tabela 13 - Fatores de risco para úlcera no pé diabético
- Perda de sensibilidade tátil/dolorosa; Figura 7 - Aplicação do monofilamento de 10g na identificação do
- Ausência de pulsos pediosos; pé de risco
- Calosidades, anidrose, micose, fissuras, locais de alta pressão Tabela 14 - Classificação do pé diabético em graus de risco de am-
em plantas dos pés; putação
- Deformidades (artropatia de Charcot); Risco Característica Avaliar
- História de úlceras ou amputações prévias; 0 Neuropatia ausente 1x/ano
- DM de longa duração; 1 Neuropatia presente 2x/ano
- Mau controle glicêmico; Neuropatia presente + IAPC ou
2 4x/ano
- Tabagismo; deformidade
- Deficiência visual; A cada 1 a 3
3 Amputação ou úlcera prévia
- Nefropatia diabética (especialmente diálise). meses
IAPC = Insuficiência Arterial Periférica Crônica.
A - Prevenção
C - Manejo da úlcera
Deve-se recomendar ao paciente diabético: lubrificação
adequada da pele dos pés; evitar andar descalço ou com O paciente com neuropatia diabética apresenta diminui-
calçados abertos devido ao risco de trauma; calosidades e ção de sensibilidade a traumas, permitindo o desenvolvi-
anormalidades das unhas devem ser tratadas por podólo- mento de lesões, e a disfunção autonômica pode associar-
-se à diminuição da transpiração (anidrose) nas extremida-
go; e, em caso de deformidades, calçados específicos orien-
des, pele seca e maior propensão a desenvolver fissuras
tados após avaliação por especialista dos pés.
que servem como porta de entrada para infecções.
É de fundamental importância a detecção precoce do pé A doença arterial periférica, por si só, raramente causa
de risco, pois um trabalho preventivo incluindo educação ulceração (10% dos casos). Porém, quando ocorrem trauma
do paciente, uso de calçados adequados e tratamento das e infecção locais, a demanda por aporte sanguíneo supera
anormalidades é capaz de reduzir em 40 a 85% o risco de a disponibilidade local, com o desenvolvimento de lesão. A
amputações. ultrassonografia com Doppler nesses pacientes pode apre-
sentar resultados enganadores, e o fator mais associado à
B - Rastreamento isquemia significativa é a ausência de pulso tibial posterior
e pedioso.
A pesquisa de neuropatia periférica deve ser realizada,
A classificação de Wagner é a mais utilizada para carac-
pelo menos, anualmente, usando o monofilamento de 10g
terizar as úlceras de pacientes com pé diabético (Tabela 15).
(de Semmes-Weinstein), conforme mostra a Figura 7, e com
exame clínico cuidadoso dos pés, no mínimo, 1 vez por ano. Tabela 15 - Classificação de Wagner para úlceras no pé diabético
O monofilamento deve ser aplicado com pressão suficiente - Pé de risco, sem úlcera;
para encurvar-se em, pelo menos, 3 locais na região plantar - Úlcera superficial;
de ambos os pés (hálux, 1º e 5º metatarsos), perguntando - Úlcera profunda;
ao paciente se sentiu a pressão nesses locais. Um erro na
- Envolvimento ósseo;
percepção da pressão padronizada de 10g já é considera-
- Gangrena parcial;
do um teste positivo. Esse teste simples tem sensibilidade
próxima de 90% para detecção de neuropatia com risco de - Gangrena completa.
amputação.
Devem ser considerados 3 aspectos no tratamento das
Os pés devem ser classificados de acordo com sua ca- úlceras em pacientes com pé diabético:
tegoria de risco, sendo que os de maior risco devem ter - Determinar se fluxo arterial é adequado;
avaliação mais frequente, conforme proposto na Tabela 14. - Tratar a infecção apropriadamente;
Outros exames (como a eletroneuromiografia) podem ser - Remover a pressão da úlcera e das áreas adjacentes.
necessários nos casos de dúvida diagnóstica. Na suspeita
de insuficiência arterial, pode-se realizar Doppler vascular A avaliação clínica, conforme comentado, é o meio mais
ou angiografia. O índice tornozelo/braço é útil para detectar apropriado para determinar a adequação da circulação lo-
casos subclínicos de insuficiência vascular crônica em mem- cal, e, em caso de dúvida, outros procedimentos podem ser
bros inferiores. necessários, como a arteriografia.

46
COMPLICAÇÕES CRÔNICAS DO DIABETES MELLITUS

O tratamento apropriado de infecção local é muito im- Complica- Método de Periodicidade Periodicidade
portante na evolução desses pacientes, e a antibioticotera- ção rastreamento no DM1 no DM2
pia tópica não costuma ser apropriada. Pacientes com úl- Exame dos
ceras neuropáticas e circulação adequada não apresentam pés + teste do
indicação de antibioticoterapia, exceto nos casos em que o monofilamento
paciente apresenta claros sinais clínicos de infecção, como de 10g + Anualmente,
Anualmente,
descarga purulenta, eritema local ou celulite. A antibioti- pesquisa de a partir da
desde o

ENDOCRINOLOGIA
coterapia pode ser guiada por cultura de secreções locais Neuropatia reflexos + puberdade
diagnóstico do
nos pacientes com lesões consideradas leves (com celulite medida da e >5 anos de
DM.
pressão arterial DM.
menor que 2cm e infecção limitada à pele e ao tecido sub-
em decúbito
cutâneo). A cobertura deve ser dirigida para Staphylococcus e em posição
aureus e estreptococos do grupo A, podendo-se, utilizar, ortostática.
nessa situação, cefalosporinas de 1ª ou 2ª geração, amo-
Medida da Em todas as Em todas as
xicilina com clavulanato ou clindamicina por 7 a 14 dias de Outros
pressão arterial. consultas. consultas.
tratamento.
Os pacientes com lesões moderadas (definidas por ce-
lulite maior que 2cm, linfangite e abscesso profundo envol- 7. Aterosclerose e doença cardiovascular
vendo músculos, tendões e ossos) necessitam de cobertura no DM
antibiótica de maior espectro, contra agentes Gram posi-
No paciente diabético, a aterosclerose instala-se de for-
tivos, Gram negativos e anaeróbios. Conforme a gravida-
ma mais precoce, mais acelerada, mais grave e com maior
de do caso, é definido o uso de terapia IV ou VO por 2 a
frequência que em não diabéticos, aumentando a incidên-
4 semanas, constituindo opções terapêuticas: ampicilina/
cia de doença coronariana, de AVC e de gangrena periférica.
sulbactam, cefalosporinas de 3ª geração, ciprofloxacino ou
Essas alterações são consideradas complicações crônicas
levofloxacino, ertapeném ou piperacilina/tazobactam asso-
macrovasculares do DM (embora, possivelmente, anorma-
ciados à clindamicina.
lidades microvasculares também possam fazer parte da sua
As infecções consideradas graves, além de apresenta-
fisiopatologia).
rem as condições descritas nas infecções moderadas, são
As causas do risco aumentado de eventos cardiovas-
acompanhadas de instabilidade hemodinâmica ou metabó-
culares em diabéticos envolvem fatores relacionados à
lica. Nesses casos, a terapia deve ser necessariamente IV e
hiperglicemia (disfunção endotelial, hiperagregabilidade
com ampla cobertura microbiana, incluindo carbapenêmi- plaquetária, anormalidades de alguns componentes da co-
co, piperacilina/tazobactam, associados à vancomicina ou agulação, microalbuminúria) e outros fatores, relacionados
teicoplanina. à resistência insulínica (hipertensão arterial, dislipidemia
aterogênica, obesidade).
6. Rastreamento das complicações micro- Para cada aumento de 1 ponto percentual na hemoglo-
vasculares no DM bina glicada (A1c), aumenta em 18% o risco de IAM ou AVC
em diabéticos.
A síndrome metabólica, uma condição relacionada à re-
Tabela 16 - Resumo das recomendações da SBD (2007) para o ras-
treamento de complicações crônicas microvasculares em pacien- sistência insulínica e ao risco aumentado de DCV, está pre-
tes com DM sente em 80 a 90% dos portadores de DM2.
A dislipidemia aterogênica associada ao diabetes envol-
Complica- Método de Periodicidade Periodicidade
ção rastreamento no DM1 no DM2 ve anormalidades como a hipertrigliceridemia, baixos níveis
de HDL-colesterol e a mudança da composição das partícu-
Anualmente,
Preferencial- Anualmente, las de LDL-colesterol, que se tornam menores e mais densas
a partir da
mente, fotorre- desde o (tipo B). Essas partículas menores de LDL cruzam mais facil-
Retinopatia puberdade
tinografia com diagnóstico do mente o endotélio e são mais facilmente oxidadas, apresen-
e >5 anos de
pupilas dilatadas. DM. tando maior potencial aterogênico.
DM.
Microalbuminú- A hipertensão arterial é observada em, pelo menos, 70%
ria em amostra dos pacientes com DM2 (em pelo menos 40%, já no diag-
isolada de urina Anualmente, nóstico do DM) e está relacionada à obesidade e à síndro-
Anualmente,
+ estimativa da a partir da me metabólica, pelo menos 2 vezes mais comum do que em
desde o
Nefropatia taxa de filtração puberdade não diabéticos da mesma idade. Em pacientes com DM1, a
diagnóstico do
glomerular a par- e >5 anos de HA geralmente surge após a instalação de nefropatia.
DM.
tir da creatinina DM. Todos esses fatores, além do estado inflamatório sistê-
sérica (usando mico crônico (elevação da proteína C reativa de alta sensi-
equação MDRD).
bilidade), o estado pró-trombótico (aumento do PAI-1) con-

47
ENDO C RI N O LOG I A

tribui para que os diabéticos apresentem um risco 2 a 4 vezes Portanto, os exames para rastreamento de doença co-
maior de DCV, quando comparados a populações sem diabe- ronariana (teste ergométrico nos pacientes que toleram
tes. Uma grande meta-análise recente concluiu que o risco esforço, ou outros testes, como cintilografia miocárdica,
de DCV era 3,1 a 3,7 vezes maior em mulheres diabéticas do ecocardiograma de estresse, tomografia cardíaca ou cate-
que em não diabéticas, e 1,9 a 2,1 vezes maior em homens terismo nos demais pacientes) são recomendados em pa-
diabéticos do que em não diabéticos. A mesma meta-análise cientes sintomáticos (angina ou insuficiência cardíaca de
demonstrou que, quanto maior o nível de A1c, maior o risco início recente) e em diabéticos de alto risco (>20% de risco
de complicações macrovasculares: para cada 1% de aumento de evento em 10 anos pelo escore de Framingham). Deve-
na A1c, ocorre um aumento de 18% no risco de infarto do se acrescentar que, com maior frequência, os pacientes dia-
miocárdio ou acidente vascular cerebral. béticos apresentam doença coronariana triarterial, e o uso
Um estudo clássico acompanhou, por 7 anos, pacien- de stent apresenta piores resultados nesse grupo.
tes normais, pacientes com DCV prévia sem diabetes, dia- A hiperglicemia durante um episódio coronariano agu-
béticos sem DCV prévia e diabéticos com DCV prévia, para do (infarto agudo do miocárdio) piora a evolução e a mor-
avaliar o risco de novos eventos (infarto do miocárdio ou talidade dos pacientes. Pacientes com infarto agudo que
morte cardiovascular) nesse período, nos diferentes grupos apresentarem hiperglicemia deverão receber infusão IV
(Figura 8), observou-se que o risco de um novo evento era contínua de insulina regular, durante os primeiros dias da
o mesmo, comparando-se o grupo de diabéticos sem DCV internação, visando à manutenção de níveis de glicose plas-
prévia (15,4%) e o grupo de pacientes com DCV prévia sem mática entre 126 e 180mg/dL, uma intervenção que mos-
diabetes (15,9%). Tal risco era ainda maior no grupo de pa- trou reduzir em 52% o risco de mortalidade cardiovascular
cientes com ambos, diabetes e DCV prévia (42% em 7 anos). no 1º ano após o evento.
Por isso, o DM hoje é visto como uma condição que, por si Um estudo recente (o BARI2D), publicado em 2009,
só, já confere um alto risco de eventos cardiovasculares ao demonstrou que, em diabéticos com doença arterial co-
seu portador (>20% em 10 anos). ronariana, o tratamento clínico (com controle rigoroso da
glicemia, pressão arterial e lípides) foi tão eficaz quanto a
revascularização coronariana com stent + tratamento clíni-
co na prevenção de morte ou novos eventos. A única dife-
rença observada nesse estudo foi com relação ao uso de
revascularização cirúrgica em pacientes de altíssimo risco,
os quais tiveram um risco 22% menor de novos eventos do
que os pacientes apenas em tratamento clínico. Em resu-
mo: pacientes diabéticos com doença arterial coronariana
podem ter apenas tratamento clínico, visando ao controle
rigoroso dos fatores de risco, exceto em casos de muito alto
risco, que devem ser, preferencialmente, tratados com re-
vascularização cirúrgica.
Por todos esses motivos, o paciente diabético deve re-
ceber um tratamento multifatorial, visando ao adequado
controle não só da glicemia, mas de todos os potenciais
Figura 8 - Risco de infarto do miocárdio ou morte cardiovascular
em 7 anos fatores de risco cardiovascular (hipertensão, dislipidemia
etc.), a fim de obter a máxima proteção contra eventos ate-
Bastante preocupante, ainda, com relação ao DM, é o roscleróticos.
fato de que, em até 25% dos diabéticos, a 1ª manifestação Quanto ao controle pressórico, o alvo de tratamento
de DCV pode ser catastrófica (infarto agudo do miocárdio deve ser <130x80mmHg em todos os pacientes. O UKPDS,
ou morte súbita). Há evidências de que 10 a 15% dos in- por exemplo, mostrou que o controle rigoroso da pressão
fartos em diabéticos ocorrem sem dor (denervação miocár- arterial permitiu uma redução de 21% no risco de infarto,
dica por neuropatia autonômica). Pacientes com isquemia 32% no risco de morte e 44% no risco de AVC em pacien-
silenciosa detectada por testes de screening apresentam tes com DM2. As drogas de escolha são os IECAs (ou BRAs),
risco de morte 3 vezes maior. associados a tiazídicos em baixas doses e/ou bloqueadores
Todos esses fatores fazem com que as doenças ateros- dos canais de cálcio. Beta-bloqueadores estão indicados
cleróticas sejam a principal causa de morte em diabéticos para pacientes com DCV prévia. Geralmente, são necessá-
(tanto DM2 quanto DM1). Estima-se que 66 a 80% das mor- rias 3 ou mais drogas para obter o controle pressórico ade-
tes em diabéticos sejam por aterosclerose, das quais 75% quado.
estariam relacionadas à doença arterial coronariana, e os Os lípides devem ser adequadamente controlados, com
restantes 25% distribuídos igualmente entre acidente vas- dieta específica e, em muitos casos, hipolipemiantes orais.
cular cerebral e insuficiência arterial periférica. As metas de tratamento são: colesterol total <200mg/dL,

48
COMPLICAÇÕES CRÔNICAS DO DIABETES MELLITUS

LDL <100mg/dL (ou <70mg/dL nos portadores de doen- - A mortalidade de diabéticos em diálise é altíssima (50% em 2
ça aterosclerótica prévia), triglicérides <150mg/dL e HDL anos);
>40mg/dL (em homens) e >50mg/dL (em mulheres). - A neuropatia diabética acomete cerca de 50% dos diabéticos
e pode ter apresentações das mais variadas, pois atinge tanto
o sistema nervoso somático como o autonômico, em diversos
8. Resumo níveis;
- A forma mais comum de neuropatia diabética é a

ENDOCRINOLOGIA
Quadro-resumo polineuropatia sensitivo-motora distal, que cursa com
- As complicações microvasculares do DM (retinopatia, alterações da sensibilidade (hipoestesia ou anestesia) em
neuropatia e nefropatia) apresentam nítida relação com a extremidades, com progressão centrípeta, podendo ter
duração do DM e o nível de controle de glicemia (risco maior sintomas dolorosos associados;
quanto mais alta a A1c). O controle glicêmico rigoroso é a - O exame com monofilamento de 10g ajuda a detectar
melhor forma de prevenir sua ocorrência; alterações sensitivas da polineuropatia sensitivo-motora
- Os principais mecanismos responsáveis pela ocorrência distal;
de complicações microvasculares no DM relacionam-se - O manejo da dor neuropática, na polineuropatia sensitivo-
à hiperglicemia crônica e incluem: acúmulo de sorbitol motora distal, pode ser feito com o uso de antidepressivos
intracelular (pela via dos polióis); disfunção endotelial pela tricíclicos (amitriptilina, imipramina, nortriptilina), inibidores
ativação da proteína-quinase C; acúmulo de produtos finais seletivos da recaptação de serotonina (paroxetina,
da glicosilação avançada (AGEs); aumento da formação de venlafaxina, duloxetina), anticonvulsivantes (carbamazepina,
espécies reativas de oxigênio e maior estresse oxidativo; gabapentina) e eventualmente opioides;
- A retinopatia diabética é a principal causa de cegueira - O pé diabético é uma das principais complicações da
adquirida em adultos e deve ser pesquisada anualmente polineuropatia sensitivo-motora distal e uma das mais
com exame de fundo de olho (fotorretinografia com pupilas possíveis de prevenir com os cuidados adequados;
dilatadas);
- Alterações sensitivas em pés se associam a risco aumentado
- Microaneurismas são as lesões mais precoces na retinopatia de úlceras (das quais 60% são neuropáticas). As úlceras,
diabética. Exsudatos duros e algodonosos, áreas de edema, por sua vez, associam-se a risco alto de infecção (50%) e
micro-hemorragias e dilatação venosa também podem ser amputação de pés (85% das amputações são precedidas por
vistos na retinopatia não proliferativa; úlceras);
- O achado de neovascularização retiniana e/ou hemorragia - A neuropatia autonômica cursa com grande impacto na
vítrea define a retinopatia proliferativa; qualidade de vida e na mortalidade de pacientes diabéticos,
- O tratamento das formas graves de retinopatia (retinopatia mas é frequentemente subdiagnosticada;
não proliferativa severa, retinopatia proliferativa, edema - Na presença de neuropatia autonômica cardiovascular,
macular) é feito com a fotocoagulação com laser de argônio, há intolerância ao exercício, hipotensão postural e risco
capaz de prevenir a evolução para cegueira; aumentado de isquemia silenciosa, arritmias e morte súbita (3
- A nefropatia diabética é a principal causa de doença renal em vezes mais comum);
estágio terminal em países desenvolvidos (40 a 44% dos casos); - Mononeuropatias (acometendo III, IV ou VI pares cranianos,
- A microalbuminúria é o marcador mais precoce e mais ou os nervos mediano ou ulnar) também podem ser
sensível para rastreamento da nefropatia diabética; manifestações da neuropatia diabética, mais comuns em
- O rastreamento da nefropatia diabética deve ser realizado idosos com DM2. Costumam ser autolimitadas e exigem
anualmente com a dosagem da microalbuminúria controle glicêmico rigoroso;
(preferencialmente, em amostra isolada de urina) combinada - A DCV é 2 a 4 vezes mais comum em portadores de diabetes,
com a estimativa da TFG a partir da dosagem de creatinina e corresponde à principal causa de morte em diabéticos
sérica (usando a equação MDRD); (principalmente, a doença arterial coronariana);
- Cerca de 25% dos diabéticos tipo 2 evoluem com perda - Um paciente diabético que nunca apresentou um evento
progressiva da função renal sem aumento da excreção cardiovascular tem o mesmo risco de infarto do miocárdio ou
urinária de albumina; morte cardiovascular, em 7 anos, do que um indivíduo não
- O manejo da nefropatia diabética envolve o controle diabético que já sofreu um infarto;
glicêmico e lipídico rigoroso, a manutenção da PA em níveis - Para prevenção da DCV em diabéticos, é fundamental o
<130x80mmHg (ou <125x75mmHg na presença de proteinúria controle agressivo da glicemia, pressão arterial, lípides,
>1g/24h ou perda de função renal), o bloqueio do sistema antiagregação plaquetária e cessação do tabagismo;
renina-angiotensina-aldosterona usando IECA ou BRA (mesmo - Deve-se pesquisar a presença de isquemia silenciosa em
em pacientes normotensos) e a restrição da ingesta de diabéticos de muito alto risco cardiovascular (>20% em 10
proteínas para <0,8g/kg/dia (ou <0,6g/kg/dia se já houver anos pelo escore de Framingham).
perda de função renal);
- Diabéticos com taxa de filtração glomerular <20mL/
min/1,73m2 já apresentam indicação para terapia de
substituição renal (diálise);

49
ENDOC RI N O LOG I A

CAPÍTULO

5 Complicações agudas do diabetes mellitus


Leandro Arthur Diehl / Rodrigo Antônio Brandão Neto

renal (que diminui o clearance de drogas hipoglicemiantes)


1. Hipoglicemia no diabético e insuficiência adrenal.

A - Introdução C - Manifestações clínicas


Existem 2 tipos de manifestações clínicas de hipogli-
A hipoglicemia é uma complicação aguda comum do cemia: as autonômicas e as neuroglicopênicas. Os sinais
tratamento do diabetes mellitus, sendo observada princi- e sintomas autonômicos são relacionados à ativação do
palmente nos pacientes que usam secretagogos (sulfoni- sistema nervoso simpático e parassimpático, e à liberação
lureias) ou insulina. Diabéticos tipo 1 apresentam glicemia de catecolaminas, que ocorrem precocemente no curso de
abaixo de 50 a 60mg/dL em cerca de 10% do tempo, e cos- um episódio de hipoglicemia (geralmente, a partir de níveis
tumam cursar com 2 hipoglicemias sintomáticas por sema- glicêmicos de 65 a 70mg/dL). Incluem palpitações, taqui-
na, em média. cardia, hipertensão sistólica, ansiedade e tremores (sinais e
Sabe-se que, quanto mais rígido for o controle glicêmi- sintomas adrenérgicos), bem como sudorese, parestesias e
co, menor será a chance de complicações crônicas do dia- sensação de fome (sintomas colinérgicos).
betes (retinopatia, nefropatia e neuropatia), porém maior Com níveis glicêmicos ainda mais baixos (em geral, abai-
será o risco de hipoglicemias. No estudo DCCT, os pacientes xo de 50 a 55mg/dL), começam a aparecer as manifestações
com diabetes tipo 1 no grupo de tratamento intensivo apre- neuroglicopênicas, associadas à baixa oferta de glicose para
sentaram um risco 3 vezes maior de hipoglicemias graves o sistema nervoso central: confusão, fraqueza, astenia, di-
com necessidade de atendimento hospitalar, totalizando 62 ficuldade de concentração, alterações do comportamento,
episódios/100 pacientes/ano. agressividade, sonolência, torpor e, em casos mais graves,
A maioria dos casos de hipoglicemia é leve e facilmente convulsões, coma ou morte. Em alguns casos, podem ocor-
tratável; no entanto, podem ocorrer complicações graves e rer até mesmo sintomas focais (hemiparesia, afasia, ataxia),
até fatais em episódios mais severos. Estima-se que 2 a 4% reversíveis com a correção da hipoglicemia.
Os sintomas de hipoglicemia são pouco específicos, e
dos óbitos em pacientes com DM1 sejam devidos à hipo-
podem ser causados por vários outros distúrbios. Por essa
glicemia.
razão, para confirmação do diagnóstico de hipoglicemia, é
B - Etiologia necessário que o paciente apresente os 3 critérios da “tría-
de de Whipple”, apresentados na Tabela 1.
Na evolução do diabetes, há déficit progressivo na libe-
ração de glucagon e, mais tardiamente, diminuição da libe- Tabela 1 - Tríade de Whipple para diagnóstico de hipoglicemia
ração de catecolaminas em resposta à hipoglicemia, espe- - Glicemia <45mg/dL;
cialmente em usuários de beta-bloqueadores e pacientes - Sintomas compatíveis com hipoglicemia;
com neuropatia autonômica. Estima-se que, nesses casos, - Melhora dos sintomas após a administração de glicose.
o risco de hipoglicemia aumenta mais de 20 vezes.
Na presença de hipoglicemia em paciente com DM, Em pacientes idosos, com hipoglicemias recorrentes ou
devem-se procurar fatores precipitantes, como dose exces- com diabetes de longa duração (já com disfunção autonô-
siva de insulina ou de secretagogos da insulina, reduzida mica ou insuficiência renal, ou em uso de beta-bloqueado-
ingestão de carboidratos (atraso ou omissão de refeições res), os sintomas adrenérgicos podem ser muito discretos
é a causa mais frequente), aumento do consumo muscular ou ausentes (distúrbio da percepção das hipoglicemias).
de glicose (exercício físico mais intenso que o habitual), in- Nesses casos, o paciente pode apresentar sintomas tardios
gestão alcoólica (bloqueia a gliconeogênese), insuficiência apenas quando a glicemia já está muito baixa, tais como

50
COMPLICAÇÕES AGUDAS DO DIABETES MELLITUS

convulsões ou coma, implicando possibilidade de sequelas para pacientes com alto risco de hipoglicemia, evitando a
neurológicas permanentes. Deve-se suspeitar de hipoglice- necessidade de hospitalização em muitos casos, desde que
mia assintomática/oligossintomática quando a hemoglobi- os familiares estejam orientados sobre o reconhecimento
na glicada do paciente apresenta valores muito baixos (5 a desses episódios e a aplicação intramuscular ou subcutânea
6%) ou quando o paciente relata episódios de irritabilidade, do medicamento.
sonolência ou pesadelos frequentes. Num paciente diabético, com rebaixamento súbito do
nível de consciência, se não for possível a medida imediata

ENDOCRINOLOGIA
D - Classificação da glicemia, a 1ª conduta é a administração de glicose pa-
renteral. Se houver melhora clínica em 10 a 15 minutos, fica
A hipoglicemia pode ser classificada em 3 graus de seve- estabelecido o diagnóstico de hipoglicemia. Se não houver
ridade, conforme apresentado na Tabela 2. melhora, devem ser pesquisadas outras causas para a per-
da de consciência.
Tabela 2 - Classificação dos episódios de hipoglicemia de acordo Em desnutridos, hepatopatas ou etilistas, deve-se pres-
com sua gravidade crever tiamina junto com a glicose. O objetivo é prevenir o
Características Tratamento surgimento de encefalopatia de Wernicke-Korsakoff. Admi-
15g de carboidratos nistram-se 100mg de tiamina, IV ou IM, juntamente com
Predomínio de sintomas neu- a glicose (não é mais recomendado prescrever a tiamina e
simples VO; repetir
rogênicos; paciente conscien- esperar alguns minutos até infundir a glicose).
Leve em 15min, se neces-
te. Pode ser reconhecida e Após a melhora do paciente (que geralmente ocorre em 10
sário (eventualmen-
tratada pelo próprio paciente. a 15 minutos), deve-se orientá-lo a ingerir um lanche contendo
te).
15g de carboidratos carboidratos complexos (de absorção mais lenta) para prevenir
Presença de sintomas neu- que haja episódio hipoglicêmico nas próximas horas.
simples VO; repetir
rogênicos e neuroglicopê- Em todo episódio de hipoglicemia, também é funda-
Moderada em 15min, se neces-
nicos. Pode ser necessária mental a determinação da causa do evento, mais frequen-
sário (frequentemen-
a ajuda de terceiros. temente a falta de ingestão alimentar ou a prática de ativi-
te).
Glicose IV (20g) em dade física, e a verificação da função renal. Deve-se sempre
bolus, repetindo a ficar atento para causas subjacentes, como infecção uriná-
Predomínio de sintomas ria, sepse, pneumonia, doenças intra-abdominais, síndro-
dose em 15min, se
neuroglicopênicos; presen- mes coronarianas agudas etc.
necessário; ou glu-
ça de queda do nível de
Grave cagon 1mg SC/IM.
consciência, convulsões ou
coma. Necessita de atendi-
Oferecer um lanche 2. Cetoacidose diabética
com carboidratos
mento médico.
complexos após a
melhora clínica. A - Introdução
A cetoacidose diabética (CAD) é uma complicação agu-
E - Tratamento da grave do DM, responsável por cerca de 4 a 8% das inter-
Diante de um episódio suspeito ou confirmado de hipo- nações por diabetes, e cuja incidência vem aumentando no
glicemia, o tratamento consiste na administração de glicose mundo inteiro.
na forma mais conveniente e rápida disponível. Aproximadamente 20 a 30% dos casos novos de DM1
a) Para o paciente consciente (hipoglicemia leve ou apresentam a cetoacidose como manifestação inicial da do-
ença (especialmente em crianças e adolescentes).
moderada): ofertar carboidratos de absorção rápida por via
Embora seja mais comum em diabéticos tipo 1 (princi-
oral. Geralmente, 15g de carboidrato (3 colheres pequenas
palmente jovens do sexo feminino), CAD pode acontecer
de açúcar ou um copo pequeno de leite) são suficientes em diabéticos tipo 2 submetidos a estresse intenso (infar-
para a reversão da hipoglicemia. Pode-se repetir essa dose to do miocárdio, sepse). O estado hiperosmolar, por outro
de carboidrato em 15 minutos se não houver melhora com- lado, é uma complicação exclusiva do DM2. É interessante
pleta. Deve-se evitar a correção com quantidades excessi- ressaltar que, apesar de a CAD ser classicamente associada
vas, pois provocarão hiperglicemia após o episódio. ao DM1, atualmente a maioria dos casos de CAD está ocor-
b) Para o paciente em coma (hiperglicemia grave): a rendo em pacientes com DM2, em razão do grande número
via oral de administração é contraindicada, restando a via de indivíduos afetados pelo DM2 (90% dos casos de DM) e
parenteral (IV) para a administração de 15 a 20g de glicose pela maior expectativa de vida dessa população.
hipertônica ou 30 a 40mL de glicose a 50%. Em indivíduos
sem acesso venoso, pode-se usar glucagon IM/SC (dispo- B - Fisiopatologia
nível em seringas contendo 1mg; dose recomendada 0,5 a O substrato fundamental para a ocorrência da CAD é
2mg), embora seu efeito seja fugaz e ineficaz em 2ª dose, a deficiência severa de insulina. Essa deficiência pode ser
pois a 1ª dose já depleta todo o estoque de glicogênio he- absoluta (ou seja, por ausência de insulina circulante) ou
pático. Entretanto, o glucagon pode ser uma boa alternativa relativa (por elevação dos hormônios contrarreguladores -

51
ENDOC RI N O LOG I A

glucagon, catecolaminas, cortisol e GH – em pacientes com Deficiência severa de insulina + ↑ hormônios


deficiência moderada de insulina). contrarregulatórios
A ausência de ação da insulina, especialmente se asso- Falta de ação da insulina → aumento da glicogenólise e
ciada à ação excessiva dos hormônios contrainsulínicos, de- gliconeogênese hepática e renal; redução da captação
termina uma produção hepática e renal elevada de glicose, de glicose pelos tecidos sensíveis à insulina (músculos,
enquanto sua captação pelos tecidos periféricos é reduzida, tecido adiposo, fígado) → aumento da concentração
determinando hiperglicemia e consequente hiperosmolari- plasmática e glicose → perda urinária de glicose, quando a
dade, além de glicosúria, com diurese osmótica e perda de glicemia ultrapassa o limiar de recaptação renal de glicose
(180 a 200mg/dL) → diurese osmótica → perda intensa
água, sódio, potássio e outros eletrólitos. de água e eletrólitos → distúrbios hidroeletrolíticos
Na CAD, a deficiência severa de insulina também de- (hiperosmolaridade, hipocalemia), hipotensão, choque.
termina aumento da lipólise (por falta da ação inibitória da → Hiperglicemia, depleção de volume, distúrbios
insulina sobre a atividade da lipase hormônio-sensível, no EHH
hidroeletrolíticos
tecido adiposo), aumento da oferta de ácidos graxos livres Há produção mínima de insulina, suficiente para inibir a
ao fígado e consequente aumento da cetogênese hepáti- lipólise e a produção de corpos cetônicos, portanto não
há cetose nem acidose.
ca (maior beta-oxidação lipídica nas mitocôndrias, por di-
Evolução arrastada que se desenvolve em semanas,
minuição da malonil-coenzima-A e aumento da atividade associada costumeiramente a condições que dificultam a
da carnitina-palmitil-transferase – CPTF). Como os corpos mobilização e a hidratação do paciente (acamados, idosos
cetônicos (ácido acetoacético, ácido beta-hidroxibutírico e demenciados, residentes em casa de repouso, pacientes
acetona) são ácidos orgânicos, seu acúmulo vai determinar com sequelas neurológicas), levando à depleção severa
acidose metabólica com aumento do ânion-gap (normo- (hipotensão, choque, insuficiência renal), distúrbios
clorêmica). Deve-se lembrar que, normalmente, a cetogê- hidroeletrolíticos e hiperosmolaridade (torpor, coma)
com frequência maior do que na CAD.
nese é bloqueada pela ação da insulina, mesmo quando
esta se encontra em concentrações muito baixas. Por isso, CPTF = Carnitina-palmitil-transferase.
CAD = Cetoacidose diabética.
a cetoacidose só ocorre quando a deficiência de insulina for
EHH = Estado Hiperosmolar Hiperglicêmico não cetótico.
absoluta (como no DM1) ou quando os níveis de hormô-
nios contrarreguladores insulínicos (cortisol, GH, glucagon)
forem extremamente elevados na presença de uma defici- C - Fatores desencadeantes
ência relativa de insulina (como no DM2, na vigência de in- Existem 2 fatores precipitantes principais da CAD. O 1º é
tercorrências médicas graves – infarto, sepse etc.). a infecção, que pode levar à resistência da ação insulínica e
Um resumo da fisiopatologia da CAD, e a sua compa- ao aumento de hormônios contrarreguladores, acarretando
ração com o Estado Hiperosmolar Hiperglicêmico (EHH), é
cetoacidose. As infecções são responsáveis por 30 a 50%
apresentado na Tabela 3.
dos casos de CAD. Os quadros infecciosos mais prevalentes
Tabela 3 - Sumário das fisiopatologias da CAD e do EHH são pneumonia, Infecção do Trato Urinário (ITU) e sepse,
Deficiência severa de insulina + ↑ hormônios seguidos de pé diabético, celulite, sinusite, meningite e
contrarregulatórios diarreia, embora qualquer infecção possa levar à descom-
Falta de ação da insulina → aumento da glicogenólise e pensação diabética.
gliconeogênese hepática e renal; redução da captação de O 2º fator precipitante de grande importância é a baixa
glicose pelos tecidos sensíveis à insulina (músculos, tecido
adiposo, fígado) → aumento da concentração plasmática adesão ao tratamento, extremamente relevante em diabé-
e glicose → perda urinária de glicose, quando a glicemia ticos do tipo 1 durante a adolescência, representando cerca
ultrapassa o limiar de recaptação renal de glicose (180 de 20 a 25% dos casos de cetoacidose.
a 200mg/dL) → diurese osmótica → perda intensa Outras causas importantes em pacientes com >40 anos
de água e eletrólitos → distúrbios hidroeletrolíticos
(hiperosmolaridade, hipocalemia), hipotensão, choque. de idade são as doenças ateroscleróticas, como o Infarto
→ Hiperglicemia, depleção de volume, distúrbios Agudo do Miocárdio (IAM) e o Acidente Vascular Cerebral
hidroeletrolíticos (AVC), responsáveis por até 5% dos episódios de CAD nessa
Falta de inibição da insulina sobre a lípase hormônio-
CAD sensível → lipólise aumentada → aumento dos ácidos
faixa etária. Os vários fatores precipitantes de CAD são cita-
graxos circulantes → transportados para fígado → dos na Tabela 4.
aumento da atividade da CPTF pelo estímulo do Em todo paciente que se apresenta com CAD, é obri-
glucagon → beta-oxidação dos ácidos graxos e síntese gatória a pesquisa de fatores desencadeantes desse qua-
de corpos cetônicos (acetona, ácido acetoacético e beta-
hidroxibutirato). dro (exceto, talvez, no jovem diabético do tipo 1 em uso
→ Cetonemia e acidose metabólica irregular de medicação, com crise claramente relacionada à
Evolução aguda/subaguda (horas/dias), com quadro interrupção do uso de insulina).
clínico associado à hiperglicemia (poliúria, polidipsia),
depleção (hipotensão, taquicardia), acidose (dor Tabela 4 - Fatores precipitantes de CAD
abdominal, vômitos, respiração de Kussmaul), cetose
(hálito cetônico) e hiperosmolaridade (redução do nível - Infecções (respiratória e urinária);
de consciência). - Baixa adesão ao tratamento;

52
COMPLICAÇÕES AGUDAS DO DIABETES MELLITUS

- Primodescompensação diabética (CAD é a 1ª manifestação do O achado de febre não é frequente nos pacientes com
DM1 em 25% dos casos); CAD e sua ausência não descarta a presença de infecção.
- IAM; Hipotermia é sinal de mau prognóstico.
- Acidente vascular cerebral (principalmente nos pacientes com
EHH); E - Avaliação laboratorial
- Excesso de hormônios contrainsulínicos: acromegalia, hiperti- Num paciente diabético que chega à emergência com
reoidismo, Cushing; desidratação, rebaixamento do nível de consciência ou que-

ENDOCRINOLOGIA
- Drogas hiperglicemiantes: glicocorticoides, pentamidina, beta- da do estado geral, os primeiros exames a serem realizados
-bloqueadores, tiazídicos em altas doses etc.; são a glicemia capilar (para detecção de hipo ou hiperglice-
- Uso abusivo de etanol; mia) e a dosagem de cetonas no sangue (cetonemia) ou na
- Colecistite e outras complicações intra-abdominais: pancreatite, urina (cetonúria).
apendicite, vômitos intensos, diarreia e isquemia mesentérica. A dosagem de cetonas na urina é o método disponível
na maioria dos serviços brasileiros. Esse método, em geral,
D - Manifestações clínicas usa fitas urinárias (dipstick, utilizando o método do nitro-
A cetoacidose ocorre, principalmente, na população prussiato) e tem a importante limitação de não detectar
com faixa etária entre 20 e 29 anos, embora possa ocorrer o ácido beta-hidroxibutírico, que é o corpo cetônico mais
em qualquer idade. Seu aparecimento é agudo e os pacien- abundante nos pacientes com acidose. Mesmo assim, a
tes apresentam pródromo com poliúria, polidipsia, polifagia cetonúria resulta positiva na grande maioria dos casos de
e mal-estar indefinido, com duração de 1 ou poucos dias. cetoacidose (95% de sensibilidade), em face da grande
Ao exame físico, o paciente apresenta-se geralmente quantidade de acetona e acetoacetato que também são
desidratado, podendo estar hipotenso e muitas vezes ta- produzidos na CAD. No entanto, nos serviços em que está
quicárdico, embora possa, eventualmente, estar com as disponível a dosagem plasmática de corpos cetônicos (ceto-
extremidades quentes e bem perfundidas, pelo efeito de nemia), este deve ser o exame de escolha, por ser capaz de
prostaglandinas. mensurar os 3 corpos cetônicos. Cetonúria negativa afasta a
Podem aparecer taquipneia, com ritmo respiratório de hipótese de CAD com praticamente 100% de certeza.
Kussmaul (movimentos respiratórios rápidos e profundos, Confirmando-se a presença de hiperglicemia e cetonú-
quando o pH do paciente se encontra entre 7 e 7,2) e hálito ria/cetonemia e acidose, devem-se colher outros exames
cetônico ou de maçã podre, em razão do caráter bastante para confirmação diagnóstica e direcionamento da tera-
volátil da cetona, um dado que pode ser útil no diagnóstico. pêutica.
A dor abdominal é um achado muito característico de A avaliação laboratorial mínima inicial de um paciente
cetoacidose (não ocorrendo no estado hiperosmolar, exce- com suspeita de CAD ou EHH deve incluir os exames da Ta-
to se houver outras causas associadas) e, provavelmente, bela 5:
tem relação com a alteração de prostaglandinas na parede
muscular intestinal e com íleo paralítico (por desidratação, Tabela 5 - Exames de rotina na avaliação do paciente com CAD
acidose e alterações hidroeletrolíticas). É um achado que Material Exame
tende a melhorar muito com a hidratação inicial do pacien- Sangue capilar Glicemia capilar
te. Manifestações gastrintestinais (dor, náuseas, vômitos) Sangue arterial pH e bicarbonato (gasometria)
estão presentes em cerca de metade dos casos. A dor abdo- Glicemia, ureia, creatinina, sódio, potássio,
minal pode ser severa a ponto de simular um abdome agu- Sangue arterial
cloro, ânion-gap, osmolaridade, hemograma,
do, mas tende a melhorar com a reversão da cetoacidose, o ou venoso
cetonemia (se disponível)
que ajuda no diagnóstico diferencial. Urina Exame simples de urina e cetonúria
Deve-se salientar que o paciente pode, ainda, apre-
Eletrocardiograma, raio x de tórax, enzimas
sentar as manifestações clínicas da condição precipitante cardíacas, tomografia de crânio, culturas de
do episódio de cetoacidose, como ITU e IAM. O quadro Outros
sangue ou urina – a depender da suspeita
clínico é, portanto, relativamente inespecífico. Entretanto, clínica
o quadro laboratorial de CAD é muito característico, com-
posto pela tríade de hiperglicemia, cetonemia/cetonúria a) Osmolaridade
e acidose. A osmolaridade dos pacientes, quando não puder ser
O paciente normalmente se encontra alerta. As mani- diretamente dosada no plasma, pode ser calculada por uma
festações neurológicas e as alterações do nível de consci- simples fórmula:
ência são muito mais relacionadas ao EHH do que à CAD.
Osmolaridade efetiva = (2 x Na+) + (glicose/18)
Entretanto, cerca de 10 a 20% dos casos de CAD (os mais
graves, com maior hiperosmolaridade) podem cursar com Deve-se dar preferência ao cálculo da osmolaridade efe-
torpor ou coma. tiva (sem inclusão da ureia na fórmula), pois a ureia cruza

53
ENDOC RI N O LOG I A

livremente a membrana e, portanto, não exerce efeito os- dosagem com a evolução do tratamento ou dosar a lipase,
mótico real. Considera-se normal uma osmolaridade efeti- já que esta é mais específica para o diagnóstico de pancre-
va de até 285 a 295mEq/L. Valores de osmolaridade efetiva atite. Transaminases e CPK total também podem estar ele-
>320mEq/L associam-se à redução do nível de consciência. vadas na CAD. Triglicérides costumam estar muito elevados.
A alteração da consciência na ausência de hiperosmolalida- Insuficiência renal aguda é extremamente comum nos
de (abaixo de 320mOsm/kg) demanda a pesquisa de outras casos de CAD com depleção importante, razão pela qual se
causas para o rebaixamento neurológico. deve monitorar a função renal dos pacientes.
b) Eletrólitos d) Eletrocardiograma
A concentração de sódio plasmático encontra-se usual- O eletrocardiograma, além de servir para rastrear is-
mente reduzida pelo influxo plasmático de água do meio quemia coronariana como fator precipitante do episódio de
intracelular para o extracelular (pseudo-hiponatremia) na CAD, também permitirá verificar a presença de complica-
tentativa de diluir o sangue que está rico em glicose. Ou- ções da hipercalemia e outros distúrbios hidroeletrolíticos.
tra causa menos comum da queda da dosagem do sódio é
a hipertrigliceridemia. Assim sendo, como os níveis iniciais F - Diagnóstico e classificação
de sódio plasmático, demonstrados pelo laudo do exame
Os critérios laboratoriais para diagnóstico da CAD estão
(sódio “medido”), podem ser menores do que os reais,
discriminados na Tabela 6.
em razão da interferência dos altos níveis da glicemia e do
shift de água, torna-se necessário, em pacientes com níveis Tabela 6 - Critérios diagnósticos de CAD, conforme a Sociedade
muito elevados de glicemia, o cálculo da correção do sódio Brasileira de Diabetes (SBD, 2007)
plasmático (sódio “corrigido”), usando a seguinte fórmula: Critério Parâmetro laboratorial
Na corrigido = Na dosado + [1,6 x (glicemia - 100)/100] Hiperglicemia Glicemia >250mg/dL*
pH arterial <7,3 e bicarbonato
O potássio plasmático, por sua vez, pode não refletir o Acidose
sérico <18mEq/L
potássio corporal total do paciente. Comumente, o potássio
Cetose Cetonúria ou cetonemia +
corporal total está bastante reduzido em razão das perdas
urinárias (perda de 500 a 700mEq). No entanto, o potássio * Raramente, pode haver cetoacidose diabética com valores de
plasmático dosado pode estar elevado por causa da acide- glicemia <250mg/dL (exemplo: jejum prolongado, gestação).
mia, do déficit de insulina e da hipertonicidade, que levam A classificação da gravidade da CAD é importante por-
a um shift do potássio do intracelular para o extracelular que os pacientes com cetoacidose moderada ou têm in-
na tentativa de normalizar as cargas da membrana celular dicação de tratamento em unidade de terapia intensiva,
plasmática. O tratamento da cetoacidose e do EHH, com
enquanto os pacientes com CAD leve podem ser tratados
a administração de insulina e a correção da acidose, pode
no pronto-socorro, ou unidade de emergência. A Tabela 7
determinar queda da potassemia, razão pela qual é funda-
apresenta a classificação da CAD conforme a gravidade.
mental a reposição desse eletrólito em todos os pacientes
com potassemia normal ou baixa. Além disso, os pacientes Tabela 7 - Classificação da CAD conforme a American Diabetes As-
que já se apresentam com valores de potássio plasmáti- sociation
co baixos ou no limite inferior da normalidade devem ter CAD
monitorização mais intensiva da calemia, pois a redução Leve Moderada Grave
adicional da potassemia com o tratamento pode provocar Glicemia >250 >250 >250
arritmias por vezes fatais.
pH arterial 7,25 a 7,3 7 a 7,24 <7
c) Outros exames laboratoriais Bicarbonato 15 a 18 10 a 15 <10
A dosagem da hemoglobina glicada pode indicar se o Cetonúria Positiva Positiva Positiva
quadro atual é fruto da descompensação aguda de um pa- Cetonemia Positiva Positiva Positiva
ciente bem controlado (A1c normal) ou se é o evento pro-
Osmol.
gressivo em paciente mal controlado (A1c elevada), mas Variável Variável Variável
(mOsm/L)
não altera o manejo emergencial desses pacientes.
Ânion-gap >10 >12 >12
A leucocitose é comum na CAD, sendo proporcional ao
Alteração do
grau de cetonemia do paciente. Sua presença não indica Alerta Alerta/sonolento Estupor/coma
sensório
necessariamente infecção, mesmo quando há desvio à es-
querda. Pode haver aumento de hematócrito e hemoglobi-
na em pacientes com desidratação severa.
G - Diagnóstico diferencial
A amilase está frequentemente elevada na CAD, não se Cetoacidose pode ocorrer em outras situações, além do
relacionando ao diagnóstico de pancreatite. Porém, caso a DM. Um exemplo é a cetoacidose alcoólica, que cursa com
suspeita de pancreatite seja pertinente, convém repetir a cetose importante, embora a acidose não seja tão intensa

54
COMPLICAÇÕES AGUDAS DO DIABETES MELLITUS

e a glicemia seja normal ou baixa. O jejum prolongado (>3 a) Reposição volêmica


dias) também pode cursar com cetose leve, com pH nor- A hidratação inicial visa restaurar o volume intracelular,
mal e mantendo glicemia normal ou baixa. A história clínica o volume extracelular e a perfusão renal. A reposição vo-
é característica. Além disso, o bicarbonato raramente fica lêmica deve corrigir o déficit de água e eletrólitos em 24
abaixo de 18mEq/L na cetose do jejum. horas. A terapia com hidratação IV é suficiente para reduzir
Alguns pacientes diabéticos podem se apresentar com a glicemia em 20 a 25% de seu nível inicial, independente
hiperglicemia e cetose, mas ainda com pH >7,3. Nesses ca- do uso de insulina.

ENDOCRINOLOGIA
sos, o diagnóstico é de cetose diabética, considerada uma A reposição inicial é de 1.000 a 1.500mL de SF a 0,9% na
fase da descompensação aguda prévia à cetoacidose dia- 1ª hora (15 a 20mL/kg de peso). A hidratação subsequen-
bética. Se o paciente não for tratado corretamente, pode te dependerá da condição de hidratação, da dosagem de
evoluir para cetoacidose. eletrólitos e do débito urinário. Se o paciente ainda estiver
Outras causas de acidose metabólica com ânion-gap depletado (taquicárdico, hipotenso, mucosas secas) deve-
alargado devem ser investigadas, como a acidose láctica, a -se utilizar apenas SF 0,9%.
insuficiência renal crônica e a intoxicação por ácidos como Depois que o paciente estiver normotenso e com débito
o AAS, metanol, etilenoglicol e paraldeído. urinário, a solução de escolha dependerá do sódio plasmá-
Doenças intra-abdominais (pancreatite, colecistite) po- tico: utiliza-se solução salina a 0,9% se houver hiponatre-
dem levar à descompensação diabética e devem entrar no mia, ou salina a 0,45% se o sódio plasmático for normal ou
diagnóstico diferencial. Portanto, deve-se ter muito cuida- alto, com velocidade de infusão de 4 a 14mL/kg/h ou de
do ao atribuir dor abdominal à cetoacidose. Quando a dor 250 a 500mL/h (Figura 2).
abdominal é devida à CAD, ela geralmente melhora com a Quando a glicemia baixar para <250mg/dL, deve-se as-
hidratação e insulinoterapia. Se a dor persistir mesmo após sociar glicose às soluções de hidratação (na concentração
a correção da CAD, devem-se investigar outras causas. de 5 ou 10%). Essa medida diminui a incidência de com-
Alguns pacientes podem apresentar cetoacidose diabética plicações da terapêutica, como hipoglicemia e edema ce-
com glicemias não muito elevadas (CAD euglicêmica), como na rebral.
doença hepática, na gestação e no jejum prolongado. É importante reavaliar a osmolaridade plasmática a cada
Hiperosmolaridade pode ser observada em outras do- 1 a 2 horas, e ajustar o tratamento de forma que a variação
enças além do EHH, principalmente em pacientes com desi- na osmolaridade não seja mais rápida que 3mOsm/kg/h.
dratação intensa ou diabetes insipidus.

H - Tratamento
Os quadros de hiperglicemia com cetose, mas sem aci-
dose (pH >7,3), conhecidos como cetose diabética, podem
ser tratados com hidratação e insulina suplementar, com re-
versão em poucas horas, geralmente não necessitando de
internação.
Nos pacientes com CAD, o paciente deve ser internado,
submetido à pesquisa de fatores desencadeantes e tratado
de acordo com as diretrizes.
Os 3 pilares fundamentais da terapêutica da CAD são a hidra-
tação IV, a reposição de potássio e a insulinoterapia (Figura 1).
Outros fatores importantes são a correção dos distúr-
bios hidroeletrolíticos, a identificação e tratamento do fator
desencadeante e, acima de tudo, a monitorização contínua
do paciente. A cada 2 a 4 horas, amostras de sangue para
análise de potássio, sódio, glicose, ureia, creatinina e pH ve-
noso devem ser colhidas.

Figura 2 - Reposição volêmica na CAD

b) Reposição de potássio
Em pacientes com diurese adequada, a solução salina in-
Figura 1 - Pilares do tratamento da cetoacidose diabética fundida deve conter 20 a 30mEq/L (ou 10 a 15mEq/h) de KCl

55
ENDOC RI N O LOG I A

se a potassemia for de 3,3 a 5,5mEq/L; ou 40 a 60mEq/L se IM ou SC


a potassemia estiver menor que 3,3mEq/L. Se a potassemia Inicia-se com bolus inicial de 0,4U/kg (sendo metade por via IV
for muito baixa (<2,5 a 3mEq/L), deve-se suspender tempo- e metade por via IM ou SC). Depois, mantém-se a dose de 0,1U/
rariamente a administração de insulina e repor KCl (IV) até kg/h IM ou SC, observando-se a taxa de queda da glicemia, que
que o potássio plasmático esteja acima de 3,5mEq/L. deve ser mantida entre 50 e 75mg/dL/h, ajustando a dose de in-
A Figura 3 apresenta um resumo das recomendações para sulina administrada se necessário. Também se pode reduzir pela
reposição de potássio durante o tratamento agudo da CAD. metade a dose de insulina, uma vez que a glicemia do paciente
fique abaixo de 250mg/dL.

Em pacientes pediátricos com CAD leve ou moderada e


sem depleção importante, outro esquema muito utilizado é
a administração de análogos de insulina ultrarrápidos (lis-
pro, aspart ou glulisina), por via subcutânea, de 2/2h (dose
habitual: 0,15U/kg a cada 2 horas).

Figura 3 - Reposição de potássio na CAD

c) Insulinoterapia
No tratamento emergencial da CAD, devem-se utilizar
apenas insulinas de ação rápida, tais como a regular, ou os
análogos lispro, aspart e glulisina.
Nos casos de CAD moderada a grave, a insulina regular
deve ser administrada na forma de infusão contínua IV. A
insulinoterapia é realizada concomitantemente com a hi-
dratação IV, exceto quando o paciente apresenta hipoca-
lemia (K+ <3,3mEq/L), ocasião em que está contraindicada
a insulina pelo risco de agravar a hipocalemia. Nessa situ-
ação, deve-se iniciar hidratação + reposição de potássio,
reiniciando o uso da insulina apenas quando a potassemia
estiver acima de níveis seguros (K+ >3,3mEq/L).
A insulinoterapia subcutânea ou intramuscular (usando
insulina regular ou os análogos de ação ultrarrápida) pode
ser uma boa opção em pacientes com CAD leve sem de-
pleção importante (já que a depleção altera a absorção de
insulina dada por via SC).
A American Diabetes Association propõe 2 esquemas Figura 4 - Insulinoterapia IV na CAD
de insulinoterapia para o tratamento emergencial da CAD
(Tabela 8): d) Bicarbonato
O uso de bicarbonato de sódio para correção da acidose
Tabela 8 - Esquemas de insulina no tratamento emergencial da CAD
na CAD é controverso. Uma meta-análise sobre o tema indi-
Apenas IV
ca não ter havido benefícios com essa conduta em pacien-
Inicia-se com bolus de 0,15U/kg, seguido da infusão de 0,1U/ tes com pH inicial entre 6,9 e 7,14. Entretanto, os trabalhos
kg/h. Esta dose de infusão contínua pode ser ajustada, poste-
analisados incluíram poucos pacientes com pH <7. Não há
riormente, conforme a queda observada na glicemia venosa.
evidências de que o uso de bicarbonato altere o prognóstico
Espera-se uma queda da glicemia de 50 a 75mg/dL/h. Se a que-
da observada na glicemia for menor que essa, pode-se dobrar do paciente. O uso da insulina promove bloqueio da lipólise
a taxa de infusão (para 0,2U/kg/h), ou, inversamente, reduzir a e da cetogênese e, juntamente com a hidratação, resolve
infusão de insulina pela metade (para 0,05U/kg/h), se a queda a CAD na maioria dos casos, sem requerer o uso adicional
da glicemia for maior que 75 a 80mg/dL/h (Figura 4). Depois que de bicarbonato (principalmente em crianças). Além disso, o
a glicemia ficar abaixo de 250mg/dL, pode-se reduzir a taxa de uso de bicarbonato não é isento de complicações, podendo
infusão da insulina pela metade, mantendo a insulinoterapia IV causar hipocalemia, piora paradoxal da acidose no sistema
até que sejam atingidas as metas de correção do pH e do bicar- nervoso central e hipóxia tecidual por desvio da curva de
bonato sérico.
dissociação de hemoglobina. Alguns estudos mostram que

56
COMPLICAÇÕES AGUDAS DO DIABETES MELLITUS

o tempo de internação hospitalar é maior em pacientes tra- f) Critérios de resolução da CAD


tados com bicarbonato IV. A insulinoterapia intensiva, a hidratação e a reposição
No entanto, o bicarbonato pode ser uma medida pru- de potássio devem ser mantidas até que o paciente atinja
dente em pacientes com risco de complicações (depressão as metas de tratamento apresentadas na Tabela 9.
miocárdica, choque) pela acidose grave ou com hipercale-
mia. Por esse motivo, a ADA recomenda repor o bicarbona- Tabela 9 - Critérios para definir resolução da CAD
to quando o pH arterial for <7. - pH >7,3;

ENDOCRINOLOGIA
A dose sugerida pela ADA para adultos com CAD é de - Bicarbonato >18mEq/L;
50mEq de bicarbonato (ou 50mL da solução de bicarbonato - Glicemia <200mg/dL;
de sódio a 8,4%) em pacientes com pH entre 6,9 e 7; e de
- Ânion-gap 12mEq/L;
100mEq (ou 100mL a 8,4%) quando o pH for menor que 6,9
- Paciente hidratado, alerta e em bom estado geral.
(até o máximo de 1mEq/kg). Em 2005, uma diretriz brasilei-
ra de cetoacidose diabética foi publicada pela Associação
Médica Brasileira, condenando o uso de bicarbonato na A cetonemia demora mais a se resolver do que a hi-
CAD. No entanto, a maioria dos autores sugere que se utili- perglicemia. O método de nitroprussiato, usado em nosso
ze bicarbonato para os pacientes com pH <7 ou com hiper- meio para dosar corpos cetônicos na urina (dipstick), avalia
calemia. A própria Sociedade Brasileira de Diabetes sugere apenas o ácido acetoacético e a acetona. O beta-hidroxibu-
que o bicarbonato poderia ser indicado para pacientes com tirato, o ácido mais forte e mais abundante na cetoacidose,
pH abaixo de 7,1. não é identificado pelo método do nitroprussiato. Durante
A Figura 5 apresenta as indicações de reposição de bi- o tratamento da CAD e reversão da acidose, o beta-hidro-
carbonato na CAD, de acordo com a ADA. xibutirato, presente em maior quantidade, é convertido em
ácido acetoacético, levando o médico inexperiente a inter-
pretar que a cetose piorou, enquanto os demais parâme-
tros melhoraram. Portanto, a avaliação quantitativa da ce-
tonúria não deve ser utilizada como parâmetro para indicar
resposta à terapia.

g) Cuidados pós-resolução da CAD

Uma vez resolvido o episódio agudo de CAD, deve-se li-


berar a ingestão de alimentos via oral e iniciar a insulinote-
rapia subcutânea (tratamento de manutenção do DM). Um
cuidado importante, no momento de interromper a infusão
IV de insulina e iniciar a manutenção com insulina subcutâ-
nea, é esperar de 1 a 2 horas (após a administração da in-
Figura 5 - Reposição de bicarbonato no CAD, conforme recomen- sulina subcutânea) antes de desligar a bomba de infusão de
dações da ADA
insulina intravenosa. Essa sobreposição é importante para
que o paciente não fique um período de tempo sem ação
e) Outros eletrólitos
insulínica alguma, visto que a insulina regular administrada
A despeito da deficiência do fósforo corpóreo na CAD, o por via intravenosa tem uma duração de ação extremamen-
fósforo plasmático geralmente é normal, e não há evidên- te curta (3 a 5 minutos), e as insulinas basais levam de 1
cias de que a reposição rotineira de fósforo traga benefícios a 2 horas após a aplicação subcutânea para começarem a
ao paciente. A maioria dos autores recomenda a reposição exercer sua ação biológica.
apenas quando os níveis iniciais de fósforo forem meno-
Em pacientes que já utilizavam insulina previamente,
res que 1mEq/L, ou na presença de insuficiência cardíaca,
geralmente se reintroduz a dose anterior de insulina.
arritmias, anemia hemolítica ou depressão respiratória. A
Em pacientes que ainda não faziam uso de insulina (por
ADA recomenda que parte dessa reposição seja realizada
na forma de fosfato monopotássico, para repor concomi- exemplo: primodescompensação diabética), pode-se cal-
tantemente os déficits de fósforo e potássio. A reposição cular a dose diária total de insulina para manutenção com
do fósforo pode ser feita com a adição de 20 a 30mEq/L de base no peso corporal do paciente (em média, 0,6U/kg/
fosfato potássico às soluções de hidratação. dia), ou com base na quantidade de insulina utilizada nas
O cálcio e o magnésio séricos podem estar reduzidos últimas 24 horas (2/3 dessa dose).
na CAD, mas não existem evidências de que sua reposição Um esquema fácil para prescrição da insulina, ainda uti-
rotineira gere algum benefício. Portanto, raramente são uti- lizado em muitos serviços, é dividir a dose diária total de
lizados. insulina em 2/3 pela manhã (no café) e 1/3 à noite (no jan-

57
ENDOC RI N O LOG I A

tar). A dose do café será composta por 2/3 de NPH e 1/3 de


regular; a dose do jantar será composta de metade de NPH
e metade de regular.
No entanto, quanto mais intensivo o esquema insulíni-
co introduzido, melhor é o controle glicêmico do paciente.
Se possível, deve-se iniciar o tratamento de manutenção já
com um esquema basal-bolus, usando 50% da dose diária
total de insulina na forma de insulina basal (NPH, glargina
ou detemir) e os restantes 50%, na forma de insulina rápida,
divididos entre as 3 refeições principais.
Nos dias seguintes, o paciente deverá receber monito-
rização dos níveis de glicemia capilar (7 medidas diárias:
antes e 2 horas após as 3 principais refeições, e na hora de
dormir) e suplementação com bolus adicionais de insulina
rápida se necessário. Os ajustes das doses de insulina de
manutenção deverão ser feitos diariamente, até se obter o
controle glicêmico adequado.

I - Complicações
A hipoglicemia é a principal complicação do tratamento
da CAD. Portanto, há necessidade de verificação da glicemia
capilar de hora em hora até a correção do quadro. Hipo-
calemia e suas complicações (arritmias cardíacas) também
Figura 6 - Tomografia de crânio de paciente com edema cerebral,
podem aparecer após a instituição do tratamento com in- mostrando a compressão dos ventrículos, o apagamento dos sul-
sulina. Acidose hiperclorêmica pode ocorrer por infusão cos no córtex e a falta de diferenciação entre a substância branca
excessiva de cloro na solução fisiológica, e geralmente tem e a cinzenta
resolução espontânea em alguns dias.
O desenvolvimento da Síndrome do Desconforto Respi-
O edema cerebral é a complicação mais grave. É mais
ratório Agudo (SDRA) pode ocorrer, principalmente, com a
comum em crianças do que em adultos, mas mesmo em
utilização de soluções coloides para a recuperação da pres-
crianças é incomum (1%). É temida por apresentar alta
são arterial do paciente. Tromboembolismo pulmonar (TEP)
mortalidade (40 a 90%). Parecem ser fatores de risco para
é complicação relativamente frequente em pacientes com
o desenvolvimento de edema cerebral: a hidratação mui-
estado hiperosmolar (relacionado à osmolaridade elevada),
to abundante e a correção muito rápida da osmolaridade mas rara em pacientes com cetoacidose diabética.
plasmática. A razão fisiopatológica para essa complicação Distensão gástrica aguda pode ocorrer, representando
é pouco conhecida. Parece decorrer da movimentação complicação de neuropatia autonômica, sendo o extremo
osmótica de água para o SNC quando a osmolalidade cai da gastroparesia diabética e apresentando indicação para
muito rapidamente durante a compensação. Deve-se sus- internação em UTI.
peitar quando o paciente começa a apresentar alterações A mucomicose é uma infecção fúngica profunda, que
do comportamento, rebaixamento do nível de consciência, atinge principalmente a cavidade nasal, os seios da face e os
convulsões, déficits motores, associados ou não à cefaleia e ouvidos. Ocorre quase exclusivamente em pacientes com
vômitos, durante o tratamento da CAD. A morte deve-se à cetoacidose ou imunodeprimidos.
herniação do tronco cerebral. A confirmação é feita por to- A alcalose metabólica paradoxal pode ocorrer durante o
mografia de crânio (Figura 6). O tratamento é feito com ma- tratamento, assim como a sobrecarga de volume, principal-
nitol e ventilação mecânica, mas mesmo com o tratamento mente nos pacientes cardiopatas. A terapêutica adequada
adequado a mortalidade é alta. pode prevenir a maioria dessas complicações.
Para prevenção do edema cerebral, deve-se restringir a
hidratação a 50mL/kg nas primeiras 4 horas, limitar a queda J - Prognóstico
da osmolaridade a no máximo 3mOsm/L/h e manter a gli- A mortalidade associada à CAD é de cerca de 5 a 9%
cemia em 250 a 300mg/dL (com a infusão de glicose a 5 ou (<5% em centros de excelência). O prognóstico é pior em
10% quando a glicemia do paciente atingir <250mg/dL) até idosos, gestantes, pacientes com múltiplas comorbidades
a resolução da CAD. e quando coma ou hipotensão estão presentes. A CAD é a

58
COMPLICAÇÕES AGUDAS DO DIABETES MELLITUS

principal causa de morte em pacientes diabéticos com me- ticas severas, que se instalam, em geral, ao longo de dias ou
nos de 20 anos de idade. semanas (início subagudo/insidioso), com sintomas iniciais
relacionados à descompensação glicêmica (polidipsia, poli-
3. Estado hiperosmolar hiperglicêmico fagia e poliúria), e posteriormente evoluindo para piora do
estado geral e redução do nível de consciência.
O EHH é outra complicação metabólica aguda grave do Geralmente, esses indivíduos têm história de poliúria
DM. Enquanto a cetoacidose costuma ocorrer principal- intensa, chegando ao pronto-socorro extremamente desi-

ENDOCRINOLOGIA
mente em diabéticos tipo 1 jovens, o EHH é uma doença tí- dratados e, algumas vezes, em colapso cardiovascular. Não
pica de pacientes idosos com DM2. A maioria dos pacientes apresentam, entretanto, sinais de acidose como a respira-
que desenvolve EHH tem múltiplas comorbidades (sequela ção de Kussmaul e hálito cetônico.
de AVC, insuficiência renal etc.), razão pela qual a mortali- O quadro neurológico secundário à hiperosmolarida-
dade associada a essa complicação é muito alta (15 a 30% de pode variar de confusão até coma profundo, podendo
ou mais). aparecer convulsões e sinais neurológicos focais, além dos
Enquanto a CAD pode acometer tanto pacientes com sinais e sintomas relacionados à causa precipitante.
DM1 quanto com DM2, o estado hiperosmolar é uma com-
plicação exclusiva do DM2. D - Avaliação laboratorial
A - Fisiopatologia - A avaliação inicial do paciente com suspeita de EHH
é semelhante à realizada na CAD, devendo ser dada
Embora a fisiopatologia da CAD seja mais bem compre- atenção especial para a detecção de distúrbios eletro-
endida do que a do EHH, o mecanismo básico para ambos líticos (hipernatremia, hipocalemia), hiperosmolarida-
é a deficiência de insulina. No EHH, a deficiência de insuli- de e insuficiência renal aguda.
na costuma ser parcial (moderada), sendo a concentração - A hiperosmolaridade (>320mOsm/kg) é um achado
plasmática de insulina suficiente para bloquear a lipólise fundamental para o diagnóstico do EHH, e deve ser
exagerada e a síntese hepática de corpos cetônicos, mas documentada pela medida direta da osmolaridade
não para manter a glicemia normal. A produção hepática e plasmática ou pelo cálculo da osmolaridade efetiva,
renal elevada de glicose, e a sua captação reduzida pelos te- usando a mesma fórmula utilizada na CAD.
cidos, determinam hiperglicemia, glicosúria, diurese osmó-
tica e consequentemente: depleção de volume, hiperosmo- Osmolaridade efetiva = (2 x Na+) + (glicose/18)
laridade e distúrbios hidroeletrolíticos por perda urinária de
eletrólitos. Assim, não há cetose nem acidose no EHH, mas Pode haver anormalidades do sódio ou potássio plasmá-
o grau de desidratação e hiperosmolaridade é mais intenso ticos. A perda de potássio corporal total costuma ser maior
do que na CAD. De fato, o déficit de líquido costuma ser no EHH do que na CAD, tendo em vista a maior perda uriná-
de 4 a 6 litros na CAD, comparado a 8 a 10 litros no EHH. A ria, mas o valor do potássio plasmático pode ser falsamente
depleção intensa e a hiperosmolaridade acarretam insufi- elevado, sabendo-se que a deficiência de insulina e a hiper-
ciência renal aguda e rebaixamento do nível de consciên- tonicidade. Da mesma forma que na CAD, o tratamento do
EHH com hidratação e insulina IV pode determinar queda
cia (torpor/coma) numa grande parcela dos pacientes com
da potassemia, razão pela qual a reposição de potássio
EHH (Tabela 2, na seção sobre CAD).
deve ser feita rotineiramente em todos os pacientes com
B - Fatores desencadeantes potassemia normal ou baixa.
Insuficiência renal aguda é extremamente comum no
Assim como na CAD, os episódios de EHH costumam ser EHH. Alguns casos de EHH com depleção e hiperosmolari-
precipitados por fatores desencadeantes, sendo o principal a dade intensa podem evoluir para rabdomiólise, contribuin-
presença de infecção (30 a 60% dos casos). Outros fatores im- do para a piora da função renal.
portantes incluem as doenças ateroscleróticas, como o IAM e Eletrocardiograma deve ser realizado no EHH para de-
o AVC, muitas vezes tão graves quanto o próprio EHH, e o uso tecção de isquemia coronariana ou arritmia secundária aos
de drogas hiperglicemiantes, como os glicocorticoides. distúrbios eletrolíticos.

C - Manifestações clínicas E - Critérios diagnósticos


O EHH ocorre em pacientes com DM em faixas etárias Os critérios laboratoriais para diagnóstico do EHH estão
mais avançadas, geralmente com alteração do nível de discriminados na Tabela 10:
consciência (sequela de AVC, demência) ou restrição da
Tabela 10 - Critérios diagnósticos do EHH, conforme a Sociedade
mobilidade (acamados), que não conseguem ingerir líqui- Brasileira de Diabetes (SBD, 2007)
dos suficientes para repor as perdas hídricas intensas re-
Critério Parâmetro laboratorial
lacionadas à diurese osmótica. Dessa forma, evoluem com
Hiperglicemia Glicemia > 600mg/dL.
desidratação, hiperosmolaridade e alterações hidroeletrolí-

59
ENDOC RI N O LOG I A

Critério Parâmetro laboratorial c) Insulinoterapia


Hiperosmolari- Osmolaridade efetiva >320mEq/L (ou total No tratamento emergencial do EHH, também se utili-
dade >330). zam apenas insulinas de ação rápida, tais como a regular, ou
Ausência de aci- pH arterial ≥7,3 e bicarbonato sérico os análogos de ação ultrarrápida lispro, aspart e glulisina. A
dose >18mEq/L. diferença do EHH é que o tratamento com insulina é realiza-
Cetonúria ou cetonemia ausentes ou discre- do sempre por via IV, tendo em vista a depleção severa do
Cetose
tas. paciente, que prejudica a absorção da insulina administra-
da por via subcutânea. As doses são as mesmas usadas na
No diagnóstico diferencial, é importante lembrar que CAD (bolus de 0,15u/kg IV, seguido de infusão contínua de
hiperosmolaridade severa também pode ser observada em 0,1u/kg/h). Quando o paciente atingir glicemia <300mg/dL,
outras doenças além do EHH, principalmente em pacientes pode-se reduzir pela metade a taxa de infusão de insulina,
com desidratação intensa ou diabetes insipidus. até resolução do EHH (Figura 8).

F - Tratamento
Todos os pacientes com EHH devem ser internados,
preferencialmente em Unidade de Terapia Intensiva (UTI),
monitorizados, submetidos à pesquisa de fatores desenca-
deantes e tratados conforme as diretrizes. O tratamento do
EHH, a exemplo da CAD, também inclui os 3 pilares: hidrata-
ção IV (abundante), reposição de potássio e insulinoterapia
(no EHH, sempre IV).
a) Reposição volêmica
A hidratação nos pacientes com EHH segue esquema se-
melhante ao da hidratação realizada nos pacientes com CAD,
mas precisa ser mais vigorosa, com infusão de vários litros
de solução fisiológica, rapidamente, para a recuperação da
pressão arterial e do fluxo tecidual. Após a recuperação do
status hemodinâmico, pode-se realizar a hidratação com so-
lução fisiológica a 0,45%, embora o uso de SF 0,9% também
seja adequado, pois costuma ser hipotônico em relação ao
plasma do paciente (hiperosmolar). Quando a glicemia bai-
xar para <300mg/dL, deve-se associar glicose ao soro (5 ou
10%), para prevenção de hipoglicemia (Figura 7).
Figura 8 - Insulinoterapia no EHH

d) Bicarbonato e outros eletrólitos


Não há necessidade de bicarbonato no EHH, uma vez
que não há acidose metabólica. A reposição de outros ele-
trólitos (fósforo, cálcio, magnésio) deve ser feita se houver
deficiência grave desses minerais com repercussões clínicas
severas, a critério do médico.
e) Critérios de resolução do EHH
A insulinoterapia intensiva, a hidratação e a reposição de
potássio devem ser mantidas, no EHH, até que o paciente
atinja as metas de tratamento apresentadas na Tabela 11.
Tabela 11 - Critérios para definir resolução do EHH
Figura 7 - Reposição volêmica no EHH - Osmolaridade <315mOsm/kg;
- Paciente em bom estado geral, alerta e hidratado;
b) Reposição de potássio Observação: alguns autores consideram também a glicemia
A reposição de potássio deve ser realizada no EHH exa- <300mg/dL um parâmetro adicional para definir a resolução do
EHH.
tamente da mesma forma que na CAD (Figura 3).

60
COMPLICAÇÕES AGUDAS DO DIABETES MELLITUS

f) Cuidados pós-resolução da CAD e do EHH - CAD pode ocorrer em DM1 ou em DM2 submetidos a stress
intenso (sepse, IAM, AVC), enquanto o EHH é uma complicação
A transição do tratamento emergencial (insulina intra- exclusiva do DM2;
venosa) para o tratamento de manutenção (insulina subcu- - Constituem critérios diagnósticos para cetoacidose: glicemia
tânea) deve ser feita da mesma forma que a recomendada >250mg/dL, pH <7,3, bicarbonato <18mEq/L, e presença de
para a CAD, tomando-se os mesmos cuidados. cetonúria ou cetonemia;
- Os critérios diagnósticos do EHH incluem: glicemia >600mg/
G - Complicações

ENDOCRINOLOGIA
dL, hiperosmolaridade (efetiva >320mOsm/L), ausência de
acidose (pH >7,3 e bicarbonato >18mEq/L) e cetose ausente
Hipocalemia, hiponatremia e hipoglicemia são mais co- ou discreta;
muns no EHH do que na CAD, por isso a monitorização labora- - A hidratação inicial, na CAD, deve ser feita com SF 0,9% até me-
torial dessas complicações deve ser realizada de forma inten- lhora hemodinâmica. Depois, deve-se administrar SF 0,9% para
siva, e cuidados devem ser tomados para prevenção das mes- pacientes hiponatrêmicos ou SF 0,45% aos pacientes normo ou
hipernatrêmicos;
mas, conforme os protocolos de tratamento apresentados.
Insuficiência renal aguda (pré-renal ou renal, por necro- - A hidratação, no EHH, deve ser feita de forma vigorosa, com SF
0,9% IV até melhora hemodinâmica. Depois, pode-se adminis-
se tubular aguda e/ou rabdomiólise) é uma complicação trar SF 0,45%;
frequente e contribui para piorar o prognóstico dos pacien- - Nos pacientes com CAD moderada ou grave, a insulinoterapia
tes com EHH. deve ser administrada por via intravenosa, e o paciente deve
Eventos trombóticos (trombose de veias profundas, ser internado em unidade de terapia intensiva até correção da
tromboembolia pulmonar) são mais frequentes no EHH do cetoacidose;
que na CAD, tendo em vista a maior hiperosmolaridade ob- - Nos pacientes com CAD leve, podem-se usar insulina regular ou
servada no estado hiperosmolar, e é uma importante causa análogos ultrarrápidos por via subcutânea de hora em hora, e o
paciente pode permanecer em observação no pronto-socorro
de mortalidade nessa população. até resolução do quadro;
Mesmo com o tratamento adequado, a mortalidade
- No EHH, a insulina deve ser administrada apenas por via intrave-
do EHH ainda permanece em torno de 15 a 30%, podendo nosa, e o paciente deve ser tratado na UTI, com monitorização
chegar a 50% segundo algumas casuísticas. O prognóstico é do eletrocardiograma e dos eletrólitos;
pior em pacientes com múltiplas comorbidades e quando - A reposição de potássio é fundamental na CAD e no EHH, pois
o fator precipitante do EHH, por si só, já representa uma ambos cursam com redução do potássio corporal total devido
doença grave (exemplo: IAM). às perdas urinárias. Além disso, o tratamento com insulina, a
hidratação e a reversão da acidose podem causar hipocalemia
grave e arritmias fatais. Deve-se administrar potássio como ro-
4. Resumo tina a todos os pacientes, na dose de 20 a 30mEq/L de solução
salina se a potassemia estiver entre 3,3 e 5,5mEq/L, ou 40 a
Quadro-resumo 60mEq/L se a potassemia for menor que 3,3mEq/L;
- A causa mais frequente de hipoglicemia é o tratamento do - Deve-se evitar a administração de insulina a pacientes hipoca-
diabetes mellitus, principalmente com o uso de insulina ou lêmicos (K <3,3mEq/L). Nessa situação, suspende-se a insulina,
sulfonilureias. O risco de hipoglicemias é 3 vezes maior em administra-se potássio e reavalia-se a potassemia de hora em
diabéticos em tratamento intensivo do que nos diabéticos em hora. A insulinoterapia só deve ser reiniciada depois que a po-
tassemia estiver acima de 3,3mEq/L;
tratamento convencional;
- A reposição de bicarbonato na CAD deve ser restrita a pacien-
- O diagnóstico de hipoglicemia requer a presença da tríade de
tes adultos com risco de complicações fatais devido à acidose
Whipple: glicemia <45mg/dL, sintomas compatíveis com hipo- grave (pH <7) ou com hipercalemia. A dose sugerida pela ADA
glicemia (autonômicos e/ou neuroglicopênicos) e melhora dos é de 50mEq para adultos com pH entre 6,9 e 7, e 100mEq para
sintomas após a administração de carboidratos; adultos com pH <6,9;
- Sempre descartar a presença de hipoglicemia em doentes que - O edema cerebral é a complicação mais temida do tratamen-
chegam ao pronto-socorro com alteração neurológica; deve-se to da CAD, pois, apesar de incomum (1% das crianças com
realizar imediatamente uma glicemia capilar ou usar glicose hi- CAD), tem alta mortalidade. Para prevenir sua ocorrência,
pertônica (associar tiamina em etilistas e desnutridos); deve-se limitar a hidratação a 50mL/kg nas primeiras 4 ho-
ras, não reduzir a osmolaridade muito rápido (no máximo,
- A cetoacidose diabética (CAD) é uma complicação aguda gra-
3mOsm/kg/h) e manter a glicemia na faixa de 250 a 300mg/
ve do DM, que requer internação, monitorização e tratamento dL até a resolução da CAD;
com insulinoterapia, reposição de potássio e hidratação IV;
- A mortalidade é baixa na CAD (<5%) com o tratamento correto,
- No paciente que se apresenta com CAD ou EHH, deve-se sem- mas mesmo assim a CAD continua sendo a principal causa de
pre pesquisar a presença de algum fator precipitante. Os mais óbito em diabéticos tipo 1 com menos de 20 anos de idade;
comuns são: infecção (respiratória ou urinária) ou falta de insu-
- O EHH, por ocorrer com mais frequência em pacientes idosos
lina (falta de adesão ao tratamento, ou primodescompensação com DM2 e com múltiplas comorbidades, tem alta taxa de
diabética); mortalidade elevada (15 a 30%). A redução do nível de cons-
- A CAD é a 1ª manifestação do diabetes, em 25% dos pacientes ciência (presente em ~50% dos casos) relaciona-se à hiperos-
com DM1; molaridade (osmolaridade efetiva >320mEq/L).

61
ENDOC RI N O LOG I A

CAPÍTULO

6 Síndrome metabólica
Leandro Arthur Diehl

1. Introdução 2. Definições
A Síndrome Metabólica (SM) é um conjunto de sinais e Várias propostas de critérios diagnósticos para SM po-
sintomas decorrentes da presença de fatores de risco car- dem ser encontradas na literatura médica. O que todas elas
diovasculares, que tendem a ocorrer de forma associada apresentam em comum é a inclusão de marcadores para:
num mesmo indivíduo, com íntima relação com o acúmulo
de gordura entre as vísceras abdominais (obesidade visce-
A - Fatores de risco cardiovascular
ral) e com a resistência tecidual às ações biológicas da in- Hipertensão arterial e dislipidemia – geralmente, hiper-
sulina. Hoje, é uma das entidades clínicas mais frequentes trigliceridemia e HDL-colesterol baixo.
em todo o mundo, com um aumento crescente no número
de casos, o que se deve, ao menos em parte, à grande pre- B - Distúrbios do metabolismo da glicose
valência de obesidade. Nos Estados Unidos, estima-se que, Resistência à insulina, hiperinsulinemia, glicemia altera-
pelo menos, 22 a 30% da população adulta (ou, possivel- da em jejum ou após teste de tolerância à glicose, diagnós-
mente, mais) sejam portadores de SM, e a prevalência au- tico prévio de DM.
menta com a idade, até chegar a mais de 40% entre idosos
(>60 anos). No Brasil, há poucos estudos, indicando uma C - Obesidade
prevalência estimada de 30% em adultos no Espírito Santo
e na Bahia, mas chegando a até 57% entre descendentes de IMC, cintura abdominal ou relação cintura-quadril.
japoneses residentes na cidade de Bauru, interior de São A diferença entre os vários critérios se dá nos valores
de corte (cut offs) utilizados e no número de fatores ne-
Paulo. A SM também atinge crianças e adolescentes de ma-
cessários para satisfazer a definição diagnóstica. Algumas
neira cada vez mais frequente. Soluções para a prevalência
sociedades também propuseram a inclusão de outros fa-
crescente da SM envolvem medidas de saúde pública, com
tores de risco cardiovascular (microalbuminúria). Outro
o objetivo de combater a obesidade, estimulando o aumen-
ponto de divergência entre os vários critérios é a inclusão
to da atividade física regular e uma dieta mais saudável, rica
ou não de pacientes sabidamente diabéticos. Enquanto al-
em frutas e verduras frescas e com menor teor de calorias
gumas sociedades defendem que o diagnóstico de SM seja
e gorduras saturadas. igualmente válido para pacientes com diabetes mellitus,
Primeiramente descrita por Gerald Reaven, em 1988, outras argumentam que um dos principais usos clínicos da
que a denominou síndrome X, desde então, ao longo dos di- SM é a predição do risco futuro de DM e, portanto, seria
versos estudos publicados a seu respeito, a síndrome já re- desnecessário o diagnóstico da síndrome em pacientes que
cebeu várias denominações, como síndrome plurimetabó- já apresentam DM. Finalmente, algumas definições foram
lica, quarteto mortal, síndrome dismetabólica e síndrome posteriormente revistas e atualizadas pelas próprias enti-
de resistência à insulina. Atualmente, o termo mais aceito e dades que as propuseram, ocasionando mais dificuldade ao
utilizado é Síndrome Metabólica (SM). gerar diversas versões da mesma definição clínica. É o caso
A mesma controvérsia observada com relação à no- da definição da Organização Mundial da Saúde (OMS) – que
menclatura da SM também se reflete na sua definição clí- incluiu um critério de hipertensão arterial 1 ano após a sua
nica. Vários critérios diagnósticos diferentes para SM foram publicação original – e da definição do National Cholesterol
propostos por diferentes sociedades, durante as últimas 2 Education Program Adult Treatment Panel III (NCEP-ATP III)
décadas. Essa heterogeneidade de definições muitas vezes – que passou a incluir pessoas em uso de terapia específica
dificulta a interpretação dos estudos, visto que diferentes para dislipidemia, DM ou hipertensão, mesmo que os valo-
autores, na maioria das vezes, adotam diferentes defini- res de lipídios, glicemia ou pressão arterial não estivessem
ções, não exatamente intercambiáveis. alterados em nível suficiente para preencher esses critérios.

62
S Í N D R O M E M E TA B Ó L I C A

Os critérios diagnósticos mais frequentemente citados NCEP-ATP III


na literatura e utilizados na prática clínica são os da OMS OMS (1998) IDF (2005)
(2001)
(publicados originalmente em 1998 e revistos em 1999 * As definições de obesidade central pelo critério da IDF são
para incluir a hipertensão como um critério diagnóstico), do específicas para a etnia dos pacientes. Os valores de corte
NCEP-ATP III (do governo dos Estados Unidos, publicados para a circunferência abdominal de europeus são os mais
originalmente em 2001 e alterados em 2004 a 2005 para utilizados (>94cm para homens e >80cm para mulheres). Os
mudar o valor de corte da glicemia de jejum de >110mg/ valores para norte-americanos, provavelmente, continuarão

ENDOCRINOLOGIA
dL para ≥100mg/dL), e o mais recente, da International a seguir a orientação do NCEP-ATP III. Para sul-americanos,
devem ser considerados 90cm para homens e 80cm para
Diabetes Federation (IDF, publicados em 2005). Eles são
mulheres (conforme a recomendação da IDF), mesmos valores
apresentados a seguir, na Tabela 1, e as definições estão da população sul-asiática, até que estejam disponíveis dados
dispostas em ordem cronológica pela data da sua 1ª publi- específicos para a América do Sul. Preferir sempre a origem
cação, mas os critérios expostos são os sugeridos pela ver- étnica do paciente, a despeito de seu lugar de moradia, ao
são mais recente de cada definição (quando atualizadas ou escolher valores de circunferência abdominal.
alteradas em publicação posterior).
Tabela 2 - Valores de corte para a circunferência abdominal, con-
Tabela 1 - Critérios diagnósticos para síndrome metabólica propos- forme grupo étnico, sugeridos pela IDF (2005)
tos por diferentes sociedades Grupo étnico Circunferência abdominal
NCEP-ATP III - Mulheres: ≥80cm;
OMS (1998) IDF (2005) Europeus
(2001) - Homens: ≥94cm.
Diabetes prévio - Mulheres: ≥80cm;
ou glicemia de Chineses e sul-asiáticos
Glicemia de jejum Glicemia de - Homens: ≥90cm.
jejum alterada
≥100mg/dL, ou jejum ≥100mg/ - Mulheres: ≥90cm;
Glicemia ou intolerância Japoneses*
em tratamento dL ou diabetes - Homens: ≥85cm.
à glicose ou
específico. prévio.
resistência à - Mulheres: ≥88cm;
insulina. Estados Unidos
- Homens: ≥102cm.
Cintura América do Sul e Central** - Usar valores dos sul-asiáticos.
IMC >30kg/m2 ou aumentada,
Cintura >88cm África Subsaariana** - Usar valores dos europeus.
relação cintura- com valores
Obesida- (mulheres) Leste do Mediterrâneo e
quadril >0,85 de corte, - Usar valores dos europeus.
de ou >102cm Oriente Médio**
(mulheres) ou dependendo
(homens). * Análises subsequentes sugerem que se utilizem os valores dos
>0,9 (homens). da etnia do
paciente*. sul-asiáticos para as populações de origem japonesa, até que
mais dados estejam disponíveis.
≥150mg/ ** Até que dados mais específicos para esses grupos étnicos
≥150mg/dL, ou
Triglicéri- dL, ou em estejam disponíveis.
≥150mg/dL. em tratamento
des tratamento
específico.
específico. Também podem ser encontrados, na literatura, os cri-
<50mg/dL térios diagnósticos do European Group for the Study of
<39mg/dL <50mg/dL (mulheres) Insulin Resistance (EGIR, 1998) e do American College of
HDL-co- (mulheres) (mulheres) ou <40mg/dL Endocrinology (ACE, 2003), que excluem pacientes diabéti-
lesterol ou <35mg/dL ou <40mg/dL (homens), ou cos da definição da SM. Entretanto, esses critérios são pou-
(homens). (homens). em tratamento co utilizados e não serão apresentados aqui.
específico. Em 2004, a Sociedade Brasileira de Hipertensão (SBH),
≥130x85mmHg, ≥130x85mmHg, juntamente com a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD),
Pressão ou em ou em a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e a Associação
≥140x90mmHg.
arterial tratamento tratamento Brasileira para Estudo da Obesidade (ABESO) lançaram a I
específico. específico. Diretriz Brasileira de Diagnóstico e Tratamento da Síndrome
Microalbuminúria Metabólica, para tentar uniformizar a conduta dos médicos
≥20mcg/min ou brasileiros com relação à detecção e manejo desse proble-
Outros
≥30mg/g de
- -
ma clínico. A Diretriz aponta para o uso preferencial dos cri-
creatinina. térios do NCEP-ATP III, uma vez que essa definição parece
Necessá- ser a mais prática, simples e barata (dispensando avaliações
Quaisquer 3 Obesidade +
rios para Glicemia + 2 dos mais complexas e custosas, como a dosagem de insulina,
dos critérios 2 dos demais
diagnósti- demais critérios. microalbuminúria ou teste de tolerância oral à glicose para
anteriores. critérios.
co de SM diagnóstico da SM). Entretanto, a mesma Diretriz sugere

63
ENDOC RI N O LOG I A

algumas modificações nos critérios originais do NCEP-ATP 3. Fisiopatologia


III: os indivíduos em uso de anti-hipertensivos ou hipolipe-
miantes podem preencher os critérios referentes à pressão Embora a obesidade visceral e a resistência à insulina pa-
reçam ser os principais fatores responsáveis pelo surgimen-
arterial e triglicérides (independentemente dos níveis pres-
to das anormalidades componentes da SM, provavelmente
sóricos ou lipídicos no momento da avaliação médica). Essa
não são os únicos. De fato, as evidências de um papel causal
alteração foi necessária para evitar que fossem excluídos
da resistência insulínica com relação à SM são incompletas
da definição de SM os pacientes que tenham apresentado
e controversas, não permitindo conclusões sólidas a esse
valores prévios alterados de PA ou triglicérides, de forma
respeito. Na média, indivíduos com SM apresentam maior
a preencher os critérios diagnósticos de SM corresponden- resistência à insulina que indivíduos sem SM. Entretanto,
tes, mas que, no momento atual, tivessem normalizado há indivíduos com resistência à insulina (demonstrada por
esses valores com o uso de tratamento medicamentoso es- estudos bioquímicos) que não apresentam os componentes
pecífico. A I Diretriz Brasileira recomenda, ainda, que os pa- da SM, assim como há indivíduos com diagnóstico de SM
cientes com diagnóstico de Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2) sem evidências bioquímicas de resistência à insulina.
também preencham o critério referente à glicemia alterada. Fatores genéticos provavelmente desempenham um
A medida da cintura (circunferência abdominal) deve papel (pelo menos, parcial) na determinação da SM, visto
ser feita no meio da distância entre a crista ilíaca e o rebor- que algumas mutações (por exemplo, no gene do receptor
do costal inferior. Pacientes com glicemia de jejum alterada, da insulina, ou no PPAR-gama) podem provocar um estado
mas ainda não em níveis de diabetes (ou seja, entre 100 e de resistência à insulina e manifestações compatíveis com
125mg/dL) ou com 2 ou mais fatores de risco para DM, de- a SM.
vem ser submetidos a teste de tolerância oral à glicose, em- O envelhecimento também aumenta, significativamen-
bora o teste não seja necessário para o diagnóstico de SM. te, o risco de SM, o que é demonstrado pela maior preva-
A definição de SM recomendada pela referida Diretriz lência dessa síndrome entre indivíduos de faixas etárias
para uso no Brasil, portanto, é a apresentada na Tabela 3. mais avançadas.
É muito provável, no entanto, que a maioria dos casos
Tabela 3 - Definição de síndrome metabólica segundo a I Diretriz de SM tenha uma etiologia multifatorial e complexa, asso-
Brasileira de SM (2004) ciando uma predisposição genética a fatores ambientais
Componente Valor de corte (sedentarismo, dieta altamente calórica e rica em gorduras
Glicemia de saturadas, acúmulo de gordura na região abdominal) que
≥110mg/dL ou diagnóstico prévio de DM*.
jejum contribuem para o seu desencadeamento.
Cintura Dentre as anormalidades fisiopatológicas observadas
>88cm (mulheres) ou >102cm (homens).
abdominal em indivíduos portadores de SM, as mais comumente cita-
Triglicerídios ≥150mg/dL ou uso de tratamento específico. das na literatura estão expostas na Tabela 4.
HDL-colesterol <50mg/dL (mulheres) ou <40mg/dL (homens). Tabela 4 - Anormalidades fisiopatológicas observadas em indivídu-
≥130x85mmHg ou uso de tratamento os com síndrome metabólica
Pressão arterial
específico. Aumento dos níveis de ácidos graxos livres circulantes
Necessários Os ácidos graxos livres no plasma aumentam de forma
para o diretamente proporcional à quantidade de tecido adiposo
Quaisquer 3 dos critérios anteriores.
diagnóstico de depositado no compartimento visceral abdominal. Esses
SM adipócitos apresentam lipólise mais acentuada do que os
* Possivelmente, esse critério será alterado em breve para adipócitos em outras localizações (subcutâneo), entretanto o
≥100mg/dL, obedecendo às recomendações da American Diabetes tecido adiposo subcutâneo do tronco também contribui para o
Association (ADA, 2004) para definir glicemia de jejum alterada. aumento dos ácidos graxos livres circulantes.
Fosforilação em serina dos substratos do receptor de insulina
Em 2009, a SBD publicou um novo Posicionamento (IRS)
Oficial, em que tece várias considerações sobre a SM e con- A fosforilação em serina dos IRS nos tecidos-alvo desse hormônio
clui que, embora ambas as definições sejam úteis e ampla- (fígado, músculos) diminui a sinalização intracelular na cascata
mente utilizadas na prática clínica (a do NCEP-ATPIII, mais geralmente ativada pela insulina e o transporte de glicose
utilizada por cardiologistas; e a da IDF, preferida por endo- transmembrana. Essa fosforilação em serina é estimulada por
crinologistas), a SBD dá preferência ao uso da definição da altos níveis de ácidos graxos circulantes.
IDF, visto que esta valoriza mais a importância da obesidade Acúmulo de lípides no músculo e no fígado (esteatose)
visceral e da resistência à insulina como alterações funda- A esteatose hepática e muscular interfere na sinalização
mentais da síndrome, muito embora faltem estudos para intracelular da insulina e reduz a captação de glicose nesses
definir o melhor valor de corte de circunferência abdominal tecidos. A esteatose hepática pode evoluir para esteato-hepatite
não alcoólica e cirrose.
a ser adotado para a população brasileira.

