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O que define uma doença

autoimune?

1.1 INTRODUÇÃO
Àqueles afeitos ao estudo científico o sistema imune talvez seja uma
das coisas mais fascinantes. A vida humana seria impossível sem
mecanismos que garantissem a sua integridade, dada a quantidade
de ameaças presentes no ambiente.
Seguramente, um dos elementos que permitiu a ascensão do ser
humano como espécie suprema foi o sistema imune, que,
evolutivamente, foi se tornando cada vez mais específico e capaz de
diferenciar entre os mais diversos patógenos com um nível de
precisão chocante.
Contudo, em alguns indivíduos, as falhas do sistema de defesa são
tão notáveis quanto a sua eficiência. Seja agindo silenciosamente em
conjunto com fatores metabólicos para gerar a ateromatose, seja
trazendo ao colapso absoluto toda uma circuitaria biológica nos
estados sépticos; as imprecisões da imunidade são um dos principais
temas de estudo nas ciências biológicas.
Mas quais são os mecanismos que permitem ao sistema imune tratar
com tanta voracidade aquilo tudo que é externo e tolerar, ou mesmo
proteger, aquilo que é do hospedeiro? Como diferenciá-los?
Nas próximas páginas tentaremos, à luz do conhecimento científico
atual, compreender, ainda que superficialmente, os mecanismos do
sistema imune em seu funcionamento saudável e patológico.
1.2 O SISTEMA IMUNE NA SAÚDE
Classicamente se divide o sistema imune em 2 vertentes: uma mais
imediata e inespecífica, o sistema imune inato; e uma posterior e
extremamente refinada, o sistema imune adaptativo.
1.2.1 Sistema imune inato
O termo inato se refere a ideia de que esta vertente do sistema imune
é presente desde o nascimento, sem passar pelas fases adaptativas
que a outra vertente passa. O sistema imune inato é de extrema
importância ao indivíduo, de tal forma que representa a primeira
barreira que os patógenos irão enfrentar. Seria impossível combater
infecções de rápida instalação se só houvesse sistema imune
adaptativo, pois sua resposta pode durar semanas para se
orquestrar. Ilustra-se esse fenômeno, por exemplo, nos pacientes
com disfunções neutrofílicas, que sofrem com infecções de repetição
por germes altamente virulentos.
Existem diversos componentes do sistema imune inato. Os mais
intuitivamente importantes para a Reumatologia e a Imunologia são
os componentes celulares, contudo, temos diversos outros
mecanismos inatos de defesa. Os principais componentes do sistema
imune inato e suas funções são:
a) Barreiras físicas, como a pele, membranas mucosas e endotélios;
b) Enzimas secretadas pelos epitélios ou em células fagocitárias;
c) Proteínas séricas como o complemento, as proteínas de fase aguda
e as lectinas;
d) Peptídios antimicrobianos, que são proteínas solúveis secretadas
pelo epitélio ou pelos fagócitos e que neutralizam germes;
e) Células que amplificam, auxiliam e modulam a resposta imune,
como mastócitos, macrófagos e células NK;
f) Células fagocitárias, como os neutrófilos, macrófagos (monócitos) e
células dendríticas;
g) Microbioma, ou seja, bactérias que povoam o corpo humano e
vivem em relativa cooperação com os órgãos e sistemas, servindo
como competidores de organismos patogênicos.

Grande interesse se volta atualmente ao perfil do microbioma em


pacientes com autoimunidades. É possível que alterações nas
populações microbianas sejam responsáveis por promover formação
de autorreatividade e autoanticorpos (Schroeder; Bäckhed, 2016).
Além de oferecer os instrumentos para a defesa imediata do
hospedeiro, o sistema imune inato é diretamente responsável por
iniciar a resposta imune adaptativa.
1.2.1.1 Reconhecimento dos patógenos

Voltando-se aos componentes celulares do sistema imune inato, é


importante que se compreenda como se processa o reconhecimento
dos patógenos. De maneira ampla, pode-se dizer que os fagócitos
são capazes de reconhecer os elementos estranhos ao hospedeiro
através do reconhecimento de padrões. Ou seja, tudo aquilo é
grosseiramente diferente provavelmente é patogênico.
Essa diferenciação só é possível porque alguns patógenos possuem
na sua constituição elementos que são absolutamente bizarros ao
corpo humano. Essas estruturas associadas tipicamente aos germes
são chamadas amplamente de padrões moleculares associados aos
patógenos (PAMPs). Um exemplo clássico é o lipopolissacarídeo de
membrana bacteriana (LPS), uma estrutura que não encontra
precedente no corpo humano, sendo, portanto, facilmente
reconhecida como invasora. Genericamente, esse reconhecimento do
atípico é feito pelos receptores reconhecedores de padrão (PRR). Pelo
escopo desta obra, focaremos nos receptores celulares – ou seja,
ligados aos fagócitos –, mas existem também PRR secretados que
agem sem a necessidade de células efetoras. A seguir, são
apresentados alguns PAMPs classicamente reconhecidos pela ciência
moderna.
São exemplos de padrões moleculares:
1. PAMPs:
a) Componentes de membrana comuns às bactérias, como
peptidoglicano, ácidos lipoteicoicos e mananas;
b) DNA não metilado;
c) RNA dupla fita.
2. Padrões moleculares associados a dano (DAMPs):
a) Proteína heat-shock;
b) Hialuronatos;
c) Nucleotídeos fosfatados (ATP, ADP, AMP).

Os receptores toll-like (TLR) são os principais receptores


transmembrana estudados nas doenças reumatológicas. Trata-se de
uma grande família de receptores que é capaz de reconhecer uma
infinidade de substâncias altamente relacionadas com patógenos,
como o LPS.
Outros PRR também reconhecidos atualmente são aqueles de ação
intracelular, como os receptores NOD-like ou RIG-1-like.
Finalmente, DAMPs também são capazes de estimular o sistema
imune inato. São quase que opostos aos PAMPs e representam
constitutivos intracelulares típicos do hospedeiro que são liberados
em situação de estresse ou quando ocorre morte celular. É intuitivo
que esse fenômeno ocorra, pois os DAMPs simbolizam que está
ocorrendo ataque aos componentes do corpo.
1.2.1.2 Sinalização intracelular

O reconhecimento dos patógenos é apenas o primeiro passo para se


iniciar a resposta imune inata celular. Como o mecanismo de
diferenciação é rudimentar, os seres evoluíram no sentido de
desenvolver uma série de etapas bioquímicas que precisam ser
cumpridas para que a resposta final efetivamente ocorra. Ademais, a
resposta imune inata precisa ser constantemente renovada, uma vez
que, tão logo cessem os estímulos patogênicos, o sistema para
imediatamente de responder. Esses preciosismos foram
extremamente importantes do ponto de vista evolutivo para que o
sistema imune não destruísse o seu hospedeiro.
Uma das principais vias de sinalização intracelular que ocorre após o
encontro de patógenos é a via dos inflamossomas. Tratam-se de
aglomerados moleculares com substâncias que se ativam
progressivamente a depender da manutenção do estímulo
patogênico e que culminam com a ativação e secreção das
interleucinas da família 1 (IL-1).
Uma vez liberada, a IL-1 age como potente ativadora do sistema
imune, causando aumento da expressão de adesinas (moléculas que
sinalizam para que leucócitos migrem dos vasos para o local de
inflamação), vasodilatação, sensibilização das vias fagocitárias,
estimulação termorregulatória talâmica e redução do limiar álgico.
1.2.1.3 Amplificação da resposta imune

Quando um território fica repleto de IL-1, ocorre uma grande


facilitação da resposta imune mediada por fagócitos, uma vez que
ela contribui para a ativação direta de novas levas celulares que
chegam ao local da inflamação e também contribui para a produção
de proteínas de fase aguda pelos fagócitos e pelo fígado,
especialmente.
As proteínas de fase aguda são moléculas responsáveis por
amplificar a resposta imune e algumas delas possuem ação
antibacteriana por si só. Entre as proteínas de fase aguda se
encontram, por exemplo, a proteína C reativa e o amiloide sérico A. A
presença de PAMPs, DAMPs, proteínas de fase aguda e estresse
oxidativo promove a fosforilação da membrana celular dos fagócitos
pela fosfolipase, gerando ácido aracdônico. O ácido aracdônico é
capaz de percorrer 2 vias de sinalização, a via das cicloxigenases e a
via das lipoxigenases. Em última análise, essas vias culminarão na
produção de prostaglandinas, tromboxanos e leucotrienos, que são
capazes de fazer vasodilatação, aumento da permeabilidade
vascular, broncoconstrição e aumento das secreções dos
revestimentos epiteliais. Essa via celular, chamada de via dos
eicosanoides, é o alvo dos principais anti-inflamatórios hormonais e
não hormonais usados na Medicina. A Figura 1.1 ilustra a via dos
eicosanoides.
Figura 1.1 - Via dos eicosanoides

Legenda: Anti-Inflamatório Não Esteroide (AINE).


Fonte: elaborado pelo autor.

Como demonstrado anteriormente, o sistema do complemento é


parte importante da resposta imune inata, mas, pela sua condição de
ativação por múltiplas vias, dialoga intimamente também com o
sistema imune adaptativo. Por esta razão, nesta obra, o sistema do
complemento será explorado adiante (no item 1.2.2), após
compreensão das vias relacionadas ao sistema imune adaptativo.
1.2.2 Sistema imune adaptativo
O sistema imune adaptativo depende do seu correspondente inato
para se iniciar. Além dos neutrófilos, que possuem a função de
destruição dos patógenos, macrófagos e células dendríticas também
são capazes de reconhecer estruturas atípicas para o self através dos
PRRs. Ao contrário daqueles, porém, os macrófagos e células
dendríticas possuem uma função adicional que envolve o
processamento de patógenos fagocitados para exposição em suas
membranas. Através de enzimas líticas, determinados peptídios
antigênicos são separados dos patógenos e expostos na membrana
das células fagocíticas sobre uma superfície de apresentação
composta pelas cadeias alfa e beta da molécula do HLA (human
leukocyte antigen). O objetivo da apresentação antigênica é
demonstrar aos linfócitos T circulantes quais peptídios estão
recorrendo no hospedeiro.
A célula dendrítica possui fundamentalmente o papel de informante
do sistema imune, mas, em menor escala, o macrófago e o linfócito
B também desempenham essa função. Células que são capazes de
apresentar antígenos aos linfócitos T são chamadas de APC (sigla em
inglês para células apresentadoras de antígeno).
A especificidade e beleza do sistema imune adaptativo decorre da
habilidade do linfócito T de reconhecer uma infinidade de estruturas
antigênicas patogênicas através de um processo de aprendizado. A
quanto mais estruturas invasoras o sistema imune adaptativo é
exposto, mais refinado ele fica. Esta elegante adaptação que o
sistema imune sofre decorre da maneira como o linfócito T
reconhece os antígenos.
1.2.2.1 Reconhecimento dos antígenos

Cada linfócito T carrega em sua membrana um TCR (T cell receptor).


Na gênese de cada linfócito, regiões variáveis do seu código genético
se combinam para formar uma superfície absolutamente singular,
capaz de reconhecer a estrutura formada pela soma do HLA com
peptídios antigênicos do patógeno. O grau de especificidade é
tamanho que cada linfócito reconhece pouquíssimos antígenos,
sempre ligados ao HLA respectivo. O reconhecimento de uma ampla
gama de antígenos é dado, por sua vez, pela gigantesca quantidade
diariamente produzida de linfócitos, cada qual com sua
especificidade antigênica. No final, cada linfócito só reconhecerá o
seu antígeno-alvo; e virtualmente todos os antígenos-alvos
possíveis no universo serão passíveis de reconhecimento, tão logo
amadureça um linfócito que os reconheça.
Evidentemente, através desse mecanismo de repetição que desafia a
probabilidade – gerar-se-ão quantos linfócitos quanto forem
necessários até que se reconheça o antígeno do invasor –
inevitavelmente ocorre reconhecimento de peptídios do próprio
hospedeiro. Diariamente, uma infinidade de linfócitos T
autorreativos são produzidos. Contudo, o próprio linfócito T possui
mecanismos que o induzem à apoptose se houver reconhecimento de
peptídios sem sinalização de invasão pela célula que os apresenta. De
fato, constantemente, APCs apresentam peptídios do self para
linfócitos circulantes, mesmo na ausência de infecção. Neste modo
de funcionamento, as APCs não estão ativadas e não expressam em
suas membranas moléculas que sinalizam invasão ou conflito. Todos
os linfócitos que eventualmente reconheçam partículas expostas no
HLA, mas que não encontrem a coestimulação que simboliza
invasão, automaticamente “se entendem” como autorreativos – ou
seja, reconheceram inadvertidamente peptídios do próprio
hospedeiro – e entram em apoptose (Sharpe, 2009). Nota-se,
portanto, que só restarão em circulação aqueles linfócitos que não
são autorreativos.
No polo oposto, é possível que uma combinação molecular de um
determinado linfócito seja tão bizarra que nem mesmo as estruturas
patogênicas sejam reconhecidas. Neste sentido, tratar-se-ia de um
linfócito inútil. Para que uma calibração fina ocorra, portanto,
linfócitos são expostos constantemente a patógenos nos tecidos
linfoides. Estes tecidos são dispostos em regiões em franco contato
com o meio externo, recebendo constantemente uma grande leva de
patógenos potenciais. Desta maneira, são selecionados os linfócitos
mais aptos ao reconhecimento de eventuais invasores.
Fica bastante claro com o mecanismo de funcionamento do sistema
imune adaptativo que se trata de um sistema em constante
aprimoramento e refinamento. Existe, de fato, uma memória imune
que se transforma o tempo todo e aprende com o ambiente ao qual o
hospedeiro é exposto. É justamente por essa característica mutável
do sistema imune adaptativo que as doenças autoimunes tendem a
se apresentar na sua totalidade nos primeiros anos e a melhorar com
o passar do tempo, como se o sistema imune “se esquecesse” de se
autodestruir.
1.2.2.2 A coestimulação

Uma vez que uma APC reconheça através dos seus PRR um patógeno,
ela o fagocitará, processará e lhe apresentará em seu HLA passando,
então, a expressar na sua membrana um coestimulador: o CD40.
Esta proteína de membrana marca invasão e será necessária para a
ativação linfocitária. Tão logo os peptídios patogênicos ligados ao
HLA sejam reconhecidos pelo linfócito T, este expressará em sua
membrana um CD40L, que buscará o seu sítio de ligação, o CD40. Se
não houver contato entre estes ligantes, o linfócito se torna anérgico
e entra em apoptose. Se houver contato entre estes ligantes, o
linfócito passará a expressar em sua membrana o CD28 e a APC
passará a expressar o CD80/CD86. Um novo contato entre estas 2
moléculas finaliza o processo de ativação e torna o linfócito T
outrora naïve (Th0, inativo, ou seja, em busca do seu antígeno-alvo)
um linfócito ativo (Jenkins et al., 2001). A Figura 1.2 resume a
coestimulação.
Figura 1.2 - Esquema mostrando os sinais trocados entre um linfócito T e uma célula
apresentadora de antígeno
Nota: após fagocitose e processamento do patógeno, peptídios são expostos no HLA
(MHC). Se houver correspondência entre o HLA com peptídios e o TCR linfocitário,
ocorrem novos sinais que podem estimular ou inibir a ativação linfocitária. Linfócitos que
não recebem sinais coestimulatórios entram em anergia ou apoptose.
Fonte: elaborado pelo autor.