64
S Í N D R O M E M E TA B Ó L I C A

Alteração na secreção de hormônios pelos adipócitos Alguns autores, entretanto, não conseguiram detectar
Há aumento da secreção de visfatina e resistina, e redução da nenhum aumento de risco para DCV em pacientes com SM,
secreção de adiponectina, acarretando redução da sensibilida- quando se fazia ajuste do risco para a presença dos fatores
de tecidual à insulina. A redução de adiponectina é reconhecida de risco cardiovascular clássicos (dos quais alguns são com-
como fator de risco independente para DM2, além de favorecer a ponentes da SM: hipertensão, dislipidemia e disglicemia), e
dislipidemia e o estado inflamatório e protrombótico. passaram a questionar o valor preditivo da SM, já que sua
Estado inflamatório sistêmico presença, nesses estudos, não conferiu risco maior de DCV

ENDOCRINOLOGIA
Há secreção aumentada de citocinas inflamatórias (interleuci- que o risco determinado pela presença dos seus componen-
na-6, TNF-alfa) pelo tecido adiposo (visceral). E ainda, aumento tes. Entre pacientes portadores de DM2, especificamente, o
da proteína C reativa, associado a aumento de risco cardiovas- risco de DCV não apresentou diferenças para pacientes com
cular. ou sem SM, na maior parte dos estudos. Essas diferenças
Estado protrombótico no risco cardiovascular atribuído à SM se devem, provavel-
Há secreção aumentada do inibidor do ativador do plasmino- mente, a variações na metodologia, faixa etária e grupos
gênio – 1 (PAI-1) e do fibrinogênio, estimulada pelas citocinas étnicos estudados, dentre outros fatores.
inflamatórias. Uma grande meta-análise, publicada em 2007, incluin-
Aumento na síntese de VLDL pelo fígado e aumento da ativi- do um grande número de pacientes (>170.000), acabou por
dade da CETP demonstrar que o risco determinado pela presença da SM
A síntese hepática de VLDL é estimulada pela grande oferta de é superior ao associado à presença dos seus componentes
ácidos graxos livres, levando ao aumento dos triglicérides e à individuais. Isto é, mesmo após o ajuste estatístico para os
consequente redução do HDL plasmático (maior atividade da fatores de risco tradicionais (hipertensão, dislipidemia etc.),
CETP*). A atividade aumentada da CETP também é uma das res- a SM ainda constitui um fator de risco independente para
ponsáveis pela alteração no padrão das partículas de LDL, que DCV ou morte, com um aumento de risco de 54% (risco re-
se tornam menores e mais densas (tipo B), atingem a camada lativo de 1,54). A SM confere risco significativamente au-
íntima com mais facilidade e são mais oxidadas, o que as torna
mentado para os seguintes desfechos avaliados: qualquer
mais aterogênicas.
evento cardiovascular (RR 2,18), eventos coronarianos (RR
Hipertensão arterial
1,65), morte cardiovascular (RR 1,91), morte por doença
Devida ao aumento da retenção de sódio e água, e ativação coronariana (RR 1,6) e morte por qualquer causa (RR 1,6).
do sistema nervoso simpático, devido à hiperinsulinemia (em Por essa razão, a IV Diretriz Brasileira sobre Dislipidemias
pacientes com resistência à insulina).
reconhece a SM como um critério agravante de risco, ou
Disfunção endotelial seja, um paciente que tenha um risco de evento cardio-
Menor produção de óxido nítrico (normalmente, estimulada vascular moderado (10 a 20%), calculado pelo escore de
pela insulina), um importante vasodilatador. Framingham, deverá ser elevado à categoria de risco supe-
CETP = Cholesterol Ester Transfer Protein. rior (alto risco) se apresentar a SM. Portanto, seu manejo
deve ser mais agressivo, visando à prevenção de eventos e
4. Risco cardiovascular e diabetes melli- morte cardiovascular.
A SM, contudo, apresenta uma associação ainda mais
tus forte ao risco de DM2 do que ao risco para DCV, o que tor-
A SM recebeu muita atenção da comunidade científica na o diagnóstico de SM especialmente útil para a predição
nas últimas décadas, devido à sua frequente associação a do risco de evolução para diabetes. Estima-se que portado-
doenças cardiovasculares (DCV) e DM2. Embora não haja res de SM apresentam um risco 4 vezes maior de DM2. Por
dúvidas de que muitos fatores de risco cardiovascular apre- isso, vários autores (inclusive algumas sociedades, como o
sentam uma forte tendência a se manifestarem de forma EGIR e a ACE) sugerem que o diagnóstico de SM não deva
associada em um mesmo indivíduo (constituindo o conjun- ser feito em portadores de diabetes, pois uma das maio-
to de anormalidades que compõem a SM), há o debate se res utilidades da detecção daquela síndrome, a predição
a presença dessa síndrome determina risco maior do que o de risco elevado de DM, seria perdida em indivíduos já dia-
risco associado aos seus componentes individuais (ou seja, béticos. Além disso, a identificação da SM, provavelmente,
se a SM é mais do que a soma das suas partes. não acrescenta informação de risco ou motiva alteração
Vários estudos realizados no final do século XX demons- de conduta em relação a diabéticos sem SM. Outro fato a
traram que pacientes portadores da SM apresentavam um ser lembrado é que a maioria dos portadores de DM2 (70 a
risco, em média, 2 vezes maior de DCV, em comparação 80%) apresenta a SM.
com adultos da mesma faixa etária sem diagnóstico de SM. Essa questão, entretanto, é controversa. Alguns auto-
Além disso, pacientes com a síndrome em associação a al- res sugerem que a detecção de SM em portadores de DM2
guma DCV apresentaram um aumento de mortalidade total seja um adicional de risco, devendo o tratamento desses
em 1,5 vez, com aumento de 2,5 vezes na mortalidade car- pacientes ser intensificado, embora não existam evidências
diovascular. sólidas que suportem essa recomendação.

65
ENDOC RI N O LOG I A

A I Diretriz Brasileira de Síndrome Metabólica recomen- Problemas associados


da que o diagnóstico de SM deva ser feito tanto em diabéti-
cos como em não diabéticos, sendo o diagnóstico prévio de - Obesidade central (mais de 50% dos casos);
diabetes suficiente para preencher um dos componentes - Maior risco de diabetes tipo 2, hipertensão e doença cardio-
da definição da SM (glicemia alterada). vascular.
Outras patologias frequentemente associadas à SM, Alterações laboratoriais
intimamente relacionadas à presença de obesidade cen-
tral e resistência à insulina, além da DCV e do DM2, são a - Aumento dos androgênios plasmáticos: testosterona livre, an-
Síndrome dos Ovários Policísticos (SOP), a doença hepática drostenediona;
gordurosa não alcoólica, a apneia obstrutiva do sono, a hi- - Aumento do LH (proporção LH/FSH >2);
peruricemia (com eventual gota ou nefrocalculose) e certas
- Redução da SHBG;
formas de câncer (mama, cólon, próstata, endométrio).
- Hipertrigliceridemia e HDL baixo;
5. Síndrome metabólica e síndrome dos - Hiperuricemia;

ovários micropolicísticos - Hiperinsulinemia e intolerância à glicose.

A síndrome dos ovários micropolicísticos (SOMP) é uma


das endocrinopatias mais comuns em mulheres na idade re- Embora a fisiopatologia exata da SOMP não seja bem
produtiva e é uma das causas mais comuns de infertilidade conhecida, os estudos demonstram que há interação entre
feminina. Caracteriza-se por 3 critérios principais (Tabela 5): a resistência à insulina e a função ovariana, com alterações
complexas da secreção de gonadotrofinas e androgênios.
Tabela 5 - Critérios diagnósticos para SOMP
Uma das hipóteses mais aceitas para explicar essa interação
Clínico (hirsutismo, acne) e/ou laboratorial
Hiperandrogenismo está apresentada na Figura 1.
(aumento dos androgênios plasmáticos).
Demonstrada por oligoanovulação crôni- Nas pacientes com SOMP, a perda de peso muitas vezes
Disfunção ovariana ca e/ou ovários de aspecto micropolicísti- alivia grande parte dos sinais e sintomas atribuídos à sín-
co à ultrassonografia.
drome. Entretanto, mesmo mulheres portadoras de SOMP
Principalmente: hiperplasia adrenal con-
com peso normal, frequentemente, apresentam sinais de
gênita não clássica, tumores secretores
Exclusão de outras resistência à insulina. O uso de sensibilizadores à insulina,
de androgênios, uso de drogas com ação
causas
androgênica, síndrome de Cushing, hiper- tais como a metformina, promove melhora significativa no
prolactinemia e hipotireoidismo. padrão menstrual e recuperação da ovulação, com restau-
A SOMP associa-se a manifestações típicas de resistên- ração da fertilidade, em boa parcela das pacientes com
cia à insulina, tais como hiperinsulinemia, intolerância à SOMP.
glicose, dislipidemia aterogênica, acúmulo de gordura ab-
dominal e risco aumentado de hipertensão, DM2 e DCV.
A maioria das pacientes com SOMP tem excesso de peso
(com acúmulo de tecido adiposo principalmente na região
do tronco). Os achados clínicos e laboratoriais da SOMP es-
tão resumidos na Tabela 6.

Tabela 6 - Alterações clínicas e laboratoriais comuns na SOMP


Hiperandrogenismo
- Hirsutismo;
- Acne;
- Seborreia;
- Alopecia androgenética;
- Virilização.
Distúrbios do ciclo menstrual
- Oligo ou amenorreia.
Distúrbios ovulatórios
- Oligo ou anovulação crônica;
- Atresia folicular;
- Infertilidade.
Figura 1 - Fisiopatologia da SOMP

66
S Í N D R O M E M E TA B Ó L I C A

estudar quais seriam os pontos de maior controvérsia com


relação à SM, os quais foram resumidos na Tabela 7.
Tabela 7 - Controvérsias em relação à síndrome metabólica
- Os critérios para o diagnóstico da SM são ambíguos, e a razão
para o uso dos valores de corte sugeridos é mal definida;
- O valor de incluir o DM na definição da SM é questionável;

ENDOCRINOLOGIA
- A validade de usar a resistência à insulina como etiologia
unificadora é incerta;
- Não há razão clara para incluir ou excluir outros fatores de risco
cardiovascular;
- A medida de risco de DCV varia e depende dos fatores de risco
específicos presentes em cada indivíduo;
Figura 2 - Aspecto micropolicístico dos ovários à ultrassonografia - O risco cardiovascular associado à SM não parece ser maior do
que a soma das suas partes*;
6. Manejo - O tratamento da SM não é diferente do que o tratamento dos
seus componentes;
O correto manejo do paciente portador de SM deve
- A importância clínica da identificação da SM não é clara.
envolver o controle agressivo de todas as comorbidades e
fatores de risco cardiovascular, bem como uma intervenção * Depois disso, uma grande meta-análise (publicada em 2007)
demonstrou que o risco cardiovascular associado à SM é maior
constante dirigida à adoção de um estilo de vida saudável
do que o risco determinado pelos seus componentes isolados.
e ao abandono de práticas nocivas (tabagismo, uso abusivo
de álcool). Antiagregação plaquetária e pesquisa de isque- Devido a todas essas incertezas e controvérsias, vários
mia assintomática devem ser indicadas, conforme o grau de autores sugerem que se abandone a denominação síndro-
risco do indivíduo. me metabólica, visto que o aglomerado de fatores de risco
O tratamento da obesidade leva a benefícios incontestá-
cardiovascular que a compõe é definido de forma arbitrá-
veis, com relação ao perfil metabólico, controle pressórico e
ria pelas várias sociedades, com controvérsias em relação
risco de complicações.
a quais são os melhores critérios diagnósticos a serem utili-
As estratégias não farmacológicas para perda de peso
são essenciais e devem ser reforçadas em toda consulta do zados, e a sua etiologia ainda permanece obscura (embora
paciente com SM, embora sua eficácia seja modesta e, na a resistência insulínica desempenhe um papel relevante).
maioria das vezes, temporária. Portanto, em pacientes com Todas essas dificuldades tornam difícil o seu reconhecimen-
SM e IMC >27kg/m2 (ou >25kg2, segundo alguns autores), to como uma “síndrome”.
o uso de medicamentos antiobesidade, em associação às Os mesmos autores, entretanto, argumentam que o
mudanças de estilo de vida, pode estar bem indicado. achado de vários fatores de risco cardiometabólico em um
Tanto a sibutramina quanto o orlistate são drogas se- mesmo indivíduo tenha utilidade para predizer o risco de
guras (desde que respeitadas suas contraindicações) e efi- DM e DCV, e motivar o médico a pesquisar e tratar todas
cazes, conforme resultados de vários estudos clínicos. A as anormalidades do paciente. Talvez uma melhor denomi-
sibutramina pode ser mais bem indicada a pacientes com nação fosse “risco cardiometabólico”, um termo defendido
comportamento compulsivo (episódios de binge eating, inclusive pela ADA, pois é mais amplo, inclui outros possí-
“beliscar” compulsivo, comer noturno), enquanto o orlis- veis fatores de risco cardiovascular e é, possivelmente, mais
tate pode ser a melhor opção a pacientes com contraindi- prático, dispensando o uso de critérios diagnósticos muitas
cação à sibutramina ou com ingesta excessiva de gorduras. vezes arbitrários.
Uma perda de peso de 5 a 10% do peso inicial já produz
benefícios clínicos significativos, portanto pode servir como
meta inicial do tratamento. 8. Resumo
O uso de medicamentos antiobesidade sempre deve ser Quadro-resumo
associado a intervenções no estilo de vida, e acompanhado
- A SM associa-se à obesidade visceral e à resistência à insulina,
por médico experiente no manejo dessas drogas.
embora estes não sejam, possivelmente, os únicos fatores
causais;
7. Controvérsias - A SM é extremamente comum, observada em 24 a 30% da
Vários problemas relativos à identificação e à importân- população adulta, e é ainda mais comum (>40%) entre idosos
e obesos;
cia da SM foram levantados por especialistas no assunto.
A European Association for Study of Diabetes (EASD), jun- - Fatores de risco para a SM incluem excesso de peso, fatores
tamente com a ADA, reuniu vários experts em 2005 para genéticos e envelhecimento;

67
ENDOC RI N O LOG I A

- A definição de SM recomendada para uso no Brasil é a do


NCEP-ATP III, com algumas modificações (conforme a I Diretriz
Brasileira de SM, de 2004), embora a Sociedade Brasileira de
Diabetes, mais recentemente (em 2009), tenha recomendado
a adoção dos critérios da IDF;
- Os critérios da I Diretriz Brasileira de SM definem SM na presença
de quaisquer 3 (ou mais) dos seguintes critérios: circunferência
abdominal >88cm em mulheres ou >102cm em homens;
glicemia ≥110mg/dL ou diabetes prévio; triglicérides ≥150mg/
dL ou uso de tratamento específico; HDL-colesterol <50mg/
dL em mulheres ou <40mg/dL em homens; pressão arterial
≥130x85mmHg ou uso de tratamento específico;
- Os critérios da IDF definem SM na presença de circunferência
abdominal aumentada (>80cm em mulheres e >90cm em
homens, no Brasil) mais 2 quaisquer dos seguintes critérios:
glicemia ≥100mg/dL ou diabetes prévio; triglicérides
≥150mg/dL ou uso de tratamento específico; HDL-colesterol
<50mg/dL em mulheres ou <40mg/dL em homens ou uso de
tratamento específico; pressão arterial ≥130x85mmHg ou uso
de tratamento específico;
- Pessoas com SM apresentam aumento de 1,5 a 2 vezes no risco
de DCV ou morte (com exceção dos pacientes diabéticos, nos
quais a presença de SM não parece aumentar esse risco) e
aumento de 4 vezes no risco de DM2;
- Outras doenças associadas à SM incluem síndrome dos ovários
policísticos, doença hepática gordurosa não alcoólica, apneia
do sono e algumas neoplasias;
- O tratamento da SM não é diferente do tratamento dos seus
componentes, incluindo perda de peso, hábitos de vida
saudáveis, cessação do fumo e do abuso de álcool, e manejo
rigoroso das comorbidades (hipertensão arterial, hiperglicemia
e dislipidemia), visando à prevenção de DM2 e de eventos
cardiovasculares;
- Existem várias controvérsias sobre a definição, a importância
clínica e a etiologia da SM; alguns autores sugerem que o
termo síndrome metabólica seja abandonado, em favor do
uso da denominação risco cardiometabólico, mais abrangente
e sem a necessidade do uso de critérios diagnósticos rígidos.

68
CAPÍTULO

7 Obesidade
Leandro Arthur Diehl / Rodrigo Antônio Brandão Neto

com excesso de peso apresentaram taxa de mortalidade


1. Introdução quase 4 vezes maior do que os homens com peso normal.
Obesidade, segundo definição da Organização Mundial
de Saúde (1998), é o acúmulo anormal ou excessivo de gor- Tabela 1 - Classificação pelo IMC
dura corporal, até um nível em que a saúde seja comprome- IMC (kg/m2) Diagnóstico
tida. Trata-se de uma doença crônica complexa e multifa- <18,5 Baixo peso
torial, com importante aumento do risco de complicações, 18,5 a 24,9 Normal
como Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2), doenças cardiovascu- 25 a 29,9 Sobrepeso
lares, osteoartropatias degenerativas, neoplasias etc. 30 a 34,9 Obesidade classe I
35 a 39,9 Obesidade classe II
2. Diagnóstico 40 ou mais Obesidade classe III
Há vários métodos para diagnosticar o excesso de gor- Observação: alguns autores também incluem a categoria
obesidade classe IV ou superobesidade, para indivíduos com IMC
dura corporal, como a densitometria (DEXA), a bioimpe-
de 50 ou mais.
dância, a medição da água corporal total usando isótopos
marcados e outros métodos (determinação da densidade Um método relativamente simples de avaliação da com-
corporal por imersão em água, tomografia, ultrassonografia posição corporal, muito utilizado por nutricionistas e outros
etc.), que são restritos a situações de pesquisa devido ao profissionais da área de saúde, é a plicometria, em que é
seu alto custo. realizada a aferição da espessura das pregas cutâneas em
O método mais simples, barato e prático para o diag- vários pontos padronizados, com os valores sendo compa-
nóstico da obesidade é a determinação do chamado Índice rados a uma tabela para obter a percentagem de gordura
de Massa Corporal (IMC), calculado pela seguinte fórmula: corporal do indivíduo.
Outra técnica que pode avaliar a percentagem de gordu-
IMC = peso (em kg) dividido pelo quadrado da altura (em
metros) ra corporal é a bioimpedância. Considera-se normal, no ho-
mem, um percentual de gordura corporal entre 18 e 25%,
Devido à sua simplicidade, o IMC é o meio mais utilizado e, na mulher, entre 20 e 30%. Pode-se considerar obeso o
atualmente para o diagnóstico clínico da obesidade. Apesar homem com mais de 25% de gordura corporal e a mulher
de apresentar alguns problemas, como o fato de não ser com mais de 30%.
capaz de distinguir a composição corporal (indivíduos ex- Vários trabalhos demonstraram que a obesidade loca-
tremamente musculosos apresentam IMC alto, apesar de lizada principalmente na região abdominal ou acima da
apresentarem uma baixa percentagem de gordura corporal) cintura, chamada de androide, centrípeta ou central, está
e poder ser falsamente elevado em situações como anasar- relacionada a um maior risco de complicações metabólicas
ca ou cifose, o IMC apresenta boa correlação com o risco e cardiovasculares, ao contrário da obesidade que se con-
de doenças associadas à obesidade (diabetes, hipertensão, centra principalmente na região coxofemoral, ou obesidade
osteoartrose, doença cardiovascular) e com a mortalidade ginecoide, que se associa, predominantemente a proble-
(aumentada de forma progressiva a partir do IMC 30kg/m2). mas musculoesqueléticos e insuficiência venosa em mem-
Em indivíduos com IMC de 35 ou mais, o risco de morte bros inferiores.
prematura é 2 vezes maior do que o de pessoas magras. A obesidade androide, apesar do nome, não é exclusi-
Mulheres obesas, com IMC acima de 40, têm risco 13 vezes va do sexo masculino, assim como a obesidade ginecoide
maior de morte súbita. No estudo de Framingham, homens pode ser encontrada em homens. A 1ª se deve ao acúmulo

69
ENDOC RI N O LOG I A

de gordura preferencial na região abdominal (subcutânea e Tabela 2 - Risco de complicações cardiovasculares associado à cir-
também visceral – no omento e no mesentério), enquanto cunferência abdominal
a 2ª se deve ao acúmulo predominante de tecido adiposo Homens Mulheres
subcutâneo em quadris, nádegas e coxas. Risco elevado Cintura >94cm Cintura >80cm
A tomografia e a ressonância magnética são os méto- Risco muito elevado Cintura >102cm Cintura >88cm
dos mais acurados para a mensuração da gordura visceral,
mas têm alto custo. Por isso, a medida da circunferência A Relação Cintura-Quadril (RCQ) também tem correla-
abdominal é geralmente utilizada na prática clínica como ção significativa com o risco de complicações cardiovascula-
uma medida indireta da gordura visceral. Considera-se res e metabólicas da obesidade. Considera-se aumentada a
normal uma circunferência abdominal menor que 94cm RCQ >0,85 em mulheres ou >0,9 em homens.
para homens e menor que 80cm para mulheres, embora Em crianças, o diagnóstico é feito pelo percentil do IMC,
esses valores de referência possam variar dependendo da ou seja, pela comparação do IMC da criança com a média
população (etnia) estudada. A circunferência abdominal é de IMC de crianças do mesmo sexo e mesma faixa etária.
fortemente associada ao risco de eventos cardiovasculares, Define-se obesidade quando a criança está com um percen-
como já demonstrado por vários estudos (Tabela 2). til do IMC ≥95, e sobrepeso quando o percentil do IMC está
Homens com cintura >102cm apresentam risco 4,6 ve- entre 85 e 95. Os dados mais comumente utilizados para
zes maior de apresentar, pelo menos, 1 fator de risco car- comparação de IMC em crianças são os do CDC (Centers for
diovascular, o que também é observado em mulheres com Disease Control) americano, apresentados na forma de grá-
cintura >88cm (risco 2,6 vezes maior). fico nas Figuras 1 e 2.

Figura 1 - CDC mostrando a distribuição do IMC em crianças na faixa etária de 2 a 20 anos, do sexo feminino

70
OBESIDADE

ENDOCRINOLOGIA
Figura 2 - CDC mostrando a distribuição do IMC em crianças na faixa etária de 2 a 20 anos, do sexo masculino

3. Epidemiologia tos) e desnutrição (em geral, nas crianças), observado em


vários países pobres, é conhecido como transição nutricio-
A obesidade, atualmente, é uma das condições mais nal, e denota o acesso da população carente a alimentos
comuns encontradas no atendimento médico primário. Sua
de baixa qualidade (ricos em carboidratos e gorduras, mas
prevalência vem aumentando expressivamente nas últimas
pobres em proteínas e oligoelementos de maior valor nu-
décadas (praticamente triplicou, desde 1980), tanto em pa-
íses desenvolvidos quanto em países em desenvolvimento. tritivo).
O excesso de peso, portanto, é um dos principais problemas No Brasil, o excesso de peso já é o transtorno nutricional
de saúde pública no começo do século XXI, visto que, atual- mais prevalente, ultrapassando em muito os números da
mente, mais de 1,6 bilhões de adultos estão acima do peso desnutrição. Cerca de 41% da população adulta do Brasil
ideal (sendo 300 milhões de obesos). (38 milhões de pessoas) estão acima do peso, e, aproxima-
O fenômeno caracterizado pela coexistência, num mes- damente, 10% apresentam obesidade, enquanto o baixo
mo período, de casos de obesidade (geralmente, em adul- peso corporal (um indicativo de desnutrição) é, atualmente,

71
ENDOC RI N O LOG I A

observado em apenas 4% dos adultos brasileiros, segundo a 4. Regulação do peso corporal


Pesquisa de Orçamentos Familiares divulgada pelo IBGE em
2003 (Tabela 3). O peso corporal é estreitamente regulado, em huma-
nos, por um complexo sistema que envolve principalmente
Tabela 3 - Prevalência de baixo peso, sobrepeso ou obesidade en- o hipotálamo, o tecido adiposo e o trato gastrintestinal. Um
tre adultos de 20 a 74 anos, comparando 3 diferentes momentos grande número de moléculas contribui para tal regulação e
da história do Brasil (1974 a 75, 1989 e 2002 a 03), de acordo com
dados do IBGE
serão citadas as principais delas.
Homens (em %) Mulheres (em %)
A - Hipotálamo
Diagnóstico 1974 a 2002 a 1974 a 2002 a
1989 1989
75 03 75 03 O hipotálamo é o centro da regulação do peso corporal,
Baixo peso 7,2 3,8 2,8 10,2 5,8 5,4 em que são recebidos e integrados os sinais vindos da peri-
Excesso de feria e emitidos sinais químicos e nervosos que regularão a
18,6 29,5 41 28,6 40,7 39,2 fome e o gasto energético basal. Há 2 sistemas antagônicos
peso
Obesidade 2,8 5,1 8,8 7,8 12,8 12,7
e complementares no hipotálamo, conforme exposto na
Tabela 4.
Também no Brasil, as maiores prevalências de obesida-
de atualmente são observadas entre homens com renda Tabela 4 - Vias nervosas hipotalâmicas responsáveis pela regula-
familiar superior a 5 salários mínimos per capita, mas uma ção do peso corporal
tendência de crescimento da prevalência de obesidade, no “Via catabólica” – neurônios secretores de POMC e CART
momento, está sendo observada entre homens de todas Os neurônios que secretam pró-ópio-melanocortina (POMC)
as classes sociais e regiões do país, entre as mulheres essa e transcrito relacionado à cocaína e à anfetamina (CART), bem
tendência de crescimento se restringe às classes sociais como o hormônio estimulador da melanina (alfa-MSH), que
mais baixas na região Nordeste. Entre mulheres de outras são estimulados pela leptina (entre outros) elevam o aumento
regiões e classes sociais, a prevalência de obesidade vem se do gasto energético (termogênese), a diminuição do apetite
estabilizando ou, até mesmo, declinando nos últimos anos. e, consequentemente, a perda de peso, correspondendo à via
Nos Estados Unidos, um dos países com mais obesos catabólica. Esses neurônios se localizam, predominantemente,
na área ventromedial do hipotálamo, por isso tal região
do mundo, cerca de 33% da população apresentam sobre-
hipotalâmica costumava ser conhecida como área da saciedade
peso, 33% apresentam obesidade, e 5% apresentam obe-
(embora essa seja uma supersimplificação). Lesões na área
sidade classe III (antigamente, conhecida como obesidade ventromedial acarretam hiperfagia e obesidade.
mórbida), totalizando mais de 70% dos adultos com algum
“Via anabólica” – neurônios secretores de NPY e AgRP
grau de excesso de peso (dados de 2004). No mesmo país, o
gasto com o tratamento da obesidade e suas complicações Os neurônios que secretam neuropeptídio Y (NPY) e proteína
relacionada ao Agouti (AgRP) são estimulados pela grelina e
chega a 6% dos gastos totais com saúde, correspondendo a
inibidos pela leptina (entre outros), levando à redução do gasto
um montante de 3 bilhões de dólares ao ano.
energético, aumento do apetite e consequente ganho de peso,
Outras regiões onde houve um aumento muito grande correspondendo à via anabólica. Os neurônios dessa via também
da prevalência de obesidade nas últimas décadas, além da estão localizados na área ventromedial do hipotálamo (núcleos
América do Norte, foram as ilhas de Samoa (onde 75% dos ventromedial e arqueado).
adultos são obesos), o leste da Europa, a Austrália, a China
e o Oriente Médio. Outra região do hipotálamo essencial para a regulação
Se nenhuma medida efetiva for tomada para conter o do peso é a área lateral, que, juntamente com o núcleo
avanço da obesidade, será provável que o número de obe- paraventricular, recebe aferentes da área ventromedial. A
sos dobre em todo o mundo até 2025, segundo estimativas área lateral do hipotálamo integra os sinais das vias catabó-
da Organização Mundial de Saúde. lica e anabólica. O NPY e a AgRP (sinais anabólicos) inibem a
A pandemia de obesidade atinge adultos, adolescentes ativação dos receptores da melanocortina (MC4R e MC3R),
e crianças, de ambos os sexos e de todas as classes socio- enquanto a POMC/alfa-MSH e o CART (sinais catabólicos)
econômicas. Estudos observacionais realizados nos EUA aumentam a atividade desses receptores. A ativação de
mostram que o número de crianças obesas aumentou 2 ve- MC4R no núcleo paraventricular e na área lateral leva à sa-
zes, e o de adolescentes obesos, 3 vezes desde 1980. Nos ciedade, e a ativação de MC3R aumenta o gasto energético.
EUA e em vários outros países, observa-se, ainda, aumento Lesões na área lateral do hipotálamo costumam cursar com
na incidência das doenças relacionadas à obesidade nessa
hipofagia, perda de peso e redução do crescimento.
faixa etária, como DM2, dislipidemia, esteato-hepatite não
alcoólica, apneia do sono, entre outras.
B - Tecido adiposo
A obesidade paterna é um fator de risco importante
para obesidade infantil – 2/3 das crianças com pai e mãe O tecido adiposo é o local onde é armazenada a energia.
obesos serão obesas, comparados a 50% quando apenas 1 Quando a ingesta calórica diária é igual ao gasto energético
dos pais é obeso e 10% quando ambos os pais são magros. (em número de calorias), a reserva de energia do corpo é

72
OBESIDADE

mantida constante, e não há variação do peso corporal. Por bilidade à insulina. Vários tecidos apresentam receptores
outro lado, quando a ingesta excede o gasto (entrada de para adiponectina: no músculo esquelético, ela aumenta a
calorias pela dieta >>> gasto de calorias pelo metabolismo sinalização pela via da AMP-quinase, melhorando a respos-
basal + atividade física + efeito termogênico dos alimentos), ta à insulina; no cérebro, apresenta uma ação anorexígena
ocorre o balanço energético positivo, e as calorias exceden- semelhante à da leptina. Por todos seus efeitos, a adiponec-
tes são transformadas em triglicérides e armazenadas nos tina permanece como um interessante alvo para o desen-
adipócitos. volvimento de novas terapias para obesidade e diabetes.

ENDOCRINOLOGIA
Na vida adulta, o número de adipócitos é constante, Quando há excesso de gordura corporal, também ocor-
portanto o ganho de peso se dá, exclusivamente, por meio re um aumento na produção de outras substâncias bioati-
do aumento de volume das células adiposas (hipertrofia). vas pelos adipócitos, como resistina, fator de necrose tu-
Nas crianças, pode haver multiplicação dos adipócitos além moral alfa (TNF-alfa), interleucina-6, inibidor do ativador do
do aumento de volume (hiperplasia + hipertrofia), aumen- plasminogênio-1 (PAI-1) e outras citocinas, as quais podem
tando a capacidade de reserva, por isso 80% das crianças contribuir para aumentar o risco de diabetes e doença car-
obesas se tornarão adultos obesos. Embora tais crianças diovascular em obesos.
obesas possam perder peso por meio da redução do volu-
me dos adipócitos posteriormente, não há redução do nú- C - Trato gastrintestinal
mero de adipócitos, que é fixo após o final da adolescência.
O trato gastrintestinal produz várias substâncias que
Além da sua função como reserva de energia na forma
ajudam a regular o peso corporal. Na situação de jejum, as
de triglicérides, as células adiposas também têm um impor-
células do fundo gástrico secretam altos níveis de grelina,
tante papel na regulação do metabolismo, através da secre-
que age no hipotálamo estimulando o apetite e a busca por
ção de várias substâncias com ação endócrina, dentre elas
a leptina e a adiponectina. Quanto maior a quantidade de alimento, além de estimular a secreção de hormônio de
tecido adiposo, maiores os níveis plasmáticos de leptina e crescimento (GH) pela hipófise. Os níveis de grelina caem
menores os de adiponectina. rapidamente logo após uma refeição e também na cirurgia
A leptina liga-se a receptores no hipotálamo, onde oca- bariátrica (Fobi-Capella).
siona diminuição do apetite e aumento do gasto calórico. A No período pós-prandial imediato, ocorre, além da re-
leptina e a insulina são os principais sinalizadores dos esto- dução dos níveis de grelina, um aumento pronunciado da
ques de energia. A 1ª foi descrita em 1994, após pesquisas concentração plasmática de insulina, colecistocinina, pep-
com alguns clones de ratos obesos e hiperfágicos (linhagem tídio YY3-36 e peptídio glucagon-like 1 (GLP-1), entre outros,
ob/ob); na verdade, esses animais eram incapazes de pro- que inibem o apetite, retardam o esvaziamento gástrico
duzir leptina. Outras linhagens de ratos, também obesos e e aumentam ligeiramente o gasto energético. O aumento
hiperfágicos (linhagens Zucker ou fa/fa, e db/db), apresen- da secreção de GLP-1 (secretado no íleo) que é observado
tam altas concentrações plasmáticas da substância sendo após a cirurgia de Fobi-Capella, em vista da chegada mais
classificadas como deficientes de receptores hipotalâmicos rápida do bolo alimentar ao intestino delgado distal, provo-
para a leptina, portanto resistentes à ação dela. cado pelo Y de Roux, bem como a redução da secreção de
A administração dessa substância aos ratos ob/ob pro- grelina, são, provavelmente, alguns dos mecanismos pelos
vocou anorexia e perda de peso, o que chamou muito a quais esse tipo de procedimento provoca perda de peso e
atenção para a possibilidade do uso dessa molécula no tra- melhora da sensibilidade à insulina.
tamento da obesidade em humanos. Entretanto, exceto em Uma importante consequência de tal complexo me-
alguns casos raros de deficiência de leptina, grande parte canismo regulatório do peso corporal é a sua tendência a
dos humanos obesos apresenta altos níveis da substância, manter o peso constante em longo prazo, apesar de peque-
indicando uma possível resistência hipotalâmica a ela, tor- nas variações no consumo calórico e no gasto energético
nando-a pouco eficaz do ponto de vista terapêutico. em curto prazo. Além disso, vários estudos mostram que
A adiponectina é produzida pelos adipócitos em quan- a resposta adaptativa à perda de peso costuma ser muito
tidade inversamente proporcional à percentagem de gor- mais vigorosa em humanos do que a resposta ao ganho de
dura corporal em adultos. Parece ter um papel importante peso. Um obeso que começa a perder peso com uma dieta
na regulação da sensibilidade à insulina. Portanto, baixos hipocalórica, por exemplo, pode ter uma redução em torno
níveis de adiponectina, como os encontrados em humanos de 8kcal/kg de massa magra/dia no seu gasto energético,
obesos, aumentam a resistência à insulina e estão associa- dificultando a perda de peso adicional. No jejum prolonga-
dos ao DM2 e aos demais componentes da síndrome meta- do ou em uma restrição calórica importante, essa queda do
bólica. Em obesos diabéticos, essa substância encontra-se metabolismo basal pode chegar a 30%. Esse é um dos fato-
ainda mais reduzida. Mulheres apresentam níveis maiores res responsáveis pela recuperação de peso que ocorre em
do que homens. A perda de peso costuma associar-se à ele- uma grande parcela dos pacientes obesos, após a perda de
vação da adiponectina, paralelamente à melhora da sensi- alguns quilos com a restrição calórica.

73
ENDOC RI N O LOG I A

Tabela 5 - Principais moléculas produzidas fora do SNC e envolvidas na regulação do peso corporal e do metabolismo
Onde é produ-
Molécula Função fisiológica Como está na obesidade
zida
- Estímulo ao apetite no período pré-prandial;
Grelina - Fundo gástrico. - Sem alterações.
- Estímulo à secreção de GH.
- Aumentada (humanos obesos
Leptina - Tecido adiposo. - Sinalização ao hipotálamo do “estoque” de gordura corporal. frequentemente são resistentes
à leptina).
Adiponectina - Tecido adiposo. - Estimula a sensibilidade à insulina. - Diminuída.
- Aumentada (humanos obesos
Insulina - Pâncreas. - Estimula a captação de glicose pelos tecidos periféricos. frequentemente são resistentes
à insulina).
Colecistocinina, - Intestino del-
- Inibição do apetite, retardo do esvaziamento gástrico. - Sem alterações.
PYY3-36 gado.

Figura 3 - Modelo neuroendócrino da regulação do peso corporal. Fonte: Schwartz MW et al. Nature. 2000;404:661-71

5. Por que há tantos obesos?


A obesidade é uma doença multifatorial, causada, na grande maioria dos casos, pela interação entre fatores ambientais
(representados pelos hábitos de vida) e a predisposição genética do indivíduo.

74
OBESIDADE

A - Fatores ambientais e de comportamento ca, que cursa com hipogonadismo, deficiência de GH, hiper-
fagia e obesidade severas.
O equilíbrio entre a ingesta e o gasto energético é mui-
Outras patologias genéticas associadas à obesidade são
to delicado; portanto, pequenas flutuações em um desses
a síndrome de Bardet-Biedl, a síndrome do X frágil e o pseu-
componentes podem levar a uma variação importante do
do-hipoparatireoidismo tipo 1a (osteodistrofia hereditária
peso ao longo do tempo. Pode-se ter, como exemplo: um de Albright).
aumento de 1% na ingesta calórica diária leva ao ganho

ENDOCRINOLOGIA
médio de 1kg por ano. Nas últimas décadas, com a indus- C - Causas hormonais
trialização e a urbanização, os indivíduos assumiram traba-
O excesso de peso pode ser facilitado por alterações
lhos mais sedentários e novas atividades de lazer (televi-
hormonais. O hipotireoidismo, por exemplo, pode lentificar
são, computador etc.), com importante redução do gasto
o metabolismo, resultando em menor gasto energético de
energético diário. Nunca houve tantas opções de alimentos
repouso, consumo de oxigênio e utilização de substratos,
tão densamente calóricos, com alto conteúdo de gorduras e
embora o ganho de peso associado ao hipotireoidismo seja
alto índice glicêmico, que, caracteristicamente, estão pron-
geralmente discreto (de 3 a 5kg), exceto em casos extremos
tos para consumo no trabalho, no descanso, no automóvel
com deficiência hormonal severa.
etc. Além disso, são baratos, livremente disponíveis para a
O T4 tem pouca atividade biológica e é convertido na
população e altamente palatáveis, devido à gordura e ao periferia em T3 ou T3 reverso (rT3), inativo biologicamente,
açúcar, levando à tendência de que sejam consumidos mais pelas enzimas deiodinases. Indivíduos obesos sem hipoti-
alimentos do que o necessário. Uma pesquisa do IBGE so- reoidismo, em geral, mantêm níveis de T4 e TSH normais. É
bre o padrão alimentar do brasileiro mostrou que, de 1974 descrito, entretanto, aumento dos níveis de T3 em obesos,
a 2003, houve um aumento de 50% no consumo de carnes, o que pode ser um efeito da ingesta calórica aumentada,
16% no consumo de óleos vegetais, 80% no consumo de principalmente de carboidratos. Quando o balanço energé-
refeições prontas e 400% no consumo de biscoitos. Erros tico tende a tornar-se negativo, há um aumento relativo da
alimentares comuns no Brasil são o excesso de açúcar re- conversão de T4 em rT3, com menor formação de T3, em
finado (responsável por 13% da ingesta calórica diária, em uma tentativa de diminuir a taxa metabólica e conservar
média) e o baixo consumo de frutas e de verduras. energia.
Outras deficiências hormonais também podem ser asso-
B - Genética ciadas à diminuição da atividade metabólica, como ocorre
É possível que características genéticas também influen- no pan-hipopituitarismo. É bem conhecida a relação entre
ciem o crescente número de pessoas obesas. Isso se explica hipogonadismo e déficit de hormônio de crescimento (GH)
pelo fato de que, na pré-história (antes do advento da agri- com obesidade central ou abdominal. Esses pacientes tam-
cultura e da pecuária), os indivíduos com maior facilidade bém tendem a ter o perfil lipídico mais aterogênico e com
maior risco cardiovascular. Indivíduos com a deficiência
para engordar e menor gasto energético basal (o chamado
comprovada devem ser considerados para tratamento com
fenótipo poupador, ou thrifty phenotype) conseguiram so-
a reposição hormonal.
breviver melhor aos frequentes períodos de escassez ali-
Por outro lado, não se devem submeter pacientes des-
mentar e reproduzir-se. Com isso, houve uma pressão evo-
necessariamente a uma investigação prolongada e sujeita
lutiva, selecionando indivíduos com maior facilidade para
a riscos. Assim, indivíduos sem características clínicas su-
ganhar peso. A tendência genética à obesidade comumente
gestivas de déficits hormonais e com funções normais da
é determinada por múltiplos genes (poligênica) e costuma hipófise anterior e das glândulas-alvo (T4L e TSH, LH e FSH,
ter um papel mais importante em quadros de obesidade se- prolactina), dificilmente precisarão de investigação mais de-
vera com forte história familiar. talhada.
Algumas causas de obesidade monogênica (derivadas Em contrapartida, o excesso hormonal também pode
de mutações em único gene) já foram identificadas; a mais levar ao aumento de peso. O exemplo mais típico é o hi-
comum em humanos é a mutação do MC4R (presente em, percortisolismo, que leva ao depósito de gordura centrí-
aproximadamente, de 2 a 3% dos obesos). Mutações no peta, com os membros afinados pelo consumo muscular.
gene da leptina e do receptor de leptina também podem Essa condição pode ser acompanhada de face pletórica e
causar obesidade, potencialmente tratável com reposição arredondada, hirsutismo com alopecia frontal, fraqueza
de leptina recombinante humana. muscular tipicamente proximal, fragilidade capilar, fraturas
Sabe-se, ainda, que algumas síndromes genéticas costu- vertebrais, hipocalemia, hipertensão arterial e DM. Tais ca-
mam apresentar a obesidade como uma das suas caracte- racterísticas, quando presentes em maior ou menor grau,
rísticas mais marcantes. É o caso, por exemplo, da síndrome mas principalmente quando evoluem de forma rápida e
de Prader-Willi, causa mais comum de obesidade sindrômi- progressiva, e em pacientes jovens, devem ser investigadas.

75
ENDOC RI N O LOG I A

A acromegalia, por sua vez, não se associa fortemente Uso de medicamentos


à obesidade, mas o excesso de peso pode ser uma quei- - Corticosteroides;
xa desses pacientes. A suspeita diagnóstica, portanto, não - Psicotrópicos: antidepressivos tricíclicos, benzodiazepínicos,
deve ser firmada somente nesse achado clínico, mas sim na antipsicóticos, lítio;
fácies característica, no aumento das extremidades, no ex-
- Anticonvulsivantes: valproato;
cesso de sudorese e transpiração, nas artralgias, nos sinto-
- Antidiabéticos: insulina, sulfonilureias.
mas compressivos do túnel do carpo, no comprometimento
de campos visuais, entre outros. Lesões hipotalâmicas
A obesidade é um achado comum em mulheres com sín-
drome dos ovários micropolicísticos (SOMP): cerca de 50% 6. Complicações
destas são obesas. A fisiopatologia da SOMP é multifatorial
e envolve redução da sensibilidade à insulina com hiperin- A OMS definiu a obesidade como uma doença devido
sulinemia, anovulação crônica, aumento da pulsatilidade às importantes repercussões do excesso de peso sobre a
do LH e da síntese de andrógenos ovarianos e adrenais, re- morbimortalidade e a qualidade de vida do indivíduo e ao
dução dos níveis circulantes da SHBG com consequente au- seu grande impacto em saúde pública.
mento da fração livre dos andrógenos. A resistência à ação As complicações do excesso de peso são mais graves
da insulina nas mulheres com SOMP pode manifestar-se quanto maior o grau de obesidade. As principais comorbi-
com intolerância à glicose e DM, conferindo risco aumen- dades relacionadas à obesidade são as complicações meta-
tado para doença cardiovascular. Medidas que melhoram bólicas: resistência à insulina, hiperinsulinemia, DM2, dis-
a sensibilidade à insulina, como a perda de peso ou o tra- lipidemia (hipertrigliceridemia, baixo HDL e aumento das
tamento com metformina, são capazes de reduzir os níveis partículas pequenas e densas de LDL) e Hipertensão Arterial
de testosterona, proporcionar melhora da irregularidade Sistêmica (HAS), que aumentam muito o risco de morbi-
menstrual e diminuir os riscos de desenvolver distúrbios do dade e mortalidade cardiovascular. A associação de todos
metabolismo de carboidratos. esses fatores de risco cardiovascular configura a Síndrome
Metabólica (SM). Outras complicações extremamente co-
D - Outras causas muns são a doença cardíaca e a colecistopatia litiásica.
Homens costumam apresentar acúmulo de gordura,
Várias medicações predispõem ao ganho de peso, pelo
principalmente na região do abdome (obesidade centrípeta
aumento do apetite ou redução da saciedade (exemplo:
– visceral), que cursa com aumento da resistência insulínica
psicotrópicos), ou por efeito anabólico direto (exemplo:
e do risco cardiovascular. Por outro lado, mulheres costu-
insulina). Lesões hipotalâmicas (como as decorrentes de
mam apresentar maior acúmulo de tecido adiposo na re-
um macroadenoma hipofisário ou do seu tratamento, por
gião do quadril e das coxas (obesidade centrífuga – subcu-
exemplo) podem perturbar a regulação normal do gasto
tânea), com maior risco de doenças osteoarticulares (artro-
energético e do apetite, e determinar obesidade, por vezes
se de joelhos e quadris) e varizes em membros inferiores.
severa.
Algumas neoplasias (mama, rins, endométrio, cólon) são
A Tabela 6 apresenta uma relação das principais causas
mais comuns em obesos. Podem ocorrer, nessa população,
de obesidade secundária em humanos.
transtornos psiquiátricos como ansiedade, depressão, de-
Tabela 6 - Principais causas de obesidade secundária em humanos sajuste social, estigmatização e isolamento.
Causas genéticas
- Monogênicas: mutações no gene do MC4R (mais comum), A - Hipertensão arterial sistêmica
leptina, receptor da leptina, POMC, PPAR-gama, peptídio YY, Há relação direta entre o IMC e a pressão arterial, com-
CCKR; provada por grandes estudos clínicos, e a prevalência de hi-
- Síndromes associadas à obesidade: Prader-Willi, Bardet- pertensão aumenta linearmente com a obesidade. Há refe-
Biedl, X frágil, osteodistrofia hereditária de Albright, Ahlstrom, rências de que metade da população de obesos apresenta
Cohen. níveis pressóricos acima do normal ou estão em tratamento
Endocrinopatias para HAS, com prevalência 2 vezes maior do que as pesso-
- Pan-hipopituitarismo; as com IMC normal. Estima-se que, para cada kg de peso
- Hipogonadismo; acima do normal, o risco de hipertensão aumenta em 4%.
- Deficiência de GH; Por outro lado, a perda de 7kg leva a uma redução de 28 a
- Síndrome de Cushing; 37% no risco de hipertensão, principalmente entre os mais
idosos. Alguns estudos mostram uma queda da pressão ar-
- Acromegalia;
terial para cerca de 0,4mmHg para cada kg perdido.
- Insulinoma;
Os principais determinantes fisiopatológicos da HAS as-
- Hipotireoidismo (geralmente, causa discreto ganho de peso, da sociada à obesidade são o aumento do tônus do sistema ner-
ordem de 3 a 5kg). voso simpático e a maior retenção de sódio e água pelos rins.

76
OBESIDADE

B - Dislipidemia prevalência de qualquer doença cardiovascular é de 37%


em obesos, 21% em pacientes com sobrepeso e 10% em
Vários estudos mostram que o IMC se correlaciona de pacientes com peso normal. Esse aumento de risco perma-
forma linear com o colesterol total, LDL-colesterol e triglice- nece significativo mesmo após ajuste para outros fatores
rídeos plasmáticos, além de apresentar correlação inversa de risco (hipertensão, dislipidemia), o que levou a American
com o HDL-colesterol. Enquanto o ganho de peso na vida Heart Association (AHA) a declarar que a obesidade é um
adulta se associa ao desenvolvimento de um perfil lipídi- fator de risco independente para coronariopatia.
co aterogênico (aumento do colesterol total e triglicérides,

ENDOCRINOLOGIA
O risco de tais complicações correlaciona-se bem com o
elevação discreta do LDL-colesterol e mudança do padrão conteúdo de gordura visceral abdominal e pode ser avalia-
do LDL com o predomínio das partículas menores e mais do por meio da medida da circunferência abdominal. O ris-
densas – tipo B, e redução do HDL-colesterol), a perda de co cardiovascular encontra-se aumentado em homens com
peso, por outro lado, geralmente provoca redução de tri- cintura acima de 94cm e em mulheres com cintura acima de
glicerídeos e LDL, e aumento do HDL. A razão LDL/HDL 80cm, e muito aumentado naqueles com cintura maior que
aumentada, bem como um aumento da razão trigliceríde- 102cm e naquelas com cintura maior que 88cm.
os/HDL e um pequeno tamanho das partículas de LDL na A associação entre obesidade e risco de AVC, por outro
presença de hipertrigliceridemia, características frequente- lado, não é tão nítida, com alguma controvérsia entre os
mente encontradas em obesos, associam-se ao alto risco de resultados dos diferentes estudos. A RCQ (Relação Cintura-
doença cardiovascular. Quadril) parece ser melhor preditora de risco de AVC isquê-
mico, com risco aumentado 2 vezes para homens com RCQ
C - Resistência à insulina e diabetes mellitus >0,98.
O aumento do tecido adiposo central (visceral) apre- Além do risco de cardiopatia isquêmica, os pacien-
senta relação direta com a resistência insulínica e a hipe- tes obesos também são expostos a um maior risco de
rinsulinemia. A resistência à insulina, provavelmente, é a Insuficiência Cardíaca Congestiva (ICC). Dados da coorte de
anormalidade mais comumente encontrada em associação Framingham mostram que, para cada aumento de 1kg/m2,
à obesidade central. Uma das hipóteses propostas para há um acréscimo de 5% (para homens) e de 7% (para mu-
explicar tal associação é o acúmulo de ácidos graxos livres lheres) no risco de ICC. Com isso, obesos têm o dobro de
plasmáticos que ocorre na obesidade visceral, interferin- risco de ICC que indivíduos com IMC normal.
do na secreção de insulina e na sua ação em tecidos-alvo.
Outra possibilidade é a liberação de citocinas inflamatórias E - Doenças respiratórias
pelo tecido adiposo (interleucina-6, TNF-alfa), que podem A obesidade também está relacionada a doenças respi-
reduzir a sensibilidade tecidual à insulina (sinalização intra- ratórias, e a restrição ventilatória se deve ao aumento da
celular pós-receptor). Além disso, o aumento da leptina e a pressão sobre a parede torácica, que acarreta diminuição
redução da adiponectina que ocorrem em obesos também da complacência ventilatória e aumento do trabalho respi-
podem desempenhar um papel importante na gênese da ratório. Cronicamente, pode haver hipoventilação e maior
resistência à insulina. tolerância à hipercapnia, hipóxia ou ambos. Uma descrição
Vários estudos mostram uma forte associação entre o clássica desse fenômeno é a síndrome de Pickwick, uma for-
IMC e o risco de DM2. Mulheres com sobrepeso, por exem- ma grave de hipoventilação relacionada à obesidade grave,
plo, apresentam um risco 8 vezes maior de DM2, enquanto que envolve irregularidade ventilatória, sonolência, ciano-
mulheres com IMC acima de 35kg/m2 têm um aumento de se, policitemia e insuficiência ventricular direita.
risco de 39 vezes. Esse aumento de risco parece ser ainda Outra condição bastante prevalente entre obesos é a
mais significativo quando o acúmulo de gordura acontece síndrome da apneia/hipopneia do sono, em que acontecem
na região central (entre as vísceras abdominais). Calcula-se dificuldades ventilatórias, apesar de esforços inspiratórios
que, para cada kg de peso ganho, o risco de DM2 aumenta presentes, devido à obstrução parcial ou completa das vias
5%. Por outro lado, a perda de peso consegue reduzir tal aéreas altas. Nessas situações, a hipóxia e a hipercapnia re-
risco. sultantes desencadeiam uma importante descarga adrenér-
gica com consequentes picos hipertensivos (e maior risco
D - Doença cardiovascular de desenvolver HAS crônica), aumento do risco de arritmias
O risco de aterosclerose encontra-se aumentado, prin- ventriculares e morte súbita. Como o sono é interrompi-
cipalmente em níveis de IMC maiores que 23kg/m2 em ho- do frequentemente, o paciente não experimenta as suas
mens, e 22kg/m2 em mulheres. O risco de doenças trombo- fases mais profundas, com queixa de sonolência diurna,
embólicas também é aumentado e pode estar relacionado que pode diminuir drasticamente sua qualidade de vida e
aos estados pró-inflamatório e pró-trombótico associados à mesmo limitar atividades laborais. A circunferência de pes-
resistência insulínica, obesidade e, finalmente, aterosclerose. coço é frequentemente aumentada, e valores maiores que
O risco de doença cardiovascular é, pelo menos, 3 ve- 40cm implicam alta probabilidade de desenvolver apneia
zes maior em obesos que em pessoas com IMC normal. A do sono. Deve-se considerar a realização de polissonografia

77
ENDOC RI N O LOG I A

em pacientes com sonolência diurna e alteração da circun- mento alarmante nos casos de obesidade. Estima-se que de
ferência do pescoço. A apneia obstrutiva do sono está pre- 10 a 24% dos adultos apresentem algum grau de NAFLD.
sente em, pelo menos, 50% dos pacientes com IMC ≥40kg/ Cursa, geralmente, de forma assintomática e costuma ser
m2. A apneia do sono é 4 vezes mais comum para cada au- detectada por exames realizados por outros motivos (tran-
mento de 1 Desvio-Padrão (1 DP) do IMC acima da média. saminases, ultrassonografia). Há discussão sobre as indica-
Há evidências de que a asma parece ser mais comum ções de biópsia hepática em obesos e indivíduos com a sín-
entre obesos. Além disso, pacientes asmáticos tendem a drome metabólica, uma vez que pacientes acima do peso
pesar mais do que não asmáticos. Cerca de 1 em cada 3 por- normal mostraram, à biópsia, 75% de prevalência de estea-
tadores de asma é obeso. Entretanto, a relação causal entre tose, 20% de esteato-hepatite e 2% de cirrose hepática oli-
essas 2 patologias é difícil de determinar, já que pacientes gossintomática. A prevalência de acometimento hepático é
com asma sintomática podem ser menos ativos e, por isso, ainda maior em obesos com DM2 e/ou hipertrigliceridemia.
ganhar mais peso. Pode haver evolução para cirrose, com possível indicação
de transplante hepático. A perda de peso, em geral, leva à
F - Doenças hepáticas regressão da maioria das alterações (exceto fibrose), mas
A obesidade também está relacionada a alterações da perdas rápidas e muito pronunciadas, como a que ocorre
função hepática, provavelmente provocadas pela resis- após a cirurgia bariátrica, ou alterações cíclicas do peso po-
tência à insulina, sendo a mais importante delas a Doença dem piorar a NASH. Algumas medicações também podem
Hepática Esteatótica Não Alcoólica (DHENA ou NAFLD), ajudar a reduzir as alterações hepáticas, como as tiazolidi-
também conhecida como doença gordurosa do fígado nedionas, a metformina e a atorvastatina, mas o melhor re-
(Fatty Liver Disease – FLD). Dentre as alterações hepáticas sultado é obtido com a perda de peso. Vitamina E (400mg/
que podem fazer parte da NAFLD e que apresentam rela- dia) e fibratos também podem ser úteis.
ção com a obesidade visceral, estão a hepatomegalia, a es- A evolução dos pacientes com EHNA ainda não é bem
teatose hepática, a Esteato-Hepatite Não Alcoólica (EHNA definida pela literatura, mas os pacientes com esteatose
ou NASH), a fibrose e a cirrose hepáticas. O grau de dano isolada sem fibrose e inflamação parecem apresentar bom
tecidual hepático se correlaciona com o IMC. Embora as prognóstico. Deve-se acrescentar, porém, que a cirrose he-
aminotransferases sejam as enzimas mais frequentemente pática é a 2ª maior causa de morte em pacientes com diag-
alteradas na NAFLD (principalmente a TGP), elas não se cor- nóstico de EHNA, após as doenças cardiovasculares, com
relacionam com a gravidade da alteração histológica; mui- risco relativo 7 vezes maior que o da população de mesmas
tos pacientes evoluem para fibrose ou cirrose com níveis de características demográficas.
TGO e TGP dentro da normalidade. Devem-se excluir outras A colecistopatia litiásica é outra patologia associada à
causas de lesão hepática (uso de álcool, hepatites virais, obesidade. Os cálculos costumam ser de colesterol, forma-
medicamentos). dos devido à secreção hepática excessiva desse lipídio na bile,
que fica supersaturada. O risco de colecistopatia é 3 vezes
maior em obesos. Curiosamente, tanto a obesidade como a
perda de peso podem aumentar o risco de cálculos biliares.
Cerca de 10 a 25% dos obesos submetidos a uma dieta muito
restrita acabam desenvolvendo cálculos nos primeiros meses
de emagrecimento, 1/3 deles com sintomas.

G - Neoplasias
O aumento do risco de algumas neoplasias constitui
uma complicação grave, mas frequentemente esquecida da
obesidade.
Em mulheres, há aumento do risco de câncer de mama,
endométrio (de 34 a 56% dos casos de neoplasia endome-
trial ocorrem em obesas), ovários, cérvix, rins, vesícula bi-
liar e cólon. Em homens, há aumento do risco de câncer de
cólon, rins e, possivelmente, de próstata.
Uma grande meta-análise mostrou aumento, ainda, do
risco de câncer de pâncreas, esôfago, fígado, linfoma não
Figura 4 - Ultrassonografia mostrando esteatose hepática: hipere-
cogenicidade do parênquima hepático e borramento das margens
Hodgkin e mieloma múltiplo em obesos comparados a não
vasculares obesos. Os maiores riscos relativos foram observados para
o câncer renal (risco aumentado 4,7 vezes em pacientes
A NAFLD é, hoje, a doença hepática mais comum nos com IMC ≥40kg/m2) e de útero (6,2 vezes em mulheres com
Estados Unidos, com sua frequência acompanhando o au- IMC ≥40kg/m2).

78
OBESIDADE

H - Outras patologias Nos Estados Unidos, atualmente, 300.000 mortes ocor-


rem todo ano em decorrência da obesidade, tornando-a a
A obesidade é um grande fator de risco para osteoar- 2ª maior causa prevenível de morte naquele país, seguida
trose de quadris e joelhos, principalmente em pacientes apenas do tabagismo. Entretanto, com a perspectiva de
com mais idade. A catarata é mais comum em obesos do crescimento do número de obesos nos próximos anos, é
que em não obesos, mas pode estar relacionada à hiperten- possível que a obesidade passe a figurar como 1ª maior
são e ao diabetes. Hiperuricemia e gota são mais comuns causa prevenível de mortalidade em poucos anos.
em obesos. A doença do refluxo gastroesofágico também

ENDOCRINOLOGIA
se associa ao excesso de peso e costuma ser aliviada pela Tabela 7 - Resumo das complicações associadas à obesidade
perda ponderal. Em mulheres, pode haver infertilidade, Hipertensão arterial, doença arterial coro-
irregularidade menstrual e hiperandrogenismo, relaciona- Cardiovasculares nariana, insuficiência cardíaca congestiva,
dos à SOMP. A acantose nigricans é uma lesão de pele com insuficiência venosa.
aspecto aveludado e acastanhado, acometendo regiões de Resistência à insulina, diabetes mellitus tipo
Metabólicas
dobras (cervical, axilar), mais frequente em obesos e que 2, síndrome metabólica.
indica resistência à insulina, e risco aumentado de DM2; Aumento dos triglicérides, redução do HDL,
costuma regredir com a perda de peso. Outro tipo de lesão Lipídicas acúmulo de partículas de LDL pequenas e
densas.
cutânea indicativa de estados de resistência à insulina são
os skin tags (acrocórdons). Hipoventilação e hipercapnia (Pickwick),
Respiratórias
apneia obstrutiva do sono.
Transtornos psiquiátricos (depressão, ansiedade, distúr-
bios alimentares) e dificuldades de ajustamento social (me- Doença gordurosa do fígado, colecistopatia
Gastrintestinais
litiásica, refluxo gastroesofágico.
nor taxa de matrimônios e de paternidade) também são mais
frequentes em indivíduos com excesso de peso, causando Em mulheres: mama, endométrio, ovários,
Neoplasias cérvice, rins, vesícula biliar, cólon; em ho-
grande impacto negativo sobre sua qualidade de vida. mens: cólon, rins (próstata?).
Osteoartrose de quadris, joelhos, coluna
I - Mortalidade Osteoarticulares
lombar; gota.
Em última instância, o aumento da prevalência de to- Síndrome dos ovários policísticos, catarata,
das essas comorbidades torna a obesidade uma situação Outros acantose nigricans, depressão, desajuste
que reduz de forma significativa a expectativa de vida do social.
paciente obeso. O estudo de Framingham mostrou que a Redução da expectativa de vida, mais im-
mortalidade geral apresenta correlação direta com o grau portante quanto maior o IMC (em geral, a
partir de 30kg/m2), principalmente por cau-
de excesso de peso, a partir da faixa de sobrepeso, com ele- Mortalidade
sas cardiovasculares; maior risco de morte
vação da taxa de mortalidade em 26 anos de cerca de 2 a súbita; a obesidade é a 2ª maior causa de
4% para cada kg de peso em excesso. O aumento de risco morte prevenível nos Estados Unidos.
de morte começa a existir a partir de 25 a 29kg/m2. Assim,
com IMC ≥30kg/m2, a mortalidade se eleva em 40 a 60%, e, 7. Tratamento não farmacológico
com IMC ≥40kg/m2, a mortalidade é praticamente dobrada
(Figura 5). Uma pessoa de 25 anos com obesidade classe III O tratamento da obesidade deve contemplar o paciente
apresenta uma redução de 12 anos na sua expectativa de obeso em todos os sentidos, visando a um estilo de vida mais
vida, em comparação a um indivíduo não obeso da mesma saudável, com redução do risco de complicações decorrentes
idade. do excesso de peso. A perda deste, mesmo modesta, pode
produzir melhoras clínicas significativas no controle pressóri-
co, lipídico e glicêmico, com melhor qualidade de vida.
O objetivo ideal seria a normalização do IMC em todos
os casos, mas nem sempre essa é uma meta possível; por
isso, geralmente se estabelece, como objetivo razoável, a
perda de 5% do peso inicial em 6 meses. Uma perda de 10%
do peso inicial é considerada ótima. Deve-se acrescentar
que a perda deve ser gradual (de 2 a 4kg/mês).
O principal componente do tratamento, que deve ser
orientado para qualquer grau de obesidade, é a mudança
dos hábitos de vida, incluindo:

A - Reeducação alimentar
Figura 5 - Relação entre o IMC e a taxa de mortalidade geral (curva O paciente deve aprender a alimentar-se de forma
em “J” de mortalidade x IMC) nutricionalmente equilibrada, com restrição calórica mo-

79
ENDOC RI N O LOG I A

derada (redução de 500 a 1.000 calorias/dia na ingesta), 8. Farmacoterapia


preferencialmente em longo prazo, visando a um balanço
energético negativo. Acredita-se que, para perda de 1kg, se A farmacoterapia está indicada aos pacientes com IMC
deve obter um déficit calórico de, aproximadamente, 5.000 acima de 30kg/m2, ou pacientes com IMC acima de 25kg/
a 7.000 calorias. Assim, em pacientes estáveis em seu peso, m2 que apresentem comorbidades importantes relaciona-
uma dieta com 600 calorias a menos do que a ingestão ha- das ao excesso de peso. A farmacoterapia deve ser iniciada
bitual levaria à perda de 1kg em cerca de 10 dias, mas, após sempre em conjunto com a orientação das mudanças do
algum tempo, o organismo se readapta, e a velocidade de estilo de vida. Além disso, deve ser reservada para aqueles
perda de peso diminui. que não conseguiram atingir seus objetivos de tratamento
Devem-se evitar dietas muito restritivas ou de difícil ma- com dieta, exercício e terapia comportamental. Uma orien-
nutenção, pois sua eficácia é transitória. Os principais alvos tação fundamental no uso das medicações para perda de
de restrição, atualmente, são as gorduras e as proteínas. peso é que elas jamais devem ser usadas isoladamente, e
Dados populacionais sistematicamente correlacionam con- sim integradas ao tratamento completo do paciente obeso,
sumo de gordura saturada com aumento da obesidade e de juntamente com a orientação das mudanças de estilo de
suas complicações. Nos últimos anos, dietas desarmônicas, vida e o tratamento das comorbidades. Além disso, sempre
como as dietas sem carboidratos (Low-Carb Diet, de Atkins, devem ser prescritas e acompanhadas por um médico com
South Beach), ganharam muitos adeptos graças à divulga- experiência no uso desses medicamentos.
ção na mídia e à promessa de perda de peso sem sacrifício. Todas as medicações disponíveis atualmente produzem
A redução do índice glicêmico das refeições, levando a um efeito transitório sobre o peso, com habitual recupe-
menor liberação de insulina endógena e a menor ingesta ração de peso após a suspensão da droga, por isso a mu-
calórica por geração de cetose e monotonia dietética, é o dança de hábitos é fundamental. Alguns autores sugerem
mecanismo proposto para os que defendem essa aborda- o uso prolongado de medicações antiobesidade (visto que
gem dietética. Contudo, não há nenhum estudo em longo se trata de uma doença crônica), uma vez que o uso desses
prazo que avalie o risco das dietas pobres em carboidratos, medicamentos por períodos prolongados (2 a 3 anos) pode
e, como já mencionado, os dados epidemiológicos asso- reduzir a recuperação tardia do peso, observada em >90%
ciam fortemente o consumo de gorduras ao risco de ado- dos obesos submetidos a tratamento clínico.
ecimento. Os medicamentos atualmente disponíveis no Brasil para
tratamento da obesidade são:
B - Atividade física regular
Evita a perda de massa magra (músculo) que, normal- A - Anorexígenos – femproporex, mazindol e
mente, ocorre com a restrição calórica e ajuda a manter um anfepramona
gasto energético adequado, além de melhorar a capacidade Com exceção do mazindol, trata-se de derivados beta-
física e produzir impacto positivo sobre os fatores de risco -fenetilamínicos ou anfetamínicos. Agem estimulando a
cardiovascular. São recomendadas atividades moderadas, liberação e bloqueando a recaptação de noradrenalina no
de baixo impacto, durante 30 a 60 minutos, na maior parte sistema nervoso central (hipotálamo), inibindo intensa-
dos dias da semana. Também ajuda a prevenir a recupera- mente o apetite e aumentando o gasto energético basal.
ção de peso após uma perda significativa (ou seja, ajuda na Produzem perda de peso significativa (de 9 a 17kg em 12
manutenção do peso em longo prazo). Como a melhora da semanas), mas possuem muitos efeitos colaterais, relacio-
capacidade cardiorrespiratória secundária ao treinamento nados ao hiperestímulo adrenérgico: aumento da pressão
físico se relaciona a menor risco de doença cardiovascular, arterial, taquicardia, arritmias, insônia, agitação, irritabi-
diabetes, câncer e até depressão, um programa de treina- lidade, euforia, boca seca, obstipação e delírios. Devem
mento deveria ser seguido pela maioria das pessoas obesas ser usados por tempo limitado (poucos meses) devido ao
e até por aquelas sem problemas com o peso. O tipo de potencial de dependência e de abuso. Por essa razão, não
atividade física deve ser aquele que ocasione prazer ao pa- são mais utilizados na Europa e nos Estados Unidos. São
ciente, de preferência facilmente disponível e que não exija contraindicados a pacientes cardiopatas (coronariopatia
companhia para ser realizada. Grandes estudos demonstra- ou ICC), hipertensos mal controlados (PA >180x110mmHg),
ram que indivíduos com sucesso na perda ponderal susten- com apneia do sono ou com transtornos psiquiátricos.
tada tendem a ser aqueles que se exercitam ao menos 1 Alguns autores sugerem que o mazindol pode ser dis-
hora por dia, 5 vezes por semana. cretamente mais eficaz, com perdas de até 13% do peso
inicial em estudos controlados em médio prazo (até 1 ano).
C - Psicoterapia comportamental O femproporex, por outro lado, parece ser o mais seguro
Esta auxilia no controle dos estímulos que desenca- e com menor potencial de dependência. Quando indicado,
deiam a busca por alimento, além de auxiliar no manejo do seu uso deve ter início com doses pequenas e divididas,
estresse e na prevenção de recaídas. O suporte social e fa- com aumento progressivo da dose, devendo ser desconti-
miliar é importante. nuada se ocorrerem sintomas psiquiátricos.

80
OBESIDADE

Uma preocupação constante é com o uso indevido de rio Abbott retirou voluntariamente a marca de referência da
tais medicações, já que, após 2 a 3 meses, começa a haver sibutramina do mercado brasileiro (Reductil®), mas várias
tolerância, por isso alguns pacientes tendem a usar doses outras marcas do medicamento ainda estão disponíveis.
excessivas com maior risco de eventos adversos. Em 2007, a No momento em que este material está sendo escrito,
ANVISA lançou uma nova resolução (RDC 58/2007) fixando ainda está ocorrendo uma ampla discussão sobre a neces-
doses máximas permitidas para essas medicações e estabe- sidade de retirar a sibutramina do mercado brasileiro, uma
lecendo novas regras para a sua prescrição, na tentativa de posição defendida pela ANVISA, mas contestada pelos en-

ENDOCRINOLOGIA
inibir o uso abusivo das medicações desta classe. docrinologistas.
A Tabela 8 sumariza as características dos anorexígenos.
Tabela 9 - Contraindicações da sibutramina (RDC 13/2010,
Tabela 8 - Principais anorexígenos usados para redução do peso ANVISA/MS)
Dose - Cardiopatias: arritmias cardíacas, insuficiência cardíaca conges-
Nome co- Dose
Substância Dose usual máxima tiva;
mercial inicial
(ANVISA) - Hipertensão arterial não controlada (PA >145x90mmHg);
25 a - Doenças psiquiátricas (síndrome do pânico, transtorno bipolar)
12,5 a 50mg/dia, ou uso de inibidores da monoamino-oxidase (MAO);
Femproporex Desobesi-M 25mg/ divididos 50mg/dia
- Glaucoma grave;
dia em 1 ou 2
doses - Doença arterial periférica;
50 a - História prévia de doenças cardiovasculares ou cerebrovasculares;
Dualid S, 25 a
150mg/dia, - DM2 associado a mais um fator de risco cardiovascular.
Anfepramona Hipofagin S, 50mg/ 120mg/dia
divididos em
Inibex S dia Pode ser utilizada em adolescentes (>12 anos) e ajuda
2 doses
1 a 4mg/ a prevenir a recuperação tardia de peso quando usada por
Fagolipo, tempo prolongado. Tem baixo custo (comparável ao dos
1mg/ dia,
Mazindol Absten S, 3mg/dia anorexígenos). Deve-se iniciar com dose de 10mg/dia, po-
dia divididos
Moderine dendo variar de 10 a 15mg/dia.
em 2 doses

B - Sacietógenos – sibutramina C - Inibidores da lipase intestinal – orlistate


Bloqueia a recaptação de noradrenalina e serotonina no Este reduz a absorção dos triglicérides da dieta em 30%,
SNC, além de causar perda de, pelo menos, 5% do peso em pela inibição das lipases intestinais, levando a uma perda
cerca de 90% dos usuários, com perda média de 6 a 10kg de, aproximadamente, 10% do peso inicial em 12 meses.
em 1 ano. Tem ação, principalmente, sobre a saciedade, re- Também reduz a recuperação de peso pela metade após o
duzindo o tamanho das refeições. Também pode produzir 1º ano de tratamento. Há evidências de que é uma droga
taquicardia, hipertensão arterial, sudorese, boca seca, insô- segura para uso prolongado e ocasiona alterações benéfi-
nia e obstipação, mas em menor grau que os anorexígenos. cas no perfil lipídico (redução de colesterol total e LDL), nos
Vários estudos indicaram que é uma droga segura para níveis pressóricos, na esteato-hepatite não alcoólica e no
uso por tempo prolongado (por até 2 anos), desde que res- controle glicêmico em DM2, podendo, inclusive, prevenir
peitadas suas contraindicações. Seu uso se associa a um o surgimento de diabetes (redução de risco de 37% em 4
discreto aumento da pressão arterial (de 2 a 4mmHg) e da anos) em indivíduos de alto risco.
Seus efeitos colaterais correlacionam-se à presença de
frequência cardíaca, mas tal efeito tende a ser contrabalan-
gordura nas fezes: flatulência, meteorismo, diarreia, estea-
ceado pela redução pressórica que acompanha a perda de
torreia e urgência fecal, dependendo da ingesta de gordura.
peso.
Inibe, parcialmente, a absorção de vitaminas lipossolúveis,
No final de 2009, um estudo realizado na Europa
por isso alguns autores recomendam que seja feita a suple-
(SCOUT) com indivíduos com mais de 55 anos, IMC >25 e
mentação de vitaminas A, D, E e K durante o uso prolonga-
DM2 ou doença cardiovascular prévia demonstrou que o
do de orlistate, embora raramente se observe deficiência
uso de sibutramina esteve associado a um risco 16% maior
clínica dessas vitaminas. Outro inconveniente é o alto custo.
de eventos cardiovasculares (IAM e AVC não fatais), sem au- A dose recomendada é de 120mg antes das 3 principais
mento de mortalidade. Por essa razão, a Agência Europeia refeições. Doses maiores que 360mg/dia não parecem tra-
de Medicamentos (EMEA) e a FDA recomendaram a retira- zer benefícios adicionais.
da da sibutramina do mercado europeu e norte-america-
no, respectivamente. No Brasil, a ANVISA, através da RDC D - Outras drogas
13/2010, aumentou o controle sobre o uso da sibutramina,
exigindo receituário B2 (azul, numerado) para sua comer- a) Inibidores da recaptação de serotonina (ISRS)
cialização, e ampliando a lista de contraindicações da droga Fluoxetina: pode ser útil em obesos com depressão,
(Tabela 9). Depois disso, em novembro de 2010, o laborató- ansiedade, bulimia ou transtorno de compulsão alimentar

81
ENDOC RI N O LOG I A

periódica (binge eating disorder). Geralmente, é necessá- provocam complicações, como o hormônio tireoidiano, que
rio o uso de doses altas (40 a 60mg/dia de fluoxetina) para leva à perda de peso à custa de perda de massa muscular e
obter um efeito sacietógeno. A perda de peso é modesta causa tireotoxicose, com suas repercussões sobre o sistema
(de 2 a 6kg) e ocorre nos primeiros 3 a 4 meses de uso da cardiovascular e os ossos. Por isso, esse tipo de substância
medicação, estabilizando-se em seguida. Possíveis efeitos não tem lugar no tratamento da obesidade.
adversos são cefaleia, insônia, perda de libido e ansiedade. Também é vedado ao médico (por resolução do CFM
Outros ISRS, como a sertralina, também podem causar dis- e Portaria do Ministério da Saúde) o uso de anorexígenos
creta perda de peso em alguns pacientes, enquanto outras (femproporex, mazindol, anfepramona) em fórmulas ma-
drogas desse grupo (paroxetina, citalopram) costumam se gistrais contendo outras substâncias (diuréticos, laxantes,
associar a ganho de peso. benzodiazepínicos, fitoterápicos), na mesma cápsula ou em
b) Bupropiona cápsulas separadas, com o intuito de emagrecimento, em
virtude do alto risco de interações medicamentosas e efei-
Este é um antidepressivo bloqueador da recaptação de
tos adversos.
noradrenalina e da dopamina, muito utilizado para a ces-
sação do tabagismo, com efeito anorexiante que leva a
F - Perspectivas de novas drogas
uma perda de peso média de 2 a 5kg em 1 ano (na dose de
400mg). Pode causar convulsão em altas doses, motivo por a) Agonistas seletivos 5-HT2c: possuem ação anorexí-
que é contraindicado a epilépticos. gena semelhante a drogas antigas, como a fenfluramina e a
dexfenfluramina, mas não apresentam ligação ao receptor
c) Topiramato
5-HT2b, responsável pela toxicidade cardíaca (valvopatia),
Trata-se de um anticonvulsivante que, na dose de 100 a sendo, portanto, mais seguros que essas drogas. Um repre-
200mg/dia, leva à perda de 4 a 9% do peso inicial em 6 me- sentante dessa classe é a lorcaserin, que mostrou redução
ses, por ação glutamatérgica (anorexiante). Ao contrário de de 5% do peso inicial em 47% dos pacientes tratados (com-
outras drogas, não parece ter perda de eficácia com o uso parado a 20% no grupo placebo) em um estudo, sem efeitos
prolongado (mesmo após 76 semanas). Entretanto, produz adversos graves.
efeitos adversos com frequência (parestesias, sedação, per- b) Inibidores da recaptação de noradrenalina, dopami-
da de atenção e dificuldade de concentração em 10 a 50%), na e serotonina: têm ação inibidora do apetite e promotora
sendo comum a sua descontinuação por esse motivo (de 20 de saciedade, além de provável aumento do gasto energé-
a 30% dos pacientes). tico (termogênese). Em um estudo, a tesofensina mostrou
d) Metformina eficácia maior do que as drogas atuais com relação à perda
Um antidiabético oral que reduz a liberação hepática de de peso (perda média superior a 10% do peso em 24 sema-
glicose e se associa a uma discreta redução de peso (em nas), com efeitos adversos semelhantes aos da sibutramina
média, de 2 a 5kg em 6 meses), por isso é a droga de 1ª (principalmente adrenérgicos).
escolha em diabéticos tipo 2 obesos. Um estudo com me- c) Novos inibidores das lipases intestinais: o cetilistate
tformina na dose de 1.700mg/dia em mulheres obesas ob- tem eficácia semelhante ao orlistate com relação à perda de
servou uma redução de 10% no peso em 6 meses, além de peso, com menor frequência de efeitos adversos intestinais
melhora significativa no perfil lipídico, glicemia e pressão graves (diarreia).
arterial, embora o resultado tivesse sido ainda melhor com d) Zonisamida: é um anticonvulsivante que leva a au-
sibutramina (13,5% no mesmo estudo). mento da atividade dopaminérgica e serotoninérgica, com
ação anorexígena. Tem eficácia moderada para perda de
e) Exenatida
peso e parece ser interessante para obesos com compulsão
É um antidiabético injetável, análogo do GLP-1, que se alimentar, embora efeitos adversos sejam comuns (fadiga,
associa à perda de peso, e por isso pode ser uma opção alterações cognitivas). Há estudos com a associação de zo-
interessante para diabéticos tipo 2 obesos, que necessitam nisamida à bupropiona, com resultados melhores.
de intensificação do tratamento. e) Bupropiona/naltrexona: a associação das drogas leva
à redução de 5% do peso em cerca de metade dos pacientes
E - Drogas não indicadas tratados, com melhor resultado do que o uso das drogas
Há vários tipos de tratamento divulgados pela mídia, isoladas, mas com maior taxa de efeitos colaterais, levan-
para os quais não há evidência de eficácia ou mesmo se- do a alta taxa de abandono (aproximadamente 50%, geral-
gurança, e que não devem ser recomendados pelo médico mente por náusea). Conhecida nos Estados Unidos como
na terapêutica da obesidade: fitoterápicos, mesoterapia, Contrave, a associação ainda não foi aprovada para trata-
auriculoterapia, acupuntura, diuréticos, laxantes, ioga, su- mento da obesidade pela FDA por falta de estudos compro-
plementos dietéticos etc. Alguns compostos sabidamente vando sua segurança cardiovascular.

82
OBESIDADE

f) Novos antagonistas do sistema endocanabinoide: mais duradoura, portanto há uma redução mais significati-
o 1º representante dessa classe, o rimonabanto, chegou va do risco de complicações associadas à obesidade.
ao mercado brasileiro em 2007 e sua comercialização foi A I Diretriz Brasileira de Obesidade (2008) estabelece,
suspensa em 2008 devido a vários relatos de depressão e ainda, que a seleção de pacientes para cirurgia requer uma
comportamento suicida associados ao seu uso. Seu meca- história de obesidade com duração de, pelo menos, 5 anos,
nismo de ação é o bloqueio da ligação dos endocanabinoi- sem êxito com o tratamento convencional supervisionado
des endógenos aos seus receptores tipo 1 (CB1) no sistema por profissionais qualificados por, no mínimo, 2 anos, e a

ENDOCRINOLOGIA
nervoso central. Reduz a impulsividade, o desejo e o pra- ausência de contraindicações. O paciente também deve ter
zer de comer, além de, possivelmente, apresentar efeitos um grau de risco cirúrgico aceitável, uma boa expectativa
diretos no metabolismo glicídico e lipídico por intermédio de vida pós-operatória, capacidade intelectual mínima para
da interação com outros receptores nos tecidos periféricos entender os cuidados com o tratamento, e bom suporte fa-
(principalmente no tecido adiposo). Na dose de 20mg/dia, miliar.
levou a uma redução de 5 a 8kg em 6 a 12 meses, ou cerca Dentre as contraindicações à realização da cirurgia bari-
de 5% do peso inicial, além de melhora do perfil lipídico, átrica, as mais importantes são abuso de álcool ou drogas,
dos níveis glicêmicos e da sensibilidade à insulina. A me- úlcera péptica ativa e doenças psiquiátricas severas (psico-
lhora dos parâmetros metabólicos observada nos estudos se, depressão grave), história de tentativa de suicídio, risco
cirúrgico extremamente elevado (ASA IV) e impossibilidade
é, aproximadamente, 2 vezes maior do que a esperada
de seguimento. Transtornos psiquiátricos (depressão) não
para o nível de perda de peso obtido, o que sugere que o
são uma contraindicação definitiva, e o paciente pode re-
rimonabanto possua um mecanismo de ação sensibilizador alizar a cirurgia se houver a autorização do psiquiatra após
à insulina, parcialmente independente da perda ponderal. tratamento adequado. Além disso, deve-se afastar, no pré-
Entre seus efeitos adversos, além do transtorno de humor -operatório, a presença de endocrinopatias que possam ser
(depressão), que motivou o fabricante a retirá-lo do mer- responsáveis pelo excesso de peso (exemplo: Cushing).
cado, também foram descritos: ansiedade, náuseas, vômi- A Tabela 10 apresenta as indicações cirúrgicas, de acordo
tos, diarreia, cefaleia e tonturas. Novas drogas dessa classe, com a Portaria nº 1.942/2010 do Conselho Federal de Medicina.
como o taranabanto, estão em desenvolvimento.
Tabela 10 - Indicações para tratamento cirúrgico da obesidade
(Resolução CFM nº 1.942/2010)
9. Cirurgia bariátrica - Pacientes com IMC ≥40kg/m2;
As diversas técnicas cirúrgicas utilizadas no tratamen- - Paciente com IMC entre 35 e 39,9kg/m2 com comorbidades
to da obesidade são chamadas de cirurgias bariátricas. agravadas pela obesidade e que melhoram com a perda de
Elas podem ocasionar modificações restritivas da capa- peso: DM2, apneia do sono, HA, dislipidemia, coronariopatia,
osteoartrites etc.;
cidade gástrica (restritivas) ou alterações que causem
certo grau de má absorção dos alimentos ao longo do - Tratamento clínico insatisfatório supervisionado por, pelo
menos, 2 anos;
trato digestivo (disabsortivas). Há técnicas puramente
- Idade maior de 18 anos. Idosos (>65 anos) e jovens entre 16
restritivas, puramente disabsortivas e mistas (restritivas
e 18 anos podem eventualmente ser operados, mas exigem
+ disabsortivas). precauções especiais e o risco/benefício deve ser muito bem
analisado;
A - Indicações - Não uso de drogas ilícitas ou alcoolismo;
O tratamento cirúrgico está indicado para casos graves - Ausência de quadros psicóticos ou demenciais graves ou
de obesidade, em que o risco de complicações do excesso moderados;
de peso é maior que o risco do próprio procedimento cirúr- - Compreensão, por parte do paciente e familiares, dos riscos
e mudanças de hábitos inerentes à cirurgia e da necessidade
gico, ou seja, IMC ≥40g/m2, ou IMC ≥35g/m2 na presença de
de acompanhamento pós-operatório com a equipe
comorbidades graves que melhorem com a perda de peso. multidisciplinar, em longo prazo;
São consideradas comorbidades: hipertensão arterial, dia- - Risco cirúrgico aceitável;
betes, dislipidemia, doenças articulares degenerativas ou
- Presença de equipe capacitada para os cuidados pré e tran-
outras doenças determinadas pela obesidade com risco de soperatórios e o seguimento pós-operatório: cirurgião treina-
morte. A razão dessa indicação também é reforçada pela do, endocrinologista, nutrólogo/nutricionista, psiquiatra ou
evidência de que o tratamento clínico, em pacientes com psicólogo.
tal grau de obesidade, mesmo que consiga levar a uma boa
perda de peso em curto prazo, acaba sendo insuficiente B - Técnicas cirúrgicas e resultados
para diminuir do risco do paciente, já que 95% dos indiví- A Resolução nº 1.942/2010 do Conselho Federal de
duos acabam recuperando o peso após alguns anos. Com a Medicina também estabelece quais são as técnicas cirúrgi-
cirurgia bariátrica, a perda de peso obtida é mais intensa e cas aceitas para o tratamento da obesidade (Tabela 11).

83
ENDOC RI N O LOG I A

Tabela 11 - Procedimentos cirúrgicos aceitos para tratamento da mesmo grau de obesidade que não receberam tratamento
obesidade (Resolução CFM nº 1.942/2010) cirúrgico. Além disso, tal cirurgia acarreta grande impacto
Tipo de
Procedimento Comentários
sobre patologias associadas, com cura do DM2 e da dislipi-
procedimento demia (hipertrigliceridemia e HDL baixo) em 70 a 85% dos
Método adjuvante no prepa- pacientes, bem como normalização da pressão arterial em
ro pré-operatório de supe- 66% e remissão da apneia do sono em 40 a 85%.
Balão intragás- robesos (IMC >50). Eficácia A mortalidade perioperatória é menor que 1% em cen-
trico. menor que outras técnicas
(menor perda de peso, uso tros de excelência. Entre as complicações mais tardias, as
por no máximo 6 meses). mais importantes são síndrome de dumping (náuseas, mal-
Menor perda de peso que ou- -estar e sudorese após a ingesta de alimentos hipertônicos
Gastroplastia ou ricos em açúcar), hérnia incisional (em 10 a 20%), es-
tros procedimentos, por isso
vertical ban- tenose e úlceras na anastomose gástrica, hérnias internas,
seu uso deve ser reservado
dada (Mason).
para casos excepcionais. deiscência da linha de sutura, cálculos biliares, má absorção
Restritivos Método reversível, com bai- (ferro, ácido fólico, cálcio, vitamina B12 e vitaminas lipos-
Banda gástrica xo risco cirúrgico, mas com solúveis – necessitando de reposição parenteral de ferro e
ajustável. perda de peso menor que B12 permanente em muitos casos), trombose venosa pro-
com outras técnicas.
funda e hipoglicemia hiperinsulinêmica.
Eficácia semelhante à técnica As técnicas mais disabsortivas, como o switch duode-
de Fobi-Capella, com técnica
nal e a cirurgia de Scopinaro, são reservadas para casos de
Gastrectomia cirúrgica mais simples e me-
vertical (sle- nor risco de deficiências de obesidade mais severa (“superobesos”, com IMC acima de
eve). vitaminas e oligoelementos. 50kg/m2) e apresentam uma perda de peso maior (de 75 a
Vem sendo cada vez mais uti- 80% do excesso de peso) com maior taxa de complicações
lizada. (déficits nutricionais por má absorção).
Derivação je-
Proscrita, em vista da alta As técnicas puramente restritivas, como a gastroplastia
Disabsortivos incidência de complicações vertical simples e a colocação de banda gástrica ajustável
junoileal.
metabólicas e nutricionais. no fundo gástrico, apresentam perda de peso menor do
Predominantemente restriti- que as técnicas disabsortivas e mistas (em torno de 20% de
Gastroplastia
va. É a técnica mais utilizada. perda de peso em 1 ano). Além disso, com o uso de cirur-
com Y de Roux
Eficaz (vide texto) e tecnica-
(Fobi-Capella).
mente mais complexa. gias apenas restritivas, há maior recuperação do peso em
longo prazo.
Derivação Predominantemente disab-
biliopancre- sortiva. Menor restrição à in- A Figura 6 ilustra as principais técnicas cirúrgicas utiliza-
ática com gesta alimentar e maior per- das para o tratamento da obesidade.
gastrectomia da de peso, à custa de maior
horizontal risco de deficiências nutricio-
Mistos
(Scopinaro). nais graves.
Derivação bi-
liopancreática Predominantemente disab-
com gastrec- sortiva. Menor restrição à in-
tomia vertical gesta alimentar e maior per-
e preservação da de peso, à custa de maior
do piloro risco de deficiências nutricio-
(duodenal nais graves.
switch).

A técnica mais utilizada é a gastroplastia vertical com


bypass gastrojejunal em Y de Roux (cirurgia de Fobi-
Capella), que combina a restrição de volume gástrico com
uma leve disabsorção (técnica mista, com predomínio do
componente restritivo). Produz uma perda média de 35 a
40% do peso corporal ao longo de 1 ano.
Considera-se sucesso cirúrgico quando o paciente per-
de, ao menos, 50% do excesso de peso (ou seja, da quanti-
dade de peso além do peso ideal – este considerado o ne-
cessário para um IMC = 25kg/m2).
A cirurgia de Fobi-Capella está associada à redução de
mortalidade dos pacientes em longo prazo (24% de redu- Figura 6 - Principais técnicas cirúrgicas para tratamento cirúrgico
ção em 10 anos), em comparação com os pacientes com da obesidade

84
OBESIDADE

C - Controvérsias - Complicações metabólicas, cardiovasculares, respiratórias (ap-


neia do sono), hepáticas (esteatose hepática), osteoarticulares,
Algumas controvérsias que podem ser encontradas na litíase biliar, algumas neoplasias e transtornos psiquiátricos são
literatura, atualmente, e que precisam ser mais bem avalia- mais comuns em indivíduos obesos;
das por estudos bem desenhados com grande número de - O tratamento da obesidade sempre deve incluir recomendações
pacientes, são: para mudanças no hábito alimentar (restrição de 500 a
a) A indicação de cirurgia bariátrica para indivíduos 1.000kcal/dia) e prática de atividade física regular, além
diabéticos com IMC abaixo de 35kg/m2 (entre 30 e 35) – de psicoterapia comportamental em alguns pacientes com

ENDOCRINOLOGIA
dificuldades de adesão;
A American Society for Bariatric and Metabolic Surgery
(ASBMS), por exemplo, defende que se estenda a indica- - A eficácia das mudanças de hábitos de vida é modesta, e >90%
dos obesos voltam a recuperar peso em longo prazo;
ção de cirurgia bariátrica para obesos com IMC entre 30 e
35kg/m2 com comorbidades graves, tendo em vista o efei- - Medicações são indicadas a pacientes com IMC acima de 30kg/m2,
ou com IMC acima de 25kg/m2 na presença de comorbidades
to benéfico da cirurgia sobre a maioria dessas comorbida- importantes, sempre em conjunto com as mudanças do estilo
des, mas ainda não há um consenso a esse respeito entre de vida;
os especialistas; - Sibutramina e orlistate: drogas antiobesidade mais estudadas e
b) A indicação de cirurgia bariátrica em extremos de utilizadas, levando a uma perda de peso média de 5 a 10% do
idade (adolescentes e idosos). Na maioria dos serviços, são peso corporal em 6 a 12 meses. Também têm efeito benéfico
aceitos como limites de idade para realização da cirurgia: sobre as complicações da obesidade, e podem prevenir
>18 e <65 anos. Entretanto, a I Diretriz Brasileira de Obesi- recuperação do peso quando usadas em longo prazo (>1 ano);
dade, formulada pela Associação Brasileira para Estudo da - Constituem contraindicações ao uso da sibutramina: cardiopatia
Obesidade (ABESO) em 2008, recomenda que adolescentes grave (ICC, doença arterial coronariana), hipertensão arterial mal
controlada e transtornos alimentares (anorexia e bulimia);
com obesidade grave e alto risco de complicações decor-
rentes do excesso de peso sejam candidatos à cirurgia bari- - O tratamento cirúrgico da obesidade está indicado para casos
graves, em que o risco de complicações do excesso de peso
átrica, desde que o procedimento seja realizado em centros é maior que o risco do próprio procedimento cirúrgico, ou
de excelência com grande experiência na sua realização. seja, IMC ≥40kg/m2, ou IMC ≥35 na presença de comorbidades
Além disso, recomenda que pacientes com mais de 65 anos, graves, em casos de obesidade com >5 anos de duração, após
mas com boas condições de saúde, sem risco cirúrgico ex- falha do tratamento clínico por pelo menos 2 anos, e na ausência
tremamente alto, e com boa expectativa de vida, também de contraindicações ao procedimento (alcoolismo, drogadição,
transtornos psiquiátricos graves, alto risco cirúrgico);
sejam candidatos potenciais à cirurgia.
- A técnica mais utilizada para tratamento da obesidade é a
cirurgia de Fobi-Capella, um procedimento misto, que reúne
10. Resumo características restritivas (redução do volume gástrico) e
disabsortivas (desvio do trânsito do intestino delgado, com
Quadro-resumo anastomose em Y de Roux). A mortalidade é <1% nas mãos de
- A obesidade é diagnosticada pelo IMC, calculado por meio da cirurgiões experientes, e a perda média é de 35 a 40% do peso
fórmula: peso (em kg) dividido pelo quadrado da altura (em inicial em 1 a 2 anos;
metros). Consideram-se valores normais entre 18,5 e 24,9kg/ - Define-se como “sucesso cirúrgico” uma perda de pelo menos
m2. Define-se sobrepeso na presença de IMC entre 25 e 29,9kg/ 50% do excesso de peso;
m2, e obesidade na presença de IMC ≥30kg/m2. Além disso, - Entre as complicações da cirurgia de Fobi-Capella, podem-se
pode-se classificar a obesidade em 3 graus: leve ou classe I citar dumping, vômitos, hérnia incisional, hérnias internas,
(IMC 30 a 34,9kg/m2), moderada ou classe II (IMC 35 a 39,9kg/ úlceras ou estenose da anastomose gástrica, colelitíase,
m2) e grave ou classe III (IMC ≥40kg/m2); deficiências de vitaminas e minerais (ferro, vitamina B12,
- Em crianças e adolescentes, o diagnóstico de sobrepeso cálcio, folato, vitamina D) e hipoglicemia hiperinsulinêmica;
é realizado pelo percentil de IMC, comparado à média de - As técnicas com maior componente disabsortivo, como a cirurgia
crianças do mesmo sexo e faixa etária. Considera-se normal de Scopinaro e o switch duodenal, podem provocar maior perda de
o percentil até 85; sobrepeso, entre 85 e 95; e obesidade, o peso, mas também produzem maiores complicações (deficiências
percentil acima de 95; nutricionais), por isso são reservadas a pacientes com obesidade
- Nos últimos 20 a 30 anos, tem havido um grande aumento extremamente grave (exemplo: IMC >50 kg/m2).
na prevalência de obesidade entre crianças, adolescentes
a adultos, em todo o mundo, com tendência a continuar
aumentando (podendo dobrar até 2025). Existe, hoje, 1,6
bilhão de adultos com excesso de peso;
- Mais de 40% da população brasileira apresentam excesso de
peso, e, pelo menos, 10% apresentam obesidade;
- A obesidade localizada na região abdominal (androide) é a
que se associa a maior risco de doenças cardiovasculares e de
DM2, notando-se risco elevado em homens com circunferência
abdominal acima de 94cm e mulheres, acima de 80cm;

85
ENDOC RI N O LOG I A

CAPÍTULO

8 Hipotireoidismo
Leandro Arthur Diehl / Rodrigo Antônio Brandão Neto

1. Introdução
O hipotireoidismo é uma das doenças endócrinas mais
comuns, geralmente provocado pela síntese deficiente de
hormônios tireoidianos. Para melhor entendimento da etio-
logia, quadro clínico e tratamento desta e de outras doenças
associadas à tireoide, apresentaremos inicialmente uma bre-
ve revisão sobre a anatomia e a fisiologia dessa glândula.

A - Anatomia da tireoide
A tireoide é o maior órgão humano especializado na
produção de hormônios. A glândula tem origem embrio-
lógica no assoalho da faringe, de onde migra em direção
inferior, se bifurca e forma os 2 lobos tireoidianos, unidos
por um istmo. O trajeto de descida da tireoide forma o duc-
to tireoglosso, cujos remanescentes podem permanecer na
Figura 1 - Localização anatômica da tireoide
vida adulta, formando cistos. O lobo piramidal, um peque-
no apêndice de tecido tireóideo fixado ao istmo (um pouco
à esquerda ou à direita da linha média da laringe), repre- B - Fisiologia da tireoide
senta a extremidade mais caudal do duto tireoglosso e está
Os principais hormônios produzidos pela tireoide são a
presente em cerca de 80% dos adultos.
A tireoide, cujo nome deriva do grego thyreos (escudo), tetraiodotironina ou tiroxina (T4), e a tri-iodotironina (T3).
localiza-se na região cervical anterior. Os lobos têm formato Ambos se originam da adição de radicais de iodo a resídu-
triangular, com até 3cm de largura, 6cm de altura e 1,5cm os de tirosina contidos em uma grande glicoproteína de
de espessura, localizados de cada lado da traqueia. O istmo 660kDa, chamada tireoglobulina (Tg), que é secretada pe-
localiza-se abaixo da cartilagem cricoide. A extremidade in- las células foliculares e armazenada no interior do folículo
ferior da tireoide alcança o 5º ou 6º anel traqueal, enquan- tireoidiano. A Tg corresponde a 70 a 80% do conteúdo pro-
to os polos superiores costumam alcançar a metade da teico da tireoide.
cartilagem tireoide. O peso médio da tireoide em adultos A captação de iodo da corrente sanguínea é realizada de
é de 15 a 20g, variando de 10 a 30g, geralmente um pouco forma ativa pela proteína NIS (Na-I-Simporter), presente na
maior no sexo masculino. É ricamente vascularizada (artéria membrana basal da célula folicular. A enzima responsável
tireóidea superior – ramo da carótida comum ou externa; e pela oxidação dos íons de iodo e sua ligação à Tg é a tireo-
artéria tireóidea inferior – ramo do tronco tireocervical da peroxidase (TPO), presente na membrana apical das células
artéria subclávia) e tem abundante circulação linfática. foliculares. Outra proteína presente na membrana apical da
A tireoide apresenta 2 tipos celulares predominantes: as célula folicular auxilia no transporte do iodo do meio intra-
células foliculares, que formam unidades esféricas chama- celular para a luz do folículo, a pendrina (PDS). Inicialmente,
das folículos, cuja luz é preenchida por coloide (substância são formadas moléculas contendo um resíduo de tirosina
precursora dos hormônios tireoidianos), e as células parafo- (ligado à Tg) e uma molécula de iodo (monoiodotirosina,
liculares (ou células C), que formam ninhos entre os folícu- ou MIT) ou 2 moléculas de iodo (diiodotirosina, ou DIT). O
los e produzem calcitonina e outros neuropeptídios. peróxido de hidrogênio (H2O2) é um cofator essencial para

86
HIPOTIREOIDISMO

a oxidação e a organificação do iodeto, e sua subsequente


ligação à Tg. H2O2 é produzido, na tireoide, por 2 NADPH-
oxidases, a THOX1 e THOX2. A MIT e a DIT são clivadas e
liberadas da Tg pela ação da TPO, fagocitadas e ligadas, de
forma que 2 DIT formam o T4 e 1 DIT + 1 MIT formam o T3.
Uma representação esquemática dos mecanismos de sínte-

ENDOCRINOLOGIA
se dos hormônios tireoidianos é apresentada na Figura 2.

Figura 3 - Eixo hipotalâmico-hipofisário-tireoidiano

O iodo também é um regulador da tireoide, visto que


estados de deficiência crônica do iodo (ingesta menor que
50mcg/dia, quando o recomendável é de 150mcg/dia)
levam ao bócio e ao hipotireoidismo (bócio endêmico).
Felizmente, áreas deficientes de iodo são atualmente raras,
em razão da suplementação obrigatória de iodo no sal de
cozinha e em outros alimentos (como o pão, em alguns pa-
íses). O Brasil, inclusive, é considerado como uma área com
excesso de iodo na dieta nos dias atuais, conforme dados da
Organização Mundial da Saúde (Figura 4).

Figura 2 - Síntese dos hormônios tireoidianos (T3 e T4) na célula


folicular da tireoide

A secreção tireoidiana é composta de 90% de T4 e 5%


de T3, além de pequenas quantidades de Tg e outras mo-
léculas, sendo que 60% do peso molecular de T3 e T4 são
compostos pelo iodo. Estima-se que a secreção normal de
T4 no adulto seja em torno de 85mcg/dia.
O T3 e o T4 circulam no plasma ligados a proteínas car-
readoras, como a globulina ligadora da tiroxina (TBG), e a
albumina. O T4 também é transportado por uma 3ª pro- Figura 4 - Regiões do planeta acometidas pela deficiência endêmi-
teína carreadora, a pré-albumina ligadora de tiroxina, ou ca de iodo (WHO, 2004)
transtiretina. Apenas uma pequena fração desses hormô-
nios (0,04% do T4 e 0,4% do T3) circula no plasma de forma
C - Ações dos hormônios tireoidianos
livre (não ligada a proteínas), e é essa fração a responsável Apesar de ser o hormônio mais abundante nas secre-
pela atividade biológica dos hormônios tireoidianos. ções da tireoide, o T4 não apresenta atividade biológica,
portanto pode ser classificado como um pré-hormônio. O
A regulação da função tireoidiana é mediada, principal-
hormônio biologicamente ativo é o T3.
mente, pelo hormônio hipofisário tireotrofina, ou TSH, que O T3 circulante no plasma provém de 2 fontes:
estimula a síntese e a liberação de hormônios, bem como a) Síntese e secreção tireoidiana.
o crescimento da tireoide. O TSH, por sua vez, é regulado b) Desiodação (ou seja, retirada de um átomo de iodo)
positivamente pelo hormônio hipotalâmico TRH (hormônio do T4, através da ação de enzimas chamadas 5´-desiodases,
liberador de tireotropina) e negativamente pela somatos- presentes em praticamente todos os órgãos e sistemas.
De fato, a conversão periférica de T4 em T3 é responsá-
tatina (hormônio pan-inibidor). O T3 secretado liga-se a re-
vel pela maior parte do T3 circulante. Existem 3 categorias
ceptores no hipotálamo e hipófise, onde inibe a secreção de 5´-desiodases:
de TRH e TSH por feedback negativo, regulando, dessa ma- - Tipo I: mais abundante, converte T4 em T3 e está pre-
neira, a função tireoidiana (Figura 3). sente na maioria dos tecidos;

87
ENDOC RI N O LOG I A

- Tipo II: converte T4 em T3 no interior dos neurônios Em crianças, manifesta-se, principalmente, como retardo
hipotalâmicos e contribui para o mecanismo de feed- do crescimento e do desenvolvimento neuropsicomotor.
back negativo sobre a secreção de TRH e TSH; Em idosos, pode manifestar-se de forma atípica, gerando
- Tipo III: abundante na placenta, converte T4 em T3 demência e insuficiência cardíaca.
reverso (uma molécula isenta de atividade hormonal),
inativando, assim, os hormônios tireoidianos. 3. Epidemiologia
O T3 liga-se a receptores nucleares pertencentes à su- A prevalência de hipotireoidismo é extremamente variá-
vel nas diversas partes do mundo; em locais com deficiência
perfamília dos receptores retinoides (presentes em prati-
de iodo na dieta, esse índice é muito maior. Estima-se que
camente todos os órgãos), regulando a transcrição de se-
a prevalência média de hipotireoidismo em adultos é de 2%
quências gênicas específicas, que vão levar as mais diversas em mulheres e 0,2% em homens. Sua prevalência aumenta
ações biológicas. com a idade: nos EUA, ocorre em cerca de 8% das mulheres
Os principais efeitos do T3 são apresentados na Tabela 1. e 2% dos homens com idade acima de 50 anos. Em pes-
Tabela 1 - Principais efeitos da ligação do T3 aos seus receptores
soas com mais de 65 anos, essa prevalência aumenta para
específicos nos tecidos números maiores que 10% das mulheres em algumas po-
pulações. Um estudo realizado com a população brasileira
Órgão/sistema Efeito do T3
demonstrou prevalência de 9,4% em mulheres de 35 a 44
- Aumento da taxa de metabolismo basal; anos e de 19,1% em mulheres com mais de 75 anos.
Metabolismo - Aumento do consumo de oxigênio;
- Aumento da termogênese. 4. Etiologia
- Amplificação da sensibilidade dos receptores Tabela 2 - Causas de hipotireoidismo
adrenérgicos;
Sistema Causas Origem do problema
- Aumento do tônus simpático;
nervoso Problema localizado na glândula periférica (do-
autônomo - Amplificação dos efeitos das catecolaminas, Primárias
ença da tireoide).
sem aumento da concentração plasmática das
mesmas. Problema localizado na hipófise (deficiência de
Secundárias
TSH).
- Estímulo ao cronotropismo e ao inotropismo
Sistema cardíacos; Problema localizado no hipotálamo (deficiência
cardiovascular Terciárias
de TRH).
- Vasodilatação periférica.
Trato Alguns autores preferem agrupar o hipotireoidismo se-
- Aumento da motilidade gastrintestinal.
gastrintestinal cundário e o terciário sob a denominação hipotireoidismo
Medula óssea - Estímulo direto da hematopoese. central, visto que nem sempre é possível diferenciar as 2
- Aumento da velocidade de contração e etiologias. A Tabela 3 mostra as principais causas de hipoti-
Músculos reoidismo, divididas conforme a classificação anterior.
relaxamento muscular.
- Estímulo à gliconeogênese e glicogenólise; Tabela 3 - Causas de hipotireoidismo
Fígado - Aumento da captação e degradação do Primário
colesterol.
- Tireoidite de Hashimoto;
- Estímulo ao desenvolvimento normal do
Sistema cérebro (na vida fetal e neonatal); - Deficiência de iodo;
nervoso central - Tireoidectomia por bócio ou câncer;
- Estímulo à função cortical.
- Aceleração do turnover proteico e ósseo (com - Ablação com iodo radioativo;
Outros
aumento predominante da reabsorção óssea). - Irradiação externa;
- Tireoidite pós-parto;
2. Definição - Tireoidites subagudas;

O hipotireoidismo é uma síndrome decorrente da ação - Tireoidite de Riedel;


deficiente dos hormônios tireoidianos, a qual pode ser - Defeitos de síntese hormonal;
decorrente de deficiência na síntese (mais comum) ou de - Disgenesia tireoidiana (ectopia, agenesia ou hipoplasia);
resistência à ação desses hormônios. Pode ter uma ampla - Hipotireoidismo neonatal transitório por anticorpos maternos;
gama de manifestações clínicas, variando desde quadros - Excesso de iodo;
oligossintomáticos ou mesmo assintomáticos (hipotireoi- - Drogas antitireoidianas;
dismo subclínico) até um quadro extremamente severo
- Outras drogas: lítio, amiodarona, interferon etc.;
com alta mortalidade: o coma mixedematoso. Pode ocorrer
em todas as faixas etárias, inclusive no período neonatal, e - Outras doenças que acometem a tireoide: sarcoidose, amiloi-
suas manifestações clínicas variam conforme a faixa etária. dose etc.

88
HIPOTIREOIDISMO

Secundário - Forma atrófica: 10% dos casos; a tireoide encontra-se


- Tireoidite de Hashimoto; de volume normal ou reduzido (atrófica), devido à des-
truição do parênquima e sua substituição por tecido
- Deficiência de iodo;
fibrótico.
- Tireoidectomia por bócio ou câncer;
- Adenoma hipofisário; Pacientes que se apresentam inicialmente com bócio
- Hipofisectomia por tumor; podem evoluir, progressivamente, para atrofia tireoidiana

ENDOCRINOLOGIA
- Irradiação craniana; devido ao processo destrutivo autoimune insidioso.
- Doenças infecciosas, granulomatosas ou infiltrativas da hipófise A doença de Hashimoto tem forte agregação familiar,
(tuberculose, sífilis, hemocromatose); com padrão de herança autossômica dominante para a pre-
- Traumatismo cranioencefálico;
sença de autoanticorpos tireoidianos.
A presença de títulos plasmáticos elevados de autoanti-
- Síndrome de Sheehan;
corpos dirigidos contra a glândula tireoide ajuda a confirmar
- Hipofisite linfocítica; o diagnóstico de Hashimoto. Os anticorpos mais frequente-
- Deficiência congênita de TSH por mutação do gene TSH-beta mente encontrados são o antitireoperoxidase (anti-TPO),
(rara); mais sensível (90% dos casos), bem como o antitireoglobu-
- Pan-hipopituitarismo congênito por mutações dos fatores de lina (anti-Tg) e o Na/I Simporter (anti-NIS). Anticorpos con-
transcrição hipofisários (PROP1, LHX3, HESX1); tra o receptor de TSH (TSH-receptor antibodies, ou TRAb)
- Idiopático. também podem estar presentes, embora sejam mais espe-
Terciário cíficos do hipertireoidismo causado pela doença de Graves
- Disfunção hipotalâmica; (que também é uma tireoidite crônica autoimune).
- Doenças diversas do hipotálamo; Pacientes que apresentam quadro inicial de hiperti-
reoidismo autoimune podem evoluir para hipotireoidismo
- Cirurgia ou irradiação da região hipotalâmica;
autoimune, por mudança do tipo de anticorpos produzidos
- Idiopático.
predominantemente (quando, ao invés de TRAb com ação
A imensa maioria dos casos de hipotireoidismo (95%) estimuladora, passam a secretar TRAb com ação inibitória,
é do tipo primário. Em países desenvolvidos (inclusive no por exemplo), assim como o hipotireoidismo autoimune
Brasil), a principal causa dessa síndrome (95%) é a tireoidite pode evoluir também para hipertireoidismo autoimune
crônica autoimune ou tireoidite de Hashimoto. Entretanto, pelo mesmo processo.
quando considerada toda a população mundial, a deficiên- b) Outras tireoidites
cia de iodo (hoje, praticamente inexistente na maioria dos
países desenvolvidos) ainda é a causa mais comum de hipo- As tireoidites subagudas podem desenvolver um qua-
tireoidismo, devido à sua alta prevalência em países pobres, dro de hipotireoidismo durante sua evolução. A evolução
como os da África Subsaariana e Sudeste asiático. clássica da tireoidite subaguda envolve um período inicial
de tireotoxicose (causado pela liberação maciça de T3 e T4
A - Hipotireoidismo primário pré-formados, pela lesão inflamatória aos folículos), segui-
da de uma fase intermediária autolimitada de hipotireoidis-
a) Tireoidite de Hashimoto mo durante a recuperação da glândula (durando de algu-
A tireoidite crônica autoimune (doença de Hashimoto) é mas semanas a alguns meses), culminando finalmente com
de 15 a 20 vezes mais comum no sexo feminino, e sua pre- o retorno ao eutireoidismo na grande maioria dos casos.
valência aumenta com a idade (especialmente após os 60 Entretanto, cerca de 10% dos pacientes podem cursar com
anos, quando sua frequência parece triplicar). Os resulta- hipotireoidismo definitivo.
dos de estudo de Wickham demonstram presença de auto- A tireoidite pós-parto, caracteristicamente, evolui com
anticorpos contra a tireoide em cerca de 10% das mulheres autoanticorpos contra tireoide positivos e hipotireoidismo
adultas e em 2,7% dos homens. Alguns estudos sugerem transitório no período puerperal (até 6 meses pós-parto),
que sua frequência vem aumentando, sobretudo em regi- mas 20 a 30% das pacientes podem evoluir, após 5 ou mais
ões onde a ingesta de iodo é excessiva (>200mcg/dia). anos, para hipotireoidismo definitivo, principalmente aque-
Pacientes com tireoidite de Hashimoto apresentam pro- las com altos títulos de anticorpos anti-TPO.
cesso crônico autoimune contra a tireoide, manifestado na A tireoidite silenciosa (ou indolor) também pode evoluir
forma de extensa infiltração linfocítica na tireoide e destrui- com hipotireoidismo transitório. Tanto a tireoidite indolor como
ção dos tireócitos pela resposta imune celular (citotóxica). a pós-parto são consideradas formas variantes da tireoidite de
Quanto ao aspecto da tireoide, a doença de Hashimoto Hashimoto, com tempo de evolução mais curto (subagudo).
pode se manifestar de 2 formas:
- Forma bociogênica: 90% dos casos; há aumento leve a c) Irradiação externa e ablação com iodo radioativo
moderado da tireoide, que passa a apresentar consis- Pacientes submetidos à radioterapia externa (irradiação
tência firme devido à fibrose e ao infiltrado linfocitário; externa) para tratamento de tumores de cabeça e pescoço

89
ENDOC RI N O LOG I A

evoluem, habitualmente, com hipotireoidismo. Após radio- B - Hipotireoidismo central (secundário e terci-
terapia em região cervical em pacientes com linfoma, cerca ário)
de 25 a 50% desenvolvem hipotireoidismo. Ocorre ainda,
com grande frequência, em radiação de corpo inteiro (pre- O hipotireoidismo central adquirido pode ser causado
cedendo transplante de medula óssea) em pacientes com por qualquer processo neoplásico, infiltrativo, inflamatório
leucemia e anemia aplásica. ou traumático que acometa a hipófise ou o hipotálamo.
A frequência de hipotireoidismo em pacientes submeti- Em adultos, sua causa mais frequente são os tumores da
dos à administração de iodo radioativo (I131) para tratamen- região hipotalâmico-hipofisária (adenomas hipofisários) e
to do hipertireoidismo da doença de Graves é de, aproxi- as consequências do seu tratamento (cirurgia e/ou irradia-
madamente, 70 a 80% em 10 anos; muitos pacientes ficam ção), situação em que a deficiência de TRH/TSH geralmente
hipotireóideos no 1º ano de tratamento, com uma incidên- se acompanha de déficit de outros hormônios hipotalâmi-
cia cumulativa de 1 a 2% ao ano. Ao longo do tempo, prati- cos/hipofisários. A irradiação dessa região provoca hipoti-
camente todos os pacientes submetidos ao procedimento reoidismo central em, pelo menos, 60% dos pacientes. Em
deverão apresentar hipotireoidismo. Essa frequência é bem geral, a deficiência de TSH acontece após a instalação de
menor entre os tratados com radioiodo para bócio multino- deficiência de GH e de gonadotrofinas.
dular (cerca de 10%). A necrose hipofisária pós-parto ou síndrome de Sheehan
já foi uma causa importante de hipotireoidismo central,
d) Tireoidectomias mas, felizmente, parece estar se tornando uma patologia
Pacientes submetidos à tireoidectomia para tratamen- extremamente incomum, devido à melhora dos cuidados
to de doença de Graves desenvolvem hipotireoidismo em obstétricos periparto.
mais de 40% dos casos, ocorrendo, na maioria das vezes, no O hipotireoidismo central congênito é associado a mu-
1º ano após a cirurgia, dependendo da extensão de tecido tações do gene que codifica a subunidade beta do TSH
tireoidiano removida. Já em pacientes submetidos ao pro- (TSH-beta), ou dos genes que codificam os fatores de trans-
cedimento para tratamento do bócio multinodular tóxico, o crição responsáveis pelo desenvolvimento embrionário da
desenvolvimento de hipotireoidismo acontece em apenas hipófise: POU1F1 (PIT1), PROP1, LHX3 e HESX1. Nesse últi-
10 a 15% dos casos. mo caso, a deficiência de TSH também se associa a outras
deficiências (LH, FSH, GH e, eventualmente, ACTH).
e) Drogas
O uso de medicações contendo iodo, como a amiodaro- C - Resistência ao hormônio tireoidiano
na, pode resultar em hipotireoidismo, principalmente em
pacientes com autoimunidade tireoidiana prévia (anti-TPO Uma causa rara de hipotireoidismo é a síndrome da re-
elevado) e em áreas onde a ingesta de iodo é suficiente ou sistência generalizada aos hormônios tireoidianos, na qual
excessiva. No caso da amiodarona, a doença desenvolve-se o T3, apesar de presente em quantidades normais (ou ele-
nos primeiros 18 meses de uso da medicação. vadas), não consegue exercer sua ação biológica sobre os
O carbonato de lítio também pode causar hipotireoidis- tecidos-alvo.
mo, por efeito inibitório predominante sobre a secreção e, A suspeita de resistência acontece quando o paciente
em menor grau, sobre a síntese do hormônio tireoidiano. apresenta níveis elevados de TSH, T3 e T4. A resistência
O risco de hipotireoidismo durante o uso de lítio também pode ser generalizada (quando o paciente apresenta sin-
é maior em pacientes com altos títulos de anticorpos anti- tomas de hipotireoidismo, apesar de altos níveis de TSH e
-TPO. O uso em longo prazo do lítio está associado a de- T4) ou parcial (podendo se manifestar com taquicardia ou
senvolvimento de bócio em 50% dos pacientes e hipotireoi- outros sintomas tireotóxicos, quando a hipófise é resistente
dismo clínico em, pelo menos, 20% dos pacientes, além de ao T3, mas não o coração ou outros órgãos).
hipotireoidismo subclínico em outros 20%. A resistência ao hormônio tireoidiano é causada por mu-
Outra medicação comumente associada com hipotireoi- tações do gene do receptor beta para T3 (THRB). A síndro-
dismo é o alfa-interferon. O desenvolvimento de doença me é familiar em 75% dos casos, com herança autossômica
tireoidiana não parece depender da dose utilizada de in- dominante e penetrância variável. Uma forma de confirmar
terferon, mas tem relação com a duração do tratamento. o diagnóstico é a administração de doses suprafisiológicas
Fenilbutazona e etionamida também podem se associar a de T4 ou T3, observando-se ausência da resposta normal
hipotireoidismo. esperada de supressão do TSH e/ou aumento da globulina
transportadora dos hormônios sexuais (SHBG).
f) Doenças infiltrativas Algumas vezes, pode ser difícil o diagnóstico diferencial
Doenças infiltrativas como sarcoidose, cistinose, hemo- entre a resistência aos hormônios tireoidianos e o raríssi-
cromatose e amiloidose podem, raramente, evoluir com mo adenoma hipofisário secretor de TSH (tireotrofinoma,
hipotireoidismo primário. Muito mais frequentemente, a ou TSHoma), visto que o quadro laboratorial de ambas as
sarcoidose e outras doenças infiltrativas evoluem com hi- patologias é semelhante (T3 e T4 altos, com TSH normal ou
potireoidismo central. elevado). No tireotrofinoma, entretanto, o paciente tende a

90
HIPOTIREOIDISMO

apresentar sinais e sintomas de tireotoxicose, SHBG elevada as. Os pacientes apresentam fácies apática e discretamente
e concentrações elevadas de subunidade alfa, além de res- edemaciada, o cabelo costuma ser fino, podendo ocorrer
posta normal ao uso de doses suprafisiológicas de T3 ou T4. alopecia, e as unhas tornam-se quebradiças (Figura 5).
Outras alterações, como vitiligo e hiperpigmentação,
5. Quadro clínico podem ocorrer em associação a doenças autoimunes e in-
suficiência adrenal, respectivamente. Uma das principais
As manifestações clínicas do hipotireoidismo são decor- manifestações do hipotireoidismo é sob a forma da síndro-

ENDOCRINOLOGIA
rentes da falta de ação dos hormônios tireoidianos e atin- me edematosa generalizada.
gem praticamente todos os órgãos e sistemas. Os sintomas O edema ocorre por acúmulo intersticial de mucopolis-
são atribuídos a 2 eventos fisiopatológicos principais: sacarídeos compostos principalmente de ácido hialurônico
a) Redução do metabolismo basal: em até 35 a 50% em e condroitina sulfato. As características hidrofílicas do áci-
comparação a controles normais, com redução da atividade do hialurônico levam ao aparecimento de um edema mu-
de diversos processos enzimáticos importantes; cinoso, que é o mixedema. Pele infiltrada por esse edema
b) Acúmulo de substâncias glicoproteicas (glicosami- consiste em uma das manifestações típicas do hipotireoi-
noglicanos): no espaço intersticial, levando a alterações dismo, além disso o edema não costuma ser depressível,
de pele e fâneros, que determinam o chamado mixedema, mas visível próximo aos olhos, dorso das mãos, pés e fossa
com possibilidade de compressão de outras estruturas (fei- supraclavicular. Também pode haver a infiltração de outros
xes nervosos, por exemplo). órgãos, ocasionando muitas das anormalidades funcionais
desse distúrbio. O edema de face é o mais comum e ocorre
Em geral, as características do quadro clínico dependem
em torno de 80% dos casos. Já o edema periférico acontece
da duração e intensidade do hipotireoidismo, além da faixa
em 55% dos pacientes com hipotireoidismo por acúmulo de
etária do paciente e da sua sensibilidade à disfunção hor-
glicosaminoglicanos. Derrames (pleural, pericárdico, ascite)
monal.
podem estar presentes em casos mais graves.
Em adultos, a termogênese diminuída no hipotireoidis-
mo leva à intolerância ao frio, o que é característica desses
pacientes; a hipotermia está presente universalmente nos
indivíduos que desenvolvem coma mixedematoso. O meta-
bolismo de proteínas, carboidratos e principalmente dos lí-
pides está alterado; o colesterol total e LDL estão caracteris-
ticamente elevados, associados, muitas vezes, a HDL baixo,
podendo apresentar melhora com a reposição do hormônio
tireoidiano.
Em pacientes idosos, as manifestações clínicas costu-
mam ser mais brandas e atípicas, e o quadro pode ser con-
fundido com depressão ou demência. Anorexia e perda de
peso podem ser as únicas manifestações.
Em crianças em idade escolar, a 1ª manifestação costu-
ma ser a parada do crescimento, que pode estar associa-
da a mau desempenho escolar, apatia, retardo na erupção
dentária, retardo do desenvolvimento sexual e idade óssea
atrasada. Raramente, em casos severos de hipotireoidismo,
pode haver puberdade precoce central em meninas (sín-
drome de van Wyk-Grumbach), devido à secreção extrema-
mente elevada de TSH pela hipófise, com ligação cruzada
aos receptores das gonadotrofinas (já que LH, FSH e TSH
compartilham da mesma subunidade alfa).
As principais alterações decorrentes do hipotireoidismo
serão discutidas a seguir.

A - Pele e fâneros
O fluxo sanguíneo periférico está diminuído, e a pele en-
contra-se fria e pálida, com sudorese diminuída, podendo
ficar amarelada por acúmulo de beta-caroteno. A presença
de pele seca e áspera ocorre em quase todos os pacientes,
decorrente da diminuição da atividade de glândulas sebáce- Figura 5 - Fácies típica de paciente com hipotireoidismo franco

91
ENDOC RI N O LOG I A

B - Sistema cardiovascular F - Sistema nervoso


Os pacientes apresentam bradicardia e diminuição da Há sensação de fraqueza em 99% dos casos. Manifesta-
frequência cardíaca, com redução do débito cardíaco, que ções neurológicas e psiquiátricas são frequentes no hipoti-
frequentemente chega a ser apenas 50% do débito normal. reoidismo; os pacientes apresentam diminuição do metabo-
A diminuição da contratilidade cardíaca é a maior respon- lismo mitocondrial e da presença de receptores tireoidianos
sável pela diminuição do débito, sendo maior que a da FC. no tecido cerebral, que é menos estimulado. Letargia, discur-
Como os pacientes apresentam, concomitantemente, dimi- so lentificado, retardo dos reflexos profundos (com lentifica-
nuição do consumo de oxigênio, ocorre que a diferença ar- ção da fase de relaxamento dos reflexos), perda de memória
teriovenosa de oxigênio está somente ligeiramente diminu- e sonolência também são sintomas comuns a essa síndrome.
ída. Hipertensão arterial (principalmente diastólica) pode Os estudos realizados em tais pacientes não demonstram
ocorrer por aumento da resistência vascular sistêmica em diminuição de função cognitiva, com alguns apresentando
alguns casos, embora não seja causa frequente de hiper- capacidade intelectual preservada, mas com o raciocínio len-
tensão. Pacientes em coma mixedematoso invariavelmen- tificado. Ataxia cerebelar e vertigem também são descritas
te encontram-se hipotensos. Efusões pericárdicas são co- com maior frequência nesses pacientes e, caso apresentem
muns, mas raramente comprometem a função ventricular, anemia megaloblástica, podem apresentar as alterações
manifestando-se na forma de diminuição da amplitude dos neurológicas características da deficiência de vitamina B12.
complexos QRS ao eletrocardiograma. Surdez pode ser uma complicação do hipotireoidismo. A voz
torna-se rouca por edema em região das cordas vocais, com
C - Manifestações gastrintestinais os pacientes desenvolvendo fala lentificada.
Os pacientes com tireoidite de Hashimoto podem ter
Anorexia ocorre com a diminuição das necessidades um quadro incomum de confusão mental, chamada de en-
energéticas. A diminuição da motilidade gastrintestinal cefalopatia de Hashimoto, apresentando defeito de perfu-
ocasiona o aparecimento de constipação e, por vezes, dis- são cerebral em tomografia de emissão de pósitrons e anti-
tensão gasosa. Em não tratados, pode ocorrer, tardiamen- corpos anti-TPO positivos no liquor.
te, macroglossia. Os pacientes apresentam ganho de peso
discreto (3 a 5kg), que é mais associado ao acúmulo de flui- G - Alterações lipídicas e hidroeletrolíticas
do que de gordura. Caso haja associação à gastrite atrófica
autoimune, os pacientes apresentam acloridria, e, em 25% Dislipidemia, com aumento do colesterol total e LDL e
dos casos, ocorre anemia megaloblástica. maior número de partículas LDL oxidadas são a regra, por
menor captação hepática de colesterol. Muitas vezes, essas
D - Sistema respiratório alterações se associam à redução do HDL e, eventualmente,
ao aumento dos triglicérides. Hiper-homocisteinemia ocor-
Apneia do sono é mais habitual nesses pacientes, com re com frequência, contribuindo para um risco potencial-
um estudo demonstrando prevalência de 7%; na maioria mente aumentado de coronariopatia nesses pacientes.
dos casos, é secundária à macroglossia, embora exista con- A deficiência de T3 provoca diminuição do clearance de
trovérsia a respeito. Dispneia e fadiga são queixas comuns, água, com consequente hiponatremia dilucional, apesar de
que podem ser associadas tanto ao comprometimento car- a secreção de hormônio antidiurético (ADH) se encontrar,
diovascular quanto ao da musculatura respiratória. Pode geralmente, normal. Hiperuricemia e hipocalcemia tam-
ocorrer hipoventilação, e, em casos de coma mixedemato- bém podem ser observados, bem como elevação das tran-
so, os pacientes podem evoluir com insuficiência respirató- saminases e CPK total.
ria hipercápnica.
H - Alterações hematológicas
E - Manifestações musculoesqueléticas
Os pacientes com hipotireoidismo, devido à diminuição
Uma das principais manifestações do hipotireoidismo metabólica, apresentam produção reduzida de eritropo-
são as mialgias, cãibras e, por vezes, miopatia com aumento etina, portanto uma anemia normocrômica e normocítica
de enzimas musculares. Os pacientes hipotireóideos apre- que, na maioria das vezes, é leve, mas pode ficar um pou-
sentam alterações em testes funcionais de força muscular co mais pronunciada devido à retenção de água. Anemia
em quase 40% dos casos; esses sintomas são agravados ferropriva pode ocorrer em mulheres devido à menorragia.
pela exposição ao frio e artralgias. A síndrome do túnel do Anemia megaloblástica ocorre em 10 a 25% dos pacientes,
carpo pode ocorrer por compressão dos nervos por muco- quando há associação à gastrite autoimune; nesse caso, os
polissacarídeos. Os pacientes, ainda, apresentam diminui- pacientes apresentam macrocitose. Porém, deve-se salien-
ção do turnover ósseo e, por vezes, resistência à ação do tar que pacientes com hipotireoidismo podem apresentar
PTH, mas o aparecimento de osteoporose é menos comum macrocitose, mesmo na ausência de deficiência de vitamina
que no hipertireoidismo. B12 e ácido fólico.

92
HIPOTIREOIDISMO

I - Alterações endocrinológicas e reprodutivas Um estudo brasileiro, publicado em 2010, que incluiu


adultos de 18 a 60 anos, mostrou que a faixa normal do
Podem ocorrer irregularidades menstruais (principal-
TSH, nessa população, ficou entre 0,43 e 3,24mU/L; com
mente, menorragia), anovulação e infertilidade. A globulina
base nesses dados, os autores do estudo sugeriram como
transportadora dos hormônios sexuais (SHBG) está frequen-
limite superior do normal, para adultos brasileiros, o valor
temente diminuída no hipotireoidismo. Hiperprolactinemia
de 3,5mU/L, não muito diferente do valor atualmente em
ocorre em 30 a 40% dos casos, devido ao hiperestímulo do
uso (em torno de 4mU/L).
TRH à secreção de TSH e prolactina pela hipófise, raramente

ENDOCRINOLOGIA
Indivíduos muito idosos (acima de 80 anos) podem apre-
evoluindo com galactorreia, mas sendo suficiente para cau-
sentar normalmente valores de TSH mais elevados, sendo
sar alterações menstruais. A libido encontra-se diminuída
que, nessa população, o percentil 97,5 do TSH corresponde a
em ambos os sexos.
um valor de aproximadamente 7,5mU/mL, e 70% dos octo-
genários com TSH >4,5 apresentam valores de TSH que po-
6. Diagnóstico dem ser considerados normais para sua faixa etária (até 7,5).
Os sintomas de hipotireoidismo são bastante inespecífi-
cos, razão pela qual a confirmação laboratorial sempre deve B - Screening populacional
ser obtida antes de prescrever o tratamento (a única exce- A dosagem de TSH é recomendada, nos Estados Unidos,
ção é a suspeita de coma mixedematoso). na forma de screening populacional, para todos os indivídu-
A confirmação laboratorial do hipotireoidismo é relativa- os com 35 anos ou mais, em intervalos de 5 anos. No Brasil,
mente simples. O teste mais importante é a dosagem do TSH, a triagem populacional de disfunção tireoidiana com coleta
que deve ser o 1º teste solicitado na suspeita de disfunção de TSH não é recomendada, devido a questões de custo-
tireoidiana. Pequenas alterações na função da tireoide pro- -benefício. A recomendação é que o TSH seja solicitado em
duzem grandes variações do TSH, visto que a secreção deste todos os pacientes com sintomas sugestivos ou em grupos
varia de forma logarítmica em resposta a variações da con- de alto risco de hipotireoidismo, como usuários de lítio,
centração de T4. Estudos mostram que, para cada variação amiodarona ou outras drogas que influenciam na função
de 2 vezes no T4 plasmático, o TSH varia em 100 vezes (Figura tireóidea; portadores de outras doenças autoimunes (por
6). Por isso, sua dosagem é o método mais sensível para con- exemplo, diabetes mellitus tipo 1) e pessoas com história
firmar, inclusive, disfunções tireoidianas muito leves. É pre- familiar de tireopatia. Também é recomendável o screening
ferível o uso de métodos ultrassensíveis (3ª geração), que com TSH em grávidas no 1º trimestre de gestação, visto que
detectam concentrações de TSH na faixa de 0,01 a 0,02mU/L. qualquer grau de hipotireoidismo nessa fase pode predis-
por à toxemia gravídica.

C - Diagnóstico do hipotireoidismo
No hipotireoidismo primário (por doença da glândula ti-
reoide), o TSH está invariavelmente elevado. Entretanto, no
hipotireoidismo central (menos de 5% dos casos de hipoti-
reoidismo), o TSH pode se encontrar em níveis reduzidos,
inadequadamente normais para os baixos níveis de T4 ou,
até mesmo, discretamente elevados (moléculas com ativi-
dade biológica reduzida).
O T4 livre também é muito utilizado na avaliação da
função tireoidiana. A dosagem de T4 livre é preferível à do-
Figura 6 - Relação entre as concentrações plasmáticas de T4 livre sagem de T4 total, pois este último sofre interferência dos
e de TSH níveis de proteínas carreadoras (TBG e albumina). O T4 livre
costuma estar diminuído no hipotireoidismo, inclusive no
A - Valores de referência do TSH de origem central (Figura 7).

Existe uma grande discussão, na literatura, sobre quais


seriam os níveis normais de TSH. O limite superior do nor-
mal (ou seja, o valor de TSH abaixo do qual se encontram
95 a 97,5% dos indivíduos) varia entre os diferentes estu-
dos, entre 2,5 a 7mU/L. Em geral, a faixa de referência mais
aceita fica entre 0,4 e 4mU/L, com alguma variação depen-
dendo da idade do paciente, população estudada e método
laboratorial utilizado. Figura 7 - Diagnóstico laboratorial do hipotireoidismo

93
ENDOC RI N O LOG I A

O T3 pode ajudar a confirmar o hipotireoidismo, mas não a) Dose: a dose média de reposição é de 1,2 a 1,8mcg/
tem muita utilidade, visto que só diminui em casos graves. kg/dia de LT4 para adultos com hipotireoidismo primário. Em
Alterações discretas nos níveis de quaisquer exames de indivíduos com menos de 50 anos e sem evidência de doença
função tireoidiana devem ser confirmadas com a repetição cardíaca, pode-se iniciar o tratamento já com dose plena de
do exame, antes do início de qualquer terapêutica. reposição (75 a 125mcg/dia em mulheres, ou 100 a 150mcg/
dia em homens). Porém, a pacientes com idade acima de 50
D - Outros exames complementares a 60 anos ou com doença coronariana, deve-se iniciar o tra-
O achado de anticorpos antitireoidianos elevados (anti- tamento com dose menor, em torno de 12,5 a 25mcg/dia,
-TPO e/ou anti-Tg) estabelece o diagnóstico de tireoidite com aumentos posteriores em intervalos não menores que
de Hashimoto em pacientes com hipotireoidismo primá- 1 a 2 semanas, conforme tolerância à medicação, até atin-
rio. Anti-TPO elevado está presente em 90 a 95% dos casos gir a dose necessária para normalização do TSH. Embora a
de Hashimoto, enquanto anti-Tg está elevado em cerca de dose média de reposição seja de cerca de 1,6mcg/kg/dia, há
60%. Por isso, anti-TPO é o 1º anticorpo a ser solicitado na grande variação entre os indivíduos. Em geral, a necessidade
investigação etiológica do hipotireoidismo. Contudo, esses de T4 costuma ser maior em homens e em pessoas jovens,
anticorpos não são específicos e podem ser observados, comparados a mulheres e pessoas de mais idade (Tabela 5).
com frequências variáveis, em indivíduos sem qualquer evi- b) Absorção: apenas 70 a 80% da dose de LT4 são nor-
dência de doença tireoidiana (Tabela 4). malmente absorvidas por via oral, e essa absorção pode ser
prejudicada pela ingesta alimentar. Por isso, deve-se reco-
Tabela 4 - Prevalência de anticorpos antitireoidianos na popula- mendar a medicação em jejum, pelo menos 30 a 60 minu-
ção normal e em pacientes com tireoidite de Hashimoto e doença tos antes do café da manhã. Outras causas de redução na
de Graves absorção da LT4 são estados mal absortivos ou o uso con-
População normal Hashimoto Graves comitante de outras medicações (colestiramina, sulfato fer-
Anti-TPO 10 a 15% 80 a 99% 45 a 80% roso, sucralfato, carbonato de cálcio, hidróxido de alumínio,
Anti-Tg 3% 35 a 60% 12 a 30%
omeprazol, suplementos à base de soja). Os anticonvulsi-
vantes e a rifampicina podem acelerar o metabolismo hepá-
Anti-NIS 0 25% 20%
tico da levotiroxina. Hiperestrogenismo (gravidez ou uso de
TRAb 1 a 2% 6 a 60% 70 a 100% estrógenos orais) aumenta a TBG, o que demanda aumento
da dose de levotiroxina.
A ultrassonografia será útil quando houver anormalida- c) Controle: após 6 semanas de reposição, deve-se re-
des estruturais da tireoide (bócio, nodulações) ou quando a alizar nova dosagem do TSH. Se este permanecer elevado,
etiologia do hipotireoidismo for duvidosa. O achado de bó- deve-se aumentar a dosagem da LT4 em incrementos de
cio leve a moderado, com hipoecogenicidade da glândula, 12,5 a 25mcg. É importante respeitar o intervalo mínimo de
é característico da doença de Hashimoto. Outros achados 4 a 6 semanas para nova coleta de TSH após cada mudan-
possíveis: textura heterogênea (com formação de pseudo- ça de dose da LT4, pois é esse o tempo mínimo necessário
nódulos) e aumento do fluxo vascular.
para que o TSH atinja novo equilíbrio. Caso seja necessária
Outras alterações laboratoriais que podem ser encon- reavaliação laboratorial em tempo menor que esse, pode-
tradas no hipotireoidismo são hipercolesterolemia (associa- -se usar a dosagem de T4 livre (que varia em 1 a 2 semanas
da ou não à hipertrigliceridemia), anemia (em geral, nor- após mudança de dose da LT4).
mocrômica normocítica), aumento de transaminases e CK d) Metas: o objetivo do tratamento é a normalização do
total, hiperprolactinemia, elevação da creatinina e do ácido TSH e a resolução dos sintomas de hipotireoidismo. Embora
úrico e hipocalcemia leve, bem como proteinúria discreta. o valor de referência mais aceito para o TSH seja de 0,4 a
Também se podem observar cardiomegalia (por derrame 4mU/L, alguns autores sugerem que a obtenção de níveis
pericárdico) e derrame pleural na radiografia de tórax, e ainda mais baixos de TSH (entre 0,5 e 2mU/L) poderia ser
baixa voltagem do complexo QRS ao ECG. mais fisiológica e reduzir mais eficientemente os sintomas
do hipotireoidismo. É importante lembrar que, em casos
de hipotireoidismo de longa duração ou em pacientes mais
7. Tratamento idosos, o TSH pode demorar até 6 meses para normalizar-se.
O objetivo terapêutico é manter o eutireoidismo clínico Nesses casos, é preferível o ajuste da dose de LT4 com base
e bioquímico. A medicação de escolha para o tratamento na dosagem de T4 livre (a ser mantido na metade superior da
do hipotireoidismo é a levotiroxina sódica (LT4), que possui faixa normal) nos primeiros 3 a 6 meses de tratamento.
maior estabilidade e meia-vida em comparação à liotironi- e) Cuidados gerais: acertada a dose da medicação, as
na (T3). A meia-vida da LT4 é de 7 dias e pode ser usada consultas podem ser espaçadas (semestrais ou anuais).
em dose única diária, enquanto o T3 tem meia-vida de 12 Também se deve recomendar ao paciente evitar a troca
horas, exigindo uso em 2 a 3 tomadas diárias, além de de- de marcas comerciais da LT4, pois pode haver alguma di-
terminar maior variação dos níveis séricos de T3. ferença de potência entre as diferentes apresentações, ou

94
HIPOTIREOIDISMO

então que se colha um novo TSH 6 semanas após a troca de Outro risco é o tratamento com dose excessiva de T4,
formulação para eventual ajuste de dose, caso seja preciso. que pode levar ao hipertireoidismo subclínico, o que acon-
tece em cerca de 20% dos usuários de levotiroxina e os ex-
Tabela 5 - Apresentações comerciais de levotiroxina disponíveis no põe a risco aumentado de osteoporose e arritmias.
mercado brasileiro h) Por quanto tempo tratar? Na maioria dos pacien-
Marca Dosagens disponíveis (mcg) tes com hipotireoidismo por doença de Hashimoto, a de-
Puran T4 25, 50, 75, 88, 100, 112, 125, 150, 175, 200 ficiência hormonal é definitiva, exigindo reposição de LT4

ENDOCRINOLOGIA
Synthroid 25, 50, 75, 88, 100, 112, 125, 137, 150, 175, 200 contínua. Entretanto, cerca de 10 a 25% dos pacientes com
Hashimoto podem ter regressão espontânea para eutireoi-
Levoid 25, 38, 50, 75, 88, 100, 112, 125, 150, 175, 200
dismo, especialmente aqueles com pouco tempo de doen-
Euthyrox 25, 50, 75, 88, 100, 112, 125, 137, 150, 175, 200
ça. Portanto, nos pacientes com história de Hashimoto há
Tiroidin 100 menos de 1 a 2 anos, bem como na tireoidite pós-parto,
Levotiroxina hipotireoidismo induzido por drogas e naqueles que nor-
25, 50, 75, 88, 100, 112, 125, 150, 175, 200
(genérica) malizam TSH com doses muito baixas de LT4, pode ser inte-
ressante suspender a LT4 após 6 a 12 meses de tratamento
f) Situações especiais: raramente, são necessárias do-
para avaliar a necessidade de continuar a reposição, devido
ses maiores que 200mcg/dia ou 2mcg/kg/dia para nor- à possibilidade de regressão espontânea para eutireoidis-
malizar o TSH, mas, caso sejam requeridas doses maiores, mo. Nos pacientes com hipotireoidismo pós-radioiodo, pós-
deve-se investigar falta de adesão ao tratamento (causa -operatório, congênito ou central, por outro lado, a reposi-
mais comum), uso concomitante de outros medicamentos, ção de LT4 é sempre vitalícia.
síndromes disabsortivas ou, mais raramente, resistência ao
hormônio tireoidiano.
Quanto aos pacientes em que a reposição de hormônio 8. Hipotireoidismo subclínico
tireoidiano é realizada devido ao hipotireoidismo central, Hipotireoidismo subclínico é uma condição comum, ca-
o TSH não serve como parâmetro de tratamento. Nesses racterizada por níveis discretamente aumentados de TSH em
casos, o controle da doença deve ser feito baseado na dosa- vigência de T4 livre (e T3) normal. Sua prevalência é estimada
gem de T4 livre, a fim de manter o T4 livre no limite superior em torno de 5% da população geral (8% das mulheres e 3%
da normalidade. dos homens), mas pode exceder 20% entre mulheres com
Crianças geralmente precisam de doses maiores por mais de 60 anos. É mais comum em indivíduos com outras
peso corporal (até 15mcg/kg/dia em neonatos). A Tabela doenças autoimunes (diabetes mellitus tipo 1). Muitas vezes,
6 mostra as doses recomendadas por kg de peso corporal representa um estágio intermediário na evolução de uma ti-
em pacientes pediátricos. Com o envelhecimento, a dose reoidite crônica autoimune, em que o paciente está passan-
necessária de LT4 tende a diminuir. do do eutireoidismo para o hipotireoidismo franco; por isso,
é extremamente comum encontrar anti-TPO e/ou anti-Tg
Tabela 6 - Dose diária de levotiroxina recomendada em diferentes elevados em pacientes com hipotireoidismo subclínico.
faixas etárias A evolução para hipotireoidismo franco (TSH >10mU/L,
Idade Dose diária T4 livre baixo) acontece na taxa de 2,5 a 5% ao ano se ape-
0 a 3 meses 10 a 15μg/kg nas o TSH está elevado na ausência de anti-TPO elevado,
3 a 6 meses 8 a 10μg/kg e com frequência 2 a 3 vezes maior (5 a 18% ao ano) se
6 a 12 meses 6 a 8μg/kg há elevação do TSH com títulos elevados de anti-TPO. O
hipotireoidismo subclínico é um diagnóstico laboratorial
1 a 5 anos 5 a 6μg/kg
apesar de alguns pacientes apresentarem sintomas leves
6 a 12 anos 4 a 5μg/kg
como depressão, perda de desempenho intelectual, fadiga,
>12 anos 2 a 3μg/kg infertilidade e hipercolesterolemia. Além disso, vários estu-
Crescimento e puberdade completos 1,6μg/kg dos sugerem que os pacientes portadores de hipotireoidis-
Observação: doses ajustadas conforme exames laboratoriais. mo subclínico apresentam maior risco de doença arterial
coronariana e mortalidade cardiovascular, especialmente
g) Comorbidades: o médico deve estar atento à possi- com níveis de TSH acima de 10mU/L. Por isso, muitos au-
bilidade de coexistência de adrenalite autoimune assinto- tores julgam inadequada a denominação dessa condição.
mática (insuficiência poliglandular autoimune), visto que o Nomenclaturas propostas para essa condição incluem “in-
início da reposição com levotiroxina aumenta agudamente suficiência tireoidiana mínima” ou “disfunção tireoidiana
o clearance de cortisol e pode desencadear ou agravar a leve”.
insuficiência adrenal nesses pacientes. Na suspeita de in- Há muitas controvérsias sobre a avaliação e o manejo
suficiência adrenal, esta deve ser investigada e tratada com desse problema. Recomenda-se sempre repetir os exames
reposição de glicocorticoides antes do início do tratamento de função tireoidiana em pacientes com alterações leves
do hipotireoidismo. desses exames, antes de tomar qualquer decisão terapêu-

95
ENDOC RI N O LOG I A

tica. O achado de anti-TPO elevado pode ajudar a basear a A - Manifestações clínicas


decisão de tratamento.
O tratamento é feito com levotiroxina, em doses meno- As manifestações constituem-se no extremo do hipoti-
res que no hipotireoidismo franco (ou seja, de 25 a 75mcg/ reoidismo descompensado. A bradicardia ocorre em quase
dia ou até 1mcg/kg/dia). A decisão de tratar ou não com le- todos os pacientes; a diminuição do drive ventilatório resulta
votiroxina deve ser individualizada. Existe alguma polêmica em insuficiência respiratória do tipo ventilatório, com hiper-
a respeito de que pacientes deveriam ser tratados, pois são capnia e hipoxemia. Em apresentações extremas, encontram-
escassas as evidências de o tratamento com LT4 produzir -se fraqueza muscular dos músculos respiratórios, apneia
benefícios em pacientes com hipotireoidismo subclínico. obstrutiva do sono e efusões pleurais. Distúrbios miopáticos,
Alguns estudos indicam melhora em sintomas subjetivos com alterações em biópsia muscular revelando atrofia e per-
(função psicomotora) em cerca de 25 a 30% dos pacientes da de até 50% da massa muscular podem ocorrer nesses pa-
tratados com levotiroxina, enquanto outros estudos não cientes paralelamente a alterações de enzimas musculares,
mostram benefício algum. particularmente CPK total, muitas vezes em níveis superio-
Entretanto, há evidências de que a presença de hipoti- res a 500U/L. Insuficiência renal secundária à rabdomiólise
reoidismo subclínico, com TSH ≥7mU/L, em pacientes com é possível. Hipoglicemia pode ocorrer de forma associada e
65 a 79 anos de idade, aumenta o risco de doença cardio- ser responsável parcialmente pelas alterações neurológicas e
vascular, razão pela qual vários autores defendem a reposi- mentais. A motilidade do trato gastrintestinal também está
ção de LT4 nesse perfil de pacientes. Uma situação especial prejudicada, com diminuição do esvaziamento gástrico. O
é a gestação, única situação em que o tratamento do hipo- megacólon mixedematoso representa uma condição poten-
tireoidismo subclínico é obrigatório. cialmente grave, porém tardia na evolução. A história prévia
De forma resumida, as indicações atualmente mais acei- de hipotireoidismo é, quase invariavelmente, presente, e é
tas para tratamento do hipotireoidismo subclínico são as
comum a descontinuação da levotiroxina pelo paciente.
expostas na Tabela 7, a seguir:
Tabela 7 - Indicações de tratamento no hipotireoidismo subclínico B - Diagnóstico
Tratar A grande dificuldade para o diagnóstico do coma mi-
- TSH maior que 10mU/L; xedematoso é que os critérios diagnósticos são um tanto
- Gravidez ou desejo de engravidar; inespecíficos, além de não haver marcadores laboratoriais
- Presença de coronariopatia ou DCV significativa; adequados. O risco de coma mixedematoso, curiosamente,
- Idade entre 65 e 79 anos com TSH ≥7.
não guarda relação com a gravidade da alteração dos níveis
plasmáticos de TSH e/ou T4 livre, portanto não há nível de
Considerar tratamento
TSH, além do qual se pode confirmar ou excluir a presença
- Mulheres com mais de 60 anos; dessa complicação. Além disso, o coma mixedematoso con-
- TSH aumentando com o tempo; figura uma emergência endócrina, devendo o tratamento
- Presença de bócio; ser instituído prontamente, sem aguardar os resultados de
- Presença de anticorpos antitireoidianos; exames laboratoriais para sua confirmação.
- Sintomas sugestivos de hipotireoidismo (fadiga, depressão etc.); Dessa forma, o diagnóstico de coma mixedematoso é
- Hipercolesterolemia (elevação do LDL-colesterol); clínico, devendo ser estabelecido na presença de 3 altera-
ções-chave:
- Disfunção ovulatória e infertilidade feminina.
- Alteração do estado mental: com pacientes que se
Observar
apresentam sonolentos e letárgicos (ocasionalmente,
- Ausência de sintomas, com anti-TPO negativo, sem risco cardio- dormindo mais de 20 horas ao dia), mas eventualmen-
vascular aumentado e sem desejo de engravidar. te com delírios ou mesmo coma;
- Hipotermia ou distúrbio da termorregulação: com
9. Coma mixedematoso todos os pacientes apresentando algum grau de hipo-
Representa a manifestação mais extrema do hipotireoi- termia (por vezes, com temperatura de até 23°C) ou
dismo, ocorrendo em pacientes com deficiência severa de ausência de febre na presença de infecções graves;
hormônios tireoidianos, de longa duração e sem tratamen- - Presença de fator precipitante.
to adequado. É um quadro grave, com alta mortalidade (até
80% em séries antigas; atualmente, em torno de 50%). Nem As infecções, conforme comentado, são o principal fator
todos os pacientes se apresentam comatosos, embora al- precipitante, em especial, a pneumonia e a sepse de foco
gum grau de alteração do nível de consciência seja encon- urinário. Eventos coronarianos e cerebrovasculares podem
trado na totalidade. Há, quase invariavelmente, algum fator também precipitar a sua ocorrência, assim como a exposi-
precipitante causando alteração na homeostasia, como in- ção ao frio e o uso de medicações que deprimam o sistema
fecções, uso de drogas e pós-operatório. Ocorre quase sem- nervoso central (ansiolíticos, benzodiazepínicos, anticon-
pre nos meses de inverno, após exposição ao frio. vulsivantes).

96
HIPOTIREOIDISMO

A Tabela 8 cita os principais fatores precipitantes do manutenção), embora a absorção de drogas seja diminuída
coma mixedematoso. devido ao edema da mucosa e redução acentuada da moti-
lidade gastrintestinal.
Tabela 8 - Fatores precipitantes do coma mixedematoso
Glicocorticoides devem ser administrados rotineira-
- Hipotireoidismo não tratado; mente, para prevenção de insuficiência adrenal, na dose de
- Hipotermia (exposição ao frio ambiental); 100mg de hidrocortisona inicial, seguidos de 50 a 100mg, a
- Infecção; cada 8 horas (ou equivalente), até haver melhora clínica e

ENDOCRINOLOGIA
- Acidente vascular cerebral; normalização dos níveis de cortisol.
- Trauma; O tratamento das condições e complicações associadas
- Cirurgias;
está sumarizado na Tabela 9.
- Queimaduras; Tabela 9 - Tratamento do coma mixedematoso
- Hemorragia gastrintestinal. Hipotermia - Aquecimento com cobertores;
- Medicações: Hipoventilação - Considerar ventilação mecânica;
· Anestesia; - Solução salina hipertônica para manter Na+
· Barbitúricos; Hiponatremia
>120mEq/L;
· Narcóticos;
· Analgésicos; Hipoglicemia - Glicose a 5 ou 10% IV;
· Sedativos; Hipotensão - Fluidos/vasopressores;
· Tranquilizantes; Insuficiência - Hidrocortisona 100mg IV (inicial) e 50 a
· Beta-bloqueadores; suprarrenal 100mg IV, a cada 8h;
· Diuréticos; - T4: 300 a 600mcg inicial; depois, 100mcg/
· Fenotiazinas; dia;
Terapia
· Fenitoína;
hormonal - T3: 10mcg a cada 8h (até paciente
· Rifampicina;
· Amiodarona; consciente).
· Carbonato de lítio.
10. Hipotireoidismo neonatal
C - Tratamento
A deficiência de hormônios tireoidianos é a causa mais
O tratamento do coma mixedematoso baseia-se na re- comum de retardo mental prevenível, atingindo em torno
posição de hormônio tireoidiano e no tratamento das com- de 1 a cada 3.500 ou 4.000 recém-nascidos.
plicações associadas. Trata-se de uma emergência médica,
o que significa que, uma vez feito o diagnóstico de coma A - Etiologia
mixedematoso com base nas manifestações clínicas, não se
Há várias etiologias possíveis para o hipotireoidismo
deve esperar o resultado das dosagens laboratoriais para
detectado em recém-nascidos, sendo importante o diag-
iniciar o tratamento, pois a mortalidade dessa condição é
nóstico correto para orientar o tratamento mais adequado,
altíssima devido a lesão de órgãos-alvo (30 a 60%).
prevenindo assim as complicações (principalmente, neu-
A reposição hormonal deve ser feita com altas doses de
rológicas) da falta de hormônio tireoidiano nesse período
LT4 (de preferência, por via parenteral), juntamente com o
da vida. Podem-se dividir as etiologias do hipotireoidismo
tratamento do fator precipitante e com as medidas de su-
neonatal em 2 grandes grupos:
porte (glicocorticoides pelo risco de insuficiência suprarre-
nal reflexa, aquecimento), em unidade de terapia intensiva. a) Causas transitórias
A maior parte da literatura recomenda o uso de terapia O uso materno de medicações contendo grande quanti-
IV com bolus de 200 a 500mcg (ou 2mcg/kg) de levotiroxina dade de iodo (amiodarona, antissépticos iodados), na ges-
para restaurar os níveis de hormônios tireoidianos sistêmi- tação ou no parto, pode causar hipotireoidismo transitório,
cos o mais rápido possível, seguido de dose de manutenção visto que a síntese hormonal da tireoide pode ser inibida
com 50 a 100mcg/dia IV. A reposição pode passar a ser feita agudamente pela exposição a grandes quantidades de iodo
por VO após a normalização do TSH e do T4 livre. (efeito de Wolff-Chaikoff). A passagem transplacentária de
A adição de pequenas doses de T3, em torno de 10mcg autoanticorpos contra o receptor de TSH (TRAb) com ação
IV a cada 8 horas, é sugerida por alguns autores para uso nas inibitória também pode ocorrer em mães com doença ti-
primeiras 48 horas de tratamento ou até o paciente recupe- reoidiana autoimune e altos títulos de anticorpos. Em geral,
rar o nível de consciência. Tal conduta parece ser adequada o hipotireoidismo nessas situações regride em até 6 meses.
para pacientes jovens sem doença coronariana ou arritmias.
No Brasil, não existe a apresentação de LT4 ou T3 para b) Causas permanentes
uso IV, por isso é muito utilizada a administração de LT4 por O hipotireoidismo congênito definitivo é encontrado
sonda nasogástrica (500mcg inicial e 50 a 100mcg/dia de em cerca de 1:4.000 nascidos vivos, correspondendo ao

97
ENDOC RI N O LOG I A

distúrbio endócrino inato mais comum. Entre as causas, as custo, detectará tanto os casos de hipotireoidismo primário
mais comuns são os defeitos da embriogênese tireoidiana quanto central.
(disgenesias). A forma mais frequente de disgenesia tireoi-
diana, observada em 60% dos casos, é a ectopia da tireoide, D - Tratamento
em que a glândula está anormalmente localizada na região
Uma vez confirmado o diagnóstico, está indicado o iní-
sublingual na maioria das vezes. A agenesia completa da ti-
reoide (atireose) e a hipoplasia da glândula são outros de- cio da reposição diária de LT4 antes do bebê completar 1
feitos do desenvolvimento tireoidiano. mês de vida, na dose inicial de 10 a 15mcg/kg/dia.
Defeitos na síntese ou secreção de hormônios tireoidia- Com o diagnóstico precoce e o tratamento adequado,
nos (disormonogênese) são observados em 10 a 20% dos a maioria das crianças evolui livre de sequelas cognitivas
casos de hipotireoidismo congênito, geralmente cursam significativas.
com bócio e podem ser provocados por mutações de di-
versos genes, como os da TPO, da Tg e da PDS (causando a 11. Síndrome do eutireóideo doente
síndrome de Pendred, caracterizada por hipotireoidismo e
surdez congênita). A avaliação da função tireoidiana em pacientes com do-
Na idade pré-escolar ou escolar, as causas mais comuns ença crônica, ou intercorrência aguda grave, tende a produ-
de hipotireoidismo são a tireoidite de Hashimoto (maioria) zir resultados de difícil interpretação. Pacientes gravemen-
e a deficiência de iodo. te enfermos ou em jejum prolongado reduzem a conversão
periférica de T4 em T3 e aumentam a síntese de T3 reverso
B - Manifestações clínicas (uma forma biologicamente inativa do hormônio tireoidia-
Em recém-nascidos, o hormônio tireoidiano desempe- no), um ajuste fisiológico supostamente dirigido para a re-
nha um papel crucial no desenvolvimento do sistema ner- dução do metabolismo basal e proteção do paciente duran-
voso central. Portanto, o hipotireoidismo congênito, se não te a intercorrência grave. O painel bioquímico encontrado
tratado pronta e adequadamente, pode levar ao retardo nessa situação é o seguinte: TSH normal (ou baixo em casos
mental severo (antigamente conhecido como cretinismo). muito graves), T4 normal (ou baixo) e T3 baixo, com T3 re-
Os sintomas do hipotireoidismo neonatal podem ser verso aumentado. Esse quadro é conhecido como síndrome
inespecíficos e tardios; por isso, é feita a triagem de rotina do eutireoide doente; não requer tratamento com levoti-
em recém-nascidos, com a dosagem de TSH em sangue ob- roxina e geralmente regride após a reversão da doença de
tido do calcanhar (teste do pezinho) após as primeiras 48 base. Redução do TSH e do T4 indica mau prognóstico.
horas de vida. São manifestações de hipotireoidismo neo- Além disso, em um doente grave, várias medicações
natal: icterícia prolongada, sonolência, constipação, hérnia (dopamina, corticoides, furosemida, heparina etc.) podem
umbilical, apatia, rouquidão, dificuldade de amamentação, interferir nos resultados dos exames de função tireoidiana.
hipotonia, falta de ganho ponderoestatural e atraso da ida- Dessa forma, estes só devem ser colhidos em um doente
de óssea. Entretanto, a maioria dos neonatos não apresenta crítico quando há forte suspeita de disfunção tireoidia-
manifestações clínicas detectáveis ao nascimento, razão por na; caso contrário, tal avaliação deve ser adiada. Na fase
que é fundamental a triagem laboratorial para diagnóstico de recuperação (convalescência) de uma doença grave, o
precoce e tratamento imediato do hipotireoidismo, preve- paciente costuma apresentar uma elevação transitória do
nindo, assim, as sequelas graves e incapacitantes decorren-
TSH, que dura algumas semanas, sem a necessidade de um
tes da falta de T3 durante o desenvolvimento cerebral.
tratamento específico.
C - Diagnóstico
Na triagem neonatal de hipotireoidismo congênito, cos-
12. Resumo
tuma-se dosar o TSH no sangue capilar obtido do calcanhar Quadro-resumo
do recém-nascido e colhido em papel filtro, sendo a coleta - O hipotireoidismo é uma síndrome decorrente da falta de
realizada de 48 a 72 horas após o nascimento. Considera-se produção ou de ação dos hormônios tireoidianos, que deve
alterado o TSH >25mU/L nessa ocasião. Os neonatos com ser sempre confirmada pela mensuração dos hormônios
exames alterados são convocados para repetir o exame e tireoidianos, já que os sintomas podem ser inespecíficos e ter
confirmar o diagnóstico. uma gravidade muito variável. A dosagem de TSH é o 1º e mais
Um problema da triagem neonatal realizada no Brasil, importante exame a ser realizado nos pacientes;
que utiliza apenas a dosagem de TSH, é que pode não de- - A tireoidite crônica autoimune (tireoidite de Hashimoto) é a
tectar os casos (raros) de hipotireoidismo central, em que causa mais comum em países desenvolvidos (95% dos casos).
o TSH pode estar baixo, normal ou discretamente elevado. Atinge 8 a 10 mulheres para cada homem, e é mais comum
Por isso, em alguns países, a triagem neonatal é feita usan- após os 60 anos. O autoanticorpo antitireoperoxidase (anti-
do a dosagem tanto de TSH como de T4 (considerado baixo TPO) é o mais sensível para a confirmação da tireoidite de
Hashimoto;
se <6mcg/dL), pois essa forma de triagem, apesar do maior

98
HIPOTIREOIDISMO

- A causa mais comum de hipotireoidismo, em todo o mundo,


ainda é a deficiência de iodo, em consequência da sua
importância em países extremamente pobres;
- Os pacientes apresentam diminuição do metabolismo basal e
mixedema, acarretando manifestações em múltiplos órgãos e
sistemas;
- O valor normal do TSH ainda é alvo de alguma controvérsia,

ENDOCRINOLOGIA
mas a maioria dos estudos sugere que o limite superior do
normal esteja entre 3,5 e 4,0mU/L;
- Idosos (>80 anos) normalmente apresentam valores mais
elevados de TSH, que não indicam doença. Em octogenários,
considera-se como limite superior do normal, para o TSH, o
valor de 7,5mU/L;
- Nos pacientes com hipotireoidismo sintomático, a dose de
reposição de levotiroxina fica em torno de 1,2 a 1,8mcg/
kg/dia. Pode-se iniciar o tratamento já com a dose plena
de reposição em indivíduos jovens (<50 anos) sem doença
cardíaca; entretanto, em idosos ou cardiopatas, deve-se iniciar
com doses mais baixas (12,5 a 25mcg/dia) e aumentar a dose
progressivamente (a cada 1 a 2 semanas), até atingir a dose
necessária;
- O ajuste da dose de levotiroxina deve ser feito por meio do nível de
TSH, colhido 4 a 6 semanas após início do tratamento ou mudança
de dose da levotiroxina. O objetivo é manter TSH na metade
inferior do normal (entre 0,5 e 2mU/L);
- A maioria dos casos de hipotireoidismo por Hashimoto (75 a 90%)
exige reposição de levotiroxina permanente, assim como todos
os casos de hipotireoidismo pós-tireoidectomia e após irradiação
cervical ou uso de iodo radioativo (I131). Algumas situações em que
pode ocorrer hipotireoidismo transitório são tireoidite subaguda,
tireoidite pós-parto, tireoidite indolor e hipotireoidismo
secundário ao uso de lítio;
- O coma mixedematoso apresenta alta mortalidade (80% em
algumas séries) e constitui uma emergência endócrina, devendo
seu diagnóstico ser feito com base nos achados clínicos do
paciente, e o tratamento iniciado antes mesmo da confirmação
laboratorial do hipotireoidismo;
- Os 3 achados cardinais do coma mixedematoso são alteração
do estado mental, hipotermia/disfunção termorregulatória e
presença de fator precipitante. Os principais fatores precipitantes
são infecções, uso de medicamentos (benzodiazepínicos), AVC e
exposição ao frio. O tratamento é feito com levotiroxina IV em
altas doses, glicocorticoides, aquecimento e medidas de suporte,
em unidade de terapia intensiva;
- O tratamento do hipotireoidismo subclínico é controverso,
pois as evidências de benefício são poucas. A maioria dos
autores recomenda tratamento em gestantes ou mulheres
que desejam engravidar, TSH >10mU/L, TSH >7 em pacientes
com 60 a 79 anos e alto risco cardiovascular, cardiopatas,
altos títulos de autoanticorpos antitireoidianos, presença de
sintomas (depressão), dislipidemia e infertilidade feminina;
- O hipotireoidismo congênito é a causa mais comum de
retardo mental prevenível e atinge 1:4.000 neonatos. A causa
mais comum é a ectopia tireoidiana. A maioria dos bebês
é assintomática ao nascimento. O diagnóstico é feito pela
dosagem de TSH no sangue do calcanhar (teste do pezinho). O
tratamento deve ser iniciado no 1º mês de vida para prevenir
sequelas cognitivas.

99
ENDOC RI N O LOG I A

CAPÍTULO

9 Hipertireoidismo
Leandro Arthur Diehl / Rodrigo Antônio Brandão Neto

1. Definições Tabela 2 - Principais causas de tireotoxicose


Tireotoxicose com hipertireoidismo
Tireotoxicose é a síndrome clínica decorrente do ex- - Doença de Graves (bócio difuso tóxico);
cesso de hormônios tireoidianos, de qualquer etiologia. - Bócio multinodular tóxico;
Hipertireoidismo é um termo reservado para a tireotoxicose - Adenoma tóxico da tireoide (bócio uninodular tóxico, ou
atribuída ao excesso de produção de hormônios pela glân- doença de Plummer);
dula tireoide. Apesar de muitas vezes serem usados como - Hipertireoidismo iodo-induzido (fenômeno de Jod-Basedow);
sinônimos, esses termos não têm o mesmo significado, já - Tumores trofoblásticos produtores de hCG (mola hidatiforme,
que existem causas de tireotoxicose sem hipertireoidismo coriocarcinoma);
(quando a fonte dos hormônios tireoidianos em excesso - Adenoma hipofisário secretor de TSH (hipertireoidismo
não é a hiperprodução pela tireoide, como na tireotoxicose secundário);
factícia, por exemplo). - Hipertireoidismo familiar não imune;
A causa mais comum de tireotoxicose é a doença de - Hipertireoidismo neonatal transitório;
Graves, que responde por até 80% dos casos. Suas manifes- - Resistência aos hormônios tireoidianos – forma parcial
tações podem acometer diversos órgãos e sistemas; o sis- (hipofisária).
tema cardiovascular e o sistema nervoso simpático são os Tireotoxicose sem hipertireoidismo
mais afetados. Caso o hipertireoidismo não seja controlado, - Tireotoxicose factícia;
os pacientes podem evoluir para diversas complicações em - Tireoidites com tireotoxicose transitória (subaguda, indolor,
longo prazo (especialmente, cardíacas e esqueléticas). pós-parto);
- Tecido tireoidiano ectópico (struma ovarii, metástase
2. Etiologia funcionante de carcinoma da tireoide).

As várias causas de tireotoxicose podem ser classifica-


3. Fisiopatologia
das, de um ponto de vista fisiopatológico, em 2 grandes
grupos (Tabela 1):
A - Tireotoxicose com hipertireoidismo (capta-
Tabela 1 - Classificação das causas de tireotoxicose ção de radioiodo aumentada)
Captação de iodo
Grupo Características radioativo em 24h a) Doença de Graves
(RAIU)
Esta é a causa mais comum de hipertireoidismo (em es-
Há aumento da síntese
Tireotoxicose
de hormônios pela ti-
pecial nos adultos jovens) e representa cerca de 70 a 80%
com hipertireoi- Aumentada dos casos. Tem incidência cerca de 10 vezes menor que
reoide (tireoide hiper-
dismo
funcionante) a tireoidite de Hashimoto (ou seja, 23 casos por 100.000
Não há aumento da pessoas/ano), o que determina uma prevalência de 0,4 a
Tireotoxicose síntese de hormônios 1% da população. É de 5 a 10 vezes mais comum no sexo
sem hipertireoi- pela tireoide (tireoide Reduzida ou ausente
dismo normo ou hipofuncio- feminino, principalmente entre os 20 e os 40 anos, e bem
nante) menos encontrada em crianças e na etnia negra. O risco
de desenvolver doença de Graves se associa não apenas à
A Tabela 2 cita as principais etiologias da tireotoxicose. suscetibilidade genética (com alguma agregação familiar),

100
HIPERTIREOIDISMO

mas também a fatores ambientais, como o tabagismo e o os linfócitos CD4+. Outros imunomoduladores, como os
estresse psicossocial. usados no tratamento da esclerose múltipla, podem au-
Também conhecida como doença de Basedow (na mentar o risco de doença de Graves. Apesar de o TRAb
Europa) ou de Basedow-Graves, ou, simplesmente, bó- apresentar papel central na fisiopatologia (encontrado
cio difuso tóxico, foi descrita pelo médico inglês Robert em títulos séricos elevados em 70 a 100% dos pacientes
Graves em 1835, que identificou a associação de bócio, com Graves), outros anticorpos podem estar presentes.
exoftalmia e palpitações. Representa a extremidade de

ENDOCRINOLOGIA
O anticorpo anti-TPO pode ser encontrado em 45 a 80%
um amplo espectro de apresentações clínicas produzi- dos pacientes, e o anticorpo antitireoglobulina, em 12 a
das pelas doenças autoimunes da tireoide (que também 30% dos casos.
incluem a tireoidite de Hashimoto, a tireoidite indolor e
a tireoidite pós-parto). Portanto, assim como a tireoidite b) Bócio multinodular tóxico
de Hashimoto, a doença de Graves é uma tireoidite crô- Esta é uma etiologia importante de hipertireoidismo
nica autoimune. Enquanto a fisiopatologia da doença de em faixas etárias mais avançadas (>50 anos). Geralmente,
Hashimoto está mais relacionada à imunidade celular, a o bócio multinodular tóxico é resultado da longa evolução
doença de Graves caracteriza-se pela resposta imune hu- (durante décadas) de um bócio multinodular atóxico (euti-
moral, com produção de um anticorpo da classe IgG diri- reoide), no qual 1 ou mais nódulos se tornam autônomos
gido contra o receptor de TSH (TSH-Receptor Antibody, ou (ou seja, ativos sem o estímulo do TSH) com o passar dos
TRAb). Esse anticorpo liga-se ao receptor de TSH, nas célu- anos. A transição de um bócio multinodular atóxico para
las foliculares da tireoide, e mimetiza a ação estimulatória tóxico se deve, na maior parte das vezes, ao surgimento de
do TSH, ocasionando aumento da atividade de adenilcicla- uma mutação somática ativadora do receptor de TSH, que
se, potencialização da sinalização intracelular pelo AMP- ocorre no interior do nódulo, tornando as células foliculares
cíclico e, consequentemente, hipersecreção hormonal e do adenoma permanentemente ativadas. Como são neces-
crescimento tireoidiano difuso (hipertrofia e hiperplasia). sários vários anos para que essa mutação ocorra, a maioria
Provavelmente, a produção do TRAb se deve a um defeito dos casos de bócio multinodular tóxico ocorre em indivídu-
na ação dos linfócitos T supressores. os com idade acima de 50 ou 60 anos, geralmente com bó-
A reação autoimune pode envolver outros órgãos, como cios volumosos, que podem inclusive crescer inferiormente
as órbitas, onde o edema e a inflamação dos músculos ex- e preencher o mediastino superior (bócio mergulhante)
traoculares e do tecido conjuntivo retro-orbitário provo- (Figura 1).
cam a oftalmopatia de Graves, e o tecido celular subcutâ- Estima-se que 10% dos pacientes com bócio multino-
neo, onde a infiltração linfocitária, o edema e o acúmulo dular atóxico evoluam para hipertireoidismo em um pe-
de glicosaminoglicanos levam à dermopatia ou mixedema. ríodo de 7 a 12 anos. Geralmente, a tireotoxicose só se
Ao contrário do hipertireoidismo, induzido por uma respos- manifesta se o nódulo autônomo tiver mais que 2,5 a 3cm
ta autoimune do tipo humoral, as demais manifestações de diâmetro.
(oftalmopatia e dermopatia) parecem ser mediadas pela Devido à importância do bócio multinodular, o hiperti-
resposta imune celular. A doença de Graves, como a tireoi- reoidismo é mais comum em pacientes idosos do que em
dite de Hashimoto, pode estar associada a outras doenças adultos jovens. Estima-se que, acima dos 60 anos, 0,5 a 3%
autoimunes: diabetes mellitus tipo 1, doença de Addison, dos indivíduos apresentem algum grau de tireotoxicose, es-
vitiligo, anemia perniciosa, alopecia, miastenia gravis, do- pecialmente em regiões iodo-deficientes.
ença celíaca etc. Também é mais comum em mulheres, sendo mais pre-
Há associação da doença de Graves com HLA-DR3 e valente em áreas deficientes de iodo (onde é mais comum
DQ5 (DQA1*0501), enquanto o DRB1*0701 é protetor. a ocorrência de bócio multinodular). A deficiência de iodo
Determinados polimorfismos do antígeno 4 do linfócito T e o tabagismo são os fatores ambientais mais associados
citotóxico (CTLA-4) também predispõem à doença. O es- ao surgimento da doença, embora possam existir alguns fa-
tresse, representado por eventos vitais adversos (como tores constitucionais (genéticos) ainda pouco esclarecidos,
divórcio, luto ou desemprego), parece ter importância como mutações no gene MNG. Sobrecarga de iodo (frutos
como um fator iniciador da doença, visto que muitos pa- do mar, amiodarona, contrastes radiológicos iodados) pode
cientes relatam aparecimento da doença logo após es- precipitar o aparecimento de tireotoxicose num bócio mul-
ses eventos. O fumo aumenta o risco de oftalmopatia. tinodular até então eutireoide (atóxico); por isso, é reco-
A terapia antirretroviral altamente ativa (HAART) usada mendável que pacientes com bócio multinodular evitem a
na AIDS foi associada ao maior aparecimento de doença exposição a altas doses de iodo dietético ou medicamen-
de Graves, provavelmente devido aos seus efeitos sobre toso.

101
ENDOC RI N O LOG I A

neonatal. Esse fenômeno é autolimitado, com resolução do


hipertireoidismo após um período de, aproximadamente, 6
meses (tempo necessário para o neonato eliminar os anticor-
pos maternos). O risco elevado de hipertireoidismo neonatal
transitório pode ser previsto a partir da detecção de altos
títulos de TRAb na circulação materna durante a gestação.
Outras causas de hipertireoidismo são a doença trofo-
blástica gestacional e os tumores de células germinativas,
que incluem a mola hidatiforme, o coriocarcinoma e alguns
tumores testiculares. Nesses casos, ocorre uma secreção
extremamente alta de gonadotrofina coriônica humana –
hCG, um hormônio que tem similaridade estrutural com o
TSH (ambos compartilham a mesma subunidade alfa, com
diferenças apenas na subunidade beta). O hipertireoidismo
ocorre via estimulação direta do receptor de TSH na glându-
Figura 1 - Bócio multinodular mergulhante (intratorácico) la tireoide pela ligação cruzada do hCG em concentrações
elevadas.
O hipertireoidismo também pode ser mediado por TSH
c) Bócio uninodular tóxico
(hipertireoidismo central ou secundário), nos casos de se-
O bócio uninodular tóxico ou adenoma folicular tóxico creção aumentada de TSH pelos raríssimos adenomas hi-
é provocado por mutações ativadoras esporádicas no gene pofisários produtores desse hormônio, chamados de tire-
do receptor do TSH ou do seu sinalizador intracelular, pro- otrofinomas ou TSHomas (os quais correspondem a <1%
teína G, levando à ativação constitutiva de um clone celular, dos adenomas da hipófise). A maioria desses tumores são
que se torna autônomo (ou seja, permanentemente ativa- macroadenomas, e quase todos os pacientes evoluem para
do, de maneira independente do estímulo pelo TSH). É uma bócio e tireotoxicose; 30% apresentam hiperprolactinemia
causa menos prevalente de hipertireoidismo e ocorre em e galactorreia, e 40% já indicam sintomas decorrentes da
indivíduos mais jovens (dos 30 aos 40 anos). A tireotoxicose própria presença do tumor (cefaleia, alterações visuais).
é mais provável em nódulos com diâmetro maior que 3cm. A resistência aos hormônios tireoidianos na sua forma par-
Embora o bócio uninodular tóxico seja muitas vezes cha- cial (quando ocorre apenas na hipófise) diminui o feedback ne-
mado de “doença de Plummer” – essa nomenclatura, inclu- gativo que as concentrações aumentadas de T3 deveriam
sive, é consagrada pelo uso –, é interessante lembrar que ter sobre o eixo hipotálamo-hipófise. Com isso, a secreção
a doença originalmente descrita por Plummer foi o bócio hipofisária de TSH continua a aumentar, e o hipertireoidis-
multinodular tóxico, não o bócio uninodular. mo pode ocorrer.
d) Outras causas de tireotoxicose com hipertireoidismo
A mutação ativadora do receptor do TSH que ocorre no
B - Tireotoxicose sem hipertireoidismo (capta-
bócio nodular tóxico (de forma esporádica, em células so-
ção diminuída de radioiodo)
máticas) pode também acometer células germinativas, de A tireotoxicose factícia é uma causa frequente de ex-
maneira familiar, determinando uma tireotoxicose de início cesso de hormônio tireoidiano e pode ser provocada pela
precoce e de difícil controle, que caracteriza o hipertireoi- ingestão acidental ou intencional de T3, T4 ou derivados de
dismo familiar não autoimune. Deve-se suspeitar desse dis- hormônios tireoidianos (como o tiratricol, TRIAC ou ácido
túrbio quando existem vários casos de tireotoxicose, com tiroacético). Uma fonte, infelizmente, ainda comum de ti-
início precoce, dentro da mesma família. A herança é autos- reotoxicose factícia em nosso meio, apesar do seu uso ser
sômica dominante, e os pacientes não apresentam eleva- vetado pelo Ministério da Saúde e pelo CFM, é o uso de
ção dos níveis de autoanticorpos antitireoidianos. T3 ou tiratricol em “fórmulas” para emagrecer. Deve-se
O hipertireoidismo iodo-induzido (fenômeno de Jod- sempre suspeitar do uso de hormônio tireoidiano exógeno,
Basedow) é incomum, mas possível após o uso de dose alta principalmente em mulheres com algum transtorno psiqui-
de iodo, como após o uso de radiocontraste iodado (em to- átrico, ou na ausência de bócio. Quando a tireotoxicose é
mografias, por exemplo) ou com o uso de amiodarona ou causada por consumo excessivo de T3 exógeno, o paciente
xaropes para tosse contendo iodeto de potássio (KI). Esse pode apresentar TSH suprimido com T4 livre baixo, estando
tipo de tireotoxicose é mais frequentemente observado em o T3 sérico elevado. Há alguns anos, um surto de tireotoxi-
regiões cronicamente deficientes de iodo ou em indivíduos cose foi provocado no meio-oeste dos Estados Unidos pelo
com bócio multinodular. consumo de tireoide bovina na carne industrializada (tireo-
A passagem transplacentária de anticorpos TRAb ma- toxicose do hambúrguer). Nesses casos, os pacientes carac-
ternos para os recém-nascidos de mães portadoras da do- teristicamente apresentam captação extremamente dimi-
ença de Graves é associada ao hipertireoidismo transitório nuída de radioiodo e tireoglobulina sérica diminuída, uma

102
HIPERTIREOIDISMO

característica que ajuda a distinguir a tireotoxicose factícia Sintoma %


dos processos inflamatórios da tireoide (tireoidites), em Edema de membros inferiores 35
que se observa captação reduzida de iodo radioativo com
Hiperdefecação sem alterações de características
níveis sanguíneos elevados de tireoglobulina. 33
das fezes
As tireotoxicoses transitórias podem ser provocadas por
Diarreia 8 a 23
processos infecciosos e/ou inflamatórios da glândula tireoi-
de (as chamadas tireoidites), onde a ruptura dos folículos Anorexia 9

ENDOCRINOLOGIA
libera uma grande quantidade de hormônios tireoidianos Constipação 4
pré-formados (T3 e T4) na corrente sanguínea. Essa infla- Ganho de peso 2
mação aguda ou subaguda da tireoide pode ser causada Sinal %
por processos infecciosos virais, como na tireoidite suba- Taquicardia (FC >90bpm) 68 a 100
guda, em que ocorrem febre, mal-estar, dor e hipersensi- Bócio 87 a 100
bilidade na região tireoidiana. Além disso, esse processo
Alterações cutâneas 97
pode ocorrer sem dor nas afecções autoimunes, como a
Tremores 66 a 97
tireoidite pós-parto e a tireoidite indolor. Já as inflamações
causadas pela terapia com radioiodo e pelo uso de amio- Sopro tireóideo 77
darona (tireotoxicose induzida pela amiodarona tipo 2) Sinais oculares 71
geralmente são autolimitadas. Como não há aumento da Fibrilação atrial 10 a 19
síntese de hormônios tireoidianos, os pacientes podem ser Esplenomegalia 10
tratados com anti-inflamatórios e drogas que antagonizam Ginecomastia 10
os efeitos periféricos do excesso de hormônios tireoidianos
Eritema palmar 8
(beta-bloqueadores), mas não há indicação do uso de anti-
tireoidianos de síntese (metimazol ou propiltiouracil). Uma das principais alterações é o aumento do meta-
Uma etiologia incomum de tireotoxicose é a presença bolismo basal e da termogênese, que pode chegar a 60 a
de tecido tireoidiano ectópico, como em alguns tumores de 100%, ocasionando perda de peso, intolerância ao calor e
ovário (teratomas) que se diferenciam em tecido tireoidia- sudorese profusa, além de aumento do apetite. Entretanto,
no funcionante (struma ovarii), ou em grandes metástases
a perda de peso induzida pelo excesso de hormônio tireoi-
de tumores malignos da tireoide (~1% dos casos de câncer
diano é atribuída, em grande parte, à perda de tecido mus-
foliculares da tireoide). Nesses casos, a fonte do excesso
cular (massa magra), em vista do alto turnover proteico, o
de hormônios tireoidianos pode ser localizada usando a
que gera queixas frequentes, como fadiga e fraqueza mus-
Pesquisa de Corpo Inteiro (PCI) com iodo radioativo.
cular (principalmente proximal).