1.2.2.3 O HLA

O HLA humano é uma estrutura composta por cadeias alfa e beta


oriundas do complexo maior de histocompatibilidade (MHC), uma
região genética do braço curto do cromossomo 6. Regiões chamadas
de DP, DR e DQ codificam as cadeias alfa e beta do HLA de classe II
(Figura 1.3); as regiões A, B e C, por sua vez, codificam as cadeias
alpha do HLA de classe I (Figura 1.4). HLAs de classe II exibem
antígenos fagocitados pelas APCs para linfócitos T do tipo CD4+;
estes linfócitos são aqueles que reproduzem os mecanismos
anteriormente descritos. HLAs de classe I, por outro lado, exibem
antígenos capturados do intracelular (ou seja, que estavam
infectando a célula) para linfócitos TCD8+, que são linfócitos
citotóxicos. Linfócitos citotóxicos são capazes de induzir a morte
celular das células infectadas, mas, na maior parte das vezes,
precisam ser previamente ativados por linfócitos T CD4+.
Figura 1.3 - HLA do tipo II
Nota: HLA do tipo II, com 2 cadeias alfa e 2 cadeias beta. O sítio de ligação e exposição do
peptídio se encontra entre as cadeias alfa e beta superiores (alfa 1 e beta 1).
Fonte: elaborado pelo autor.

Figura 1.4 - HLA do tipo I


Nota: HLA do tipo I, com 3 cadeias alfa e um resíduo de beta-2 microglobulina. O sítio de
ligação e exposição do peptídio se encontra entre as cadeias alfa superiores e beta
superiores (alfa 1 e alfa 2).
Fonte: elaborado pelo autor.

1.2.2.4 Resposta linfocitária


Como descrito anteriormente, após a fagocitose de um patógeno e
sua consequente exposição no HLA, uma vez que ocorra
correspondência entre o HLA ligado ao peptídio e o TCR, ambas as
células trocam sinais confirmatórios autorizando o linfócito T a
iniciar a resposta imune adaptativa. Células invadidas e infectadas
por micro-organismos intracelulares também são capazes de
continuamente expor epítopos dos seus hóspedes aos linfócitos T,
gerando uma resposta citotóxica.
O ambiente no qual ocorre a coestimulação e as características do
patógeno exposto determinam a polarização assumida pelo linfócito
T. Se o patógeno exposto for, por exemplo, um vírus, que
caracteristicamente é intracelular, a APC tenderá a inundar as
imediações do contato com IL-12, sinalizando a preferência do
linfócito T virgem (naïve) pela via Th1. Nesta via, linfócitos T
auxiliares (T helper, Th), agora ativados, irão liberar citocinas como
o TNF (tumoral necrosis factor) alfa e o interferon (IFN) gama
(Schmitt; Ueno, 2015); estas citocinas, por sua vez, são potentes
ativadoras de fagócitos e linfócitos NK (Natural Killer). Uma vez
ativados, fagócitos são autorizados a aniquilar eventuais hóspedes
internos, através da ativação de proteases e espécies reativas de
oxigênio, que são tóxicas aos patógenos. Ademais, esta resposta
também estimula macrófagos e neutrófilos a liberarem enzimas
proteolíticas nas imediações, causando destruição tecidual, no
intuito de isolar as células acometidas. Por fim, células NK, agora
ativadas, irão causar morte celular a diversas células infectadas. Este
mecanismo evoluiu no sentido da sua alta especificidade para
neutralizar germes ocultos no ambiente intracelular. Se, por outro
lado, o patógeno for extracelular, a APC sinaliza ao linfócito através
de IL-6, IL-21 e IL-23. Estas citocinas desviam a resposta do
linfócito naïve para um perfil Th17 ou Tfh (célula T auxiliadora do
folículo), a depender da influência de fatores de transcrição
(Schmitt; Ueno, 2015). Na prática, estas respostas culminam com a
ativação de linfócitos B pela via Tfh, dependente de IL-6 e IL-21,
levando-lhes à diferenciação como células produtoras de grandes
quantidades de anticorpos. Outrossim, o linfócito Th17 também
produz IL-17, uma potente sensibilizadora de fagócitos e ativadora
de componentes da matriz extracelular, que prepara o sistema de
defesa para a fagocitose de partículas opsonizadas (ou seja, cobertas
de anticorpos). Na prática, de maneira admiravelmente eficaz, esta
polarização do sistema imune se presta a marcar e destruir os
patógenos extracelulares.
Por fim, uma infecção por germes relativamente grandes, como
parasitas ou helmintos, gerará uma polarização Th2. Um linfócito de
perfil Th2 geralmente se desenvolve em um ambiente rico em IL-4 e
secreta IL-5 e IL-13. Este perfil de citocinas estimula a migração
eosinofílica e estimula linfócitos B a secretarem IgE. Na prática, a
resposta Th2 promove ataque eosinofílico e mastocitário, que,
através de enzimas altamente proteolíticas, causa lesão na extensa
macroestrutura dos patógenos (Schmitt; Ueno, 2015).
Respostas Th1 em geral cursam com mecanismos celulares,
destruição tecidual crônica e eventual formação de granuloma;
respostas Th2 são muito intensas, porém fugazes, e causam
processos alérgicos; por fim, respostas Th17 cursam com lesão
tecidual menos destrutiva e, eventualmente, alta produção de
anticorpos (mecanismo humoral).
1.2.2.5 O sistema do complemento

Os efetores mais diretamente importantes para a resposta imune são


celulares, mas, mesmo na ausência de células participando
diretamente da resposta imune, ela ainda pode ocorrer. Além da
participação passiva de barreiras de proteção, fluidos secretados e
enzimas antimicrobianas, o sistema do complemento participa
ativamente da destruição patogênica. Ademais, esta circuitaria
química representa mais um elo entre o sistema imune inato e o
adaptativo, sendo ativada pelas 2 vertentes.
Tratam-se de componentes proteicos circulantes capazes de agir
isoladamente – recrutando células de defesa, de forma quimiotáxica
– ou após agrupamento e ativação em cascata, levando à formação
de opsoninas – que marcam para fagocitose e inativam patógenos –
ou do complexo de ataque à membrana (MAC), uma estrutura que
forma poros nos invasores e os elimina.
O complemento é entendido como parte do sistema imune inato,
pois não se adapta conforme a resposta ocorre. Contudo, a sua
ativação pode decorrer tanto do contato direto com o patógeno (e,
portanto, seguindo o arquétipo de resposta do sistema imune inato)
quanto do contato com imunoglobulinas (e, portanto, após a
ocorrência da resposta imune adaptativa). Por essa razão, o sistema
do complemento é extremamente importante no sentido de que une
os 2 sistemas em uma resposta conjunta. A via que dialoga com o
sistema imune adaptativo é chamada de via clássica do
complemento.
As vias não clássicas são aquelas que se relacionam com o contanto
direto com o patógeno e se dividem na via alternativa e na via da
lectina.
De início, para se compreender as vias do complemento, deve-se ter
em mente que todas as frações inativas são precursores produzidos
pelo fígado, estão circulando livremente e dependem de contato com
um estimulante para que desempenhem a sua função. Os
componentes são identificados com um “C” e um número após,
simbolizando a sua ordenação na cascata. A maior parte dos
precursores, após ativados, geram novas moléculas, designadas
pelas letras minúsculas “a” ou “b”. O agrupamento de diversos
precursores ativados permite a formação de convertases, que ativam
novas frações do complemento sucessivamente, e o “resto” das
reações geralmente forma fragmentos de complemento, que agem
como opsoninas. Uma vez que se forme a convertase de C5, C5 será
clivado progressivamente até a formação de C9, que, na prática, é o
MAC. Portanto, a união de todas as vias do complemento se dá em
C5.
Na via clássica do complemento, o contato da fração C1 do
complemento com as frações Fc das imunoglobulinas
(especialmente IgG e IgM) causa clivagem de algumas porções de C1,
tornando-o capaz de ativar C4 e C2. A combinação de frações
ativadas de C4 e C2 (formando C4b2a) cria uma convertase de C5
(West, 2015). Desta observação se conclui que, portanto, fenômenos
que ativem predominantemente a via clássica do complemento, ou
seja, que envolvam grande produção de anticorpos, cursam com
redução mais acentuada de C1, C2 e C4.
C4 é uma fração dosada com facilidade na
prática clínica e pode ser usada como
marcadora de ativação pela via clássica,
ajudando na busca pela etiologia das
inflamações.

Na via alternativa, o contato da superfície patogênica (rica em


sacarídeos típicos de patógeno) com C3 causa ativação de C3 (em
conjunto com cofatores), que, após algumas clivagens e associações
com fatores, torna-se uma convertase de C5 (West, 2015). Portanto,
pode-se inferir que processos patogênicos sem a participação
majoritária de anticorpos provavelmente irão produzir queda mais
acentuada de C3.
C3 é uma fração dosada com facilidade na
prática clínica também. A queda de C3 não
acompanhada de C4 sugere mais infecção do
que autoimunidade.

A via da lectina depende da interação da superfície bacteriana com


uma colectina (um PRR secretado) chamada MBL (lectina ligadora de
manose). Após esta interação, serinoproteases contribuem para
tornar a MBL uma enzima capaz de clivar C2 e C4. Como visto
anteriormente, a combinação de frações ativadas de C2 e C4 pode se
comportar como convertase de C5, ativando a cascata final (West,
2015).
Como demonstrado, o complemento é uma via potente e
relativamente fácil de ser ativada, devendo sempre ser finamente
regulada. Células do hospedeiro possuem mecanismos ativos para
inativar as frações do complemento e não permitir a sua adesão.
Contudo, quando quantidades enormes de imunocomplexos
circulam e depositam em diversos vasos terminais e tecidos, os
mecanismos reguladores podem ser suplantados e autoimunidade
pode se desenvolver (ver item 1.3).
1.2.3 Reparação tecidual
Toda a resposta imune, como percebido anteriormente, gera
destruição e dano, tanto em nível celular quanto tecidual. É fato que,
analogamente a uma guerra, o cenário de devastação após uma
defesa bem-sucedida torna absolutamente impossível o retorno
imediato à homeostase. Assim, o sistema imune evoluiu no sentido
de, assim que as respostas inflamatórias são ativadas, ativar
igualmente vias de imunossupressão e reparo tecidual. O sucesso tão
frequente do sistema imune em combater infecções sem causar o
colapso do hospedeiro reside justamente no equilíbrio entre uma
defesa eficaz e uma imunomodulação apropriada. Esta função de
atenuar o sistema imune e recrutar os componentes da matriz
extracelular na função de reparo é atribuída, entre outras, à via T
auxiliar reguladora (Treg). A ativação do linfócito T,
independentemente de sua polarização, também ativa fatores
intracelulares de transcrição, notadamente o forkhead box P3
(Foxp3), que sinaliza para uma mudança nas suas proteínas de
membrana, levando o linfócito a: expressar o inibidor de
coestimulação CTLA-4 (cytotoxic lymphocyte antigen 4), que bloqueia
a confirmação de sinal entre a célula apresentadora e o linfócito
(Figura 1.2); e secretar citocinas anti-inflamatórias, como a IL-10 e o
TGF (transforming growth factor) beta, que sinalizam para a
inativação do fagócitos, polarização para Treg e ativação dos
fibroblastos para produção de matriz extracelular. Na prática,
portanto, a via Treg cessa a resposta imune de ataque e inicia a
resposta imune reparadora (Belizário et al., 2016).
Os mecanismos supracitados resumem algumas das vias
auxiliadoras fisiológicas do sistema imune. É, de fato, fascinante
como, na imensa maioria das vezes, os mecanismos de defesa
funcionam de maneira eficaz não somente neutralizando infinitas
ameaças aos quais o hospedeiro se expõe rotineiramente, mas,
também, sabendo se autorregular para não exterminar o self.
Contudo, na ocorrência de falhas no sistema imune, eventualmente,
patologias se desenvolvem. Algumas com repercussão apenas local,
como a aterosclerose, e outras com repercussão sistêmica com
graves consequências ao hospedeiro, como a sepse, os processos
alérgicos ou anafiláticos, as autoimunidades e a autoinflamação.
1.3 O SISTEMA IMUNE NA DOENÇA
A seguir, esta obra se dedicará a explorar brevemente os principais
mecanismos envolvidos nas doenças reumáticas. O sistema imune
está envolvido em muitas patologias descritas pela Medicina
moderna e seria necessária irreal presunção e uma quantidade
inimaginável de páginas para descrevê-las em sua plenitude. O
objetivo desta seção é apenas permitir ao estudante que se aventura
pelo conhecimento reumatológico ter uma noção das vias
fisiopatológicas nas nossas doenças, especialmente no que se refere
à associação clínico-fisiopatológica.
De maneira bastante ampla, as doenças que o reumatologista aborda
possuem disfunção em uma das grandes vias da imunidade: a
imunidade inata ou a imunidade adaptativa. Muito frequentemente
possuem disfunções em ambas as vias, mas, em geral, identifica-se
uma via predominante pelas características clínicas, laboratoriais e
anatomopatológicas. As doenças com disfunções na imunidade inata
são denominadas doenças autoinflamatórias; por sua vez, aquelas
que são principalmente decorrentes de disfunção na imunidade
adaptativa são chamadas de autoimunes.
Muitas doenças não primariamente imunes possuem facetas
autoinflamatórias (como as artrites microcristalinas), mas as
doenças primariamente autoinflamatórias são muito raras e não
serão abordadas nesta obra, por fugirem ao seu escopo. As doenças
autoimunes, porém, são as principais doenças manejadas pelo
reumatologista e foram extensamente estudadas nas últimas
décadas.
A explicação da sua fisiopatologia pode partir, epistemologicamente,
de diversos prismas, que, em conjunto, expressam o todo da
manifestação patológica (que provavelmente nunca será atingido
pela humanidade, assim como em qualquer ciência, que nunca está
completamente explorada). Podemos, por exemplo, partir das
quimiocinas envolvidas nos processos patológicos para aventar
teorias sobre a origem da disfunção, como também podemos partir
dos fatores de transcrição mais ativados para conjecturar sobre as
maquinarias celulares e teciduais envolvidas. O mundo científico
atualmente permite infinitas possibilidades no que se refere ao
ponto de partida.
A seguir, abordaremos a disfunção do sistema imune adaptativo pelo
prisma que consideramos mais unicista e universal, dentro do que se
conhece até o momento sobre fisiopatologia. Ao longo desta obra,
conceitos aqui definidos serão retomados com frequência, uma vez
que são a base para a compreensão das manifestações fenotípicas
das doenças. Lembramos, contudo, que as vias e explicações aqui
expostas não esgotam de maneira alguma todo o conhecimento
sobre a imunologia relacionada às doenças reumáticas, servindo
apenas como norte ao estudante, sempre priorizando a prática
clínica.
1.3.1 Autoimunidade
Tomadas como, por definição, disfunções do sistema imune
adaptativo (West, 2015; Davidson; Diamond, 2001), as
autoimunidades inferem ativação patológica e mantida do sistema
imune adaptativo, ou seja, dos linfócitos T e B, sem um estímulo
infeccioso, tóxico ou neoplásico que a justifique. Uma das maneiras
mais didáticas de se compreender as doenças autoimunes será,
portanto, focar-se no perfil da polarização do principal orquestrador
da resposta imune: o linfócito T.
De fato, o perfil T helper envolvido nas doenças foi o principal
mecanismo usado pela indústria farmacêutica a partir do início do
século 21 para desenvolver as terapias-alvo que a Reumatologia
possui hoje ao seu dispor. Ainda hoje se usam esses conceitos para o
estudo das doenças e para o desenvolvimento de novas terapias, cada
vez mais aliados aos conhecimentos sobre regulação de transcrição
gênica.
Quatro vias primordiais foram mais bem descritas nas doenças
reumáticas: Th1, Th2, Th17 e Treg.
1.3.1.1 Th1

A via Th1 é a via primariamente responsável pelo combate aos


germes fastidiosos e intracelulares, gerando uma potente ativação
macrofágica e neutrofílica. A disfunção linfocitária com polarização
para o perfil Th1 gera inflamação tecidual diretamente, com
infiltração dos tecidos com fagócitos e linfócitos citotóxicos e pode
levar à formação de granulomas em ambiente rico em IFN gama
(Asano et al., 1993). Clinicamente, processos autoimunes Th1-
mediados costumam produzir quadros francamente inflamatórios,
com muitos sinais flogísticos e eventual destruição tecidual, com
grande potencial de gerar sequelas. Essas facetas podem ser mais
bem observadas nas artropatias autoimunes – que possuem forte
componente Th1 e cursam com destruição articular e erosão óssea –,
ou nas vasculites de grandes vasos ou associadas ao anticorpo
anticitoplasma de neutrófilo (Hochberg, 2019), que causam lesão e
distorção arquitetural da parede vascular (no caso daquelas) ou das
vias aéreas (no caso destas).
De maneira geral, formação de granulomas,
cavitações pulmonares e erosões ósseas
sugerem mecanismo relacionado à resposta
Th1.

1.3.1.2 Th2

A via Th2 é pouco estudada na Reumatologia. Na fisiologia normal,


relaciona-se com germes extracelulares de grandes dimensões.
Processos patológicos relacionados à via Th2 geralmente cursam
com manifestações atópicas, como asma, rinite, polipose nasal e
dermatite atópica (Brandt; Sivaprasad, 2011). Uma doença
relacionada à via Th2 na Reumatologia é a granulomatose
eosinofílica com poliangiite, que cursa com manifestações Th1
(granulomas), Th2 (facetas alérgicas) e Th17 (ver adiante).
1.3.1.3 Th17

A via Th17 se relaciona com 2 mecanismos efetores distintos. O


primeiro deles, dependente de IL-6, IL-17 e IL-23, é responsável
pela ativação e recrutamento de fagócitos, sensibilizados para
realizar eliminação de patógenos marcados pelas opsoninas. O
segundo, dependente de IL-6 e IL-21, potencializa a ação de outro
linfócito T auxiliar, o linfócito Tfh, e ativa os linfócitos B para
produção de imunoglobulinas. Voltado ao combate de germes
extracelulares, esta via garante que sejam produzidas globulinas
para marcar os patógenos e que sejam ativados fagócitos para
neutralizá-las (Crome et al., 2010).
Na doença, a hiperativação de um perfil Th17 promove inflamação
tecidual direta, como aquela vista nas vasculites relacionadas ao
anticorpo anticitoplasma de neutrófilo, nas manifestações
periarticulares das espondiloartrites ou nas inflamações teciduais e
orgânicas vistas nas doenças sistêmicas do tecido conectivo;
acompanhada eventualmente de alta produção de anticorpos, como
se vê nas conectivopatias autoimunes.
Quando os autoanticorpos encontram os seus antígenos na
circulação, ocorre formação de imunocomplexos, que podem se
depositar na circulação terminal ou mesmo nos tecidos. Quando nos
tecidos, contribuirão mais para a inflamação tecidual; quando nos
vasos, porém, produzem as singulares vasculites mediadas por
imunocomplexos. A deposição do imunocomplexo no vaso provoca
intensa resposta inflamatória local, com migração de células
efetoras e clivagem sequencial do complemento, culminando em
oclusão e destruição do vaso, com sofrimento das estruturas à
jusante e extravasamento de conteúdo sanguíneo local. Todas as
condições autoimunes que cursam com alta produção de anticorpos
que têm como alvo antígenos circulantes acessíveis podem cursar,
portanto, com manifestações vasculíticas.
Doenças do polo Th17 cursam com inflamação
tecidual (sinovite, serosite, dermatite, miosite
etc.) e, quando houver alta produção de
anticorpos, com fenômenos vasculíticos.

1.3.1.4 Treg

Como exposto anteriormente, a via T helper reguladora é essencial ao


desligamento do sistema imune de ataque e ativação do sistema
imune reparador. Na saúde, esta via inibe a coestimulação
linfocitária e estimula fibroblastos e outras células de função trófica
a secretar colágeno e outros componentes da matriz extracelular,
que se organiza e reconstrói o tecido lesado.
Nas condições com disfunção da via Treg, notoriamente nas doenças
sistêmicas do tecido conectivo, as células mesenquimais se
comportam de maneira quase neoplásica e depositam quantidades
desproporcionais de colágeno e outros componentes da matriz, que,
em excesso, passam a causar disfunção orgânica e tecidual. Com a
perpetuação do ciclo, o colágeno se organiza, formando extensas
zonas de fibrose. Em geral, após o processo de fibrose se estabelecer,
há irreversibilidade do dano tecidual e incapacidade de retorno à
homeostasia.
#IMPORTANTE
As principais representantes das doenças com
disfunção Treg são as doenças sistêmicas do
tecido conectivo.

1.3.2 Autoinflamação
As doenças autoinflamatórias geralmente se referem a disfunções na
ativação dos inflamossomas e das vias a eles relacionadas. Ao
contrário das doenças autoimunes, que geralmente possuem causa
poligênica e multifatorial, as doenças autoinflamatórias possuem
quadro genético mais bem definido (inclusive frequentemente
monogênico, com herança bem definida). Mutações em proteínas
envolvidas no funcionamento do inflamossoma o tornam
hiperativado, cursando com aumento da produção e da ação de
citocinas diversas, mas, especialmente, da IL-1. A IL-1 é uma
citocina muito relacionada à resposta dos fagócitos ao
reconhecimento de padrões patológicos e de dano, aos sinais
cardinais de inflamação e à febre. Situações dependentes de IL-1
geralmente cursam com muita flogose local e, quase
invariavelmente, febre. Pela característica da ativação do
inflamossoma, uma estrutura que se esgota de tempos em tempos, a
febre nas doenças autoinflamatórias é, tipicamente, periódica.
#IMPORTANTE
Ao longo de meses, febres de caráter periódico
sugerem autoinflamação, ao passo que febres
mantidas sugerem autoimunidade.
O que define uma doença
autoimune?
Doenças autoimunes são condições clínicas decorrentes da
ativação patológica e mantida do sistema imune
adaptativo, ou seja, dos linfócitos T e B, sem um estímulo
infeccioso, tóxico ou neoplásico que a justifique.
Dentro de uma unidade
motora articular, quais são
as estruturas de maior
interesse nas doenças
reumáticas?

2.1 INTRODUÇÃO
A Reumatologia é uma ciência com um ramo de estudo amplo e de
difícil determinação. O nome da especialidade deriva do termo grego
rheuma, que simboliza algo como “líquido fluindo”. Tal
nomenclatura remete à medicina hipocrática, que imaginava que os
diversos distúrbios corporais se deviam à desorganização dos fluidos
(humores) intrínsecos. De fato, a dor articular, um dos sintomas
mais comuns da humanidade, era relacionada ao desbalanço em
diversos fluidos, eminentemente o próprio líquido articular. De
maneira ampla, toda dor articular era chamada de reumatismo,
simbolizando uma alteração no fluxo fisiológico. Anos depois,
durante a Idade Média, cunhou-se também o termo “gota” para se
referir à pequena quantidade de líquido que pingava nas articulações
de reis e nobres que se ilibavam com álcool e comilanças (Nuki;
Simkin, 2006).
Pode-se notar, portanto, que, historicamente, o termo reumatismo
sempre esteve associado à ideia de dor, especialmente dor no
aparelho locomotor, estando entre as doenças mais comuns da
humanidade. Durante muito tempo, portanto, muitos médicos
trataram enfermidades locomotoras sem perceber que se referiam a
distúrbios do sistema imune. De fato, a compreensão de que a
Reumatologia tratava, na verdade, de disfunções do sistema
imunológico, só veio muito mais tarde, no século 20.
As articulações e os músculos são órgãos muito sensíveis à
inflamação e à dor. Citocinas inflamatórias, mesmo de processos à
distância, são capazes de adentrar o espaço articular e sinalizar para
a redução do limiar álgico e, inclusive, para recrutamento celular
para o espaço articular. As fáscias musculares parecem igualmente
sensíveis aos distúrbios inflamatórios e estímulos álgicos, causando
dor difusa em uma infinidade de patologias absolutamente não
diretamente ligadas aos músculos (como quadros infecciosos,
reações vacinais, dor crônica e mesmo à privação de sono). Por essa
razão, dor articular sem grandes sinais flogísticos ou dor muscular
sem sinais de lesão muscular objetiva são sintomas promíscuos de
doença e não ajudam a topografar patologias.
Resumindo, atualmente a Reumatologia é uma ciência clínica que
trata das síndromes álgicas do aparelho locomotor, estando elas
relacionadas ou não ao sistema imune. Assim sendo, qualquer
estudante que planeja entender as nossas patologias precisa
conhecer o capítulo Noções gerais de imunologia, deste livro, e o
presente capítulo, que se propõe a explicar as noções básicas sobre a
anatomia e fisiologia da locomoção.
2.2 ARTICULAÇÕES
A compreensão das doenças reumáticas passa invariavelmente pelo
entendimento, ainda que superficial, do funcionamento das
estruturas relacionadas ao aparelho locomotor. É verdade que as
afecções reumáticas acometem muito mais do que os aparelhos
relacionados à movimentação, mas, tratando-se de desordens que
possuem disfunção intimamente relacionada ao tecido conectivo,
quase invariavelmente as patologias dessa especialidade se
apresentarão com algum sintoma relacionado a ossos, sinóvia,
cartilagens ou músculo.
De maneira bastante simplista, as articulações são as estruturas
responsáveis por unir 2 ou mais ossos, conferindo movimentação ao
esqueleto. Existem diversas articulações diferentes no corpo,
algumas delas com maior movimentação e outras com menor, a
depender da estrutura articular em si e dos músculos e ligamentos
que a circundam.
Genericamente, uma articulação é formada de maneira elementar
pelos ossos e cartilagens associadas. Alguns grupos de articulações
possuem mais de uma cartilagem e, portanto, um espaço articular,
que pode ser circundado pela estrutura sinovial e por uma cápsula
fibrosa. A Figura 2.1 representa o esquema básico de uma articulação.
As articulações podem ser divididas, inicialmente, conforme a
densidade da cartilagem que possuem:
1. Sinartroses: junções de tecido conectivo extremamente fibroso que
unem 2 extremidades ósseas, com mínima ou nenhuma possibilidade
de movimentação – o exemplo principal são as suturas cranianas;
2. Anfiartroses: fibrocartilagens adjacentes às extremidades ósseas,
permitindo um grau pequeno de movimentação – os exemplos
principais são os discos vertebrais, a sínfise púbica e a parte superior
da articulação sacroilíaca;
3. Diartroses: conhecidas também como articulações sinoviais,
possuem uma membrana sinovial e realmente um espaço articular,
permitindo ampla movimentação.

Figura 2.1 - Componentes elementares de uma articulação sinovial


Fonte: adaptado de Madhero88, 2010.

As articulações sinoviais são o principal alvo das


doenças reumáticas, devido à ampla gama de
movimentos (tornando-as mais suscetíveis a
lesões) e ao potencial inflamatório da
membrana sinovial.

As articulações sinoviais são subdivididas, de maneira resumida,


conforme o seu grau de mobilidade, em:
a) Esferoides, como as articulações do quadril e ombro;
b) Dobradiças, como as articulações dos dedos e dos joelhos;
c) Selares, como a carpometacarpal do polegar;
d) Planas, como a patelofemoral.

2.2.1 Complexo sinovial


O estudo do tecido sinovial é de grande importância no
entendimento da patogênese da artrite inflamatória. Apesar disso,
nosso conhecimento da arquitetura imuno-histoquímica da
membrana sinovial, particularmente em indivíduos normais, é
surpreendentemente limitado, principalmente devido à falta de bons
marcadores específicos de tecidos e células e à dificuldade em se
obter tecido sinovial precocemente.
A sinóvia normal possui uma fina membrana sinovial que margeia
todas as estruturas intracapsulares, exceto pela superfície de contato
da cartilagem articular. As células da membrana sinovial ficam
inundadas por matriz extracelular rica em colágeno tipo I e
proteoglicanos e são compostas majoritariamente por 2 tipos:
sinoviócito tipo A, que são células com ação fagocítica, e sinoviócito
tipo B, que são derivadas fibroblásticas e sintetizam a matriz
extracelular e o líquido sinovial. A membrana sinovial possui
capilares sanguíneos e linfáticos, nervos e ainda pode ser habitada
por células dendríticas e mastócitos.
O líquido sinovial produzido pelos sinoviócitos é rico em ácido
hialurônico, seu principal componente, que garante a viscosidade
característica que vemos na artrocentese. A perda da viscosidade
pode simbolizar o aumento de proteínas no espaço articular,
simbolizando um líquido eventualmente inflamatório.
2.2.2 Cartilagem articular
A cartilagem articular é o principal alvo patológico da osteoartrite.
Trata-se de uma estrutura avascular e não inervada que é composta
de uma rede esparsa de células secretoras de matriz extracelular
denominadas condrócitos. Os condrócitos são os principais
responsáveis pela manutenção da homeostase cartilaginosa.
A cartilagem é composta primariamente de colágeno tipo II que
circunda uma rede complexa de glicosaminoglicanos (que em
conjunto são chamados de agrecanos) ancorados em hialuronato
(Figura 2.2). Essa composição proteica específica permite à
cartilagem se comportar como uma estrutura absorvente de
impacto, possuindo rigidez e resiliência concomitantes.
Figura 2.2 - Esquema da distribuição da rede colagênica combinada com os
glicosaminoglicanos na cartilagem articular

Fonte: adaptado de Mfigueiredo, 2009.

A glicosamina e a condroitina, suplementos


comercializados supostamente para o
tratamento de osteoartrite, contém moléculas
relacionadas aos agrecanos.

Como a cartilagem não é vascularizada, a sua nutrição depende dos


fluidos articulares e da nutrição por difusão do osso adjacente. Parte
da nutrição da cartilagem depende da mobilização articular, pois o
processo físico funciona como uma bomba compressora sobre a
estrutura, alterando as pressões de entrada e saída do líquido da
cartilagem para a cavidade sinovial e vice e versa.
A sinalização álgica dos processos destrutivos para a cartilagem
depende, principalmente, da estimulação do osso subcondral e da
membrana sinovial, uma vez que a cartilagem não possui inervação.
É muito provável, portanto, que a dor da osteoartrite, por exemplo,
dependa muito mais de fatores relacionados ao osso subcondral, à
inflamação, às estruturas periarticulares e à neuromodulação do que
à destruição da cartilagem em si (Eitner et al. 2017). Isso explica em
partes porque muitas das terapias voltadas à recuperação da
cartilagem em si não apresentam bons resultados.
A cartilagem articular é firmemente ancorada ao osso subcondral,
com quem guarda íntima relação. De fato, o que ocorre não é sequer
uma adesão da cartilagem ao osso, mas, sim, uma transição
paulatina, em camadas, de tecido cartilaginoso em tecido ósseo
(Figura 2.3).
Figura 2.3 - Transição da cartilagem ao osso subcondral (extremidade óssea adjacente à
cartilagem)
Fonte: adaptado de VectorMine.