4. Quadro clínico a) Idosos

Os sinais e sintomas da tireotoxicose dependem da se- Pacientes idosos apresentam quadros mais discre-
veridade e duração da doença e da idade do paciente. Os tos, com menos irritabilidade ou intolerância ao calor. O
achados clínicos são semelhantes entre as diferentes etio- bócio pode ser discreto ou inexistente. Por outro lado,
logias de tireotoxicose, embora existam algumas particula- perda de peso e anorexia são mais evidentes. A tireo-
ridades exclusivas da doença de Graves. A Tabela 3 aborda toxicose pode manifestar-se de maneira atípica, com
as principais manifestações da tireotoxicose e a frequência depressão grave, apatia, astenia, fraqueza muscular e
de seu aparecimento. emagrecimento, sem sinais adrenérgicos – o chamado
Tabela 3 - Manifestações clínicas da tireotoxicose
hipertireoidismo apático.
Alterações cardiovasculares (insuficiência cardíaca e
Sintoma %
arritmias supraventriculares, principalmente a taquicardia
Nervosismo 59 a 99
sinusal e a fibrilação atrial) também podem dominar o qua-
Sudorese 65 a 90
dro clínico em indivíduos de mais idade, e a presença de
Hipersensibilidade ao calor 73 a 89 taquicardia em repouso é um sinal muito útil para o diag-
Palpitações 75 a 89 nóstico.
Fadiga 80 a 88
b) Crianças
Perda de peso 52 a 85
O hipertireoidismo na infância é causado, em 90% das
Queixas cardíacas 82
vezes, pela doença de Graves, e pode manifestar-se com
Dispneia 75 a 81
agitação, dificuldade de concentração e queda do rendi-
Fraqueza 70
mento escolar (cabendo diagnóstico diferencial com distúr-
Aumento de apetite 32 a 65 bio de déficit de atenção). Além disso, pode haver hiper-

103
ENDOC RI N O LOG I A

fagia, insônia, taquicardia, tremores e perda de peso. Há dade ocular (Figura 3).
bócio em 98% das vezes.
A seguir, serão descritas as principais manifestações da
tireotoxicose, nos diversos aparelhos.

A - Pele e anexos
Costuma estar quente, macia e com sudorese profusa,
devido à termogênese aumentada, e essas características
podem sugerir, por si só, o diagnóstico. As unhas tornam-se
amolecidas, e pode ocorrer onicólise (separação das unhas
do seu leito distal), caracterizando as chamadas unhas de
Plummer. O cabelo torna-se fino e esparso e, caso outras
doenças autoimunes estejam associadas, vitiligo e alopecia
areata podem aparecer.
No caso de pacientes com doença de Graves, pode ha-
ver uma dermopatia infiltrativa denominada de mixedema
pré-tibial ou dermopatia de Graves, descrita como uma
placa infiltrada, violácea ou avermelhada, com poros pro-
fundos e evidentes que lhe dão o aspecto de “casca de la-
ranja” (peau d´orange), localizada na face anterolateral das
pernas. Ocorre em 1 a 2% dos casos de doença de Graves,
sempre associada à oftalmopatia, e geralmente em pacien-
tes com hipertireoidismo grave e altos títulos de TRAb.

Figura 3 - Fácies típica de paciente com hipertireoidismo por do-


ença de Graves: notar o bócio moderado e a exoftalmia bilateral

C - Sistema cardiorrespiratório
Ocorre aumento da sensibilidade tecidual às catecola-
minas, gerando manifestações clínicas decorrentes da ati-
vação do sistema nervoso simpático, mas sem aumento das
concentrações séricas de catecolaminas. A hiperatividade
adrenérgica leva a taquicardia em repouso, palpitações e
Figura 2 - Unhas de Plummer vasodilatação generalizada (com redução da resistência
vascular periférica e queda da pressão arterial diastólica).
B - Olhos Há, ainda, hipertensão sistólica, por aumento do débito
cardíaco, levando ao aumento da pressão de pulso. As alte-
As manifestações oculares da tireotoxicose de qualquer rações cardiovasculares, associadas à perda de tecido mus-
etiologia se devem à hiperativação adrenérgica, determi- cular esquelético e ao aumento da necessidade tecidual de
nando retração palpebral. Podem aparecer na forma de oxigênio, levam a uma acentuada intolerância ao exercício,
olhar fixo, aumento da fenda palpebral (“olhar assustado”) com cansaço e dispneia aos mínimos/moderados esforços.
e lidlag (retardo na descida da pálpebra superior quando o Podem ocorrer arritmias supraventriculares, como a ta-
paciente olha para baixo, expondo a conjuntiva ocular aci- quicardia sinusal e a fibrilação atrial, que evolui, em 10 a
ma da íris). 40% dos casos, para embolia arterial. Fibrilação atrial acon-
Alguns achados oculares, entretanto, são exclusivos dos tece em 20% dos pacientes idosos com tireotoxicose. Por
pacientes com doença de Graves: proptose ocular (exoftal- outro lado, cerca de 20% dos casos de fibrilação atrial re-
mia), sinais inflamatórios da órbita e alterações da motrici- cente em idosos se devem à tireotoxicose. A maioria dos

104
HIPERTIREOIDISMO

pacientes apresenta átrio esquerdo aumentado, o que musculatura respiratória, com alto risco de morte. O trata-
confere maior probabilidade de evento embólico. Embora mento do hipertireoidismo geralmente previne novos qua-
ainda controverso, é recomendado que se realize a anti- dros de paralisia.
coagulação em todos os pacientes com hipertireoidismo e Os pacientes com hipertireoidismo desenvolvem oste-
fibrilação atrial. Na insuficiência cardíaca de alto débito, po- oporose mais precoce e severa e têm maior risco de fratu-
dem ocorrer diminuição de fração de ejeção e insuficiência ras, devido ao aumento do turnover ósseo (principalmente
cardíaca sistólica. da reabsorção). O tratamento da tireotoxicose melhora a

ENDOCRINOLOGIA
densidade óssea nos pacientes jovens, mas, com frequên-
cia, não é suficiente para reverter a perda de massa óssea
em pacientes idosos (principalmente em mulheres pós-me-
nopausadas). A calciúria está frequentemente aumentada,
porém a hipercalcemia é incomum, mesmo associada aos
efeitos do hormônio tireoidiano na desmineralização óssea.

F - Alterações hematológicas
Figura 4 - Arritmia cardíaca mais comum no paciente com hiperti-
reoidismo: taquicardia sinusal A massa eritrocitária está discretamente aumentada
nesses pacientes, assim como o volume plasmático, en-
Ocorre aumento do consumo de O2 e da produção de
quanto o hematócrito costuma estar normal ou discreta-
CO2, podendo acarretar hipoxemia e hipercapnia, que es-
mente diminuído. A anemia megaloblástica pode ocorrer
timulam hiperventilação devida a acidose para normalizar
quando há associação à deficiência de vitamina B12 em pa-
esses níveis. Já obstrução traqueal pode ocorrer em pacien-
cientes com anemia perniciosa.
tes com bócio de grandes dimensões.
Linfocitose relativa e neutropenia podem ocorrer, assim
D - Manifestações neuropsiquiátricas como plaquetopenia, com alguns casos de púrpura trombo-
citopênica idiopática relatados.
O apetite aumenta, mas, mesmo assim, o paciente evo-
lui com perda de peso, devido à grande propagação do me- G - Manifestações gastrintestinais e geniturinárias
tabolismo basal. Esse achado apresenta alto valor preditivo
positivo para o diagnóstico de tireotoxicose (embora uma Podem ocorrer dor abdominal ocasional de etiologia
minoria dos pacientes, cerca de 2%, evolua com ganho de obscura, aumento do trânsito intestinal (hiperdefecação),
peso). aumento de número de evacuações diárias ou, eventual-
Os pacientes apresentam nervosismo e irritação, com mente, diarreia crônica.
sensação de inquietude, fadiga e reação exacerbada a es- O fígado é comumente palpável, mesmo na ausência de
tímulos externos. Tremor fino e rápido, que pode envolver insuficiência cardíaca congestiva. Podem aparecer aumen-
a língua, fibrilações musculares e polineuropatia periférica tos discretos de transaminases e fosfatase alcalina, e a icte-
podem ocorrer, inclusive com perda de força motora e mo- rícia é um sinal de mau prognóstico.
vimentos coreiformes. Também é possível perda cognitiva, Poliúria e noctúria são comuns, com mecanismo incer-
e alguns pacientes desenvolvem quadros psiquiátricos, in- to, talvez envolvendo hipercalciúria e polidipsia primária.
clusive com psicose. Mulheres com tireotoxicose podem apresentar distúr-
bios menstruais (mais comumente, amenorreia). Homens
E - Manifestações musculoesqueléticas e do me- com tireotoxicose podem apresentar ginecomastia e dis-
tabolismo do cálcio função erétil, devido ao aumento da SHBG, com menor dis-
Podem variar de uma astenia discreta a uma profunda ponibilidade de testosterona livre.
fraqueza muscular, com atrofia principalmente de grupos H - Bócio
musculares proximais.
A tireotoxicose (principalmente na doença de Graves) Pode ser detectado em 75 a 90% dos pacientes com
pode cursar com um quadro de paralisia flácida abrupta, Graves (aumento difuso, moderado, firme da glândula) e
geralmente após um exercício físico intenso ou a ingesta de em todos aqueles com bócio multinodular tóxico (em que
refeições copiosas ricas em carboidratos. Esse quadro é co- o crescimento é irregular, e o volume tireoidiano é maior).
nhecido como paralisia periódica tireotóxica e corresponde Frêmitos e/ou sopros sobre a tireoide (devidos à hiper-
à causa mais comum de paralisia flácida aguda em adultos. vascularização) são achados característicos no Graves. A
Pode ser hipocalêmica ou (raramente) normocalêmica e é presença de um nódulo único, com o restante da tireoide
descrita mais frequentemente em pacientes de ascendên- normal, deve levantar a suspeita de adenoma tóxico. Dor à
cia oriental e do sexo masculino; tais indivíduos apresentam palpação da tireoide sugere tireoidite subaguda. Ausência
resposta satisfatória à reposição de potássio. Os quadros de de bócio obriga o médico a considerar tireotoxicose factícia
paralisia podem ser recorrentes e evoluir para paralisia da ou tecido tireoidiano ectópico.

105
ENDOC RI N O LOG I A

mum nos casos de doença de Graves). Deve-se salientar que


os achados laboratoriais e níveis hormonais dos pacientes
em crise tireotóxica não apresentam diferença significativa
dos níveis observados nos demais pacientes tireotóxicos.
- Definição da etiologia da tireotoxicose
Na dúvida diagnóstica, ou quando a etiologia não for
clara à avaliação inicial, pode-se lançar mão de estudos adi-
cionais.
A captação de iodo radioativo em 24 horas (RAIU) esta-
rá aumentada nas causas de tireotoxicose com hipertireoi-
dismo e suprimida ou ausente nas demais causas (factícia,
tireoidites, tecido tireoidiano ectópico).
A cintilografia de tireoide, usando I131, I123 ou 99m-Tc, per-
mite um estudo de correlação anatomofuncional, avaliando
Figura 5 - Bócio difuso em paciente com doença de Graves como é a distribuição de função em diferentes partes da glân-
dula. A doença de Graves tem hipercaptação difusa. O bócio
multinodular tóxico cursa com hipercaptação heterogênea
5. Diagnóstico em uma tireoide volumosa (com 1 ou mais nódulos hiper-
captantes, correspondendo às áreas autônomas, e o restante
A confirmação de tireotoxicose é relativamente fácil e da glândula com captação diminuída devido à supressão do
pode ser feita com a dosagem de TSH e T4 livre (Figura 6). TSH). Já o adenoma tóxico apresenta captação aumentada
O TSH estará bastante diminuído ou indetectável em pra- apenas no local do nódulo autônomo, com o restante da
ticamente todas as etiologias (exceto no hipertireoidismo glândula não captante (Figura 7). Captação tireoidiana muito
secundário), e o T4 livre geralmente está elevado. baixa ou ausente é vista na tireotoxicose factícia e nas tireoi-
Medidas de T4 total são menos específicas, devido às in- dites, e captação aumentada na pelve define struma ovarii.
terferências que podem sofrer por várias outras condições Já captação em outros locais pode corresponder a uma me-
relacionadas às concentrações das proteínas transportado- tástase hiperfuncionante de carcinoma folicular.
ras (albumina, TBG), assim como no hipotireoidismo.
Eventualmente, o T4 pode estar normal e apenas T3 es-
tar elevado (T3-toxicose, mais comum no Graves e em áreas
deficientes de iodo).
Em casos de pacientes com hipertireoidismo TSH-
induzido (secundário, ou central) ou com resistência ao TSH
hipofisário, pode haver TSH normal ou aumentado, apesar
do aumento de T3 e T4. Pacientes com TSH diminuído e T4
livre (e T3) normal apresentam hipertireoidismo subclínico.

Figura 7 - Exemplos de cintilografia da tireoide


Figura 6 - Diagnóstico laboratorial da tireotoxicose
O exame ultrassonográfico da tireoide permite distinguir
Alguns achados inespecíficos encontrados na tireotoxi- bócio difuso, bócio multinodular e nódulos únicos tireoidia-
cose são leucopenia (na doença de Graves), hipercalciúria, nos, quando essa distinção não é possível à palpação.
hipercalcemia, hiperbilirrubinemia (nos casos graves) e re- A tireoglobulina encontra-se aumentada quando a ti-
dução do colesterol total. reoide é a fonte do excesso hormonal, mas esse exame não
Em pacientes com crise tireotóxica, pode aparecer diferencia processos de hiperfunção (Graves, bócio multi-
leucocitose, mesmo sem evidência de infecção, e, ocasio- nodular) de processos destrutivos (tireoidites). Encontra-se
nalmente, os pacientes com reserva adrenal inadequada caracteristicamente diminuída na tireotoxicose factícia.
podem precipitar o aparecimento de insuficiência adrenal Anticorpos antitireoidianos em títulos elevados são
aguda e seus achados laboratoriais característicos (mais co- frequentemente vistos na doença de Graves, refletindo a

106
HIPERTIREOIDISMO

natureza autoimune desse distúrbio: antitireoperoxidase em dose única diária, enquanto o 2º precisa ser dividido em
(anti-TPO) em 45 a 80%, e TRAb (mais específico) em 70 a 2 a 3 doses/dia. Por ter menor custo, menos efeitos adver-
100% (dependendo da metodologia). Sua coleta não é re- sos e permitir tomada única diária, o metimazol é a droga
comendada de rotina, devendo ser reservada para dúvidas inicial de escolha na maioria dos casos. O propiltiouracila
diagnósticas (por exemplo, oftalmopatia eutireoide, hiper- é preferido durante a gestação, quando deve ser utilizado
tireoidismo apático, tireotoxicose durante a gravidez ou na menor dose necessária para controle da tireotoxicose
puerpério, tireotoxicose sem bócio). (por apresentar menor passagem placentária e não causar

ENDOCRINOLOGIA
Alterações oculares podem ser demonstradas em até aplasia cutis, uma malformação do couro cabeludo descrita
90% dos pacientes com Graves quando estes são avaliados em recém-nascidos de mães tratadas com metimazol), e na
por métodos de imagem sensíveis, como ultrassonografia, crise tireotóxica (em altas doses).
ressonância magnética ou tomografia computadorizada das
órbitas (Figura 8). Esses exames são úteis para excluir outras a) Dose
causas de proptose e para avaliar a gravidade das lesões e A dose de propiltiouracila é de 200 a 900mg/dia e, excep-
sua resposta ao tratamento. cionalmente, doses de até 1.200mg/dia são usadas para o
tratamento do hipertireoidismo. Normalmente, inicia-se em
dose de 100mg, 3x/dia, mas eventualmente pode ser inicia-
da em dose de 200 a 300mg, 3x/dia (hipertireoidismo seve-
ro), para se atingir mais rapidamente o controle da doença.
O metimazol é iniciado em dose de 10 a 30mg/dia, divi-
dido normalmente em 2 tomadas diárias, embora existam
estudos demonstrando eficácia de dose única diária, com
dose máxima entre 60 e 100mg/dia. Em pacientes com
hipertireoidismo mais grave, pode-se iniciar o tratamento
com doses maiores, como 40mg/dia, com o objetivo de
obter um controle mais rápido da doença. Após a melhora
ou a normalização do T4 livre, a medicação pode ser usada
com segurança em dose única diária para manutenção.
b) Resultados
A melhora nos níveis de T4 e T3 inicia-se em 10 a 15
Figura 8 - Tomografia de órbitas em paciente com oftalmopatia dias, e, em 4 a 8 semanas, até 90% dos pacientes tornam-se
de Graves clinicamente eutireóideos. O TSH demora de 6 a 8 semanas
para atingir um novo estado de equilíbrio (em alguns casos,
6. Tratamento pode permanecer suprimido por até 6 meses), por isso a
monitorização nos primeiros meses deve ser feita com T3 e
Existem 3 opções para tratamento do hipertireoidismo:
T4 livre, a cada 4 a 6 semanas. Depois de algumas semanas,
medicamentos antitireoidianos, iodo radioativo (I131) e ci-
a droga pode ser reduzida gradualmente até doses de ma-
rurgia.
nutenção: de 5 a 10mg/dia de metimazol (ou 50 a 200mg/
dia de propiltiouracila). Há melhora da oftalmopatia, princi-
A - Medicamentos
palmente dos sinais inflamatórios.
Os antitireoidianos de síntese (tionamidas, ou tioureias)
c) Efeitos adversos
disponíveis no Brasil são o metimazol (comprimidos de 5
e 10mg) e o propiltiouracila (comprimidos de 100mg), que Ocorrem, em geral, nos primeiros 3 meses de uso. Os
inibem a tireoperoxidase, bloqueando várias etapas da sín- efeitos adversos mais comuns (1 a 5%), principalmente du-
tese de hormônios tireoidianos. Ambos parecem apresen- rante o uso de doses elevadas das medicações, são prurido
tar, ainda, um efeito imunomodulador, demonstrado pela cutâneo e urticária, intolerância gástrica e artralgias. Nos
queda dos títulos de anticorpos antitireoidianos durante casos de reações alérgicas, geralmente é suficiente a asso-
seu uso prolongado. O propiltiouracila, além disso, quando ciação de um anti-histamínico, sendo raramente necessária
utilizado em doses elevadas, parece ter um efeito adicional, a suspensão do antitireoidiano. Leucopenia, geralmente
inibindo a conversão periférica de T4 em T3, o que permi- transitória, é observada em 12 a 25%. Hipoglicemia tam-
te uma redução mais rápida dos níveis do hormônio ativo, bém foi descrita com o uso dessas medicações, reversível
T3. No Reino Unido, também está disponível uma 3ª droga, com a suspensão das mesmas. O metimazol tem a vanta-
o carbimazol, que é uma pré-droga, pois é metabolizado a gem dos efeitos colaterais serem dose-dependentes (raros,
metimazol. com dose <20mg/dia) e a hepatotoxicidade menos grave.
O metimazol tem maior meia-vida (4 a 6h) em compara- Um efeito colateral potencialmente grave é a agranulo-
ção com o propiltiouracila (1h) e, por isso, pode ser usado citose, que é rara (acometendo 0,1% dos pacientes), mas

107
ENDOC RI N O LOG I A

potencialmente fatal. Por isso, os pacientes devem ser geralmente são tratadas com I131. Na América Latina e na
orientados a interromper a medicação e colher um leuco- Europa, os antitireoidianos são a 1ª escolha de tratamento
grama caso apresentem febre, dores na garganta e/ou úlce- para a doença de Graves. Na América do Norte, por outro
ras orais. O achado de <1.000 granulócitos/mm3 (ou <500, lado, a 1ª opção de tratamento para pacientes com Graves
para alguns autores) confirma o diagnóstico. Geralmente, muitas vezes é a radioiodoterapia, por questões de custo-
a suspensão do antitireoidiano e o uso de antibióticos são -benefício (controle mais rápido da tireotoxicose, menor
suficientes para a reversão do quadro. Em alguns casos, necessidade de consultas).
pode ser necessário o uso de fator estimulador das colônias Nas demais causas de hipertireoidismo (bócio multino-
de granulócitos (G-CSF). Em pacientes que desenvolvem dular, adenoma tóxico), os antitireoidianos geralmente são
a agranulocitose, é formalmente contraindicado o uso de utilizados apenas na fase inicial, para controle dos níveis
qualquer antitireoidiano, devendo o paciente ser tratado hormonais e sintomas tireotóxicos, quando então o pacien-
com iodo radioativo ou cirurgia para o controle da tireo- te é encaminhado para um tratamento definitivo (cirurgia
toxicose. A agranulocitose é um efeito idiossincrático, sem ou ablação com radioiodo). Isso ocorre porque, nessas pa-
relação com a duração ou dose de antitireoidiano, embora tologias, ao contrário do observado na doença de Graves,
o uso irregular (com frequentes interrupções e reinícios do não ocorre remissão da doença após o uso prolongado de
tratamento) pareça aumentar o risco. antitireoidianos.
Outros efeitos adversos incomuns incluem hepatotoxi-
cidade (descrita com o propiltiouracila em 0,5% dos casos), e) Outras drogas
colestase (com o metimazol), anemia e vasculite (síndrome Os beta-bloqueadores reduzem os sinais e sintomas de
lúpus-like em 0,5% dos usuários de propiltiouracila). hiperestímulo adrenérgico e devem ser utilizados no início
do tratamento com antitireoidianos, em pacientes muito
Tabela 4 - Principais características das drogas antitireoidianas sintomáticos (taquicárdicos, com tremores), até a melho-
Metimazol Propiltiouracil ra dos níveis hormonais, ou como preparo para cirurgia ou
Dose inicial - 10 a 30mg/dia. - 300 a 600mg/dia. iodo radioativo. A droga de escolha é o propranolol (com-
Dose de manu- primidos de 40mg), na dose de 80 a 240mg/dia, divididos
- 5 a 10mg/dia. - 50 a 200mg/dia. em 2 a 3 doses. O propranolol parece inibir, também, a con-
tenção
- Doses fracionadas (2 a versão de T4 em T3, quando usado em altas doses. Outra
Posologia - Dose única diária. opção é o atenolol, 50 a 100mg/dia. Na contraindicação aos
3x/dia).
- Urticária;
beta-bloqueadores, pode-se usar diltiazem ou verapamil
- Urticária; para o controle da frequência cardíaca.
- Artralgia;
- Artralgia; Os beta-bloqueadores também são indicados no trata-
- Leucopenia e
- Leucopenia e agranulo-
agranulocitose; mento da tireotoxicose transitória induzida pelas tireoidites
Efeitos adversos citose;
- Colestase; (para que os antitireoidianos de síntese não o sejam, pois
- Hepatotoxicidade;
- Aplasia cútis fetal não há aumento da produção de T3 e T4 pela tireoide, mas
- Vasculite, síndrome
(uso em gestan- apenas liberação dos hormônios pré-formados devido ao
lúpus-like.
tes). processo inflamatório).
- Hepatopatia Outras medicações, como o carbonato de lítio (que ini-
Contraindicações - Hepatopatia ativa.
ativa. be a secreção de T3/T4 pela tireoide) e soluções com iodo
- Redução mais rápida de frio (que podem inibir agudamente a síntese e secreção de
- Mais barato; T3 devido ao bloqueio T3/T4, pelo fenômeno de Wolff-Chaikoff), podem ser utili-
Principais van- - Dose única di- da conversão periférica zadas para controle rápido da tireotoxicose, mas seu uso é
tagens ária; de T4 em T3;
praticamente restrito aos casos de crise tireotóxica.
- Mais seguro. - Mais seguro para uso
na gestação.
B - Iodo radioativo
d) Esquemas de tratamento O I131 emite radiações beta (corpuscular) e gama (ele-
tromagnética), determinando lesão actínica às células foli-
Na doença de Graves, o tratamento pode ser feito culares. Apresenta um efeito em curto prazo (algumas se-
apenas com drogas antitireoidianas, devido ao seu efeito manas), pela isquemia e necrose, e efeitos em longo prazo
imunomodulador, pois vários estudos mostram que o uso pelo dano ao DNA celular (indução de apoptose), razão pela
prolongado dessas medicações (12 a 24 meses) possibilita a qual o tratamento com radioiodo já ocasiona melhora da ti-
remissão da doença (ou seja, a manutenção de eutireoidis- reotoxicose em algumas semanas, mas continua a produzir
mo sem uso de medicação) em cerca de 30 a 50% dos casos. perda de função tireoidiana e redução do volume glandular
Alguns fatores aumentam a chance de remissão com antiti- por vários meses (até 1 a 2 anos) após sua administração.
reoidianos: bócio pequeno, baixos títulos de TRAb e tireo- Como a radiação beta (responsável pela maior parte do
toxicose mais leve. Recidiva ou persistência da tireotoxicose dano celular) tem um alcance de apenas 2mm e a tireoide é

108
HIPERTIREOIDISMO

o único órgão capaz de captar e organificar o iodo, o efeito de hormônios contidos nos folículos. Dor na região da ti-
da radiação é bastante específico para o tecido tireoidiano reoide (tireoidite actínica) e inflamação das glândulas sali-
(pelo menos em doses baixas), apresentando muito baixo vares (sialadenite), com diminuição da produção de saliva,
risco de dano actínico a outros órgãos ou tecidos. xerostomia e alterações do paladar, também são possíveis,
Este é o tratamento inicial de escolha para a doença geralmente de forma transitória e autolimitada.
de Graves nos EUA, embora bem menos usado na Europa Existe um risco (teórico) de indução de neoplasia (leu-
e Japão; no Brasil, em geral, preferem-se os antitireoidia- cemias) em crianças e adolescentes, razão por que alguns

ENDOCRINOLOGIA
nos como terapia inicial. O I131 proporciona uma irradiação profissionais evitam o uso de I131 para tratamento da tireo-
localizada sobre a glândula tireoide, possibilitando o con- toxicose nessa faixa etária. Entretanto, estudos de acompa-
trole da tireotoxicose dentro de 4 a 8 semanas em 70% dos nhamento em longo prazo não conseguiram evidenciar tal
pacientes com Graves, com dose usual de 8 a 12mCi, VO. aumento de risco com as doses rotineiramente utilizadas
Alguns pacientes podem precisar de mais de 1 dose para (em torno de 10mCi), razão pela qual o I131 vem sendo cada
controlar a tireotoxicose. Doses maiores de I131 (15 a 30mCi) vez mais utilizado para tratamento da doença de Graves
podem ser utilizadas, aumentando a taxa de controle da nessa faixa etária.
tireotoxicose, mas também aumentando a frequência de Em pacientes com oftalmopatia de Graves, pode haver
hipotireoidismo. uma piora transitória do quadro ocular logo após o iodo ra-
Constitui a terapia de escolha para o bócio multinodular dioativo. Essa piora pode ser prevenida pelo uso de corticoi-
tóxico, em que é usada uma dose mais alta (30 a 150mCi). des e pelo acompanhamento cuidadoso do paciente para
Quanto maior o volume do bócio, maior a dose de iodo manter o TSH em níveis normais.
radioativo necessária para o controle da tireotoxicose e a b) Cuidados
redução do volume do bócio. Em geral, observa-se redução
As tionamidas (principalmente o propiltiouracila), quan-
de cerca de 50% do volume do bócio. Bócio multinodular
do utilizadas antes do I131, podem diminuir a efetividade do
muito volumoso ou com sintomas compressivos deve ser tratamento radioterápico, por isso os antitireoidianos de-
tratado, preferencialmente, com cirurgia. Entretanto, em vem ser suspensos vários dias antes da radioiodoterapia.
pacientes com alto risco cirúrgico, o iodo radioativo cons- Esse efeito parece ser mais intenso com o propiltiouracila,
titui uma boa opção. que deve ser interrompido pelo menos 30 dias antes da ad-
Também é a 1ª escolha para tratamento do adenoma ministração de I131, enquanto o metimazol pode ser suspen-
tóxico, principalmente nos nódulos menores (até 3 a 4cm so 3 a 7 dias antes.
de diâmetro), onde tem boa eficácia. Alguns autores (principalmente, nos Estados Unidos)
preferem encaminhar pacientes jovens com doença de
Tabela 5 - Indicações de iodo radioativo no tratamento do hiper-
Graves e tireotoxicose leve a moderada para I131 sem uso
tireoidismo
prévio de antitireoidianos, fundamentados no baixo risco
- Doença de Graves recorrente (recidiva do hipertireoidismo
de complicações e melhor custo-benefício dessa estratégia.
após suspensão dos antitireoidianos);
Entretanto, pacientes mais idosos, cardiopatas ou com bó-
- Doença de Graves com intolerância aos antitireoidianos; cio volumoso devem ser preparados com antitireoidianos
- Doença de Graves refratária aos antitireoidianos; por várias semanas ou meses, e, de preferência, submeti-
- Tratamento inicial da doença de Graves (nos Estados Unidos); dos ao I131 apenas quando eutireóideos, para reduzir o risco
- Bócio multinodular tóxico com bócio discreto a moderado; de complicações.
- Bócio multinodular tóxico em paciente de alto risco cirúrgico; Outro cuidado a ser tomado antes da administração de
I131 é orientar o paciente a fazer uma dieta pobre em iodo,
- Doença de Plummer com nódulo pequeno (até 4cm).
durante pelo menos 15 a 30 dias, o que parece ocasionar
a) Efeitos adversos uma deficiência leve de iodo, que melhora a captação e a
O principal efeito adverso é a indução de hipotireoidis- eficácia da dose de iodo radioativo administrada.
mo, que ocorre em 30 a 50% dos pacientes com doença de O paciente deve ser acompanhado com avaliações pe-
Graves nos primeiros 6 meses, 60 a 80% após 1 ano e cerca riódicas da função tireoidiana por vários anos após o tra-
de 80 a 100% após 10 anos (frequência maior com doses tamento, devido ao risco de hipotireoidismo ou recidiva da
mais altas de I131). Em até 25% das vezes, o hipotireoidis- tireotoxicose.
mo pode ser transitório. O hipotireoidismo é menos co- O iodo radioativo está contraindicado na gestação e lac-
mum nos pacientes com bócio multinodular tratados com tação (pelo risco de ablação da tireoide fetal). Mulheres em
I131: cerca de 10% em 10 anos, devido à captação tireoidia- idade fértil devem ser orientadas a evitar gravidez por, pelo
na extremamente heterogênea observada nesses casos. menos, 6 a 12 meses após a dose de I131.
Pacientes com hipotireoidismo sintomático ou permanente
devem ser tratados com reposição de levotiroxina.
C - Cirurgia
Outro possível efeito adverso da radioiodoterapia é a A tireoidectomia pode ser utilizada em casos refratários
piora transitória da tireotoxicose devida à liberação aguda e/ou com intolerância aos antitireoidianos, ou em pacien-

109
ENDOC RI N O LOG I A

tes com necessidade de terapia definitiva com contraindi- A crise tireotóxica é tipicamente associada à doença de
cação ou recusa ao uso de I131. Em geral, é feita tireoidec- Graves, embora alguns casos em pacientes com bócio mul-
tomia subtotal ou total. Possíveis indicações são: bócios tinodular tóxico tenham sido relatados.
muito volumosos com sintomas compressivos; presença
de nódulo suspeito de malignidade; doença de Graves na A - Fisiopatologia
infância (sem resposta aos antitireoidianos, embora o ra- Os mecanismos específicos que levam à crise tireotó-
dioiodo também seja uma alternativa segura e eficaz nesta xica permanecem incertos. A tempestade tireoidiana rara-
faixa etária), e doença de Graves na gravidez (quando refra- mente acontece em pacientes com concentrações séricas
tária ao propiltiouracila, devendo ser feita no 2º trimestre). extremamente elevadas de hormônios tireoidianos após
Adenomas tóxicos maiores que 4cm, em indivíduos jovens ingestão de tiroxina exógena. Assim, apesar de serem, em
(que cursam com alta taxa de recorrência), também podem alguns casos, maiores que na tireotoxicose não complicada,
ser tratados cirurgicamente. os níveis de T4 e T3 não permitem a diferenciação entre
Os pacientes devem ser preparados com antitireoidia- pacientes com crise tireotóxica ou apenas tireotóxicos. Por
nos e beta-bloqueadores para reduzir o risco de complica- essa razão, não se pode afirmar que o aumento agudo na
ções do procedimento. A administração de iodo (lugol) du- liberação de hormônios tireoidianos pela glândula repre-
rante 7 dias no pré-operatório, em pacientes tireotóxicos, sente o único mecanismo fisiopatológico da crise tireotóxi-
permite diminuir a vascularização tireoidiana e o volume de ca. Entretanto, a liberação aguda de hormônios tireoidianos
sangramento na tireoidectomia. A cura da tireotoxicose é após radioiodoterapia ou descontinuação de drogas antiti-
obtida em 98%. Efeitos adversos incluem hipotireoidismo reoidianas pode precipitar a crise tireotóxica. A administra-
(comum, principalmente em ressecções mais extensas), ção de grandes quantidades de iodo (por exemplo, uso de
hipoparatireoidismo e lesão do nervo laríngeo recorrente contraste radiográfico iodado) também pode ser um fator
(menos que 1% dos casos, quando o procedimento é reali- precipitante de crise tireotóxica.
zado por cirurgião experiente). A concentração dos hormônios tireoidianos livres é de
importância maior que as concentrações séricas de T3 e T4.
A concentração de T4 livre sérico está diretamente relacio-
nada à capacidade de união às proteínas ligadoras, como
a proteína ligadora da tiroxina (TBG), albumina, pré-albu-
mina e a transtiretina. Assim, condições que interferem na
ligação proteica hormonal podem aumentar os níveis de
hormônios tireoidianos livres. Doenças agudas como infec-
ções, acidose e procedimentos cirúrgicos podem diminuir
a afinidade dessas proteínas pelos hormônios tireoidianos,
aumentando sua fração livre, que é a que apresenta ativi-
dade biológica.
Figura 9 - Cicatriz de tireoidectomia
B - Manifestações clínicas
7. Crise tireotóxica Os achados clínicos são de aparecimento usualmente
abrupto, embora grande parte dos pacientes relate sinto-
A crise tireotóxica (ou tempestade tireoidiana) repre- mas leves a moderados de hipertireoidismo, dias a semanas
senta a manifestação mais extrema e grave da tireotoxico- antes de a crise ser precipitada. Os pacientes apresentam-
se. Também pode ser conhecida como “hipertireoidismo -se com síndrome de severo hipermetabolismo; quase in-
acelerado”, ou “síndrome do hipertireoidismo compensa- variavelmente, há febre na apresentação, com temperatura
do”. Apesar de incomum, é de suma importância o pron- média de apresentação de 39,3°C. Além disso, cerca de 90%
to reconhecimento da síndrome, já que sua instalação é apresentam temperatura maior que 38,5°C, e a sudorese
abrupta e se associa à mortalidade elevada (em torno de 10 costuma ser profusa. Sintomas cardiovasculares, como ta-
a 70% nas diferentes séries; em média, 20 a 30%). quicardia sinusal e arritmias cardíacas, além de congestão
A crise tireotóxica é uma emergência médica; por isso, pulmonar (podendo evoluir para edema agudo de pulmão e
da mesma forma que no coma mixedematoso, o diagnósti- insuficiência cardíaca congestiva franca), podem estar pre-
co deve ser clínico, e o tratamento iniciado imediatamente sentes. Sintomas do trato gastrintestinal também são pos-
em unidade de terapia intensiva, sem aguardar os resulta- síveis, como náuseas, vômitos, dor abdominal e diarreia.
dos dos exames laboratoriais confirmatórios. Alguns pacientes apresentam icterícia, o que é um sinal de
Médicos inexperientes podem superestimar a impor- mau prognóstico. Conforme a piora do quadro clínico, os
tância dos sintomas, fazendo diagnóstico errôneo de tem- pacientes começam a apresentar sintomas de alterações
pestade tireoidiana em pacientes com manifestações crôni- de sistema nervoso central, com manifestações variadas
cas de hipertireoidismo. como agitação, labilidade emocional, confusão e quadros

110
HIPERTIREOIDISMO

de delirium, caracterizando o que é denominado de ence- - Controle da produção de hormônios pela glândula ti-
falopatia tireotóxica. Alguns pacientes, durante a evolução, reoide;
podem entrar em estado de coma. Tremores e incapacida- - Bloqueio dos efeitos hormonais periféricos;
de de permanecer parado são sintomas característicos. As - Suporte clínico;
manifestações podem ser variadas e dramáticas, já tendo
sido descrito um caso de crise tireotóxica que se manifestou - Tratamento da causa precipitante.
como síndrome de disfunção de múltiplos órgãos.
O bloqueio da produção de hormônios tireoidianos é

ENDOCRINOLOGIA
O emergencista deve estar atento a algumas pistas diag-
nósticas, como febre desproporcional ao quadro infeccioso, realizado com inibidores da síntese tireoidiana, como o me-
frequência cardíaca inapropriadamente elevada e, principal- timazol e o propiltiouracila. Essas medicações podem ser
mente, história prévia de hipertireoidismo, assim como bócio usadas por VO ou por via sonda nasogástrica (ou retal) no
e exoftalmo ou outros sinais sugestivos de doença de Graves. paciente com diminuição do nível de consciência; infeliz-
mente, não existem preparações para o uso parenteral. O
C - Diagnóstico propiltiouracila é a droga de 1ª escolha, devido à sua van-
tagem adicional de inibir a conversão periférica de T4 em
Os critérios diagnósticos propostos por Burch e
T3. A dose de propiltiouracila recomendada é maior que em
Wartofsky, em 1993, são usados para definir a presença ou
outros estados de tireotoxicose: 1.200 a 1.500mg, ou 200
não de crise tireotóxica. Esse diagnóstico é firmado quando
o escore é maior que 45. Pontuação intermediária (25 a 44) a 250mg a cada 4 horas, ou metimazol na dose de 20mg a
representa crise iminente, e pontuação <25 torna muito im- cada 4 horas. Apesar de essas medicações diminuírem a for-
provável a crise (Tabela 6). mação de hormônio tireoidiano, não impedem a secreção
de hormônio tireoidiano pré-formado, o que exige outras
Tabela 6 - Critérios diagnósticos de crise tireotóxica formas de tratamento.
Disfunção termorregulatória Disfunção cardiovascular As soluções de iodo estáveis (iodo “frio”) agem por meio
Temperatura (graus Celsius) Pts Taquicardia (bpm) Pts de diversos mecanismos, entre eles a inibição da captura
37 a 37,7 5 90 a 109 5 de T4 e bloqueio da liberação de hormônio pela glândula
(efeito de Wolff-Chaikoff). O lugol ou iodeto de potássio
37,8 a 38,1 10 110 a 119 10
pode ser usado em dose de 4 a 8 gotas a cada 6 a 8 horas.
38,2 a 38,5 15 120 a 129 15
Entretanto, o agente iodado de escolha é o ácido iopanoico
38,6 a 38,8 20 130 a 139 20 (Telepaque), que apresenta conteúdo extremamente eleva-
38,9 a 39,2 25 >140 25 do de iodo (1,8g de iodo em dose de 3g). A dose usual é
>39,3 30 - - de 1g, 8/8h, no 1º dia e, posteriormente, 500mg a cada 12
Efeitos SNC Pts ICC Pts horas. Dessa forma, alguns estudos mostram que é possível
obter eutireoidismo em cerca de 48 a 72 horas em cerca de
Ausente 0 Ausente 0
80 a 90% dos casos. As soluções iodadas só podem ser ini-
Leve (agitação) 10 Leve (edema MMII) 5 ciadas 2 a 3 horas após o início das drogas antitireoidianas
Moderado (delirium, Moderada (estertores e durante um tempo curto (poucos dias), caso contrário,
20 10
psicose, letargia) em bases) o excesso de iodo pode ocasionar piora da tireotoxicose.
Grave (convulsão, coma) 30 Grave (EAP) 15 Outro problema potencial com as soluções iodadas é que
Disfunção gastrintestinal/
Pts Fibrilação atrial Pts
essa terapêutica pode impedir o uso de radioiodoterapia
hepática como tratamento da tireotoxicose por vários meses.
Ausente 0 Ausente 0 O carbonato de lítio representa uma alternativa, pois é
Moderada (dor abdominal, útil para inibir a secreção hormonal, sendo utilizado princi-
10 Presente 10
diarreia, vômitos) palmente em pacientes com alergia ao iodo. A dose inicial
Grave (icterícia) 20 - - é de 300mg, 6/6 horas, com monitorização cuidadosa da
litemia devido à estreita janela terapêutica e risco de toxi-
Fator precipitante Pts
cidade. A dose deve ser ajustada para manter litemia sérica
Negativo 0 em torno de 0,1mEq/L.
Positivo 10 O uso dos beta-bloqueadores antagoniza os efeitos pe-
Escore >45 = crise tireotóxica; 25-44 = crise iminente; <25 = crise riféricos da tiroxina. O propranolol, devido ao seu efeito
improvável. inibidor da conversão periférica de T4 em T3, acaba sendo
EAP = Edema Agudo de Pulmão. a 1ª escolha, com dose recomendada entre 60 e 120mg a
cada 6 horas. O uso de beta-bloqueadores IV pode ser útil
D - Tratamento (propranolol, 0,5 a 1mg a cada 15 minutos, até conseguir
O tratamento do paciente com tempestade tireoidiana o controle da frequência cardíaca do paciente, ou esmolol,
deve ser feito, preferencialmente, em unidade de terapia de ação mais rápida, em bomba de infusão IV contínua, na
intensiva, e deve ser focado em 4 ações principais: dose de 0,05 a 1mg/kg/min). Em nosso meio, o único beta-

111
ENDOC RI N O LOG I A

-bloqueador para uso parenteral é o metoprolol, que pode Há evidências de que, mesmo níveis de TSH discreta-
ser usado na dose de 5mg a cada 10 a 15 minutos IV, até mente reduzidos (0,1 a 0,45mU/L), podem provocar dis-
conseguir o controle da FC. Melhora importante do qua- função cardíaca (aumento de massa do ventrículo esquer-
dro clínico pode ocorrer após o início da terapia com beta- do, aumento da função sistólica e do débito cardíaco, re-
-bloqueadores, com diminuição da frequência cardíaca, dos dução da função diastólica). Níveis ainda menores de TSH
tremores e do trabalho cardíaco. (<0,1mU/L) estão associados a risco 2 a 3 vezes maior de
Os corticosteroides em doses altas também diminuem fibrilação atrial e à perda de massa óssea (principalmente
a conversão periférica de T4 em T3. Ocasionalmente, esses em mulheres >65 anos), com aumento do risco de fraturas
pacientes podem apresentar insuficiência adrenal associa- de quadril e vértebras. A progressão para hipertireoidismo
da, principalmente quando apresentam doença de Graves. clínico (TSH supresso com T4 livre elevado) parece ocorrer
Recomenda-se a hidrocortisona, 100mg, a cada 6 ou 8 ho- em cerca de 5% dos pacientes ao ano.
ras, ou dexametasona, 2mg, de 6/6h IV. Toda alteração discreta dos exames de função tireoi-
Outras medidas para a remoção de hormônios tireoidia- diana deve ser repetida e confirmada antes de propor tra-
nos da circulação são descritas pela literatura, como diálise tamento (incluindo TSH, T4 livre e T3). O tratamento (com
peritoneal, hemoperfusão com carvão ou com resinas, e antitireoidianos, I131 ou cirurgia, dependendo da etiologia)
plasmaférese. Essas medidas não são de 1ª linha, poden- deve ser considerado nas situações expostas na Tabela 7.
do causar hipotensão e ficam reservadas, portanto, a casos
refratários. Tabela 7 - Indicações para tratamento do hipertireoidismo subclínico
A hipertermia deve ser tratada prontamente, de pre- - Pacientes com TSH persistentemente <0,1mU/L;
ferência com dipirona ou paracetamol. Salicilatos devem - Presença de sintomas sugestivos de hipertireoidismo;
ser evitados por causa da sua propriedade de deslocar os - Mulheres pós-menopausadas com osteoporose ou alto risco de
hormônios tireoidianos para forma livre. Medidas externas osteoporose/fraturas;
para diminuição de temperatura podem ser úteis. - Doença cardiovascular (fibrilação atrial, coronariopatia ou ICC);
O tratamento do fator precipitante da crise também é
- Idosos (>60 anos).
fundamental. Em alguns casos, esse fator fica obscuro, por-
tanto culturas de sangue e urina, urinálise, raio x de tórax, Em pacientes com TSH entre 0,1 e 0,5mU/L, recomen-
hemograma e ECG são exames de rotina nesses pacientes. da-se seguimento, já que o tratamento da tireotoxicose
Antibioticoterapia empírica normalmente não é necessária, não é isento de efeitos adversos e não há muitas evidências
reservando-se o uso de antibióticos para casos com evidência de que esse grau de alteração dos hormônios tireoidianos
clínica ou laboratorial de infecção. Em casos severos, princi- provoque prejuízos clinicamente significativos. Entretanto,
palmente se o paciente apresenta alteração do nível de cons- alguns autores recomendam tratamento a pacientes com
ciência, antibióticos de amplo espectro devem ser prescritos. risco aumentado de complicações, como os coronarianos e
A melhora do paciente com tempestade tireoidiana cos- os cardiopatas.
tuma ser rápida, nas primeiras 12 a 24h, e a falha em contro-
lar o quadro clínico nesse período indica a necessidade de 9. Oftalmopatia de Graves
condutas agressivas, como hemoperfusão e plasmaférese.
O acometimento ocular na doença de Graves pode
variar de graus discretos (apenas com sintomas ou sinais
8. Hipertireoidismo subclínico discretos) a quadros gravíssimos com risco de perda visual
Este é definido como a presença de TSH abaixo do nor- permanente.
mal (suprimido) com T4 livre e T3 normais. Vem sendo As alterações oculares específicas da doença de Graves
diagnosticado com frequência crescente, desde a introdu- incluem proptose do globo ocular (exoftalmia), edema
ção de métodos ultrassensíveis para a dosagem do TSH. palpebral e/ou conjuntival, sinais inflamatórios (dor ocu-
Entretanto, é menos comum que o hipotireoidismo subclí- lar, hiperemia conjuntival e periorbitária) e alterações da
nico. Estima-se sua prevalência em torno de 1 a 2%, e atin- motricidade ocular extrínseca. Esses achados caracteri-
ge, predominantemente, mulheres idosas. Outras causas de zam a chamada oftalmopatia de Graves, ou orbitopatia
TSH supresso, como uso de glicocorticoides, doença sistê- de Graves, que ocorre clinicamente em cerca de 50% dos
mica severa ou disfunção hipofisária, devem ser excluídas. pacientes com doença de Graves (ou mais, quando utili-
Qualquer etiologia de tireotoxicose pode provocar hi- zados métodos mais sensíveis para o diagnóstico). Em 70
pertireoidismo subclínico, dentre elas a doença de Graves a 80% dos casos, a oftalmopatia surge dentro de 1 ano
inicial, o bócio multinodular e o adenoma tóxico. A causa (antes ou depois) do início do hipertireoidismo. A prop-
mais comum, entretanto, parece ser o uso de levotiroxina tose é geralmente bilateral, mas eventualmente pode ser
para tratamento do hipotireoidismo, que pode causar su- unilateral (situação em que é indispensável a exclusão de
pressão do TSH em até 20% desses pacientes (refletindo o outras causas de exoftalmo unilateral, como neoplasias
uso de uma quantidade suprafisiológica da droga); nesses orbitárias ou processos intracranianos, através da tomo-
casos, a dose da medicação deve ser reduzida. grafia de crânio/órbitas).

112
HIPERTIREOIDISMO

Casos severos de oftalmopatia são mais comuns em Tabela 8 - Escore de atividade clínica (CAS) para a oftalmopatia
homens idosos e podem cursar com perda da motricidade de Graves
ocular (por infiltração dos músculos extraoculares) e ceguei- Achado Pontos
ra (por neuropatia óptica ou ulceração de córnea). Deve-se Dor retrobulbar espontânea 1
suspeitar da neuropatia óptica na presença de redução da Dor ao tentar olhar para baixo, para os lados ou para
acuidade visual, defeitos no campo visual, alteração da vi- 1
cima
são de cores (menor sensibilidade para cores) ou edema do Hiperemia palpebral 1

ENDOCRINOLOGIA
disco óptico à fundoscopia. Pode haver neuropatia óptica Hiperemia conjuntival 1
com risco de perda visual mesmo na ausência de exoftalmia
Edema palpebral 1
ou sinais flogísticos orbitários evidentes.
Inflamação da carúncula e/ou plica 1
Em 10% dos casos de oftalmopatia, o paciente pode
ser eutireoide ou apresentar hipotireoidismo autoimune Edema conjuntival (quemose) 1
(Hashimoto), razão por que muitos autores sugerem que Somam-se os pontos correspondentes às alterações apresentadas
se abandone a nomenclatura “oftalmopatia de Graves” e pelo paciente. A oftalmopatia de Graves é considerada “ativa” se
o paciente apresenta ≥3 pontos.
seja empregada a denominação “oftalmopatia associada à
tireoidite crônica autoimune”.
Em pacientes com oftalmopatia de Graves, alguns es-
tudos mostraram que pode haver uma piora transitória do
quadro logo após a radioiodoterapia, muito embora esse
assunto seja controverso, pois outros estudos não demons-
traram tal fenômeno. O uso de corticoides (prednisona, 40
a 80mg/dia) por algumas semanas após a dose de I131, em
pacientes com oftalmopatia ativa ou severa, pode reduzir
o risco de piora das manifestações oculares. Entretanto, os
maiores fatores de risco para piora da oftalmopatia pare-
cem ser o tabagismo e a elevação do TSH que ocorre após
a administração de I131; por isso, é fundamental avaliar a Figura 10 - Ressonância magnética de paciente com oftalmopatia
função tireoidiana do paciente com oftalmopatia cuidado- de Graves
samente após a radioiodoterapia, a fim de detectar preco-
cemente e tratar imediatamente o hipotireoidismo. O tratamento da oftalmopatia de Graves deve ser fei-
A oftalmopatia pode ser dividida em 2 fases distintas: to, preferencialmente, por equipes multidisciplinares com
uma inicial (oftalmopatia “ativa”), nos primeiros meses a experiência no manejo dessa patologia. Portanto, o clíni-
anos, envolve, predominantemente, sinais inflamatórios co deve estar apto a diagnosticar as formas moderadas e
severas da oftalmopatia de Graves, especialmente as com
(edema, hiperemia, quemose, dor ocular), e pode respon-
maior risco de perda visual, e encaminhá-las prontamen-
der bem ao uso de imunossupressores (corticosteroides
te aos cuidados de um oftalmologista ou de uma equipe
em altas doses, ciclosporina, rituximabe, colchicina) ou à
multidisciplinar. A identificação dessas formas mais graves
radioterapia externa. A cessação do tabagismo e o próprio
pode ser feita, por exemplo, com os critérios apresentados
tratamento da tireotoxicose com antitireoidianos também
na Tabela 9.
são benéficos nessa fase. Se não houver resposta aos corti-
coides em 1 a 2 semanas, em pacientes com oftalmopatia Tabela 9 - Classificação clínica da gravidade da oftalmopatia de
severa, pode-se indicar descompressão cirúrgica urgente Graves (NOSPECS)
do globo ocular. Classe Descrição
A 2ª fase (oftalmopatia “inativa”) caracteriza-se por fi- 0 Não existem sinais ou sintomas.
brose dos tecidos retro-oculares, inclusive da musculatura 1 Apenas sinais, sem sintomas.
extrínseca, com redução da motricidade ocular e sequelas
2 Envolvimento de tecidos moles.
estéticas e funcionais (estrabismo, diplopia), tratáveis ape-
3 Proptose.
nas com a correção cirúrgica, ou, eventualmente, apresen-
4 Envolvimento dos músculos extraoculares.
tando alguma melhora com pentoxifilina.
A distinção entre a fase “ativa” e a fase “inativa” pode 5 Envolvimento da córnea.
ser feita utilizando um escore de atividade clínica (CAS, 6 Perda da visão.
apresentado na Tabela 8), ou com métodos de imagem Consideram-se formas leves os pacientes que se apresentam na
(exemplo: a ressonância magnética pode demonstrar acú- classe 2, ou até classe 3 com proptose moderada (23 a 24mm);
mulo de água nos músculos extraoculares, refletindo infla- formas moderadamente severas as classes 3 a 5; e formas muito
severas a classe 6 e a neuropatia óptica.
mação dos mesmos) (Figura 10).

113
ENDOC RI N O LOG I A

- As drogas antitireoidianas por tempo prolongado (12 a 18


meses) são o tratamento de escolha para a maioria dos
pacientes com doença de Graves na América Latina e na
Europa, com chance de remissão da doença em torno de 50%,
reservando-se o iodo radioativo para os casos refratários ou
recorrentes. Já nos Estados Unidos, o iodo radioativo costuma
ser a 1ª opção de tratamento para o Graves;
- Os antitireoidianos (metimazol e propiltiouracila) podem
causar urticária, artralgia, leucopenia e agranulocitose.
Figura 11 - Oftalmopatia de Graves
O propiltiouracila também pode causar vasculites e
hepatotoxicidade, enquanto o metimazol pode causar
colestase;
10. Resumo - A agranulocitose é o efeito adverso mais temido dos
antitireoidianos, observada em 0,1% dos pacientes. Suspeita-
Quadro-resumo
se de agranulocitose na presença de odinofagia e febre alta.
- Tireotoxicose é a síndrome decorrente do excesso de ação dos Os granulócitos séricos estão reduzidos (<1.000 ou <500
hormônios tireoidianos, de qualquer origem. Hipertireoidismo células/mm3). O tratamento inclui suspender o antitireoidiano
é a tireotoxicose decorrente da síntese aumentada de T3/T4 e administrar antibióticos de amplo espectro e, eventualmente,
pela glândula tireoide; G-CSF;
- As causas de tireotoxicose sem hipertireoidismo são sugeridas - O propiltiouracila é o antitireoidiano de escolha para uso
pela captação diminuída ou nula de iodo radioativo pela durante a gestação, visto que o metimazol pode cruzar a
tireoide, e incluem tireotoxicose factícia, fase tireotóxica da placenta e causar malformações no couro cabeludo fetal
tireoidite subaguda, struma ovarii e metástases a distância de (aplasia cutis), que não são provocadas pelo propiltiouracila;
carcinoma folicular da tireoide;
- O iodo radioativo pode ser utilizado com segurança no
- As causas de tireotoxicose com hipertireoidismo são as mais tratamento da doença de Graves em crianças e adolescentes,
comuns e cursam com captação aumentada de iodo radioativo sem aumento do risco de neoplasias com as doses geralmente
pela tireoide; utilizadas;
- As manifestações clínicas da tireotoxicose incluem perda de - Devem-se orientar as mulheres em idade fértil que recebem
peso (por aumento do metabolismo basal e da termogênese), iodo radioativo a evitar gestação por 6 a 12 meses;
hiperatividade adrenérgica por aumento da sensibilidade às - O efeito adverso mais comum do tratamento da doença de
catecolaminas (tremor, sudorese, palpitações), alterações Graves com iodo radioativo é o hipotireoidismo (70 a 80% dos
cardiovasculares (taquicardia, hipertensão sistólica, pacientes);
intolerância aos esforços), neurológicas (insônia, agitação,
irritabilidade), aumento da motilidade gastrointestinal e perda - O bócio multinodular tóxico e o adenoma tóxico devem receber
de massa óssea por aumento da reabsorção de cálcio; sempre tratamento definitivo (iodo radioativo ou cirurgia),
algumas vezes necessitando de controle prévio com drogas
- A doença de Graves é responsável por cerca de 80% dos casos antitireoidianas por tempo variável;
de tireotoxicose;
- É importante o reconhecimento rápido da crise tireotóxica, uma
- Oftalmopatia (exoftalmia e sinais inflamatórios orbitários), emergência endócrina, pois seu tratamento deve ser instituído
mixedema pré-tibial e bócio difuso são exclusivos da doença antes mesmo da confirmação laboratorial da tireotoxicose,
de Graves, uma doença autoimune da tireoide em que o título tendo em vista sua alta mortalidade (20 a 30%);
de anticorpos séricos contra o receptor do TSH (TRAb) está
- Os critérios diagnósticos da crise tireotóxica incluem: hiper-
aumentado em 80 a 100% dos casos;
termia; taquicardia ou insuficiência cardíaca; alterações neu-
- O bócio multinodular tóxico é uma etiologia importante rológicas – psicose, convulsões ou coma; disfunção gastrin-
de hipertireoidismo em pacientes com >50 anos de idade, testinal – diarreia, vômitos ou icterícia; e presença de fator
e geralmente se associa a bócio volumoso, podendo ser desencadeante;
mergulhante (ou seja, com componente intratorácico); - O tratamento da crise tireotóxica deve incluir propiltiouracila
- O adenoma tóxico, ou bócio uninodular tóxico (doença em altas doses, beta-bloqueadores, glicocorticoides e medidas
de Plummer) é provocado por nódulos tireoidianos de suporte. Soluções de iodo frio (exemplo: lugol) podem
hipersecretantes, geralmente com >3cm de diâmetro; ajudar a reduzir mais rapidamente os níveis de T3/T4, mas
- Deve-se suspeitar de tireotoxicose factícia nos casos com devem ser administradas por tempo curto e apenas após o
ausência de bócio, ou com captação muito baixa de iodo início do propiltiouracila. O lítio também pode ser útil, por
radioativo; inibir a secreção de hormônios tireoidianos;

- A presença de dor cervical deve sugerir tireoidite subaguda; - O hipertireoidismo subclínico (TSH baixo com T4 livre normal)
é comum, especialmente em idosos, e aumenta o risco de
- A ultrassonografia de tireoide e a cintilografia com radioiodo disfunção cardíaca, fibrilação atrial (2 a 3 vezes) e fraturas (3
podem auxiliar nos casos em que a etiologia da tireotoxicose a 4 vezes). Devem-se repetir os exames para confirmação. Está
não é clara; indicado o tratamento aos pacientes com TSH persistentemente
- TSH suprimido (<0,1mU/L), associado a T4 (e/ou T3) elevado, <0,1mU/L, >60 anos, cardiopatas, ou com alto risco de fraturas
confirma o diagnóstico de tireotoxicose; por osteoporose;

114
HIPERTIREOIDISMO

- A oftalmopatia de Graves é uma complicação ocular presente


em ~50% dos pacientes com doença de Graves. Cursa com
exoftalmia (geralmente bilateral), sinais flogísticos (edema
e hiperemia da conjuntiva e pálpebras) e alterações da
motricidade ocular. Casos severos (exoftalmia grave com
ulceração da córnea, ou neuropatia óptica) apresentam risco
de perda visual permanente;

ENDOCRINOLOGIA
- Na fase ativa da oftalmopatia de Graves, o tratamento é feito
com glicocorticoides, radioterapia ou, nos casos graves e
refratários, cirurgia descompressiva orbitária de urgência.
Na fase mais tardia (sem inflamação ativa), o tratamento é a
correção cirúrgica das sequelas (estrabismo, exoftalmia);
- O tratamento da oftalmopatia de Graves (principalmente,
das formas moderadas a graves) deve ser feito em centros
multidisciplinares com experiência no seu manejo.

115
ENDOC RI N O LO G I A

CAPÍTULO

10 Tireoidites
Leandro Arthur Diehl / Rodrigo Antônio Brandão Neto

1. Introdução 3. Epidemiologia
As tireoidites abrangem um grupo heterogêneo de As tireoidites são distúrbios comuns.
desordens inflamatórias da glândula tireoide, incluindo A tireoidite de Hashimoto é a causa mais comum de
desde condições agudas/subagudas que se manifestam hipotireoidismo e bócio em países desenvolvidos (onde a
com dor na região da tireoide até condições indolores, de deficiência de iodo não é comum), e a sua incidência pa-
evolução mais insidiosa, que podem manifestar-se, prin- rece estar aumentando com o envelhecimento da popu-
cipalmente, com bócio e/ou disfunção tireoidiana (hipoti- lação e o aumento da ingesta dietética de iodo (no sal de
reoidismo ou tireotoxicose). cozinha, por exemplo). Atinge de 1 a 3,5/1.000 pessoas/
A compreensão da fisiopatologia de cada distúrbio é ano, principalmente entre os 30 e os 50 anos, sendo de 8
importante para o entendimento do seu quadro clínico- a 15 vezes mais comum em mulheres. Além da forma clás-
-laboratorial e para a escolha da melhor terapêutica a ser sica da tireoidite de Hashimoto, de evolução crônica (de-
empregada em cada caso. senvolvimento de bócio e/ou hipotireoidismo ao longo de
vários anos/décadas), há 2 formas de tireoidite autoimune
que se acredita serem variantes da doença de Hashimoto
2. Etiologia com evolução mais curta (subaguda): a tireoidite pós-
Uma classificação das tireoidites conforme a sua etiolo- -parto e a tireoidite linfocítica indolor (ou silenciosa), que
gia está exposta na Tabela 1: também são mais comuns em mulheres, principalmente
na 4ª década de vida.
Tabela 1 - Classificação etiológica das tireoidites
A tireoidite subaguda é a causa mais comum de dor na
Infecciosas tireoide e corresponde a até 5% dos pacientes atendidos
- Tireoidite aguda (supurativa ou séptica); por tireopatias, sendo mais frequente em mulheres (5:1),
- Tireoidite subaguda (granulomatosa, de células gigantes, ou entre os 20 e os 60 anos, e no verão.
de DeQuervain). Já a tireoidite aguda (supurativa) é incomum, atingindo
Autoimunes igualmente ambos os sexos, com predomínio na infância e
- Tireoidite de Hashimoto (linfocítica crônica); em adultos jovens (20 a 40 anos).
Quanto às tireoidites medicamentosas, observa-se que
- Tireoidite linfocítica indolor (silenciosa, ou atípica);
até 43% dos pacientes em uso de amiodarona e 30 a 50%
- Tireoidite pós-parto (uma variante da linfocítica indolor);
dos usuários crônicos de lítio podem apresentar algum dis-
- Doença de Graves. túrbio da tireoide.
Etiologias específicas A tireoidite mais rara é a de Riedel, que tem preferência
- Tireoidite actínica (por irradiação); por mulheres (3 a 4 para cada homem afetado), na faixa
- Tireoidite pós-trauma; etária dos 30 aos 60 anos.
- Tireoidite medicamentosa (amiodarona, lítio);
- Tireoidite associada a doenças sistêmicas (amiloidose, 4. Tireoidite aguda (supurativa, piogênica
sarcoidose). ou séptica)
Etiologia desconhecida
É rara, pois vários fatores protegem a tireoide de infec-
- Tireoidite de Riedel (lenhosa, ou esclerosante crônica).
ções. Dentre esses fatores, os mais importantes são: vas-

116
TIREOIDITES

cularização e drenagem linfática abundantes; presença de


cápsula ao redor da glândula (isolando-a dos tecidos vizi-
nhos); grande conteúdo de iodo; e a produção de peróxido
de hidrogênio no tecido (fundamental para a síntese de T3
e T4).
Entretanto, algumas situações aumentam a chance de

ENDOCRINOLOGIA
infecção da tireoide. A principal delas é uma malformação,
a persistência de fístula do seio piriforme, que predispõe
a abscessos bacterianos no lobo esquerdo da tireoide;
é a causa mais comum de tireoidite aguda em crianças.
Outras situações são imunossupressão por AIDS ou ma-
lignidade (associada a infecções fúngicas), quimioterapia,
fístula do ducto tireoglosso (causando abscessos na linha
média), anormalidades anatômicas locais (bócio multino-
dular, câncer de tireoide, fístula devido a câncer de larin- Figura 1 - Tomografia computadorizada de paciente com tireoidite
supurativa
ge) ou, raramente, inoculação direta (punção aspirativa,
trauma). O tratamento envolve a drenagem cirúrgica dos abs-
Os agentes patogênicos são extremamente variados: cessos existentes e a antibioticoterapia de amplo espectro
bactérias (principal causa – estreptococos, estafilococos, (empírica) ou dirigida para o agente causal, quando este
pneumococos, Salmonella spp, E. coli, meningococos, T. é definido por bacterioscopia ou cultura. Em crianças, a
pallidum, M. tuberculosis), fungos (C. immitis, Aspergillus correção da fístula do seio piriforme está indicada, para
spp, Actinomyces spp, C. albicans, Hystoplasma, Nocardia, a prevenção de recorrências. Alguns pacientes evoluirão
criptococos), protozoários e helmintos (Echinococcus, T. com necessidade de tireoidectomia se houver grandes
cruzi). Na AIDS, agentes importantes são os criptococos e abscessos.
o Pneumocystis jiroveci. A via de infecção pode ser hema-
togênica (em imunodeprimidos) ou por contiguidade (nas 5. Tireoidite subaguda (granulomatosa,
fístulas).
Os pacientes geralmente apresentam um quadro febril
de DeQuervain ou de células gigantes)
agudo, com dor intensa na tireoide e manifestações sép-
ticas: calafrios, febre alta, mialgia etc. Também se podem A - Etiologia
observar hiperemia na região da tireoide, disfagia, disfonia A tireoidite subaguda desenvolve-se, muitas vezes, se-
e linfadenopatia regional. Alguns indivíduos podem relatar manas após um episódio de rinofaringite por vírus, razão
infecção recente de vias aéreas superiores. pela qual muitos autores acreditam que a inflamação ti-
Em imunossuprimidos (AIDS, por exemplo), o qua- reoidiana também tenha etiologia viral. No entanto, são
dro pode ser mais indolente. Embora a maioria dos poucos os casos em que se consegue isolar o agente etio-
pacientes seja eutireóidea, pode haver hipo ou hiperti- lógico, em cultura ou amostra de tecido. Alguns vírus já
reoidismo (dependendo da extensão do acometimento foram encontrados em associação à tireoidite subaguda:
da tireoide). caxumba, sarampo, adenovírus, Epstein-Barr e coxsackie
A investigação laboratorial revela leucocitose e elevação (enterovírus). Parece haver, também, uma tendência ge-
marcante das provas inflamatórias. neticamente determinada ao desenvolvimento desse dis-
A cintilografia pode evidenciar nódulos “frios” (hipo- túrbio, demonstrada pela ocorrência familiar de tireoidite
captantes) correspondentes aos abscessos. A captação de subaguda associada ao HLA-Bw35. Vários pacientes (de 2
iodo radioativo poderá ser normal se o processo infeccioso a 10% dos casos) apresentam, ainda, quadros recorrentes
for localizado. O melhor exame diagnóstico é a punção as- de tireoidite subaguda durante a vida, o que sugere uma
pirativa com agulha fina, com bacterioscopia e cultura da predisposição genética ao distúrbio. Há casos descritos de
secreção. A ultrassonografia (USG) pode ser utilizada para tireoidite subaguda durante o uso de interleucina-2 asso-
guiar a punção. Fístula do seio piriforme pode ser confirma- ciada a TNF-alfa ou interferon-alfa, e no tratamento das
da ao esofagograma com bário. Pacientes com quadro febril hepatites B e C com interferon (embora o quadro de tireoi-
e massa cervical dolorosa apresentam indicação de punção dite nesta situação possa ser mais indolente, semelhante
e drenagem imediatas da glândula. à tireoidite indolor).

117
ENDOC RI N O LOG I A

B - Quadro clínico Com a melhora do quadro, 25% dos pacientes experi-


mentam uma fase de hipotireoidismo transitório (que pode
A principal queixa dos pacientes é a dor severa na re- durar de 4 a 6 meses). A grande maioria dos pacientes, de-
gião da tireoide, podendo haver disfagia e irradiação para a pois, recupera a função tireoidiana normal, mas em 5 a 10%
mandíbula ou ouvido ipsilateral. A dor costuma atingir um dos casos o hipotireoidismo acaba sendo definitivo.
pico de intensidade entre o 4º e o 14º dias após seu início. Essa flutuação do status funcional tireoidiano corres-
A tireoide apresenta-se extremamente dolorosa e sensível, ponde à descrição clássica da evolução trifásica da tireoidite
dificultando, inclusive, o exame clínico. Geralmente, é in- subaguda (tireotoxicose, hipotireoidismo e, finalmente, re-
teiramente acometida, de forma difusa, tornando-se dolo- torno ao eutireoidismo), como ilustrado na Figura 3. Vários
rosa, firme e moderadamente aumentada de volume (2 a estudos mostram, no entanto, que a evolução trifásica tí-
3 vezes). Ocasionalmente (no início do quadro), a doença pica só é observada em aproximadamente 1/3 dos casos,
pode ser restrita a 1 dos lobos tireoidianos. sendo que 1/3 evolui apenas com tireotoxicose, e outro 1/3
unicamente com hipotireoidismo.
A tireoidite subaguda geralmente tem evolução autoli-
mitada, durando de 1 semana a 3 a 6 meses; em 20% dos
casos, entretanto, pode seguir um curso flutuante, com me-
lhoras e recidivas alternando-se ao longo de vários meses.

Figura 3 - Evolução trifásica clássica da tireoidite subaguda

C - Diagnóstico
É característica a redução severa da captação de iodo ra-
dioativo e o aspecto “frio” de toda a glândula à cintilografia
Figura 2 - Dor na região da tireoide: principal sintoma da tireoidite com I131 (o que ajuda no diferencial com a tireoidite aguda,
subaguda em que a captação pode ser normal, e a cintilografia, mos-
trar poucas áreas “frias” correspondentes aos abscessos). A
Sintomas gerais (mal-estar, astenia, mialgia e artralgia) cintilografia com gálio pode ser útil ao evidenciar inflama-
e febre (geralmente leve a moderada, algumas vezes acima ção difusa (Figura 4).
de 40°C) são comuns. Eventualmente, a tireoidite subaguda Um achado diagnóstico útil é a elevação da VHS (muitas
pode apresentar-se como febre de origem indeterminada, vezes, acima de 100mm/h) e da proteína C reativa. A combi-
sem quaisquer outros sintomas. nação de VHS elevado, aumento de T3, T4 e tireoglobulina,
Sintomas tireotóxicos (palpitações, intolerância ao calor, com TSH supresso e baixa captação de iodo radioativo, é
agitação) estão presentes em 50 a 60% dos pacientes nas praticamente patognomônica da tireoidite subaguda. VHS
primeiras semanas. A tireotoxicose ocorre devido à infla- normal praticamente exclui tireoidite subaguda.
mação e à ruptura dos folículos tireoidianos, que acabam Os anticorpos antitireoidianos geralmente são normais.
liberando quantidades variáveis de T3/T4 pré-formados na Nas glândulas eventualmente submetidas à biópsia ou ci-
circulação sanguínea. A tireoidite subaguda, portanto, cor- rurgia (raramente necessária), um aspecto histopatológico
responde a uma importante causa de tireotoxicose sem hi- característico da tireoidite subaguda é a formação de gra-
pertireoidismo (uma vez que não há aumento da síntese de nulomas, formados por células gigantes agrupadas junto a
T3/T4 pela tireoide). Essa fase (tireotóxica) dura, em geral, focos de folículos tireoidianos em degeneração (daí o nome
de 2 a 8 semanas. tireoidite granulomatosa, ou “de células gigantes”).

118
TIREOIDITES

Os sintomas de tireotoxicose devem ser tratados ape-


nas com beta-bloqueadores (atenolol ou propranolol).
Antitireoidianos, como o metimazol ou o propiltiouracila,
não estão indicados, pois não há aumento da síntese de
hormônios tireoidianos, apenas maior liberação de T3/T4
pelo processo inflamatório na glândula.
O hipotireoidismo raramente requer tratamento, pois

ENDOCRINOLOGIA
geralmente é leve e autolimitado, mas pacientes sintomáti-
cos devem receber levotiroxina durante 3 a 6 meses, sendo
posteriormente reavaliados quanto à necessidade de conti-
nuar a reposição de T4.

6. Tireoidites autoimunes
São patologias de evolução geralmente crônica ou indo-
lente (exemplo: tireoidite de Hashimoto), embora existam
algumas formas de tireoidite autoimune com evolução mais
curta ou subaguda, como a tireoidite indolor e a tireoidite
pós-parto (que alguns autores consideram variantes da do-
ença de Hashimoto). Todas cursam com infiltrado linfocítico
difuso na tireoide, que também apresenta graus variáveis
de fibrose e atrofia parenquimatosa. A doença de Graves
também é considerada uma tireoidite crônica autoimune.

A - Tireoidite de Hashimoto (linfocítica crônica)


A tireoidite de Hashimoto foi descrita, originalmente,
pelo médico japonês Hakaru Hashimoto, em 1912, com o
nome Struma lymphomatosa. Trata-se de uma das doenças
mais comuns da tireoide e a causa mais frequente de hipo-
tireoidismo nos países desenvolvidos. Ocorre em qualquer
faixa etária, mas é mais comum após os 30 a 40 anos (e 3
vezes mais comum acima dos 60 anos). É 8 a 15 vezes mais
comum no sexo feminino. Alguns autores afirmam que a ti-
reoidite de Hashimoto é a doença autoimune mais comum
na espécie humana.
O bócio está presente em cerca de 90% dos casos (for-
Figura 4 - Aspecto cintilográfico: (A) tireoide normal e (B) tireoide ma bociogênica da tireoidite de Hashimoto); o aumento da
acometida por tireoidite subaguda; notar a ausência de captação tireoide geralmente é de volume leve a moderado, simé-
de iodo radioativo na imagem de cima trico, de lento desenvolvimento (ao longo de décadas), e
de consistência firme à palpação. Em poucos casos, pode
D - Tratamento haver um crescimento rápido do bócio, com sintomas com-
pressivos locais. Raros pacientes apresentam-se com queixa
O tratamento é sintomático. Anti-inflamatórios não de dor na região da tireoide (forma dolorosa da tireoidite
esteroidais são a 1ª opção para controlar a dor tireoidia- de Hashimoto), muitas vezes de difícil manejo.
na moderada. Na dor mais severa (refratária aos anti-infla- Dez por cento dos pacientes apresentam-se, inicialmen-
matórios), podem-se usar corticoides (1mg/kg/dia ou 40 a te, com tireoide diminuída, talvez refletindo o estágio final
60mg/dia de prednisona, ou equivalente). Na tireoidite su- do processo destrutivo crônico da glândula (forma atrófica
baguda, o início da corticoterapia tipicamente proporciona da tireoidite de Hashimoto). Essa forma atrófica parece ser
alívio rápido e dramático da dor, com melhora em menos mais comum em asiáticos.
de 24 horas. Se não houver melhora importante da dor com Supõe-se que a doença evolua progressivamente, do
a corticoterapia, devem-se considerar outras causas de dor eutireoidismo para o hipotireoidismo subclínico e, final-
cervical. Mantêm-se os corticoides por 2 a 3 semanas, pro- mente, para o hipotireoidismo clínico (franco) ao longo de
cedendo-se depois à redução gradual da dose ao longo de anos ou décadas.
mais 2 a 3 semanas. A retirada muito abrupta do corticoide Portanto, a tireoidite de Hashimoto pode ser diagnosti-
pode provocar recidiva da dor. cada em pacientes com bócio (eutireóideos ou em hipoti-

119
ENDOC RI N O LOG I A

reoidismo, subclínico ou clínico) ou com hipotireoidismo (com do TSH das células foliculares tireoidianas, com ação esti-
ou sem bócio). Uma apresentação atípica é aquela em que o mulatória, T-helper 2).
paciente apresenta uma tireotoxicose transitória no início da A importância da autoimunidade na gênese da tireoidi-
doença, devido à liberação de hormônios por um processo te de Hashimoto pode ser ilustrada pela sua forte ligação
destrutivo exacerbado (a chamada “hashitoxicose”). com o sistema HLA (Antígeno Leucocitário Humano), sen-
O hipotireoidismo está presente em ao menos 20% na do que o tipo atrófico parece estar associado ao HLA-DR3,
1ª avaliação clínica, e sua frequência aumenta com a pro- e o tipo bociogênico, ao HLA-DR5. Além disso, a tireoidite
gressão da doença. A progressão do eutireoidismo para o de Hashimoto pode se associar a outras patologias autoi-
hipotireoidismo subclínico, e daí para o hipotireoidismo munes, como na síndrome poliglandular autoimune tipo 2
franco, ocorre em uma taxa de 3 a 15% ao ano. (síndrome de Schmidt), de característica familiar e padrão
Embora o hipotireoidismo da doença de Hashimoto de herança autossômico dominante (insuficiência adrenal,
seja, na maior parte das vezes, definitivo (com necessidade hipotireoidismo, diabetes mellitus tipo 1 e, ocasionalmen-
de reposição vitalícia de T4), estudos mais recentes mos- te, hipopituitarismo e falência ovariana prematura). Outras
tram que 10 a 25% dos pacientes podem recuperar a função doenças autoimunes frequentemente associadas à doença
de Hashimoto são anemia perniciosa, miastenia grave, hi-
tireoidiana normal após vários anos de acompanhamento
poparatireoidismo, vitiligo, alopecia, síndrome de Sjögren,
(hipotireoidismo transitório). Cerca de 90% dos folículos
doença celíaca e artrite reumatoide.
precisam ser destruídos para o aparecimento de hipotireoi-
Observa-se forte agregação familiar dos casos de
dismo definitivo.
Hashimoto. A positividade para autoanticorpos antitireoi-
A grande maioria dos pacientes com Hashimoto apre-
dianos (anti-TPO) parece ter um padrão de herança autos-
senta títulos séricos elevados de anticorpos tireoidianos, sômica dominante.
principalmente o antitireoperoxidase (anti-TPO), presen- Além da predisposição genética, fatores ambientais (in-
te em 80 a 99%, e o antitireoglobulina (anti-Tg), presente cluindo uma dieta rica em iodo) também têm importância
em 30 a 60%. Porém, esses anticorpos não parecem ter no desenvolvimento da doença, visto que a concordância
importância fisiopatológica, o que pode ser ilustrado pelo não é completa em gêmeos monozigóticos.
fato de que sua passagem pela placenta não causa doença O diagnóstico da doença de Hashimoto é feito pelo acha-
tireoidiana no feto. Tais anticorpos também não são especí- do de autoanticorpos elevados (anti-TPO ou anti-Tg) em um
ficos, pois também podem estar elevados em pessoas sem paciente com bócio e/ou hipotireoidismo. O anti-TPO é o
tireopatia. De fato, até 10% da população geral apresentam mais sensível, por isso geralmente é o 1º a ser solicitado.
anti-Tg, e 15%, anti-TPO elevados. Entretanto, vários auto- Outra alteração muito característica dessa doença é a
res defendem que boa parte (5 a 30%) dos portadores de hipoecogenicidade do parênquima tireoidiano à USG. A hi-
anticorpos, supostamente saudáveis, deve possuir algum poecogenicidade parece ser, em muitos pacientes, a mani-
grau de tireoidite inicial, ainda assintomática. Outro auto- festação mais precoce da doença de Hashimoto, pois pode
anticorpo encontrado em 25% dos casos de Hashimoto é surgir anos antes da elevação dos títulos de anti-TPO e do
o anti-NIS, que é altamente específico (não encontrado em surgimento de bócio e/ou hipotireoidismo. À USG, a glân-
indivíduos normais). dula pode apresentar também um aumento de volume e
Alguns pacientes também apresentam anticorpos blo- uma textura heterogênea, algumas vezes com nodulações
queadores do receptor de TSH, que podem agravar o hipo- mal definidas, os chamados “pseudonódulos”, correspon-
tireoidismo. A presença de anticorpos estimuladores e blo- dendo a áreas de infiltração linfocitária (Figura 5).
queadores do receptor do TSH, em momentos diferentes,
pode determinar fases alternantes de tireotoxicose e de
hipotireoidismo no mesmo paciente.
A tireoidite de Hashimoto pode ter remissão (redução
do bócio e dos títulos de anticorpos) durante a gravidez, de-
vido à imunossupressão típica dessa condição, no entanto,
geralmente há o reaparecimento da doença no puerpério
(com tireotoxicose ou hipotireoidismo), podendo ser difícil
o diagnóstico diferencial com a tireoidite pós-parto.
O hipotireoidismo na doença de Hashimoto é determi-
nado pela destruição imunomediada do parênquima tireoi-
diano. A autoimunidade tireoidiana é do tipo citotóxico,
mediada por células T citotóxicas ou natural killer (resposta
imune celular, T-helper 1), na doença de Hashimoto, o que
a diferencia da doença de Graves, em que a autoimunidade Figura 5 - Aspecto ultrassonográfico da tireoide na doença de
é predominantemente humoral (estímulo aos linfócitos B Hashimoto: observa-se uma glândula discretamente aumentada
para produção de anticorpos específicos contra o receptor de volume, com textura heterogênea e hipoecoica do parênquima

120
TIREOIDITES

A cintilografia de tireoide não é muito útil, pois mesmo permanente). Uma vez iniciada reposição com levotiroxina,
pacientes com hipotireoidismo franco podem apresentar esta deve ser suspensa após 6 a 9 meses, para a reavaliação
aspecto cintilográfico e captação de iodo radioativo seme- da função tireoidiana.
lhantes aos eutireóideos.
Ao exame citopatológico ou anatomopatológico, po- C - Tireoidite pós-parto
dem-se observar infiltrado linfocítico (podendo formar folí- Esta é, clínica e laboratorialmente, idêntica à tireoidite
culos linfoides e centros germinativos, compostos por iguais linfocítica indolor, com a diferença de acometer mulheres

ENDOCRINOLOGIA
proporções de linfócitos B e T), destruição das células foli- no puerpério. Por definição, pode ocorrer até 1 ano após o
culares (algumas se tornando maiores e acidofílicas devido parto. É extremamente comum e provavelmente subdiag-
ao maior conteúdo de mitocôndrias – células de Hürthle, ou nosticada, e pode ser encontrada em até 8 a 10% das ges-
de Askanazy), redução dos espaços foliculares e do conteú- tações. Além disso, é mais comum em mulheres com altos
do de coloide, e fibrose, em graus variáveis (Figura 6). títulos de anticorpos anti-TPO (no 1º trimestre de gravidez
ou no puerpério imediato), ou com outras doenças autoi-
munes (diabetes mellitus tipo 1), ou com história familiar
de tireopatia autoimune. Mulheres com altos títulos de
anti-TPO no início da gestação têm 50% de risco de evoluir
com tireoidite pós-parto, comparadas a apenas 2% entre as
mulheres sem anti-TPO.
A evolução trifásica clássica é vista em apenas 1/3 dos
casos (Figura 3). A fase inicial (tireotóxica) tem início de
1 a 6 meses após o parto e dura de 1 a 2 meses. Quando
há uma fase hipotireóidea, esta se inicia 4 a 8 meses após
o parto e persiste por 4 a 6 meses, e os sintomas podem
ser erroneamente atribuídos a uma depressão pós-parto.
Hipotireoidismo permanente desenvolve-se em 20% após 1
ano e em até 50% em 7 anos (principalmente em multípa-
Figura 6 - Anatomopatológico da tireoidite de Hashimoto ras). Após um episódio de tireoidite pós-parto, a probabili-
dade de um novo episódio em uma gestação subsequente
Uma preocupação nos pacientes com tireoidite de é em torno de 70%. O tratamento é o mesmo da tireoidite
Hashimoto é a possibilidade de evolução para linfoma pri- indolor.
mário da tireoide, que, apesar de raro, é 67 vezes mais co-
mum nessa população. Deve-se suspeitar dele quando há
um crescimento muito rápido da glândula em pacientes 7. Tireoidite de Riedel (lenhosa, esclero-
com hipotireoidismo prévio, principalmente em mulheres sante crônica)
com mais de 60 anos. Quando houver um nódulo tireoidia-
Esta é uma forma extremamente rara de tireoidite,
no dominante, deve ser avaliado por punção aspirativa com
caracterizada por uma fibrose progressiva da tireoide e,
agulha fina.
finalmente, destruição completa da glândula, com a possi-
bilidade de haver sintomas compressivos locais e aderência
B - Tireoidite linfocítica (indolor, atípica, esporá-
aos tecidos vizinhos. A etiologia é desconhecida, e alguns
dica, silenciosa)
casos podem representar um estágio muito avançado da
Esta é uma forma subaguda da tireoidite de Hashimoto, tireoidite de Hashimoto. Em uma parcela dos pacientes, a
que pode ser responsável por 1% de todas as tireotoxico- tireoidite lenhosa é uma manifestação local de um proces-
ses. Pode apresentar uma evolução trifásica semelhante à so esclerosante sistêmico (fibroesclerosite multifocal), com
da tireoidite subaguda, mas não há dor cervical nem sinais fibrose do retroperitônio, glândulas lacrimais, parótidas,
inflamatórios. A maioria dos pacientes permanece eutireói- mediastino, pulmões, miocárdio e ductos biliares.
dea após a resolução do quadro, caracterizando a natureza Queixas comuns dos pacientes são dispneia, disfagia,
autolimitada da patologia, mas até 20% podem evoluir para disfonia ou afonia. A tireoide pode ser de tamanho nor-
hipotireoidismo permanente. Bócio (indolor) e anticorpos mal ou aumentada, e sua consistência é extremamente
elevados estão presentes em pelo menos 50%, e podem endurecida (pétrea). Geralmente, os indivíduos afetados
acontecer recorrências. são eutireóideos, mas pode surgir hipotireoidismo com a
A captação de iodo radioativo é muito baixa, uma ca- substituição completa da glândula por tecido fibroso (em
racterística valiosa no diagnóstico diferencial com doença até 30%). Hipoparatireoidismo pode resultar de fibrose das
de Graves (em que a captação está aumentada). O trata- paratireoides. Anticorpos antitireoides podem estar eleva-
mento é feito com beta-bloqueadores na fase tireotóxica, e dos em 2/3 dos casos. A captação de iodo radioativo pode
levotiroxina na fase hipotireóidea (quando sintomática ou ser normal ou baixa.

121
ENDOC RI N O LOG I A

Corticoides em altas doses podem ser úteis no início da doença. Em casos resistentes ou recidivantes, pode-se usar
tamoxifeno, que inibe a proliferação dos fibroblastos. A cirurgia está indicada na compressão de vias aéreas (lobectomia
unilateral ou traqueostomia), ou na suspeita de malignidade, e a levotiroxina, no hipotireoidismo.