2.2.3 Estruturas periarticulares


Além das articulações em si, diversas estruturas auxiliares do
movimento podem estar acometidas nas doenças reumáticas, tanto
as de cunho inflamatório quanto mecânico. A diferenciação da
topografia do processo patológico, definida idealmente por exame
físico, mas eventualmente corroborada por exames de imagem,
ajuda enormemente na formação das hipóteses diagnósticas e na
estratégia de tratamento.
No que se refere às desordens mecânicas, frequentemente mais de
uma estrutura está acometida, uma vez que o processo decorre de
desbalanço de forças e cadeias do movimento. É importante que, no
programa de reabilitação, o fisioterapeuta ou o terapeuta
ocupacional sejam orientados sobre as fontes suspeitas da dor.
2.2.3.1 Tendões

Os tendões são constituídos por um arranjo hierárquico de feixes de


fibras de colágeno, predominantemente do tipo I, orientados ao
longo do eixo do tecido (Hochberg, 2019). Outros constituintes
principais são a água e a matriz extracelular não colagênica. De
maneira simplista, tendões são cabos extremamente resistentes que
unem os músculos aos ossos. Eles são responsáveis por transmitir a
força muscular e garantir estabilidade ao movimento.
Os tendões são suscetíveis a danos e efeitos do envelhecimento. As
doenças que afetam essas estruturas podem surgir na forma de
trauma agudo resultante de um impacto (como uma rotura tendínea
parcial após um levantamento de peso) ou, muito mais comumente,
como resultado de microtrauma repetitivo que ocorre por longos
períodos (como na tendinopatia de calcâneo). Em geral, o segundo
cenário vem acompanhado de fraqueza ou descondicionamento do
músculo associado ao tendão – ou dos músculos acessórios deste –
ou de desalinhamentos no movimento que atrapalham a sua
ergonomia.
As apresentações clínicas da patologia intrínseca dos tendões podem
ser variáveis. Os pacientes podem sentir dor e perda de função com
um tendão estruturalmente intacto ou apresentar uma ruptura
“espontânea” do tendão sem dor pré-existente ou perda percebida
de função. Há também uma variação individual considerável entre o
grau de dor experimentada por um paciente e a extensão da doença
estrutural do tendão presente.
2.2.3.2 Bainhas sinoviais

Algumas áreas dos tendões – como as que cobrem ossos salientes ou


as que se encontram em espaços muito confinados – são protegidas
por bainhas de tecido conjuntivo. As bainhas dos tendões são
compostas por membrana sinovial, que, por sua vez, secreta líquido
sinovial lubrificante, para que os tendões possam deslizar facilmente
através delas.
Uma vez que as bainhas tendíneas são compostas de estrutura
sinovial, são alvo potencial de muitas doenças reumáticas
autoimunes que cursam com sinovite. Como os locais onde existem
bainhas tendíneas são naturalmente confinados e adversos,
inflamações nessas estruturas produzem grande sintomatologia,
com edema e dor local. O mais simbólico exemplo de tenossinovite
nas doenças reumáticas autoimunes é a dactilite. Na dactilite, a
bainha sinovial dos tendões dos flexores dos dedos fica inflamada,
produzindo eritema e edema exuberantes em um ou mais dígitos
(Figura 2.4). O resultado final lembra uma salsicha, dando o curioso
nome do achado propedêutico de dedo “em salsicha”.
Figura 2.4 - Dedo “em salsicha” ou dactilite no segundo pododáctilo direito

Fonte: ABC of Rheumatology, 2009.

Tenossinovites também ocorrem por processos mecânicos,


geralmente por movimentos repetitivos com angulação inadequada
– por posturas viciadas ou fraqueza e descondicionamento
muscular. O mais trivial exemplo de tenossinovite mecânica é a
tenossinovite de De Quervain. Trata-se de tenossinovite do primeiro
compartimento dorsal dos quirodáctilos, acometendo o abdutor
longo e o extensor curto do polegar (Figura 2.5). É comum em
mulheres de 30 aos 50 anos, associada a gestação, puerpério ou
movimentos repetitivos. Eventualmente, pode-se identificar, na
história, movimentos com o polegar repetitivos como punho em
desvio radial ou ulnar. A dor geralmente é referida na base do
polegar e se confunde com a dor por rizartrose.
Figura 2.5 - Localização dos tendões do extensor curto do polegar e do abdutor longo do
polegar, bem como as suas bainhas sinoviais
Nota: é na região das bainhas que ocorre a tenossinovite de De Quervain.
Fonte: adaptado de ellepigrafica.

2.2.3.3 Ênteses
A entese é a inserção de um tendão, ligamento, cápsula ou fáscia no
osso. Essa ligação é estabelecida através de um gradiente
estruturalmente contínuo, do tendão não calcificado ao osso
calcificado. As ênteses podem ser ainda descritas de acordo com o
tipo de tecido presente no local de ligação esquelética,
especificamente, tecido conjuntivo fibroso denso ou fibrocartilagem.
As ênteses fibrosas se ligam diretamente ao osso ou periósteo,
principalmente por meio de tecido fibroso, cuja estrutura é
semelhante à do tendão. As ênteses fibrocartilaginosas se ligam ao
osso através de uma camada de fibrocartilagem que atua como uma
transição do tecido fibroso do tendão; essas ênteses, as mais
prevalentes no aparelho locomotor, também se encontram em
íntima relação com as sinóvias e bursas, de tal forma que, nos
últimos anos, emergiu uma nova visão dessa estrutura insercional
morfofuncional, denominada complexo sinovioentesial (Hochberg,
2019). Essa estrutura é particularmente vulnerável à autoimunidade,
especialmente quando há disfunção Th17 e grande participação das
IL-17, IL-22 e IL-23 – como no caso das espondiloartrites.
#IMPORTANTE
Presença de entesite inflamatória no contexto
de autoimunidade sugere fortemente
pertencimento ao grupo das espondiloartrites.

As condições mecânicas são de grande importância igualmente, uma


vez que as ênteses têm um papel fundamental na transição de forças
do músculo ao osso e estão sujeitas a uma carga bastante grande de
energia, estando, portanto, sob risco de adoecimento. As
entesopatias envolvem distúrbios mecânicos que ocorrem por
estresse repetitivo na região da inserção. Histologicamente,
caracterizam-se por proliferação celular e desorganização da matriz
extracelular, com grau geralmente pequeno de inflamação. A
sintomatologia do paciente provavelmente se deve à sinalização por
alarminas e neuromediadores dolorosos (Hochberg, 2019).
Uma entesopatia mecânica bastante frequente é aquela relacionada
ao compartimento flexor dos pés, envolvendo a fáscia plantar e a sua
entese, denominada fasciite plantar. Trata-se de uma condição
universal, altamente prevalente – cerca de 10% em algum momento
da vida (Hochberg, 2019) –, que acomete indivíduos sedentários e
ativos, e que se manifesta com dor na face plantar do calcanhar,
descrita como pior na primeira pisada do dia. Pode ser tratada com
reabilitação após identificação do fator desencadeante, geralmente
relacionado ao ângulo da pisada do paciente ou à flexibilidade do
compartimento posterior da perna.
2.2.3.4 Bursas

As bursas são sacos fechados ou parcialmente fechados – pois


podem drenar para dentro da cavidade articular – que ocupam o
espaço entre alguns tecidos e permitem o deslizamento adequado
entre as estruturas ao longo do movimento (West, 2015). São
compostas de membrana sinovial e, portanto, são preenchidas com
pequenas quantidades de líquido sinovial secretado pelos
sinoviócitos. As bursas em sua condição fisiológica são raramente
palpáveis, mesmo quando em topografia superficial, pois possuem
paredes finas e pouca quantidade de líquido interno. Quando há
inflamação, contudo, é comum que apresentem graus variáveis de
distensão, com grande acúmulo de líquido interno e espessamento
da membrana.
As bursites de origem mecânica são desordens muito prevalentes na
prática clínica, acometendo especialmente atletas, obesos, idosos e
indivíduos altamente sedentários. Decorrem de movimento
traumático repetitivo e perda da ergonomia cinética por desbalanço,
fraqueza ou descondicionamento muscular. Os sítios mais
comumente acometidos incluem as bursas do ombro (Figura 2.6), a
bursa trocantérica do quadril (Figura 2.7), a bursa do olécrano e a
bursa anserina (Figura 2.8).
Figura 2.6 - Bursas do ombro (subacromial e subdeltóidea) e sua relação com as demais
estruturas
Fonte: adaptado de Alila Medical Media.

Figura 2.7 - Bursas do quadril e suas relações anatômicas


Fonte: adaptado de medicalstocks.

Figura 2.8 - Relação da bursa anserina com os tendões musculares da perna

Fonte: adaptado de Aksanaku.

As bursites inflamatórias ocorrem em uma infinidade de síndromes


clínicas, que incluem artropatias autoimunes, doenças sistêmicas do
tecido conectivo (especificamente a polimialgia reumática),
infecções (piogênicas e micobacterianas) e doenças por deposição de
cristais.
Bursites primárias (isto é, de origem mecânica) superficiais, como a
bursite olecraniana e a bursite calcânea, podem cursar com intensa
flogose cutânea, e, apesar de serem benignas e geralmente
autolimitadas, fazem diferencial com infecção piogênica. Na última,
geralmente há outros sinais indiretos de infecção sistêmica; ao passo
que o estado geral do paciente com bursite primária é quase sempre
normal.
2.2.3.5 Demais estruturas mecânicas

Outras estruturas menos relacionadas com as doenças reumáticas,


mas igualmente importantes ao movimento, compõem o aparelho
locomotor e incluem ligamentos, meniscos, a porção fibrosa da
cápsula articular, retináculos, aponeuroses e bandas fasciais.
Os ligamentos são uma forma especializada de tecido conectivo, com
fibras colagênicas predominantemente do tipo I altamente
organizadas e alinhadas ao eixo do tecido, de forma a garantir
grande resistência à tração. Unem ossos regionalmente relacionados
e possuem função primordialmente de sustentação e estabilidade
(West, 2015). As suas patologias geralmente envolvem mecanismo
traumático.
Os meniscos são estruturas circulares ou semilunares compostas de
fibrocartilagem que ocupam algumas articulações sujeitas a forças
oblíquas e rotacionais, como os joelhos, a articulação
temporomandibular e a articulação acromioclavicular. A maior parte
das doenças meniscais são traumáticas ou degenerativas.
A porção fibrosa da cápsula articular é uma rede de colágeno denso e
irregular que cobre externamente a membrana sinovial e a adere aos
ossos. Possui função de sustentação e proteção articular.
Os retináculos, as bandas fasciais e as aponeuroses são porções de
tecido conectivo que surgem por prolongamento ou continuidade de
outras estruturas como fáscias musculares ou ligamentos.
Geralmente apresentam uma área de reorganização e eventual
espessamento das fibras colagênicas, atribuindo à região uma
função específica de sustentação ou compartimentalização. Algumas
aponeuroses podem servir também como inserção para os músculos
(como é o caso do latíssimo do dorso).
Os retináculos mais significativos do ponto de vista clínico são
aqueles que podem originar síndromes de aprisionamento, como o
retináculo dos flexores no carpo – que pode comprimir o nervo
mediano e originar a síndrome do túnel do carpo –, e o retináculo
dos flexores do tarso – que pode comprimir o nervo tibial e causar a
síndrome do túnel do tarso. A banda fascial mais importante para a
prática clínica, por sua vez, é a banda iliotibial como prolongamento
e reorganização das fibras da fascia lata. A sua disfunção, comum em
corredores, pode ocasionar a síndrome do trato iliotibial, uma causa
de dor em joelho lateroposterior.
2.3 SISTEMA ÓSSEO
Os ossos são um tecido singular composto por estrutura colagênica
mineralizada. Essa característica dá aos ossos a capacidade
extremamente funcional de suportar gigantescas forças
compressivas, tracionais, rotacionais e cisalhantes sem se romper,
uma vez que possui a dureza da matriz inorgânica e uma relativa
maleabilidade da matriz colagênica. A depender do grau de
compactação do osso, ele pode ser dividido em osso cortical
(altamente compacto, encontrado nos ossos longos do corpo) e
trabecular (relativamente poroso e em contato com a medula óssea,
encontrado especialmente nas vértebras e ossos planos).
Existem doenças que aumentam
proporcionalmente a matriz colagênica do osso,
como a osteomalácia, e a matriz inorgânica do
osso, como as hiperostoses. Curiosamente,
ambas as situações cursam com fraturas de
repetição.
A porção orgânica do osso é composta pelas células residentes do
osso e pela matriz colagênica, composta basicamente de colágeno
tipo I; a matriz inorgânica, por sua vez, é composta especialmente de
hidroxiapatita, um sal de fósforo e cálcio.
As células residentes incluem os osteócitos, os osteoblastos e os
osteoclastos. Os osteócitos são antigos osteoblastos que ficaram
aprisionados no osso mineralizado e são os coordenadores do
metabolismo ósseo (West, 2015). Se comunicam por canais com as
demais células e são o grande orquestrador da resposta
remodeladora; são capazes de detectar estresse mecânico através do
efeito piezoelétrico e de detectar rupturas na integridade óssea. Na
vigência de qualquer um desses processos, os osteócitos estimulam
os osteoclastos a se ativarem e remodelarem o tecido ósseo
mineralizado adjacente ao local de estresse ou ruptura. Esse
processo garante que o osso velho e fissurado seja devidamente
removido e abre espaço ao trabalho do osteoblasto. É pelo efeito
piezoelétrico que se explica o aumento de massa óssea em indivíduos
que praticam esportes de impacto.
O efeito piezoelétrico ocorre devido às cargas iônicas carregadas pela
estrutura inorgânica óssea, composta de íons de cálcio e fósforo.
Uma vez que ocorre compressão óssea, cargas do interior do osso
migram para a superfície, criando um potencial elétrico ao longo do
osso e, por sua vez, um campo eletromagnético. Os osteócitos são
células sensíveis às alterações de eletromagnetismo e migram no
sentido da corrente, posicionando-se onde é necessária a reparação
(Pawlikowski, 2017).
Os osteoclastos são células derivadas de precursores hematopoéticos
monocíticos e possuem a importante função de digerir o osso.
Através de enzimas secretadas localmente, essa célula é capaz de
gerar uma verdadeira lacuna de reabsorção, remodelando o osso e o
deixando preparado para a ação formadora óssea dos osteoblastos. A
ativação dos osteoclastos depende da sinalização por osteócitos (ou
outras células inflamatórias, como linfócitos ativados, e também
osteoblastos) através do RANKL (receptor activator of NF-kB ligand).
Esta proteína de membrana dos osteócitos é capaz de se ligar ao
RANK (receptor activator of NF-kB) na superfície dos osteoclastos
inativados e imaturos. Uma vez que ocorre a ligação, diversos sinais
intracelulares promovem a ativação e migração do osteoclasto, que
pode iniciar o seu processo de remodelamento.
#IMPORTANTE
A via RANK é alvo, atualmente, de
imunomodulação através de medicamentos
imunobiológicos. A inibição da via RANK leva à
inibição da ação dos osteoclastos e, portanto,
inibição da reabsorção óssea.

Os osteoblastos, por sua vez, são células derivadas do mesênquima,


com função de produção óssea. São células pouco diferenciadas e
com alto potencial de ação e de divisão. Como tal, são reguladas
negativamente pelos osteócitos, que liberam substâncias como a
esclerostina (scler). Quando ocorre uma lacuna de reabsorção, os
osteócitos reduzem a sua produção de esclerostina e liberam os
osteoblastos para produzirem matriz colagênica. A matriz
colagênica que o osteoblasto produz precisará, ainda, ser
mineralizada para se tornar osso maduro. A mineralização completa
do tecido, orquestrada especialmente pelo osteócito, pode durar de 3
a 8 semanas (Melsen; Mosekilde, 1980).
2.4 SISTEMA MUSCULAR
O corpo possui mais de 600 músculos que, juntos, constituem 40%
da massa corpórea, em média (West, 2015). Devido ao escopo da
obra, focaremos no músculo esquelético, que se relaciona ao
aparelho locomotor. Mas existem, ainda, o músculo liso e o músculo
cardíaco, que possuem algumas diferenças com relação ao
metabolismo e à anatomia.
As células musculares esqueléticas são enormes fibras alongadas,
preenchidas com microfilamentos contráteis. Diversas células
musculares unidas foram um fascículo muscular (Figura 2.9). Cada
célula muscular recebe uma aferência de um neurônio motor e cada
neurônio motor inerva diversas células musculares. Dentro de um
mesmo fascículo, diversos neurônios motores participam da
inervação das fibras.
Figura 2.9 - Organização estrutural das fibras e fascículos no tecido muscular

Fonte: adaptado de sciencepics.

As fibras musculares são divididas conforme a sua função e,


frequentemente, dentro de um mesmo fascículo, há várias fibras
diferentes. As fibras podem ser amplamente classificadas em fibras
tipo 1, relacionadas ao metabolismo mais oxidativo, ou fibras tipo 2,
mais relacionadas ao metabolismo glicolítico.
As fibras tipo 1 possuem muitas mitocôndrias em seu sarcoplasma
(citoplasma da célula muscular) e se relacionam com as contrações
prolongadas e os exercícios aeróbicos, utilizando como substrato
energético, especialmente, os lipídios, através das reações da cadeia
respiratória. Assim sendo, são fibras que necessitam de oxigênio
amplamente disponível, dependendo da condição
cardiorrespiratória do indivíduo para seu funcionamento adequado.
As fibras tipo 2 são fibras com menor quantidade de mitocôndrias e
maior disponibilidade de glicogênio. São fibras relacionadas
especialmente com o metabolismo anaeróbio e produzem energia às
custas de carboidratos, através de reações relacionadas à glicólise.
Dependem pouco de suprimento de oxigênio e são ativadas nos
exercícios de curta duração e alta intensidade (por exemplo,
levantamento de peso).
O treinamento físico é capaz de alterar a
proporção e o tamanho das fibras (Coffey;
Hawley, 2007), bem como características
relacionadas ao metabolismo (como a eficiência
mitocondrial) e à inflamação (Munters et al.,
2016).

A contração muscular, por sua vez, depende da interação entre os


miofilamentos, que possuem capacidade de retração. Uma vez que
ocorre um estímulo elétrico conduzido pela placa motora, ocorre
aumento do influxo de cálcio para dentro do sarcoplasma, causando
uma interação entre os filamentos de actina e miosina, o que
provoca, por conseguinte, o encurtamento da fibra muscular. A
hidrólise do ATP (adenosina trifosfatada), então, torna possível o
desacoplamento entre os miofilamentos, permitindo que uma nova
contração ocorra de maneira subsequente.
A principal fonte primária de ATP para o músculo é a fosfocreatina
que, através da ação da creatinofosfoquinase (CPK), doa um fósforo
para o ADP (adenosina difosfato). A quantidade de creatina
disponível no músculo é suficiente apenas para alguns ciclos de
hidrólise de ATP, o que dura, geralmente, segundos a minutos. Após
o “esvaziamento” da creatina, novas fontes de fornecimento de ATP
passam a ser necessárias, como a glicólise e a betaoxidação,
geralmente nessa ordem. Para que esses processos metabólicos
ocorram, porém, há o custo do consumo do glicogênio e dos lipídios
musculares, a necessidade de aporte circulante de glicose e a
disponibilidade de oxigênio. O músculo é capaz de se adaptar
razoavelmente bem a essas variáveis, mudando o seu metabolismo
preferencial a depender da oferta de cada elemento.
Na vigência de fraqueza muscular, entender o momento da fraqueza
(constante, no início do treino ou após alguns minutos de exercício)
ajuda bastante a entender o mecanismo da doença e, portanto, o
diagnóstico final dos pacientes com miopatias.
As doenças musculares ocorrem por uma gama enorme de
condições, como distúrbios genéticos, endócrinos, metabólicos,
infecciosos, iônicos, autoimunes e degenerativos. Na Reumatologia,
há grande importância em diferenciar se a queixa muscular
apresentada pelo paciente representa mesmo lesão muscular. Como
dito anteriormente, a presença de dor muscular é um achado
promíscuo e não ajuda a, isoladamente, topografar patologia. Para
que se faça diagnóstico de condição patológica propriamente
muscular, é necessário que haja dor muscular localizada, com
alterações álgicas ao exame físico compatíveis com as estruturas
envolvidas, ou outros sinais de doença muscular difusa, como
fraqueza, especialmente. A elevação de enzimas musculares também
é um marcador ruim de doença quando vista isoladamente, sendo
muito difícil a sua interpretação na vigência de dor muscular difusa e
inespecífica.
Dentro de uma unidade
motora articular, quais são
as estruturas de maior
interesse nas doenças
reumáticas?
Intrinsecamente à articulação, as principais estruturas de
interesse são: a cápsula articular, com a sua porção fibrosa
externa e a sua porção sinovial interna, o espaço sinovial, a
cartilagem articular e o osso subcondral. Externamente à
articulação, são muito relevantes: os músculos e seus
tendões, as bursas, as bainhas sinoviais dos tendões e as
ênteses.
Quais são as principais vias
fisiopatológicas pelas quais
se explicam as
manifestações clínicas das
doenças sistêmicas do
tecido conectivo?

3.1 INTRODUÇÃO
É provável que as Doenças Sistêmicas do Tecido Conectivo (DSTCs)
sejam aquelas que mais se relacionam diretamente ao
reumatologista. Dentre um vasto universo de condições que podem
ser tratadas por diferentes especialistas, as DSTC geralmente são
encaminhadas aos reumatologistas por seus colegas, dada a
inexorável identificação que se faz entre essa entidade clínica e a
especialidade. Essas condições ganham nomes diversos como
doenças do colágeno, conectivopatias, colagenoses, doenças
reumáticas sistêmicas, entre outros, e são prontamente
identificadas pelo acometimento precoce e marcante de múltiplos
órgãos e sistemas.
Além do caráter inflamatório difuso que parece acompanhar os
pacientes com DSTCs, nota-se um comportamento patológico da
matriz extracelular dos diversos órgãos e tecidos acometidos, que
apresenta resposta insuficiente, ineficaz e frequentemente
inadequada ao ataque sofrido, culminando, em última análise, em
uma reparação tecidual inapropriada que gera distúrbios clínicos tão
comuns aos pacientes com essas moléstias, como o fenômeno de
Raynaud (caracterizado por uma resposta vasomotora anormal,
capaz de gerar distúrbios de perfusão cutânea), a calcinose
(deposição de cálcio nos tecidos) e a fibrose visceral.
Seria presunçoso que nesta obra se tentasse esmiuçar em detalhes os
mecanismos envolvidos na origem destes distúrbios inflamatórios e
reparadores, até mesmo porque a ciência ainda os desconhece em
sua maioria. Contudo, a compreensão de uma maquinaria imune
básica, especialmente no que se refere ao sistema imune adaptativo,
já é capaz de esclarecer em muitos aspectos a correlação clínico-
fisiopatológica que os pacientes apresentam, permitindo que o
estudo das DSTCs não se torne mera memorização de
autoanticorpos, permeada por um mundo de aleatoriedades em que
tudo pode ser tudo.
3.2 AS GRANDES VIAS
FISIOPATOLÓGICAS
Na essência da compreensão da fisiopatologia das DSTCs se encontra
o sistema imune em seu funcionamento fisiológico. Uma elegante e
complexa circuitaria garante que fragmentos de patógenos sejam
apresentados aos linfócitos T e que uma resposta altamente
específica e eficaz seja disparada, dirigida contra o invasor em
questão. Na saúde, a resposta imune é impressionantemente
competente, no sentido de se iniciar somente quando ocorre
infecção, atacar primordialmente o patógeno – minimizando os
danos colaterais – e findar tão logo ocorra neutralização do hóspede,
com cicatrização adequada e retorno à homeostase. Pormenores
destas vias podem ser vistos no capítulo Noções gerais de imunologia.
Na doença, contudo, entende-se que uma ou mais vias da resposta
linfocitária estão permanentemente excitadas, gerando uma
resposta contra o self que os mecanismos de controle não conseguem
suplantar. Mesmo na ausência de patógenos que justifiquem uma
resposta inflamatória, o sistema imune mantém um ambiente hostil,
gerando dano e reparação inadequada. As seções seguintes
abordarão as principais vias doentes nas DSTCs.
As doenças autoimunes em geral são assim
chamadas por apresentarem disfunção
primariamente na imunidade adaptativa.
Doenças relacionadas à imunidade inata são
chamadas autoinflamatórias.

3.2.1 Formação de imunocomplexos


A via mais relacionada com manifestações mais rapidamente letais
nas DSTCs é a via imune que envolve produção exagerada de
anticorpos e formação de imunocomplexos. Como visto no capítulo
Noções gerais de imunologia, as vias relacionadas à IL-6 e à IL-21, ou
seja, as vias Th17 e Tfh, são capazes de induzir os linfócitos T helperl
a ativar os linfócitos B. Em uma situação fisiológica, o linfócito T
teria reconhecido, por uma APC (antigen presenting cell), um
patógeno e estaria sinalizando ao linfócito B circulante e folicular a
produzir anticorpos contra este patógeno, visando a sua opsonização
e neutralização, seja por fagócitos ou pelo sistema do complemento.
Na autoimunidade, porém, não há patógeno circulando – ao menos
não continuamente –, mas a via Th17 se mantém perenemente
estimulada.
Diversos mecanismos são propostos para explicar essa
autoestimulação inapropriada, envolvendo mecanismos genéticos –
como polimorfismos no HLA que o tornam mais autorreagente
(Barcellos et al., 2009) – e também ambientais – como infecções
virais (James; Robertson, 2012) –, mas, na prática, o que se nota é
uma produção inconveniente de anticorpos, sendo muitos deles
frequentemente autorreativos – ou seja, que reconhecem partículas
do próprio hospedeiro. Tão logo um anticorpo encontre o seu alvo,
ocorre ligação entre as moléculas e, posteriormente, ataque do
sistema imune direcionado ao material opsonizado. Se a partícula
alvo do anticorpo se encontrar nos tecidos, o resultado será
recrutamento de células inflamatórias em sua direção com
consequente ataque tecidual. Este mecanismo leva a um perfil de
lesão semelhante ao que veremos na próxima seção. Se a partícula
alvo for circulante, todavia, os anticorpos formarão com os
antígenos apropriados um complexo antígeno-anticorpo conhecido
como imunocomplexo.
Os imunocomplexos são elementos relativamente pequenos do
ponto de vista molecular, de tal modo que possuem uma tendência a
impactar na circulação terminal. Uma vez depositados, os
imunocomplexos rapidamente atraem a resposta imune através das
frações Fc das imunoglobulinas, que não só são alvos diretos para
fagócitos, mas também são capazes de iniciar a cascata do
complemento pela via clássica. A ativação e posterior clivagem
sequencial das frações do complemento atuam como elementos
quimiotáxicos para novos fagócitos e linfócitos, amplificando a
resposta imune; ademais, a propagação da cascata do complemento
se amplifica até a formação do complexo de ataque à membrana,
causando destruição celular direta. Considerando que este efeito
ocorre na circulação terminal, o efeito prático será a destruição do
vaso sanguíneo no local onde ocorre a deposição do complexo, com
extravasamento de hemácias nas adjacências e cessação da nutrição
à jusante. O sofrimento tecidual decorrente da falta de suprimento
sanguíneo irá causar as manifestações clínicas esperadas,
especialmente a disfunção orgânica (como, por exemplo, a
neuropatia secundária às vasculites), e a saída de hemácias do vaso
preencherá os espaços em volta dos vasos, causando micro-
hemorragias (por exemplo, na púrpura palpável cutânea). Quando os
vasos se comunicam com espaços virtualmente em contato com o
ambiente externo, como ocorre no pulmão ou nas vias urinárias, o
resultado clínico será perda sanguínea para o meio ambiente, ou
seja, hemorragia propriamente dita (como no caso da hemorragia
alveolar).
O mecanismo mediado por deposição de
imunocomplexos gera principalmente sintomas
de vasculite.

Outra faceta fisiopatológica importante nas condições com grande


circulação de autoanticorpos é a tendência a trombose. Este
mecanismo pode ser explicado por diversas vias:
a) A ativação das vias do complemento contribui para a ativação, por
múltiplas vias, das cascatas de coagulação;
b) Fagócitos ativados são capazes de expressar fator tecidual;
c) Endotélio lesado (pelos imunocomplexos) é capaz de ativar a
coagulação;
d) Determinados autoanticorpos inibem substâncias fisiologicamente
anticoagulantes, como a beta-2-glicoproteína I (Giannakopoulos; Krilis,
2013).

A tendência trombótica destas condições é levada ao extremo na


síndrome antifosfolípide, como será abordado posteriormente.
Resumindo, no polo da deposição dos imunocomplexos, a principal
manifestação clínica observada será vasculite de pequenos vasos,
com todas as suas repercussões que discutiremos adiante.
3.2.2 Ativação linfocitária
Na presença de germes invasores, o mecanismo efetor final mais
eficaz para a destruição e limpeza dos patógenos é justamente aquele
composto pelos fagócitos e linfócitos citotóxicos. No caso dos
germes extracelulares, o efetivo controle da infecção depende muito
de uma presença eficaz destas linhagens do sistema imune e a IL-6 e
a IL-17 – e, em menor grau nas DSTCs, o interferon e o TNF (tumoral
necrosis factor) – são essenciais para coordenar esta reposta. A via
auxiliar linfocitária Th17 é a responsável por polarizar o linfócito
para esta finalidade. Contudo, na doença autoimune, a persistência
da via Th17 – e em menor proporção da via Th1 – faz com que
fagócitos fiquem permanentemente em estado de ativação,
buscando partículas opsonizadas, fagocitando células nas
imediações e secretando enzimas proteolíticas. O resultado será a
efetiva invasão tecidual pelas células inflamatórias, com lesão
tissular e destruição celular associada. Como este mecanismo
fisiopatológico cursa com ataque direto aos tecidos – em
contraposição ao ataque a distância, quase secundário, que acontece
no polo dos imunocomplexos –, pode-se imaginar que, neste
espectro, os pacientes apresentarão inflamação estrutural,
geralmente denominada pelo sufixo “ite”, como é o caso das
sinovites, miosites, dermatites, entre outras.
De maneira geral, os pacientes com DSTC possuem ao menos um
órgão ou sistema acometido por este polo, sendo o mecanismo
fisiopatológico mais comum e, felizmente, menos grave do que os
demais mecanismos – ao menos na maior parte das vezes, visto que
alguns pacientes podem cursar com inflamação muito refratária.
3.2.3 Regeneração inadequada
Dentro de um cenário fisiológico, a ativação das células produtoras
de matriz extracelular, como o fibroblasto, é desejável e necessária
para o reparo celular. Contudo, uma singularidade das DSTCs é
justamente o comportamento aberrante destas vias frente à
inflamação. Seja porque células da matriz estão constantemente
sendo reativadas pelas vias inflamatórias, seja porque respondem de
maneira exagerada ao estímulo inicial, uma via comum das DSTCs é
a deposição inadequada e, por vezes, quase de característica tumoral
do colágeno e de outras substâncias a ele relacionadas nos órgãos e
tecidos. O efeito final do ponto de vista clínico é a fibrose e o
espessamento tecidual vistos em pulmão, pele, subcutâneo, vasos e
submucosa dos pacientes com conectivopatias.
Esses elementos são comuns a todas as DSTCs, mas se expressam em
maior ou menor grau dependendo da doença em questão e de
elementos multifatoriais do paciente.
A principal via fisiopatológica que distingue as
doenças sistêmicas do tecido conectivo das
demais doenças autoimunes reumáticas é a via
da regeneração inadequada.