Tabela 2 - Principais características dos vários tipos de tireoidite


Frequência Achados clínicos Achados laboratoriais Tratamento
- Abscessos no USG; - Drenagem dos absces-
- Dor intensa, formação
Tireoidite aguda - Rara. - Aumento das provas de sos e antibioticoterapia
de abscessos, febre.
atividade inflamatória. de amplo espectro.
- Aumento das provas de - AINEs ou corticoide
- Dor intensa;
atividade inflamatória; para dor;
- Frequente (causa mais - Febre e mialgia;
- Baixa captação de iodo - Beta-bloqueadores para
Tireoidite subaguda comum de dor na ti- - Tireotoxicose e/ou
radioativo; tireotoxicose;
reoide). hipotireoidismo (evolu-
- Disfunção tireoidiana (va- - Levotiroxina para hipo-
ção trifásica).
riável). tireoidismo.
- Elevação de anti-TPO (90%)
- Frequente (causa mais e anti-Tg (60%);
Tireoidite de - Bócio indolor firme; - Levotiroxina para hipo-
comum de hipotireoi- - Bócio moderado difuso
Hashimoto - Hipotireoidismo. tireoidismo.
dismo). hipoecoico no USG;
- TSH elevado.
- Elevação de anti-TPO e anti-
- Tireotoxicose e/ou
-Tg na maioria; - Beta-bloqueadores para
hipotireoidismo;
- Frequente (8 a 10% das - Disfunção tireoidiana (va- tireotoxicose;
Tireoidite pós-parto - Bócio indolor eventual;
gestações). riável); - Levotiroxina para hipo-
- Ocorre nos 12 meses
- Evolução para hipotireoidis- tireoidismo.
após o puerpério.
mo definitivo.
- Tireotoxicose e/ou - Elevação de anti-TPO e
hipotireoidismo; anti-Tg na maioria; - Beta-bloqueadores
- Bócio indolor even- - Disfunção tireoidiana (va- para tireotoxicose;
Tireoidite indolor - Incomum.
tual; riável); - Levotiroxina para hipo-
- Ocorre fora do puer- - Evolução para hipotireoi- tireoidismo.
pério. dismo definitivo.
- Antitireoidianos por
- Elevação de TRAb (90%),
tempo prolongado
- Bócio difuso indolor; anti-TPO, anti-Tg;
- Frequente (causa mais (remissão em 50%
- Hipertireoidismo; - TSH suprimido;
Doença de Graves comum de hipertireoi- com uso por 12 a 18
- Oftalmopatia (50%); - Bócio difuso ao USG;
dismo). meses);
- Dermopatia (1%). - Alta captação de iodo
- Iodo radioativo;
radioativo.
- Tireoidectomia.
- Tamoxifeno ou corti-
coide;
- Fibrose intensa;
- Bócio extremamente - Cirurgia se sintomas
Tireoidite de Riedel - Rara. - TSH elevado em 30%;
endurecido (lenhoso). compressivos;
- Anti-TPO elevado (60%).
- Levotiroxina para hipo-
tireoidismo.

8. Tireoidites medicamentosas

A - Amiodarona
Trata-se de um antiarrítmico largamente utilizado, cuja molécula é composta por 38% de iodo, e que tem semelhanças
estruturais com os próprios hormônios da tireoide (Figura 7). A quantidade de iodo contida em uma dose média de amio-
darona (200mg/dia), 75mg, é cerca de 500 vezes maior que a ingesta diária recomendada desse sal (100 a 150mcg/dia).

122
TIREOIDITES

tese e liberação de hormônios tireoidianos, induzida


pelo excesso de iodo (fenômeno de Jod-Basedow). O
tratamento exige o uso de altas doses de antitireoi-
dianos, algumas vezes em associação a perclorato de
potássio (que inibe a captação de iodo pela tireoide).
O lítio também pode ser útil. Geralmente, é necessário
tratamento ablativo da glândula após o controle da ti-

ENDOCRINOLOGIA
reotoxicose. A amiodarona deve ser suspensa sempre
que possível, ou seja, quando sua retirada não aumen-
ta o risco de arritmias potencialmente graves;
- Tipo II: é uma tireoidite destrutiva, que leva à libera-
ção maciça de hormônio tireoidiano pela ruptura dos
folículos, mas sem aumento da síntese. Ocorre em pa-
cientes com tireóideos previamente normais, por ação
citotóxica direta da amiodarona ou dos seus metabóli-
Figura 7 - Comparação das moléculas de amiodarona e tiroxina (T4)
tos (desetilamiodarona, DEA). O tratamento do tipo II
Em áreas iodo-suficientes, como no Brasil, o hipotireoi- é feito com glicocorticoides em doses elevadas; o ácido
dismo é a disfunção tireoidiana mais comum em usuários iopanoico também pode ser útil. Beta-bloqueadores
de amiodarona, atingindo até 20% desses pacientes (prin- podem ser utilizados para controle da frequência car-
cipalmente, os portadores de tireoidite autoimune prévia, díaca. A suspensão da amiodarona deve ser realizada
detectados por altos títulos de anti-TPO). Parece dever-se à sempre que possível.
interferência da amiodarona no transporte intracelular de
Muitas vezes, é difícil distinguir os 2 tipos de tireotoxi-
iodo. O tratamento é feito com levotiroxina, muitas vezes
cose induzida por amiodarona, até porque ambos podem
em doses altas. A suspensão da amiodarona, no hipotireoi- estar associados no mesmo paciente (formas mistas). USG
dismo, não é obrigatória, visto que é uma droga extrema- com Doppler pode mostrar hipervascularização no tipo I
mente lipofílica, portanto sua meia-vida é muito prolonga- e hipovascularização no tipo II. Alguns estudos sugeriram
da (até 100 dias em alguns estudos). uma maior concentração de interleucina-6 no tipo II, mas
Por outro lado, em áreas iodo-deficientes, como em algu- esse achado não foi confirmado. A captação de iodo radioa-
mas regiões da Europa (Itália), a disfunção tireoidiana mais tivo está reduzida nos 2 tipos.
frequentemente observada nos usuários de amiodarona é Devido à alta frequência de disfunções tireoidianas, re-
a tireotoxicose (observada em até 23% dos pacientes). São comenda-se uma avaliação prévia da função tireoidiana em
descritos 2 tipos de tireotoxicose induzida por amiodarona: todos os pacientes que vão iniciar o uso de amiodarona, e
- Tipo I: ocorre em pacientes com tireopatia prévia novas avaliações a cada 6 meses durante todo o tempo de
(principalmente, bócio nodular) e se deve a maior sín- uso da droga.
Tabela 3 - Disfunções tireoidianas associadas ao uso de amiodarona
Frequência Mecanismo Diagnóstico Tratamento
- Até 20%, mais comum em
- Inibição do transporte de - TSH elevado; - Levotiroxina;
áreas suficientes de iodo e
Hipotireoidismo iodo pela célula folicular - T4 baixo; - Suspensão da amiodarona não
em pessoas com anti-TPO
tireoidiana. - Anti-TPO elevado. é obrigatória.
elevado.
- Até 23%, mais comum em
Tireotoxicose
áreas deficientes de iodo.
- Antitireoidianos em doses
- TSH suprimido;
altas;
- Oferta excessiva de iodo - Bócio nodular ao USG;
- Beta-bloqueadores;
Tireotoxicose - Mais comum em pessoas para uma tireoide com - Fluxo sanguíneo tireoidia-
- Suspensão da amiodarona se
tipo I com bócio nodular prévio. áreas nodulares autônomas no normal ou aumentado
possível;
(Jod-Basedow). ao Doppler;
- Lítio ou perclorato nos casos
- IL-6 normal.
refratários.
- TSH suprimido;
- Corticoides;
- Tireoide normal ao USG;
- Mais comum em pessoas - Efeito citotóxico direto - Beta-bloqueadores;
Tireotoxicose - Fluxo sanguíneo tireoidia-
com tireoide previamente sobre a tireoide (tireoidite - Suspensão da amiodarona se
tipo II no baixo ou ausente ao
normal. destrutiva). possível;
Doppler;
- Muitas vezes, autolimitada.
- IL-6 aumentada.

123
ENDOC RI N O LOG I A

B - Lítio 10. Resumo


O carbonato de lítio, usado para tratamento do distúr-
bio bipolar, bloqueia a secreção de hormônios tireoidia- Quadro-resumo
nos e pode agravar o fenômeno autoimune em pacientes - A tireoidite aguda é rara, costuma ser causada por bactérias e
portadores de tireoidite de Hashimoto. Dos usuários crô- manifesta-se com intensa toxemia, dor e flutuação cervical. O
tratamento é feito com antibioticoterapia sistêmica de amplo
nicos de lítio, até 1/3 desenvolve altos títulos de anticor-
espectro e drenagem dos abscessos;
pos antitireoidianos, e cerca de 50% desenvolvem bócio.
- A imunossupressão e a presença de fístula do seio piriforme são
Hipotireoidismo subclínico foi descrito em 20%, e hipoti- os principais fatores predisponentes à ocorrência de tireoidite
reoidismo franco, em 20% (mais comuns em áreas iodo-su- aguda. A correção cirúrgica da fístula do seio piriforme previne
ficientes). O hipotireoidismo, em alguns casos, é reversível a recorrência da doença;
com a suspensão do lítio. Também pode ocorrer, mais rara- - A tireoidite subaguda é a causa mais comum de dor na tireoide,
mente, tireotoxicose (destrutiva). Recomenda-se a avalia- podendo apresentar-se após uma infecção viral de vias aéreas
superiores. Cursa com sintomas infecciosos (febre, mialgia) e
ção rotineira do TSH em usuários crônicos de lítio (no início elevação das provas inflamatórias;
do tratamento e a cada 6 meses). - Na tireoidite subaguda, pode haver uma evolução trifásica
em 1/3 dos casos: tireotoxicose inicial por 1 a 2 semanas,
C - Interferon-alfa e interleucina-2 seguida de hipotireoidismo por 2 a 6 meses e, finalmente,
retorno ao eutireoidismo. Em 5 a 10% dos casos, pode haver
O uso destes imunomoduladores pode ocasionar o apa- hipotireoidismo definitivo;
recimento de anticorpos antitireoidianos em 6 a 15% dos - Sugere-se tireoidite subaguda pela presença de dor cervical e
usuários, podendo levar à tireoidite (destrutiva) com tireo- captação de iodo radioativo extremamente baixa;
toxicose transitória ou hipotireoidismo, principalmente em - O tratamento da tireoidite subaguda é sintomático: anti-
mulheres com hepatite C. inflamatórios não esteroidais ou corticoides para a dor, beta-
A doença de Graves também pode ser causada pelo bloqueadores para os sintomas de tireotoxicose, e levotiroxina
para o hipotireoidismo;
interferon-alfa, e o diagnóstico diferencial com a tireotoxi-
- A tireoidite de Hashimoto (ou linfocítica crônica) cursa com
cose causada por destruição tireoidiana pode ser feito por
a destruição autoimune da tireoide (resposta imune celular)
meio da captação de iodo radioativo, que está aumentada e é a causa mais comum de hipotireoidismo em países
na 1ª e reduzida na 2ª situação. desenvolvidos (inclusive no Brasil), onde a deficiência de iodo
O tratamento da fase tireotóxica da tireoidite pode ser não é endêmica;
feito com beta-bloqueadores, anti-inflamatórios e/ou cor- - A tireoidite de Hashimoto é de 8 a 15 vezes mais comum
em mulheres e surge tipicamente por volta dos 30 a 40
ticoides. A doença de Graves deve ser tratada com antiti-
anos, cursando com hipotireoidismo e/ou bócio (de volume
reoidianos. Em geral, a disfunção tireoidiana desaparece moderado e consistência firme);
com a suspensão do imunomodulador, mas os pacientes - Hipoecogenicidade da tireoide à USG e títulos elevados de
permanecem sob risco aumentado de tireopatia. A função autoanticorpos (anti-TPO ou anti-Tg) em pacientes com bócio
tireoidiana deve ser rotineiramente avaliada em todos os e/ou hipotireoidismo indicam tireoidite de Hashimoto;
pacientes durante o uso de interferon-alfa ou interleuci- - A tireoidite linfocítica, uma forma subaguda da tireoidite de
na-2, inicialmente e a cada 6 meses. Hashimoto, pode evoluir com quadro semelhante à tireoidite
subaguda (tireotoxicose seguida de hipotireoidismo e retorno
ao eutireoidismo), mas sem dor em região cervical. Anti-TPO é
9. Tireoidite pós-radiação frequentemente elevado;
- A tireoidite pós-parto é um fenômeno autoimune, que pode
Ocasionalmente, pacientes com hipertireoidismo cau- ocorrer até 1 ano após o parto, e acomete cerca de 8 a 10%
sado por doença de Graves podem apresentar, logo após de todas as gestações. Pode evoluir para hipotireoidismo
o tratamento com uma dose de I131, um quadro de dor na permanente (até 50% dos casos, após vários anos) ou recorrer
região cervical e hipersensibilidade local, que dura, tipica- numa nova gestação (70%);
mente, 5 a 10 dias e se deve à lesão tecidual direta pela ra- - A presença de anti-TPO elevado no 1º trimestre da gestação
prediz risco de tireoidite pós-parto (50% nas gestantes com
diação, bem como à necrose de células foliculares da tireoi-
anti-TPO elevado, 2% nas gestantes sem anti-TPO);
de, com inflamação associada. A dor cervical, na maioria
- A amiodarona provoca disfunção tireoidiana em até 43%
dos casos, é leve e melhora espontaneamente; algumas ve- dos usuários. Em áreas iodo-suficientes (exemplo: Brasil), a
zes, é necessário o uso de analgésicos ou anti-inflamatórios disfunção mais comum é o hipotireoidismo, enquanto em áreas
não hormonais. Pode, ainda, haver exacerbação transitória iodo-deficientes (exemplo: Itália), a disfunção mais comum é a
tireotoxicose;
da tireotoxicose.

124
TIREOIDITES

- Existem 2 tipos de tireotoxicose por amiodarona: o tipo I (em


que há síntese aumentada de T3/T4, devido à sobrecarga
de iodo, em tireóideos previamente anormais) e o tipo II
(em que há destruição do parênquima tireoidiano por efeito
citotóxico direto da amiodarona ou seus metabólitos, em
tireóideos previamente normais). O tratamento da 1ª é
feito com antitireoidianos, perclorato e lítio, e a 2ª é tratada
com corticoides e beta-bloqueadores. Em ambas, deve-se

ENDOCRINOLOGIA
suspender a amiodarona sempre que possível (caso não haja
risco de arritmia potencialmente fatal);
- Lítio causa bócio em pelo menos 50% dos usuários, além
de hipotireoidismo em uma grande parcela (subclínico em
20%, franco em 20%), especialmente naqueles com anti-
TPO elevado. O hipotireoidismo pode ser reversível com a
suspensão do lítio, em alguns casos;
- A tireoidite de Riedel é caracterizada pela fibrose intensa da
tireoide, que se torna de consistência lenhosa ou pétrea. Pode
ter hipotireoidismo em 30%, mas a principal manifestação é
local (dispneia, disfagia etc.). Além disso, pode fazer parte de
um processo esclerosante sistêmico.

125
ENDO C RI N O LOG I A

CAPÍTULO

11 Nódulos e câncer de tireoide


Leandro Arthur Diehl / Rodrigo Antônio Brandão Neto

1. Introdução Felizmente, apenas uma pequena proporção dos nódu-


los tireoidianos é maligna: em média, 5%, variando de 4 a
O câncer de tireoide constitui a neoplasia endócrina ma- 10% nos diferentes estudos.
ligna mais comum, embora contribua para apenas 0,5% das Dessa forma, a 1ª tarefa do médico que avalia um pa-
neoplasias malignas em homens e 1,5% em mulheres nos ciente com nódulo tireoidiano é discriminar se a lesão é be-
EUA. Porém, sua incidência vem aumentando nas últimas
nigna ou maligna. Além disso, o clínico deve também avaliar
décadas, com o crescimento principalmente no número de
se o nódulo é hiperfuncionante ou sintomático (Tabela 1).
casos com nódulos pequenos, de melhor prognóstico, o que
pode ser atribuído à melhora do diagnóstico ou à influência Tabela 1 - Perguntas a que o clínico deve tentar responder, na ava-
de fatores ambientais, como a ingesta de iodo. Apesar do liação de um nódulo tireoidiano
aumento da incidência, a mortalidade pelo câncer de tireoi- Pergunta Ferramentas para avaliação
de permanece inalterada.
O nódulo é maligno? História, exame físico, USG, PAAF
A grande maioria dos casos evolui para cura com o tra-
O nódulo é História, exame físico, TSH,
tamento adequado, principalmente se o diagnóstico é feito
hiperfuncionante? cintilografia
em um estágio precoce. Por essa razão, é fundamental que
O nódulo é sintomático? História, exame físico
os médicos estejam atentos à possibilidade de câncer de
tireoide para possibilitar a detecção de lesões iniciais, com
B - Risco de malignidade
melhor evolução.
Algumas características da história, exame físico e USG
2. Nódulos de tireoide aumentam a suspeita de malignidade na avaliação de um
determinado nódulo. Os achados que mais fazem aumentar
a suspeita de malignidade são história familiar de câncer
A - Epidemiologia da tireoide (em especial, o medular), exposição prévia à
Os nódulos de tireoide constituem a principal forma de radiação, nódulos em indivíduos jovens (de 15 a 20% dos
apresentação clínica dos cânceres dessa glândula e são um nódulos em pacientes com <20 anos e cerca de 50% nas
problema clínico extremamente comum. pessoas com <14 anos são malignos), presença de linfade-
Usando a palpação, que detecta com facilidade nódu- nopatia regional ou paralisia de corda vocal, e microcalcifi-
los maiores que 1,5 a 2cm de diâmetro, pode-se encontrar cações em um nódulo sólido hipoecoico à USG. Um estudo
pelo menos 1 nódulo tireoidiano em 4 a 7% das mulheres recente, ainda, sugeriu que níveis discretamente elevados
e em 1% dos homens adultos, de acordo com várias casu- de TSH (mesmo que ainda dentro da faixa considerada nor-
ísticas. Se for utilizada a ultrassonografia (USG), um exame mal) podem fazer aumentar o risco de malignidade de um
altamente sensível e capaz de identificar nódulos com diâ- nódulo, embora esse achado ainda precise ser confirmado
metro de 2 ou 3mm, a prevalência será ainda maior: cerca por estudos adicionais. Os fatores associados ao aumento
de 50% dos adultos (variando de 20 a 70%), principalmente de risco de malignidade estão expostos na Tabela 2.
as mulheres idosas, vão apresentar pelo menos 1 nódulo na
tireoide. É muito comum, atualmente, o achado acidental Tabela 2 - Características que aumentam a suspeita de malignida-
de, na avaliação de um nódulo de tireoide
de nódulos tireoidianos com o uso de métodos de imagem
indicados para avaliação de outras patologias (por exemplo: História clínica
USG com Doppler cervical na suspeita de aterosclerose de - História familiar de carcinoma de tireoide (especialmente o
carótidas). medular);

126
N Ó D U LO S E C Â N C E R D E T I R E O I D E

História clínica de Nódulos e Câncer Diferenciado de Tireoide, publicado


- História familiar de NEM tipo 2; em 2007, recomenda investigação invasiva (ou seja, bióp-
sia por punção aspirativa – PATAF) para todos os nódulos
- Extremos de idade (<20 ou >60 anos);
tireoidianos com mais de 1cm, enquanto essa investigação
- Sexo masculino;
só é necessária para nódulos menores de 1cm quando es-
- História de irradiação prévia de cabeça/pescoço; tes apresentam características clínicas ou ultrassonográfi-
- Crescimento rápido; cas altamente suspeitas. O mesmo consenso sugere que

ENDOCRINOLOGIA
- Sintomas compressivos (dispneia, disfagia ou disfonia). nódulos <1cm sem características suspeitas podem ser
Exame físico apenas acompanhados com USG e TSH periódicos, estan-
- Nódulo >4cm; do indicada a biópsia a posteriori se há crescimento signi-
ficativo do nódulo (>1cm) ou surgimento de características
- Nódulo muito endurecido;
suspeitas.
- Nódulo doloroso;
A investigação de disfunção tireoidiana deve ser feita
- Nódulo fixo às estruturas vizinhas; em todos os casos, por meio da dosagem de TSH. Caso este
- Linfadenopatia cervical; se encontre suprimido, deve ser realizada dosagem de T4L
- Paralisia de cordas vocais. ou T3, para confirmar a tireotoxicose. Aproximadamente,
Ultrassonografia 10% dos nódulos palpáveis apresentam autonomia sufi-
- Hipoecogenicidade; ciente para reduzir os níveis de TSH. Se as concentrações
- Margens indefinidas; deste forem elevadas (sugerindo hipotireoidismo), os tí-
tulos de anticorpo antitireoperoxidase (anti-TPO) deverão
- Microcalcificações;
ser aferidos, para confirmar o diagnóstico de tireoidite de
- Fluxo aumentado na área central do nódulo ao Doppler; Hashimoto, e a investigação de malignidade do nódulo deve
- Nódulo mais alto que largo; acompanhar as diretrizes a seguir.
- Invasão de estruturas vizinhas. A calcitonina está elevada em cerca de 80% dos casos de
Cintilografia carcinoma medular, mas no Brasil (ao contrário da Europa)
- Nódulo frio (hipocaptante). não é dosada rotineiramente, pois a patologia é rara, apa-
Outros recendo em apenas 1 a cada 250 nódulos tireoidianos.
Entretanto, em pacientes de risco, como os parentes em 1º
- TSH elevado (↑ ou normal);
grau de pacientes com NEM tipo 2 ou carcinoma medular
- Calcitonina elevada.
familiar, justifica-se a dosagem de calcitonina basal ou esti-
É importante ressaltar que, ao contrário do que se acre- mulada com cálcio ou pentagastrina IV, para rastreamento.
ditava, o risco de malignidade em paciente com múltiplos A dosagem de tireoglobulina não tem utilidade diag-
nódulos na tireoide (bócio multinodular) é o mesmo daque- nóstica em pacientes com nódulos tireoidianos e deve ser
le que apresenta um nódulo único. reservada para o seguimento pós-operatório daqueles com
Outra importante observação, com relação ao risco de carcinoma diferenciado da tireoide.
malignidade dos nódulos, é que os que são não palpáveis, A cintilografia de tireoide (usando I131, I123 ou 99mTc) é
detectados apenas por exames de imagem (geralmente, um exame útil para definir o status funcional de um nó-
dulo (“frio” = inativo; “quente” = produtor de hormônio).
menores que 1cm de diâmetro), apresentam a mesma
Nódulos “quentes” (hipercaptantes) são quase sempre
frequência de malignidade (em torno de 5%) que nódulos
(>99%) benignos, sendo geralmente desnecessária investi-
maiores (>1cm), detectados à palpação. Entretanto, obser-
gação adicional. Nódulos “frios” (hipocaptantes), por outro
va-se que nódulos malignos com <1cm de diâmetro (conhe-
lado, têm uma chance aproximada de 10 a 20% de malig-
cidos como microcarcinomas), na maior parte das vezes,
nidade. Por essa razão, a cintilografia já foi muito utilizada
apresentam evolução clínica indolente, com ótimo prog-
para avaliação de nódulos de tireoide; os nódulos “frios”
nóstico. De fato, microcarcinomas da tireoide são encontra-
eram tratados cirurgicamente, e os “quentes”, apenas
dos em 5 a 36% dos adultos em autópsias ou em cirurgias
acompanhados clinicamente. O grande problema da cintilo-
da tireoide realizadas por outros motivos (7% das autópsias
grafia, nessa situação, é que a grande maioria (de 85 a 90%)
no Brasil). O significado clínico dessas lesões malignas com
dos nódulos de tireoide tem aspecto “frio”, o que limita sua
<1cm é incerto, sendo possível que uma boa parcela desses
utilidade para a avaliação de risco de malignidade. Por isso,
nódulos não fosse provocar qualquer dano ao paciente em
atualmente, a cintilografia é indicada apenas para pacien-
longo prazo, mesmo sem tratamento.
tes com nódulos tireoidianos e tireotoxicose (TSH baixo),
situação em que o achado de um nódulo “quente” (prova-
C - Investigação do nódulo de tireoide velmente benigno) é mais provável e em que a cintilografia
Por essa diferença de comportamento biológico entre poderia poupar uma investigação invasiva ou cirurgia com
cânceres de tireoide >1cm e <1cm, o Consenso Brasileiro maior probabilidade (Figura 1).

127
ENDO C RI N O LOG I A

de tireoide com agulha fina, facilitando a coleta de material


e reduzindo a necessidade de novas punções por coleta ina-
dequada de material.

D - Punção aspirativa da tireoide com agulha fina


O principal exame para diferenciar nódulos benignos
e malignos (tanto em nódulos únicos quanto múltiplos) é
a Punção Aspirativa de Tireoide com Agulha Fina (PATAF),
que consegue diagnosticar carcinomas papilífero, medular
e anaplásico com grande segurança (frequência de falsos
Figura 1 - Cintilografia da tireoide: (A) nódulo “quente” e (B) nó- positivos e falsos negativos <5%). A PATAF pode ter 4 resul-
dulo “frio” tados diferentes, conforme apresentado na Tabela 3.
A USG de tireoide, principalmente com aparelhos de Tabela 3 - Resultados possíveis da PATAF
última geração, permite um estudo anatômico detalhado Resultado Frequência Conduta
dos nódulos e a identificação de características que podem Observar (ou tratar, se
estar associadas a maior risco de malignidade. Tem alta sen- Lesão benigna 60 a 75%
sintomático).
sibilidade para a detecção de nódulos tireoidianos (>95%), Lesão maligna 5% Cirurgia.
maior do que a de outros exames de imagem (tomografia,
Lesão suspeita
ressonância). Presença de microcalcificações, bordas irre- 15 a 30% Cirurgia (cintilografia?).
(“folicular”)
gulares e hipoecogenicidade são achados altamente su-
PATAF não Repetir PATAF (guiada por
gestivos de malignidade, com especificidade em torno de 5 a 10%
diagnóstica USG).
66%, mas com baixa sensibilidade. Nódulos sólidos e mistos
(sólido-císticos) apresentam risco de malignidade maior do Cerca de 15 a 30% das PATAF geram resultados “sus-
que nódulos exclusivamente císticos (Figura 2). peitos”, compostos na sua grande maioria pelas chamadas
“lesões foliculares”. Nessa situação, a análise citopatológica
obtida pela punção aspirativa não é capaz de distinguir entre
neoplasias benignas (adenoma folicular) e malignas (carci-
noma folicular). O diagnóstico definitivo, na maior parte das
vezes, só pode ser firmado pela exérese cirúrgica da lesão,
que fornece material para o exame histopatológico, em que
a presença de invasão vascular ou da cápsula tumoral con-
firma a malignidade. Alguns autores sugerem a realização
de cintilografia nessas lesões, pois o achado de um nódulo
“quente” seria diagnóstico de uma lesão benigna. Cerca de
20 a 33% das lesões que geram resultados “suspeitos” ou
“indeterminados” à PATAF são malignos (principalmente,
nódulos >4cm, sólidos ou com outras características clínicas
ou ultrassonográficas suspeitas).
Outra limitação de tal exame é que, em cerca de 5 a 10%
das vezes (dependendo da experiência do citopatologista e
do médico que realiza a punção), ele não consegue defi-
nir o diagnóstico (seja pela coleta inadequada, produzindo
Figura 2 - Ultrassonografia de tireoide mostrando a presença de material insuficiente ou hemorrágico, seja por dificuldades
um nódulo suspeito. Tr = traqueia; T = lobo da tireoide; C = artéria na leitura das lâminas). No caso de PATAF não diagnóstica,
carótida a melhor opção é realizar uma nova PATAF guiada por USG
(com melhor acurácia do que a PATAF guiada apenas por
O achado de invasão das estruturas vizinhas ou linfade- palpação, levando ao diagnóstico correto em cerca de 50%
nomegalia cervical também fazem aumentar a suspeita de das vezes). Se o exame permanece inconclusivo, talvez a
neoplasia maligna de tireoide. melhor alternativa seja a cirurgia, com a remoção do lobo
A adição do Doppler aumenta a acurácia diagnóstica da tireoidiano contendo o nódulo para realização de exame
USG: vascularização ausente ou periférica sugere benigni- histopatológico, caso a suspeita de malignidade seja signi-
dade, ao passo que vascularização predominante ou ex- ficativa.
clusivamente central sugere doença maligna. A USG pode, O uso disseminado da PATAF, a partir da década de 1990,
ainda, ajudar na realização da punção aspirativa (biópsia) levou a uma grande redução no número de cirurgias realiza-

128
N Ó D U LO S E C Â N C E R D E T I R E O I D E

das para tratamento de nódulos tireoidianos benignos, pois Investigação mínima indicada em todos os nódulos de tireoide
tornou possível a avaliação citopatológica pré-operatória, - História clínica;
ficando o tratamento cirúrgico reservado para os nódulos
- Exame físico;
comprovadamente malignos, ou suspeitos.
- TSH;
A PATAF tem baixo custo, pode ser feita em ambulatório
e é praticamente isenta de complicações (exceto dor local e - USG de tireoide.
eventuais hematomas no local da punção) (Figura 3). Quando pedir cintilografia?

ENDOCRINOLOGIA
- Paciente com nódulo tireoidiano e TSH baixo (suprimido);
- Se o nódulo for “quente” (hipercaptante): >99% benigno –
dispensa PATAF.
Quando pedir calcitonina?
- Paciente com nódulo tireoidiano + história familiar de
carcinoma medular da tireoide ou NEM-2.
Quando pedir PATAF?
- Todos os nódulos com >1cm de diâmetro;
- Nódulos com <1cm de diâmetro, mas com características
suspeitas (história/exame/USG).

A Figura 4 apresenta um algoritmo para a investigação do


nódulo de tireoide, conforme recomendações do Consenso
Brasileiro (2007), e a Tabela 4 apresenta um resumo das in-
formações mais importantes, comentadas até aqui.
Figura 3 - Punção Aspirativa da Tireoide com Agulha Fina (PATAF),
guiada por USG

No bócio multinodular, recomenda-se investigação si-


milar à realizada para nódulos únicos, ou seja, dosagem
de TSH e USG para todos os pacientes, cintilografia se
houver tireotoxicose, e PATAF para nódulos >1cm ou com
características ultrassonográficas de malignidade. Se não
há nódulos suspeitos à USG, pode-se fazer a biópsia ape-
nas do nódulo dominante (maior) em cada lobo tireoi-
diano.
Tabela 4 - Resumo das informações relativas à investigação de nó-
dulos tireoidianos
Prevalência de nódulos tireoidianos
- Detectados pela palpação: 4 a 7% das mulheres adultas, 1%
dos homens adultos;
- Detectados pelo USG: 50% (20 a 70%) dos adultos.
Porcentagem de malignidade
- 5% (4 a 10%) dos nódulos tireoidianos.
Risco de malignidade conforme as características do nódulo
- Nódulos palpáveis = nódulos não palpáveis; Figura 4 - Investigação do nódulo de tireoide, conforme o Consenso
- Nódulos >1cm = nódulos <1cm; Brasileiro (2007)
- Nódulos únicos = nódulos múltiplos;
- Nódulos sólidos >nódulos císticos ou sólido-císticos; E - Conduta nos nódulos benignos
- Nódulos sólidos hipoecoicos >nódulos sólidos hiperecoicos ou
isoecoicos; Nódulos <1cm sem características suspeitas podem ser
- Nódulos com fluxo central >nódulos com fluxo periférico;
apenas acompanhados (com USG e TSH a cada 6 a 12 me-
ses). Indica-se PATAF no acompanhamento se há crescimen-
- Nódulos frios à cintilografia >nódulos mornos ou quentes;
to significativo do nódulo (>50% em pelo menos 1 diâme-
- Nódulos em crianças e adolescentes >nódulos em adultos;
tro, ou >20% em 2 diâmetros, ou alcançando >1cm), ou se
- Nódulos em homens >nódulos em mulheres. surgem características suspeitas.

129
ENDO C RI N O LOG I A

Muitos autores sugerem que os nódulos diagnosticados O carcinoma anaplásico consiste em uma lesão tumo-
como benignos à PATAF não devem receber alta, devido ral de prognóstico sombrio, que responde por 1 a 3% dos
ao risco baixo, porém não desprezível, de falso negativo cânceres da glândula. Os demais tipos (linfoma, metástases
da PATAF (5% com PATAF guiada por palpação e <1% com etc.) somam, juntos, aproximadamente 1% dos cânceres de
PATAF guiada por USG). Nesse caso, uma boa conduta seria tireoide.
o acompanhamento com palpação, TSH e USG anuais. Nova
PATAF estaria indicada se houvesse crescimento significati- A - Carcinoma papilífero
vo, considerado em alguns serviços como o aumento >50%
em 1 dos diâmetros ou >20% em, pelo menos, 2 diâmetros Este é o tipo mais comum de câncer de tireoide (de 70 a
(embora nódulos benignos também possam crescer com o 80% dos casos nos EUA, e maioria dos casos no Brasil), mais
tempo), ou mudança de característica do nódulo. comum no sexo feminino (3:1), entre a 3ª e a 4ª décadas de
Deve-se considerar tratamento nos nódulos benignos vida, mas pode ocorrer em qualquer idade. Apresenta-se,
que estejam provocando sintomas compressivos locais geralmente, como um nódulo tireoidiano, muitas vezes des-
(dispneia, disfagia, disfonia) ou sejam hiperfuncionantes percebido pelo próprio paciente, com consistência firme ou
(levando à tireotoxicose). A cirurgia parece ser a melhor op- cística. Em 10 a 20% dos casos, há invasão extratireoidiana
ção para nódulos volumosos (>4 a 6cm) com compressão ao diagnóstico, provocando dor cervical, disfonia ou disp-
das estruturas cervicais. O iodo radioativo pode ser uma neia. A disseminação ocorre por via linfática, e metástases
boa opção para nódulos hiperfuncionantes, especialmente para linfonodos cervicais são comuns já na avaliação inicial
se pequenos (<4cm), ou em pacientes de alto risco cirúrgi- (de 25 a 40%, ou até 90%, segundo algumas casuísticas).
co. Outra opção é a escleroterapia com etanol, que pode ter Uma boa parte dos tumores papilíferos (de 20 a 30%) se
boa eficácia na redução de volume em nódulos de até 4cm apresenta com acometimento multifocal (mais de 1 lesão
(inclusive os hiperfuncionantes). na tireoide, atingindo 1 ou ambos os lobos). Metástases a
Não há indicação para tratamento medicamentoso dos distância podem ocorrer em 1 a 10% (para pulmões e ossos)
nódulos benignos. Embora a supressão do TSH com o uso e constituir a 1ª manifestação da doença em poucos casos.
de doses moderadamente altas de levotiroxina possa pro- A exposição à radiação nuclear, especialmente durante
duzir uma discreta redução do volume dos nódulos tireoi- a 1ª infância, é um importante fator de risco para carcino-
dianos em alguns pacientes, esse benefício é transitório e ma papilífero, como demonstrado nos sobreviventes do aci-
se associa a um risco significativo de complicações cardio- dente nuclear de Chernobyl (risco relativo: 3 a 75). A histó-
vasculares (fibrilação atrial) e ósseas (osteoporose), razão ria de irradiação cervical faz aumentar em 4 vezes o risco de
pela qual esse tratamento deve ser abandonado. câncer em um paciente com um nódulo tireoidiano.
Embora a história familiar de câncer de tireoide seja
3. Neoplasias malignas da tireoide mais frequentemente observada em pacientes com carci-
noma medular, sabe-se que de 3 a 5% dos carcinomas papi-
As neoplasias malignas da glândula tireoide podem ser
líferos de tireoide são familiares.
classificadas conforme apresentado na Tabela 5.
Os mecanismos genéticos por trás do carcinoma papilí-
Tabela 5 - Classificação das neoplasias malignas da tireoide fero vêm sendo intensamente estudados nos últimos anos.
Originárias das células foliculares (carcinomas diferenciados) Uma anormalidade encontrada em até 25 a 30% desses tu-
- Carcinoma papilífero; mores é a translocação RET/PTC, da qual já foram descritos
cerca de 10 tipos. Os principais são a RET/PTC-1 (mais co-
- Carcinoma folicular.
mum em adultos) e a RET/PTC-3 (mais comum em crian-
Originárias das células parafoliculares (células C)
ças expostas à radiação). A anormalidade mais comum é a
- Carcinoma medular da tireoide. mutação ativadora do BRAF, detectável em 35 a 50% dos
Carcinoma indiferenciado (anaplásico) carcinomas papilíferos (mas não em carcinomas foliculares,
Originárias de outros tipos celulares medulares ou lesões benignas) e associada a metástases
- Linfoma primário de tireoide; mais frequentes, variantes celulares mais agressivas, pior
- Outros tipos; prognóstico e possível progressão para tumor anaplásico.
A mutação do BRAF também é observada em outras ne-
- Metástases.
oplasias humanas, como o melanoma maligno (70%). A
Os carcinomas diferenciados (papilífero e folicular) cor- mutação ativadora do proto-oncogene RAS foi evidenciada
respondem, juntos, a mais de 90% das neoplasias malignas em 18% dos tumores papilíferos, mas também em lesões
da tireoide. São tumores de crescimento indolente, deriva- anaplásicas (58%) e foliculares (32%). Essas mutações são
dos das células foliculares, de modo geral com bom prog- mutuamente excludentes, pois, quando uma delas está pre-
nóstico, e capazes de secretar tireoglobulina. sente, nenhuma das outras é observada.
O carcinoma medular, um pouco mais agressivo que os Um subtipo especial de carcinoma papilífero são os mi-
primeiros, produz calcitonina e outros neuropeptídios, e crocarcinomas, caracterizados por lesões <1cm unifocais.
responde por cerca de 5% das malignidades tireoidianas. Seu significado clínico é incerto, pois são frequentemente

130
N Ó D U LO S E C Â N C E R D E T I R E O I D E

encontrados em autópsias de adultos ou em cirurgias re- cas), é originado das células parafoliculares (células claras,
alizadas para patologias benignas da tireoide, e, prova- ou células C), secretoras de calcitonina. Pode acontecer na
velmente, uma grande parcela desses tumores tem com- forma esporádica (80%) ou na forma familiar (20%), como
portamento benigno, sem tendência ao crescimento ou à parte de diversas síndromes, com padrão de herança autos-
produção de metástases. Entretanto, não há, atualmente, sômica dominante e alta penetrância (Tabela 6). A doença
ferramentas clínicas acuradas o bastante para diferenciar as familiar mais comum associada ao CMT é a NEM-2A (de 60
lesões de comportamento indolente, sendo estas a maioria, a 90%), seguida do CMT familiar isolado (de 10 a 15%), e

ENDOCRINOLOGIA
de uma minoria com comportamento mais agressivo, razão a forma mais precoce e agressiva de CMT é a associada à
por que, hoje, há grande controvérsia sobre o seu manejo NEM-2B (de 2 a 5%).
mais adequado.
Tabela 6 - Síndromes associadas ao carcinoma medular de tireoide
Algumas variantes histológicas do carcinoma papilífero familiar
têm comportamento mais agressivo do que a variante clás-
Síndrome Manifestações clínicas
sica, com impacto sobre o prognóstico e o tratamento. As
principais variantes desse tipo são a esclerosante difusa, a CMT (100%),
Neoplasia Endócrina Múltipla
feocromocitoma (40 a 50%) e
de células altas e a insular. tipo 2A (NEM-2A).
hiperparatireoidismo (10 a 25%).
B - Carcinoma folicular CMT, hiperparatireoidismo,
Neoplasia endócrina múltipla
feocromocitoma, lesão
tipo 2A (NEM-2A) com líquen
Este é o 2º tipo mais comum de câncer de tireoide em pruriginosa liquenificada no
amiloide crônico.
países iodo-suficientes (de 10 a 20% nos EUA e no Brasil), dorso.
mas sua frequência relativa se iguala à do carcinoma papi- CMT, hiperparatireoidismo,
Neoplasia endócrina múltipla
lífero ou a ultrapassa em regiões com deficiência endêmica feocromocitoma, doença de
tipo 2A (NEM-2A) com
de iodo (40% em algumas regiões da Europa). Atinge uma Hirschsprung (megacólon
doença de Hirschsprung.
faixa etária mais avançada (>40 anos) e é mais comum em congênito).
mulheres (3:1). Sua apresentação mais comum também é CMT (100%), feocromocitoma
Neoplasia endócrina múltipla
como um nódulo tireoidiano isolado (geralmente, maior tipo 2B (NEM-2B).
(50%), ganglioneuromas
do que os nódulos do papilífero). Diferentemente do pa- mucosos e hábito marfanoide.
pilífero, o carcinoma folicular costuma ser encapsulado e Outras formas de CMT
CMT + outras patologias.
dificilmente produz metástases linfonodais, pois sua disse- familiar.
minação acontece por via hematogênica. Outra forma de CMT familiar isolado. CMT.
apresentação clínica (em 15 a 20%) é com sintomas decor-
rentes das metástases a distância (pulmões, ossos ou cére- O carcinoma medular pode apresentar-se na forma de
bro). É um pouco mais agressivo que o carcinoma papilífero nódulo tireoidiano único (mais de 50%), endurecido, nos
(possivelmente, devido à sua prevalência em indivíduos de 2/3 superiores da tireoide (onde estão as células C). Em
mais idade). Em até 1% dos casos, as lesões tumorais (me- mais da metade dos pacientes, já se detectam metástases
tástases) podem produzir T3 e T4 em excesso e levar a um para linfonodos cervicais no início da doença, e metástases
quadro de tireotoxicose. É rara a evolução de um adenoma a distância podem ser observadas em cerca de 20% (fígado,
folicular para o carcinoma folicular. pulmão, ossos).
Uma variante importante desse carcinoma é o carcino- Nas síndromes familiares, o tumor pode ser bilateral e
ma de células de Hürthle (oxifílicas), composto por células é precedido durante anos por hiperplasia difusa de células
com grande número de mitocôndrias; acontece em pacien- C. Outros sintomas (diarreia, flushing facial ou sintomas de
tes mais velhos (a média da idade é de 55 anos) e determina excesso de glicocorticoides) podem ser provocados, em 1/3
metástase a distância com maior frequência (40%) e pior dos pacientes, pela hipersecreção tumoral de calcitonina e
prognóstico, relacionado a menor eficácia do tratamento de outros neuropeptídios (por exemplo, a serotonina, pep-
com I131. tídio relacionado ao gene da calcitonina e ACTH).
Tumores foliculares, benignos ou malignos, exibem A doença esporádica surge, tipicamente, na 5ª ou na 6ª
década, e há um discreto predomínio em mulheres. Casos
mutações ativadoras do RAS em 30 a 50% dos casos. Uma
familiares têm início em indivíduos mais jovens: na 3ª dé-
mutação mais específica do carcinoma folicular é a translo-
cada de vida para o CMT familiar isolado, na 2ª década na
cação PAX-8/PPAR-gama, detectável em cerca de 30 a 40%
NEM-2A e antes dos 10 anos na NEM-2B.
dessas lesões, mas também presente em adenomas (7%)
Em todos os casos de CMT, é recomendável o screening
e outros tipos de carcinomas (de 20 a 50%). Tais mutações
para outras endocrinopatias (feocromocitoma, hiperparati-
também são mutuamente exclusivas.
reoidismo), além da investigação dos familiares de 1º grau,
devido à possibilidade de NEM ou outras síndromes de CMT
C - Carcinoma medular de tireoide
familiar. A triagem de CMT pode ser feita com dosagem de
O carcinoma medular, que corresponde a 3 a 5% das calcitonina (menos sensível) ou com testes genéticos, mé-
neoplasias malignas da tireoide (10% em algumas casuísti- todo de escolha para rastreamento dos familiares.

131
ENDO C RI N O LO G I A

Tabela 7 - Manifestações clínicas das diferentes síndromes genéticas associadas ao carcinoma medular da tireoide
CMT familiar
CMT esporádico NEM-2A NEM-2B
isolado
Frequência 100% 100% 100% ~100%
Multicentricidade 30% 100% 100% 100%
Bilateralidade 30% 100% 100% 100%
Idade de início 40 a 50 anos <20 anos <20 anos <1 ano
Feocromocitoma - - 40 a 50% 50%
Hiperparatireoidismo - - 10 a 25% -
Ganglioneuromas - - - 100%
Hábito marfanoide - - 100%
CMT = Carcinoma Medular da Tireoide; NEM-2A: Neoplasia Endócrina Múltipla tipo 2A; NEM-2B: Neoplasia Endócrina Múltipla tipo 2B.

A base genética do CMT envolve mutações pontuais do (Figura 5). Mutações acometendo o domínio extracelular
proto-oncogene RET no cromossomo 10q11.2, detectáveis do receptor RET (por exemplo, no códon 634 do éxon 11 ou
em 95 a 98% dos indivíduos afetados pelas formas esporá- nos códons 609, 611, 618 ou 620 do éxon 10) correspon-
dicas e familiares, o que torna esse locus uma opção atraen- dem a 95% de todas as mutações descritas nesse gene, e
te para o screening genético da doença. Geralmente, ocorre provocam a NEM-2A ou o CMT familiar isolado. Por outro
a mudança de apenas 1 aminoácido na proteína codificada lado, as mutações acometendo o domínio intracelular do
pelo RET, um receptor transmembrana, provocando ganho RET (códon 918 do éxon 16, por exemplo) levam à NEM-
de função e ativação permanente da sua atividade tirosina- 2B. O risco de feocromocitoma associado ao CMT é maior
-quinase. (50%) nos indivíduos com mutação do códon 634, sendo
Há uma nítida correlação entre o genótipo e o fenótipo também eles os únicos a manifestarem hiperparatireoidis-
da doença, pelo menos para as formas familiares de CMT mo ou líquen amiloide cutâneo.

Figura 5 - Correlação entre o fenótipo (ponto da molécula do RET onde ocorre a mutação) e o fenótipo, nas síndromes genéticas associa-
das ao CMT

132
N Ó D U LO S E C Â N C E R D E T I R E O I D E

O achado de mutação do RET, em parente de paciente Frequên- Comporta-


Tipo Acometimento Genética
acometido por CMT ou por NEM-2, deve motivar tireoidec- cia mento
tomia total precoce, com o objetivo de prevenir a morbi- Mulheres, >40
mortalidade do CMT. A tireoidectomia deverá ser realizada Crescimento
10 a anos, regiões PAX8-PPAR
Folicular lento, bom
antes dos 6 meses se a mutação for no códon 918 (NEM-2B; 20% deficientes de gama, RAS
prognóstico
altíssimo risco), antes dos 5 anos se a mutação for nos có- iodo.
dons 611, 618, 620 ou 634 (risco elevado) e, posteriormen- - Esporádico

ENDOCRINOLOGIA
te, se a mutação for nos códons 609, 768, 790, 791, 804 ou (75%): ambos
os sexos, 5ª a
891 (risco menos elevado). Mais agres-
6ª década;
Medular 3 a 5% RET sivo que os
D - Carcinoma anaplásico (indiferenciado) - Familiar anteriores
(25%): ambos
Este carcinoma corresponde a 1 a 3% das neoplasias os sexos, antes
malignas da tireoide, é um dos tumores mais agressivos que dos 20 anos.
existem e acomete geralmente indivíduos com mais de 60 Idosos, ambos
Extrema-
anos, a maioria do sexo feminino (3:1). É mais comum em mente
Anaplá- os sexos, regi-
regiões cronicamente deficientes de iodo. Em até metade 1 a 3% p53 agressivo,
sico ões deficientes
sobrevida 6
dos casos, pode ser resultante da “desdiferenciação” de um de iodo.
meses
carcinoma diferenciado da tireoide de longa evolução (pa-
Mulheres
pilífero). Os pacientes, geralmente, apresentam uma massa idosas com Prognóstico
tireoidiana volumosa, de crescimento rápido, com sintomas Linfoma Raro -
tireoidite de reservado
compressivos locais importantes (dor, tosse, hemoptise, Hashimoto.
disfagia, dispneia, disfonia). Metástases linfáticas cervi-
cais estão presentes na maioria das vezes, e metástases a
distância (pulmões, pleura, ossos, cérebro) podem ser en-
4. Estadiamento
contradas em 50%. O prognóstico é sombrio: 90% dos pa- Um dado fundamental para definir a melhor forma de
cientes morrem em menos de 6 meses. A principal causa de tratamento e acompanhamento do paciente com câncer de
morte é a asfixia, devido à invasão das vias aéreas. tireoide é a classificação do paciente segundo seu grau de
Um marcador do carcinoma anaplásico é a perda do risco. Já no pré-operatório, algumas características sugerem
gene supressor tumoral p53, que pode ser demonstrada que o paciente tem baixo risco de recorrência e mortalida-
inclusive em tumores diferenciados da tireoide, nos quais de: sexo feminino, idade entre 20 e 45 anos, ausência de
prediz a evolução para desdiferenciação. história familiar ou de irradiação cervical, tumor papilífero
<2cm à USG, unifocal (único), sem acometimento da cápsu-
E - Outros tipos la tireoidiana e sem acometimento linfonodal.
Entretanto, a melhor forma de classificar o risco do
O linfoma primário de tireoide é uma doença rara (1%
paciente baseia-se em informações obtidas no pós-opera-
das neoplasias tireoidianas), que acomete, principalmente,
tório. Existem várias formas de classificar os pacientes em
mulheres idosas. Está associado, em muitos casos, à tireoi-
grupos de baixo e alto risco, mas o sistema mais utilizado é
dite de Hashimoto (risco 70 vezes maior em indivíduos com
o TNM, que pode ser aplicado a qualquer tipo de câncer de
Hashimoto) e apresenta-se como um crescimento difuso e
tireoide. A mortalidade em 20 anos é de cerca de 1% para
súbito em um bócio crônico preexistente, com ou sem hipoti-
pacientes nos estadios I e II e de 30 a 40% para os estadios
reoidismo. Geralmente, é do tipo não Hodgkin ou MALT. Pode
III e IV. São considerados pacientes de baixo risco os que se
ser difícil a diferenciação do linfoma primário da tireoide e
encaixam no estadio I da classificação TNM (Tabelas 9 e 10).
da tireoidite de Hashimoto à citopatologia (PATAF), exigindo,
muitas vezes, exames mais aprofundados para elucidação Tabela 9 - Características avaliadas no TNM
diagnóstica (imuno-histoquímica, histopatológico). Tamanho do tumor
A tireoide pode ser acometida (raramente) por metás-
T1 - ≤2cm (T1a – ≤1cm, e T1b – 1 a 2cm).
tases de tumores primários da mama, pulmão, pele (mela-
T2 - 2 a 4cm.
noma) ou outros.
- >4cm limitado à tireoide ou com invasão extratireoi-
T3
Tabela 8 - Resumo das características das principais neoplasias diana mínima.
malignas da tireoide - Extracapsular:
Frequên- Comporta- · T4a: invasão de subcutâneo, traqueia, esôfago ou n.
Tipo Acometimento Genética T4 laríngeo recorrente;
cia mento
Papilífero Crescimento · T4b: invasão de fáscia pré-vertebral, carótida ou vasos me-
70 a Mulheres, 3ª a BRAF, RET- diastinais.
(mais lento, bom
80% 4ª década. -PTC, RAS
comum) prognóstico Tx - Tamanho desconhecido sem invasão extracapsular.

133
ENDO C RI N O LOG I A

Nódulos linfáticos 5. Tratamento


N0 - Sem adenopatia. O tratamento para o câncer de tireoide varia de acor-
- Com adenopatia: do com o tipo histológico do tumor. No câncer diferenciado
N1 · N1a: gânglios centrais – compartimento VI; de tireoide (cerca de 90% dos casos), está indicada a remo-
· N1b: gânglios laterais ou mediastino superior.
ção cirúrgica da tireoide, seguida de ablação dos restos ti-
Nx - Linfonodos não avaliados. reoidianos com iodo radioativo na maioria dos pacientes e
Metástases a distância supressão do TSH com doses altas de levotiroxina, por um
M0 - Sem metástases. tempo variável. O tratamento cirúrgico também é a melhor
M1 - Com metástases. opção para o carcinoma medular, enquanto o linfoma pri-
Mx - Metástases não avaliadas.
mário de tireoide deve ser tratado com quimioterapia e/
ou radioterapia. No carcinoma anaplásico, o tratamento é,
Tabela 10 - Estadiamento do CDT conforme o índice TNM geralmente, apenas paliativo.
Estadio Idade <45 anos Idade ≥45anos
Qualquer T, qualquer
A - Cirurgia
I T1 N0 M0
N, M0 O tratamento de escolha do câncer diferenciado de ti-
II M1 T2 N0 M0 reoide (papilífero ou folicular) é cirúrgico.
T3 N0 M0 ou qualquer T, N1 Quando o câncer é diagnosticado pela PATAF (o que
III - acontece na maioria dos casos), a tireoidectomia total é
M0
IV - M1 a técnica mais recomendada. Lesões foliculares, em que
o diagnóstico de malignidade não pode ser estabelecido
Outra forma de estratificação de risco, proposta pelo apenas pela punção, são frequentemente tratadas com ti-
Consenso Brasileiro de Nódulos e Câncer de Tireoide reoidectomia parcial (exérese do lobo acometido e do ist-
(2007), incorpora, também, a informação sobre a ressecção mo), com subsequente complementação cirúrgica (retirada
cirúrgica completa ou incompleta do tumor, para dividir os do lobo remanescente ou “totalização” da tireoidectomia)
pacientes em 3 grandes grupos de risco, conforme apresen- caso seja confirmado carcinoma no exame histopatológico
tado na Tabela 11. ou na congelação intraoperatória. A cirurgia bilateral reduz
a recorrência e a mortalidade em 50 a 60%, quando compa-
Tabela 11 - Estratificação de risco pós-operatório do CDT rada à unilateral.
Prognóstico T N M Ressecção tumoral Gânglios linfáticos das cadeias central e jugular devem
Muito baixo T1a ou T1b, ser cuidadosamente inspecionados durante o ato cirúrgi-
N0 M0 Completa co. Se houver aspecto macroscópico sugestivo de acome-
risco único
timento metastático (ou sugestão de acometimento à USG
T1 multifocal
Baixo risco N0 M0 Completa pré-operatória), o cirurgião deverá proceder à retirada em
ou T2
bloco da cadeia linfonodal acometida. A cadeia mais comu-
Alto risco T3 ou T4 N1 M1 Incompleta
mente acometida é a cervical central (compartimento VI).

Figura 7 - Transoperatório de uma tireoidectomia total

Complicações da tireoidectomia total incluem hipopa-


Figura 6 - Cadeias de linfonodos cervicais ratireoidismo e lesão do nervo laríngeo recorrente, que

134
N Ó D U LO S E C Â N C E R D E T I R E O I D E

ocorrem em menos de 1% dos casos, quando a cirurgia é B - Iodo radioativo


realizada por cirurgiões experientes. A tireoidectomia qua-
Nos tumores diferenciados de células foliculares, a
se-total (que deixa de 2 a 3g de tecido tireoidiano, geral-
ablação do tecido tireoidiano remanescente após a cirur-
mente a cápsula posterior do lobo tireoidiano contralateral
gia, usando iodo radioativo (I131), está indicada no pós-
ao tumor) é utilizada em alguns serviços, com a justificati-
-operatório para a maioria dos pacientes, na maior parte
va de que parece ter uma eficácia semelhante para tumor
dos serviços. Doses de 100 a 150mCi são capazes de des-
papilífero/folicular e determina uma taxa um pouco menor
truir focos residuais microscópicos do tumor em 80% das

ENDOCRINOLOGIA
de complicações, mas dificulta o seguimento posterior com
vezes, além de melhorar a especificidade da cintilografia
dosagens de tireoglobulina. Alguns autores, ainda, sugerem
e da dosagem de tireoglobulina para detecção de doen-
tireoidectomia mais conservadora (lobectomia + istmec-
ça metastática ou recorrente, por meio da eliminação de
tomia, apenas) para casos de muito baixo risco (tumores
restos tireoidianos normais. A dose de 150mCi seria indi-
papilíferos <1cm, unifocais, sem acometimento linfonodal),
cada para pacientes com ressecção tumoral incompleta,
devido ao menor risco de complicações, mas essa aborda-
e uma dose de 100mCi para os demais. Eventualmente,
gem também dificulta o seguimento pós-operatório com
pacientes com metástases a distância necessitam de do-
dosagens de tireoglobulina.
ses maiores (200mCi ou mais). A terapia rotineira com I131
Essa dificuldade na avaliação da tireoglobulina pós-ope-
reduz a mortalidade em longo prazo dos tumores maiores
ratória, em pacientes submetidos à tireoidectomia parcial,
que 2cm. Em pacientes com restos tireoidianos muito pe-
se deve ao fato de que tal proteína é secretada tanto pe- quenos (<1 a 2g, ou captação residual <1 a 2%), uma dose
las células foliculares normais (do parênquima tireoidiano menor de I131 (30mCi) pode ter a mesma eficácia ablativa,
saudável remanescente) quanto pelas células foliculares com a vantagem de eliminar a necessidade de internação
malignas; portanto, elevações pós-operatórias da tireoglo- do paciente. Alguns serviços preferem administrar doses
bulina plasmática, nessas pessoas, podem ser provocadas calculadas de acordo com a captação residual para cada
tanto pelas células normais como pelas neoplásicas. Se o paciente (dosimetria), mas essa abordagem não parece
paciente for submetido à tireoidectomia total e ablação dos ter melhor eficácia ou menos complicações do que o uso
restos tireoidianos com radioiodo, entretanto, teoricamen- de doses fixas de I131 na maioria dos casos. Uma exceção,
te não sobrarão células normais, e qualquer elevação da ti- em que a ablação com radioiodo não parece afetar o prog-
reoglobulina será ocasionada pelo crescimento das células nóstico, seriam os pacientes com tumores <2cm restritos
neoplásicas (gerando uma maior especificidade da tireoglo- à tireoide. Entretanto, a especificidade da tireoglobulina
bulina para a detecção de doença maligna persistente ou como marcador tumoral no pós-operatório é prejudicada,
recorrente). na ausência de terapia ablativa com I131, e, mesmo em tu-
Outro argumento a favor da realização de tireoidectomia mores pequenos, o uso de I131 pode reduzir a taxa de re-
total para o tratamento do câncer diferenciado é que o risco corrências, conforme uma meta-análise recente.
de complicações é praticamente o mesmo para a cirurgia Por todos esses aspectos, o Consenso Brasileiro de
total ou a quase-total, quando o procedimento é realizado Câncer de Tireoide recomenda que a terapia ablativa pós-
por cirurgiões experientes. Por isso, o Consenso Brasileiro -operatória com I131 seja indicada para todos os pacientes
de Câncer de Tireoide defende a tireoidectomia total como submetidos à tireoidectomia total, exceto aqueles de muito
“melhor opção para todos os pacientes, independentemen- baixo risco (tumores <2cm, unifocais, com ressecção com-
te do tamanho do tumor”. Talvez a abordagem parcial deva pleta).
ser reservada para serviços em que não há cirurgião com A terapêutica com iodo radioativo não é isenta de riscos
experiência em tireoidectomias, pelo risco discretamente e pode se associar a alterações da função gonadal (transitó-
menor de complicações com a cirurgia quase-total nessa rias), falência ovariana prematura, sialadenite, conjuntivite
situação, embora, nesses casos, provavelmente a melhor e, possivelmente, indução de um novo câncer (com o uso
conduta seria encaminhar o paciente para tratamento com de altas doses de I131). O uso de I131 é formalmente contrain-
um profissional experiente. dicado na gestação ou na lactação, e é recomendada coleta
No carcinoma medular, a tireoidectomia é sempre total, de beta-HCG a todas as mulheres férteis antes do encami-
e a linfadenectomia do compartimento central (VI) e das nhamento para essa terapêutica, além da recomendação
cadeias cervicais bilaterais (II, III e IV) deve ser realizada de do uso de métodos contraceptivos eficazes por, pelo me-
rotina. Como podem ser portadores de NEM, os pacientes nos, 6 a 12 meses após o iodo radioativo.
só devem ser submetidos à tireoidectomia após a exclusão O paciente deve estar em hipotireoidismo (TSH >25
de outras endocrinopatias: hiperparatireoidismo e, princi- a 30mU/L) para que ocorra captação adequada do I131.
palmente, feocromocitoma, uma vez que o procedimen- Isso é obtido mantendo-se o paciente sem reposição de
to cirúrgico pode acarretar crises hipertensivas de difícil levotiroxina por 4 a 6 semanas no pós-operatório (hipo-
controle em pacientes com feocromocitoma não tratado. tireoidismo endógeno), ou após estímulo com injeções
Recomenda-se a dosagem pré-operatória de cálcio e meta- intramusculares de TSH recombinante humano (rhTSH,
nefrinas/catecolaminas urinárias, ou a análise do gene RET. 0,9mg/dia, em 2 dias consecutivos) no paciente em uso

135
ENDO C RI N O LOG I A

de levotiroxina. O rhTSH pode ser uma opção interessan- D - Outras modalidades de tratamento
te para pacientes com comorbidades significativas, quan-
A radioterapia cervical externa pode ser útil para reduzir
do o hipotireoidismo endógeno pode ser prejudicial,
a recorrência em pacientes com mais de 45 anos e tumo-
como doença arterial coronariana, isquemia cerebral,
res papilíferos invasivos, ou nos carcinomas medulares com
insuficiência renal crônica, depressão, ou em idosos com
alto risco de recorrência local. A radioterapia externa tam-
dificuldade de elevar adequadamente o TSH endógeno.
bém pode ser indicada, em alguns casos, para o tratamento
Em pacientes de alto risco, o hipotireoidismo endógeno
de metástases ósseas sintomáticas ou, eventualmente, em
é o preparo de escolha para a terapia ablativa com I131.
sistema nervoso central quando o acesso cirúrgico é impra-
Outro cuidado indicado como forma de melhorar a cap-
ticável. A quimioterapia não costuma apresentar benefícios
tação de I131 é a recomendação, ao paciente, de uma die-
significativos no carcinoma diferenciado, sendo os melho-
ta pobre em iodo (<50ug/dia) por 7 a 30 dias antes da te-
res resultados observados com doxorrubicina (resposta par-
rapia ablativa. As principais fontes de iodo dietético são
cial, com estabilização da doença, em 40% dos pacientes),
o sal de cozinha (iodado), peixes de água salgada, algas
portanto não está indicada. Novas drogas estão em estudo
marinhas, frutos do mar, laticínios, ovos, pães iodados,
para o tratamento das formas mais agressivas de CDT, como
cogumelos, aspargos, alho e lentilhas.
os inibidores da tirosina-quinase, RAS e BRAF, os inibidores
Recomenda-se, ainda, a coleta de tireoglobulina (Tg) sé-
da angiogênese e moduladores do crescimento e apoptose
rica no pós-operatório, imediatamente da dose ablativa de
(retinoides, agonistas PPAR-gama, inibidores da COX-2 e ou-
I131 (em hipotireoidismo), pois o nível de tal marcador, nesse
tros), mas ainda são restritos a situações de pesquisa.
momento, tem valor prognóstico, indicando alta probabi-
O tratamento do carcinoma anaplásico geralmente é
lidade de cura quando abaixo de 10ng/mL e alto risco de
paliativo, por meio da redução cirúrgica do tumor para des-
recidiva quando >70ng/mL.
compressão das vias aéreas (ou traqueostomia) e quimio-
Toda dose terapêutica de I131 deve ser seguida de uma terapia/radioterapia adjuvante. E o tratamento do linfoma
imagem cintilográfica de corpo inteiro, realizada 5 a 7 dias primário de tireoide é realizado com quimioterapia e/ou
após a administração. radioterapia adjuvante, com prognóstico reservado.
O I131 não apresenta efeito benéfico em outros tipos de A Figura 8 sumariza o manejo terapêutico inicial dos pa-
câncer de tireoide, e não está indicado seu uso terapêutico cientes com carcinoma diferenciado da tireoide.
em carcinoma medular, anaplásico, linfoma ou outros tipos
tumorais.

C - Terapia supressiva com levotiroxina (LT4)


Após cirurgia e ablação com I131, os pacientes com tu-
mores diferenciados de células foliculares devem receber
LT4 em doses suprafisiológicas, para manter o TSH em ní-
veis abaixo do normal (em geral, menor que 0,1mU/L), visto
que o TSH pode ser um estímulo ao crescimento de tecido
neoplásico residual. A supressão do TSH proporciona uma
redução de 25% nas recorrências e de 50% na mortalida-
de. A dose média de levotiroxina para esse fim é de 2,2 a
2,8mcg/kg/dia. A reposição de LT4 deve ser iniciada já no
pós-operatório imediato em pacientes de muito baixo ris-
co que não serão submetidos à ablação com I131, e 3 a 5
dias após a dose de iodo radioativo em todos os demais
pacientes. Se a terapia ablativa for realizada sob estímulo
do rhTSH, entretanto, a LT4 já poderá ser iniciada no pós-
-operatório imediato, sem a necessidade de suspender a
medicação para receber o I131. O TSH deve ser mantido su-
presso, se possível, com T4 livre e T3 normais, até que seja
documentada a ausência de doença residual ou por, pelo
menos, 3 a 5 anos em pacientes de baixo risco, e por toda a
vida em pacientes de alto risco. Figura 8 - Tratamento inicial do câncer diferenciado de tireoide
Nos demais tipos de neoplasias malignas da tireoide
(medular, anaplásico etc.), não há benefício com a supres-
são do TSH, estando indicada apenas a reposição de LT4 em
6. Acompanhamento
doses de reposição fisiológica (em média, 1,4 a 1,8mcg/kg/ Recorrências tumorais são detectadas, comumente, nos
dia), com o objetivo de manter o TSH normal. primeiros 10 anos de seguimento, mas podem surgir mais

136
N Ó D U LO S E C Â N C E R D E T I R E O I D E

tardiamente (em até 25% dos casos), uma vez que o câncer doses (para metástases pulmonares ou na contraindicação
diferenciado de tireoide tem um comportamento, em geral, cirúrgica).
indolente. Portanto, o paciente deve ser acompanhado du- Os pacientes com carcinoma papilífero ou folicular de
rante toda a vida para a detecção precoce de doença persis- alto risco, ou os pacientes de baixo risco com anti-Tg positi-
tente ou recorrente. vo, devem realizar, também, uma Pesquisa de Corpo Inteiro
(PCI) com dose baixa (diagnóstica) de I131 (2 a 5mCi) aos 6
A - Tumores de células foliculares a 12 meses de pós-operatório, sem uso de levotiroxina. A

ENDOCRINOLOGIA
No seguimento após o tratamento inicial, as principais PCI diagnóstica de rotina não está indicada aos pacientes de
ferramentas diagnósticas são a USG cervical de alta resolu- baixo risco sem anti-Tg porque tal exame não tem sensibi-
ção e a dosagem sérica de tireoglobulina (Tg). lidade maior do que o uso de USG cervical + Tg estimulada
A Tg é o principal marcador tumoral no seguimento de nesses casos. Entretanto, em doentes de alto risco (ou com
tumores diferenciados de células foliculares, e seu melhor anti-Tg), o uso de PCI associada à USG e à Tg estimulada faz
valor está em pacientes submetidos à tireoidectomia total e aumentar a sensibilidade para a detecção de doença malig-
ablação com I131 (ou seja, na ausência de tecido tireoidiano na residual.
normal), em quem a elevação da Tg é provocada em 99% O Consenso Brasileiro de Câncer de Tireoide recomen-
das vezes por tecido tumoral (alta especificidade). A Tg, ge- da a realização de Tg[T4], anti-Tg e USG cervical 6 meses
ralmente, atinge seu valor mínimo dentro de 3 meses após após a ablação pós-operatória com I131, aos pacientes que
a cirurgia, e sua dosagem pode ser realizada com o paciente apresentaram PCI pós-dose terapêutica sem captação ec-
em uso de terapia supressiva com LT4, enquanto o TSH está tópica. A PCI diagnóstica também deve ser realizada nos
supresso (Tg[T4]), ou, então, em vigência de níveis elevados pacientes de alto risco ou com anti-Tg positivo. A maio-
de TSH (idealmente, >30mU/L, por retirada da LT4 durante 4 ria deles, se for submetida a tratamento inicial adequado,
a 6 semanas ou por meio de administração de rhTSH, 0,9mg apresentará nessa ocasião Tg[T4] ≤1ng/mL e USG (e PCI)
IM em 2 dias consecutivos) (Tg estimulada). A dosagem de negativa. Esses pacientes deverão ser submetidos, 9 a 12
Tg estimulada apresenta maior sensibilidade (menos falsos meses após a ablação com I131, à coleta de Tg estimulada.
negativos) que a de Tg[T4], visto que algumas células tumo- Cerca de 15 a 20% dos indivíduos com Tg[T4] indetectá-
rais podem ter a sua atividade secretória de Tg inibida pelos vel (<1ng/mL) apresentarão Tg estimulada >2ng/mL, dos
baixos níveis de TSH induzidos pela LT4 exógena. quais 30% apresentarão lesão evidenciável aos exames de
Uma alternativa à coleta de Tg estimulada, cada vez imagem (USG, PCI, radiografia e tomografia de tórax e me-
mais utilizada, por dispensar o estímulo com TSH endóge- diastino). Outros exames que podem ser indicados para
no ou rhTSH e apresentar acurácia aparentemente similar, a detecção da doença residual são a PCI pós-nova dose
é o uso de ensaios ultrassensíveis de Tg (com sensibilidade terapêutica (100mCi) de I131, cintilografia de corpo inteiro
funcional em torno de 0,1 ou 0,2ng/mL, no lugar de 1ng/ com sestamibi, ou PET-scan.
mL como nos ensaios atuais). Entretanto, tais ensaios atu- Pacientes com Tg estimulada indetectável e exames
almente estão disponíveis apenas em centros de pesquisa, de imagem negativos, na avaliação aos 9 a 12 meses pós-
sendo necessários maiores estudos para recomendar sua -ablação, podem ser considerados em remissão (livres de
utilização de forma mais ampla. doença). Pacientes de baixo risco em remissão têm ris-
Uma recomendação importante é que, toda vez que for co de recidiva <1% em 10 anos e podem ter suas avalia-
solicitada dosagem de Tg sérica, também seja realizada a ções periódicas mais espaçadas (Tg[T4] + anti-Tg anuais
dosagem de anticorpos antitireoglobulina (anti-Tg). Tais an- e, eventualmente, USG); muitos autores sugerem que a
ticorpos estão presentes em cerca de 20 a 25% dos pacien- dose de LT4 pode ser reduzida em tais pessoas, visando
tes com CDT. Altos títulos de anti-Tg interferem na avaliação a um nível de TSH mais alto (0,2 a 2mU/L). Já os pacien-
dos níveis séricos de Tg (causando falsos negativos, com os tes de alto risco em remissão apresentam risco de reci-
métodos laboratoriais mais utilizados), e, portanto, inutili- diva de 3% em 10 anos, devem ser seguidos com Tg[T4]
zam a Tg como marcador tumoral pós-operatório. Pacientes + anti-Tg + USG anuais nos próximos 5 anos e podem ter
com anti-Tg elevado devem ser seguidos preferencialmente a meta de TSH alterada para 0,1 a 0,3mU/L. Após 5 anos
com exames de imagem. sem evidência de doença, os pacientes de alto risco po-
A associação de USG e Tg estimulada, em pacientes com deriam passar a ser acompanhados da mesma forma que
carcinoma diferenciado de baixo risco, tem sensibilidade os de baixo risco.
próxima a 100% para a detecção de doença persistente ou Elevações moderadas da Tg estimulada (1 a 10ng/mL)
recidiva (que, nesses indivíduos, geralmente ocorre nos lin- costumam ser provocadas por metástases linfáticas cervi-
fonodos cervicais). Quando um ou outro exame indicarem cais, cujo tratamento preferencial é cirúrgico, com 30 a 50%
doença persistente, a localização topográfica deverá ser fei- de chance de cura em longo prazo (podendo ser utilizado,
ta para o tratamento apropriado, que poderá ser cirúrgico como alternativa, o I131 nos pacientes com contraindicação
(no caso de acometimento linfonodal cervical ou de leito cirúrgica, mas com menor eficácia). Níveis mais elevados de
tireoidiano) ou com nova administração de I131 em altas Tg estimulada sugerem a presença de metástases a distân-

137
ENDO C RI N O LOG I A

cia (>10ng/mL; especialmente, >100ng/mL para metástases massas tumorais acessíveis à cirurgia. A dissecção cuida-
pulmonares; muitas vezes, >1.000ng/mL para metástases dosa de gânglios cervicais permite a cura bioquímica em
ósseas). Nesse caso, deve-se realizar PCI com I131 e, se as 20 a 40% desses pacientes. Radioterapia externa é outra
lesões não forem visualizadas (1/3 dos casos), deve-se so- opção, mas não modifica a sobrevida. O iodo radioativo
licitar radiografia e/ou tomografia de tórax e tomografia e/ (I131) não é captado pelas células do CMT, portanto não tem
ou RNM óssea. As metástases pulmonares são mais comuns indicação.
que as ósseas e comumente tratáveis com I131 (de 100 a
150mCi, em doses repetidas a cada 6 a 12 meses até nega- 7. Prognóstico
tivação da PCI ou até uma dose máxima acumulada em tor-
no de 600mCi). Metástases ósseas podem ser tratadas com A sobrevida geral para pacientes com tumores diferen-
cirurgia quando possível, ou com doses altas de I131 (100 a ciados de células foliculares é de 80 a 95% em 10 anos; 80%
300mCi, quando captantes) ou radioterapia externa, visan- dos pacientes obtêm a cura com o tratamento. A sobrevida
do ao alívio sintomático. O PET-scan com flúor-deoxiglicose em longo prazo é um pouco melhor no papilífero (de 93 a
(18-FDG) pode ser útil para localizar metástases desdiferen- 98%) comparado ao folicular (de 85 a 92%).
ciadas que deixam de captar I131. Recorrências locais ocorrem em 5 a 20%, e metásta-
Muitas instituições definem um limiar de Tg estimulada ses a distância, em 10 a 15% (mais comuns no folicular).
(limite institucional), a partir do qual o paciente tem indica- Microcarcinomas papilíferos apresentam mortalidade ex-
ção de tratamento complementar (em geral, acima de 5 ou tremamente baixa (~1%), mas evoluem com metástases a
10ng/mL). Esse limiar para tratamento é atribuído à evidên- distância em 2,5% e com recorrência em linfonodos cer-
cia de que 70% dos pacientes com Tg estimulada discreta- vicais em 5%. Os principais fatores preditores de doença
mente elevada (>1 a 2ng/mL, mas <5 a 10ng/mL) e exames recorrente e morte são: idade ao diagnóstico maior que
de imagem negativos acabam evoluindo para uma Tg esti- 45 anos, extensão do tumor (invasão local, lesão >4cm),
mulada indetectável em 3 a 5 anos de terapia supressiva presença de metástases a distância, sexo masculino e grau
com altas doses de LT4 (mantendo TSH <0,1mU/L). histológico da lesão (presença de variantes de alto risco:
Um dado de grande valor no acompanhamento dos pa- Hürthle, células altas, colunares, insular ou esclerosante
cientes com elevações discretas da Tg, mas sem evidências difusa; ou evidências de pobre diferenciação celular: atipia
de doença aos exames de imagem, é a tendência (slope) da nuclear acentuada, necrose tumoral e invasão vascular). A
Tg ao longo do tempo. Pacientes com elevações progressi- positividade ao PET-scan usando 18-FDG também indica
“desdiferenciação” tumoral e mau prognóstico.
vas dos níveis séricos da Tg têm um risco maior de apresen-
O sistema mais usado para estadiamento do câncer de
tar metástases, justificando investigação complementar e
tireoide é o TNM, com o qual a grande maioria (80 a 85%) dos
tratamento mais agressivos. Por outro lado, indivíduos que
pacientes é classificada como de baixo risco. A presença de
evoluem com níveis séricos estáveis ou decrescentes de Tg
metástases linfáticas cervicais, paradoxalmente, não parece
com o passar do tempo acabarão evoluindo, com maior
afetar a sobrevida de pacientes jovens (<45 anos) com car-
probabilidade, para cura.
cinoma papilífero. Crianças e adolescentes com carcinoma
B - Carcinoma medular papilífero, muitas vezes, apresentam boa evolução em longo
prazo, mesmo com acometimento linfonodal e até extensão
O seguimento deve ser feito com dosagens periódicas extratireoidiana frequente. É interessante notar, também,
de calcitonina e antígeno carcinoembrionário (CEA), menos que pacientes com aumento dos anticorpos antitireoperoxi-
específico, que geralmente atingem níveis normais em 2 a dase (anti-TPO) parecem apresentar melhor evolução.
3 meses após a cirurgia nos pacientes curados. Testes de No carcinoma medular, a sobrevida em 10 anos é de
estímulo para a calcitonina, usando cálcio ou pentagastrina, 75% para pacientes menores de 40 anos, e de 50% para pa-
proporcionam maior sensibilidade na detecção de doença cientes com mais de 40 anos. Fatores de mau prognóstico
residual. Entretanto, cerca de 20% dos indivíduos com CMT são idade avançada, sexo masculino, extensão do tumor
não apresentam elevação dos níveis de calcitonina. Dessa (metástases locais ou a distância) e ressecção incompleta
forma, é necessário o uso associado de exames de imagem da lesão. Pacientes com doença hereditária (NEM-2A e CMT
no acompanhamento de tais pacientes. Níveis basais ou familiar) parecem ter melhor evolução que os casos espo-
pós-teste elevados de calcitonina exigem a pesquisa de fo- rádicos (principalmente os detectados por screening fami-
cos residuais da doença por meio de exames de imagem: liar), exceto a NEM-2B, que provoca tumores mais agressi-
USG cervical, tomografia torácica e/ou RNM de fígado. A vos e precoces (muitas vezes, antes do 1º ano de vida), com
tireoglobulina não tem utilidade no CMT, pois não é secre- alta mortalidade.
tada pelas células parafoliculares. A mortalidade específica associada ao tumor anaplásico
Mais da metade dos pacientes apresenta recorrência é de quase 100%, com sobrevida média de 3 a 7 meses após
dentro de 10 anos. Deve-se tentar a ressecção de todas as o diagnóstico.

138
N Ó D U LO S E C Â N C E R D E T I R E O I D E

8. Resumo - O seguimento é realizado com dosagem de Tg e USG cervical


para todos os pacientes. Nos pacientes de alto risco e nos com
Quadro-resumo anticorpos anti-Tg, também estão indicados PCI diagnóstica e,
- O câncer de tireoide é a neoplasia maligna endócrina mais eventualmente, outros exames de imagem;
comum, e sua incidência vem aumentando nas últimas décadas - A taxa de cura no CDT é >85 a 90% com o tratamento inicial;
(principalmente os tumores menores, de bom prognóstico),
- O CMT é geralmente esporádico, mas 20% são formas familiares,
mas sem aumento da mortalidade;
que podem ser CMT isolado ou associadas às síndromes de

ENDOCRINOLOGIA
- Com o uso da USG, nódulos tireoidianos com diâmetro a partir NEM-2 (todas, de herança autossômica dominante);
de 2 a 3mm podem ser detectados em 20 a 70% da população
- Mutações no gene RET respondem por cerca de 98% dos casos
geral, principalmente em mulheres acima dos 50 anos;
de CMT, sendo somáticas nos casos esporádicos e germinativas
- A grande maioria dos nódulos tireoidianos é benigna e não nos casos familiares;
apresenta importância clínica. Apenas 5% dos nódulos de
- Há boa correlação entre o genótipo (tipo de mutação no RET)
tireoide são malignos;
e o fenótipo do CMT (agressividade, idade de surgimento,
- O risco de malignidade é o mesmo para nódulos palpáveis doenças associadas), sendo de pior prognóstico o CMT
ou não palpáveis, >1cm ou <1cm, e para nódulos únicos ou associado à NEM-2B;
múltiplos;
- Na avaliação do paciente com CMT, devem-se pesquisar outras
- Os maiores fatores de risco para malignidade, em pacientes endocrinopatias (hiperparatireoidismo, feocromocitoma –
com nódulos tireoidianos, são exposição à radiação, que podem fazer parte da NEM-2) e investigar mutações
história familiar, extremos de idade (especialmente <20 germinativas do gene RET. Se presentes, devem-se estudar
anos), paralisia de cordas vocais, linfadenopatia cervical, e todos os familiares em 1º grau;
aspecto ultrassonográfico sugestivo (sólido, hipoecoico, com
- O carcinoma anaplásico de tireoide é mais comum em
microcalcificações e fluxo central ao Doppler);
áreas deficientes de iodo, é extremamente agressivo (com
- Cintilografia de tireoide deve ser indicada aos pacientes com mortalidade acima de 90% no 1º ano) e apresenta metástases
nódulos tireoidianos e TSH baixo (supresso). Se o nódulo em ao diagnóstico em cerca de 50% dos casos, sendo o tratamento
investigação for “quente” (hipercaptante), não será necessária geralmente paliativo;
PATAF, visto que o risco de malignidade é <1%;
- O linfoma primário de tireoide é 70 vezes mais comum
- A PATAF é o principal exame para diagnóstico de malignidade em pacientes com tireoidite de Hashimoto e tratado por
em pacientes com nódulos tireoidianos e indicada em todos os quimioterapia.
nódulos >1cm (exceto os com aspecto “quente” à cintilografia),
e nos eventuais nódulos <1cm com características clínicas ou
ultrassonográficas suspeitas;
- O câncer de tireoide mais comum é o carcinoma papilífero
(cerca de 70 a 80% dos casos). As mutações responsáveis pelo
papilífero incluem BRAF (mais comum), translocações RET/
PTC e RAS (mutuamente excludentes entre si);
- O carcinoma folicular é o 2º tipo mais comum de câncer da
tireoide e corresponde a 20% dos casos nos EUA e no Brasil,
mas é mais frequente em áreas deficientes de iodo (onde
representa até 40% dos casos). As mutações mais comuns
encontradas no folicular são do gene RAS e a translocação PAX-
8/PPAR-gama;
- O papilífero e o folicular têm clínica, prognóstico e tratamento
semelhantes, por isso podem ser englobados, para estudo,
sob a denominação de “Carcinoma Diferenciado de Tireoide”
(CDT), o qual corresponde a mais de 90% de todas as neoplasias
malignas da tireoide;
- O estadiamento do CDT deve ser feito por meio do TNM, e 80
a 85% dos pacientes são classificados como de baixo risco;
- O tratamento do CDT é feito com: a) tireoidectomia total;
b) ablação com iodo radiativo pós-operatória para todos
os pacientes (exceto, talvez, os de muito baixo risco: tumor
papilífero <2cm, unifocal, sem acometimento linfonodal, com
ressecção completa na cirurgia); e c) supressão do TSH com
doses altas de levotiroxina por tempo variável;

139
ENDOC RI N O LOG I A

CAPÍTULO

12 Doenças da hipófise
Leandro Arthur Diehl / Rodrigo Antônio Brandão Neto

Os hormônios secretados pela adeno-hipófise são:


1. Introdução - Hormônio de crescimento (GH): é estimulado pelo
A hipófise localiza-se na base do crânio, em uma reen- GHRH hipotalâmico, inibido pela somatostatina e pelo
trância óssea chamada “sela túrcica”, e tem a importante IGF-1 e secretado por células chamadas somatotrofos
função de coordenar o funcionamento das demais glându- (50% das células da adeno-hipófise). Estimula o cres-
las endócrinas por meio da secreção de hormônios específi- cimento linear, regula o metabolismo intermediário e
cos. Pesa, aproximadamente, 0,5 a 1g no adulto. induz a produção de IGF-1 (fator de crescimento insu-
Pode-se dividir a hipófise em 2 partes: lina-símile 1) no fígado;
- Hipófise anterior (ou adeno-hipófise): possui células - Gonadotrofinas: hormônio luteinizante (LH) e hor-
endócrinas especializadas para síntese e secreção hor- mônio folículo-estimulante (FSH) – secretados pelos
monal e corresponde a 80% do volume da hipófise. A gonadotrofos (10% das células da adeno-hipófise) –
regulação da secreção desses hormônios é feita pelo são estimulados pelo GnRH secretado pelo hipotála-
hipotálamo (que secreta, predominantemente, subs- mo, e inibidos pelo estrógeno, testosterona e inibina.
tâncias estimuladoras da hipófise, com exceção da Estimulam a secreção hormonal nas gônadas (ovário e
dopamina, que tem ação inibitória sobre a secreção testículo), a ovulação e a espermatogênese;
de prolactina) e pelo feedback negativo exercido pelos - Prolactina: secretada pelos lactotrofos (15% das célu-
hormônios das glândulas periféricas (glândulas-alvo las da adeno-hipófise), é estimulada pelo estrógeno e
dos hormônios hipofisários); pelo TRH e inibida pela dopamina hipotalâmica. Leva
- Hipófise posterior (ou neuro-hipófise): é compos- ao crescimento mamário e à secreção de leite durante
ta pelos axônios de neurônios cujos corpos celulares a gravidez e lactação;
estão no hipotálamo. Assim, os hormônios neuro-
-hipofisários (ADH e ocitocina) são sintetizados no hi-
- Tireotrofina (TSH): secretada pelos tireotrofos (5%), é
estimulada pelo TRH (hipotalâmico) e inibida pela so-
potálamo (núcleos paraventriculares e supraópticos),
matostatina e pelo T3. Estimula o funcionamento e o
levados até a hipófise posterior através da haste hipo-
crescimento da tireoide;
fisária e secretados na neuro-hipófise.
- Hormônio adrenocorticotrófico (ACTH): secretado
pelos corticotrofos (15%), é estimulado pelo CRH pro-
duzido no hipotálamo e inibido pelos glicocorticoides.
Estimula a síntese de glicocorticoides e androgênios
pelas adrenais.