Nas seções a seguir, os fenótipos clínicos das DSTCs estão divididos


didaticamente de acordo com as suas manifestações clínicas mais
singulares, levando em conta os espectros fisiopatológicos descritos
anteriormente.
3.3 DOENÇAS DO ESPECTRO DOS
IMUNOCOMPLEXOS
3.3.1 Lúpus eritematoso sistêmico
Uma das doenças mais importantes dentro do grupo das DSTCs é o
Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES). Trata-se de uma doença de
manifestação altamente polimórfica e sistêmica, com acometimento
de virtualmente qualquer órgão do corpo.
3.3.1.1 Etiologia

Do ponto de vista etiológico, diversos estudos tentaram definir o


panorama genético que permeia os pacientes com essas facetas
clínicas. Sabe-se que o LES é uma doença de perfil genético
polimórfico e poligênico, ou seja, diversos genes, não
necessariamente mutantes ou patológicos por si só, contribuem para
um resultado final que passa, obrigatoriamente, por desencadeantes
epigenéticos – aqueles processos que se relacionam com a expressão
gênica em última análise, mas que não são determinados pela
sequência do DNA – e ambientais. Os fatores genéticos mais bem
estudados compreendem mutações e polimorfismos no HLA, em
frações do complemento – ou em proteínas que promovem seu
clearance – e em fatores de transcrição (Rullo; Tsao, 2013).
Como em todas as doenças autoimunes reumatológicas, geralmente
é necessário um gatilho ambiental que inicie a aberrância
imunológica que se perpetua. No caso do LES, infecções pelo vírus
Epstein-Barr (James; Robertson, 2012) têm sido frequentemente
atribuídas ao desenvolvimento da autoimunidade, bem com a
exposição à luz ultravioleta (UV), que é capaz de estimular a
produção de interleucinas inflamatórias e estimular a expressão de
ribonucleoproteínas na membrana dos queratinócitos –
aumentando, assim, a eventual exposição antigênica de alvos
potenciais para os autoanticorpos do LES. Ademais, a prevalência
absolutamente preponderante do sexo feminino levanta suspeita
sobre o papel do estrogênio na fisiopatogênese. É fato que a
exposição estrogênica aumenta a possibilidade de exposição de
antígenos aos linfócitos e reduz a imunotolerância relacionada aos
linfócitos B (Cohen-Sohal et al., 2006), um mecanismo que
certamente contribuiria para a produção de anticorpos tão
importante na patogênese da doença. Interessantemente, homens
com síndrome de Klinefelter (genótipo XXY) possuem risco relativo
muito aumentado para desenvolvimento de LES quando comparados
aos demais indivíduos saudáveis, sugerindo um papel inclusive de
genes localizados no cromossomo X na etiologia da conectivopatia.
Por fim, a ocorrência de manifestações fenotipicamente
semelhantes ao LES em pacientes em uso de determinadas drogas,
como a hidralazina, a procainamida, a isoniazida, a metildopa ou os
anti-TNF, também sugere uma eventual participação de substâncias
químicas na patogênese. Nesta situação, habitualmente se usa a
denominação lúpus induzido por drogas ao invés de lúpus
eritematoso sistêmico (ver adiante).
Fatores relacionados ao desenvolvimento de
lúpus eritematoso sistêmico incluem infecções
por vírus, radiação UV, exposição estrogênica e
uso de medicamentos.
3.3.1.2 Epidemiologia

O LES possui prevalência estimada de 0,1% e é predominantemente


uma doença de mulheres jovens, na menacma. Mais de 80% dos
pacientes terão entre 14 e 50 anos. Homens costumam apresentar
doença um pouco mais tardiamente, mas na maioria das faixas
etárias a relação entre sexos é de, pelo menos, 8 mulheres para cada
homem, chegando a 15:1 em adultos jovens. Na faixa juvenil (ou seja,
menos de 16 anos), a doença tende a ser mais agressiva, com
maiores taxas de nefrite e manifestações hematológicas. A doença
também é mais frequente e mais agressiva em afrodescendentes,
com maior chance de evolução para doença renal grave e quadros
neurológicos.
3.3.1.3 Manifestações clínicas

O LES apresenta manifestações clínicas universais e comuns a todas


as desordens inflamatórias ou autoimunes, que representam a
ativação imune de maneira lato sensu. Essas manifestações não
diferenciam as grandes síndromes reumatológicas e por vezes se
confundem, inclusive, com desordens infecciosas, hormonais ou
neoplásicas. São exemplos desses sintomas inespecíficos: fadiga,
febre, perda ponderal, hiporexia, mialgia e mal-estar em geral.
Como todas as DSTCs, o LES apresenta manifestações em todos os
polos fisiopatológicos discutidos anteriormente, mas é na deposição
de imunocomplexos que se encontram as manifestações que melhor
simbolizam o LES, como a nefrite, sendo as demais manifestações
simplesmente comuns às demais conectivopatias autoimunes. Para a
compreensão do mecanismo patológico das manifestações do polo
da deposição de imunocomplexos, é preciso sempre se ter em mente
que, nesta situação, o LES se comporta exatamente igual a uma
vasculite primária de pequenos vasos. Ou seja, as manifestações
clínicas serão decorrentes de sofrimento tecidual e orgânico por
oclusão microvascular ou por extravasamento de hemácias após a
lesão dos pequenos vasos e capilares. A seguir se encontram as
principais manifestações decorrentes principalmente deste
mecanismo fisiopatológico.
a) Nefrite lúpica

A nefrite lúpica decorre da deposição de imunocomplexos no


aparelho glomerular e da adaptação renal que ocorre secundária a
este processo. Em geral, a presença de imunocomplexos gera
inflamação e destruição das estruturas glomerulares e subsequente
expansão de matriz extracelular colagênica – com finalidade de
reparação –, com alteração da arquitetura local e da sua função. O
local do aparelho glomerular no qual ocorre a deposição é o principal
fator que determinará o impacto final na função renal. Nas situações
mais brandas, ocorre deposição de imunocomplexos na célula
mesangial e adjacências, sem grande acometimento da região entre
os capilares e a membrana basal, influenciando pouco na função
renal e no sedimento. Tratam-se das classes I (lesões mesangiais
mínimas, só vistas em microscopia eletrônica ou
imunofluorescência) e II (mesangial proliferativa) de nefrite. Nas
situações nas quais ocorre deposição, inflamação e proliferação
celular na região subendotelial dos capilares, há destruição da
interface de filtração glomerular, causando grande impacto na
função e no sedimento. Tratam-se das classes III (proliferativa focal,
quando menos de 50% dos glomérulos são acometidos) e IV
(proliferativa difusa, quando mais de 50% dos glomérulos são
acometidos), as formas mais comuns de nefrite por LES. Na classe V
(membranosa), a deposição de imunocomplexos na membrana basal
a estimula a proliferar, tornando-a espessada e disfuncional, sem
haver, no entanto, grande inflamação local. Perdem-se as
propriedades físicas e eletromagnéticas típicas da membrana e
escapam grandes quantidades de proteínas, sem, contudo, haver
outras alterações de sedimento. Por fim, na classe VI (esclerosante),
há apenas arquitetura esclerótica (Weening et al., 2004). É o estado
terminal, no qual predomina o estágio de regeneração fibrótica em
detrimento de inflamação propriamente dita.
Sedimento urinário rico com proteinúria elevada
é o achado mais frequente e em geral simboliza
uma classe proliferativa (III ou IV); proteinúria
elevada com sedimento pobre geralmente
simboliza classe V.

Aproximadamente metade dos pacientes com LES terão lesão renal


em algum momento da doença, sendo uma das principais causas de
morbidade e mortalidade. O quadro clínico é de hipertensão e perda
de função renal de evolução subaguda a crônica (semanas a meses),
com suas repercussões características (distúrbios acidobásicos e
eletrolíticos, uremia e edema). O sedimento urinário é de grande
importância no diagnóstico, mostrando hematúria com cilindros
(particularmente eritrocitários) e proteinúria (geralmente > 0,5 g
em 24h). Nos exames laboratoriais, deve-se atentar para níveis
baixos de C3 e C4 – expressando a via de deposição de
imunocomplexos e ativação do complemento – e para eventuais
emergências renais.
Um anticorpo que pode marcar atividade renal
atual é o anti-DNA.

O diagnóstico confirmatório de nefrite por LES é anatomopatológico.


A biópsia renal tem sido cada vez mais indicada, pois auxilia em
eventuais diferenciais (como, por exemplo, concomitância de
doença trombótica renal), classifica e estadia a doença renal, sendo
segura e com baixa taxa de complicações. O American College of
Rheumatology indica biópsia se houver qualquer um dos seguintes
(Hahn et al. 2012):
a) Aumento de creatinina sérica sem outras causas;
b) Proteinúria > 1 g/24h;
c) Combinações dos seguintes, dado que foram confirmados em ao
menos 2 amostras separadas e sem outras causas aparentes:
Proteinúria > 0,5 g/24h mais hematúria;
Proteinúria > 0,5 g/24h mais cilindros celulares.

Os principais diagnósticos diferenciais a serem considerados nos


pacientes com LES e disfunção renal incluem causas mais comuns de
lesão renal, como comorbidades (exemplos: hipertensão arterial ou
diabetes), uso de medicações exemplo: anti-inflamatórios),
infecções (no contexto de sepse) e nefropatia trombótica. Contudo,
não se espera glomerulonefrite nesses contextos. A suspeita clínica
de glomerulonefrite sugere fortemente um quadro vasculítico;
diferenciais neste caso incluem basicamente infecções (HIV,
hepatite B, hepatite C e endocardite infecciosa) e concomitância com
glomerulonefrite primária.
Os seguintes exames laboratoriais são relevantes na suspeita de
nefrite lúpica, de acordo com cada grupo laboratorial:
1. Renal:
a) Relação proteína/creatinina (urina isolada);
b) Proteinúria 24h;
c) Sedimento urinário;
d) Potássio;
e) Sódio
f) Creatinina;
g) Ureia.
2. Autoimune:
a) C3;
b) C4;
c) FAN;
d) Anti-Sm;
e) Anti-DNA;
f) Anticardiolipinas;
h) Anticoagulante lúpico;
i) Antibeta-2-glicoproteína I;
j) Anti-Ro;
k) Anti-La.
3. Infeccioso:
a) Sorologias (mono-like, arbovírus, sífilis, HVC, HIV, HVB,
leptospirose);
b) Hemoculturas.
4. Neoplásico: eletroforese de proteínas.
b) Lúpus neuropsiquiátrico

Existem 2 padrões de lesão que acometem o sistema nervoso dos


pacientes com LES. Pode ocorrer vasculite de vasos que nutrem
determinadas estruturas neurais, ocasionando síndromes
isquêmicas e neuropáticas; e podem ocorrer ataques diretamente
direcionados aos neurônios e células gliais, simbolizando mais o
polo do ataque tecidual e celular da ativação linfofagocitária e
causando, por sua vez, quadros neurológicos difusos, como
alterações de comportamento ou síndromes epileptiformes. A
primeira via costuma ser associada a quadros mais graves, com
chance maior de sequela prolongada.
O LES neuropsiquiátrico ocorre por vasculite,
com sintomas focais, ou neuronite, com
sintomas difusos.

Aproximadamente 40% dos pacientes com LES irão desenvolver


algum quadro neurológico em sua história. De maneira geral,
pacientes com anticorpos antifosfolípides positivos possuem risco
aumentado de evoluir com manifestações neurológicas,
presumivelmente pela tendência à oclusão vascular inerente. As
manifestações mais comuns são aquelas relacionadas a neuronite,
especialmente síndromes epileptiformes e psicose. Pacientes com
quadros vasculíticos apresentarão mais frequentemente síndromes
isquêmicas – como se fosse um acidente vascular encefálico –, com
a ressalva de que serão tipicamente multifocais. O acometimento de
medula é possível, apresenta-se como uma paraparesia com nível
medular, e simboliza uma importante urgência reumatológica.
Ademais, muitos pacientes em atividade evoluem com quadros de
sistema nervoso periférico, como mononeurite múltipla
(acometimento isquêmico por vasculite do vasa nervorum, com falha
de diversos nervos em territórios diferentes e distantes) e
polineuropatia (por ataque axonal direto). Pacientes com
mononeurite múltipla frequentemente possuem um quadro
sensitivo-motor assimétrico em 1 ou mais membros; pacientes com
polineuropatia, por sua vez, geralmente possuem um quadro
exclusivamente sensitivo ou sensitivo-motor de característica
simétrica (de membros superiores ou membros inferiores), sem
respeitar territórios neurais (acometendo, por exemplo, em bota ou
luva). Além do exame físico, a eletroneuromiografia é o exame de
escolha para diferenciar esses quadros quando a propedêutica por si
só não é suficiente.
A ocorrência de cefaleia no lúpus é um evento frequente e alguns
autores defendem que pode simbolizar manifestação autoimune.
Contudo, de maneira geral, pacientes com LES que evoluem com
cefaleia devem ser avaliados exatamente como os demais pacientes
com esta entidade, sendo que, na imensa maioria dos casos, tratar-
se-á de doença primária (tensional ou migrânea). Cefaleia de origem
inflamatória pode ocorrer, mas diversos estudos observacionais
demonstraram que, neste caso, virá quase sempre acompanhada de
outros sinais nítidos de atividade, como serosite, artrite e dermatite.
Lúpus isoladamente de sistema nervoso é
pouco provável. Se não vier acompanhado de
sintomas de outros sistemas, outros
diagnósticos devem ser pesquisados (como
infecção, quadro psiquiátrico ou funcional).

O diagnóstico do acometimento neurológico pelo LES se baseia em


uma história bem obtida, um exame físico com definição topográfica
e frequentemente alguns exames – que se prestam mais a confirmar
a topografia e afastar diferenciais – que incluem:
a) Ressonância magnética de neuroeixo (capaz de afastar entidade
infecciosa, como encefalites virais ou abscessos);
b) Eletroencefalograma (nos casos de síndromes epilépticas);
c) Eletroneuromiografia (quando houver dúvida sobre o padrão da
neuropatia);
d) Análise de liquor – que frequentemente é obtida e demonstra
normalidade ou proteinorraquia desproporcional ao frustro aumento
celular, glicose normal e culturas, imunoensaios e microscopia direta
negativas para vírus, bactérias e fungos.

Do ponto de vista sorológico, o anticorpo anti-P ribossomal é


associado a lúpus em atividade, especialmente do ponto de vista
neurológico, e pode vir positivo em uma porcentagem pequena dos
pacientes e oscilar conforme atividade. Alguns autores sugerem que
possa ser uma ferramenta viável de monitorização, mas este
conceito é questionável.
Os seguintes exames laboratoriais são relevantes na suspeita de LES
neuropsiquiátrico, de acordo com cada grupo laboratorial:
1. Iônico:
a) Sódio;
b) Cálcio;
c) Magnésio.
2. Autoimune:
a) C3;
b) C4;
c) FAN;
d) Anti-Sm;
e) Anti-DNA;
f) Anticardiolipinas;
g) Anticoagulante lúpico;
h) Antibeta-2-glicoproteína I;
i) Anti-Ro;
j) Anti-La;
k) Anti-P ribossomal.
3. Infeccioso:
a) Sorologias (sífilis, HIV, herpes-simples);
b) Hemoculturas.
4. Hormonal: TSH;
5. Liquor:
a) Celularidade;
b) Glicose;
c) Proteína;
d) Bacterioscópico;
e) Cultura;
f) Imunoensaios.
6. Renal: ureia;
7. Hepático:
a) Coagulograma;
b) Albumina;
c) Bilirrubinas.