As células da adeno-hipófise também podem ser classi-


ficadas de acordo com sua coloração no estudo histológico
(conforme apresentado na Tabela 1).
Tabela 1 - Classificação dos tipos celulares da adeno-hipófise con-
forme coloração histológica
% das células
Hormônios
Coloração da adeno- Secreção
secretados
hipófise
Hormônios
Acidófilas 30 a 50% PRL e GH
proteicos
Figura 1 - Anatomia da hipófise

140
DOENÇAS DA HIPÓFISE

% das células Tabela 2 - Causas de hipopituitarismo


Hormônios
Coloração da adeno- Secreção Lesões de massa
secretados
hipófise - Adenomas hipofisários:
Hormônios · Esporádicos;
Basófilas 5 a 15% LH, FSH, TSH
glicoproteicos · Associados a Neoplasias Endócrinas Múltiplas tipo 1 (NEM-
Pró- 1);
ACTH, beta- · Granulomas;
Cromófobas 40 a 50% opiomelanocortina

ENDOCRINOLOGIA
endorfina · Cistos da bolsa de Rathke;
(POMC)
· Metástases para a hipófise (mama, rim, pulmão);
O hormônio antidiurético (ADH, ou vasopressina) é se- · Tumores cerebrais: craniofaringioma, meningioma,
cretado na neuro-hipófise e regula a osmolalidade plasmá- germinoma, glioma, condrossarcoma etc.;
tica por meio do controle da sede e da diurese. A ocitocina, · Histiocitose X.
outro hormônio secretado na hipófise posterior, estimula Doenças vasculares/isquêmicas
as contrações uterinas durante o parto e tem algum efeito - Necrose hipofisária pós-parto (Sheehan);
antidiurético semelhante ao do ADH. - Apoplexia hipofisária;
- Anemia falciforme;
2. Hipopituitarismo - Eclâmpsia e pré-eclâmpsia;
- Isquemia (AVC);
A deficiência de hormônios hipofisários pode ser isolada
(um único hormônio) ou múltipla. A deficiência de todos - Aneurisma cerebral.
os hormônios da adeno-hipófise é conhecida como pan- Doenças infiltrativas/infecciosas
-hipopituitarismo. Disfunções na própria hipófise ou no - Hemocromatose;
hipotálamo podem levar ao hipopituitarismo, e podem ser - Sarcoidose;
adquiridas ou congênitas. - Granulomatose de Wegener;
Doenças que acometem a hipófise geralmente deter- - Tuberculose;
minam deficiências hormonais na ordem apresentada na
- Neurossífilis;
Figura 2:
- Tripanossomíase africana;
- Encefalite;
- Micoses.
Doenças autoimunes
- Hipofisite linfocítica.
Agentes externos
- Trauma cranioencefálico;
- Cirurgia ou radioterapia cerebral.
Causas congênitas
- Deficiência de fatores de transcrição envolvidos na embriogê-
nese da hipófise, acarretando deficiências de múltiplos hormô-
nios (PIT-1; PROP-1, HESX-1, LHX-3);
Figura 2 - Ordem e frequência de surgimento das deficiências hor-
monais no hipopituitarismo - Deficiências isoladas (GH, gonadotrofinas, TSH, outras).
Idiopático

A - Etiologia A síndrome de Sheehan é uma causa de hipopituitaris-


mo que está se tornando cada vez menos comum, graças às
As causas mais comuns são as adquiridas. Os tumores
da região selar (principalmente os adenomas hipofisários), melhoras no cuidado obstétrico. Corresponde, atualmente, a
bem como as sequelas do seu tratamento (cirúrgico e/ou cerca de 0,5% dos casos. Trata-se da necrose hipofisária (par-
radioterápico), são o principal grupo de etiologias do hipo- cial ou total) que ocorre quando há hemorragia periparto vo-
pituitarismo (76% dos casos). A 2ª lesão tumoral mais co- lumosa, com repercussões hemodinâmicas (choque). Nesse
mum a determinar hipopituitarismo é o craniofaringioma período, a hipófise está aumentada em volume e função de-
(13%), uma neoplasia que se localiza na região supra-selar, vido às necessidades da própria gestação, o que aumenta sua
costuma apresentar componente cístico e calcificações, e suscetibilidade à lesão isquêmica. Cursa com agalactia e falta
pode atingir grande volume. de retorno dos ciclos menstruais após o parto.
Uma ampla gama de distúrbios da hipófise ou hipotála- Em jovens que sofrem um trauma cranioencefálico
mo também pode determinar hipopituitarismo (Tabela 2). (TCE), principalmente com perda de consciência, pode sur-

141
ENDOC RI N O LOG I A

gir hipopituitarismo até 1 ano após o TCE. Metade desses diagnostica a deficiência de um hormônio hipofisário, deve-
pacientes apresenta fratura craniana, e o déficit mais co- -se pesquisar a presença de deficiência dos demais hormô-
mum é o Diabetes Insipidus (DI). nios.
A histiocitose X é um distúrbio do sistema reticuloendo- a) LH/FSH
telial, caracterizado pela proliferação de macrófagos, com
ou sem reação inflamatória associada de eosinófilos, neu- Sua deficiência causa o chamado hipogonadismo hipo-
gonadotrófico. Quadros adquiridos cursam com perda de
trófilos e células mononucleares envolvendo o tegumento,
pelos corporais (principalmente na axila e púbis), diminui-
o osso e as vísceras. Tem etiologia desconhecida e deve ser
ção da libido, risco aumentado de osteopenia/osteoporose
considerada em jovens com DI ou hipopituitarismo.
e infertilidade. Homens apresentam redução do crescimen-
A sarcoidose responde por, aproximadamente, 1% dos ca-
to da barba, disfunção erétil e perda de massa muscular,
sos. Cerca de 8% dos casos de hipopituitarismo são idiopáticos.
enquanto mulheres apresentam amenorreia. Micropênis e
Causas congênitas de hipopituitarismo são raras (1:8.000
criptorquidia podem estar presentes em casos congênitos.
nascidos vivos) e podem cursar com deficiências hormonais
Deficiência de LH e FSH na infância/adolescência cursam
múltiplas ou isoladas, a depender do gene mutado (Tabela com atraso puberal e amenorreia primária. A causa mais
3). A causa mais comum de pan-hipopituitarismo congênito comum da deficiência isolada de LH/FSH é a síndrome de
parece ser a mutação de PROP1. Kallmann, uma doença recessiva ligada ao X que acomete,
principalmente, o sexo masculino (5:1). Hiposmia ou anos-
Tabela 3 - Principais síndromes genéticas que cursam com hipopi-
mia são características, devido à hipoplasia do bulbo olfa-
tuitarismo
tório; metade dos pacientes também tem agenesia renal
Padrão de Deficiên-
Outros achados unilateral. Em laboratório, observam-se testosterona ou es-
herança cias
tradiol baixos (ou no limite inferior do normal) na presença
Autossômica GH, PRL, de LH e FSH baixos (ou normais-baixos).
PIT-1 Hipoplasia hipofisária
recessiva TSH
LH, FSH, Aumento hipofisário b) GH
PROP-1
Autossômica GH, PRL, na infância, evoluindo Sua deficiência causa baixa estatura em crianças; em
recessiva TSH tardiamente para sela adultos, as manifestações podem ser menos características:
(ACTH) vazia obesidade central, hipertensão arterial, hipercolesterole-
Autossômica mia, redução do débito cardíaco e da tolerância a exercício,
HESX-1 recessiva ou - Displasia septo-óptica astenia, perda de massa muscular, depressão e isolamen-
dominante to social. Essas alterações provavelmente respondem pelo
Autossômica LH, FSH, risco aumentado de morte cardiovascular observado em
LHX-3 Coluna cervical rígida
recessiva TSH tais pacientes. A deficiência de GH é encontrada em prati-
Autossômica GH, TSH, Tonsilas cerebelares camente todos os pacientes que apresentam deficiência de
LHX-4
dominante ACTH anormais 3 outros hormônios adeno-hipofisários. O IGF-1 está redu-
KAL zido nas crianças deficientes, mas não é muito confiável em
(síndrome adultos ou idosos, já que pode estar normal em 50% dos
Ligada ao X LH, FSH Anosmia
de adultos com deficiência de GH. Geralmente, é necessário
Kallmann) um teste de estímulo para diagnóstico definitivo: hipogli-
DAX-1 Ligada ao X
LH, FSH,
Hipoplasia adrenal
cemia induzida por insulina (padrão-ouro, mas com efeitos
ACTH adversos potencialmente graves), clonidina (apenas em
Autossômica crianças), arginina IV ou levodopa/carbidopa. A reposição
GH1 recessiva ou GH - de GH em adultos com deficiência de GH, apesar de melho-
dominante rar a composição corporal, ainda não demonstrou benefí-
Autossômica cios clínicos significativos.
AVP1 ADH DI central
dominante
c) TSH
Síndrome
de Prader- Esporádica LH, FSH Obesidade, hiperfagia O hipotireoidismo secundário, causado pela deficiência
Willi de TSH, é uma causa rara de hipotireoidismo. Observam-se
Síndrome T4 livre baixo e TSH baixo (ou inadequadamente normal),
Autossômica Distrofia retiniana, mas, eventualmente, o TSH pode estar discretamente ele-
de Bardet- LH, FSH
recessiva obesidade, polidactilia vado (moléculas sem atividade biológica).
Biedl
d) ACTH
B - Quadro clínico e diagnóstico
Sua carência leva à insuficiência adrenal secundária.
O quadro clínico depende do hormônio deficiente e do Geralmente, as manifestações clínicas são mais leves que
grau de deficiência (parcial ou completa). Sempre que se na insuficiência adrenal primária (por patologias adrenais),

142
DOENÇAS DA HIPÓFISE

visto que a secreção de mineralocorticoides (regulada ência adrenal no início da reposição de T4. A monitorização
pelo sistema renina-angiotensina-aldosterona, e não pelo deve ser feita pelos níveis de T4 livre, e não pelo TSH. A
ACTH) é preservada na insuficiência adrenal secundária dose média é um pouco menor do que no hipotireoidismo
e perdida na insuficiência primária. O diagnóstico é feito primário: 75 a 150mcg/dia.
com cortisol baixo (basal <4mcg/dL ou após estímulo com Os hormônios sexuais também podem ser repostos,
ACTH <20mcg/dL); o ACTH está baixo ou inadequadamen- após confirmação diagnóstica e definição da etiologia do
te normal. Não há hiperpigmentação cutâneo-mucosa nem hipogonadismo. Em homens, está indicado o uso de testos-

ENDOCRINOLOGIA
hipercalemia na insuficiência adrenal secundária; o achado terona (enantato ou cipionato), 200 a 300mg IM a cada 2
dessas alterações sugere hipoadrenalismo primário. a 3 semanas ou, como alternativa, testosterona transdér-
e) Prolactina mica (adesivos ou gel). A espermatogênese pode ser es-
timulada com injeções de gonadotrofina coriônica huma-
Sua deficiência manifesta-se, principalmente, pela
na. Em mulheres, podem-se usar estrogênios (estrógenos
incapacidade de amamentar (agalactia) no puerpério.
equinos conjugados 0,3 a 1,25mg/dia, ou etinilestradiol,
Entretanto, pode estar aumentada nos casos de doença hi-
20 a 50mcg/dia, ou estradiol, 0,5 a 2mg/dia), associados
potalâmica ou compressão da haste hipofisária por tumores
ou não a progestágenos (progesterona natural microniza-
parasselares (pela perda da inibição tônica pela dopamina,
da, 100mg/dia, ou acetato de medroxiprogesterona, 2,5 a
produzida no hipotálamo).
10mg/dia). Os progestágenos diminuem o risco de hiper-
f) Outros achados plasia e carcinoma endometrial em mulheres com útero in-
Outros achados incluem pele seca e frágil, palidez, au- tacto, mas aumentam o risco de câncer de mama e eventos
mento das rugas faciais e astenia (no pan-hipopituitarismo). tromboembólicos; por isso, estão contraindicados a mulhe-
Pode haver alterações laboratoriais inespecíficas, como hi- res com carcinoma de mama, história de tromboembolis-
poglicemia, hiponatremia, anemia hipocrômica microcítica, mo, hepatopatia ou gestação. Em mulheres com trombo-
dentre outros. Hipercalemia não é observada. se venosa ou hipertrigliceridemia, deve-se usar estrógeno
Na avaliação do hipopituitarismo, deve-se realizar o es- por via não oral (transdérmico ou intramuscular). Outras
tudo por imagem da região da sela túrcica e hipotálamo. A opções de reposição hormonal em situações específicas
ressonância magnética é o exame de escolha, pela maior são os moduladores seletivos dos receptores estrogênicos
sensibilidade para lesões pequenas ou discretas. Tumores (SERMS: raloxifeno, tamoxifeno), a tibolona e os fitoestró-
podem ser visualizados como lesões expansivas. A histio- genos. Em mulheres com queixa de perda de libido, pode-
citose X pode produzir espessamento da haste hipofisária. -se tentar o uso de androgênios como a DHEA (30 a 50mg/
Causas congênitas podem cursar com hipoplasia hipofisária dia). A ovulação pode ser estimulada com citrato de clomi-
ou síndrome da sela vazia (preenchimento da sela túrcica feno ou similares.
por líquido cefalorraquidiano). Entretanto, muitas vezes o A deficiência de GH é tratada com injeções subcutâne-
achado de sela “vazia” corresponde somente a uma debili- as diárias (noturnas) de hormônio de crescimento humano
dade congênita do diafragma selar, sem nenhum distúrbio recombinante. A dose é de 0,1U/kg/dia em crianças e 0,3 a
hormonal de importância clínica. 2U/dia em adultos. A reposição de GH está indicada a crian-
ças, para prevenir a perda significativa de estatura associa-
C - Tratamento da à deficiência desse hormônio, e a adultos sintomáticos,
Deve-se tratar a doença de base, se possível. A exérese em quem pode melhorar a energia, o psiquismo, reduzir a
transesfenoidal de adenomas hipofisários que comprimem gordura visceral e reverter alterações metabólicas (resistên-
o tecido hipofisário normal (ou a haste hipofisária) pode le- cia à insulina, dislipidemia). Entretanto, pode haver efeitos
var à reversão do hipopituitarismo em algumas situações. adversos, como edema, artralgia, pseudotumor cerebral,
Entretanto, em grande número de casos, o tratamento con- ginecomastia, síndrome do túnel do carpo, hipertensão e
sistirá na reposição permanente dos hormônios deficientes. retinopatia proliferativa, principalmente nos mais idosos;
A reposição de glicocorticoides é feita com acetato de por isso, deve-se usar a menor dose efetiva, objetivando-
cortisona (25mg/dia, divididos em 2 a 3 doses), hidrocorti- -se um nível de IGF-1 dentro da média normal para o sexo
sona (12 a 15mg/m2/dia, em 2 ou 3 doses) ou prednisona e faixa etária.
(5 a 7,5mg/dia, em 1 ou 2 doses). Mineralocorticoides ge- Ao iniciar a reposição dos hormônios hipofisários em
ralmente são desnecessários. Deve-se orientar o paciente pacientes com pan-hipopituitarismo, deve-se sempre ini-
a aumentar a dose de corticoide durante intercorrências ciar pelos glicocorticoides antes das demais reposições (em
médicas (2 a 3 vezes em intercorrências leves, ou hidrocor- 2º, o hormônio tireoidiano, depois os hormônios sexuais e,
tisona 50mg IV 6/6h durante problemas graves). por último, o GH). Pacientes em quem se repõe o hormônio
A levotiroxina é a medicação de escolha para reposição tireoidiano sem reposição adequada de glicocorticoides po-
no hipotireoidismo. É importante ressaltar que ela só deve dem evoluir com piora da insuficiência adrenal (crise adre-
ser iniciada depois que uma possível insuficiência adrenal nal), já que o aumento dos níveis de T4 pode levar a um
tiver sido excluída ou tratada, pelo risco de piora da insufici- aumento agudo do catabolismo do cortisol.

143
ENDOC RI N O LOG I A

Tabela 4 - Resumo do tratamento das deficiências de hormônios casos), com evolução trifásica: poliúria com urina hi-
hipofisários potônica nos primeiros 4 a 5 dias de pós-operatório,
Hormônio seguida de oligúria com urina hipertônica e risco de
Tratamento Controle hiponatremia nos próximos 5 a 7 dias, com retorno à
deficiente
- Acetato de cortisona 25mg/dia, divi- normalidade ou evolução para DI permanente a seguir.
dida em 2 a 3 doses/dia ou; Considera-se permanente o DI que dura mais de 15
- Hidrocortisona 12 a 15mg/m2/dia, Quadro dias, no pós-operatório;
ACTH
dividida em 2 a 3 doses/dia ou; clínico - Diabetes insipidus neurogênico primário: não há le-
- Prednisona 5 a 7,5mg/dia, em 1 a 2 são identificável aos exames de imagem. Muitas vezes,
doses/dia. é de fundo genético, e pode ser esporádico ou familiar
TSH - Levotiroxina, 75 a 150mcg/dia. T4 livre (em que costuma ser de herança autossômica domi-
- Homens: testosterona (enantato ou nante e relacionado a mutações no gene da própria
cipionato, 200 a 300mg IM a cada 2 a vasopressina – gene AVP).
3 semanas; ou adesivo ou gel);
- Mulheres: estrogênios (conjugados B - DI nefrogênico
0,3 a 1,25mg/dia, ou etinilestradiol Quadro O DI nefrogênico é determinado por um defeito dos
LH / FSH 20 a 50mcg/dia, ou estradiol 0,5 a clínico
túbulos renais que diminui sua resposta ao ADH e, assim,
2mg/dia), ou SERMS (raloxifeno),
associados ou não a progestágenos
diminui a reabsorção de água. Os pacientes apresentam
(progesterona natural 100mg/dia ou secreção normal de ADH, mas não resposta ao hormônio
acetato de medroxiprogesterona 2,5 endógeno ou à administração de ADH exógeno. Pode ser
a 10mg/dia). congênito ou adquirido.
- GH recombinante SC 0,1u/kg/dia em - Diabetes insipidus nefrogênico congênito: mais de
GH IGF-1 90% correspondem a mutações no gene AVPR2, com
crianças ou 0,3 a 2u/dia em adultos.
Observação: em pacientes com múltiplas deficiências, sempre herança ligada ao X. É um quadro severo de DI, que
repor 1º os glicocorticoides. se manifesta desde o nascimento, devido à expressão
defeituosa do V2R, um receptor do ADH normalmen-
te presente nos túbulos coletores renais. Cerca de 8%
3. Diabetes insipidus dos casos de DI nefrogênico congênito se devem a mu-
O DI é uma patologia incomum, que cursa com a excre- tações do gene da aquaporina 2 (AQP2), um canal de
ção de grandes volumes de urina, caracteristicamente di- água presente nos túbulos coletores renais, sensível
luída, hipotônica e insípida (origem do nome da doença). à ação do ADH; tem padrão de herança autossômica
Decorre da falta de ação do hormônio antidiurético (ADH, recessiva;
ou vasopressina), devido à falta de secreção (DI neurogêni- - Diabetes insipidus nefrogênico adquirido: mais co-
co, ou central) ou à resistência ao seu efeito biológico (DI mum, pode ser encontrado em várias situações, dentre
nefrogênico). elas, pielonefrite, amiloidose renal, mieloma múltiplo,
hipocalemia, síndrome de Sjögren, anemia falciforme,
A - DI neurogênico hipercalcemia crônica e uso de medicações (corticoi-
O DI neurogênico é provocado por doenças que acome- des, diuréticos, demeclociclina, lítio, foscarnete).
tem o hipotálamo ou a haste hipofisária. O acometimento
Outra possível etiologia é o DI gestacional, em que há
isolado da hipófise posterior não causa DI, visto que o ADH
degradação exagerada de ADH por aumento das vasopres-
é produzido pelos corpos celulares dos neurônios hipotalâ-
sinases placentárias, acarretando poliúria (transitória) no
micos, portanto sua deficiência clínica só ocorre quando há
3º trimestre e/ou puerpério.
destruição desses neurônios (lesão hipotalâmica). As etio-
Um diagnóstico diferencial importante é a polidipsia
logias do DI neurogênico podem ser divididas em 2 grupos:
primária, um distúrbio frequentemente associado a trans-
- Diabetes insipidus neurogênico secundário: mais co-
mum que o primário, decorre de dano ao hipotálamo tornos psiquiátricos (esquizofrenia, distúrbio bipolar) ou a
ou à haste hipofisária provocado por várias patologias lesões cerebrais com alteração dos mecanismos da sede,
possíveis: adenomas hipofisários, outras neoplasias da em que o paciente ingere grandes volumes de líquidos.
região, metástases, encefalopatia anóxica, TCE, cirur-
gia, radioterapia, sarcoidose, histiocitose X, infecções
C - Quadro clínico e diagnóstico
(tuberculose, sífilis, encefalite), hipofisite linfocítica e Clinicamente, o paciente apresenta poliúria (3 a 18L/
alterações vasculares (AVC, aneurismas). Após cirurgia dia), além de enurese noturna, sede intensa (principal-
sobre a região hipotalâmico-hipofisária, é frequen- mente por líquidos gelados, no DI neurogênico), depleção
temente observado um DI transitório (30 a 60% dos e hipernatremia nos casos mais graves. Adultos podem

144
DOENÇAS DA HIPÓFISE

apresentar hiperuricemia. Considera-se anormalmente au- tico do paciente ao final do teste (antes da administração
mentado o volume de diurese maior que 50mL/kg/dia, ou de DDAVP): <5pg/mL no neurogênico, e em torno de 10 a
>3L/dia para adultos, na ausência de expansão de volume. 20pg/mL no nefrogênico.
O diagnóstico requer a quantificação do volume de diu- Nos casos centrais, deve-se realizar estudo por imagem
rese e da ingestão hídrica, a determinação da osmolaridade da região selar, que pode evidenciar lesões expansivas ou,
urinária (menor que a do plasma) e da densidade urinária nos casos primários, a perda do ponto brilhante correspon-
(menor que 1.006), e a exclusão de outras causas de poli- dente à neuro-hipófise na ressonância magnética em T1

ENDOCRINOLOGIA
úria e polidipsia: Diabetes Mellitus (DM) descompensado, (Figura 3).
polidipsia primária, hipercalcemia, síndrome de Cushing,
medicamentos (lítio) etc.
Se a osmolaridade plasmática for maior que 295mOsm/L
e a urinária inferior à do plasma (urina hipotônica), o diag-
nóstico de DI já poderá ser estabelecido. Caso isso não
ocorra espontaneamente, deve-se realizar a confirmação
com o teste de privação hídrica: mantém-se o paciente em
jejum, sob observação, e seu peso, diurese, osmolaridade/
densidade urinária e natremia/osmolaridade plasmática
são avaliados de hora em hora, durante 4 a 8 horas. O teste
é interrompido no momento em que o paciente perde pelo
menos 3% do peso corporal ou a osmolaridade plasmática
atinge valores >296mOsm/L. Nesse momento, administra-
-se DDAVP, um análogo sintético do ADH, por via nasal
(10mcg) ou subcutânea (1,2mcg), a ingesta de fluidos é li-
berada, e observam-se o débito urinário, a osmolaridade/
densidade urinária e a natremia/osmolaridade plasmática
por mais algumas horas. Ao final do teste, a presença de
diurese hipotônica, mesmo na presença de depleção volu-
métrica e/ou hiperosmolaridade plasmática, confirma o DI.
A administração de DDAVP, ao final do teste, tem por
objetivo diferenciar entre os quadros neurogênicos e nefro-
gênicos de DI. Caso haja resposta ao DDAVP, com aumento
de 50% ou mais da osmolaridade urinária (bem como redu-
ção da diurese e aumento da densidade urinária), trata-se
de uma etiologia neurogênica; o nefrogênico não apresenta
resposta ao DDAVP. Resposta menor que 50% pode ser vista
em casos de DI nefrogênico parcial, neurogênico parcial ou
polidipsia primária (Tabela 5).
Tabela 5 - Interpretação do teste de privação hídrica
Osmolaridade urinária (mOsm/L)
Após restrição Diagnóstico
Após DDAVP
hídrica
>750 >750* - Normal.
- DI neurogênico
<300 >750*
completo.
- DI nefrogênico
<300 <300
completo.
- DI neurogênico parcial;
300 a 750 <750** - DI nefrogênico parcial;
- Polidipsia primária.
* Ou aumento >50% da osmolaridade urinária.
** Ou aumento <50% da osmolaridade urinária.
Figura 3 - Ressonância magnética de sela túrcica, em corte sagital,
A distinção entre quadros parciais de DI neurogênico ou de um indivíduo normal (na imagem de baixo) e de um paciente
nefrogênico pode ser feita pela dosagem de ADH plasmá- com DI neurogênico (na imagem de cima)

145
ENDOC RI N O LOG I A

D - Tratamento pela sua posição anatômica superior à sela túrcica, é uma


das estruturas mais afetadas. O crescimento do tumor em
O tratamento envolve uma adequada reposição hídrica, direção cranial comprime a região medial do quiasma (por
que pode ser o único tratamento necessário nos casos leves onde passam as fibras nervosas que inervam a parte nasal
ou parciais. da retina), acarretando perda de visão, inicialmente, nos
Nos pacientes com DI central ou gestacional, utiliza-se quadrantes temporais superiores (quadrantanopsia tem-
o DDAVP, geralmente por via nasal (solução ou spray), na poral superior), depois progredindo para a totalidade dos
dose de 5 a 50mcg a cada 12 a 24h. Também há apresenta- campos temporais (hemianopsia temporal bilateral) e, em
ções do DDAVP para uso oral (comprimidos de 100mcg, 1 a última instância, determinando amaurose completa. A per-
12 comprimidos/dia) ou subcutâneo. Clorpropamida, car- da de visão poderá ser reversível se a duração da compres-
bamazepina e clofibrato também podem ser úteis. são for curta, mas compressões de longa duração podem
O DI nefrogênico completo é de difícil tratamento, pois cursar com palidez e atrofia dos nervos ópticos. A avaliação
não responde ao DDAVP. Nos casos de DI nefrogênico par- é feita por campimetria visual. Além do quiasma óptico, os
cial, podem-se usar doses altas de DDAVP, associadas a uma pares cranianos (III, IV e VI) podem sofrer compressão por
dieta hipossódica. Uma alternativa é usar hidroclorotiazida tumores de crescimento lateral no ponto onde cruza o seio
(50 a 100mg/dia) ou amilorida, além de anti-inflamatórios cavernoso. Tumores crescendo em direção caudal podem
não hormonais (ibuprofeno, indometacina). erodir o soalho da sela túrcica e invadir o seio esfenoidal ou
O DI secundário ao lítio geralmente reverte após a sus- até mesmo a nasofaringe (fístula liquórica).
pensão da droga.
B - Classificação dos adenomas hipofisários
4. Tumores hipofisários Os adenomas podem ser classificados, quanto à função,
Diversos tipos de neoplasias podem acometer a região em clinicamente funcionantes (aqueles que levam a algu-
da hipófise e hipotálamo. Dentre os tumores da região selar ma síndrome de excesso hormonal), ou clinicamente não
(onde se encontra a hipófise), os mais comuns são os ade- funcionantes (os que não causam repercussão clínica de-
nomas hipofisários, benignos, que respondem por 10% dos corrente de algum excesso hormonal). Cerca de 25 a 35%
tumores cerebrais. dos tumores hipofisários são lesões clinicamente não secre-
toras, e, mais de 90% desses tumores são adenomas (benig-
A - Manifestações clínicas dos adenomas hipo- nos). A frequência dos diferentes adenomas, quanto à sua
fisários secreção hormonal, é apresentada na Tabela 6.
As manifestações clínicas dos adenomas hipofisários po- Tabela 6 - Classificação dos adenomas quanto à sua secreção hor-
dem ser classificadas em 3 grupos: monal, com respectiva frequência relativa
Secreção hormonal Frequência relativa
- Síndromes de excesso hormonal: decorrentes da se-
creção exagerada de 1 ou mais hormônios hipofisários Adenomas clinicamente não
25 a 35%
pelo próprio tumor (exemplo: acromegalia, no adeno- funcionantes
ma secretor de GH). Alguns adenomas, mesmo sem Adenomas clinicamente funcionantes 70%
secretar prolactina em excesso, podem levar à hiper- Prolactinoma 40 a 50%
prolactinemia. Isso ocorre quando o adenoma compri- Acromegalia 10 a 15%
me a haste hipofisária e interrompe a inibição tônica Doença de Cushing 10 a 15%
exercida pela dopamina hipotalâmica sobre a secreção Tireotrofinoma <1%
de prolactina pela hipófise normal. A hiperprolactine-
mia, nesta situação, costuma ser leve a moderada (até A denominação adenoma não funcionante não deve ser
100ng/mL); usada, pois muitos dos tumores que não causam alteração
clínica ou laboratorial indicativa de hipersecreção hormonal
- Deficiências hormonais (hipopituitarismo): devidas à sintetizam diversos peptídios (principalmente: LH, FSH e su-
invasão/compressão da hipófise normal por um ade-
bunidade alfa) que não causam repercussão laboratorial ou
noma hipofisário volumoso ou invasivo;
clínica, e que só são detectados pela imuno-histoquímica no
- Sintomas decorrentes dos efeitos de massa: (cefaleia, pós-operatório. A melhor denominação para esse tipo de tu-
compressão do quiasma óptico ou de estruturas ner- mor, portanto, é adenoma clinicamente não funcionante, ou
vosas vizinhas), nos adenomas volumosos ou supras- clinicamente não secretor. Tais tumores geralmente provocam
selares. apenas sintomas de massa (pela compressão de quiasma óp-
tico) ou de hipopituitarismo (quando interferem na função da
Sinais e sintomas da presença de um tumor na região hipófise normal adjacente, levando à hipofunção da mesma).
selar dependem do volume da massa e de quais estruturas Os adenomas hipofisários também podem ser classifi-
são invadidas e/ou comprimidas por ele. O quiasma óptico, cados, quanto ao tamanho, em microadenomas (até 10mm

146
DOENÇAS DA HIPÓFISE

de diâmetro máximo) ou macroadenomas (maiores que C - Outras lesões de massa da região selar
10mm) (Figura 4). A maioria dos tumores não secretores
Outras patologias que podem determinar lesões de
que causam sintomas é composta por macroadenomas
massa na região selar estão listadas na Tabela 7.
(>10mm), alguns dos quais com extensão suprasselar e in-
O craniofaringioma responde por 3% dos tumores in-
vasão de estruturas vizinhas.
tracranianos e até 10% dos tumores cerebrais em crian-
O exame de imagem de escolha para estudo da região ças. Surge dos remanescentes da bolsa de Rathke e cresce
hipofisária é a ressonância magnética, pela sua melhor de- cranialmente, podendo atingir grandes volumes, apresen-

ENDOCRINOLOGIA
finição espacial e maior sensibilidade para lesões pequenas tando à tomografia um aspecto cístico, muitas vezes com
(Figura 3). O achado (nos exames de imagem) de uma lesão calcificações.
em região da sela túrcica deve motivar a pesquisa clínica e
laboratorial de disfunções hormonais. Na tomografia, ade- Tabela 7 - Causas de lesões de massa na região selar
nomas hipofisários são hipodensos em relação à hipófise - Adenomas hipofisários:
normal, principalmente após a injeção do contraste. · Funcionantes;
· Não funcionantes.
- Cisto da bolsa de Rathke;
- Craniofaringioma;
- Cistos aracnoides;
- Cisto dermoide e epidermoide;
- Meningioma;
- Glioma;
- Hamartoma;
- Germinoma;
- Cordoma;
- Carcinoma de nasofaringe;
- Metástases;
- Aneurisma de carótida;
- Sarcoidose;
- Granuloma de células gigantes;
- Hipofisite linfocítica (autoimune);
- Gravidez;
- Hipotireoidismo primário severo.

5. Hiperprolactinemia e prolactinoma
A - Hiperprolactinemia
A hiperprolactinemia ocorre por aumento na secreção
de prolactina decorrente de causas fisiológicas (gestação,
estresse, sono, exercício), medicamentosas, adenomas hi-
pofisários e diminuição do tônus inibitório dopaminérgico.
A causa mais comum de hiperprolactinemia é o uso de
medicações que bloqueiam as vias dopaminérgicas, inibido-
ras da secreção de prolactina, enquanto o prolactinoma é a
2ª causa mais comum.
As manifestações clínicas de hiperprolactinemia são
mais evidentes em mulheres: galactorreia (30 a 80%),
amenorreia (por hipogonadismo hipogonadotrófico), dis-
pareunia, perda de libido, hirsutismo, acne e ganho de
peso. Homens também podem apresentar galactorreia (12
a 30%), além de diminuição da libido, disfunção erétil (em
75%), infertilidade (pelo hipogonadismo hipogonadotró-
fico) e, raramente, ginecomastia. A osteoporose pode ser
Figura 4 - Ressonância magnética de sela túrcica mostrando vários uma complicação, relacionada ao hipogonadismo hipogo-
tipos de adenoma hipofisário: (A) hipófise normal; (B) microadeno- nadotrófico. Apenas 50% dos casos de galactorreia são as-
ma hipofisário e (C) macroadenoma hipofisário sociados à hiperprolactinemia.

147
ENDOC RI N O LOG I A

O diagnóstico diferencial da hiperprolactinemia é amplo a desconexão hipotalâmico-hipofisária por compressão da


e, muitas vezes, difícil. Devem-se sempre colher pelo menos haste é a causa mais provável da hiperprolactinemia.
2 exames, em dias separados, após repouso, para confir- Outra situação a ser lembrada é a chamada macroprolac-
mar a presença de prolactina elevada. As causas fisiológicas tinemia, caracterizada pelo aumento da prolactina plasmáti-
sempre devem ser pesquisadas, por serem muito comuns: ca na ausência de manifestações clínicas. Esse fenômeno se
gravidez, lactação, estresse, exercício, sono e estímulo das deve à presença de uma molécula anormalmente grande no
mamas. Dentre as não fisiológicas, a causa mais comum é plasma, chamada macroprolactina (big-gig prolactin), com-
o uso de medicações, sendo extensa a lista de substâncias posta por várias moléculas de prolactina ligadas entre si por
que podem levar à elevação da prolactina. As drogas mais pontes de IgG, que apresenta pouco efeito biológico e não
frequentemente associadas à hiperprolactinemia são apre- necessita de tratamento na maioria das vezes (exceto se o
sentadas na Tabela 8. paciente é sintomático). O diagnóstico de macroprolactine-
mia é oferecido pela precipitação do soro do paciente com
Tabela 8 - Substâncias que podem causar hiperprolactinemia polietilenoglicol ou pela cromatografia líquida. A precipita-
- Neurolépticos: haloperidol, clorpromazina, risperidona; ção com etilenoglicol é o exame de escolha, por ser de me-
- Antidepressivos: tricíclicos, fluoxetina; nor custo. Se a recuperação da prolactina no sobrenadante
for menor que 30% do valor inicial após a precipitação, será
- Sedativos: alprazolam;
confirmada a macroprolactinemia; se a recuperação for >60
- Anorexígenos: anfepramona, femproporex; a 65%, afasta-se macroprolactinemia (predomínio das for-
- Analgésicos opioides: morfina, tramadol, dolantina; mas leves, monoméricas da prolactina); e se a recuperação
- Anticonvulsivantes: ácido valproico, fenitoína; for de 30 a 60 a 65%, o resultado será indeterminado e estará
- Drogas de abuso: maconha, cocaína, heroína, anfetaminas; indicada a cromatografia para melhor avaliação.
Se o paciente apresenta hiperprolactinemia, na ausên-
- Antiácidos: cimetidina, ranitidina;
cia de gestação, hipotireoidismo primário ou uso de me-
- Antieméticos: metoclopramida; dicamentos/drogas, está indicado o estudo de imagem da
- Anti-hipertensivos: metildopa, verapamil, atenolol; região hipotalâmico-hipofisária (preferencialmente, por
- Estrogênios; ressonância magnética).
- Inibidores da protease;
Em alguns casos, não é encontrada a causa da hiperpro-
lactinemia (ausência de causas secundárias e ressonância
- Azatioprina. normal). Essa situação é denominada hiperprolactinemia
idiopática e pode representar casos de microadenomas
Outras causas endócrinas de hiperprolactinemia são o
hipofisários muito pequenos para serem detectados pelos
hipotireoidismo primário (pelo aumento do TRH com con-
exames de imagem.
sequente estímulo à secreção de prolactina pela hipófise,
Um algoritmo útil para guiar a investigação dos casos de
reversível com a reposição de levotiroxina), a insuficiência
hiperprolactinemia é apresentado na Figura 5.
adrenal e a síndrome dos ovários micropolicísticos. Alguns
tumores da região selar podem levar a aumento da pro-
lactina por simples compressão da haste hipofisária (inter-
rompendo a inibição tônica da prolactina determinada pela
dopamina hipotalâmica), sem secreção de prolactina pelo
tumor em si: são os pseudoprolactinomas. Finalmente, do-
enças sistêmicas como a insuficiência renal e a cirrose he-
pática podem provocar hiperprolactinemia por redução do
clearance do hormônio.
Nessas etiologias (medicamentos, hipotireoidismo, ová-
rios policísticos, compressão da haste hipofisária), o nível
de prolactina geralmente é pouco elevado e dificilmente
excede 100ng/mL, embora as manifestações clínicas (es-
pecialmente no caso do uso de medicações) possam ser
tão intensas quanto no prolactinoma. Já no prolactinoma,
os níveis de prolactina tipicamente são maiores que 100 a
150ng/mL (valor normal: <25 a 30ng/mL).
Em pacientes com dúvida entre hiperprolactinemia tu-
moral e compressão de haste (por exemplo: presença de
adenoma hipofisária e prolactina pouco elevada, <100ng/
mL), pode-se administrar uma dose pequena de bromo-
criptina (1,25mg) por 7 dias, e dosar a prolactina no 8º dia.
Se não houver normalização da prolactina, o diagnóstico
de prolactinoma será fortemente sugerido. Se normalizar, Figura 5 - Investigação da hiperprolactinemia

148
DOENÇAS DA HIPÓFISE

B - Prolactinoma gestação, mas raramente é necessária durante a gravidez


(apenas em macroadenomas com tendência de crescimen-
O adenoma secretor de prolactina (prolactinoma) é a to). Em alguns pacientes, o uso prolongado das medica-
2ª causa mais comum de hiperprolactinemia patológica ções consegue levar ao desaparecimento da lesão tumoral,
(depois do uso de medicamentos) e o tipo mais comum de permitindo a retirada gradual da droga em alguns casos.
adenoma hipofisário clinicamente funcionante (correspon- Possíveis efeitos colaterais incluem náuseas, vômitos, ver-
dendo à metade destes). tigem, cefaleia, hipotensão postural, fadiga, obstipação
Prolactinomas são 10 vezes mais comuns em mulheres

ENDOCRINOLOGIA
intestinal e vasoespasmo digital, que geralmente são mais
e geralmente cursam com níveis de prolactina bastante ele- intensos no início do tratamento e podem ser reduzidos
vados (>100 a 150ng/mL). Geralmente, o nível de elevação pelo início gradual da medicação (com aumentos graduais
da prolactina plasmática guarda uma boa correlação com o de dose). A cabergolina geralmente é preferida devido à
tamanho do tumor, sendo os níveis mais altos de prolactina menor frequência de efeitos colaterais, maior eficácia (por
observados em macroadenomas volumosos. ter maior afinidade pelos receptores dopaminérgicos D2) e
Em até 10% dos prolactinomas, o adenoma pode secre- maior comodidade posológica, embora tenha maior custo
tar outros hormônios (por exemplo, GH) juntamente com a que a bromocriptina.
prolactina, por isso a dosagem de IGF-1 sempre está indica- A cirurgia por via transesfenoidal também pode ser in-
da na suspeita de prolactinoma. Formas familiares podem dicada em microprolactinomas de fácil acesso (em que a
existir, relacionadas à Neoplasia Endócrina Múltipla tipo 1 taxa de cura é alta) ou em tumores refratários à medicação.
(NEM-1). A radioterapia é uma opção em tumores refratários à me-
Devido ao fato dos sintomas serem mais discretos no dicação, mas a sua eficácia é baixa, e a redução dos níveis
sexo masculino, os prolactinomas geralmente são diag- de prolactina pode levar de 5 a 10 anos para manifestar-se,
nosticados numa fase mais tardia em homens do que em além de apresentar alto risco de hipopituitarismo.
mulheres. Assim, a maioria (90%) dos prolactinomas em
mulheres corresponde a microadenomas, enquanto em ho-
mens a maioria (80 a 90%) é de macroadenomas. Cefaleia é
6. Acromegalia
uma queixa comum e está presente em 50 a 63% dos pro- A acromegalia é uma síndrome causada pelo excesso
lactinomas. crônico de hormônio de crescimento (GH) que, em mais de
Alguns macroadenomas produtores de prolactina po- 95% dos casos, é causada por um adenoma hipofisário que
dem apresentar-se com sintomas compressivos e sintomas secreta GH. Se o excesso de GH surgir antes do fechamen-
compatíveis com hiperprolactinemia (galactorreia, hipogo- to das cartilagens de crescimento (infância/adolescência),
nadismo), embora a dosagem de prolactina não resulte tão ocorre ganho excessivo de altura (gigantismo).
elevada (<100 a 150ng/mL). Uma possibilidade, em tumo- A grande maioria dos tumores é de macroadenomas (80
res volumosos, é o chamado “efeito gancho”, que acontece a 90%). Os adenomas hipofisários podem produzir apenas
quando os níveis plasmáticos de prolactina estão extrema- GH (60%) ou serem compostos de mais de 1 tipo celular (tu-
mente elevados, levando à interferência nos métodos labo- mores mistos), produzindo GH em associação a outro hor-
ratoriais utilizados e determinando valores falsamente bai- mônio hipofisário (mais comumente, prolactina). Causas
xos (ou não tão elevados) de prolactinemia. Essa interferên- mais raras de acromegalia incluem a secreção ectópica de
cia só acontece com ensaios imunométricos de uma etapa. GHRH (5% – por carcinoides brônquicos ou gastrintestinais),
Pode-se evitar esse problema diluindo a amostra (em 100 o excesso de GHRH causado por doenças hipotalâmicas (1%
vezes) ou usando ensaios imunométricos de 2 etapas, que – hamartoma etc.) e, muito raramente, o carcinoma hipofi-
não sofrem tal interferência. Deve-se suspeitar do efeito sário secretor de GH e os tumores extra-hipofisários secre-
gancho em pacientes com tumores de grandes dimensões, tores de GH.
bastante sintomáticos, mas com prolactina pouco elevada. Os adenomas hipofisários secretores de GH são, na maior
parte das vezes, por mutações em ponto do gene da proteína
- Tratamento dos prolactinomas G estimulatória (GSP) ou do gene transformador de tumo-
O tratamento de escolha para prolactinomas, mesmo res hipofisários (PTTG). A Neoplasia Endócrina Múltipla tipo
nos tumores volumosos, consiste no uso dos agonistas do- 1 (NEM-1, causada por mutação no gene supressor tumoral
paminérgicos derivados da ergotamina, como a bromocrip- menin, no cromossomo 11) e o complexo de Carney também
tina (5 a 10mg/dia) ou a cabergolina (0,5 a 1mg, 1 a 2x/ podem estar associados à acromegalia/gigantismo.
semana). Essas drogas são eficazes em reduzir os sintomas A acromegalia atinge igualmente ambos os sexos, é mais
clínicos, normalizar os níveis de prolactina e recuperar a comum entre os 30 e 50 anos e determina aumento de 2 a
função gonadal em 80 a 90% dos casos, além de levarem 3 vezes na mortalidade, principalmente por causas cardio-
à redução do tamanho do tumor em mais de 70 a 80% das vasculares e respiratórias (sobrevida encurtada em 5 a 10
vezes, especialmente em microprolactinomas. A fertilidade anos). Entretanto, é uma doença rara, com incidência es-
é normalizada em 80% das pacientes, permitindo a gravidez timada de 3 casos novos por milhão de habitantes/ano e
na maioria. A bromocriptina é preferida para uso durante a prevalência de 50 a 60 casos/milhão.

149
ENDOC RI N O LOG I A

As manifestações clínicas instalam-se de forma lenta Órgão ou sistema Achados clínicos


e gradual, o que determina um atraso médio de cerca de O excesso de GH provoca alterações
10 anos até o diagnóstico. Os sintomas típicos do exces- musculoesqueléticas e crescimento de
so de GH são o aumento das extremidades: crescimento extremidades (mãos, pés, nariz, orelhas,
Musculoesquelético
das mãos e dos pés (alargamento dos dedos, anéis muito lábios). Cerca de 30% dos pacientes
apertados, mãos “acolchoadas”, aumento do número dos apresentam artralgias e síndrome do
túnel do carpo ocorre em 1/3 dos casos.
calçados), crescimento grosseiro de protuberâncias faciais
(orelhas, nariz, queixo, lábios, crista supraorbitária), afasta- Sudorese excessiva, acantose nigricans,
Dermatológico acne, cistos sebáceos, papilomas e skin
mento entre os dentes, macroglossia e acrocórdons (skin
tags são observados.
tags) (Figura 6). Também pode haver aumento das vísceras:
Aumento de nódulos tireoidianos e
coração, rins, fígado e tireoide. Hiperidrose e oleosidade da
pólipos intestinais ocorrem, bem como
pele, bem como aumento das linhas e pregas cutâneas, são Neoplasias um possível aumento no risco de câncer
comuns. Artralgia é uma queixa muito comum, associada à de cólon, mas sem aumento do risco
osteoartrose severa e precoce (Tabela 9). O paciente tam- para outras doenças malignas.
bém pode queixar-se de sintomas causados pelo efeito de
massa do adenoma hipofisário: cefaleia, perda de visão (he- Complicações do excesso de GH incluem hipertensão ar-
mianopsia temporal) ou hipopituitarismo. terial, insuficiência cardíaca, aterosclerose grave e precoce,
osteoartrose, apneia do sono (até 80%), síndrome do túnel
do carpo (em 1/3 dos casos) e DM (em 30 a 50%). A hiper-
prolactinemia pode ser observada em cerca de 30 a 40%
dos acromegálicos, com ou sem galactorreia. A acromegalia
também aumenta o risco para neoplasia de cólon (pólipos
e câncer) e talvez para tumores de mama, pele, estômago e
tireoide, embora as evidências nesse sentido sejam contro-
versas. Acredita-se que a presença de skin tags sirva como
marcador para a presença de pólipos intestinais.
a) Diagnóstico da acromegalia
Figura 6 - Fácies típica e mãos grosseiramente aumentadas de
O diagnóstico de acromegalia é feito pelo achado de
uma paciente acromegálica (imagem à direita); as imagens da
esquerda e central representam fotografias da mesma paciente
IGF-1 (Insulin-like Growth Factor 1) e GH aumentados.
quando mais jovem: notar a diferença nos traços com a progres- A dosagem de IGF-I é extremamente útil no diagnósti-
são da doença co e no seguimento de pacientes acromegálicos. Trata-se
de um fator de crescimento de produção hepática e teci-
Tabela 9 - Manifestações dos pacientes com acromegalia dual, que aumenta em resposta à secreção de GH. Como
Órgão ou sistema Achados clínicos os níveis de IGF-I não oscilam durante o dia, sua dosagem
Cefaleia, frequentemente com fornece ideia da secreção integrada de GH nas 24 horas. Os
características de cefaleia tensional, resultados devem ser interpretados considerando o sexo e
está presente em até 65% dos pacientes a idade do paciente. Praticamente todos os acromegálicos
e não se correlaciona com tamanho da apresentam IGF-I aumentado para sexo e idade. Por isso, o
Neurológico
neoplasia, podendo ser desproporcional
ao tamanho tumoral. Pacientes podem IGF-1 é o exame mais sensível e deve ser o 1º exame a ser
apresentar perda visual se compressão solicitado na suspeita de acromegalia. O IGF-1 normal, em
de quiasma e vias ópticas. comparação com a média para o sexo e idade, virtualmente
A maior causa de morte em tais exclui a presença de acromegalia. Na presença de IGF-1 au-
pacientes é cardiovascular (mais de 60% mentado, deve-se confirmar o diagnóstico de acromegalia,
Cardiovascular
dos óbitos). Pode ocorrer hipertensão por meio da falta de supressão do GH.
arterial e aterosclerose acelerada. Como a secreção de GH é pulsátil, a coleta de amostras
Apneia obstrutiva do sono ocorre em ao acaso tem valor limitado, por isso é necessário o uso de
80% dos pacientes. Pode ocorrer por testes de supressão farmacológica do GH para comprovar a
Respiratório macroglossia e edema de partes moles,
e também pode haver componente
presença de secreção autônoma (tumoral) desse hormônio.
central. Entretanto, níveis séricos ao acaso de GH >0,4ng/mL são su-
Os pacientes apresentam aumento da
gestivos de acromegalia.
resistência insulínica mediada pelo GH, O padrão-ouro para o diagnóstico é o teste de supressão
Metabolismo de e pode ocorrer intolerância à glicose ou do GH com glicose. A hipófise normal suprime a secreção
carboidratos e lipídios DM (em 30%). Hipertrigliceridemia e de GH após uma sobrecarga de glicose. Usa-se glicose (75g
baixos níveis de HDL-colesterol também VO), com dosagem de GH a cada 30 minutos por 2 horas.
são possíveis. Em indivíduos normais, deve haver supressão do GH para

150
DOENÇAS DA HIPÓFISE

um nadir <1ng/mL, o que não acontece em acromegálicos, mas resultados falsos positivos podem ocorrer em pacientes com
DM, doença hepática ou renal, anorexia nervosa e outras condições (Figura 7).

ENDOCRINOLOGIA

Figura 7 - Abordagem terapêutica nos pacientes com acromegalia

Deve-se também dosar a prolactina e avaliar possíveis b) Tratamento da acromegalia


deficiências de outros eixos hormonais. Radiografia das
mãos e dos pés pode mostrar aumento das partes moles A 1ª escolha para tratamento é a cirurgia por via tran-
e alargamento dos espaços articulares das falanges. O mé- sesfenoidal, capaz de curar 80 a 90% dos microadenomas
todo de imagem de escolha para avaliação da hipófise é a e 25 a 50% dos macroadenomas, além de aliviar os sin-
ressonância magnética. Campimetria visual deve ser reali- tomas compressivos locais. A cura bioquímica é definida
zada para avaliar o grau de comprometimento do quiasma como um nível normal de IGF-1 ajustado para a idade e o
óptico. Colonoscopia e ecocardiograma também são roti- sexo do paciente, associado a nadir de GH <1ng/mL após
neiramente indicados, para avaliar possíveis complicações supressão com glicose via oral. Pacientes que atingem es-
da acromegalia. Ultrassonografia de tireoide e próstata, e ses valores têm reversão do risco aumentado de mortali-
mamografia podem ser indicados, dependendo do caso. dade.

151
ENDOC RI N O LOG I A

Nos casos em que esses índices não são atingidos, pode- T3/T4 altos e TSH aumentado (ou normal). O tratamento
-se lançar mão da radioterapia (convencional ou estereotá- inicial é cirúrgico, mas, como a probabilidade de cura é
xica), eficaz em reduzir os níveis de IGF-1 em cerca de 40 a baixa (por se tratar de lesões grandes), frequentemente é
50% dos pacientes (após um período de latência de vários necessário o uso de terapias complementares, como a ra-
anos) e capaz de prevenir o crescimento adicional do ade- dioterapia ou o uso de análogos da somatostatina (drogas
noma. Um efeito adverso comum da radioterapia é o surgi- mais eficazes em controlar o hipertireoidismo).
mento de hipopituitarismo.
Outra opção, que está se tornando cada vez mais utiliza- 9. Tumores clinicamente não
da, são os análogos da somatostatina. Esta compreende um
inibidor natural da secreção de GH, e análogos sintéticos funcionantes
dessa molécula, com maior potência e meia-vida mais lon- Adenomas hipofisários clinicamente não funcionantes
ga, estão disponíveis. Um exemplo é o octreotide, que pode correspondem a uma grande parcela dos tumores hipofi-
ser usado por via SC (100 a 200mcg, 3x/dia) ou IM (forma sários (25 a 35%). Apesar de não determinarem manifes-
de depósito – LAR – 20 a 30mg a cada 28 dias), obtendo re- tações clínicas ou laboratoriais de hipersecreção hormonal
dução do GH (<2,5ng/mL) e normalização do IGF-1 em cer- (e, por isso, são chamados de “clinicamente não funcionan-
ca de 40 a 60% e 60 a 80% dos pacientes, respectivamente. tes”), essas lesões muitas vezes secretam hormônios ou
A redução do tamanho do tumor (de até 50%) ocorre em suas subunidades, mas em níveis insuficientes para deter-
cerca de 30 a 40%. Muitos serviços estão adotando o octre- minar repercussão clínica ou laboratorial. Os produtos mais
otide como terapia inicial da acromegalia, principalmente frequentemente secretados por esse tipo de adenoma são
em tumores grandes e/ou invasivos com pouca possibili- as gonadotrofinas e a subunidade alfa dos hormônios glico-
dade de cura pela cirurgia. O octreotide e o lanreotida são proteicos (LH, FSH, TSH). O tratamento dos adenomas clini-
agonistas dos receptores 2 e (em menor grau) 5 da soma- camente não funcionantes sintomáticos (com sintomas de
tostatina, mais frequentemente encontrados em adenomas massa ou hipopituitarismo) é preferencialmente cirúrgico,
secretores de GH. Novos agonistas dopaminérgicos estão podendo-se associar radioterapia nos casos refratários.
sendo desenvolvidos com ação preferencial sobre o recep-
tor 5 ou com ação sobre os receptores 1, 2, 3 e 5, para uso
em pacientes refratários ao octreotide/lanreotida. 10. Apoplexia hipofisária
O pegvisomanto (20mg/dia, SC) é um antagonista do Caracteriza-se por um quadro vascular agudo na hipófise,
receptor de GH capaz de normalizar os níveis de IGF-1 em e suas manifestações podem variar desde uma apresenta-
90 a 97% dos pacientes com acromegalia, entretanto cur- ção assintomática (apoplexia subclínica) até um quadro de
sa com aumento dos níveis do GH nos primeiros 6 meses, emergência endocrinológica com cefaleia súbita e intensa,
e seu efeito sobre o tamanho do tumor ainda não é bem turvação visual, podendo ser acompanhada de hipotensão,
estabelecido; por esse motivo, é reservado para pacientes hipoglicemia, febre e coma. Na maioria dos casos, decorre
não controlados, apesar do tratamento com cirurgia e/ou de hemorragia espontânea no interior de um adenoma hipo-
octreotide, desde que não apresentem sintomas compres- fisário volumoso, mas pode também acontecer em hipófises
sivos pelo tumor. Elevação das transaminases pode ocorrer. não tumorais, associada ao traumatismo craniano, anemia
Os agonistas dopaminérgicos (cabergolina, em altas do- falciforme e após choque hipovolêmico. Em cerca de 25%
ses) têm uma eficácia limitada em controlar a secreção de dos pacientes com apoplexia hipofisária clínica, podem ser
GH (boa resposta em 10% com bromocriptina e 40% com encontrados fatores predisponentes: DM, hipertensão arte-
cabergolina, em doses altas), com melhores resultados nos rial sistêmica, uso de anticoagulantes, cirurgias, uso de circu-
pacientes com tumores mistos (GH e prolactina). lação extracorpórea, testes endocrinológicos.

7. Doença de Cushing A - Investigação


A doença de Cushing (adenoma hipofisário secretor de A maioria das pessoas com apoplexia hipofisária não
ACTH) é a causa mais comum de síndrome de Cushing de sabe referir lesão tumoral nessa glândula. Muitas vezes,
origem endógena (não medicamentosa), respondendo por são realizados diagnósticos errôneos, como hemorragia
70 a 80% dos casos. Geralmente, é causada por microade- meníngea por aneurisma ou malformação arteriovenosa,
nomas (em média, 5mm de diâmetro). meningoencefalite, gastroenterite e enxaqueca. Se o fenô-
meno é hemorrágico, o que ocorre na maioria dos casos,
a tomografia computadorizada sem contraste mostra uma
8. Tireotrofinomas área hiperatenuante, o que, em geral, dura cerca de 1 se-
Os tireotrofinomas (secretores de TSH) são raros (menos mana. Somente após essa fase, a ressonância magnética de
de 1 a 3% dos adenomas hipofisários) e cursam com graus hipófise passa a ser superior à tomografia, observando-se a
variados de hipertireoidismo, associados geralmente à ce- presença de hipersinal espontâneo em T1 e em T2 na região
faleia e perda visual (por compressão tumoral). Apresentam selar, compatível com sangramento (Figura 8).

152
DOENÇAS DA HIPÓFISE

o quadro hemorrágico é resolvido de forma espontânea. Se o


paciente não apresenta rebaixamento do nível de consciên-
cia ou distúrbio visual, opta-se por seguir clinicamente. Nos
casos de compressão quiasmática, inicia-se glicocorticoide
em altas doses (dexametasona, 4mg IV, 6/6h) para diminuir
o edema, e encaminha-se o paciente para descompressão

ENDOCRINOLOGIA
neurocirúrgica. O ideal é que ele seja operado em até 7 dias,
a contar do início da perda visual. Pode ocorrer melhora clí-
nica do distúrbio visual apenas com uso do glicocorticoide,
e, nessa situação, há a opção de seguir clinicamente. Após a
resolução do quadro agudo, deve-se avaliar a reserva hipofi-
sária, pois, não raro, tais pacientes permanecem em hipopi-
tuitarismo e necessitam de reposição hormonal. A retirada
da dexametasona deve ser feita de forma gradual, a fim de
evitar crise de insuficiência adrenal.

11. Resumo
Quadro-resumo
- O hipopituitarismo pode ocorrer por causas congênitas ou,
mais comumente, causas adquiridas, sendo sua principal
etiologia os adenomas hipofisários e seu tratamento (cirurgia/
radioterapia);
- Quando ocorre lesão hipofisária, a ordem do aparecimento das
deficiências hormonais costuma ser: GH, FSH/LH, TSH e, por
final, ACTH;
- Ao iniciar a reposição hormonal em pacientes com pan-
hipopituitarismo, sempre se deve iniciar com a reposição de
glicocorticoides em 1º lugar;
- A presença de poliúria (>3L/dia, ou >50mL/Kg/dia), na ausência
de diurese osmótica ou sobrecarga de volume, sugere DI.
O diagnóstico é confirmado pelo achado de osmolaridade
plasmática elevada (>295mOsm/L) e osmolaridade urinária
inferior à do plasma (urina hipotônica);
- Em alguns pacientes, é necessário o teste de privação hídrica
para confirmar o DI. O teste permite diferenciar entre as causas
neurogênicas (centrais) e nefrogênicas de DI;
- O DI neurogênico pode ser congênito (mutação no gene AVP)
ou adquirido. O DI neurogênico adquirido ocorre em pacientes
com lesões hipotalâmicas que levam à perda da secreção de
ADH. Lesões apenas à hipófise não são capazes de produzir o
DI neurogênico;
Figura 8 - Apoplexia hipofisária à ressonância magnética - A causa mais comum de hiperprolactinemia é fisiológica
(gravidez, lactação, estresse, sono, exercício, estimulação
Deve-se, na ocasião da suspeita diagnóstica, fazer a co- mamária etc.);
leta dos hormônios adeno-hipofisários, com o objetivo de - Dentre as causas não fisiológicas de hiperprolactinemia, a
documentar déficits ou hipersecreções hormonais. É válido mais comum é o uso de drogas ou medicamentos, e a 2ª causa
lembrar que os tumores secretantes podem evoluir para mais frequente é o adenoma hipofisário secretor de prolactina
cura após o evento apoplético. (prolactinoma);
- Níveis de prolactina acima de 150ng/mL são extremamente
B - Tratamento sugestivos de prolactinoma. Níveis de prolactina <100ng/
O tratamento depende, principalmente, do nível de cons- mL, por outro lado, sugerem causas secundárias de
ciência e do grau de comprometimento visual, pois em geral hiperprolactinemia;

153
ENDOC RI N O LOG I A

- Na investigação da hiperprolactinemia, deve-se pesquisar o uso


de medicamentos/drogas, afastar gestação e lactação e excluir
hipotireoidismo primário. Se nenhuma dessas condições
for encontrada, estará indicada a ressonância magnética de
hipófise;
- O tratamento de 1ª escolha do prolactinoma (mesmo nos
tumores volumosos) é clínico, com agonistas dopaminérgicos.
A cabergolina é mais eficaz e mais bem tolerada que a
bromocriptina, mas é mais cara. A bromocriptina é a droga
preferível para uso na gestação;
- Na acromegalia, ocorre aumento crônico e insidioso das
extremidades (mãos, pés), partes moles (macroglossia, síndrome
do túnel do carpo) e vísceras (cardiomegalia, hepatomegalia). A
mortalidade é aumentada por doença cardiovascular;
- Na suspeita de acromegalia, devem-se colher IGF-1 e GH basais.
IGF-1 elevado (comparado à média de pessoas do mesmo sexo
e idade) e GH casual >0,4ng/mL são sugestivos. IGF-1 normal
praticamente exclui o diagnóstico;
- A confirmação de acromegalia deve ser feita com o teste de
supressão do GH, usando 75g de glicose por VO, considerando-
se positivo se não houver supressão do GH para valores <1ng/
mL;
- A maioria dos tumores hipofisários que causam acromegalia
são macroadenomas;
- A 1ª opção de tratamento na acromegalia geralmente é
cirúrgica;
- Nos casos refratários à cirurgia, podem-se usar análogos da
somatostatina: octreotide ou lanreotida, com boa eficácia
na normalização do IGF-1 (60 a 80%) e na redução tumoral
(30 a 40%). Cabergolina em altas doses também pode ser
útil, especialmente nos pacientes com hiperprolactinemia
associada;
- O pegvisomanto é um antagonista do receptor de GH, capaz
de normalizar IGF-1 em >90% dos pacientes. É utilizado nos
casos de acromegalia resistentes à cirurgia e aos análogos da
somatostatina;
- A apoplexia hipofisária se manifesta como quadro súbito de
cefaleia, alterações visuais, podendo ocorrer hipotensão,
hipoglicemia e coma. Além disso, deve-se a quadro
hemorrágico agudo e pode acometer hipófises normais ou,
mais comumente, afetadas por um adenoma.

154
CAPÍTULO

13 Doenças das suprarrenais


Leandro Arthur Diehl / Rodrigo Antônio Brandão Neto

(que estimula a secreção de aldosterona) (Figura 2). Além


1. Introdução disso, a secreção de catecolaminas (adrenalina e noradre-
As suprarrenais são glândulas localizadas no retroperi- nalina) pela medula adrenal é regulada em grande parte
tônio, responsáveis pela síntese de substâncias essenciais pelo sistema nervoso autônomo.
para a vida humana (catecolaminas, androgênios, esteroi-
des, mineralocorticoides, entre outras), dentre as quais
se destaca o cortisol, indispensável para a manutenção da
vida.
Tabela 1 - Divisões estruturais das suprarrenais e seus respectivos
produtos de secreção
Camada Secreção Exemplo
Córtex - -
Camada
Glicocorticoides Cortisol
fasciculada
Camada
Mineralocorticoides Aldosterona
glomerulosa
Androstenediona,
Camada reticular Androgênios
DHEA Figura 2 - Eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal
Medula Catecolaminas Adrenalina

2. Insuficiência adrenal
A insuficiência adrenal é um distúrbio caracterizado por
redução ou perda da função do córtex adrenal, causando
deficiência de glicocorticoides, associada ou não à deficiên-
cia da secreção de mineralocorticoides e androgênios.
As causas de insuficiência adrenocortical podem ser
classificadas conforme a Tabela 2:

Tabela 2 - Classificação das causas de insuficiência adrenal


Nomenclatura Etiologia
Insuficiência adrenal pri- Doenças que afetam o córtex adrenal
mária (bilateral)
Insuficiência adrenal se- Doenças da hipófise (deficiência de
cundária ACTH)
Figura 1 - Anatomia das glândulas adrenais Insuficiência adrenal ter- Doenças do hipotálamo (deficiência
ciária de CRH)
A regulação da função do córtex das adrenais se dá pelo
ACTH, secretado pela hipófise (que estimula a secreção de A insuficiência adrenal apresenta, muitas vezes, quadro
cortisol e androgênios) e pelo sistema renina-angiotensina inespecífico, gerando atraso no reconhecimento diagnósti-

155
ENDOC RI N O LOG I A

co. Em alguns casos, sua manifestação inicial é sob a forma Historicamente, a adrenalite tuberculosa era consi-
de crise suprarrenal, com risco de vida iminente para o pa- derada a causa principal de insuficiência adrenal (nos
ciente. casos de tuberculose disseminada, a prevalência apro-
A insuficiência adrenal primária é também conhecida ximada de hipoadrenalismo é de 5%). Estatísticas mais
como doença de Addison. A forma primária é a de maior recentes, produzidas em países desenvolvidos, relatam
prevalência, segundo estudo da National Adrenal Disease que, hoje, mais de 80% dos casos são de adrenalite au-
Foundation. A descrição clássica da doença foi feita por toimune. Entretanto, em países pobres, a etiologia tu-
Thomas Addison, em 1855. É um distúrbio relativamente berculosa continua a ser a causa mais comum. Dois estu-
raro; acredita-se que a incidência da doença em países de dos realizados em São Paulo observaram frequências de
1º mundo seja de 0,8 casos a cada 100.000 pessoas/ano, insuficiência adrenal de 6,8 e 15,8% entre portadores de
com prevalência de 4 a 11 casos a cada 100.000 pessoas. O tuberculose.
número de pacientes que morrem com a doença sem ter o A Tabela 3 cita as principais etiologias da insuficiência
diagnóstico confirmado não é conhecido. adrenal e suas características essenciais.
Tabela 3 - Etiologia da insuficiência adrenal
Causas primárias
Etiologia Comentários
Adrenalite autoimune:
- Isolada; Causa mais comum de insuficiência adrenal primária (corresponde a 45 a 94% dos casos, na
- SPA tipo I; Europa).
- SPA tipo II.
2ª maior causa de insuficiência adrenal primária no Brasil (de 17 a 20% dos casos); ainda é a
Tuberculose
principal etiologia em países subdesenvolvidos.
3ª maior causa de insuficiência adrenal primária na América do Sul; em algumas regiões do
Paracoccidioidomicose
Brasil (por exemplo, interior de SP), é a 2ª causa mais comum.
Histoplasmose Frequente nos Estados Unidos.
Outros fungos Blastomicose, coccidioidomicose, criptococose.
AIDS:
Tuberculose, CMV, micobacteriose atípica, micoses.
Infecções oportunistas
Drogas Rifampicina, cetoconazol.
Metástases Linfoma não Hodgkin, sarcoma de Kaposi.
Metástases Pulmão, mama, linfoma, melanoma, rins, cólon.
Infiltrativas Hemocromatose, sarcoidose, amiloidose.
Hemorragia:
Síndrome de Waterhouse-Friderichsen.
Meningococcemia
Distúrbios da coagulação Uso de anticoagulantes; anticorpos antifosfolípides.
Doenças genéticas:
- Adrenoleucodistrofia;
- Hiperplasia adrenal congênita; A adrenoleucodistrofia, a 3ª causa mais comum em homens, deve-se ao acúmulo de ácidos
- Hipoplasia adrenal congênita; graxos de cadeia muito longa no cérebro, adrenais, testículos e fígado, com desmielinização
- Síndrome de Kearns-Sayre; do SNC na infância e insuficiência adrenal. A herança é recessiva ligada ao X (gene ALD –
- Síndrome de Allgrove; cromossomo Xq28).
- Resistência ao ACTH (deficiência de
glicocorticoide familiar tipos 1 e 2).
Causas secundárias
Etiologia Comentários
Causas adquiridas:
- Corticoterapia prolongada;
- Neoplasias da região selar; O uso de glicocorticoides em altas doses e/ou por tempo prolongado acaba levando a
- Cirurgia ou radioterapia; uma deficiência de ACTH (e CRH) devido ao intenso feedback negativo sobre a hipófise e o
- Trauma cranioencefálico; hipotálamo. A suspensão abrupta da corticoterapia nesses pacientes pode desencadear uma
- Síndrome de Sheehan; crise adrenal, com sério risco de vida se não for prontamente instituído tratamento adequado.
- Infecções (tuberculose, por exemplo);
- Doenças infiltrativas.

156
DOENÇAS DAS SUPRARRENAIS

Causas secundárias
Etiologia Comentários
Causas congênitas:
A deficiência de fatores de transcrição envolvidos no desenvolvimento embrionário da hipófise
- Deficiência isolada de ACTH;
(PIT-1, PROP-1, HESX, por exemplo) pode causar hipopituitarismo.
- Pan-hipopituitarismo.
SPA = Síndrome Poliglandular Autoimune.

ENDOCRINOLOGIA
As principais causas de insuficiência adrenal serão co- tipo 1 na SPA-II) ou contra a tireoide (anti-TPO ou anti-Tg, as-
mentadas a seguir. sociados à tireoidite crônica na SPA-II), dentre outros.
Cerca de 40 a 50% dos casos de insuficiência adrenal au-
A - Insuficiência adrenal primária toimune são isolados, enquanto os restantes 50 a 60% dos
casos se associam a outras doenças endócrinas autoimunes.
a) Adrenalite autoimune A associação de adrenalite autoimune a hipoparatireoidismo
Esta é uma condição resultante de destruição autoimune e candidíase mucocutânea na infância é conhecida como
das glândulas adrenais. As adrenais, neste caso, têm aparên- Síndrome Poliglandular Autoimune do tipo 1 (SPA-I). A asso-
cia atrófica, com perda da maior parte das células corticais, ciação, por sua vez, de adrenalite autoimune e hipotireoidis-
mas com a camada medular mantida intacta na maioria dos mo autoimune e/ou tireoidite crônica autoimune constitui a
casos. Em 70 a 100% dos casos, autoanticorpos contra o cór- síndrome poliglandular autoimune do tipo 2 (SPA-II), também
tex adrenal (ACA) ou contra enzimas esteroidogênicas (prin- conhecida como síndrome de Schmidt. Alguns autores, ain-
cipalmente, o anti-21-hidroxilase) são encontrados. da, sugerem a existência de uma síndrome poliglandular tipo
Também o anticorpo anti-17-hidroxilase e o anticorpo an- 3 (SPA-III), caracterizada pela associação de tireoidite crônica
ti-P450scc são descritos, bem como, eventualmente, autoan- autoimune com diabetes mellitus tipo 1 (e, eventualmente,
ticorpos contra outras células produtoras de esteroides (em com anemia perniciosa, vitiligo ou alopecia), na ausência de
60 a 80% dos casos de SPA-I, associados a hipogonadismo insuficiência adrenal (síndrome de Carpenter).
hipergonadotrófico), contra antígenos da ilhota pancreática A Tabela 4 sintetiza as principais características dessas
(ICA, anti-GAD ou anti-IA2, associados ao diabetes mellitus síndromes.

Tabela 4 - Características das síndromes poliglandulares autoimunes I e II


SPA-I SPA-II
- Insuficiência adrenal primária (100%);
- Distrofia ectodérmica;
- Tireoidite autoimune (de 70 a 80%) e/ou diabetes
- Candidíase mucocutânea (de 70 a 100%);
Componentes mellitus tipo 1 (de 30 a 50%);
- Hipoparatireoidismo (de 80 a 90%);
- Outras: ooforite, vitiligo, anemia perniciosa, hipofisite,
- Insuficiência adrenal primária (de 60 a 100%).
alopecia, doença celíaca.
Idade de início - Infância (<10 anos). - De 20 a 40 anos.
População mais atingida - Finlandeses, italianos, judeus, iranianos. -
- Anticórtex adrenal (de 80 a 100%); - Anticórtex adrenal (de 80 a 100%);
Autoanticorpos
- Anti-21-hidroxilase. - Anti-21-hidroxilase (de 80 a 90%).
Herança - Autossômica recessiva. - Autossômica dominante.
Genes - AIRE (autoimune regulator) – cromossomo
- HLA – DR3/DQ2, DR4/DQ8 CTLA4.
envolvidos 21q22.3.
- APECED;
Outras denominações - Síndrome de Schmidt.
- Síndrome de Whitaker.

b) Causas infecciosas Inicialmente, as suprarrenais apresentam-se aumentadas


Os principais agentes são a tuberculose, infecções fún- com granulomas extensos e caseificação, sendo o córtex e
gicas (paracoccidioidomicose no Brasil, histoplasmose nos a medula afetados (Figura 3). Durante a evolução, a fibro-
EUA, criptococose, coccidioidomicose, entre outras) e infec- se aparece, com diminuição do tamanho das suprarrenais,
ção por citomegalovírus (CMV). ficando estas normais ou diminuídas, com calcificações
A doença de Addison causada por tuberculose ocorre em cerca de 50% dos casos (Figura 4). Raras vezes, o tra-
devido à disseminação hematogênica da infecção. Nesses tamento da tuberculose leva à melhora da insuficiência
casos, a doença extra-adrenal costuma estar evidente. suprarrenal.

157
ENDOC RI N O LOG I A

em que o diagnóstico foi realizado por exames de imagem,


demonstraram sobrevida de 85%.
d) Medicações
Drogas que alteram a síntese de cortisol (etomidato,
mitotano, aminoglutetimida, cetoconazol, metirapona) ou
aceleram o clearance hepático de cortisol (rifampicina, fe-
nitoína, barbituratos) podem levar à insuficiência adrenal,
principalmente em pacientes com reserva hipofisária ou
suprarrenal limitada.
e) Adrenoleucodistrofia
Esta é uma doença hereditária, ligada ao cromossomo X
e, portanto, normalmente afeta meninos, a partir dos 5 a 12
anos. Em 15% dos casos, a 1ª manifestação é a insuficiência
adrenal. Há o defeito na beta-oxidação de ácidos graxos in-
Figura 3 - Tuberculose adrenal (inicial); notar o aumento de tama- solúveis de cadeia longa, os quais acabam se depositando
nho das adrenais (setas) com liquefação central à TC nos tecidos, resultando em insuficiência adrenal e doença
neurológica desmielinizante progressiva e fatal.
O óleo de Lorenzo, uma mistura de 2 tipos de glicerol,
tem benefício limitado, assim como a lovastatina e o fenofi-
brato. O transplante de medula óssea é o único tratamento
comprovadamente útil, desde que seja realizado nos está-
gios iniciais da doença.
f) Metástases tumorais
Metástases suprarrenais são achados de necropsia, na
maioria dos casos. Embora o acometimento das adrenais
por metástases não seja raro, a insuficiência adrenal re-
sultante de metástases é incomum, pois são necessários o
acometimento bilateral e a destruição de, aproximadamen-
te, 90% do parênquima suprarrenal, para que os pacientes
desenvolvam sintomas de hipoadrenalismo. Os principais
Figura 4 - Tuberculose adrenal (tardia); notar a diminuição de ta- carcinomas associados à insuficiência adrenal são os de
manho das adrenais (setas) e a presença de calcificações à TC pulmão, mama, linfoma e sarcoma.
A insuficiência adrenal pode ocorrer associada à síndro- g) Hipoplasia suprarrenal congênita
me da imunodeficiência adquirida (AIDS). É duvidoso que Trata-se de uma condição familiar rara (ocorre em
a infecção pelo HIV apresente papel direto como causa de 1:12.500 nascimentos), em que é interrompido o desenvol-
doença de Addison, mas infecções oportunistas, infiltra- vimento embrionário do córtex adrenal. A forma ligada ao X
ção das suprarrenais pelo sarcoma de Kaposi, hemorragias é associada a mutações do DAX-1 e ao hipogonadismo hipo-
intra-adrenais e o uso de certas medicações (cetoconazol, gonadotrófico. Mutações no fator esteroidogênico 1 (SF-1)
rifampicina) podem levar ao aparecimento da doença. também resultam em insuficiência adrenal, por hipoplasia
c) Infarto adrenal da glândula.
A hemorragia intra-adrenal bilateral causada por he- h) Deficiência familiar de glicocorticoide
morragia ou trombose da veia suprarrenal pode ser causa Causa rara de hipoadrenalismo, apresenta caráter au-
de insuficiência adrenal, e associa-se, principalmente, à tossômico recessivo. A principal característica é a falta de
meningococcemia (síndrome de Waterhouse-Friderichsen), resposta adrenal ao ACTH, levando à deficiência de glico-
CIVD (coagulação intravascular disseminada) e síndrome corticoides, apesar do desenvolvimento anatômico normal
dos anticorpos antifosfolípides. Infecções por Pseudomonas das glândulas. O eixo renina-angiotensina-aldosterona per-
aeruginosa também estão associadas à hemorragia. manece inalterado ou com alterações discretas, com o pa-
Os achados são inespecíficos, e podem ocorrer dor ciente mantendo a secreção normal de mineralocorticoide
abdominal, febre, sinais de hemorragia e hipotensão. Os em resposta ao estímulo postural e à depleção de volume.
exames de imagem, como a tomografia computadorizada, A variante chamada “triplo A”, ou síndrome de Allgrove, é
mostram hemorragia intraglandular. Estudos mais recentes, caracterizada por insuficiência adrenal, acalásia e alacrimia.

158
DOENÇAS DAS SUPRARRENAIS

B - Causas secundárias e terciárias isso, muitas vezes o diagnóstico de insuficiência adrenal é


realizado meses a anos após o início dos sintomas.
Estas podem ser causadas por qualquer processo que
envolva o hipotálamo ou a hipófise e altere o eixo hipo- a) Insuficiência adrenal primária crônica
talâmico-hipofisário-adrenal. Os pacientes apresentam A deficiência de cortisol leva a sintomas constitucionais,
deficiência de glicocorticoides e, eventualmente, de andro- como fadiga, fraqueza, anorexia e letargia, que ocorrem in-
gênios, mas não de mineralocorticoides (os quais são regu- sidiosamente e podem passar despercebidos, devido à sua
lados pela renina, não pelo ACTH). A apresentação, nesses

ENDOCRINOLOGIA
natureza inespecífica. A sensação de fraqueza é relatada
casos, costuma ser menos dramática, com menos hipoten- de forma vaga e tende a ser mais acentuada nos membros
são e distúrbios hidroeletrolíticos. inferiores. A anorexia é um sintoma precoce e precede o
A causa mais comum é a parada abrupta do uso de cor- aparecimento de manifestações do trato gastrintestinal,
ticosteroides. O uso dessas medicações, mesmo em doses como náuseas, vômitos, diarreia e, embora com menor fre-
relativamente baixas, pode manter o eixo hipotalâmico-hi- quência, dor abdominal, costumeiramente nas regiões dos
pofisário-adrenal suprimido por vários meses. Os pacientes flancos. Os pacientes podem apresentar, ainda, febre baixa
com processos destrutivos de hipófise anterior e hipotála-
e perda de peso como parte das manifestações.
mo podem apresentar múltiplas deficiências hormonais, e,
A presença de hiperpigmentação se deve ao aumento
dependendo do processo patológico, pode ocorrer associa-
secundário de ACTH, que apresenta afinidade pelo receptor
ção a diabetes insipidus.
MC1 dos melanócitos. Esse é o melhor sinal clínico para a di-
C - Fisiopatologia da insuficiência adrenal ferenciação de insuficiência adrenal primária e secundária,
pois a hiperpigmentação só está presente nos casos primá-
É necessária a perda de cerca de 90% do córtex adrenal rios. Manifesta-se, principalmente, em superfícies expostas
para que as manifestações clínicas de insuficiência adrenal se ao sol (face, pescoço, braços), em cicatrizes recentes e em
manifestem completamente. O quadro clínico será influen- áreas de pressão (dedos, joelhos e tornozelos), membranas
ciado pela velocidade do acometimento das adrenais; na mucosas, em particular, mucosas oral e genital (Figura 5). Se
maioria das vezes, esse acometimento é gradual, levando a a insuficiência adrenal for de etiologia autoimune, poderá
sintomas de insuficiência crônica. Porém, pode ocorrer des- ocorrer vitiligo concomitante.
truição abrupta das glândulas, ocasionando apresentações
agudas e severas (“crises adrenais”). Aproximadamente, 25%
dos diagnósticos de insuficiência adrenal ocorrem em pa-
cientes em crise adrenal ou na iminência desta.
Com a destruição gradual do córtex suprarrenal, os pa-
cientes apresentam uma fase inicial (pré-clínica) em que se
observa apenas diminuição da reserva de glicocorticoides.
Nessa fase, os pacientes apresentam secreção de glicocor-
ticoides ainda dentro do normal em condições basais, mas,
quando são submetidos a situações de estresse, como cirur-
gia ou trauma, as adrenais podem não conseguir aumentar
adequadamente à síntese de cortisol, levando ao surgimen-
to das manifestações clínicas da insuficiência adrenal. Com
a evolução do dano às adrenais, mesmo a secreção basal
dos glicocorticoides e mineralocorticoides acabam se tor-
nando deficientes, e o quadro clínico aparece mesmo fora
de situações de estresse. Na insuficiência adrenal primária,
acontece uma marcante elevação dos níveis de ACTH, de-
vido à falta de feedback negativo do cortisol sobre o eixo
hipotalâmico-hipofisário-adrenal.

D - Diagnóstico clínico
O quadro clínico depende da extensão da destruição
das suprarrenais, do tempo de instalação da insuficiência
(se aguda ou insidiosa) e do tipo de esteroides que estão Figura 5 - Exemplos da hiperpigmentação de pele e mucosas, ca-
deficientes (se apenas os glicocorticoides, ou também os racterística da insuficiência adrenal primária
androgênios e mineralocorticoides). As manifestações são
inespecíficas, como fraqueza, fadiga, anorexia, náuseas, vô- A hipotensão manifesta-se em cerca de 90% dos pa-
mitos, entre outras, o que torna o diagnóstico difícil. Por cientes, ocorrendo principalmente (ou exclusivamente) na

159
ENDOC RI N O LOG I A

posição ortostática, podendo ser acompanhada por lipoti- Achados laboratoriais Frequência (%)
mia ou síncope. Também sugere uma causa primária para Alterações hidroeletrolíticas 92%
a insuficiência adrenal, pois se relaciona com a deficiência
Hiponatremia 88%
de mineralocorticoides, cuja síntese não é diminuída em
pacientes com insuficiência adrenal secundária ou terciária. Hipercalemia 64%
Outro sintoma específico é a avidez por sal, que ocorre em Hipercalcemia 6%
até 20% dos casos. Azotemia 55%
A deficiência de produção de andrógenos pelas adrenais Anemia 40%
pode levar à diminuição de pelos pubianos e axilares, um Eosinofilia 17%
achado mais aparente no sexo feminino (já que, no sexo
masculino, essa pilificação é mantida pelos androgênios de b) Insuficiência adrenal primária aguda (crise adrenal)
origem testicular). Sintomas psiquiátricos, como depressão Constitui uma emergência médica e pode ser a 1ª mani-
e alteração de memória, são possíveis em casos de longa festação de uma insuficiência adrenal aguda, ou ser preci-
data, fazendo parte das causas de transtornos mentais or- pitada por algum agente estressor (cirurgia, infecção, trau-
gânicos. ma) em pacientes com insuficiência adrenal crônica. A crise
Hiponatremia e hipercalemia são achados laboratoriais adrenal é característica da insuficiência adrenal primária,
clássicos da insuficiência adrenal. A 1ª ocorre em cerca de rara em portadores de insuficiência adrenal secundária ou
90% dos casos e é possível pela deficiência do setor mine- terciária.
ralocorticoide, mas também pela deficiência de glicocor- A principal manifestação clínica é a hipotensão, que
ticoide (redução do clearance de água livre, aumento da pode ser grave e refratária. O principal determinante da
vasopressina), e tende a ser mais acentuada nos casos de crise adrenal é a deficiência de mineralocorticoides, mas a
insuficiência secundária. A 2ª acontece em cerca de 2/3 dos deficiência de glicocorticoides também contribui, diminuin-
pacientes e se associa à deficiência de mineralocorticoides, do a resposta vascular à angiotensina 2 e o seu efeito na
observada quase exclusivamente na insuficiência adrenal musculatura lisa de vasos, reduzindo a síntese do substrato
primária. da renina, a sensibilidade às catecolaminas e a ação sinérgi-
A deficiência de glicocorticoides acarreta anormalida- ca dos glicocorticoides com os peptídios vasoativos. Mesmo
des hematológicas: leucopenia com linfocitose relativa, eo- pacientes em uso de glicocorticoides podem apresentar cri-
sinofilia e anemia normocrômica normocítica. Podem ser se adrenal, se a reposição de mineralocorticoides não está
observadas alterações reversíveis de transaminases hepáti- sendo realizada adequadamente.
cas. Também é comum hipoglicemia em jejum. A maioria dos pacientes apresenta fatores precipitantes,
Tabela 5 - Achados clínicos e laboratoriais na insuficiência adrenal
que aumentam agudamente a necessidade de corticoste-
crônica primária roides, como:
Sintomas Frequência (%)
- Trauma;
- Cirurgia;
Fraqueza, fadiga, cansaço 100%
- Infecções;
Anorexia 100% - Desidratação por diarreia ou vômitos;
Sintomas do trato gastrintestinal 92% - Interrupção abrupta do uso de glicocorticoides;
Náuseas 86% - Hemorragias;
Vômitos 75% - Queimaduras.
Constipação 33%
Outras manifestações clínicas incluem taquicardia, verti-
Dor abdominal 31% gens, náuseas e vômitos, com rápida evolução para choque
Diarreia 16% hipovolêmico (muitas vezes, refratário à reposição de volume
Avidez por sal 16% e, até mesmo, às drogas vasopressoras). Dor abdominal pode
ser uma queixa predominante. Febre baixa pode ocorrer,
Sensação de tontura postural 12%
mas, quando há infecção associada, há possibilidade de tem-
Dores musculares ou articulares 6 a 13% peraturas maiores. A hiperpigmentação sugere o diagnósti-
Sinais Frequência (%) co, indicando insuficiência adrenal de longa data. E o achado
Perda de peso 100% laboratorial de hiponatremia e hipercalemia (ou de eosino-
filia e hipoglicemia em pacientes criticamente enfermos) é,
Hiperpigmentação 94%
costumeiramente, uma das principais pistas diagnósticas.
Hipotensão (PAS <110mmHg) 88 a 94%
c) Insuficiência adrenal secundária e terciária
Vitiligo 10 a 20%
Apresentam quadro semelhante ao dos pacientes com
Calcificação auricular 5% insuficiência suprarrenal crônica, mas não apresentam de-

160
DOENÇAS DAS SUPRARRENAIS

pleção de volume, hipercalemia ou hiperpigmentação, e hi- (sistêmicos ou tópicos), pois o seu uso crônico vai levar à
potensão pode estar presente, mas não tão severa (já que redução dos níveis de cortisol plasmáticos, dificultando a
a secreção de mineralocorticoides é preservada). O ACTH interpretação dos testes.
está diminuído, e não como nas formas primárias, que é O teste mais utilizado é o de estímulo com ACTH, que
aumentado. consiste na administração de ACTH sintético (Cortrosina®),
A hiponatremia pode ocorrer por secreção inapropriada 250mcg IV ou IM, com coletas de sangue aos zero, 30 e 60
de ADH. A causa mais comum desses distúrbios é a parada minutos para dosagem de cortisol (ou, alternativamente,

ENDOCRINOLOGIA
abrupta do uso de glicocorticoide exógeno, em pacientes apenas aos 60 minutos). Valores acima de 20mcg/dL ex-
que vinham fazendo uso crônico desse tipo de medicação. cluem insuficiência suprarrenal, enquanto valores abaixo
Em pacientes com doença hipotalâmico-hipofisária, podem disso confirmam o diagnóstico. Esse teste pode ser feito a
ocorrer deficiências de outros hormônios, com suas mani- qualquer hora do dia, sem a necessidade de jejum. Uma op-
festações clínicas específicas. A hipoglicemia severa ocorre ção é o teste com ACTH em doses mais baixas (1mcg), que
principalmente em crianças, especialmente em casos de parece ser mais sensível e pode detectar casos mais leves
insuficiência adrenal secundária (pela possibilidade de defi- (apenas com redução da reserva adrenal) ou casos de insu-
ciência associada de GH). ficiência suprarrenal secundária de curta evolução. Outros
testes que podem ser utilizados são a hipoglicemia induzida
Tabela 6 - Principais diferenças entre a insuficiência adrenal pri- por insulina, o teste do glucagon, o bloqueio com metirapo-
mária e secundária
na e o estímulo com CRH (Figura 6).
Insuficiência adrenal primária
- Hipotensão e hipercalemia evidentes (por deficiência associada
de mineralocorticoides);
- Hiperpigmentação de pele e mucosas;
- ACTH elevado;
- Associação com outras endocrinopatias nas síndromes poli-
glandulares autoimunes.
Insuficiência adrenal secundária
- Ausência de hipercalemia (eixo mineralocorticoide preservado)
e de hiperpigmentação;
- Hipotensão não tão acentuada quanto na primária;
- ACTH baixo ou normal;
- Associação com outras deficiências hormonais é frequente (por
doença hipofisária ou hipotalâmica).

E - Diagnóstico laboratorial
A confirmação do diagnóstico de insuficiência adrenal
pode ser feita de 2 formas: pela dosagem de cortisol basal
ou pelo teste de estímulo.
A dosagem de cortisol basal, entre as 8 e as 9h da ma- Figura 6 - Investigação de insuficiência adrenal
nhã (quando ocorre o pico de cortisol sérico, determinado
pelo ciclo circadiano), pode levar ao diagnóstico de insufi- A dosagem de ACTH é sugerida por alguns autores.
ciência adrenal quando os valores resultam muito baixos, Valores inapropriadamente baixos de cortisol, acompanha-
menores que 4mcg/dL (confirmando o hipoadrenalismo). dos de valores aumentados de ACTH, são sugestivos de in-
Níveis de cortisol basal acima de 16mcg/dL, por outro lado, suficiência suprarrenal primária. Caso os valores de ACTH
excluem a insuficiência adrenal. Tais valores de corte variam estejam também diminuídos (<100pg/mL), sugere-se o diag-
na literatura, havendo autores que sugerem valores de cor- nóstico de insuficiência suprarrenal secundária ou terciária.
tisol basal <3 ou <5mcg/dL, para confirmação de insufici- Quanto aos pacientes graves (crise adrenal), não é pos-
ência adrenal, e valores >18 ou >20mcg/dL, para exclusão. sível esperar pela realização de um teste dinâmico. Nessa si-
Valores abaixo de 10 a 12mg/dL são bastante sugestivos de tuação, recomenda-se iniciar, imediatamente, o tratamento
hipoadrenalismo, mas, geralmente, exigem confirmação da provável insuficiência adrenal com dexametasona (um
diagnóstica. Em todos os outros casos, ou seja, quando os glicocorticoide sintético que não interfere nas dosagens de
valores de cortisol basal resultam intermediários (entre 4 e cortisol sérico) e realizar um teste dinâmico no dia seguinte;
16mcg/dL), é necessário o uso de testes dinâmicos para de- ou, então, colher uma amostra de plasma imediatamente
finição diagnóstica. Um cuidado a ser tomado antes da cole- antes do início da administração de glicocorticoides e arma-
ta dos exames é a pesquisa do uso de corticoides exógenos zená-la para posterior dosagem do cortisol.

161
ENDOC RI N O LOG I A

Alguns estudos com pacientes críticos, internados em rupção da infusão salina, provavelmente será necessária a
unidades de terapia intensiva, tentaram avaliar qual o me- reposição de mineralocorticoides em doses usuais para in-
lhor valor de corte do cortisol plasmático para identificar os suficiência adrenal crônica.
pacientes que teriam benefício com a reposição de glicocor- Alguns autores recomendam repor fludrocortisona a
ticoides (deficiência de reserva adrenal). Um dos estudos pacientes hipotensos, já no início do tratamento, mas esse
(Cooper & Stewart, 2003) definiu os parâmetros apresen- medicamento pode levar vários dias para começar a fazer
tados na Figura 7, usando a dosagem de cortisol plasmático efeito; além disso, a hidrocortisona nas doses anteriores já
colhido ao acaso (em qualquer momento do dia): consegue prover uma boa ação mineralocorticoide, razão
pela qual a fludrocortisona geralmente é dispensável no
tratamento da crise adrenal.
Deve-se salientar a necessidade de pesquisar e tratar
fatores precipitantes da crise adrenal, como infecções, de-
sidratação, eventos cardiovasculares e outros estressores.
b) Tratamento crônico (manutenção)
O objetivo da reposição é mimetizar a secreção de corti-
sol normal, e a reposição de glicocorticoides e mineralocor-
ticoides deve suprimir a secreção excessiva de CRH, ACTH e
renina. Hoje, a dose recomendada pela literatura é de 15 a
25mg de acetato de cortisona, dividida em 2/3 no período
matutino e 1/3 ao final da tarde. Muitos pacientes, entre-
tanto, sentem-se melhor com esquema de 3 tomadas ao dia
(metade pela manhã e o restante dividido em 1 dose à tarde
e outra à noite). Nos Estados Unidos, a droga de escolha é
a hidrocortisona oral (de 12 a 15mg/m2/dia). Outras opções
são a prednisona (de 5 a 7,5mg/dia, em 1 ou 2 doses) ou
dexametasona (0,25 a 0,75mg/dia, dose única diária). Esta
Figura 7 - Investigação de insuficiência adrenal em pacientes críti- mostrou associação a níveis de osteocalcina aumentados
cos (Cooper & Stewart, 2003) em relação à reposição com hidrocortisona. A prednisona
e a dexametasona, além disso, são esteroides sintéticos
Os anticorpos antiadrenais podem ajudar a estabelecer sem ação mineralocorticoide, enquanto a hidrocortisona e
a etiologia. O anticorpo anticórtex adrenal (ACA) está ele- a cortisona são mais semelhantes ao cortisol natural e apre-
vado em 60 a 100% dos casos de adrenalite autoimune (es- sentam ação glicocorticoide + mineralocorticoide.
pecialmente, nos primeiros anos, com queda subsequente A reposição de mineralocorticoide é, usualmente, ne-
dos títulos), enquanto o anti-21-hidroxilase parece ser mais cessária nos casos de insuficiência adrenal primária e pode
sensível e específico (positivo em cerca de 90% dos casos). ser realizada com a fludrocortisona (o nome comercial é
Florinef), em doses de 0,05 a 0,2mg/dia. Mulheres jovens
F - Tratamento podem beneficiar-se, também, da reposição do androgê-
nio dehidroepiandrosterona (DHEA), na dose de 50mg/dia,
a) Tratamento emergencial (crise adrenal) associada à glicocorticoide e mineralocorticoide. O DHEA
A crise adrenal representa uma emergência clínica, com melhora a libido, a função sexual, o bem-estar e preserva a
necessidade de tratamento imediato. Caso não haja certeza pilificação axilar e pubiana nessas pacientes.
quanto ao diagnóstico, idealmente se deve colher e armaze- A dose de glicocorticoide é ajustada pela clínica (obje-
nar amostra de sangue para posterior dosagem do cortisol tivando a ausência de sintomas ou sinais de hipoadrenalis-
plasmático, antes de iniciar a reposição de glicocorticoide. mo, como anorexia, perda de peso, mialgia, hiperpigmenta-
Uma dose inicial de 100 a 300mg IV de hidrocortisona deve ção, hipoglicemia, eosinofilia), tendo-se o cuidado de evitar
ser feita, seguida da dose de manutenção de 50 a 100mg IV doses excessivas de glicocorticoides para não provocar si-
de hidrocortisona a cada 6 a 8 horas. Após 48 a 72 horas, a nais ou sintomas de hipercortisolismo. Os pacientes devem
dose de reposição de glicocorticoide será diminuída gradu- ser orientados a aumentar transitoriamente a dose de gli-
almente, a cada 1 a 3 dias, caso o fator precipitante da crise cocorticoide em 2 a 3 vezes na presença de estresse leve
tenha sido resolvido. a moderado (infecção, dor, febre). Na vigência de estresse
A reposição volêmica deve ser realizada com solução sa- importante (sepse, politrauma, cirurgias), a reposição deve
lina, sendo recomendados 1 a 2L/h de solução fisiológica a ser feita IV (hidrocortisona, 50 a 100mg, a cada 6 a 8 horas).
0,9% nas primeiras horas. A hipoglicemia frequentemente A dose de mineralocorticoide deve ser ajustada visando
está associada, portanto é necessário repor glicose confor- à eliminação dos sintomas (hipotensão postural) e à nor-
me o resultado de exames laboratoriais. Quando da inter- malização dos níveis plasmáticos de sódio e potássio, evi-

162
DOENÇAS DAS SUPRARRENAIS

tando-se doses excessivas que podem causar hipocalemia e ACTH-independentes (20%)


hipertensão arterial. - Hiperplasia macronodular;
O portador de insuficiência adrenal, ainda, deve ser
- Doença nodular pigmentada primária – isolada ou associada
orientado a sempre portar uma pulseira ou cartão conten- ao complexo de Carney;
do a informação de que ele possui essa condição, e cuida-
- Expressão de receptores aberrantes adrenais: peptídio inibitó-
dosamente conscientizado da importância do tratamento rio gástrico, LH, catecolaminas.
contínuo.

ENDOCRINOLOGIA
Entre as causas endógenas, 80% são ACTH-dependentes,
3. Síndrome de Cushing e, destas, 80% são causadas pela doença de Cushing. Em
até 90% dos casos dessa doença, os tumores são microa-
A síndrome de Cushing é o conjunto de sinais e sintomas denomas hipofisários (<10mm de diâmetro), e apenas em
causados pela exposição prolongada e excessiva a quanti- 10% dos pacientes ocorrem macroadenomas com invasão
dades elevadas de glicocorticoides, sejam estes de origem de estruturas. A prevalência da doença de Cushing é de 2 a
exógena (farmacológica) ou endógena. Quando é provoca- 8 vezes maior em mulheres do que em homens, e a maior
da por um adenoma hipofisário secretor de ACTH, a síndro- parte dos casos ocorre na 3ª a 5ª décadas de vida, embo-
me passa a ser chamada de doença de Cushing. ra possa ocorrer em crianças e até em pacientes idosos. A
incidência da doença de Cushing varia de 0,6 a 6 casos por
A - Etiologia milhão/ano.
A causa mais prevalente dessa síndrome é a corticote- Outras causas de síndrome de Cushing ACTH-dependente
rapia exógena, ou seja, o uso de glicocorticoides em apre- são a síndrome do ACTH ectópico (de 10 a 15%) e a raríssi-
sentações farmacológicas por tempo prolongado e em do- ma síndrome do CRH ectópico. Dentre as etiologias da se-
ses suprafisiológicas. Os corticoides são anti-inflamatórios creção ectópica de ACTH, as mais comuns são o carcinoma
e imunossupressores potentes, com indicações de uso nas de pequenas células do pulmão (de 20 a 30%), o carcinoide
mais diversas patologias. É importante lembrar que não brônquico (de 20 a 45%) e os carcinoides de pâncreas (10%)
só as preparações para uso sistêmico (oral, injetável), mas e timo (10%).
também as preparações para uso tópico (colírios, soluções As causas ACTH-independentes são as mais comuns em
nasais, aerossóis, inalatórios, cremes, pomadas) podem crianças. Dentre elas, as mais prevalentes são o carcinoma
provocar manifestações clínicas de hipercortisolismo, de- adrenal e, em 2º lugar, o adenoma adrenal.
pendendo da dose e do tempo de exposição. O acetato de
megestrol é um progestágeno com efeito glicocorticoide B - Diagnóstico
moderado e foi associado a alguns casos de síndrome de
Cushing. a) Quadro clínico
As causas endógenas, por sua vez, podem ser classifi- O quadro clínico é semelhante na síndrome de
cadas em ACTH-dependentes (causadas por excesso de Cushing de origem exógena (iatrogênica) e nas causas
ACTH ou CRH, com hiperestímulo às adrenais) e ACTH- endógenas. Os principais sintomas são ganho de peso
independentes (em que 1 ou ambas as adrenais secretam excessivo, letargia, fraqueza muscular, irregularidade
excessivas quantidades de glicocorticoides de forma autô- menstrual, perda da libido, queixas depressivas, psicose
noma, ou seja, independente do estímulo do ACTH). e dor osteoarticular.
A obesidade é o sintoma mais comum e ocorre em 90%
Tabela 7 - Etiologias da síndrome de Cushing
dos casos. A distribuição de gordura típica é a central, con-
Causas exógenas centrando-se em face (“em lua cheia”), tronco e pescoço
- Uso prolongado de corticoides: (“giba de búfalo”) e poupando extremidades (Figura 8). Tal
· Sistêmicos; padrão de ganho de peso, entretanto, é relativamente ines-
· Tópicos.
pecífico e pode ser observado na obesidade simples. O acú-
- Acetato de megestrol. mulo de gordura na região supraclavicular (“saboneteiras”),
Causas endógenas entretanto, parece ser mais específico do hipercortisolis-
ACTH-dependentes (80%) mo. A deposição de gordura acontece, de preferência, no
- Doença de Cushing (80%); compartimento visceral, mas também, em menor grau, no
- Síndrome do ACTH ectópico (20%); subcutâneo. Crianças com Cushing apresentam ganho de
- Secreção ectópica de CRH. peso associado à parada do crescimento. Paradoxalmente,
pacientes com secreção ectópica de ACTH secundária a ne-
ACTH-independentes (20%)
oplasias malignas podem apresentar perda de peso e pou-
- Adenoma adrenal;
cos estigmas de Cushing, devido à rapidez de instalação e à
- Carcinoma adrenal; gravidade do hipercortisolismo.

163
ENDOC RI N O LOG I A

cesso de pelos em áreas cutâneas não dependentes de


androgênios), acne e alopecia. Estrias cutâneas violáceas
no abdome inferior, coxas, pescoço e axilas (bastante su-
gestivas de hipercortisolismo quando sua largura excede
1cm) ocorrem em cerca de 70% dos pacientes (Figura 8).
Equimoses aos mínimos traumas (refletindo a fragilidade
capilar e a atrofia cutânea por redução da produção de co-
lágeno na pele) podem estar presentes em cerca de 50%.
Acantose nigricans pode ser observada em cerca de 30%
dos pacientes. Devido à imunossupressão causada pelo ex-
cesso de glicocorticoides, pode levar ao aparecimento de
candidíase mucocutânea e outras micoses.
Hipertensão arterial está presente em 75 a 90%, de pre-
domínio diastólico, enquanto diabetes mellitus ou intole-
rância à glicose podem ser vistos em 40 a 80% (visto que o
cortisol é um hormônio contrarregulador insulínico). Uma
alteração hidroeletrolítica que é mais característica da sín-
drome de ACTH ectópico (em que ocorre em 80%), mas que
também pode ser vista nos demais pacientes com Cushing,
é a alcalose hipocalêmica.
Hipogonadismo é comum, tanto em homens quanto em
mulheres. A redução da função gonadal vem acompanhada
de baixos níveis de gonadotrofinas (LH e FSH), apontando,
portanto, para uma causa central (hipogonadismo hipo-
gonadotrófico). Decorre do hipercortisolismo e cursa com
infertilidade, amenorreia, osteoporose, redução da libido e
disfunção erétil. Muitas vezes, é reversível com a correção
do excesso de glicocorticoides.
Os casos mais graves de síndrome de Cushing costumam
Figura 8 - Paciente com manifestações cushingoides: fácies em lua ser os provocados pela secreção ectópica de ACTH, pois os
cheia, pletora facial, hirsutismo, acne, estrias violáceas pacientes tendem a apresentar-se com níveis extremamen-
te elevados de ACTH e cortisol. Em alguns casos de secreção
Fraqueza muscular ocorre em cerca de 60% dos casos e,
ectópica de ACTH de instalação abrupta, o paciente pode
em geral, acomete a musculatura proximal, principalmente
apresentar-se apenas com hipocalemia e miopatia severa,
dos membros inferiores, sendo um dos sinais mais especí-
sem os estigmas típicos da síndrome de Cushing.
ficos para o diagnóstico, causando dificuldade para levan-
tar-se da posição sentada ou para subir degraus. Também Tabela 8 - Características clínicas do hipercortisolismo
pode ocorrer atrofia muscular. - Obesidade centrípeta (90%);
Sintomas neuropsiquiátricos são comuns (mais de 50%)
- Atrofia e fraqueza muscular (60%);
e podem ser severos, variando desde apatia, letargia ou
- Estrias violáceas largas;
depressão até euforia ou psicose. Perda de memória, dis-
túrbios do sono e déficits cognitivos também podem estar - Fácies em lua cheia, com pletora facial;
presentes. - Equimoses por fragilidade capilar;
Osteopenia é comum em pacientes com síndrome de - Hiperandrogenismo (acne, hirsutismo);
Cushing e ocorre em até 80% dos casos, decorrendo dos efei- - Neuropsiquiátricos: depressão, euforia, psicose (>50%);
tos do cortisol no metabolismo ósseo (redução da expressão - Hipogonadismo (amenorreia, perda de libido);
de IGF-1, inibição direta dos osteoblastos) e também do hi- - Hipertensão arterial (70%);
pogonadismo secundário ao hipercortisolismo. Também há
- Diabetes ou intolerância à glicose (40 a 80%);
redução da absorção intestinal de cálcio e vitamina D, agra-
- Osteoporose, necrose asséptica da cabeça femoral;
vando o quadro. A hipercalciúria pode levar à nefrolitíase.
Necrose asséptica da cabeça do fêmur é um achado raro, - Alcalose hipocalêmica;
mas deve ser pesquisada nos pacientes portadores dessa sín- - Infecções oportunistas (candidíase).
drome que se apresentam com dor no quadril e osteopenia/
osteoporose, com aumento do risco de fraturas. b) Exames laboratoriais
A pletora facial acontece em 70% dos pacientes. Outras O 1º passo na investigação de uma suspeita de síndrome
manifestações cutâneas são hirsutismo, hipertricose (ex- de Cushing é determinar se o paciente está em uso de qual-

164
DOENÇAS DAS SUPRARRENAIS

quer tipo de preparação contendo corticoides. Se houver apresenta menor sensibilidade devido aos fatores interfe-
o uso prolongado dessas medicações, ficará determinado rentes citados.
o hipercortisolismo exógeno, desde que as manifestações Outro exame é o teste de supressão do cortisol com de-
clínicas sejam compatíveis. Esses pacientes vão apresentar xametasona na dose de 1mg, entre 23 e 24h, com dosagem
valores reduzidos de cortisol plasmático, devido à supres- do cortisol sérico na manhã seguinte, entre 8 e 9h. Níveis
são das adrenais pelo uso de corticoide exógeno. de cortisol inferiores a 1,8μg/dL tornam o diagnóstico de
Quando o quadro clínico é sugestivo e o paciente não síndrome de Cushing pouco provável, com sensibilidade de

ENDOCRINOLOGIA
está em uso de corticoterapia, a investigação laboratorial 98% e especificidade entre 85 e 90%. Um problema com
deve acontecer em 2 etapas distintas: esse exame é a alta proporção de falsos positivos (30%) em
pacientes com pseudo-Cushing.
- Confirmação do hipercortisolismo
Uma alternativa é o teste com baixas doses de dexameta-
Os exames que podem ser utilizados para a confirma- sona por 2 dias (0,5mg VO, de 6/6h, por 48h, com coleta do
ção do excesso de glicocorticoides estão discriminados na cortisol 6h após a última dose), o qual parece ter menor taxa
Tabela 9. de falsos positivos, permitindo a diferenciação entre os esta-
dos de hipercortisolismo verdadeiro e os de pseudo-Cushing
Tabela 9 - Exames usados para confirmar a presença de hipercor-
tisolismo endógeno
em alguns casos. Outro teste que poderia ser útil para dife-
renciação entre o Cushing e o pseudo-Cushing seria o teste
Exame Características Interpretação
combinado com baixas doses de dexametasona e CRH ovino.
Administração de 1mg A dosagem de cortisol sérico à meia-noite também é útil
Teste de de dexametasona VO às
Normal para a confirmação do hipercortisolismo, pois uma das ma-
supressão com 23h com dosagem de
<1,8mcg/dL. nifestações mais precoces de alterações do eixo hipotalâ-
dexametasona cortisol sérico às 8h do dia
seguinte. mico-hipofisário-adrenal é a perda do ritmo circadiano de
secreção do cortisol. Indivíduos normais apresentam dimi-
Dosagem da excreção
nuição da secreção de cortisol, atingindo o nadir (inferior
de cortisol livre em uma
Cortisol livre amostra de urina de 24h; Normal a 1,8μg/dL) por volta da meia-noite. Esse é um limiar com
urinário de 24h está aumentada em 95 <60mcg/24h. sensibilidade alta (100%), mas com baixa especificidade,
a 100% dos casos de uma vez que muitos pacientes com estados de pseudo-
síndrome de Cushing. -Cushing podem ter cortisol sérico à meia-noite acima de
Dosagem do cortisol 1,8μg/dL. Contudo, o achado de cortisol à meia-noite acima
à meia-noite; valores Normal de 7,5μg/dL parece diferenciar, com especificidade próxi-
elevados refletem a perda <1,8mcg/ ma a 100%, os casos de doença de Cushing dos estados de
Cortisol sérico da
do ciclo circadiano normal dL (soro), ou pseudo-Cushing. As principais limitações da dosagem do
meia-noite
do cortisol. Uma opção <0,13mcg/dL cortisol sérico à meia-noite são a necessidade de hospitali-
é dosar o cortisol salivar (saliva). zação por, pelo menos, 48h e a disponibilidade do laborató-
(dispensa internação). rio para a realização do procedimento nesse horário.
Uma boa opção, que dispensa internação, é a dosagem de
A dosagem do cortisol urinário livre nas 24 horas for-
cortisol na saliva, que apresenta boa correlação com o cortisol
nece medida integrada da secreção de cortisol durante o
plasmático. Valores de cortisol salivar da meia-noite acima de
dia e não sofre influência de situações que alterem a CBG
550ng/dL identificam os casos de síndrome de Cushing com
(Corticosteroid-Binding Globulin), como o uso de estrogê-
sensibilidade de 100% e especificidade de até 95%. Alguns
nios e a tireotoxicose. A principal limitação da aplicação
autores sugerem, inclusive, que a avaliação de cortisol salivar
desse exame é na insuficiência renal crônica (clearance de
à meia-noite teria acurácia superior a todos os outros testes
creatinina inferior a 30mL/min). Pode estar negativo em
para confirmação do hipercortisolismo, devendo ser incluída
até 15% dos pacientes com síndrome de Cushing (amostra
na avaliação de todos os pacientes com suspeita de Cushing. A
isolada). Para aumentar sua sensibilidade, portanto, reco-
principal limitação da dosagem do cortisol salivar é a indispo-
menda-se que seja repetido 3 vezes; níveis normais nas 3
nibilidade do método na maioria dos centros.
ocasiões excluem o hipercortisolismo (sensibilidade entre Cabe lembrar que a avaliação de cortisol plasmático
95 e 100%), exceto raros casos de hipercortisolismo cícli- basal pela manhã não é útil para confirmação de hipercor-
co. Valores de 3 a 4 vezes maiores do que o limite superior tisolismo, pois os valores de cortisol (não supresso pela de-
do normal (em geral, acima de 300μg/24h) são altamente xametasona) nos pacientes normais se sobrepõem aos dos
sugestivos de hipercortisolismo. Entretanto, elevações dis- pacientes com Cushing.
cretas podem ser observadas nos estados conhecidos como
pseudo-Cushing, isto é, situações em que há uma hiperati- - Definição da etiologia
vação do eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal (depressão Uma vez confirmado o hipercortisolismo pelos exames
grave, alcoolismo, transtornos ansiosos, obesidade). A do- já citados, resta definir a etiologia do quadro. O próximo
sagem de cortisol urinário total (livre + ligado a proteínas) passo é a dosagem de ACTH, que deve ser realizada em,

165
ENDOC RI N O LOG I A

pelo menos, 2 ou 3 amostras colhidas entre 8 e 9h da ma- secreção ectópica de ACTH (de 10 a 15%) podem apresentar
nhã, com intervalos de, no mínimo, 15 minutos. valores semelhantes de ACTH e cortisol nos testes bioquími-
Valores muito baixos ou indetectáveis de ACTH (<10pg/ cos, o que torna, muitas vezes, extremamente difícil a dife-
mL) indicam uma etiologia ACTH-independente; nesse caso, renciação entre essas 2 etiologias. Entretanto, tal distinção é
deve ser feita TC ou RNM de abdome para localizar um pro- obrigatória, pois é fundamental para definir a melhor estra-
vável tumor de suprarrenal. tégia terapêutica. Valores extremamente elevados de ACTH
O grande problema está nos pacientes com ACTH >10 (>300pg/mL) são bastante sugestivos de secreção ectópica.
a 20pg/mL, ou seja, apresentam uma etiologia ACTH- Vários testes podem ser utilizados para tentar diferen-
dependente. A maioria dos indivíduos nessa situação apre- ciar a fonte hipofisária (doença de Cushing) das fontes ec-
senta um adenoma hipofisário secretor de ACTH (doença tópicas do excesso de ACTH. Esses testes são apresentados
de Cushing), mas os eventuais pacientes com síndrome da na Tabela 10.

Tabela 10 - Testes utilizados para definir a causa da síndrome de Cushing ACTH-dependente (diferenciar entre a doença de Cushing e a
secreção ectópica de ACTH)

Teste Comentários
Administram-se 2mg VO, de 6/6h, por 48h; há supressão do cortisol na doença de Cushing, mas não no ACTH
ectópico. Os adenomas hipofisários secretores de ACTH (corticotropinomas), por serem derivados de corticotrofos,
possuem receptores para glicocorticoides e, assim, são suscetíveis ao feedback negativo por esses esteroides.
A administração de dose alta de dexametasona deve, portanto, provocar a redução da secreção de ACTH pelo tumor e,
por conseguinte, a redução da cortisolemia, o que não ocorreria em tumores extra-hipofisários, como os responsáveis
Supressão com pela síndrome de secreção ectópica de ACTH. Classicamente, considera-se resposta sugestiva de doença de Cushing a
altas doses de redução do cortisol sérico superior a 50% dos níveis basais. Entretanto, aproximadamente 12% dos corticotropinomas
dexametasona não apresentam supressão (falsos negativos), e cerca de 20 a 30% dos tumores carcinoides responsáveis pela
secreção ectópica de ACTH podem exibir supressão semelhante do cortisol plasmático em resposta à dexametasona
(falsos positivos), o que limita a utilização do teste. De fato, um estudo recente reavaliando sua eficácia diagnóstica
demonstrou acurácia de apenas 71%, aquém da probabilidade pré-teste para a população feminina, o que impõe
sérias dúvidas sobre a real utilidade do teste de supressão com dose alta de dexametasona na atualidade. Uma opção
é o uso do cortisol urinário livre (70% dos pacientes com doença de Cushing suprimem o cortisol urinário em >90%)
ou do cortisol salivar (considerando-se positiva uma supressão >65% do basal).
DDAVP é um agonista dos receptores de vasopressina do subtipo V2, presentes em corticotropinomas e nos
corticotrofos normais. O teste foi idealizado para identificar os corticotropinomas pelo incremento do ACTH e/ou
cortisol após estímulo, uma resposta que estaria ausente nos tumores ectópicos. A resposta sugestiva de doença de
Cushing é um incremento em relação ao basal de 20% para o cortisol sérico e 35% para o ACTH, após administração
DDAVP
IV de 10μg de DDAVP. Entretanto, aproximadamente 30% das pessoas normais e de 20 a 50% dos tumores ectópicos
apresentam elevação do cortisol no teste do DDAVP (falsos positivos), além de que 25% dos corticotropinomas não
apresentam resposta (falsos negativos), o que compromete a acurácia do teste. Um estudo recente mostrou baixíssima
acurácia diagnóstica (por volta de 50%), o que contraindicaria seu uso como ferramenta de auxílio diagnóstico.
O CRH (Corticotrophin Releasing Hormone) é o principal hormônio hipotalâmico estimulador da liberação de
ACTH pelo corticotrofo normal e também pelo tumoral. Os primeiros estudos com o teste, realizados na década
de 1990, utilizando CRH ovino (100mcg ou 1mcg/kg, IV), demonstraram que os valores de corte dos incrementos
de cortisol e ACTH indicativos de doença de Cushing eram de 20 e 50% do basal, respectivamente. Trabalhos
mais recentes, feitos com CRH humano (atualmente, a forma mais disponível) mostram que um aumento do
Estímulo com CRH
cortisol acima de 14% do basal e um aumento do ACTH acima de 10% é sugestivo de doença de Cushing, com
especificidade de 100% e sensibilidade entre 70 e 85%. Outro parâmetro é o aumento do ACTH em 35% após 15
a 30 minutos da administração de CRH. Embora ainda existam respostas falsas negativas (de 8 a 10% dos casos
de doença de Cushing) e falsas positivas (20% dos casos de secreção ectópica), o teste com CRH, atualmente, é
o melhor não invasivo para distinção entre essas 2 etiologias.
Detecta maior concentração de ACTH na drenagem venosa da hipófise, na doença de Cushing. É o padrão-ouro para
a diferenciação entre a doença de Cushing e a secreção ectópica de ACTH. Os seios petrosos inferiores direito e
esquerdo são cateterizados por meio de punção de veia periférica, e amostras de sangue são colhidas para dosagem
de ACTH, antes e depois do estímulo com CRH (ou outro secretagogo de ACTH, como o DDAVP). Os valores basais e
Cateterismo
estimulados colhidos nos seios petrosos são comparados entre si e com o valor de ACTH em uma veia periférica. Um
bilateral dos seios
gradiente centro-periferia maior que 2:1 no estado basal, ou maior que 3:1 após estímulo com CRH, sugere doença
petrosos inferiores
de Cushing, com sensibilidade variando de 90 a 97% e especificidade tendendo a 100%. Outro dado útil é o gradiente
para determinação
de lateralização – se o ACTH for >40% maior em um lado da drenagem venosa da hipófise que no outro (ou seja, um
de ACTH antes e
gradiente de lateralização maior que 1,4:1), será provável que o tumor esteja no lado dominante (em 75% dos casos),
após estímulo com
o que pode ajudar na programação cirúrgica. Contudo, variantes anatômicas de drenagem venosa da glândula podem
CRH
interferir na lateralização, comprometendo a sua acurácia. O cateterismo de seios petrosos inferiores, entretanto,
é um exame invasivo, com possíveis complicações (risco de AVC de 0,2%, além de hematomas e arritmias), e deve
ser reservado para os casos em que os exames não invasivos (preferencialmente, teste com CRH) não conseguem
distinguir entre a doença de Cushing e a secreção ectópica de ACTH.

166
DOENÇAS DAS SUPRARRENAIS

c) Exames de imagem rotulado como tendo secreção de ACTH de origem desco-


Quanto aos estudos de imagem, a doença de Cushing nhecida.
deve ser avaliada com TC ou, preferencialmente, RNM de
hipófise. Macroadenomas (>1cm de diâmetro) são facil- C - Diagnóstico diferencial
mente detectados nos estudos radiológicos, mas a TC e a
RNM apresentam sensibilidade baixa (50 e 65%, respectiva- Vários achados da síndrome de Cushing são inespe-
mente) para os microadenomas (<1cm). Os adenomas res- cíficos e podem ser encontrados em outras condições,

ENDOCRINOLOGIA
ponsáveis pela doença de Cushing costumam ser pequenos como a obesidade comum (que pode cursar com hiper-
(diâmetro médio de 5 ou 6mm) (Figura 9). tensão arterial, diabetes, estrias e, até mesmo, giba de
búfalo) ou a síndrome dos ovários policísticos (hirsutis-
mo, acne, sobrepeso, irregularidade menstrual). Nesses
casos, a investigação laboratorial geralmente descarta o
hipercortisolismo.
Entretanto, alguns casos de obesidade severa e doenças
psiquiátricas (depressão, alcoolismo, ansiedade, pânico)
podem apresentar aumento do cortisol livre urinário de
24h e, inclusive, ausência de supressão após 1mg de de-
xametasona. Tal quadro é conhecido como pseudo-Cushing
e pode ser diferenciado da síndrome de Cushing verdadei-
ra por meio de outros exames (supressão com doses mais
altas de dexametasona, cortisol da meia-noite, supressão
com loperamida) que resultam normais. Entretanto, muitas
vezes, a distinção entre as 2 condições é difícil, trabalhosa e
requer uma investigação mais agressiva e um acompanha-
mento prolongado.
As Figuras 10 e 11 sumarizam, respectivamente, a 1ª e
a 2ª etapas da investigação laboratorial em pacientes com
suspeita de síndrome de Cushing.

Figura 9 - Microadenoma hipofisário (na metade direita da hipó-


fise) à RNM

Deve-se ter muito cuidado na interpretação desses exa-


mes, pois os microadenomas correspondem a 80 a 90% dos
casos de doença de Cushing; além disso, 10% da população
normal podem apresentar uma imagem sugestiva de micro-
adenoma (“incidentaloma” hipofisário). Em geral, pacientes
com clínica sugestiva de doença de Cushing (sexo, idade,
apresentação do hipercortisolismo), com testes compatí-
veis confirmatórios do hipercortisolismo, e que apresentem
tumor hipofisário com mais que 6mm de diâmetro, podem
ser encaminhados para tratamento (cirurgia transesfenoi-
dal) sem testes adicionais. Para os outros casos, investiga-
ção adicional com cateterismo dos seios petrosos pode ser
necessária para evitar cirurgia de hipófise em “incidentalo-
ma” não relacionado à síndrome de Cushing.
Na síndrome do ACTH ectópico, o paciente deve ser
submetido à TC (ou RNM) de pescoço, tórax e abdome
para pesquisa do tumor primário, que pode ser um carci-
noide brônquico ou pancreático, um câncer pulmonar de
pequenas células, ou outros menos frequentes. Se não for
encontrada a lesão primária, pode-se tentar a cintilografia
com Octreoscan®, mas sua sensibilidade é baixa. Em alguns Figura 10 - Confirmação laboratorial do hipercortisolismo, na sus-
casos, não é encontrada a fonte do ACTH, e o paciente é peita de síndrome de Cushing endógena

167
ENDOC RI N O LOG I A

Na síndrome de Cushing ACTH-independente, a te-


rapêutica consiste na adrenalectomia unilateral (ou,
eventualmente, bilateral), com grande possibilidade de
remissão.
Casos recorrentes ou refratários à terapia inicial (hi-
percortisolismo persistente) podem ser tratados por meio
da adrenalectomia bilateral, ou, preferencialmente, com o
uso de medicamentos bloqueadores da síntese de esteroi-
des adrenais (cetoconazol, mitotano, metirapona) ou de
antagonistas do receptor dos glicocorticoides (mifepristo-
na).

4. Síndrome de Nelson
A síndrome de Nelson ocorre em pacientes com doença
de Cushing submetidos à adrenalectomia bilateral, devido
à perda do feedback negativo sobre a secreção de ACTH
pelo adenoma hipofisário. Caracteriza-se por crescimento
acelerado do adenoma hipofisário preexistente, hiperpig-
mentação intensa e generalizada e níveis elevados de ACTH
(>1.000pg/mL). Apoplexia hipofisária pode ser observada
Figura 11 - Investigação da etiologia da síndrome de Cushing en- em 25% dos casos.
dógena Afeta cerca de 20% dos indivíduos com doença de
Cushing submetidos à adrenalectomia bilateral, surgindo
D - Tratamento de 1 a 3 anos após a remoção das adrenais, principalmente
na infância e no sexo feminino. O tratamento pode ser feito
A 1ª opção de tratamento para a doença de Cushing é a com cirurgia (com poucas chances de cura) ou radioterapia
cirurgia hipofisária por via transesfenoidal para exérese do (estereotáxica ou convencional).
adenoma, com radioterapia complementar em casos sele-
cionados. A cura acontece em 80 a 90% dos microadeno-
5. Hiperplasia adrenal congênita
mas e em torno de 50% dos macroadenomas.
A radioterapia é tratamento de 2ª linha, com taxa de A Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC) compreende
sucesso inferior à cirurgia, e o controle do hipercortisolis- um conjunto de síndromes clínicas resultantes de defeitos
mo é lento e gradual, podendo levar vários anos para ser congênitos na síntese dos esteroides adrenocorticais. A
obtido. O hipopituitarismo, que ocorre em, aproximada- causa mais comum (de 90 a 95% dos casos) é a deficiência
mente, 50% dos pacientes após alguns anos, e a possibi- de 21-hidroxilase, que leva a uma produção deficiente de
cortisol (e aldosterona, na maioria das vezes), com perda
lidade de complicações imediatas e tardias (radionecrose,
do feedback negativo sobre a hipófise, aumento do ACTH,
lesão de vias ópticas, indução de neoplasias secundárias)
hiperestímulo às adrenais e resultante excesso de androgê-
limitam o seu uso.
nios (cuja síntese não é prejudicada pelo defeito enzimáti-
A radiocirurgia estereotáxica já foi utilizada para corti-
co específico). A 2ª causa mais comum é a deficiência da
cotropinomas, com resposta variando entre 60 e 80% nos
11-beta-hidroxilase, que é mais comum em populações de
trabalhos iniciais. Contudo, não existem grandes séries de
origem norte-africana (Marrocos).
casos com seguimento por período suficiente para que a A deficiência de 21-hidroxilase é uma doença autossô-
segurança e a eficácia do método sejam adequadamente mica recessiva, causada por mutações no gene CYP21A2,
avaliadas. localizado no cromossomo 6q21.3; é o distúrbio enzimáti-
Na síndrome do ACTH ectópico, deve-se realizar o tra- co mais frequente das adrenais e pode ser encontrado em,
tamento específico para a doença de base (remoção do tu- aproximadamente, 1 a cada 10.000 crianças. A forma não
mor). Quando o tumor primário não é localizado, pode-se clássica (tardia) provavelmente é a apresentação mais co-
usar o cetoconazol, para inibir a síntese de cortisol pelas mum e pode ser observada em até 1 a 3% da população
adrenais, em doses iniciais de 200 a 400mg/dia, podendo- geral. A deficiência de 21-hidroxilase, na forma não clássi-
-se aumentar as doses até 600 a 1.200mg/dia. Devem-se ca, é o distúrbio autossômico recessivo mais comum na es-
monitorizar as transaminases durante o uso do cetocona- pécie humana, sendo especialmente frequente em judeus
zol, devido à possibilidade de hepatotoxicidade. Ashkenazi.

168
DOENÇAS DAS SUPRARRENAIS

O principal determinante do tipo de apresentação clíni-


ca é o grau de atividade residual da enzima 21-hidroxilase.
Observa-se, portanto, uma boa correlação entre o genóti-
po (tipo de mutação ocorrida no gene da 21-hidroxilase,
CYP21) e o fenótipo (atividade de 21-hidroxilase, manifes-
tação clínica), conforme exposto na Tabela 11.

ENDOCRINOLOGIA
Tabela 11 - Correlação entre genótipo e fenótipo na HAC por defi-
ciência de 21-hidroxilase
Atividade
Apresenta- Mutações
Clínica residual da
ção mais comuns
21-hidroxilase
Virilização, I2 splice
genitália (íntron 2),
ambígua em Arg356Trp
Forma
meninas, (éxon 8), del
clássica
hipovolemia, <2% 8pb (éxon 3),
perdedora
hipercalemia, cluster (éxon
de sal
acidose no 6), Gli318stop
período (éxon 8), ins T
neonatal (éxon 7)
Virilização
Ile172Asn
no período
Forma (éxon 4), I2
neonatal,
virilizante De 2 a 20% splice (íntron
genitália
simples 2), Arg356Trp
ambígua em
(éxon 8)
meninas
Hirsutismo, Pro30Leu
acne na (éxon 1),
Figura 12 - Resumo da esteroidogênese adrenal Forma não
infância, Val281Leu
clássica >20%
puberdade (éxon 7),
A - Quadro clínico (tardia)
precoce, baixa Pro453Ser
estatura (éxon 10)
As manifestações clínicas da HAC causada pela defici-
ência de 21-hidroxilase dividem-se nas provocadas pela
B - Diagnóstico
deficiência de glicocorticoides e mineralocorticoides e nas
causadas pelo excesso reflexo da produção de androgênios. O diagnóstico é confirmado pela dosagem dos precur-
Em neonatos do sexo feminino (46,XX), a exposição sores dos androgênios adrenais, que se encontram aumen-
intrauterina a altas concentrações de androgênios (DHEA, tados – especificamente a 17-alfa-OH-progesterona (17-
androstenediona) leva à genitália ambígua (pseudo-herma- OH-P). Esse aumento é marcante nas formas mais severas
froditismo feminino), virilização progressiva, avanço da ida- da doença, mas pode ser encontrado unicamente após um
de óssea e crescimento linear acelerado (com fechamento estímulo com ACTH exógeno em formas leves (tardias). Os
precoce das epífises e perda de estatura na vida adulta). androgênios adrenais também podem estar aumentados
(androstenediona).
Em casos mais leves, em que a deficiência enzimática não
Na suspeita de HAC, deve-se dosar, inicialmente, a 17-
é tão severa (forma tardia ou não clássica da HAC), as ma-
OH-P plasmática basal. Se >5ng/mL, faz-se o diagnóstico de
nifestações de hiperandrogenismo podem surgir apenas na
HAC. Muitas vezes, entretanto, é necessária a realização de
peripuberdade, sem virilização ao nascimento (originando
teste de estímulo com ACTH (250mcg IV ou IM), com coleta
um quadro semelhante à síndrome dos ovários policísticos). de sangue aos 30 e 60 minutos, para avaliar melhor o sta-
Quando há deficiência de mineralocorticoides associada tus do paciente, já que portadores da forma tardia podem
(o que ocorre em 75% dos casos), a criança apresenta-se apresentar 17-OH-P basal normal, com elevação somente
ainda no período neonatal com hipovolemia, hipotensão, após o estímulo. Se a 17-OH-P estimulada for maior que
choque, hipercalemia e acidose metabólica, com risco de 10ng/mL, confirma-se a HAC. Alguns autores sugerem que
morte se o diagnóstico não for efetuado rapidamente. A vi- se evite a coleta de 17-OH-P basal (devido ao risco de fal-
rilização associada à deficiência de aldosterona caracteriza sos negativos), preferindo a realização de teste de estímulo
a chamada forma clássica perdedora de sal, enquanto a vi- com ACTH em todos os casos suspeitos.
rilização sem deficiência de mineralocorticoides constitui a Na faixa de valores discretamente elevados (entre 10
forma virilizante simples da HAC. e 17ng/mL) para 17-OH-P pós-estímulo, há ampla sobre-

169
ENDOC RI N O LOG I A

posição entre indivíduos heterozigotos (geralmente, sem no qual ocorre uma secreção exagerada da aldosterona em
manifestações clínicas e sem necessidade de tratamento) e resposta ao estímulo pela angiotensina II, sem o crescimen-
portadores da forma não clássica (tardia) da HAC. Por isso, to de um tumor. Causas mais raras incluem a hiperplasia su-
muitos autores sugerem que se considere o diagnóstico ine- prarrenal primária, o adenoma responsivo à angiotensina, o
quívoco de HAC apenas com 17-OH-P pós-ACTH >17ng/mL. carcinoma suprarrenal, a produção ectópica de aldosterona
Em pacientes com 17-OH-P abaixo desse valor, muitas vezes (como no arrenoblastoma, um tumor raro do ovário) e o
é necessário o estudo molecular (rastreamento de muta- hiperaldosteronismo supressível por dexametasona.
ções no gene CYP21) para definir se o paciente é portador
de HAC ou heterozigoto assintomático.
A - Diagnóstico
C - Tratamento A maioria dos pacientes com adenoma produtor de al-
O tratamento de urgência, em neonatos com a forma dosterona é assintomática. O principal achado é a hiperten-
perdedora de sal, consiste na reposição salina, na correção são arterial, que pode cursar com sintomas como cefaleia
de distúrbios hidroeletrolíticos e na reposição de glicocor- e palpitações, e pode ser severa e refratária ao tratamento
ticoides IV (hidrocortisona) até a estabilização do quadro. com anti-hipertensivos. Hipocalemia é uma característica
Após esta, o paciente deve ser mantido indefinida- clássica do hiperaldosteronismo, tendo sido descrita na
mente em reposição de glicocorticoides (hidrocortisona, maioria dos aldosteronomas, no entanto é encontrada, atu-
de 12 a 15mg/m2/dia em 2 a 3 doses diárias, ou acetato almente, em menos de 50% dos casos. Alcalose metabólica
de cortisona, de 10 a 12mg/m2/dia em 2 a 3 tomadas) VO, ocorre, principalmente, nos casos com hipocalemia, e sua
com a maior dose, de preferência, pela manhã, visando à presença pode acarretar poliúria, cãibras, tetania, pares-
supressão do ACTH e à redução da produção excessiva de tesias, fraqueza muscular e, em casos de hipocalemia ex-
androgênios. Outras opções são a prednisolona (que pode trema, rabdomiólise, quadriparesia e fibrilação ventricular.
ser usada inclusive na infância), a prednisona ou a dexame- Não há edema, mas pode haver intolerância à glicose ou
tasona (que devem ser reservadas para tratamento de adul- diabetes em até 25% dos casos.
tos, pelo seu potencial efeito adverso sobre o crescimento). Ainda há alguma controvérsia quanto às indicações
Os mineralocorticoides (fludrocortisona, de 0,05 a 0,2mg/ para rastreamento do hiperaldosteronismo. Antigamente,
dia) devem ser associados nas formas perdedoras de sal. a avaliação da secreção de aldosterona era reservada aos
Os pacientes devem ser orientados a aumentar as doses de pacientes com hipocalemia, mas muitos autores defendem,
glicocorticoides em 2 a 3 vezes nas situações de estresse. atualmente, um leque mais amplo de situações em que a
A genitália ambígua deve ser corrigida com cirurgia plás- pesquisa de hiperaldosteronismo seria justificada (Tabela
tica nas meninas afetadas, preferencialmente antes dos 18 12). Há, inclusive, autores que defendem o screening de
meses. hiperaldosteronismo em todos os pacientes hipertensos,
principalmente aqueles com renina baixa.
6. Hiperaldosteronismo Tabela 12 - Indicações para rastreamento de hiperaldosteronismo
O hiperaldosteronismo primário é a causa mais comum - Hipertensos com hipocalemia espontânea ou facilmente induzida
de hipertensão arterial secundária. Há relatos de que a pro- pelo uso de diuréticos;
dução excessiva/autônoma de mineralocorticoides (que ca- - Hipertensos jovens (<40 anos);
racteriza o hiperaldosteronismo primário) é encontrada em - Hipertensos refratários (hipertensão persistente, apesar do uso
2 a 10% dos hipertensos. O termo “hipertensão resistente de, pelo menos, 3 anti-hipertensivos de classes diferentes em
ao tratamento” tem sido usado recentemente, e, com algu- doses efetivas);
ma surpresa, demonstrou-se que boa parte desses pacien- - Hipertensos com níveis pressóricos extremamente elevados;
tes apresenta ótima resposta à espironolactona, sugerindo, - Portadores de incidentaloma adrenal;
também, um papel relevante da aldosterona na gênese da - História de hipertensão ou AVC em familiar com menos de 50
hipertensão arterial. anos.
Acreditava-se que a causa mais comum de hiperaldos-
teronismo primário era um tumor benigno da glândula Na avaliação laboratorial, a Concentração de Aldosterona
adrenal, o adenoma produtor de aldosterona (também Plasmática (CAP) pode estar elevada ou no limite superior
conhecido como aldosteronoma, ou síndrome de Conn). da normalidade (12 a 20ng/dL). A Atividade de Renina
Geralmente, um tumor pequeno, com menos de 3cm, uni- Plasmática (ARP) costuma estar reduzida (<1ng/mL/h), mas
lateral, 3 vezes mais frequente no sexo feminino. esse é um achado inespecífico (pode estar presente em até
Entretanto, estudos recentes demonstraram que 70% 25% dos pacientes com hipertensão essencial). Por isso, o
dos casos de hiperaldosteronismo primário são causados melhor parâmetro para screening do hiperaldosteronismo
por hiperplasia bilateral das suprarrenais, o que muitos é a relação entre a CAP e a ARP (CAP/ARP), que se encontra
autores denominam de hiperaldosteronismo idiopático, caracteristicamente acima de 20. Alguns autores conside-

170
DOENÇAS DAS SUPRARRENAIS

ram essa relação alterada apenas quando os valores são O cateterismo de veias suprarrenais é o exame padrão-
superiores a 30. Pacientes com relação aldosterona/renina -ouro para diferenciar se a secreção aumentada de aldos-
plasmática maior que 50 apresentam maior probabilidade terona é uni ou bilateral; a relação entre lados maior que 4
diagnóstica, com cerca de 90% destes confirmando o diag- sugere a presença de aldosteronoma unilateral e, se menor
nóstico de hiperaldosteronismo primário, sendo que alguns que 3, sugere secreção bilateral por provável hiperplasia de
autores sugerem que valores acima de 200 poderiam pres- suprarrenais. O exame não é necessário na grande maioria
cindir de testes confirmatórios. Os valores de corte que pa- dos casos.

ENDOCRINOLOGIA
recem ter melhor acurácia incluem CAP/ARP >27 na presen- Exames de imagem são úteis na localização do tumor; a
ça de CAP >12ng/dL. técnica de escolha é a TC (acurácia de 90%). No hiperaldos-
Deve-se lembrar que a avaliação de CAP e APR pode ser teronismo idiopático, não há massa tumoral, e as alterações
alterada pelo uso de diversas medicações, como beta-blo- laboratoriais costumam ser mais leves (menor supressão da
queadores, anti-inflamatórios não hormonais, diuréticos e ARP e menor CAP) em comparação ao adenoma.
Inibidores da Enzima Conversora da Angiotensina (IECA).
Portanto, tais medicações devem ser idealmente suspensas B - Tratamento
ou substituídas por alfa-bloqueadores ou bloqueadores dos
canais de cálcio por, pelo menos, 2 a 6 semanas antes da A terapêutica do aldosteronoma consiste na exérese
coleta desses exames. cirúrgica do tumor adrenal (nos unilaterais), um proce-
Se a relação CAP/ARP for sugestiva, deve-se confirmar dimento que reduz a pressão arterial em, praticamente,
o diagnóstico por meio de testes dinâmicos para supressão 100% dos casos, entretanto apenas 50 a 60% dos pa-
da aldosterona. Podem-se usar, como testes, sobrecarga de cientes têm normalização dos níveis pressóricos (cura da
sódio VO (3 dias com dieta com 200mmols de sódio), infu- hipertensão). Nos casos refratários à cirurgia, ou quan-
são IV de solução salina, fludrocortisona ou captopril. do não há lesão tumoral (como no hiperaldosteronismo
A sobrecarga de volume é o teste mais prático, realizada idiopático), usam-se drogas antagonistas da aldosterona
com a infusão de volume de 2 a 3L em 4 a 6h (500mL/h) (espironolactona ou eplerenona) por tempo prolongado.
com dosagem de aldosterona ao final da infusão. A respos- Os efeitos deletérios da aldosterona não são limitados à
ta normal (fisiológica) seria a supressão da aldosterona. hipertensão, podendo ocorrer fibrose miocárdica mesmo
Valores maiores que 8,5 a 10ng/dL, neste momento, con- em pacientes normotensos, além de ser observado um
firmam a produção autônoma de aldosterona, enquanto aumento do risco de Acidente Vascular Cerebral (AVC),
valores abaixo de 5ng/dL excluem tal possibilidade. O teste hipertrofia de ventrículo esquerdo e arritmias cardíacas,
é contraindicado a pacientes com insuficiência cardíaca ou bem como diabetes e dislipidemias. Assim, o tratamento
renal e deve ser realizado com cautela em idosos ou hiper- preferencial, em pacientes com aldosteronoma, é cirúrgi-
tensos graves. Nesses casos, uma opção seria o teste com co, sempre que possível.
fludrocortisona, com administração de 0,1mg desse me-
dicamento de 6/6h por 3 dias, e dosagem de aldosterona
ao final do período. E valores de CAP acima de 10ng/dL ou 7. Feocromocitoma
aldosterona urinária >10mcg/24h confirmam o hiperaldos- Feocromocitomas são tumores de origem neuroen-
teronismo (Figura 13). dócrina, derivados das células cromafins, que produzem
e secretam catecolaminas (principalmente, adrenalina e
noradrenalina). A maioria desses tumores (90% em adul-
tos e 70% em crianças) está localizada na medula adre-
nal. Tumores extra-adrenais são denominados paragan-
gliomas, dos quais a maior parte está no abdome (região
paraórtica, bexiga). No entanto, já foram descritos para-
gangliomas em todos os pontos da cadeia de gânglios do
sistema nervoso simpático (desde a base do crânio até a
cauda equina). Tumores extra-adrenais têm maior risco de
malignidade.
São uma causa rara de hipertensão arterial e respon-
dem por 0,05 a 1% dos casos, embora esses valores possam
ser subestimados. Atingem, igualmente, ambos os sexos e
têm seu pico de incidência por volta da 4ª década de vida.
Podem ser manifestação de algumas síndromes genéticas
Figura 13 - Avaliação diagnóstica do hiperaldosteronismo primá- raras, como Neoplasia Endócrina Múltipla tipo 2 (NEM-2A e
rio (HAP): CAP = Concentração de Aldosterona Plasmática; APR = NEM-2B), síndrome de von Hippel-Lindau, neurofibromato-
Atividade Plasmática de Renina se tipo I (de von Recklinghausen) e paraganglioma cervical

171
ENDOC RI N O LOG I A

hereditário. A Tabela 13 resume as características principais


dessas síndromes.
Tabela 13 - Síndromes genéticas associadas ao feocromocitoma
Síndrome Características
Feocromocitoma (em 50%), carcinoma medular
NEM - 2A
da tireoide, hiperparatireoidismo primário.
Feocromocitoma (em 50%), carcinoma medular
NEM - 2B da tireoide, neuromas mucosos múltiplos, hábito
Figura 14 - Formação de epinefrina e norepinefrina
marfanoide.
Síndrome de Feocromocitoma (em 20%), hemangioblastomas As catecolaminas são metabolizadas por múltiplas en-
von Hippel- cerebelares e retinianos, carcinoma renal, cistos zimas, incluindo a monoamino-oxidase (MAO), a catecol-
Lindau renais e pancreáticos. -O-metiltransferase (COMT) e as sulfotransferases. A de-
Neurofibro- Feocromocitoma (em 1%), neurofibromas, saminação pela MAO é a principal via do metabolismo das
matose tipo I manchas cutâneas café com leite.
catecolaminas, gerando o diidroxifenilglicol que, posterior-
mente, ao ser metabolizado pela COMT, irá gerar o meto-
A regra dos 10 é uma forma prática de lembrar as carac- xiidroxifenilglicol. Este, por sua vez, será metabolizado pelo
terísticas principais dos feocromocitomas (Tabela 14), em- álcool-desidrogenase, levando ao aparecimento do VMA,
bora não seja exata. Por exemplo: cerca de 25% dos feocro- que é mensurado na urina para a realização do diagnóstico
mocitomas ocorrem em síndromes familiares (e não 10%), de feocromocitoma.
e, de acordo com casuísticas brasileiras, 100% dos feocro- A 2ª principal via de metabolismo das catecolaminas é a
mocitomas cursam com hipertensão. Mas ainda citamos a COMT, que transforma a norepinefrina em normetanefrina
regra dos 10 devido à facilidade mnemônica. e a epinefrina em metanefrina. Esses compostos podem,
posteriormente, ser sulfatados, transformando-se em sul-
Tabela 14 - Regra das 10 (características clínicas do feocromoci- fato de normetanefrina e sulfato de metanefrina, os quais,
toma) por sua vez, também são metabolizados pela MAO, tendo
- 10% bilaterais; como produto final o VMA.
- 10% extra-adrenais;
A Figura 15 sintetiza a via do metabolismo da epinefrina
e da norepinefrina.
- 10% dos extra-adrenais são extra-abdominais;
- 10% cursam sem hipertensão;
- 10% ocorrem em crianças;
- 10% malignos;
- 10% familiares;
- 10% recidivam após o tratamento.

A - Síntese e metabolização de catecolaminas


O substrato para a produção das catecolaminas é a ti-
rosina, que sofre a ação da enzima tirosina-hidroxilase,
convertendo-se, então, em diidroxifenilalanina (DOPA). A
DOPA sofre nova ação enzimática, convertendo-se em do-
pamina. Esta fica armazenada em vesículas de depósito e,
dentro destas, pode ser convertida, pela ação da dopamina-
-beta-hidroxilase, em norepinefrina (ou noradrenalina). A Figura 15 - Vias do metabolismo da norepinefrina e da epinefrina
norepinefrina pode sofrer, em seguida, a ação da fenileta-
nolamina N-metiltransferase (enzima que se localiza, pre- B - Quadro clínico
dominantemente, na medula suprarrenal), convertendo-se O quadro clínico dos feocromocitomas depende das
em epinefrina (ou adrenalina). substâncias secretadas por eles, e a sua maioria secreta ca-
A feniletanolamina N-metiltransferase não está pre- tecolaminas. Tumores intra-adrenais pequenos secretam,
sente em todas as células cromafins. Podem-se distinguir, predominantemente, epinefrina, enquanto tumores gran-
assim, 2 subpopulações de células cromafins: a de células des e/ou extra-adrenais secretam, preferencialmente, no-
adrenérgicas (que secretam epinefrina) e de células nora- repinefrina.
drenérgicas (que secretam norepinefrina). A Figura 14 mos- O sintoma de apresentação mais comum é a hiperten-
tra a formação dessas substâncias, a partir da tirosina. são arterial, sustentada ou paroxística. A hipertensão é,

172
DOENÇAS DAS SUPRARRENAIS

caracteristicamente, resistente à terapia medicamentosa co. Após as crises de feocromocitoma, os pacientes podem
e pode apresentar piora paradoxal com o uso de beta-blo- apresentar poliúria.
queadores. Os pacientes, frequentemente, apresentam
episódios de hipotensão, na maioria das vezes postural, C - Diagnóstico
mas podendo aparecer sem tal correlação. Alguns feocro- Deve-se suspeitar de feocromocitoma em todo paciente
mocitomas malignos podem secretar dopamina em abun- que se apresente com a tríade clássica (cefaleia, palpitações
dância, levando à hipotensão. e sudorese), especialmente na presença de hipertensão.

ENDOCRINOLOGIA
A cefaleia é um sintoma relatado em 80 a 90% dos ca- Outras situações em que se deve suspeitar de feocro-
sos; costuma ser bitemporal ou holocraniana, sem fono ou mocitoma e realizar a investigação diagnóstica são as ex-
fotofobia, assemelhando-se à cefaleia do tipo tensional. postas na Tabela 15.
Sudorese, palidez e taquicardia também são relatadas com
frequência. Tabela 15 - Indicações de rastreamento para feocromocitoma
A tríade clássica do feocromocitoma é constituída de - Hipertensos jovens (<40 anos);
cefaleia, palpitações e sudorese, normalmente acompanha- - Hipertensos com IAM, AVC, arritmias, convulsões ou
das de hipertensão. A presença dessa tríade deve levantar insuficiência renal;
suspeita imediata para o diagnóstico de feocromocitoma. - Episódios paroxísticos de hipertensão, palpitações;
Deve-se salientar que a ausência da tríade diminui, sensi-
- Hipotensão ortostática;
velmente, a probabilidade do diagnóstico desse tumor, em-
- Choque inexplicado;
bora não raramente este seja diagnosticado em hipertensos
assintomáticos e em incidentalomas adrenais. - História familiar de feocromocitoma e carcinoma medular de
tireoide;
Outros possíveis sintomas são dispneia e perda de peso;
esta pode ocorrer apesar da manutenção de apetite nor- - Neurofibromatose ou neuromas cutâneos;
mal, provavelmente devido ao aumento da glicogenólise e - Hiperglicemia;
da lipólise ocasionado pelo excesso de catecolaminas. Pelo - Miocardiopatia;
mesmo motivo, também pode ocorrer hiperglicemia. - Labilidade da pressão arterial;
Em casos menos comuns, o paciente com feocromocito- - Hipertensão paroxística em resposta à anestesia ou cirurgia,
ma pode apresentar-se com quadro de constipação, ocasio- parto, procedimentos invasivos, drogas anti-hipertensivas;
nalmente mimetizando pseudo-obstrução e íleo paralítico. - Evidência radiológica de massa adrenal (incidentaloma).
Outra apresentação atípica é a febre de origem indetermi-
nada. O diagnóstico é confirmado pela dosagem de cateco-
As crises dos feocromocitomas, em geral, são conse- laminas plasmáticas e metanefrinas na urina de 24h, au-
quência da liberação abrupta de catecolaminas e, ocasio- mentadas em 98% dos casos. O padrão mais comum nos
nalmente, de outros peptídios ativos, às vezes cossecreta- feocromocitomas é o de elevação predominante de nore-
dos pelo tumor. As crises tendem a manter padrão caracte- pinefrina, podendo também ser encontrado padrão predo-
rístico individual e apresentar reprodutibilidade, mas com minante de elevação de epinefrina. O aumento de dopami-
severidade e duração variáveis. As crises podem ocorrer na sugere malignidade do feocromocitoma. A dosagem de
sem fator precipitante identificado, mas vários fatores de- catecolaminas ou seus metabólitos na urina de 24h teria a
sencadeantes já foram descritos para as crises, dentre eles vantagem de mostrar a atividade do sistema simpatoadre-
atividade física, traumatismo, procedimentos diagnósticos nal nesse período, eliminando os eventuais resultados fal-
e terapêuticos (endoscopia, anestesia), estimulação direta sos negativos que ocorrem nos pacientes sem paroxismos.
do tumor (compressão pelo útero gravídico, palpação ab- O ácido vanilmandélico urinário (VMA) já foi muito uti-
dominal) ou, ainda, o uso de medicações, como metoclo- lizado, mas sofre várias interferências e, portanto, é pouco
pramida, metildopa, etanol, fenotiazinas e tricíclicos, ou a confiável. Níveis aumentados de VMA têm alta especifici-
ingesta de alguns alimentos, principalmente os que contêm dade para o diagnóstico de tumores produtores de cate-
tiramina (queijos, vinho tinto) ou chocolate. Em paragan- colaminas, sendo esta próxima a 100% em algumas séries,
gliomas localizados na mucosa da bexiga ou no reto, as cri- mas têm baixa sensibilidade (pouco mais de 40%), o que é
ses podem ser desencadeadas pela micção ou pela evacua- compreensível considerando os vários passos do metabolis-
ção, respectivamente. mo das catecolaminas até a formação do VMA. A dosagem
As crises dos feocromocitomas, usualmente, duram de de metanefrina urinária, por outro lado, tem sensibilidade
10 a 60 minutos. Cefaleia nas crises ocorre em 80% dos ca- próxima de 80% e especificidade acima de 90%.
sos, associada à intensa sensação de mal-estar, sudorese A dosagem de catecolaminas plasmáticas, por sua vez,
e palpitações. Sensação de ansiedade e apreensão são co- tem alta sensibilidade e especificidade (94 e 97%, respec-
muns, podendo estar associadas à palidez e ao desconforto tivamente). Entretanto, as catecolaminas produzidas na
torácico ou abdominal. As crises podem ser confundidas adrenal nem sempre atingem a circulação, mas os seus me-
com episódios severos de ansiedade ou ataques de pâni- tabólitos, as metanefrinas (normetanefrina e metanefrina),

173
ENDOC RI N O LOG I A

sempre aparecem aumentadas no plasma, pois vazam dos -hipertensivos parenterais, como a fentolamina 10mg IV, ou
grânulos da medula suprarrenal. A dosagem de metanefri- o nitroprussiato de sódio.
nas plasmáticas livres apresenta, portanto, sensibilidade e Outra possibilidade é um tratamento de prova (teste te-
especificidade de 97 e 96%, respectivamente, para casos rapêutico) com a fenoxibenzamina por 1 a 2 meses. Muitos
familiares de feocromocitoma, e de 100 e 80%, respecti- preferem não realizar testes estimulativos ou provocativos,
vamente, para casos esporádicos. Essas características tor- devido ao alto risco de efeitos adversos (hipertensão).
nam as metanefrinas plasmáticas o exame de escolha para Outros compostos que podem estar elevados no plas-
o diagnóstico de feocromocitoma; entretanto, sua dosagem ma são a cromogranina A (útil como marcador tumoral) e
não está disponível em muitos serviços, o que limita o seu a enolase neurônio-específica (marcador de malignidade),
uso. além de serotonina, citocinas, VIP, somatostatina, opioides,
Se os valores de metanefrinas ou catecolaminas (plas- ACTH, neuropeptídio Y, dentre vários outros (dependendo
máticas ou urinárias) estão aumentados mais de 5 vezes da secreção pelo tumor).
acima do limite superior da normalidade, esse achado defi- b) Exames de imagem
ne o diagnóstico de feocromocitoma. Alguns autores consi- A tomografia computadorizada tem sensibilidade de 90
deram que níveis mais de 2 vezes aumentados já eliminam a 100% para tumores intra-adrenais. A RNM também pode
a necessidade de testes estimulativos ou provocativos. A detectar as lesões adrenais, com a vantagem adicional de
combinação de diferentes testes, com o valor de catecola- que os feocromocitomas apresentam um aspecto muito
minas plasmáticas ≥2.000pg/mL e o de metanefrinas uri- característico nesse exame: hiperintensidade de sinal nas
nárias ≥1,8≥g/24h, apresenta acurácia diagnóstica de 98%, imagens em T2, em comparação ao fígado.
tanto para casos esporádicos como familiares. Quando esses exames não detectam a massa (em para-
Nos casos em que a elevação desses parâmetros não ul- gangliomas, por exemplo), pode-se usar a cintilografia com
trapassa de 1 a 5 vezes (ou de 1 a 2 vezes) o limite superior isótopos como a meta-iodobenzilguanidina (MIBG), o pen-
do método, a confirmação do diagnóstico exige a realização treotide marcado (Octreoscan®) ou o octreotide radiomar-
de testes dinâmicos, como o da clonidina e do glucagon. cado, que parecem ter sucesso limitado na localização do
Esses testes não têm grande utilidade para os tumores pro- feocromocitoma. A tomografia com emissão de pósitrons
dutores exclusivos de epinefrina, pois a clonidina bloqueia (PET-scan) com metabólitos como fluordeoxiglicose (FDG),
a secreção simpática de catecolaminas, e a secreção de epi- 11-C-epinefrina, dentre outros, vem sendo estudada re-
nefrinas é quase exclusivamente adrenal. centemente. O maior sucesso parece ser obtido com o uso
Deve-se tomar cuidado ao interpretar os resultados em de 6-18F (fluordopamina), um agente simpatoneural que
relação às medicações de que o paciente vem fazendo uso; se acumula nas vesículas, onde as catecolaminas são es-
o atenolol pode, por exemplo, falsear os resultados, assim tocadas, permitindo visualizar as células cromafins. Dados
como o acetaminofeno, devendo ser descontinuados por, preliminares indicam que esse método é, provavelmente,
pelo menos, 5 dias antes das dosagens. Da mesma forma, superior ao MIBG.
várias outras medicações podem interferir no resultado dos A Figura 16 sugere a abordagem diagnóstica dos pacien-
exames, a depender do método laboratorial utilizado. tes com feocromocitoma.
a) Testes especiais
Dentre os testes provocativos, o de maior especificidade
é o teste do glucagon. A administração IV de 1mg de gluca-
gon pode causar crise de feocromocitoma em 90% dos pa-
cientes. Dosam-se as catecolaminas plasmáticas 2 minutos
após o glucagon. Em caso de aumento de 3 ou mais vezes
nos níveis de norepinefrina, o teste é considerado positivo,
apresentando alta especificidade.
O teste da clonidina é realizado, principalmente, para os
pacientes com níveis altos de norepinefrina. Usa-se dose-
-padrão de 0,3mg de clonidina VO, coletando amostras de
sangue 2 a 3 horas depois. Caso os níveis de catecolaminas
não diminuam para valores menores que o limite superior
do normal para o método, ou não apresentem queda de, no
mínimo, 50% dos níveis de norepinefrina, o teste é consi-
derado positivo. Diminuições menores que as referidas são
sugestivas de ativação simpática.
Caso os pacientes, durante o teste do glucagon, apre-
sentem pressão arterial superior a 200x120mmHg ou sinto-
mas de crise hipertensiva catastrófica, devem-se usar anti- Figura 16 - Abordagem diagnóstica do feocromocitoma

174
DOENÇAS DAS SUPRARRENAIS

D - Tratamento Causas mais raras incluem o mielolipoma (um tumor


benigno com aspecto muito característico à tomografia), a
A adrenalectomia unilateral (ou bilateral, quando o tuberculose (calcificações), a histoplasmose e a hiperplasia
tumor acomete as 2 adrenais) é a terapêutica de escolha. adrenal de acometimento assimétrico.
Antes da cirurgia, é fundamental o preparo medicamento-
so, para tentar reverter as anormalidades hemodinâmicas - Avaliação do incidentaloma suprarrenal
do paciente e reduzir o risco de instabilidade pressórica du- Deve-se responder a 2 perguntas pela avaliação diag-
rante o ato operatório. Está indicado o uso de alfa-bloque- nóstica de uma massa suprarrenal encontrada ao acaso:

ENDOCRINOLOGIA
adores adrenérgicos (prazosina, doxazosina, fentolamina) 1 - É maligno?
por, pelo menos, 14 dias, bem como a expansão do volume
2 - É funcionante?
plasmático com solução salina.
Os beta-bloqueadores podem ser usados como adjuvan- A investigação básica de todo incidentaloma adrenal
tes em pacientes que permanecem taquicárdicos, mas sem- (mesmo os assintomáticos) deve incluir tomografia ou res-
pre após o início dos alfa-bloqueadores, pois o uso isolado sonância magnética; dosagem de SDHEA, cortisol pós-1mg
de beta-bloqueadores na ausência de bloqueio alfa pode le- de dexametasona, relação aldosterona/renina plasmática e
var a uma piora paradoxal da hipertensão. Eventualmente, metanefrinas/catecolaminas urinárias ou plasmáticas.
outras drogas podem ser necessárias para o controle ade- Com base nos resultados dos exames citados anterior-
quado da pressão arterial, podendo-se utilizar bloqueado- mente, deve-se indicar cirurgia em todos os casos com sus-
res de canais de cálcio, IECA ou bloqueadores do receptor peita de malignidade ou com evidências de hiperfunção,
da angiotensina II. conforme resumido na Tabela 16:
É importante uma monitorização rigorosa da pressão
arterial no intraoperatório, com medida direta por catete- Tabela 16 - Diagnóstico do incidentaloma adrenal
rismo arterial (PA invasiva) e uso de nitroprussiato ou nora- Características Diagnóstico provável
drenalina, se necessário. A normalização da pressão arterial - Tumor com mais de 4 a
ocorre nas primeiras 2 semanas após a cirurgia em 80 a 90% 6cm de diâmetro;
dos casos. - Densidade tomográfica
- Carcinoma adrenal (ou metás-
>10 unidades Hounsfield
tase).
8. Tumores e massas adrenais (HU) pré-contraste ou >35
HU pós-contraste;
As massas adrenais são, muitas vezes, diagnosticadas - SDHEA elevado.
em exames de imagem realizados por algum outro motivo
- Cortisol sérico matinal
(incidentalomas adrenais). - Adenoma secretor de cortisol
elevado (>1,8ug/dL) após
A maior causa de massas suprarrenais são os adeno- (síndrome de Cushing ACTH-
1mg de dexametasona às
mas do córtex adrenal (40% dos casos), que geralmente são independente).
23h.
unilaterais, pequenos (menores que 2 a 3cm de diâmetro),
- Adenoma secretor de aldos-
na maior parte das vezes, não funcionantes (ou seja, não - Relação aldosterona/reni-
terona (hiperaldosteronismo;
levam a nenhuma síndrome de excesso hormonal). Cerca na plasmática >30.
síndrome de Conn).
de 10 a 40% dos adenomas adrenais, entretanto, secretam - Metanefrinas ou catecola-
cortisol (síndrome de Cushing ACTH-independente), e 1 a - Feocromocitoma.
minas elevadas.
3% secretam aldosterona (hiperaldosteronismo primário).
O carcinoma adrenocortical corresponde a 10% dos ca- O aspecto tomográfico da massa também pode ser útil,
sos de massas adrenais diagnosticadas por acaso. É uma do- desde que existam características sugestivas de malignidade:
ença rara, mais comum em crianças jovens (<5 anos) e em áreas extensas de necrose, hemorragia, margens irregulares
adultos após a 4ª década. ou infiltração dos tecidos vizinhos. Lesões bilaterais com ca-
Costumam ser lesões grandes (geralmente, maiores que racterísticas malignas devem suscitar a suspeita de metásta-
5 a 6cm) de comportamento agressivo: 75% já se apresen- ses e motivar a pesquisa de focos primários de neoplasia.
tam com metástases a distância no momento do diagnósti- A punção adrenal guiada por ultrassom ou tomografia é
co. A maioria é funcionante – 45% produzem glicocorticoi- um exame útil para distinguir entre lesões malignas primá-
des, 45% produzem glicocorticoides e androgênios e 10% rias ou metastáticas.
secretam apenas androgênios. O prognóstico é reservado. Tumores que não preencham nenhuma das caracterís-
Metástases para as adrenais são a 2ª causa mais fre- ticas expostas na Tabela 16 são provavelmente benignos e
quente de massas nessas glândulas (20% dos casos), visto não funcionantes, e podem ser seguidos clinicamente sem
que as adrenais são, frequentemente, atingidas pela disse- tratamento. Entretanto, deve-se considerar cirurgia se hou-
minação a distância de vários tipos de câncer, como mama, ver crescimento significativo do tumor nas imagens sub-
cólon, pulmão e linfomas. As lesões metastáticas são bilate- sequentes, especialmente em pacientes com <50 anos de
rais em 60% dos casos. idade.

175
ENDOC RI N O LOG I A

As estatísticas mostram que aproximadamente 20% dos - Na síndrome de Cushing ACTH-independente, deve-se realizar
incidentalomas adrenais são funcionantes, e <5% são ma- imagem abdominal (TC ou RM) para detectar provável tumor
lignos; portanto, praticamente 80% dos casos não terão ne- adrenal;
cessidade de tratamento imediato. - Muitas vezes, é difícil diferenciar as causas de hipercortisolismo
ACTH-dependente, pois a doença de Cushing e a secreção
ectópica de ACTH podem ter apresentações clínica e
9. Resumo laboratorial bastante semelhantes;
- O cateterismo de seios petrosos inferiores é o padrão-ouro
Quadro-resumo para diferenciar as etiologias da síndrome de Cushing ACTH-
- A insuficiência adrenal apresenta, frequentemente, quadro dependentes (doença de Cushing x síndrome do ACTH
inespecífico, com reconhecimento atrasado. Entretanto, pode ectópico), mas é invasivo e pode ter complicações (trombose,
ser fatal se não reconhecida e tratada adequadamente; hemorragia). Por isso, o 1º exame nessa situação é o teste com
CRH (ou DDAVP), que parece ser o melhor teste não invasivo
- A maior causa de insuficiência adrenal em países desenvolvidos para essa diferenciação. O cateterismo de seios petrosos fica
é a adrenalite autoimune e, em países de 3º mundo, a reservado para os casos em que o teste com CRH (ou DDAVP)
tuberculose. No nosso meio, a paracoccidioidomicose também não é conclusivo para discriminar a causa da síndrome de
constitui uma causa importante; Cushing;
- Hipercalemia e hiperpigmentação cutâneo-mucosa são - As causas mais comuns de secreção ectópica de ACTH são o
encontradas apenas na insuficiência adrenal primária. carcinoide brônquico (20 a 45%) e o carcinoma pulmonar de
Na insuficiência adrenal secundária, a secreção de pequenas células (20 a 30%); alguns casos também se devem
mineralocorticoides (aldosterona) permanece intacta, pois a um carcinoide de pâncreas (10%) ou timo (10%). Deve-se ter
é regulada pelo eixo renina-angiotensina-aldosterona, e não cuidado ao interpretar a ressonância de hipófise na suspeita de
pelo ACTH hipofisário; doença de Cushing, pois a maioria dos adenomas é pequena
- Níveis de cortisol sérico basal (colhido às 8h da manhã) abaixo (até 5mm) e pode não ser visualizada no exame de imagem.
de 4μg/dL são diagnósticos de insuficiência adrenal, e >16μg/dL Além disso, até 10% dos indivíduos normais podem apresentar
excluem tal possibilidade; uma imagem hipofisária sugestiva de microadenoma, que não
corresponde à doença (“incidentaloma” hipofisário);
- O teste de estímulo com o ACTH sintético (cortrosina) é o exame
de escolha para definir a presença de insuficiência adrenal e - O tratamento de escolha da doença de Cushing é a cirurgia
deve ser realizado quando o cortisol basal é indeterminado transesfenoidal. Nos casos refratários à cirurgia, pode-se
(de 4 a 16μg/dL). O diagnóstico de insuficiência adrenal é usar cetoconazol em altas doses, um inibidor da síntese de
confirmado por um cortisol pós-estímulo <20μg/dL; cortisol;
- Na crise adrenal (hipotensão severa, choque, hipoglicemia, - A HAC é um defeito na esteroidogênese adrenal, que em 90%
hiponatremia, hipercalemia), deve-se repor volume plasmático dos casos se deve à deficiência da enzima 21-hidroxilase,
com grande quantidade de salina, administrar glicose IV, repor causando redução da síntese de cortisol (e aldosterona, em
glicocorticoides (hidrocortisona: 100 a 300mg inicial, depois 50 muitos casos) e síntese aumentada de androgênios adrenais. É
a 100mg IV a cada 6 a 8 horas), instituir medidas de suporte e uma causa comum de pseudo-hermafroditismo feminino;
tratar os fatores predisponentes; - O diagnóstico de HAC é feito pela concentração plasmática
- No tratamento de manutenção da insuficiência adrenal, dá- elevada de 17-alfa-OH-progesterona, em condições basais ou
se preferência ao acetato de cortisona (25mg/dia, em 2 a 3 após estímulo com ACTH;
tomadas) ou à hidrocortisona (12 a 15mg/m2/dia, em 2 a 3 - O hiperaldosteronismo primário é a causa mais comum de
doses). A associação de mineralocorticoides é geralmente hipertensão arterial secundária, presente em 2 a 10% dos
necessária na insuficiência adrenal primária: fludrocortisona, hipertensos. Hipocalemia está presente em cerca de 50% dos
50 a 200mcg/dia, em 2 doses. Mulheres podem ter melhora casos;
da libido com a reposição de andrógenos (DHEA, 50mg/dia);
- O rastreamento de hiperaldosteronismo primário deve ser feito
- A causa mais comum de síndrome de Cushing é o uso em hipertensos jovens, ou refratários, com complicações da
de corticoides exógenos, principalmente as preparações hipertensão ou com hipocalemia espontânea. O rastreamento
sistêmicas, em altas doses ou por tempo prolongado. é feito com a relação aldosterona/renina plasmática, que se
Entretanto, corticoides tópicos também podem causar Cushing, encontra elevada (>20 a 30);
dependendo da dose e tempo de uso;
- Deve-se suspeitar de feocromocitoma em pacientes com
- Das causas endógenas de síndrome de Cushing, a mais comum hipertensão (mantida ou paroxística) que apresentem a tríade
em adultos é o adenoma hipofisário secretor de ACTH (doença clássica cefaleia + palpitações + sudorese, ou na presença
de Cushing). Em crianças, é o carcinoma adrenal; de hipertensão severa, desencadeada por cirurgia/parto, ou
- O diagnóstico laboratorial da síndrome de Cushing é feito em hipotensão postural;
2 etapas: - O diagnóstico de feocromocitoma é feito pela concentração
· Confirmação do hipercortisolismo (usando a dosagem do elevada de catecolaminas ou metanefrinas, na urina de 24
cortisol urinário livre nas 24h, teste de supressão com 1mg horas ou no plasma;
de dexametasona ou dosagem de cortisol sérico ou salivar à
meia-noite) – considera-se confirmado o hipercortisolismo se - Massas adrenais detectadas por acaso em exames de imagem
pelo menos 2 desses 3 testes estão alterados; são os chamados “incidentalomas adrenais”. A causa mais
· Investigação etiológica (que começa com a dosagem do ACTH, comum é o adenoma adrenal. Deve-se suspeitar de malignidade
para diferenciar as causas ACTH-dependentes, mais comuns, se a lesão tem mais de 4 a 6cm de diâmetro ou apresentar
das ACTH-independentes). ACTH >10 a 20pg/mL sugere causa SDHEA elevado. Também se deve afastar hiperfunção, por meio
ACTH-dependente (podendo ser a doença de Cushing ou a da dosagem de cortisol após 1mg de dexametasona, relação
secreção ectópica de ACTH); ACTH <10pg/mL sugere causa aldosterona/renina plasmática e metanefrinas/catecolaminas
ACTH-independente (adenoma ou carcinoma de adrenal); urinárias.

176
CAPÍTULO

14 Doenças das paratireoides


Leandro Arthur Diehl / Rodrigo Antônio Brandão Neto

Nos ossos, o PTH liga-se a receptores específicos nos os-


1. Introdução teoblastos, estimulando a secreção do RANK, o qual se liga ao
As paratireoides são glândulas endócrinas localizadas na seu receptor nos osteoclastos (ligante do RANK, ou RANKL),
região cervical, que desempenham um papel fundamental ativando estes últimos e aumentando a reabsorção de cálcio
na regulação da concentração sérica de cálcio. da matriz óssea para a circulação sanguínea, resultando, em
Para melhor entendimento das disfunções da parati- última instância, no aumento da calcemia. Nos rins, o PTH esti-
reoide (hipoparatireoidismo e hiperparatireoidismo), é ne- mula a reabsorção de cálcio, a excreção de fósforo e a ativida-
cessária uma breve revisão da sua fisiologia e do metabolis- de da 1-alfa-hidroxilase, enzima responsável pela conversão da
mo do cálcio em humanos. 25-OH-vitamina D na forma ativa dessa vitamina, a 1,25-(OH)2-
vitamina D (calcitriol). A 1,25-(OH)2-vitamina D, por sua vez,
2. Metabolismo do cálcio age no intestino, onde aumenta a absorção de cálcio. Assim,
todas as ações do PTH convergem para o aumento da concen-
A concentração sérica de cálcio é mantida dentro de li- tração sérica de cálcio (e redução da fosfatemia).
mites estreitos, devido à sua grande importância em diver-
sos processos fisiológicos. Cerca de 99% do cálcio (e 89% Tabela 1 - Ações biológicas dos principais reguladores do metabo-
do fósforo) do organismo estão armazenados nos ossos. De lismo do cálcio
fato, 65% da massa óssea correspondem aos cristais de cál- Substância Local Ação
cio e fósforo (sendo o restante da massa óssea composto - Forte estímulo à reabsorção ós-
por colágeno – 10% – e água – 25%). O restante do cálcio sea;
corporal está no fluido extracelular e, em pequena quan- - Estímulo leve/moderado à for-
tidade, no meio intracelular. No sangue, 50% do cálcio cir- mação óssea;
culam ligados a proteínas (albumina e globulinas), e 50%, - Aumento da liberação de cálcio
na forma livre (ionizada). A fração de cálcio ionizado é a (e fósforo) para o sangue;
única com importância biológica, por isso sua concentração - Estímulo direto à proliferação e
é rigorosamente mantida na faixa de 5mg/dL, por controle diferenciação de osteoblastos,
hormonal. A concentração de cálcio total, por outro lado, Ossos através de ligação a receptores
específicos nestas células;
pode variar de acordo com diferenças na concentração das
proteínas transportadoras, principalmente a albumina. - Estímulo à produção de RANKL
e M-CSF pelos osteoblastos;
Os órgãos mais importantes na regulação da calcemia
são as paratireoides, os ossos, os rins e o intestino, e as PTH - Estímulo (indireto, via RANKL) à
atividade reabsortiva dos osteo-
substâncias mais importantes na regulação da concentra- clastos;
ção do cálcio no meio extracelular são o paratormônio, a
- Inibição da apoptose dos osteo-
vitamina D e, em menor grau, a calcitonina e a proteína re- blastos e osteoclastos.
lacionada ao PTH (PTHrp). - Aumenta a reabsorção de cálcio
nos túbulos distais;
A - Paratormônio - Reduz a reabsorção de fósforo
Rins
As paratireoides produzem o paratormônio (PTH), um nos túbulos proximais e distais;
hormônio peptídico, composto por 84 resíduos de aminoá- - Aumenta a síntese do calcitriol
cidos, que controla as variações minuto a minuto dos níveis nos túbulos proximais.
de cálcio ionizado no sangue e no fluido extracelular. É o - Aumento da calcemia e redução
Efeito final
da fosfatemia.
mais potente regulador da calcemia em mamíferos.

177
ENDO C RI N O LOG I A

Substância Local Ação B - Vitamina D


- Aumenta a absorção intestinal A vitamina D não é uma verdadeira vitamina, uma vez
Intestino
do cálcio.
que pode ser sintetizada pelo organismo humano, mas sim
- Estimula a diferenciação dos os- um hormônio que auxilia no controle do metabolismo do
Ossos
teoclastos.
Vitamina D cálcio. Sua maior fonte, em nosso meio, é a síntese na pele
- Estimula a reabsorção tubular
(forma ativa: Rins de fósforo. (a partir do 7-dehidrocolesterol) em resposta à exposição
1,25-OH2- à luz solar (radiação ultravioleta), mas uma pequena fra-
vitamina D, Parati reoides - Inibe a secreção de PTH.
ção também pode ser obtida da dieta (principalmente de
ou calcitriol) - Regulação da diferenciação e
Outros proliferação celular e da ativida-
peixes gordurosos, como salmão e bacalhau). É convertida
de do sistema imunológico. em 25-OH-vitamina D pela enzima 25-hidroxilase, no fíga-
- Aumento da calcemia e da fos- do, e, posteriormente, em 1,25-(OH)2-vitamina D (a forma
Efeito final mais ativa, também conhecida como calcitriol) pela enzima
fatemia.
- Inibe a atividade osteoclástica 1-alfa-hidroxilase, nos rins (Figura 1).
Ossos
Calcitonina (reabsorção óssea).
Efeito final - Discreta redução da calcemia.

A secreção de PTH pelas paratireoides é regulada, princi-


palmente, pela concentração de cálcio ionizado no sangue,
que é sinalizada para as células das paratireoides por meio
de um receptor de membrana sensível a cálcio (CaR). Assim,
a hipocalcemia (e também a hiperfosfatemia) estimula a se-
creção rápida do PTH disponível nos grânulos secretórios,
provendo um mecanismo de regulação da calcemia em cur-
to prazo (minuto a minuto).
A hipocalcemia mantida (além de 1 hora) também é
capaz de estimular a transcrição do gene do PTH, a qual
é inibida, por sua vez, pela 1,25-(OH)2-vitamina D – o que
determina um mecanismo adaptativo de alcance temporal
intermediário. Em longo prazo, a hipocalcemia crônica ain-
da estimula a hiperplasia e o crescimento das paratireoides,
que dificilmente é reversível – um mecanismo de adaptação
em longo prazo.
O PTH exerce sua ação nos órgãos-alvo, ligando-se a re-
ceptores na membrana celular, pertencentes à família dos Figura 1 - Metabolismo da vitamina D
receptores ligados à proteína G, e ativando, assim, uma cas-
cata de mensageiros intracelulares, como o AMP cíclico. A forma ativa da vitamina D liga-se, então, ao receptor
A ação do PTH no osso é complexa e depende da con- nuclear da vitamina D (VDR), formando heterodímeros com o
centração do hormônio, do seu padrão temporal (se é ele- ácido retinoico, e provocando o estímulo à absorção de cálcio
vado continuamente ou de forma intermitente) e do tipo e fósforo pelo intestino, a ativação da reabsorção óssea e a
de osso estudado (cortical ou trabecular). A administração regulação da transcrição gênica e da proliferação celular nas
intermitente de baixas doses de PTH, por exemplo, pode le- paratireoides. A enzima 1-alfa-hidroxilase renal é estimulada
var a um aumento significativo da massa óssea trabecular, pelo PTH e pela hipofosfatemia, e inibida pela hipercalcemia
com pouco ou nenhum efeito sobre o osso cortical. É o que e pela própria 1,25-(OH)2-vitamina D (Tabela 1).
ocorre, por exemplo, com a administração de PTH recom- A vitamina D parece ter outras ações importantes além
binante (teriparatida) para tratamento da osteoporose. Por dos seus efeitos reguladores da calcemia e do metabolismo
outro lado, a exposição contínua a concentrações elevadas ósseo. Regula a diferenciação e a proliferação celular nas
de PTH (como no hiperparatireoidismo primário) leva a células hematopoéticas, onde parece ter efeito antineoplá-
uma importante redução da massa óssea cortical, com efei- sico, e inibe a proliferação das células mamárias e querati-
tos variáveis sobre o osso trabecular. nócitos (sendo útil no tratamento da psoríase, na forma do
Curiosamente, fragmentos aminoterminais da molécula seu derivado calcipotriol). A deficiência de vitamina D pare-
do PTH (como o fragmento 1 a 34) apresentam potência bio- ce associar-se a maior risco de algumas neoplasias: prósta-
lógica semelhante à do PTH intacto (1 a 84) e maior meia- ta, mamas e cólon. No tecido neuromuscular, a vitamina D
-vida (algumas horas, comparado a 1 a 2 minutos), o que faz aumenta a força muscular, e sua reposição diminui o risco
que esses fragmentos tenham maior utilidade farmacológica. de quedas e fraturas de fêmur.

178
D O E N Ç A S D A S P A R AT I R E O I D E S

C - Calcitonina A - Etiologia do hiperparatireoidismo primário


A calcitonina é um hormônio produzido pelas células A causa mais comum de hiperparatireoidismo primário
parafoliculares (células C) da tireoide, essencial para a regu- é o adenoma de paratireoide, que pode acometer 1 ou,
lação do cálcio sanguíneo em peixes e roedores, mas com eventualmente, mais glândulas, correspondendo a 75 a
limitada importância em humanos, em quem a deficiên- 90% dos casos. Mutações no braço longo do cromossomo
cia completa de calcitonina (como acontece, por exemplo, 11 (gene menin) foram descritas em 25 a 30% dos adeno-
após tireoidectomia total) não apresenta qualquer efeito mas, e da ciclina D1 em 5%.

ENDOCRINOLOGIA
sobre a calcemia. Liga-se a receptores nos osteoclastos A hiperplasia difusa de paratireoides responde por 10
maduros, onde diminui sua atividade reabsortiva, levando a 20% dos casos, geralmente acomete todas as glândulas
à redução da calcemia, e eleva-se em resposta à hipercalce- e é, com frequência, causada por anormalidades genéticas
mia. Como inibe a reabsorção óssea, a calcitonina pode ser (como a neoplasia endócrina tipo 1 ou tipo 2A e o hiperpa-
usada como agente terapêutico na osteoporose, na doença ratireoidismo primário isolado familiar).
de Paget e na hipercalcemia da malignidade. O carcinoma de paratireoide é outra possível etiologia
(de 0,5 a 1%) e se relaciona a mutações do gene supressor
D - Peptídeo relacionado ao PTH (PTHrp) tumoral HPRT2.
Outro hormônio que pode influenciar a calcemia é o
peptídio relacionado ao PTH (PTHrp), que se liga aos re- B - Epidemiologia
ceptores do PTH e também eleva o cálcio sérico. O PTHrp é O hiperparatireoidismo primário é cerca de 2 a 3 vezes
secretado por alguns tumores neoplásicos e é o responsá- mais comum no sexo feminino e atinge seu pico de incidên-
vel pela hipercalcemia humoral da malignidade; seu papel cia por volta da 6ª década, raramente encontrado antes dos
fisiológico ainda não é totalmente esclarecido, mas parece 15 anos.
ter importância no transporte placentário de cálcio durante Vários relatos da literatura mostram que houve um au-
a vida fetal e na secreção de cálcio no leite durante a ama- mento importante na incidência de hiperparatireoidismo
mentação. primário a partir da década de 1970, quando foram introdu-
zidos métodos laboratoriais mais confiáveis para diagnósti-
3. Hiperparatireoidismo co (dosagem de PTH) e iniciados programas de screening
populacional com dosagem de cálcio plasmático. Desde
Existem 3 diferentes tipos de hiperparatireoidismo: pri- então, houve uma mudança na característica dos casos.
mário, secundário e terciário.
Inicialmente, a maioria dos pacientes com diagnóstico de
A hiperfunção das paratireoides por uma anormalida-
hiperparatireoidismo apresentava manifestações ósseas e/
de intrínseca das glândulas, levando ao excesso de PTH e
ou renais avançadas. Atualmente, observa-se um aumento
à consequente hipercalcemia, é conhecida como hiperpa-
na proporção dos casos oligossintomáticos ou assintomáti-
ratireoidismo primário, que é a causa mais comum de hi-
cos, graças ao screening bioquímico. Estima-se que a forma
percalcemia em pacientes ambulatoriais. A maioria dos
assintomática responda por, praticamente, metade dos ca-
pacientes é assintomática no momento do diagnóstico em
sos de hiperparatireoidismo primário no Brasil.
países desenvolvidos, onde a maior parte dos casos é diag-
nosticada por screening (dosagem de cálcio). No hiperpa-
C - Quadro clínico
ratireoidismo primário, a secreção inapropriadamente alta
de PTH e a hipercalcemia são consequências da redução da As manifestações do hiperparatireoidismo primário são
sensibilidade ao cálcio (elevação do set point de inibição da decorrentes da ação excessiva do PTH sobre os órgãos-alvo
secreção do PTH pela concentração de cálcio) nas glându- e das complicações da hipercalcemia. O excesso de PTH de-
las paratireoides e do aumento da massa das paratireoides. termina, nos rins, aumento da reabsorção de cálcio e redu-
Ocorre 1 caso a cada 500 a 1.000 pessoas. Dentre as endo- ção da reabsorção de fósforo, bem como aumento da sín-
crinopatias, é a 3ª causa mais prevalente depois do diabetes tese de 1,25-(OH)2-vitamina D (e consequente aumento da
mellitus tipo 2 e do hipotireoidismo. absorção intestinal de cálcio e fósforo). Nos ossos, acarreta
A resposta fisiológica (normal) de elevação do PTH, de- aumento da reabsorção, predominantemente em regiões
corrente de uma hipocalcemia preexistente (causada, por ricas em osso cortical.
exemplo, por uma deficiência de vitamina D), configura o Dentre as principais manifestações do hiperparatireoi-
hiperparatireoidismo secundário. dismo, têm-se os sintomas constitucionais atribuíveis à hi-
O hiperparatireoidismo terciário consiste na persistên- percalcemia, as alterações ósseas (decorrentes da reabsor-
cia da secreção exagerada de PTH encontrada no hiperpara- ção exagerada de osso cortical) e as sequelas da hipercal-
tireoidismo secundário, mesmo após a resolução da causa cemia crônica (principalmente sobre os rins). Os casos mais
inicial da hipocalcemia. É causado, na maioria das vezes, graves costumam ser vistos no carcinoma de paratireoide.
pela hiperplasia das paratireoides devida a uma hipocalce- Os sintomas da hipercalcemia incluem letargia, fraque-
mia de longa duração (como insuficiência renal crônica). za muscular, confusão mental, anorexia, náusea, vômitos,

179
ENDO C RI N O LOG I A

constipação, poliúria e polidipsia, e podem evoluir, em ca- O risco de fratura é especialmente aumentado (de 2 a
sos mais severos, para desidratação, nefrolitíase, nefrocal- 3 vezes) em vértebras, costelas e antebraço distal. Todas
cinose, insuficiência renal, hipertensão, arritmias cardíacas, essas alterações podem levar à dor óssea, deformidades
ulcera péptica, pancreatite e até coma. (ossos longos) e incapacidade. A densitometria óssea reve-
Entretanto, casos mais leves de hiperparatireoidismo, la diminuição de massa mineral, principalmente em áreas
ou de instalação mais insidiosa, podem ser completamente ricas em osso cortical, como o rádio distal.
assintomáticos e detectados apenas por exames laborato- A osteoporose também é um achado comum, e não é
riais de rotina, ou então cursar com sintomas leves (oligos- infrequente o diagnóstico de hiperparatireoidismo primá-
sintomáticos). rio quando se detecta hipercalcemia na avaliação de rotina
de uma paciente com suposta osteoporose primária (pós-
a) Doença óssea -menopausa), com hipercalcemia. É recomendável, quando
A doença óssea causada pelo hiperparatireoidismo tam- realizada densitometria óssea em pacientes com possibili-
bém é conhecida como osteíte fibrosa cística. Pode apre- dade de hiperparatireoidismo, que se avalie não só o fêmur
sentar graus variáveis de severidade, desde a simples re- proximal e a coluna vertebral, mas também o terço médio
absorção subperiostal (mais evidenciável à radiografia das do rádio ou o antebraço distal (áreas mais ricas em osso cor-
falanges distais dos dedos e clavícula distal) até a desmi- tical, em geral, mais acometidas no hiperparatireoidismo).
neralização óssea generalizada. Outras características que
b) Acometimento renal
também podem ser observadas são cistos ósseos (geral-
mente múltiplos, acometendo a porção medular central de O acometimento renal no hiperparatireoidismo pode
metacarpos, costelas e pelve), osteoclastomas (ou “tumo- ocorrer de 3 formas diferentes: nefrolitíase, nefrocalcinose
res marrons”, mais encontrados nas mandíbulas, em ossos e diabetes insipidus.
longos e costelas), crânio com imagem radiológica “em sal e A nefrolitíase, causada pela excreção urinária de cálcio
pimenta”, alterações dentárias (erosão e desaparecimento elevada, costuma ser severa, precoce e recorrente, e atin-
da lâmina dura) e fraturas patológicas (Figuras 2 e 3). ge de 10 a 35% dos casos de hiperparatireoidismo primá-
rio (5% das litíases urinárias são provocadas por hiperpa-
ratireoidismo). Os cálculos renais de cálcio são a forma de
apresentação mais comum do hiperparatireoidismo, depois
das formas assintomáticas (pelo menos, em países desen-
volvidos, e, possivelmente, no Brasil). Por isso, é interessan-
te avaliar o cálcio plasmático em todo paciente com nefroli-
tíase, especialmente aqueles com hipercalciúria.
A hipercalcemia crônica pode cursar com depósitos de
cálcio no epitélio tubular renal, acometendo difusamente
os rins, visível à radiografia – é a chamada nefrocalcinose
(Figura 4).