Os diagnósticos diferenciais do LES neuropsiquiátrico envolvem


especialmente infecções com comprometimento de sistema nervoso
central (seja primário ou secundário, na forma de delirium), quadros
metabólicos (disfunções orgânicas e disfunções endócrinas) e
iônicos (especialmente distúrbios do sódio, cálcio e magnésio),
distúrbios hemostáticos com sangramento e disfunções perfusionais
(como hipertensão ou hipotensão).
Uma entidade que vem ganhando importância nos últimos anos e
que pode fazer diagnóstico diferencial com LES neurológico é a
síndrome da leucoencefalopatia posterior reversível. Mais
comumente chamada de PRES, decorre de extravasamento capilar
funcional mais comumente nas regiões posteriores dos hemisférios
cerebrais, pode vir ou não acompanhado de hipertensão, e decorre,
principalmente, mas não exclusivamente, de elevação abrupta
pressórica, eclâmpsia ou uso de imunossupressores. O quadro clínico
envolve cefaleia, distúrbios visuais e convulsões, sendo totalmente –
ou quase totalmente – reversível após a retirada do fator
desencadeante – desde que o paciente não apresente complicações
dos eventos neurológicos (como sangramentos ou iatrogenias).
c) Citopenias

A ocorrência de anticorpos e imunocomplexos circulantes pode


ocasionar a opsonização de células hematopoéticas da corrente
sanguínea, culminando com a sua destruição ou remoção pelo
sistema reticuloendotelial. Mais comumente, os alvos deste processo
no LES são os linfócitos, de tal modo que a maioria dos pacientes
com LES se apresentam com algum grau de linfopenia. Em geral, a
linfopenia é de pequena monta e não requer tratamento específico.
Por vezes, as hemácias ou mesmo os neutrófilos são alvos deste
processo, mas, da mesma maneira, raramente há destruição maciça
que requeira abordagem mais agressiva. Quando o alvo passa a ser a
plaqueta, contudo, por mecanismos pouco compreendidos, pode
haver rápido declínio plaquetário, colocando o paciente em risco de
sangramento.
O quadro clínico de plaquetopenia pode ser ou não sintomático,
sendo que sintomas geralmente aparecem com plaquetas < 30.000/
L. Quando presentes, geralmente são expressos por sangramentos
de mucosa, alterações de ritmo menstrual, petéquias e, menos
frequentemente, equimoses extensas e hemorragias de fato. Alguns
pacientes terão esplenomegalia discreta, simbolizando o sequestro
das plaquetas opsonizadas.
O diagnóstico de trombocitopenia é laboratorial, sendo sempre
conveniente a dosagem em anticoagulantes diferentes (EDTA e
citrato) e com contagem manual, para evitar erros de análise. Em
geral, é considerada relevante para tratamento a plaquetopenia <
50.000/ L e relevante para complicações hemorrágicas aquela <
30.000/ L, sugerindo terapia mais agressiva.
No diagnóstico da anemia, torna-se importante a diferenciação
entre anemia de doença crônica, a mais comum no LES, e a anemia
hemolítica, a mais preocupante. Isso pode ser feito com os exames
para anemias hemolíticas: hemograma com leitura de esfregaço –
que pode revelar esferócitos –, reticulócitos – normais ou elevados
–, desidrogenase láctica (DHL) – elevada –, bilirrubinas – elevadas
às custas de indireta –, haptoglobina (consumida) e teste da
antiglobulina direto (Coombs) positivo. Na anemia de doença
crônica, tornam-se importantes os reticulócitos reduzidos, a
transferrina e a capacidade total de ligação de ferro reduzidas, a
saturação de transferrina normal e a ferritina elevada. Mesmo com
algum grau de hemólise – muito frequente na fase ativa do LES –,
geralmente os níveis de hemoglobina não são preocupantes e o
tratamento pode ser guiado pelas outras manifestações, sendo que a
anemia vai melhorar com a melhora global. Hemólise extensa requer
imunossupressão agressiva focada (ver adiante em tratamento).
Síndrome de Evans: epônimo usado para se
referir à ocorrência simultânea de anemia
hemolítica e plaquetopenia por destruição
imune. É rara no LES.

Diagnósticos diferenciais relevantes se referem especialmente aos


quadros infecciosos que possam cursar com plaquetopenia e anemia
– como arboviroses e parvovirose – uso de medicamentos – como
antibióticos, anti-inflamatórios não esteroidais e heparina –,
deficiência de ferro, ácido fólico ou vitamina B12, microangiopatias
trombóticas e neoplasias hematológicas. Como sempre, deve-se ter
em mente que os pacientes com DSTC, em geral, apresentam
constelações de sintomas em diferentes sistemas e apenas
raramente sintomas isolados.
Os seguintes exames laboratoriais são relevantes na suspeita das
citopenias por LES, de acordo com cada grupo laboratorial:
1. Sangue:
a) Hemograma;
b) Coagulograma;
c) Reticulócitos;
d) Coombs;
e) DHL;
f) Haptoglobina;
g) Bilirrubinas;
h) Perfil de ferro;
i) Plaquetas (EDTA e citrato);
j) Ácido fólico;
k) Vitamina B12.
2. Autoimune:
a) C3;
b) C4;
c) FAN;
d) Anti-Sm;
e) Anti-DNA;
f) Anticardiolipinas;
g) Anticoagulante lúpico;
h) Antibeta-2-glicoproteína I;
i) Anti-Ro;
j) Anti-La.
3. Infeccioso: sorologias (arbovírus, HIV, HVC, HVB, parvovírus).

d) Hemorragia alveolar

Quando imunocomplexos impactam nos capilares pulmonares pode


haver capilarite com destruição dos vasos alveolares e
extravasamento de sangue intra-alveolar. O resultado é um distúrbio
de ventilação-perfusão, com comprometimento de trocas gasosas,
agravado por eventual choque hipovolêmico. Exatamente como a
descrição faz parecer, o quadro de hemorragia alveolar é dramático.
Trata-se de uma complicação infrequente no LES, ocorrendo em
aproximadamente 1,5% dos casos (Andrade et al., 2016). Os
pacientes geralmente se apresentam com um quadro relativamente
agudo de dispneia, tosse e hemoptise. Alguns pacientes terão
concomitância do quadro pulmonar com o quadro renal
(glomerulonefrite), sendo estabelecido, nestes casos, o diagnóstico
de síndrome pulmão-rim.
A ocorrência de síndrome pulmão-rim sugere
fortemente vasculite de pequenos vasos.

O diagnóstico de hemorragia alveolar requer dispneia com


hipoxemia, acompanhada de infiltrado nos exames de imagem
(radiografia ou tomografia) e, frequentemente, queda dos níveis de
hemoglobina. Nem sempre a hemoptise ocorre, portanto, o
diagnóstico deve ser ativamente pesquisado. Exames gerais para
diagnóstico e diagnóstico diferencial de hemorragia alveolar serão
descritos adiante. O diagnóstico definitivo de hemorragia alveolar é
feito por lavagem broncoalveolar seriada, caracteristicamente
mostrando um aumento sequencial na proporção hemorrágica do
lavado. Reações para hemossiderina (como o azul da Prússia)
também ajudam a demonstrar presença de sangue, mas não são
exclusivas para hemorragia alveolar. As culturas e o bacterioscópico
podem ser úteis para descartar infecções em um cenário no qual
provavelmente ocorrerá imunossupressão intensiva.
Os seguintes exames laboratoriais são relevantes na suspeita de
hemorragia alveolar, de acordo com cada grupo laboratorial:
1. Sangue:
a) Hemograma;
b) Coagulograma;
2. Autoimune:
a) C3;
b) C4;
c) FAN;
d) Anti-Sm;
e) Anti-DNA;
f) Anticardiolipinas;
g) Anticoagulante lúpico;
h) Antibeta-2-glicoproteína I;
i) Anti-Ro;
j) Anti-La;
k) ANCA;
l) Crioglobulinas;
m) Anticorpo antimembrana basal glomerular.
3. Infeccioso:
a) Sorologias (influenza, citomegalovírus, leptospirose);
b) Hemoculturas;
c) Cultura (lavado);
d) Bacterioscópico (lavado);
e) Pesquisa de vírus (lavado);
f) Pesquisa de P. jirovecii (lavado).
4. Cardíaco: BNP;
5. Pulmonar: gasometria;
6. Renal:
a) Ureia;
b) Creatinina;
c) Sedimento urinário;
d) Proteinúria 24h.
O leque de diagnósticos diferenciais quando ocorre síndrome
pulmão-rim é pequeno, ficando basicamente entre as vasculites
sistêmicas de pequenos vasos. Quando ocorre apenas hemorragia
alveolar, porém, o leque é amplo, até mesmo porque, nem sempre,
sangramento pulmonar decorre de capilarite; outras causas de
sangramento incluem extravasamento de sangue sem destruição
capilar na hemorragia pulmonar branda, como é o caso de pacientes
com insuficiência cardíaca ou distúrbios de hemostasia, ou o
sangramento decorrente de destruição alveolar propriamente dita,
como o representado pelo dano alveolar difuso que ocorre na
síndrome do desconforto respiratório agudo. A diferenciação
padrão-ouro, nestes casos, dar-se-á apenas pela biópsia pulmonar.
Assim, múltiplas causas precisam ser consideradas, especialmente
infecções (como pneumococo, pneumocistose, leptospirose,
citomegalovirose e influenza), uso de drogas (especialmente alguns
quimioterápicos, imunossupressores e cocaína inalada), distúrbios
hemostáticos e insuficiência cardíaca.
e) Vasculite cutânea

As manifestações de LES decorrentes de deposição de


imunocomplexos produzem sintomas que aproximam a
conectivopatia das vasculites sistêmicas primárias de pequenos
vasos. Assim, até 20% dos pacientes podem cursar com vasculite
cutânea. A manifestação mais comum será a púrpura cutânea, uma
lesão eritematosa, elevada, que não some à digitopressão. Os locais
mais comumente afetados são as mãos (Figura 3.1) e a parte distal
das pernas. Ulcerações podem ocorrer e demandam terapia mais
agressiva. Na ocorrência de vasculite cutânea, diagnósticos
infecciosos precisam ser afastados, eminentemente a endocardite
infecciosa.
Figura 3.1 - Vasculite palmar
Nas subseções a seguir, passaremos às manifestações de LES mais
relacionadas à ativação linfofagocitária com dano celular e tecidual
direto. Em alguma medida, ao menos uma das manifestações deste
grupo estará presente em virtualmente todos os pacientes com LES.
Contudo, como se poderá observar, muitas destas manifestações são
inespecíficas e comuns às demais DSTCs.
f) Dermatite

A infiltração da derme e epiderme por linfócitos e fagócitos produz


os achados clínicos das diversas formas cutâneas de lúpus. Tanto o
lúpus eritematoso sistêmico quanto o lúpus eritematoso cutâneo
(restrito à pele) apresentam as mesmas lesões. O que diferencia as 2
entidades não é a presença ou ausência de autoanticorpos, mas, sim,
a ocorrência de manifestações externas à pele. As lesões são
classificadas em 3 grandes grupos de acordo com a cronicidade das
lesões. À medida que ocorrem alterações irreversíveis, com
regeneração patológica na histologia, como hiperqueratose e
espessamento da membrana basal cutânea, progride a nomenclatura
em direção à cronicidade. Embora no contexto de lúpus sistêmico o
diagnóstico seja geralmente clínico, nas formas restritas à pele
frequentemente é necessária a biópsia para estabelecimento da lesão
e exclusão dos diferenciais.
As principais formas de lúpus agudo são o rash malar (Figura 3.2), o
eritema fotossensível e as formas bolhosas, que lembram formas
atenuadas de necrólise epidérmica tóxica. O lúpus agudo ocorre em
quase todos os pacientes (cerca de 90%), especialmente em áreas
expostas à luz solar e costuma não deixar cicatrizes ao remitir. Os
diferenciais importantes se referem às lesões faciais em área malar e
perinasal, como a rosácea e a dermatite seborreica. O diagnóstico
diferencial com rosácea pode ser desafiador, haja vista que a luz
solar desencadeia ambos. Características mais relacionadas à
rosácea são o acometimento do sulco nasolabial – quase sempre
poupado no lúpus –, a exacerbação com cafeína, álcool ou trocas
bruscas de temperatura, a ocorrência esporádica de pústulas e
alterações fimatosas – lobulação e espessamento crônico da pele,
mais frequentemente visto no nariz (Figura 3.3).
Figura 3.2 - Eritema fotossensível na face de paciente lúpica, que compromete as regiões
malares e o dorso do nariz (lesão “em asa de borboleta”)
Fonte: Lúpus eritematoso cutâneo - Aspectos clínicos e laboratoriais, 2005.

Figura 3.3 - Paciente com rosácea; há vesículas e formação fimatosa, ajudando a


diferenciar do lúpus eritematoso

Fonte: Cutaneous lesions of the nose, 2010.

As principais formas de lúpus subagudo são o anular e o


psoriasiforme (ou papuloescamoso). São lesões eritematosas e
frequentemente descamativas, por vezes coalescentes, que se
manifestam nas áreas fotoexpostas, especialmente ombros,
pescoço, tórax superior e raízes dos membros superiores. O que
diferencia as subformas é o perfil descamativo, sendo o
psoriasiforme com descamação mais grosseira e homogênea,
lembrando, de fato, a descamação da psoríase. Entre os diagnósticos
diferenciais, os principais são a própria psoríase, dermatófitos,
farmacodermia e linfoma cutâneo.
Diferenciar as lesões do LES ativo com a dermatomiosite ativa pode
ser desafiador. Uma dica é a cor da lesão: no LES, as lesões tendem a
ser mais eritematosas; na dermatomiosite, adquirem uma
tonalidade arroxeada. A intensidade da cor em ambas as condições é
o principal parâmetro clínico de atividade de doença.
Existem múltiplas lesões possíveis no lúpus eritematoso crônico. A
mais comum é a forma discoide. Tratam-se de lesões arredondadas
ou ovais, com borda eritematosa e descamativa, de evolução
centrífuga, com o centro pálido e atrófico. A evolução do quadro
quase invariavelmente deixa sequelas, com estabelecimento
definitivo da atrofia, despigmentação e eventuais telangiectasias. As
regiões mais acometidas são face, pescoço, pavilhão auricular, couro
cabeludo e tórax superior (Figura 3.4).
Figura 3.4 - Paciente com lúpus eritematoso sistêmico, lesões discoides e alopecia
g) Mucosite e alopecia

Assim como a pele, as mucosas podem ser alvo de inflamação no


LES. A mucosite ocorre em aproximadamente metade dos pacientes
e se manifesta na forma de úlceras orais indolores. Esta
característica ajuda a diferenciar as lesões da maior parte dos demais
diagnósticos que cursam com aftas orais, pois, em geral, estas lesões
são extremamente dolorosas. A alopecia primária que ocorre no LES
pode ser na forma de eflúvio telógeno, uma queda de cabelo difusa
que acompanha a inflamação, ou na forma de alopecia frontal (lupus
hair), ocorrendo especialmente na região da linha capilar. Na forma
secundária, a alopecia é decorrente das lesões no couro cabeludo.
Geralmente, nestes casos, será cicatricial.
h) Artrite