Figura 2 - Aspecto radiográfico das mãos acometidas por osteíte


fibrosa cística (hiperparatireoidismo)

Figura 4 - Radiografia de abdome mostrando calcificações renais


Figura 3 - Aspecto radiográfico de um crânio “em sal e pimenta” bilaterais (nefrocalcinose)

180
D O E N Ç A S D A S P A R AT I R E O I D E S

A hipercalcemia pode, ainda, estar associada a defeito Tabela 2 - Características laboratoriais do hiperparatireoidismo
na habilidade da concentração renal que pode provocar po- primário
liúria e polidipsia em até 20% dos casos, levando a quadro No sangue
de diabetes insipidus nefrogênico. O mecanismo pelo qual - Cálcio alto;
essas alterações ocorrem está relacionado à down-regula- - Fósforo baixo;
tion dos canais de aquaporina-2 e ao depósito de cálcio na - PTH alto (em 90%);
medula renal, com lesão tubulointersticial secundária. A - Acidose metabólica hiperclorêmica (em casos graves);

ENDOCRINOLOGIA
acidose tubular renal distal do tipo 1 também pode ocorrer.
- Ausência de insuficiência renal.
Os pacientes podem, ainda, evoluir até para doença renal
Na urina
terminal (com necessidade de tratamento dialítico), em ca-
sos raros. - Cálcio alto;
- Fósforo alto;
c) Outras manifestações
- AMP cíclico aumentado.
A hipercalcemia crônica, associada à hipofosfatemia,
pode determinar calcificações em vários locais do organis- Na avaliação do cálcio sérico, pode-se dosar o cálcio io-
mo, como os gânglios da base (provocanxdo uma síndrome nizado ou o cálcio total. Entretanto, o cálcio total deve ser
extrapiramidal, conhecida como síndrome de Mohr) e os sempre interpretado juntamente com uma dosagem de
olhos (catarata, ceratopatia). albumina sérica, pois o cálcio diminui 0,8mg/dL para cada
Sintomas gastrintestinais resultam do relaxamento da 1g/dL de albumina abaixo do normal (4g/dL). O PTH geral-
musculatura lisa. Constipação é o sintoma mais comum, e mente está aumentado, mas pode estar normal em até 10%
também podem ocorrer anorexia, náuseas e vômitos. O dos casos.
cálcio estimula a secreção de gastrina, mas a significân- Também se podem observar aumento da excreção de
cia clínica desse achado ainda é indefinida. Sabe-se que AMP cíclico urinário e, nos casos mais severos, acidose me-
pacientes com hiperparatireoidismo têm incidência de 15 tabólica hiperclorêmica. Anemia e aumento de VHS são vis-
a 20% de doença ulcerosa péptica, portanto, muito maior tos em 50%.
que a população normal. Não se sabe se outras situações Exames de imagem, como a ultrassonografia cervical ou
de hipercalcemia são associadas ao aumento de doença a cintilografia com MIBI (99m-Tc), ajudam a localizar a(s)
ulcerosa. Nos pacientes com neoplasia múltipla do tipo paratireoide(s) aumentada(s) para programação terapêuti-
1, com coexistência de hiperparatireoidismo e Zollinger- ca (cirúrgica) (Figura 5).
Ellison, a paratireoidectomia, isoladamente, diminui a
secreção de gastrina; pode ocorrer pancreatite aguda ou
crônica secundária à hipercalcemia, além de outros distúr-
bios funcionais.
A hipertensão arterial é observada em 50% dos pacien-
tes com hiperparatireoidismo. Calcificação difusa do mio-
cárdio, com hipertrofia de ventrículo esquerdo e insufici-
ência cardíaca, também são complicações do hiperparati-
reoidismo e estão associadas ao aumento da mortalidade
por causas cardiovasculares observadas nesses pacientes.
A hipercalcemia pode, ainda, diminuir os potenciais de
ação miocárdica, o que resulta em encurtamento do in-
tervalo QT.
A descrição original do quadro clínico de hiperparati-
reoidismo descreve profunda fraqueza muscular e miopa-
tia, mas a maioria dos pacientes, em séries recentes, se
apresenta apenas com leve fraqueza muscular ou sem sin-
tomas musculares.

D - Avaliação laboratorial
O hiperparatireoidismo cursa com características bio-
químicas típicas: hipercalcemia e hipofosfatemia, associa-
das ao aumento da fosfatúria e da calciúria de 24 horas,
com PTH elevado, na presença de creatinina normal (Tabela Figura 5 - Cintilografia com tecnécio-sestamibi para localização de
2). adenoma de paratireoide

181
ENDO C RI N O LOG I A

E - Diagnóstico diferencial c) Medicações


- Intoxicação por vitamina D; intoxicação por vitamina A;
O hiperparatireoidismo primário é a causa mais comum diuréticos tiazídicos; teofilina; lítio; síndrome leite-álcali.
de hipercalcemia em pacientes jovens e ambulatoriais.
d) Doenças granulomatosas
Em pacientes idosos ou internados, a causa mais co-
- Sarcoidose; tuberculose; paracoccidioidomicose; beriliose;
mum é a hipercalcemia da malignidade. Juntos, o hiperpa- Wegener; Pneumocystis jiroveci.
ratireoidismo e a hipercalcemia da malignidade respondem
e) Outras doenças endócrinas
por 90% dos casos de hipercalcemia. - Hipertireoidismo; insuficiência suprarrenal; feocromocitoma;
Existem vários mecanismos fisiopatológicos para a hi- insulinoma.
percalcemia associada à malignidade. Os mecanismos mais f) Hipercalcemia hipocalciúrica familiar
importantes são os seguintes:
g) Imobilização prolongada
- Humoral (por secreção do PTHrp, nos carcinomas es-
h) Insuficiência renal crônica (com hiperparatireoidismo terciário)
camosos de pulmão, cabeça, pescoço, cérvix, vulva,
pele etc.); i) Causas raras:
- Síndrome de Williams; condrodisplasia metafisária de Jansen.
- Osteolítica local (por reabsorção nos focos ósseos de
mieloma múltiplo ou metástases de câncer de mama);
- Outros mecanismos (raros) secreção tumoral de PTH
ou de calcitriol.

Na avaliação da hipercalcemia, tanto os pacientes com


hiperparatireoidismo primário quanto aqueles com hiper-
calcemia humoral da malignidade apresentam-se com qua-
dro de hipercalcemia + hipofosfatemia; a dosagem de PTH
é útil para diferenciar entre as 2 situações (PTH alto = hi-
perparatireoidismo primário; PTH baixo = hipercalcemia da
malignidade).
A presença de PTH elevado em pacientes com hiper-
calcemia e hipofosfatemia faz o diagnóstico de hiperpara-
tireoidismo primário. As outras únicas possibilidades diag-
nósticas são o uso de lítio ou a hipercalcemia hipocalciúrica
familiar, que evolui com fração de excreção renal de cálcio
menor que 1%. O achado diferenciador, portanto, é a pre-
sença de hipocalciúria relativa. A hipercalcemia hipocalci-
úrica familiar é causada por mutações no receptor sensor Figura 6 - Investigação diagnóstica das hipercalcemias
de cálcio e transmitida por herança autossômica dominante
com 100% de penetrância; os indivíduos afetados podem
F - Tratamento
ser detectados em idade jovem. A única oportunidade de cura definitiva para o hiper-
Hipercalcemia + hipofosfatemia com PTH baixo deve su- paratireoidismo primário, até o momento, é a remoção ci-
gerir hipercalcemia humoral da malignidade. Nesta situa- rúrgica da(s) glândula(s) afetada(s). Em pacientes sintomá-
ção, o ideal é dosar o PTHrp, que deve estar elevado. ticos (com doença óssea, renal ou outras manifestações),
Hipercalcemia com hiperfosfatemia sugere intoxicação portanto, a cirurgia tem uma indicação segura e precisa.
por vitamina D. Por outro lado, PTH elevado com cálcio nor- Porém, em pacientes oligossintomáticos ou assintomáticos,
mal ou baixo podem ser indicativos de hiperparatireoidismo a escolha do tratamento não é tão simples, e o mero acom-
secundário à deficiência de vitamina D, uma situação extre- panhamento clínico pode ser suficiente. Ainda há alguma
mamente comum, especialmente em idosos. A dosagem de polêmica quanto às indicações de cirurgia para o hiperpara-
25-OH-vitamina D ajuda a definir essas últimas condições. tireoidismo assintomático, mas as principais estão listadas
As principais causas de hipercalcemia estão expostas na na Tabela 4. Calciúria >400mg/dia deixou de ser uma indica-
Tabela 3. Um roteiro para investigação diagnóstica das hi- ção para tratamento do hiperparatireoidismo primário as-
percalcemias é apresentado na Figura 6. sintomático, conforme os guidelines mais recentes (2009).
De acordo com os critérios para a indicação de paratireoi-
Tabela 3 - Causas de hipercalcemia
dectomia, cerca de 50% dos pacientes diagnosticados com
a) Hiperparatireoidismo primário hiperparatireoidismo primário não necessitam de cirurgia
- Adenoma; hiperplasia; carcinoma.
no momento do diagnóstico. Entretanto, durante um segui-
b) Hipercalcemia de malignidade mento de 10 anos, observa-se que cerca de 25% desenvol-
- Humoral; osteolítica local. verão 1 ou mais indicações para o tratamento cirúrgico.

182
D O E N Ç A S D A S P A R AT I R E O I D E S

Os pacientes que não forem encaminhados para cirurgia Opções de abordagem cirúrgica nessa situação incluem re-
deverão ser seguidos (inicialmente, a cada 6 meses, depois moção de 3,5 paratireoides; remoção de todas as glândulas
anualmente) com avaliação dos sintomas e dosagem do aumentadas (ao menos, 2) com biópsia de congelação das
cálcio sérico, creatinina e densitometria óssea a cada 1 a 2 demais para avaliar necessidade de exérese e remoção das
anos. Devem ser feitas recomendações para manter hidra- 4 paratireoides com autotransplante de fragmentos de uma
tação adequada, evitar diuréticos, lítio e imobilização pro- das glândulas no antebraço.
longada, e manter uma ingesta normal de cálcio (800mg/ A taxa de cura, em se tratando de profissionais expe-

ENDOCRINOLOGIA
dia). Os pacientes deverão procurar atendimento médico rientes, é acima de 90%, e o risco de complicações é relati-
imediato se apresentarem vômitos ou diarreia, devido ao vamente pequeno: <1% de paralisia de cordas vocais e <4%
risco de agudização da hipercalcemia. de hipoparatireoidismo definitivo.
A redução dos níveis de PTH em 50% ou mais no pós-
Tabela 4 - Indicações para tratamento cirúrgico no hiperparatireoi-
-operatório imediato indica cura, com normalização da
dismo primário
calcemia. Insucesso cirúrgico pode ser explicado por uma
Presença de manifestações clínicas ressecção insuficiente (não reconhecimento de doença em
- Nefrolitíase; outras glândulas) ou a uma paratireoide ectópica (presen-
- Doença óssea evidenciável à radiografia; te em até 20% dos indivíduos). Recorrência (após 6 a 12
- Doença neuromuscular clinicamente evidente; meses de normocalcemia) ocorre em 2 a 16% dos casos e
- Sintomas de hipercalcemia (poliúria, polidipsia, depressão, geralmente se deve à ressecção incompleta ou, raramente,
fadiga); a um 2º adenoma ou um carcinoma. O carcinoma costu-
- Episódio prévio de hipercalcemia severa com risco de vida. ma ser identificado apenas no intraoperatório e cursa com
tumores maiores, hiperparatireoidismo mais severo e alta
Cálcio sérico total acima de 12mg/dL (ou >1mg/dL)
taxa de recorrência (50%), com frequentes metástases para
Taxa de Filtração Glomerular (TFG) estimada abaixo de 60mL/min
pulmões.
Densidade mineral óssea baixa ou em declínio A taxa de insucesso ou recorrência da cirurgia pode ser
- Abaixo de -2,5 desvios-padrão em comparação com adultos reduzida pelo uso rotineiro da cintilografia pré-operatória
jovens do mesmo sexo (score T), em qualquer sítio; com Tc99m-sestamibi, capaz de localizar corretamente a
- Abaixo de -2 desvios-padrão para mesma idade e sexo (score Z); doença em 80 a 90% dos adenomas isolados. A ultrassono-
- Fratura prévia por fragilidade óssea; grafia pré-operatória também pode ser útil para delinear a
- Declínio progressivo da densidade mineral óssea; extensão do procedimento.
- Possivelmente: mulheres na pós-menopausa.
A calcemia deve ser avaliada de 2 a 4x/dia, no pós-ope-
ratório imediato, pois pode haver hipocalcemia transitória
Idade abaixo de 50 anos
pelo aumento abrupto da deposição de cálcio nos ossos
Dúvidas quanto à possibilidade de monitorização adequada (síndrome da fome óssea).
- Paciente deseja o tratamento cirúrgico; Nos casos de sucesso do tratamento, a massa óssea au-
- Acompanhamento clínico em longo prazo difícil ou improvável; menta significativamente: de 5 a 10% no 1º ano em locais
- Doença coexistente que confunda a detecção da progressão do ricos em osso trabecular (vértebras, colo femoral), mas não
hiperparatireoidismo ou contribua para ela. há melhora no osso cortical.

Uma opção terapêutica ainda experimental é o uso de G - Hipercalcemia severa


calcimiméticos, como o cinacalcete, que agem como ago-
nistas no receptor de cálcio das paratireoides, inibindo a se- A hipercalcemia grave (calcemia >14mg/dL ou presença
creção de PTH, normalizando a calcemia em 76% dos casos. de sintomas importantes) deve ser tratada urgentemente
O alendronato pode ser útil para melhorar a massa óssea, para redução rápida do cálcio. A 1ª medida é a hidratação
todavia seu efeito em diminuir a calcemia pode aumentar vigorosa (de 2 a 4L de salina/dia), para promover a calciu-
a secreção do PTH e aumentar os efeitos deletérios deste. rese. A furosemida pode aumentar a excreção de cálcio,
Seu uso, consequentemente, fica restrito a casos seleciona- mas só deve ser usada em pacientes hidratados. Devem-se
dos (como risco cirúrgico elevado). retirar eventuais drogas predisponentes (lítio, tiazídicos).
Bisfosfonatos podem ser úteis por via parenteral (como o
- Cirurgia pamidronato ou o zolendronato, de aplicação IV), podendo
A cirurgia deve, idealmente, remover todas as para- normalizar o cálcio em 2 a 3 dias, mas a duração do seu
tireoides afetadas. Por isso, a extensão da paratireoidec- efeito é variável. Corticoides podem ser úteis na intoxica-
tomia varia conforme o acometimento das glândulas. Na ção por vitamina D, sarcoidose ou neoplasias responsivas a
maioria dos casos, trata-se de um adenoma único, em que corticoides. A diálise está indicada nos casos mais graves. A
a retirada da única paratireoide afetada pode ser suficiente. calcitonina é a medicação que apresenta vantagem de início
Entretanto, quando há múltiplos adenomas, ou hiperplasia rápido (em poucas horas) e pode ser usada no início do tra-
difusa das paratireoides, a remoção deve ser mais extensa. tamento até o início dos efeitos dos bisfosfonatos. Porém,

183
ENDO C RI N O LOG I A

apresenta taquifilaxia, e seus efeitos benéficos duram de 24 Congênita


a 48h, não podendo ser usada isoladamente para tratar a - Síndrome de Di George (gene CATCH22);
hipercalcemia.
- Hipoparatireoidismo autossômico ou ligado ao X;
- Autoimune: isolado ou associado à síndrome poliglandular
4. Hipoparatireoidismo autoimune tipo I (gene AIRE);
O hipoparatireoidismo caracteriza-se pela deficiência - Mutações no gene do PTH;
de secreção ou ação do PTH, acarretando um quadro clí- - Mitocondriopatias;
nico característico: hipocalcemia, hiperfosfatemia, redução - Síndrome de Barakat (gene GATA3).
da 1,25-(OH)2-vitamina D e PTH baixo (Tabela 5). Pode ser Infiltrativa
causado por alteração no desenvolvimento da paratireoide, - Hemocromatose;
destruição das glândulas paratireoides, diminuição de fun-
- Talassemia;
ção da glândula com produção alterada de PTH ou, eventu-
- Doença de Wilson;
almente, resistência à ação do PTH (caracterizando os qua-
dros de pseudo-hipoparatireoidismo). - Metástases;
- Amiloidose.
Tabela 5 - Manifestações do hipoparatireoidismo Pós-ablação tireoidiana com iodo radioativo
Alterações laboratoriais Secreção diminuída de PTH
- PTH baixo; - Hipomagnesemia e hipermagnesemia;
- Hipocalcemia; - Alcalose respiratória;
- Hiperfosfatemia; - Mutações ativadoras do receptor de cálcio (CaR).
- Redução do calcitriol; Resistência ao PTH
- Hipocalciúria; - Hipomagnesemia;
- AMP cíclico urinário diminuído. - Pseudo-hipoparatireoidismo I e II (gene GNAS1).
Alterações fisiopatológicas
- Hiperexcitabilidade neuromuscular. B - Quadro clínico
Alterações clínicas O quadro clínico do hipoparatireoidismo é dominado
- Parestesias, cãibras; pelas manifestações de hiperexcitabilidade neuromuscular
- Tetania; decorrentes da hipocalcemia: parestesias periorais, formi-
- Laringoespasmo; gamentos em mãos e pés, cãibras frequentes e tetanias
- Convulsões;
(espontâneas ou latentes). O quadro de tetania geralmente
é precedido por parestesias, além de ser acompanhado de
- Aumento do intervalo QT e alterações do segmento ST e QRS.
cólicas, vômitos e broncoespasmo, por possível disfunção
autonômica. Crises convulsivas que não respondem ao tra-
A - Etiologia
tamento usual podem ser uma manifestação da hipocalce-
A causa mais comum de hipoparatireoidismo é iatrogêni- mia, especialmente em crianças.
ca (pós-operatório de cirurgia da tireoide ou das paratireoi- Achados clássicos de hipocalcemia, ao exame físico, são
des). O hipoparatireoidismo definitivo ocorre em cerca de os sinais de Chvostek e Trousseau.
1 a 2% das tireoidectomias totais (dependendo, em grande
a) Sinal de Chvostek
parte, da extensão da cirurgia e da experiência do cirurgião),
enquanto um hipoparatireoidismo transitório pode ser ob- A percussão do nervo facial no seu trajeto logo abaixo do
servado em até 15%. Permanência do hipoparatireoidismo arco zigomático e anteriormente ao pavilhão auditivo pro-
por mais de 1 ano sugere que o quadro é definitivo. voca contração ipsilateral involuntária dos músculos faciais
As principais causas de hipoparatireoidismo estão na (“repuxamento” da boca). É menos específico, pois pode ser
Tabela 6. observado em até 10% dos indivíduos normais (Figura 7).

Tabela 6 - Causas de hipoparatireoidismo


Ausência de paratireoides ou de paratormônio
Pós-operatório
- Tireoidectomia;
- Paratireoidectomia;
- Laringectomia;
- Radioterapia cervical. Figura 7 - Sinal de Chvostek

184
D O E N Ç A S D A S P A R AT I R E O I D E S

b) Sinal de Trousseau C - Diagnóstico diferencial


A oclusão da circulação para o membro superior usando O diagnóstico de hipoparatireoidismo caracteriza-se
um manguito insuflado, 20mmHg, acima da pressão arterial pelo achado de hipocalcemia, hiperfosfatemia e PTH dimi-
sistólica durante 3 minutos, desencadeia um espasmo do nuído. A calciúria de 24h e os níveis de AMP cíclico uriná-
carpo, que pode ser muito doloroso: a chamada “mão de rio costumam estar reduzidos. Os níveis de fósforo podem
parteiro” (Figura 8). ajudar a obter o diagnóstico diferencial entre as 2 causas
mais comuns de hipocalcemia: o hipoparatireoidismo (que

ENDOCRINOLOGIA
cursa com fósforo alto) e a deficiência de vitamina D (fós-
foro baixo) que pode cursar com alterações ósseas, conhe-
cidas como raquitismo (na infância) ou osteomalácia (na
vida adulta). É importante lembrar-se de dosar o magnésio
desses pacientes, pois a hipomagnesemia pode levar a um
quadro de resistência à ação do PTH e hipocalcemia.
Em pacientes com hipocalcemia e hiperfosfatemia, mas
com PTH aumentado, o diagnóstico é de pseudo-hipopara-
tireoidismo (resistência ao PTH). Há várias formas de pseu-
Figura 8 - Sinal de Trousseau do-hipoparatireoidismo, algumas das quais cursam com
um conjunto de alterações fenotípicas conhecidas como
A intensidade dos sintomas depende muito da veloci-
osteodistrofia hereditária de Albright (baixa estatura, obe-
dade com que a hipocalcemia se instala. Uma hipocalcemia
sidade, fácies arredondada, braquidactilia do 4º e do 5º me-
abrupta e profunda (como em um pós-operatório de tireoi- tacarpos, atraso neuropsicomotor e hipoplasia dentária). O
dectomia total, com lesão ou remoção de todas as parati- pseudo-hipoparatireoidismo tipo Ia (PHP-Ia) é causado por
reoides) pode levar a um quadro grave de laringoespasmo uma mutação inativadora da proteína G (subunidade alfa
e a convulsões do tipo grande mal e deve ser tratada como estimuladora), mediadora da ação do PTH, com padrão de
uma emergência médica. herança autossômico dominante; o defeito genético res-
Quadros de instalação mais insidiosa podem apresentar ponsável pelas demais formas ainda não é conhecido. As
melhora e piora dos sintomas ao longo de vários meses ou diferentes formas de pseudo-hipoparatireoidismo estão re-
anos. Cronicamente, a presença de hipocalcemia e hiper- sumidas na Tabela 7.
fosfatemia leva a calcificações em vários pontos do organis-
mo, como gânglios da base (levando a uma síndrome extra- Tabela 7 - Características das diferentes formas de pseudo-hipopa-
ratireoidismo (PHP)
piramidal, semelhante à doença de Parkinson) e cristalino
(catarata, em até 50%). Outras manifestações incluem pele Nomenclatura Fenótipo
seca e escamosa, cabelos secos e ásperos, alopecia, unhas Hipocalcemia, osteodistrofia de Albright,
finas e quebradiças, pseudopapiledema e problemas den- resistência a outros hormônios (TSH, LH, FSH,
PHP tipo Ia
tários (hipoplasia de esmalte, cáries, retardo da erupção). glucagon), redução de 50% na atividade da
Podem estar presentes alterações psiquiátricas (depressão, proteína G.
ansiedade, labilidade emocional). Hipocalcemia, sem osteodistrofia de Albright,
Além das alterações laboratoriais (cálcio baixo, fósforo sem resistência a outros hormônios, com
alto, 1,25-(OH)2-vitamina D baixa, PTH baixo ou ausente), PHP tipo Ib atividade normal da proteína G, com
resistência ao PTH nos rins, mas não nos
pode haver alterações eletrocardiográficas: aumento do in-
ossos.
tervalo QT, alterações do segmento ST e QRS (semelhantes
ao infarto) e, raramente, arritmias ventriculares e insufici- Hipocalcemia, osteodistrofia de Albright,
resistência a outros hormônios (TSH, LH, FSH,
ência cardíaca (podendo ser refratária ao tratamento, em PHP tipo Ic
glucagon), com atividade normal da proteína
casos de hipocalcemia severa) (Figura 9). G.
A hipocalcemia tende a piorar durante a gestação, em
Hipocalcemia, sem osteodistrofia de Albright,
pacientes com hipoparatireoidismo prévio.
PHP tipo II sem resistência a outros hormônios, com
atividade normal da proteína G.
Osteodistrofia de Albright, sem hipocalcemia
Pseudo-PHP
ou resistência a outros hormônios.

Deve-se ainda pontuar que condições como deficiência


de vitamina D, insuficiência renal crônica, sepse e pancrea-
tite podem levar também à hipocalcemia.
As diversas causas de hipocalcemia, que devem ser
Figura 9 - Eletrocardiograma de paciente com hipocalcemia por lembradas no diagnóstico diferencial, são apresentadas na
hipoparatireoidismo Tabela 8.

185
ENDO C RI N O LOG I A

Tabela 8 - Causas diversas de hipocalcemia sais de cálcio disponíveis no mercado, o carbonato de cálcio
- Hipoparatireoidismo; é a forma mais utilizada, por ser mais barato e ter uma boa
- Deficiência de vitamina D (baixa exposição solar, baixa ingesta concentração de cálcio elementar (40%, ou 400mg de cálcio
de vitamina D, síndromes disabsortivas, doença hepática ou elementar a cada 1g de carbonato de cálcio). Entretanto, a
renal); absorção do carbonato de cálcio depende da presença de
- Resistência à ação do PTH (pseudo-hipoparatireoidismo, baixo pH no estômago, por isso se recomenda seu uso junto
hipomagnesemia); às refeições. Pessoas com acloridria, em uso de antiácidos
- Uso de medicações: (omeprazol), gastrectomizados ou idosos devem usar prefe-
· Anticonvulsivantes (fenitoína, fenobarbital); rencialmente outros sais, como o citrato ou o lactato de cál-
· Antituberculosos (isoniazida, rifampicina). cio, cuja absorção independe da acidez gástrica. Em casos
- Insuficiência renal crônica; leves de hipoparatireoidismo, a suplementação de cálcio
- Insuficiência hepática;
pode ser suficiente para a normalização da calcemia.
A vitamina D deve ser reposta de preferência na sua for-
- Causas genéticas:
ma ativa, 1,25-(OH)2-vitamina D (calcitriol), pois os pacien-
· Deficiência de 1-alfa-hidroxilase (raquitismo dependente de
vitamina D tipo I); tes apresentam um defeito funcional da 1-alfa-hidroxilase
· Resistência à vitamina D (raquitismo dependente de vitamina renal, por falta de estímulo do PTH, com conversão deficien-
D tipo II). te da 25-OH-vitamina D na 1,25-(OH)2-vitamina D. A dose
- Síndrome da fome óssea; é de 0,5 a 2mcg/dia (de 2 a 8 comprimidos de 0,25mcg),
fracionados em 2 a 3x/dia. O calcitriol tem boa eficácia e
- Uso de quelantes de cálcio (foscarnete, fósforo, EDTA, fluoreto);
baixo risco de intoxicação (por ter curta meia-vida), mas
- Infecção por HIV;
apresenta alto custo. Outra opção seria o uso de vitamina D
- Hipocalcemia transitória neonatal; (ergocalciferol ou colecalciferol) em doses elevadas (25.000
- Pancreatite aguda grave; a 100.000U/dia), que tem menor custo, mas longa meia-
- Doença crítica (choque, sepse grave, queimaduras). -vida, portanto maior risco de intoxicação (hipercalcemia).
Logo, deve-se fazer a monitorização cuidadosa da calcemia
D - Deficiência de vitamina D durante o uso dessas doses elevadas de vitamina D e sus-
pender a medicação quando há hipercalcemia ou sintomas
Atualmente, a deficiência de vitamina D está sendo re-
de intoxicação (anorexia, obstipação, poliúria, polidipsia).
conhecida como uma causa comum de hipocalcemia e os-
Outras drogas potencialmente úteis são os diuréticos
teopenia/osteoporose, principalmente em idosos, pessoas
tiazídicos (que diminuem a excreção urinária de cálcio, sen-
institucionalizadas e em países com baixa exposição solar.
Deve-se suspeitar do diagnóstico de deficiência de vita- do úteis para pacientes que evoluem com hipercalciúria
mina D na presença de elevação leve a moderada do PTH, desproporcional ao nível reduzido do cálcio sérico), o mag-
cálcio normal ou baixo e fósforo normal ou baixo, especial- nésio (em pacientes com hipomagnesemia) e, possivelmen-
mente em idosos. A confirmação do diagnóstico de defici- te, o PTH recombinante humano por via parenteral (uma
ência é feita pela dosagem plasmática de 25-OH-vitamina D. terapia ainda experimental).
Classificam-se os pacientes, conforme a concentração plas- O objetivo do tratamento é manter a calcemia no limite
mática de 25-OH-vitamina D, em plenamente suficientes: inferior da normalidade, evitando a hipercalciúria, e o fós-
>40ng/mL (>100nmol/L); insuficientes: 10 a 20ng/mL (25 foro sérico abaixo de 6mg/dL. Se o cálcio estiver normal,
a 50nmol/L); e deficientes: <10ng/mL (<25nmol/L). Alguns mas o fósforo for mais elevado, deve-se reduzir a ingesta
autores consideram mais adequada a adoção de valores de alimentar de fosfatos ou usar quelantes do fósforo. Deve-se
corte mais altos para a concentração plasmática de vitami- dosar cálcio, calciúria, fósforo, creatinina e albumina men-
na D (30ng/mL), já que abaixo desse valor já parece haver salmente no início do tratamento e, após a compensação, a
aumento da incidência de fraturas. cada 3 a 6 meses. O acompanhamento deve incluir, ainda,
No Brasil, um estudo recente realizado na cidade de São ultrassonografia de rins e vias urinárias a cada 1 a 2 anos
Paulo (Saraiva et al., 2007) demonstrou prevalência de hi- para a detecção de nefrolitíase.
povitaminose D (valores <20ng/mL) igual a 71% entre ido-
sos institucionalizados, e 44% entre idosos ambulatoriais, F - Hipocalcemia aguda
uma frequência extremamente alta. A hipocalcemia aguda sintomática ou com cálcio sérico
total <7,5mg/dL é uma emergência médica e deve ser pron-
E - Tratamento tamente tratada com reposição de cálcio por via parenteral
O tratamento crônico do hipoparatireoidismo é baseado (gluconato de cálcio IV). A dose é de 1 a 2 ampolas de 10mL
na reposição de cálcio e vitamina D, muitas vezes sendo ne- de gluconato de cálcio a 10% (contendo, cada uma, 90mg de
cessárias doses elevadas. cálcio elementar), diluídas em 100 a 200mL de soro glicosa-
A dose de manutenção do cálcio é em torno de 1,5 a 3g do ou fisiológico, aplicados em 10 a 20 minutos. A seguir,
de cálcio elementar por dia, em doses fracionadas, VO. Dos inicia-se reposição oral com carbonato de cálcio e instala-se

186
D O E N Ç A S D A S P A R AT I R E O I D E S

infusão IV contínua de cálcio, na dose de 45 a 100mg/hora - O tratamento do hipoparatireoidismo é feito com reposição de
por várias horas (em geral, 10 ampolas de gluconato de cál- cálcio e vitamina D (preferencialmente, na sua forma ativa: cal-
cio a 10% em 900mL de soro glicosado a 5%, na velocidade citriol, ou 1,25-(OH)2-vitamina D3), muitas vezes em altas doses;
de 50 a 100mL/h), até que a reposição oral seja efetiva e os - A deficiência de vitamina D é extremamente comum em idosos,
atingindo 44% dos idosos ambulatoriais e 71% dos idosos insti-
sintomas cessem. Magnésio deverá ser reposto por via IV tucionalizados em um estudo brasileiro;
se estiver muito baixo (<1mEq/L), na dose de 16 a 48mEq - Diagnostica-se deficiência de vitamina D na presença de con-
a cada 24h (uma ampola de sulfato de magnésio contém

ENDOCRINOLOGIA
centrações plasmáticas de 25-OH-vitamina D <20ng/mL (ou
98mg de magnésio, ou 8,1mEq). <30ng/mL, segundo alguns autores);
- Hipocalcemia sintomática ou valores de cálcio total <7,5mg/dL
5. Resumo constitui uma emergência médica. Deve ser feito o tratamento
imediato, com infusão IV de cálcio.
Quadro-resumo
- O PTH e a vitamina D são os principais reguladores do meta-
bolismo ósseo e da concentração plasmática de cálcio, que é
rigidamente controlada;
- O hiperparatireoidismo primário é a causa mais comum de
hipercalcemia em pacientes ambulatoriais;
- Pacientes com hipercalcemia e PTH aumentado, com fósforo
normal ou baixo, na presença de creatinina normal, apresen-
tam hiperparatireoidismo primário;
- O hiperparatireoidismo primário é assintomático na maioria
dos casos em países desenvolvidos, em razão do uso rotineiro
de screening com dosagem de cálcio sérico em indivíduos sem
sintomas;
- Entre os possíveis sintomas do hiperparatireoidismo, incluem-
-se as manifestações clínicas inespecíficas da hipercalcemia
(poliúria, polidipsia, fraqueza muscular, letargia, até torpor e
coma em casos mais severos), bem como as alterações ósseas
(osteíte fibrosa cística, osteoporose), renais (nefrolitíase, nefro-
calcinose, diabetes insipidus nefrogênico), neuropsiquiátricas e
gastrintestinais;
- A maior causa de hiperparatireoidismo primário é o adenoma
único de paratireoide (cerca de 80% dos casos);
- O melhor tratamento para o hiperparatireoidismo primário é
cirúrgico, com cura em mais de 90% dos casos, indicado para
todos os pacientes sintomáticos;
- As indicações cirúrgicas para o hiperparatireoidismo primário
assintomático incluem:
· Presença de sintomas (nefrolitíase, doença óssea, hipercalcemia
grave sintomática, fratura prévia por fragilidade);
· Valores de cálcio sérico total acima de 12mg/dL ou mais que
1mg/dL acima do limite superior da normalidade;
· Clearance de creatinina abaixo de 60ml/min/1,73m2;
· Presença de osteoporose em qualquer sítio;
· Pacientes com menos de 50 anos de idade;
· Impossibilidade de seguimento clínico cuidadoso.
- O hipoparatireoidismo apresenta-se com hipocalcemia,
hiperfosfatemia e PTH reduzido ou ausente. Hipocalcemia com
fósforo baixo sugere deficiência de vitamina D. Hipocalcemia
com hiperfosfatemia e PTH normal ou alto sugere pseudo-
hipoparatireoidismo (resistência ao PTH);
- A causa mais comum de hipoparatireoidismo é iatrogênica
(cirurgias da tireoide ou das paratireoides). Hipoparatireoidismo
definitivo acontece em 1 a 2% das tireoidectomias;
- As principais manifestações da hipocalcemia decorrem do
aumento da excitabilidade neuromuscular: parestesias, cãi-
bras e tetania, incluindo os sinais de Trousseau e Chvostek.
Laringoespasmo e convulsões podem estar presentes em casos
severos;

187
ENDOC RI N O LOG I A

CAPÍTULO

15 Osteoporose
Leandro Arthur Diehl / Rodrigo Antônio Brandão Neto

Outro motivo que leva a osteoporose ser considerada


1. Definição um problema de saúde pública é o fato de o custo associado
O esqueleto é essencial para a vida terrestre, e o ser hu- às fraturas osteoporóticas ser elevado; dados recentes reve-
mano adquiriu, durante o processo evolutivo, ossos leves que lam custo anual direto de 18 bilhões de dólares. Entretanto,
proporcionam rapidez, mobilidade e força suficientes para evi- menos de 25% das mulheres que já sofreram uma fratura
tar fraturas, exceto nos traumas mais graves. Com o aumento por osteoporose estão recebendo tratamento apropriado.
da idade, ocorrem declínio da função neuromuscular e fraque-
za óssea em ambos os sexos (principalmente nas mulheres, 3. Fisiopatologia
após a menopausa), aumentando o risco de fraturas.
Durante muitos anos, a osteoporose foi definida como
uma redução da massa óssea total do esqueleto, que, no A - Introdução
entanto, era qualitativamente normal. Mais recentemente, O esqueleto é formado por 2 tipos de ossos: cortical e
o consenso do National Institutes of Health definiu a oste- trabecular.
oporose como uma doença associada à fragilidade do es- O osso cortical é denso, compacto, localizado na super-
queleto ósseo, caracterizada por diminuição da densidade fície dos ossos, e constitui cerca de 80 a 85% do esqueleto.
óssea (definida por um índice T menor que -2,5 Desvios- Sua principal função é fornecer força mecânica e proteção.
Padrão (DP) à densitometria óssea), com deterioração mi- O trabecular (ou esponjoso), por outro lado, localiza-se
croarquitetural e risco aumentado de fraturas. na porção interna dos ossos chatos e longos e apresenta
função metabólica, fornecendo suprimento mineral em
2. Epidemiologia estados de hipocalcemia. Alguns sítios são especialmente
ricos em osso trabecular, como a coluna vertebral (65% de
A osteoporose é o distúrbio osteometabólico mais co- osso trabecular). Por ser metabolicamente ativo, sua perda
mum e acomete mais de 200 milhões de mulheres em todo em estados como hipogonadismo e menopausa ocorre pre-
o mundo e cerca de 10 milhões no Brasil. Atinge cerca de cocemente e de maneira mais intensa em comparação com
25% das mulheres brancas com mais de 50 anos (em São o osso cortical.
Paulo), com sua prevalência aumentando ainda mais com a Dois fatores diferenciam a osteoporose de outras do-
progressão da idade. enças osteometabólicas: a diminuição de massa óssea e a
A prevalência crescente de osteoporose é acompanha- ruptura da microarquitetura normal.
da do aumento paralelo no número de fraturas. Dados do
Reino Unido mostram que o risco de fraturas começa a au- B - Mecanismos de perda óssea
mentar após os 55 anos (no sexo feminino) ou após os 65
anos (no sexo masculino), faixa etária em que a incidência a) Introdução
de fraturas ultrapassa 1% ao ano. A redução da densidade Quando ocorre desequilíbrio entre a formação e a reab-
mineral óssea evolui, muitas vezes, sem apresentar sinto- sorção óssea (seja por hiperatividade dos osteoclastos, seja
mas, mas aumenta em cerca de 2 vezes o risco de desenvol- por disfunção dos osteoblastos), ocorre perda de massa mi-
vimento de fraturas, acarretando grande morbidade e au- neral óssea, levando à osteoporose.
mento da mortalidade em médio prazo. Um idoso com fra- A densidade óssea diminuída pode acontecer tanto por
tura de colo de fêmur apresenta uma mortalidade de 25% reabsorção óssea aumentada (principal achado na osteo-
ao ano, em média. No Brasil, acredita-se que a osteoporose porose pós-menopausa), como por alterações no pico de
seja indiretamente responsável pela morte de 40.000 bra- formação óssea (causando maior risco de osteoporose na
sileiros ao ano. vida adulta). O pico de formação óssea é atingido no início

188
OSTEOPOROSE

da vida adulta (por volta dos 20 aos 30 anos) e está relacio- tando a reabsorção óssea. Deficiência nutricional de vitami-
nado, principalmente, a fatores genéticos (responsáveis por na D é um problema comum em idosos, colaborando para a
60 a 80% da variação do pico entre diferentes indivíduos), perda de massa óssea nessa faixa etária. A perda de massa
mas existem ainda fatores ambientais, como a ingestão de óssea relacionada com a idade começa a ocorrer na 4ª ou
cálcio na adolescência e o nível de impacto sobre o esque- na 5ª décadas, lenta e gradualmente.
leto (atividade física). A reabsorção óssea aumentada, por Nas mulheres, geralmente estão presentes ambos com-
outro lado, leva à osteoporose, com perda de osso trabecu- ponentes (baixa e alta remodelação), o que dificulta a ca-

ENDOCRINOLOGIA
lar e porosidade cortical. racterização do fator predominante.
b) Osteoporose de alta remodelação
O termo osteoporose de alta remodelação é usado para
4. Classificação
descrever pacientes que apresentam aumento da reabsor- A osteoporose pode ser classificada, de acordo com sua
ção óssea como fator etiológico predominante. etiologia, em causas primárias ou causas secundárias (con-
O principal exemplo de osteoporose de alta remodela- sequentes a outras patologias).
ção é a osteoporose pós-menopausa, cujo mecanismo fisio- Entre as causas primárias, a mais importante é a osteo-
patológico relaciona-se à deficiência estrogênica. Porém, há porose involucional, provocada pelo envelhecimento, que é
evidências de que outro fator seja o aumento de citocinas representada pela osteoporose pós-menopausa (que atin-
indutoras da reabsorção óssea, como IL-1, IL-6 e TNF, assim ge exclusivamente mulheres, geralmente após os 50 anos)
como o aumento da produção de prostaglandinas. Nessas e pela osteoporose senil (que acomete mulheres e homens,
pacientes, aumenta a relação RANKL/OPG, levando ao pre- na proporção de 2 a 3:1, geralmente com mais de 70 anos).
domínio da atividade osteoclástica e, consequentemente, à Outras formas de osteoporose primária incluem a osteopo-
perda de massa óssea. rose idiopática (osteoporose juvenil, osteoporose do adulto
A deficiência estrogênica também está associada à dimi- jovem).
nuição da produção de fatores que estimulam a formação A osteoporose secundária pode ser provocada por di-
óssea, como o IGF-1 e o fator de crescimento beta (TGF- versos distúrbios, como os endocrinológicos, hematopoé-
beta). Outros possíveis fatores envolvidos incluem aumento ticos, reumatológicos, erros inatos do metabolismo, síndro-
da sensibilidade aos efeitos do PTH no osso, diminuição de mes disabsortivas, doenças renais, transtornos nutricionais,
produção de vitamina D e alteração da reabsorção tubular imobilização, neoplasias e uso de medicamentos (Tabela 1).
de cálcio. A forma mais comum de osteoporose secundária é a
Os efeitos de perda óssea associada à deficiência es- medicamentosa, decorrente do uso de glicocorticoides em
trogênica ocorrem, principalmente, nos primeiros 10 anos doses suprafisiológicas. A osteoporose induzida por corti-
pós-menopausa. A perda de massa óssea normal (após a coides atinge de 30 a 50% dos usuários crônicos dessas me-
obtenção do pico de massa óssea) é de cerca de 0,3 a 0,5% dicações em doses a partir de 5mg/dia de prednisona (ou
ao ano. Nos primeiros anos após a menopausa, essa perda equivalente), com alta frequência de fraturas vertebrais, já
é acelerada e chega a 2 a 4% ao ano (principalmente no a partir dos primeiros 3 a 6 meses de uso. O efeito dos glico-
osso trabecular). corticoides se dá, principalmente, pela redução acentuada
Tipicamente, o risco de fratura em punho (fratura de e rápida da formação, associada a aumento da reabsorção.
Colles) já se apresenta com significativo aumento nos pri- A diminuição da formação óssea ocorre por ação direta nos
meiros 10 anos pós-menopausa. Já o risco de fratura ver- osteoblastos, inibição da produção de IGF-1 e de testoste-
tebral começa a elevar-se mais tardiamente, cerca de 15 a rona, além do aumento da apoptose dessas células. Já o au-
20 anos após a menopausa, enquanto o risco de fratura de mento de reabsorção óssea acontece por efeito direto e por
quadril se eleva após os 70 anos. diminuição da secreção de androgênios e estrogênios, e da
absorção intestinal do cálcio. O efeito negativo dos corticoi-
c) Osteoporose de baixa remodelação des sobre o osso é dose-dependente, mas mesmo corticoi-
O termo osteoporose de baixa remodelação refere-se des inalatórios estão associados ao aumento do risco de fra-
aos pacientes em que a diminuição da formação óssea pre- turas (quando usados de forma crônica). Aparentemente, o
domina como fator determinante da perda de massa óssea. risco é menor com o uso de fluticasona e de budesonida
A osteoporose senil é um exemplo desse tipo de os- inalatórias, em comparação com a beclometasona. Após a
teoporose. Observa-se nos pacientes uma diminuição da descontinuação de corticosteroides em uso crônico, pode
atividade osteoblástica com a idade, acarretando um dese- haver o aumento importante da densidade óssea. Contudo,
quilíbrio entre a atividade osteoblástica (bastante reduzida) em pacientes com síndrome de Cushing prolongada, o au-
e a osteoclástica e, consequentemente, um predomínio da mento da densidade óssea só acontece cerca de 6 meses
reabsorção e perda de massa óssea. Também há diminuição após a correção do hipercortisolismo.
da capacidade renal em produzir a 1,25(OH)D3 (forma ativa A deficiência de vitamina D é outra causa secundária im-
de vitamina D), com diminuição da absorção intestinal de portante de osteoporose secundária, sendo extremamente
cálcio e elevação (secundária) da secreção de PTH, aumen- comum em idosos. Embora anteriormente se pensasse que

189
ENDOC RI N O LOG I A

esse fosse um problema de idosos institucionalizados ou Medicamentos


com pouca mobilidade, morando em latitudes altas, por- - Glicocorticoides;
tanto, com pouca exposição solar, estudos mais recentes
- Anticonvulsivantes;
demonstram que mesmo idosos hígidos e ativos, com boa
exposição solar, apresentam alta prevalência de deficiência - Levotiroxina;
de vitamina D (até 44%, conforme um estudo brasileiro). - Heparina;
- Imunossupressores;
Tabela 1 - Causas de osteoporose secundária
- Lítio;
Doenças endocrinológicas
- Quimioterapia.
- Hipogonadismo;
Outros
- Hiperparatireoidismo;
- Anorexia nervosa;
- Hipercortisolismo (Cushing);
- AIDS;
- Hipertireoidismo;
- Imobilização prolongada;
- Deficiência de GH;
- Paralisia cerebral;
- Acromegalia;
- Síndrome de Turner;
- Hiperprolactinemia.
- DPOC;
Doenças hematológicas
- Gravidez.
- Mieloma múltiplo;
- Linfoma;
- Leucemia;
5. Fatores de risco
- Anemia falciforme;
- Doença de Gaucher; A - Para desenvolvimento de osteoporose
- Mastocitose. O principal fator de risco de desenvolvimento de osteo-
Doenças reumatológicas porose é a história familiar. De 60 a 70% das mulheres que
- Artrite reumatoide; desenvolvem osteoporose descendem de mães com histó-
- Lúpus eritematoso sistêmico; ria clínica de fraturas vertebrais ou de colo de fêmur.
- Espondilite anquilosante. Os fatores genéticos são pouco conhecidos e incluem
variações do gene do receptor da vitamina D, de receptores
Erros inatos do metabolismo
estrogênicos, do pró-colágeno, entre outros.
- Síndrome de Marfan;
Mulheres após os 50 anos apresentam risco de fratura
- Osteogenesis imperfecta;
vertebral ou de quadril 3 vezes maior e de fratura de pu-
- Homocistinúria; nho 6 vezes maior que os homens da mesma faixa etária. As
- Síndrome de Ehlers-Danlos. caucasianas e as asiáticas apresentam risco maior do que as
Síndromes disabsortivas negras e as hispânicas, pois estas desenvolvem maior pico
- Doença celíaca; de massa óssea e têm menor perda na pós-menopausa.
- Doença de Crohn;
Tabela 2 - Principais fatores de risco para o desenvolvimento de
- Pós-gastrectomia ou cirurgia bariátrica;
osteoporose
- Colestase;
- Sexo feminino;
- Hemocromatose;
- Idade avançada (>65 anos);
- Nutrição parenteral.
- Caucasianos e asiáticos;
Doenças renais
- História familiar de osteoporose ou fraturas;
- Insuficiência renal crônica (osteodistrofia renal);
- História pessoal de fratura prévia;
- Acidose tubular renal;
- Hipogonadismo;
- Hipercalciúria.
- Menopausa precoce (<45 anos);
Transtornos nutricionais
- Puberdade tardia;
- Deficiência de vitamina D;
- Amenorreia prolongada;
- Deficiência de cálcio;
- IMC <19kg/m2 ou peso <55kg;
- Osteomalácia;
- Tabagismo;
- Desnutrição proteica;
- Etilismo;
- Alcoolismo.
- Dieta pobre em cálcio;

190
OSTEOPOROSE

- Deficiência de vitamina B12; ao ano, e essa alta porcentagem se relaciona à imobilidade


- Sedentarismo; (idosos acamados). Portanto, todos os pacientes com fra-
- Imobilização prolongada. tura de quadril devem ser avaliados quanto à presença de
osteoporose.
B - Para fraturas na pós-menopausa
Os fatores de risco para desenvolvimento de fraturas 7. Avaliação diagnóstica

ENDOCRINOLOGIA
em mulheres na pós-menopausa foram estabelecidos pela Há vários métodos utilizados para a avaliação da massa
National Osteoporosis Foundation (Tabela 3). A despeito óssea: densitometria por raio x de dupla energia (DEXA),
dos vários fatores de risco mencionados não relacionados tomografia computadorizada, ressonância magnética, ul-
ao desenvolvimento de osteoporose (risco aumentado de trassom, radiografia simples e biópsia óssea. No entanto,
quedas por demência, alterações visuais etc.), essa doença somente a densitometria óssea é indicada para o diagnós-
está presente no contexto da maioria dos fatores de risco. tico de osteoporose, pois é um método sensível, preciso,
Tabela 3 - Fatores de risco para fraturas em mulheres menopausa-
rápido e seguro.
das (National Osteoporosis Foundation)
- História pessoal de fraturas na vida adulta*;
A - Densitometria mineral óssea
- História de fratura de fragilidade em parente de 1º grau*; A técnica é baseada na atenuação, pelo corpo do pa-
- Índice de massa corporal diminuído (<19kg/m )*; 2 ciente, de um feixe de radiação gerado por uma fonte de
- Tabagismo*; raio x com 2 níveis de energia. Tal feixe atravessa o indi-
- Uso de corticoterapia oral por mais de 3 meses*; víduo no sentido posteroanterior, sendo captado por um
- Fatores de risco adicionais;
detector. Um software calcula a densidade de cada amostra
a partir da radiação que alcança o detector em cada pico
- Alteração de visão;
de energia. O tecido mole (gordura, água, músculos, órgãos
- Menopausa precoce (<45 anos)*;
viscerais) atenua a energia de forma diferente do tecido ós-
- Demência;
seo, permitindo a construção de uma imagem da área a ser
- Estado de saúde debilitado/fragilidade física; estudada.
- História recente de quedas; O exame fornece o valor absoluto da DMO da área es-
- Baixa ingesta de cálcio durante a vida*; tudada, em g/cm2. Embora “densidade” seja uma medida
- Sedentarismo*; volumétrica e a DMO seja o resultado do conteúdo mine-
- Uso regular de bebida alcoólica (>2 doses/dia)*. ral ósseo dividido pela área e não pelo volume de osso, há
* Fatores associados também a maior risco de osteoporose. grande correlação entre a densidade pela área e a densida-
de volumétrica, medida por tomografia computadorizada.
6. Manifestações clínicas O laudo também fornece o número de DP do resulta-
do da DMO do paciente, comparado à média da DMO de
A osteoporose não apresenta manifestações clínicas, adultos jovens do mesmo sexo, população que representa
até que ocorra fratura determinando dor óssea. Entretanto, o pico de massa óssea. O número de DP comparado à média
muitos pacientes atribuem, erroneamente, quadros de do- de jovens do mesmo sexo é chamado de T-escore. O valor
res em regiões ósseas e articulares à osteoporose. A osteo- de T-escore é o parâmetro utilizado para definir o diagnós-
malácia, por outro lado, pode causar dor, mesmo na ausên- tico de osteoporose (T-escore <2,5DP), segundo os critérios
cia de fratura. da Organização Mundial de Saúde, em mulheres pós-meno-
As fraturas mais comuns na osteoporose são as verte- pausa e homens com >50 anos (Tabela 4).
brais, assintomáticas em mais de 2/3 dos casos. A presença Para cada DP abaixo da média, eleva-se de 1,5 a 3 ve-
de tais fraturas indica risco aumentado de novos episódios, zes (em média, 2 vezes) o risco de fraturas osteoporóticas,
com 19% dos pacientes apresentando nova fratura verte- dependendo do sítio ósseo analisado (Tabela 5). Em geral,
bral no período de 1 ano. Como consequência, os indiví- indivíduos com osteopenia apresentam um aumento de 4
duos podem apresentar deformidades de coluna vertebral, vezes no risco de fraturas, enquanto pacientes com oste-
como cifose torácica, com perda de altura que pode ser sig- oporose apresentam risco 8 vezes maior. Mais de 90% dos
nificativa. Variações com altura maior que 1cm indicam a indivíduos com fraturas aos mínimos traumas ou atraumá-
possibilidade de fraturas vertebrais. ticas têm valores de DMO abaixo de -2,5DP da média de
Entretanto, as consequências mais graves da osteoporo- adultos jovens. Cerca de 70% da resistência óssea total é
se são as secundárias às fraturas de quadril. Pacientes ido- determinada pela DMO. Portanto, o valor do T-escore da
sos com fratura de colo de fêmur têm mortalidade de 25% DMO é o melhor indicador isolado para risco de fratura.

191
ENDOC RI N O LOG I A

Tabela 4 - Interpretação dos resultados da densitometria, usando


os valores do T-escore
Diagnóstico T-escore
Normal >-1DP
Osteopenia Entre -1 e -2,5DP
Osteoporose <-2,5DP
Osteoporose
<-2,5DP, com presença de fratura
estabelecida

Tabela 5 - Risco relativo de fratura quando há redução de 1DP no


T-escore
Local da Risco de fratura Figura 1 - Exemplo de laudo de densitometria mineral óssea da co-
Risco de fratura de fêmur
DMO vertebral luna lombar, demonstrando osteoporose (T-escore -2,7 em L2-L4)
Colo do
2,6 1,8 A análise do fêmur proximal envolve a medida de DMO
fêmur
Coluna em 3 regiões: colo do fêmur, trocânter maior e a região do
1,6 2,3 triângulo de Wards. Contudo, a área de Wards não pode ser
vertebral
Rádio distal 1,8 1,7 usada para o diagnóstico de osteoporose, pois superestima
o percentual esperado de indivíduos osteoporóticos.
A avaliação da DMO do antebraço é realizada, principal-
Já o Z-escore (Z-escore) é o número de DP em relação à
mente, nos pacientes com hiperparatireoidismo primário,
média esperada para o mesmo sexo e a mesma faixa etá-
pois a perda óssea tende a afetar, predominantemente, o
ria do paciente. Representa outro parâmetro de interesse,
particularmente nas osteoporoses secundárias a doenças osso cortical. Este pode ser avaliado de forma sensível na
crônicas ou ao uso crônico de medicamentos que afetam diáfise do rádio, e a avaliação deve ser usada também em
a massa óssea. Em crianças, adolescentes, mulheres na pacientes com antecedentes familiares de fratura de Colles
pré-menopausa e homens com menos de 50 anos, o uso (rádio distal), pois o fator genético é muito importante nes-
do Z-escore também é preferível. Considera-se normal o se tipo de fratura.
Z-escore maior que <2DP. A presença de Z-escore abaixo Algumas condições clínicas e artefatos podem prejudi-
de -2,5DP reflete uma perda aproximada de 30% da massa car o exame, como realização de exames radiológicos con-
óssea. trastados, exames de Medicina Nuclear, próteses e grampos
Os locais mais investigados pela densitometria óssea metálicos de sutura (staples) na área do exame, grandes
são a coluna lombar (PA e perfil) e o colo do fêmur. O ante- deformidades vertebrais, doença osteodegenerativas (os-
braço distal, o calcâneo e, eventualmente, o corpo inteiro teoartrose tanto em coluna quanto em fêmur), obesidade,
(verificando a composição corporal) podem ser investiga- calcificações de tecidos moles adjacentes ou na projeção da
dos. Pelo menos 2 sítios diferentes devem ser avaliados área de interesse, antecedente de fraturas, ascite e impos-
no exame de DMO. Na presença de valores de T-escore sibilidade de posicionamento adequado. Em particular, na
discordantes, o diagnóstico leva em conta o valor mais bai- osteoartrose, a densitometria pode apresentar alteração
xo de T-escore. significativa, sendo que os índices podem estar falsamente
O exame da coluna lombar em posição posteroante- elevados, e a realização do exame em posição lateral mini-
rior avalia o segmento de L1 a L4 e é o que apresenta miza o problema.
melhor sensibilidade para a monitorização terapêutica A densitometria óssea por DEXA é o padrão-ouro no
(Figura 1). O exame da coluna lombar na projeção la- diagnóstico da osteoporose e o critério que define a pre-
teral permite que se excluam as estruturas posteriores sença de osteoporose pelo consenso do NIH, servindo para
dos corpos vertebrais, minimizando os efeitos soma- a avaliação do risco de fraturas e para o acompanhamento
tórios da doença osteodegenerativa sobre a densida- da evolução da doença. Os melhores sítios para diagnóstico
de mineral óssea. Porém, a dificuldade de posicionar e acompanhamento de osteoporose parecem ser a coluna
o paciente, além das deformidades torácicas comuns lombar e o fêmur total.
aos idosos, faz que a reprodutibilidade do exame seja Em pacientes com osteoporose diagnosticada pela
questionável. Dados tais motivos, o exame lateral não é DEXA, que iniciam tratamento, a densitometria pode ser
realizado na maioria dos centros para o diagnóstico de repetida em 1 a 2 anos para avaliar o ganho de massa óssea
osteoporose. obtido com a terapêutica.

192
OSTEOPOROSE

B - Outros exames de imagem Tabela 6 - Exames mínimos para investigação laboratorial de os-
teoporose
a) Ultrassonografia Osteoporose sem fratura prévia
A ultrassonografia também pode ser utilizada para de- - Hemograma;
terminar a densidade óssea. Em particular, a ultrassonogra- - Creatinina;
fia de calcâneo pode ser usada para avaliar o risco de fra- - Cálcio;
tura, pois essa região é composta, principalmente, de osso

ENDOCRINOLOGIA
- Calciúria de 24h.
trabecular. O exame é de baixo custo e poderia servir para Osteoporose com fratura prévia
seleção de pacientes a serem submetidos à densitometria - Hemograma;
óssea. Porém, não deve ser aplicado para o diagnóstico de
- Creatinina;
osteoporose.
- Cálcio;
b) Raio x - Fósforo;
A radiografia óssea apresenta pouca sensibilidade para - Calciúria de 24h;
o diagnóstico de osteoporose, revelando a perda quando - 25-OH-hidroxivitamina D;
esta já é maior do que 30 a 50%. No entanto, é o método de - TSH;
escolha para a verificação de fraturas e/ou deformidades, - Fosfatase alcalina;
por ser simples e acessível. E redução de 20% ou mais na
- Eletroforese de proteínas;
altura de um corpo vertebral pode ser considerada fratura.
- Testosterona (no sexo masculino).
c) TC e RM
b) Marcadores bioquímicos
A Tomografia Computadorizada (TC) e a Ressonância
Os marcadores bioquímicos não têm importância fun-
Magnética (RM) não são indicadas rotineiramente para o
damental no diagnóstico da osteoporose, mas podem ser
rastreamento diagnóstico de osteoporose, pois são méto-
úteis para o seguimento dos pacientes e avaliação da efi-
dos de acesso limitado, têm custo elevado e a TC submete
cácia do tratamento. Os marcadores são subdivididos em:
o paciente a níveis elevados de radiação. No entanto, são
- Marcadores de formação óssea: refletem a atividade
úteis na caracterização de fraturas e na avaliação de com- dos osteoblastos;
prometimento neurológico. Com a TC quantitativa, pode-se
prever o risco de fraturas da coluna lombar, de modo seme-
- Marcadores de reabsorção óssea: refletem a atividade
dos osteoclastos.
lhante à densitometria.
Normalmente, como o processo de formação é estreita-
C - Avaliação laboratorial mente ligado ao de reabsorção, seus níveis estão em equi-
líbrio durante o intervalo entre a 3ª e a 5ª décadas de vida
a) Rotina (quando o tecido ósseo está em equilíbrio).
Na avaliação de um paciente com osteoporose, sempre Os marcadores bioquímicos são preditores de perda ós-
se devem descartar causas secundárias potencialmente tra- sea e, por esse motivo, podem ser usados para verificar o
táveis. Por isso, recomenda-se a coleta dos exames sugeri- risco de fratura. O tratamento de osteoporose é indicado
dos na Tabela 6. pela densitometria óssea. Porém, em pacientes com os-
Os exames laboratoriais podem revelar: teopenia e presença de marcadores elevados de turnover
ósseo, alguns estudos sugeriram benefício com o uso de
- Presença de anemia, que pode ser sugestiva de mielo- drogas antirreabsortivas.
ma múltiplo ou de doenças crônicas que se associam,
Outro uso possível dos marcadores bioquímicos está na
por vezes, à osteoporose;
avaliação do sucesso da terapia com agentes antirreabsor-
- Aumento do cálcio, com diminuição do fósforo que tivos (bisfosfonatos ou agentes anabólicos, como o PTH),
sugere hiperparatireoidismo. Esses pacientes apre- em que serviriam como sinalizadores precoces do sucesso
sentam, ainda, calciúria aumentada. A osteoporose ou falha terapêutica. Também, como a monitorização com
é indicação de tratamento cirúrgico a pacientes com densitometria óssea só demonstra alterações significativas
hiperparatireoidismo primário, mesmo assintomático; após 1 ou mais anos de tratamento, os marcadores bioquí-
- Calciúria reduzida pode indicar deficiência de vitamina micos podem ser úteis como preditores da diminuição do
D ou má absorção intestinal. risco de fraturas, já que mostram alterações precoces. Os
marcadores de reabsorção apresentam resposta precoce,
Exames mais específicos serão indicados conforme a com diferenças significativas após 1 mês de tratamento, e
história clínica e o exame físico; e incluem PTH, pesquisa de os marcadores de formação apresentam esse tipo de res-
anticorpos antigliadina e antiendomísio (para pesquisa de posta em 3 meses após o início do tratamento com alen-
doença celíaca), entre outros. dronato.

193
ENDOC RI N O LOG I A

A abordagem de escolha é discutível, mas a maioria dos depositada na matriz óssea recém-formada, uma pequena
autores não recomenda o uso dos marcadores bioquímicos fração vai para a circulação, caracterizando essa proteína
para decidir os pacientes para os quais que o tratamento é como um marcador da atividade osteoblástica. A proteína
indicado, mas sim para verificar a resposta ao tratamento. será, então, destruída durante a reabsorção promovida pe-
los osteoclastos. Sua função não está clara, mas sua estru-
Tabela 7 - Marcadores bioquímicos do metabolismo ósseo tura indica interação com cálcio e cristais de hidroxiapatita,
Marcadores de formação Marcadores de reabsorção importantes na formação óssea. Os níveis de osteocalcina
óssea óssea sérica apresentam-se aumentados: no crescimento esque-
Fosfatase alcalina - Fosfatase ácida específica. lético, durante a puberdade, e em condições que aumen-
Fosfatase alcalina óssea - Hidroxiprolina urinária. tam a formação óssea, como hiperparatireoidismo, hiperti-
reoidismo e acromegalia. Há diminuição dos níveis séricos
- Piridinolina e deoxipiridinolina
Osteocalcina de osteocalcina nas situações em que há redução na for-
urinárias.
mação óssea, como hipotireoidismo, hipoparatireoidismo e
Terminais amino e carbóxi do - Telopeptídios urinários;
nos pacientes em uso crônico de glicocorticoides.
colágeno I - Carboxitelopeptídios séricos. O colágeno do tipo I é o mais abundante componente
orgânico da matriz óssea, o que torna seus pró-peptídios
A dosagem dos marcadores bioquímicos pode ser reali-
terminais sensíveis marcadores da formação óssea em pa-
zada após 3 meses de início do tratamento, e a diminuição
cientes com osteoporose.
>50% dos valores dos telopeptídios urinários ou séricos é
indicativa de boa resposta. Por fim, alguns autores conside-
ram que variações >30% dos telopeptídios já são suficien- 8. Screening
tes para serem consideradas significativas, enquanto as dos A Sociedade Brasileira de Densitometria Clínica
outros marcadores séricos de formação e de reabsorção (SBDens), em acordo com a International Society of Clinical
podem ser menores, na faixa de 15 a 20%. De forma ge- Densitometry (ISCD), recomenda a realização de rastrea-
ral, quanto maior a redução dos níveis de marcadores 3 a 6 mento de osteoporose, usando a medida de DMO, nas situ-
meses após o início de agentes antirreabsortivos (bisfosfo- ações apresentadas na Tabela 8.
natos, por exemplo), maior o ganho de massa óssea com o
tratamento. Tabela 8 - Indicações de densitometria óssea para screening de os-
As piridinolinas se interligam aos colágenos dos tipos I, II teoporose, de acordo com a SBDens
e III em quase todos os tecidos, estabilizando as fibrilas de- - Todas as pessoas com idade ≥65 anos;
positadas na matriz extracelular. As piridinolinas, livres ou - Presença de fraturas por baixo trauma (queda da própria altura
ligadas a fragmentos amino ou carboxiterminais, têm uma ou menos) ou não traumáticas;
série de vantagens sobre a hidroxiprolina. Sua concentra- - Presença de condições associadas à osteoporose ou fragilidade
ção nos fluidos corpóreos reflete, principalmente, a ativi- óssea (osteoporoses secundárias);
dade osteoclástica reabsortiva nos ossos, e, junto com os - História materna de fratura de fêmur ou osteoporose;
telopeptídios urinários, é o marcador de maior fidelidade e - Menopausa precoce;
especificidade em pacientes com osteoporose.
- Baixo peso (IMC <19kg/m2);
Já a hidroxiprolina urinária, marcador da reabsorção ós-
sea, provém da degradação do colágeno e tem sido usada - Perda de estatura (mais de 2,5cm);
durante décadas no diagnóstico e no acompanhamento dos - Evidência radiográfica de osteopenia;
pacientes com osteoporose. Apesar de ser o mais barato - Monitorização da massa óssea durante o tratamento de
marcador de reabsorção óssea, apresenta baixa sensibilida- osteoporose.
de e especificidade (não é limitada ao osso e ao colágeno).
A fosfatase alcalina tem 3 isoenzimas principais: óssea, 9. Tratamento
hepática e intestinal. Cerca de 90% são divididos em hepáti-
ca e óssea em quantidades similares, sendo a intestinal res-
ponsável por apenas 5% da concentração sérica dessa enzi- A - Prevenção
ma, exceto após a alimentação (quando a forma intestinal A prevenção da osteoporose inclui medidas como:
pode ser a predominante). A fosfatase alcalina apresenta-se - Otimização do pico de massa óssea no adulto jovem, por
elevada em pacientes com doenças ósseas, hepáticas, neo- meio de atividade física e ingesta adequada de cálcio;
plasias, etilismo e em certas condições fisiológicas, como a - Restrição da perda de massa óssea, por meio de com-
gestação. bate ao tabagismo, etilismo e sedentarismo.
A osteocalcina, por sua vez, é uma proteína não coláge-
na, com origem em ossos e dentes, sintetizada por osteo- A ingesta adequada de cálcio elementar é de 800mg/
blastos maduros, condrócitos e odontoblastos, em um pro- dia em crianças e adultos, 1.200mg/dia em adolescentes
cesso vitamina K-dependente. Embora seja primariamente e lactantes e 1.200mg/dia em indivíduos com >50 anos. A

194
OSTEOPOROSE

ingesta de cálcio deve ser estimulada, principalmente, pela c) Cessação do tabagismo e etilismo
ingesta de alimentos ricos em cálcio (leite e derivados), mas Ocorre diminuição de 5 a 10% da massa óssea em pa-
devem ser usados suplementos quando a ingesta alimentar cientes que fumam 1 maço de cigarros/dia durante a vida
não é suficiente. O sal de cálcio mais utilizado é o carbo- adulta. Por isso, é fortemente recomendado parar de fu-
nato de cálcio, que contém 40% de cálcio elementar (ou mar. O uso excessivo de álcool também se associa à perda
seja, 500mg de cálcio elementar em cada comprimido de de massa óssea, sendo recomendado evitá-lo.
1.250mg de carbonato de cálcio).

ENDOCRINOLOGIA
A vitamina D também deve ser suplementada em todos C - Medicamentoso
os indivíduos com mais de 50 anos, devido à alta prevalên-
cia da sua deficiência em idosos. A dose recomendada é de Como opções terapêuticas, têm-se as medicações antir-
800 a 1.000UI/dia. Se o indivíduo apresentar doença renal, reabsortivas, como os bisfosfonatos, o estrogênio e os mo-
má absorção ou uso de anticonvulsivantes, estará indicado duladores seletivos do receptor de estrogênios (SERMS); os
o uso de doses maiores de vitamina D (até 2.000UI/dia). Na estimuladores de formação óssea, como o teriparatida; e
presença de deficiência comprovada de vitamina D, devem- as drogas com ação mista, como o ranelato de estrôncio.
-se usar doses mais elevadas de tal vitamina a fim de corrigir A eficácia das diferentes drogas na prevenção de fraturas é
a deficiência (por exemplo, 50.000UI por semana por 6 a 8 apresentada na Tabela 9.
semanas, seguidas de 1.000 a 3.000UI/dia, indefinidamen- Na maioria dos casos, a 1ª linha de tratamento para o
te). A forma preferida de vitamina D é a de fonte animal, o tratamento da osteoporose será o uso dos bisfosfonatos,
colecalciferol (vitamina D3), mais potente que a vitamina D por sua boa eficácia na prevenção de fraturas e bom perfil
de origem vegetal, o ergocalciferol (vitamina D2). de tolerabilidade.
Uma meta-análise recente, publicada em 2010, mos- Um lembrete importante: sempre que se indica trata-
trou evidências de que a suplementação de cálcio isolada mento medicamentoso específico para osteoporose, deve-
(sem vitamina D ou drogas antirreabsortivas associadas) -se associar suplementação de cálcio e vitamina D, para
provoca um discreto aumento no risco de infarto agudo garantir a ingesta mínima comentada anteriormente, bem
do miocárdio, de aproximadamente 31%, sem aumento do como todas as medidas não farmacológicas já comentadas.
risco de AVC ou de morte cardiovascular. Por essa razão,
deve-se evitar o uso de suplementação de cálcio isolada, Tabela 9 - Eficácia dos diferentes medicamentos para osteoporose
devendo-se sempre preferir o uso de cálcio em associação na prevenção de fraturas
a vitamina D e/ou a outras drogas com ação antirreabsor- Prevenção
Prevenção de fraturas
tiva óssea. Em pacientes com osteoporose já instalada, Medicamento de fraturas
não vertebrais
também é fundamental orientar cuidados ambientais para vertebrais
prevenir quedas, que são a principal causa de fraturas nes- Cálcio + vitamina D3 + +
ses pacientes. Alendronato + +
Risedronato + +
B - Não medicamentoso
Ibandronato (VO
+ +
O tratamento não farmacológico da osteoporose é com- ou IV)
posto de 3 medidas: dieta, exercício físico e cessação do Zolendronato (IV) + +
tabagismo. Estrógeno + +
a) Dieta e suplementação vitamínica SERMS (raloxifeno) + -
Recomenda-se dieta com ingestão calórica apropriada, Tibolona + +
evitando-se sobrepeso ou desnutrição. Em todos os indiví- Teriparatida + +
duos com >50 anos, a National Osteoporosis Foundation re- Ranelato de estrôn-
comenda uma ingesta mínima diária de 1.200mg de cálcio + +
cio
elementar, e de 800 a 1.000UI/dia de vitamina D3. Calcitonina + -
b) Exercício físico Isoflavonas - -
Exercício por 30 minutos ou mais, ininterruptos, por 3 Fluoreto - -
ou mais vezes na semana, associa-se à redução da veloci-
dade de perda de massa óssea (principalmente, em pacien- a) Quando iniciar o tratamento medicamentoso?
tes mais jovens) e melhora da força muscular, da capaci- Há alguma controvérsia quanto ao melhor momento
dade física e do equilíbrio, com potencial efeito benéfico para introduzir os medicamentos específicos para osteopo-
na prevenção de quedas e consequente redução do risco rose. Um ponto de concordância entre todas as sociedades
de fraturas. Recomenda-se atividade com suporte de peso é com relação à recomendação de tratamento específi-
(exemplo: caminhadas) associadas a fortalecimento muscu- co em todos os pacientes com osteoporose identificada à
lar (musculação). densitometria, ou seja, com T-escore <2,5DP. A American

195
ENDOC RI N O LOG I A

Association of Clinical Endocrinologists (AACE) recomenda b) Bisfosfonatos


o tratamento da osteoporose pós-menopausa a mulheres Os bisfosfonatos são análogos dos pirofosfatos, supri-
com T-escore <-2,5DP, ou <-1,5DP a pacientes com fatores mindo a reabsorção mediada por osteoclastos por esti-
de risco associados, ou mulheres com fratura prévia por fra- mularem a apoptose destes, levando, ainda, à diminuição
gilidade (em coluna lombar ou fêmur). indireta da atividade dos osteoblastos. Reduzem o risco de
Já a National Osteoporosis Foundation, no seu último fraturas de colo de fêmur e coluna em pacientes com lesões
consenso, de 2008, endossado pela Organização Mundial prévias ou com fatores de risco.
da Saúde (OMS), recomenda que a decisão de introduzir Os bisfosfonatos orais (alendronato, risedronato, iban-
ou não medicamentos para osteoporose seja tomada com dronato) devem ser tomados em jejum, com 1 ou 2 copos
base não apenas no valor do Z-escore, mas também no risco d’água. Deve-se orientar o paciente para não ingerir alimen-
absoluto de fraturas em 10 anos para aquele paciente. Para tos ou outros medicamentos e não deitar por, no mínimo,
a avaliação do risco individual de fraturas, essa mesma so- 30 minutos, a fim de melhorar a absorção da droga e redu-
ciedade sugere que se utilize um escore de risco, chamado zir o risco de esofagite. No tratamento da osteoporose, o
escore FRAX, que leva em conta não só o valor do Z-escore, alendronato é usado em dose diária de 10mg ou semanal
mas também a idade, sexo, peso, altura, história prévia de de 70mg, e o risedronato, em dose diária de 5mg ou sema-
fratura (pessoal ou em parente de 1º grau), tabagismo, uso nal de 35mg. O ibandronato pode ser usado por VO (150mg
de corticoides, etilismo, presença de artrite reumatoide ou 1x/mês) ou por via IV (3mg a cada 3 meses). Outra opção é
outra causa de osteoporose secundária (Figura 2). O esco- o zolendronato, em dose única anual (5mg IV).
re FRAX pode ser calculado usando uma ferramenta online, Na prevenção de osteoporose, em pacientes com
livremente disponível no endereço: http://www.shef.ac.uk/ T-escore >-2,5DP, mas <-1,5 ou 2DP com alto risco de fratu-
FRAX/. ras, uma alternativa é o uso de bisfosfonatos em dose me-
O tratamento específico está indicado, conforme os gui- nor (metade da dose de tratamento): alendronato 5mg/dia
delines americanos, nos homens com >50 anos ou mulhe- ou risedronato 2,6mg/dia.
res pós-menopausa com T-escore <2,5DP, e também nos in- Os efeitos adversos das drogas orais são, principalmen-
divíduos com T-escore entre -1 e -2,5DP que apresentarem te, relacionados ao trato gastrintestinal, como náuseas, vô-
risco absoluto de fratura em 10 anos (calculado pelo escore mito e queimação retroesternal resultantes da inflamação
FRAX) ≥3% para fratura de quadril ou ≥20% para fraturas da mucosa do esôfago e, raramente, ulceração esofágica.
osteoporóticas em geral. Deve-se ter cuidado com seu uso em pacientes com doen-
O escore FRAX leva em conta a etnia do paciente, no ças gastresofágicas ou em uso de anti-inflamatórios, situa-
cálculo do risco individual de fraturas, com base em dados ção em que pode ser preferível o uso de bisfosfonatos in-
específicos para cada grupo étnico. No Brasil, infelizmente jetáveis. As drogas intravenosas apresentam, como efeitos
não existem estudos específicos sobre o risco de fraturas adversos mais comuns, febre e mialgia nos primeiros dias
associado à presença dos fatores já citados, razão pela qual após a administração, contornáveis com uma hidratação
ainda não é recomendada a adoção do escore FRAX para a adequada e uso de analgésicos/antitérmicos. Com o uso de
tomada de decisão terapêutica em nosso meio. zolendronato injetável, foi descrito um risco discretamen-
te aumentado de fibrilação atrial em idosos. Outro efeito
adverso temido das drogas injetáveis é a osteonecrose da
mandíbula.
c) Estrogênios
A deficiência estrogênica é a principal causa de osteopo-
rose em mulheres. A terapia de reposição hormonal reduz a
incidência de fraturas de coluna e fêmur em 34%. A ação dos
estrogênios parece estar relacionada à diminuição de fato-
res inflamatórios envolvidos na maior remodelação óssea.
Os estrogênios equinos conjugados, na dose de 0,625mg/
dia, em associação à medroxiprogesterona, foram usados
por vários anos como 1ª escolha para prevenção e trata-
mento da osteoporose em mulheres na pós-menopausa.
Todavia, grandes estudos prospectivos, como o Women’s
Health Initiative (WHI) e o Million Women Study (MWS),
mostraram aumento da incidência de doença cardiovascu-
lar, de tromboembolismo pulmonar e de câncer de mama
Figura 2 - Calculadora online para estimar o risco absoluto de fra- com o uso de estrogênios conjugados associados a proges-
turas em 10 anos (escore FRAX) tágenos. Esse risco não foi observado com o uso isolado de

196
OSTEOPOROSE

estrogênios. O WHI foi o 1º estudo prospectivo controlado uso em mulheres idosas se associou a risco aumentado de
que demonstrou que a TRH protege contra fraturas osteo- AVC e fenômenos tromboembólicos. É considerada uma te-
poróticas de coluna e câncer colorretal. rapia de 2ª linha em pacientes com sintomas vasomotores
Deve-se acrescentar que o maior benefício com o uso da associados à menopausa e com contraindicação à TRH. A
terapia de reposição hormonal ocorre nos primeiros anos dose proposta é de 1,25 a 2,5mg/dia.
após a menopausa, perdendo boa parte de seus efeitos 5 a
f) Teriparatida (hormônio da paratireoide [PTH] re-
10 anos após esse período. Talvez o risco de efeitos adver-
combinante)

ENDOCRINOLOGIA
sos não seja tão alto quando a terapia estrogênica é iniciada
nos primeiros 5 a 10 anos após a menopausa (no WHI, a Trata-se de um análogo do PTH representado pelos
terapia foi iniciada, em média, mais de 10 anos após a me- primeiros 34 aminoácidos da sua porção aminoterminal,
nopausa). retendo, entretanto, a atividade biológica da molécula in-
Os estrogênios, portanto, só são indicados a mulheres tacta. O PTH, curiosamente, apresenta efeitos diferentes
com sintomas vasomotores significativos associados à me- sobre a massa óssea, dependendo da sua concentração e
nopausa, nas menores doses e pelo menor tempo possível, da forma de administração. Enquanto doses altas de PTH
não devendo ser utilizados exclusivamente para o trata- aumentam a reabsorção e reduzem a massa óssea (como
mento de osteoporose. No entanto, continuam a ser a te- observado no hiperparatireoidismo primário), doses baixas
rapia de escolha para a prevenção da doença nas pacientes e intermitentes de PTH (como as obtidas com o uso de in-
jovens com hipogonadismo. jeções subcutâneas desse análogo) promovem a formação
São contraindicados a pacientes com doença trombo- óssea e o aumento da densidade mineral na coluna e no
embólica, tabagistas ou hepatopatas. quadril.
Portanto, o efeito do teriparatida é anabólico (estímulo
d) SERMS à formação óssea pelos osteoblastos), diferentemente do
Agem seletivamente como agonistas parciais ou anta- observado com os bisfosfonatos ou estrogênio, que são an-
gonistas em diversos tecidos-alvo, dependendo da predo- ticatabólicos (redução da reabsorção óssea pelos osteoclas-
minância de um dos tipos de receptores estrogênicos: alfa tos). É um potente estimulador do ganho de massa óssea e,
(ativador) ou beta (inibitório), diminuindo a reabsorção atualmente, o tratamento mais eficiente para aumentar a
óssea. A medicação foi avaliada no estudo MORE (Multiple densidade mineral óssea e reduzir o risco de fraturas.
Outcomes of Raloxifene Evaluation), com aumento de den- Em virtude de seu alto custo, entretanto, o seu uso, em
sidade óssea de 2,1% na coluna lombar e de 2,6% no colo injeções subcutâneas de 20mcg/dia, está indicado apenas
do fêmur (ganho menor do que o obtido com bisfosfonatos em casos mais graves (osteoporose estabelecida ou com
e estrogênios). O efeito nos marcadores de reabsorção ós- alto risco de fraturas), principalmente se não há boa res-
sea também é menor do que os obtidos com bisfosfonatos posta aos bisfosfonatos.
e estrogênios. Entretanto, a prevenção de fraturas verte- É contraindicado a pacientes com risco aumentado para
brais é tão boa quanto a obtida com outros agentes, apesar osteossarcoma, com doença de Paget, elevação inexplicada
do menor ganho de massa óssea nesse sítio. da fosfatase alcalina, durante o crescimento, com metás-
Os principais representantes dos SERMs são o tamoxife- tases ósseas ou com radioterapia prévia. A medicação age
no e o raloxifeno. O tamoxifeno é usado na terapêutica do aumentando o tempo de vida dos osteoblastos, reduzindo
câncer de mama, sem indicação para o tratamento da oste- a apoptose e não afetando a nova geração dessas células.
oporose, pois causa hiperplasia endometrial. O raloxifeno, Pode provocar, como efeitos adversos, hipercalciúria ou hi-
por sua vez, é antagonista em mama e endométrio, com percalcemia, obrigando, portanto, a monitorização desses
ação agonista em ossos e lípides. O tamoxifeno pode ser parâmetros após início do tratamento. A reposição adequa-
usado, na dose de 60mg/dia, em mulheres menopausadas da de vitamina D é obrigatória durante o seu uso.
sem sintomas climatéricos (uma vez que podem agravar os
fogachos), e tem o benefício adicional de ajudar a preve- g) Ranelato de estrôncio
nir o câncer de mama, podendo ser uma boa opção para Esta é uma medicação constituída de 2 átomos de es-
mulheres com osteoporose e história familiar de carcinoma trôncio estável, com efeito, em animais, de aumentar a for-
mamário. mação e inibir a reabsorção óssea. Houve efeitos promis-
São contraindicados em pacientes com doença trom- sores, com diminuição de fraturas vertebrais, em 2 estudos
boembólica, pois aumentam o risco de tromboembolismo e uma meta-análise, mas com efeito menor nas outras fra-
venoso da mesma forma que a reposição estrogênica. turas. A medicação foi bem tolerada e pode ser uma boa
opção para pacientes intolerantes a outras classes de me-
e) Tibolona
dicamentos.
Trata-se de um esteroide sintético, com metabólitos que
apresentam ação estrogênica, androgênica e progestágena. h) Calcitonina
Reduz risco de fraturas vertebrais e não vertebrais e a inci- Esta é uma medicação pouco utilizada atualmente no
dência de câncer de mama e de câncer colorretal, mas seu manejo dos pacientes com osteoporose, apesar de ter

197
ENDOC RI N O LOG I A

eficácia comprovada na prevenção de fraturas vertebrais 10. Osteoporose em homens


(apenas). Pode ser usada em indivíduos com fraturas ver-
tebrais, por apresentar bom efeito analgésico para dores
ósseas. A dose recomendada é de 200U intranasal 1x/dia, A - Introdução
em esquemas intermitentes (em dias alternados, ou de 2ª Os homens desenvolvem pico de massa óssea maior, e
a 6ª feira, com descanso no final de semana) pelo risco de sua perda óssea é mais tardia e mais lenta em comparação
taquifilaxia. às mulheres. Ainda assim, 1 a cada 6 homens apresenta fra-
i) Outros medicamentos tura de quadril até os 90 anos. Não se sabe exatamente a
proporção de homens que apresentam osteoporose, mas
As isoflavonas são compostos vegetais derivados da
se sabe que o risco de um deles, com mais de 60 anos, de-
soja com propriedades semelhantes ao estrogênio nos
senvolver fratura osteoporótica durante o restante da vida
ossos (fitoestrogênios), mas sem efeitos significativos em
é de 25%.
outros tecidos-alvo. Apesar do efeito favorável nos mar-
Em homens idosos, as fraturas de rádio distal são um
cadores bioquímicos do metabolismo ósseo, não existe
marcador precoce e sensível de fragilidade óssea, corre-
qualquer evidência de efeito benéfico na redução de fra-
lacionando-se ao risco aumentado de fratura do quadril.
turas, portanto não são recomendadas para tratamento
Outra consideração importante é que as fraturas no sexo
de osteoporose.
masculino podem ser atribuídas à osteomalácia, com maior
O fluoreto teria efeito benéfico no tratamento da oste-
frequência que nas mulheres. Cerca de 60% dos casos de
oporose, pois é um agente que aumenta a formação óssea
osteoporose em homens são secundários, e o uso crônico
e poderia ter efeito sinérgico com medicação que diminua
de corticoides, o hipogonadismo e o alcoolismo são as etio-
a reabsorção óssea. Estudos mostraram que seu uso esteve
logias mais comuns.
associado a aumento de densidade óssea, principalmente
Nos homens com osteoporose idiopática (cerca de 40%
no esqueleto axial, mas com aumento paradoxal do risco de
dos casos), há alguma evidência de diminuição da atividade
fraturas em outros sítios (provável distúrbio na microarqui-
osteoblástica, e, em pacientes muito idosos, parece haver
tetura óssea). Seu uso no tratamento da osteoporose, por-
papel do hiperparatireoidismo primário. A osteoporose se-
tanto, não é aprovado pelo FDA. Deve ser reservado apenas
nil parece ser a maior causa a partir dos 70 anos.
para pacientes com fraturas vertebrais e intolerância às ou-
tras medicações aprovadas.
B - Fatores de risco
D - Uso de glicocorticoides
a) Hipogonadismo
Drogas que aceleram, acentuadamente, a perda de
O fator de risco mais bem definido pela literatura para
massa óssea, como os glicocorticoides, devem ser evitadas
desenvolvimento de osteoporose em homens é o hipogo-
sempre que possível.
nadismo, que ocorre, principalmente, por deficiência de
O American College of Rheumatology sugere as in-
testosterona, e não da diidrotestosterona.
tervenções específicas para a prevenção de fraturas em
pacientes em uso de doses maiores ou iguais a 5mg de b) Etilismo
prednisona ou o equivalente de outros glicocorticoides No caso dos pacientes etilistas, a perda de massa óssea
(Tabela 10). parece estar relacionada à diminuição da formação óssea,
Os pacientes devem ser monitorizados anualmente para embora alterações no metabolismo da vitamina D, na fun-
determinar se a perda óssea persiste, e deve ter início um ção das paratireoides e das gônadas também estejam impli-
programa de exercícios físicos. Como os glicocorticoides cadas na fisiopatologia da osteoporose.
ocasionam aumento de calciúria, em caso de hipercalciúria
deve-se iniciar o uso de doses baixas de diuréticos tiazídi- c) Outros fatores
cos, e é recomendada a restrição de sal. Outros fatores importantes de osteoporose em homens
são hipertireoidismo, hiperparatireoidismo, doenças gas-
Tabela 10 - Recomendações do American College of Rheumatology trintestinais (associadas à má absorção), deficiência de GH,
para prevenção de osteoporose em usuários crônicos de corticoides medicações, doenças hematológicas (mieloma múltiplo,
- Suplementação de cálcio (1.500mg/dia) e vitamina D (800UI/dia); linfoma e leucemia) e hipercortisolismo (endógeno ou exó-
- Recomenda-se o uso de bisfosfonatos para prevenção e geno).
tratamento da osteoporose, em dose semanal de 35mg de
alendronato para prevenção e 70mg para tratamento; d) Tratamento
- Reposição de testosterona em homens deficientes; O tratamento baseia-se no combate à etiologia de base
- Considerar calcitonina em pacientes com intolerância e nos casos de osteoporose secundária: reposição de testos-
contraindicação ao uso dos bisfosfonatos, principalmente se terona em pacientes com hipogonadismo, incentivo à ativi-
há fraturas, pois a medicação pode reduzir a dor. A dose é de dade física e ingesta adequada de cálcio e vitamina D (para
200U/dia por via nasal.
todos os pacientes).

198
OSTEOPOROSE

Para os pacientes com osteoporose idiopática, os bisfos- - A National Osteoporosis Foundation recomenda que a decisão
fonatos são as drogas de 1ª escolha. O uso do PTH deve de iniciar tratamento específico para osteoporose seja baseada
ser considerado, tendo em vista a diminuição da formação no risco individual de fratura, pelo escore FRAX. Indica-se tra-
óssea. Entretanto, a maioria dos autores recomenda que o tamento nos indivíduos com T-escore <-2,5DP, ou com T-escore
PTH seja usado apenas em pacientes de alto risco, haja vis- entre -1 e -2,5DP com risco absoluto ≥3% de fratura de quadril
to seu custo elevado, a necessidade de injeções diárias e ou ≥20% de fraturas osteoporóticas maiores em 10 anos pelo
o risco aumentado de desenvolvimento de osteossarcoma. escore FRAX. Entretanto, não há dados suficientes para adoção

ENDOCRINOLOGIA
do escore FRAX no Brasil, razão pela qual essa recomendação
11. Resumo ainda não pode ser adotada em nosso país;
- As drogas usadas para tratamento de osteoporose são: os an-
Quadro-resumo
tirreabsortivos (bisfosfonatos, estrógeno, raloxifeno, tibolona),
- A osteoporose é o distúrbio osteometabólico mais comum, atin-
os estimuladores da formação óssea ou anabolizantes ósseos
gindo um grande número de mulheres, com aumento de morbi-
(teriparatida) e as drogas de ação mista (ranelato de estrôncio);
mortalidade e alto custo para seu manejo;
- Sempre que se indicar medicamento específico para tratamen-
- Os principais fatores de risco para osteoporose são idade avan-
to de osteoporose, estará indicada a reposição concomitante
çada (>65 anos), sexo feminino, raça branca, baixo peso corpo-
de cálcio + vitamina D e as medidas não farmacológicas;
ral, história familiar de osteoporose ou fraturas de fragilidade,
- Deve-se evitar o uso de suplementos de cálcio sem vitamina D,
menopausa precoce, tabagismo, etilismo, dieta pobre em cálcio,
pois o uso de cálcio isoladamente aumenta o risco de infarto
sedentarismo, imobilização prolongada e uso de corticoides;
agudo do miocárdio;
- A osteoporose não apresenta sintomas, mas representa um au-
- As drogas que reduzem a incidência de fraturas vertebrais e
mento de 1,5 a 3 vezes no risco de fraturas, principalmente em
não vertebrais são os bisfosfonatos, o estrogênio, a tibolona,
punhos, vértebras e fêmur proximal;
o teriparatida e o ranelato de estrôncio. A calcitonina e o
- A fratura de colo de fêmur em idosos é relacionada com mor-
raloxifeno reduzem apenas o risco de fraturas vertebrais;
talidade elevada, em torno de 25% ao ano. Além disso, 1/3 dos
- Os bisfosfonatos são a 1ª opção de droga na maioria dos casos de
pacientes que sofrem uma fratura de colo do fêmur torna-se
osteoporose. Podem ser usados por VO ou IV;
dependente;
- A terapia de reposição hormonal (com estrogênio ou tibolona)
- O exame padrão-ouro para o diagnóstico de osteoporose é a
só é indicada para tratamento de osteoporose àquelas pacien-
densitometria óssea (DEXA). Considera-se osteoporose quan-
tes com sintomas vasomotores associados ao climatério. Pode
do o paciente apresenta T-escore <-2,5DP e osteopenia com
aumentar o risco de fenômenos tromboembólicos;
T-escore entre -1 e -2,5DP (em comparação à média de adultos
jovens do mesmo sexo); - O raloxifeno pode ser usado em mulheres pós-menopausadas
intolerantes aos bisfosfonatos, desde que estas não apresen-
- A DMO, avaliada pelo T-escore, é o melhor preditor de risco de
tem sintomas do climatério (que podem piorar com o uso da
fraturas;
medicação). Além disso, reduz o risco de câncer de mama;
- Os melhores locais para avaliação da densidade óssea, pela
- O teriparatida (PTH 1-34) é o agente mais potente para aumen-
densitometria, são a coluna lombar e o fêmur total;
to da massa óssea e redução de fraturas, sendo boa opção nos
- A densitometria óssea está indicada a todos os indivíduos com
pacientes com risco de fratura extremamente alto que não es-
>65 anos, bem como a homens com mais de 50 anos ou mu-
tão apresentando resposta aos bisfosfonatos;
lheres pós-menopausa que apresentem fatores de risco para
- A calcitonina pode ser utilizada por pacientes com dor óssea
osteoporose;
importante, já que tem um bom efeito analgésico central.
- É recomendado repetir a densitometria óssea a cada 1 ou 2
anos, para avaliação da densidade óssea e resposta ao trata-
mento;
- Os marcadores bioquímicos podem ajudar a avaliar a eficácia
do tratamento da osteoporose;
- Em indivíduos com >50 anos, é recomendada ingesta diária de
pelo menos 1.200mg de cálcio elementar e 800 a 1.000UI/dia de
vitamina D3 para prevenção de osteoporose, além de atividade
física regular e cessação do tabagismo;
- O tratamento medicamentoso da osteoporose pós-menopausa
está indicado em mulheres com T-escore <-2,5DP, ou mulheres
com T-escore entre -1 e -2,5DP com fatores de risco de fraturas,
ou em mulheres com fratura prévia de coluna lombar ou fêmur
por fragilidade;

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