A artrite do lúpus decorre de invasão linfomonocítica da sinóvia ou


de proliferação sinovial secundária às substâncias inflamatória
circulantes. Alguns estudos anatomopatológicos demonstraram que
frequentemente não há infiltrado inflamatório sinovial,
demonstrando que a artrite é mais um processo secundário à
inflamação no LES, diferente do que ocorre nas artropatias
autoimunes (Grossman, 2009).
Quase todos os pacientes com LES terão artralgia de algum grau em
algum momento. Justamente pela característica secundária do
acometimento, a artrite no LES raramente é exuberante. De fato, o
mais comum é que os pacientes tenham apenas dor à palpação, sem
o edema e calor vistos na artrite reumatoide, por exemplo. Os sítios
mais comuns são os punhos, as articulações dos dedos e os joelhos,
embora qualquer articulação sinovial possa estar dolorida. A rigidez
matinal é menor do que nas artropatias autoimunes, mas a marcha
inflamatória da dor – melhorar com a movimentação – costuma se
manter.
O acometimento periarticular do LES demonstra uma faceta curiosa
das conectivopatias que é a desorganização regenerativa do tecido
conectivo. Assim, tendões e ligamentos se apresentam distendidos
ou retraídos, causando uma deformidade redutível conhecida como
artropatia de Jaccoud (Figura 3.5).
Figura 3.5 - Deformidade fixa no quinto quirodáctilo “em pescoço de cisne”, semelhante à
da artrite reumatoide (o dedo permanece deformado), e não fixa (artropatia de Jaccoud)
das metacarpofalangianas

Legenda: (A) luxadas, com desvio palmar; (B) de volta à posição normal.
O diagnóstico da artrite lúpica é totalmente clínico. As imagens
tendem a ser normais, não havendo erosões, e os exames
laboratoriais não necessariamente mostram elevação das provas de
atividade inflamatória. Diferenciais incluem, na fase inicial, as
artrites virais (especialmente por arbovírus, parvovírus ou vírus das
hepatites com forma aguda), a endocardite infecciosa e proliferações
neoplásicas hematológicas (linfomas e leucemias). Nas
apresentações mais crônicas os diferenciais incluem infecções virais
crônicas (hepatite C e HIV) e fibromialgia. Um resumo dos exames
diferenciais se encontra adiante. Por fim, é preciso ter em mente,
como dito anteriormente neste capítulo, que a presença de artrite é
um achado promíscuo entre as doenças autoimunes. Sendo não
erosiva, todas as DSTCs, vasculites e doenças inflamatórias da
Reumatologia entram como possível diagnóstico diferencial,
tornando impossível, apenas com esse achado, um diagnóstico
único.
Os seguintes exames laboratoriais são relevantes na suspeita de
artrite lúpica, de acordo com cada grupo laboratorial:
1. Sangue:
a) Hemograma;
b) Coagulograma.
2. Autoimune:
a) C3;
b) C4;
c) FAN;
d) Anti-Sm;
e) Anti-DNA;
f) Anticardiolipinas;
g) Anticoagulante lúpico;
h) Antibeta-2-glicoproteína I;
i) Anti-Ro;
j) Anti-La.
3. Infeccioso:
a) Sorologias (arbovírus, parvovírus, hepatites A, B e C, HIV);
b) Hemoculturas.
4. Renal:
a) Ureia;
b) Creatinina;
c) Sedimento urinário;
d) Proteinúria 24h.

i) Serosite

Qualquer membrana serosa pode sofrer ataque linfofagocitário no


LES, mas o pericárdio e a pleura são muito mais acometidos do que o
peritônio. Acometimento pleural ocorre em 40% dos pacientes e
pericárdico em 25% (Miner; Kim, 2014). Os sintomas são dor
torácica ventilatoriodependente, tosse e dor ao decúbito dorsal. No
exame físico, pode haver atritos à ausculta ou sinais de derrame
cavitário.
Quase sempre um paciente com derrame cavitário será puncionado,
pois, no Brasil, há grande ocorrência de serosite por germes
infecciosos (tuberculose e vírus). Derrames persistentes, por sua
vez, a despeito do tratamento, devem ser avaliados para neoplasia. O
líquido do derrame no LES é geralmente inflamatório, linfocítico,
com proteínas aumentadas e glicose normal (ou muito pouco
reduzida). O fator antinúcleo do líquido pode ser positivo.
Os seguintes exames laboratoriais são relevantes na suspeita de
serosites em geral, de acordo com cada grupo laboratorial:
1. Hepático:
a) Albumina;
b) Bilirrubinas;
c) Coagulograma.
2. Autoimune:
a) C3;
b) C4;
c) FAN;
d) Anti-Sm;
e) Anti-DNA;
f) Anticardiolipinas;
g) Anticoagulante lúpico;
h) Anti-beta-2-glicoproteína I;
i) Anti-Ro;
j) Anti-La;
k) Fator reumatoide.
3. Infeccioso: sorologias (enterovírus, HIV, herpes-simples/zóster);
4. Cardíaco: BNP;
5. Líquido cavitário:
a) Bacterioscópico;
b) Cultura;
c) pBAAR;
d) PCR/imunoensaios;
e) DHL;
f) Proteínas;
g) Triglicérides;
h) Colesterol;
i) Albumina;
j) Pesquisa de células neoplásicas;
k) ADA.
6. Renal:
a) Ureia;
b) Creatinina;
c) Sedimento urinário;
d) Proteinúria 24h.

O espectro da regeneração inadequada se expressa de maneira


habitualmente branda no lúpus. É possível a ocorrência de
pneumopatia intersticial, hipertensão pulmonar, valvopatia,
esofagopatia e alterações de extremidades levando ao fenômeno de
Raynaud ou mesmo espessamento discreto de pele nas falanges
distais, por exemplo. A própria tendência à fibrose renal e atrofia
cutânea, como no caso do lúpus discoide, representam, em alguma
medida, os mecanismos patológicos de recuperação das lesões.
Contudo, posto em perspectiva quando comparado ao protótipo da
regeneração inadequada, que é esclerose sistêmica, provavelmente é
o polo fisiopatológico menos importante no LES.
3.3.1.4 Diagnóstico

O diagnóstico de lúpus deve ser pensado sempre que houver


sintomas multissistêmicos, especialmente em mulheres na
menacma. Os anticorpos são condição importante para o diagnóstico
e, quando analisados pela ótica dos critérios diagnósticos, são
essenciais.
O fator antinúcleo (FAN) é o exame primordial e mais importante. A
técnica do FAN envolve uma imunofluorescência indireta, que usa
como substrato as células HEp-2 (uma linhagem de carcinoma
humano, que garante alta taxa de replicação e, portanto, todas as
fases do ciclo celular). A imunofluorescência marca os locais da
célula que são alvo dos anticorpos. O padrão de positividade do FAN
ajuda a sugerir qual anticorpo é o verdadeiramente responsável pela
autoimunidade.
O FAN é um exame de triagem e, após a visualização do seu padrão,
solicitam-se os anticorpos compatíveis. Nas DSTC, será positivo na
maioria dos casos e, no LES, é positivo em virtualmente todos os
pacientes. Um FAN negativo praticamente exclui LES em atividade.
Os padrões de FAN sugestivos de LES são, especialmente, os padrões
nucleares (ou mistos com núcleo e outro compartimento). São
especialmente específicos os padrões:
a) Nuclear homogêneo, geralmente representando um anti-DNAds
(double stranded) – dirigidos contra os ácidos desoxirribonucleicos em
dupla fita e altamente específicos para LES – ou anti-histona (presente
no lúpus induzido por droga);
b) Nuclear pontilhado grosso, geralmente representando um anti-Sm
(altamente específico para LES);
c) Nuclear pontilhado fino, geralmente representando o anti-Ro ou o
anti-La, que não são específicos para LES, mas ocorrem com
frequência.

Outros anticorpos importantes para o LES e que não são


representados pelo FAN são os anticorpos antifosfolípides:
anticardiolipina, antibeta-2-glicoproteína I e anticoagulante lúpico.
Por fim, como dito anteriormente, o antiproteína P-ribossomal é
também específico para LES e pode servir como marcador de
atividade atual. Este anticorpo marca proteínas ribossomais e,
portanto, cora o citoplasma e o nucléolo no FAN.
O título do FAN precisa ser visto com cuidado e depende da
probabilidade pré-teste do exame. Em indivíduos com baixa
probabilidade de doença pela apresentação clínica, títulos abaixo de
1:160 provavelmente não simbolizam qualquer patologia. Mesmo
títulos muito altos em pacientes com baixa probabilidade pré-teste
precisam ser julgados com parcimônia, pois o FAN pode representar
anticorpos dirigidos contra a tireoide no hipotireoidismo ou mesmo
contra alvos cuja significância clínica patológica ainda não se
estabeleceu – como é o caso do anti-LEDGF/p75. Todavia, são
descritos pacientes com títulos muito baixos de FAN, como 1:40,
com doença franca do ponto de vista clínico. Assim, a apresentação
clínica será soberana na avaliação de qualquer título ou padrão de
FAN, de tal modo que indivíduos assintomáticos – ou com sintomas
não sugestivos de conectivopatias, artrite idiopática juvenil ou
hepatopatias autoimunes – não devem realizá-lo.
Peça o FAN para confirmar a sua hipótese
diagnóstica e não para excluir eventual doença
autoimune.

Os critérios classificatórios de LES foram atualizados em 2012 (Petri


et al., 2012) e, novamente, em 2019 (Aringer et al., 2019) e incluem
diversas manifestações clínicas e sorológicas. A memorização dos
critérios é provavelmente infrutífera ao clínico e se presta mais à
homogeneização necessária aos estudos científicos. De todo modo, o
Quadro 3.1 e o Quadro 3.2 mostram estes critérios atualizados, uma
vez que o conhecimento grosseiro acerca destes pode ainda ser
cobrado em concursos.
Quadro 3.1 - Critérios do Systemic Lupus International Collaborating Clinics (2012)
Quadro 3.2 - Critérios classificatórios de 2019 do American College of
Rheumatology/European League Against
Fonte: adaptado de 2019 European League Against Rheumatism/American College of
Rheumatology Classification Criteria for Systemic Lupus Erythematosus, 2019.

3.3.1.5 Tratamento

Parte importante do tratamento do LES passa por medidas não


farmacológicas. A exposição à radiação ultravioleta é diretamente
responsável pela gênese da doença e deve ser evitada sempre que
possível. Assim, os pacientes devem ser orientados a usar protetor
solar em todas as áreas expostas, diversas vezes ao dia, pois mesmo
a luz não natural pode contribuir para os efeitos imunes. Exercícios
físicos são fortemente recomendados, pela redução na chance de
osteoporose, sarcopenia, distúrbios lipídicos e também pelo efeito
imunomodulador (Benatti; Pedersen, 2015). Em pacientes com alto
risco de fratura, exercícios com alto impacto e flexão exagerada de
tronco devem ser evitados. Do ponto de vista nutricional, os
pacientes devem ser orientados a manter uma ingesta rica em cálcio
e pobre em alimentos ultraprocessados ou com alto índice glicêmico.
Essas orientações procuram atenuar a síndrome metabólica –
frequentemente desenvolvida secundária à inflamação, à
corticoterapia e à imobilidade – e reduzir a chance de osteoporose.
Por fim, a anticoncepção deve sempre ser ofertada às pacientes em
menacma, uma vez que a exposição hormonal pode piorar um lúpus
já ativo e muitas drogas são possivelmente inadequadas na gestação.
Do ponto de vista farmacológico, de maneira geral, todos os
pacientes usarão antimalárico (Fanouriakis et al., 2019). A droga
mais prescrita desta classe é a hidroxicloroquina, na dose
aproximada de 5 mg/kg/d. Existem diversos benefícios dos
antimaláricos vastamente documentados no LES, sendo vistos hoje
como droga modificadora de doença nesta condição, de tal forma
que não há protocolo atual que não recomende o seu uso, e muito
debate ainda existe sobre a real possibilidade de suspensão da droga,
mesmo em pacientes com remissão sustentada. Em pacientes com
quadros brandos, como mucocutâneo leve e articular, a
hidroxicloroquina em monoterapia é capaz de controlar a doença na
maioria dos casos. Glicocorticoide tem sido cada vez menos usado,
mas torna-se uma droga necessária nos quadros agudos graves, com
nefrite, manifestações neurológicas, trombocitopenia e hemorragia
alveolar. Em quadros brandos, pode ser usado em dose de até 0,25
mg/kg/d (de prednisona ou equivalente) como sintomático por
algumas semanas. Nos casos ameaçadores, a maioria dos
reumatologistas prefere a pulsoterapia com metilprednisolona (1 g/d
por 3 dias), não só pelo efeito mais rápido, mas também pela
possibilidade de desmame mais precoce das doses orais. Após a
pulsoterapia, geralmente é deixada uma dose de 0,5 a 1 mg/kg/d de
prednisona (ou equivalente) que deve ser reduzida em até 6 meses
para menos do que 7,5 mg/d.
Os imunossupressores têm se tornado a base do tratamento do LES
moderado e grave, e devem ser iniciados precocemente. São usados
conforme a manifestação clínica, mas, de maneira bastante ampla,
metotrexato (10 a 25 mg/sem, oral ou subcutâneo) está indicado
para quadros articulares, cutâneos e de serosa; azatioprina (2 a 3
mg/kg/d, oral) e micofenolato de mofetila (2 a 3 g/d, oral) para
quadros hematológicos, neurológicos, renais e pulmonares; e
ciclofosfamida (0,5 a 1 g/m2, intravenoso, na forma de pulsos
mensais) fica reservada aos quadros ameaçadores, geralmente
acompanhada de pulsoterapia com corticoide. O Quadro 3.3 resume
os imunossupressores mais usados no LES e as suas
particularidades.
Quadro 3.3 - Terapias comumente usadas no tratamento
3.3.1.6 Lúpus induzido por drogas

É uma doença diferente do LES verdadeiro, mas com sintomas


similares, induzida pela exposição a determinadas drogas. A
associação temporal à exposição a drogas potencialmente
causadoras (semanas a meses) e a resolução das manifestações com
a interrupção da droga em algumas semanas sugerem o diagnóstico.
Entretanto, os autoanticorpos podem persistir por 6 a 12 meses.
Os pacientes apresentam-se com queixas constitucionais como
fadiga, febre baixa e mialgia, além de artralgia, artrite e serosite
(pleural e pericárdica). As manifestações cutâneas incluem pápulas e
placas eritematosas, mas raramente ocorre lúpus discoide ou mesmo
o clássico rash malar do LES. Nefrite e acometimento de sistema
nervoso também são extremamente raros.
Os exames laboratoriais podem apresentar FAN com padrão
homogêneo e anticorpos anti-histona característicos. O anti-DNAds
e o anti-Sm estão ausentes.
Algumas drogas muito associadas a essa condição são:
procainamida, hidralazina, penicilamina, IFN-alfa, isoniazida,
diltiazem, metildopa, clorpromazina e agentes anti-TNF. Outras
drogas menos importantes incluem: propafenona, inibidores da
enzima conversora de angiotensina, betabloqueadores,
hidroclorotiazida, propiltiouracila, lítio, nitrofurantoína,
sulfassalazina, estatinas, carbamazepina e fenitoína.
O tratamento é fundamentado na remoção da droga causadora.
Eventualmente, anti-inflamatórios ou doses baixas de corticoide
podem ser usados até a melhora do quadro.
3.3.1.7 LES na gestação

As condições férteis de homens e mulheres com LES são iguais às da


população em geral. No entanto, o índice de perda fetal é maior em
mulheres lúpicas. O óbito fetal é maior entre mães com atividade
agressiva da doença, anticorpos antifosfolípides e/ou nefrite.
Devem-se considerar atividade, gravidade da doença e toxicidade
das drogas, sendo a gravidez desaconselhada quando há atividade de
doença, especialmente na vigência de nefropatia. Existe maior
incidência de retardo de crescimento intrauterino, prematuridade,
hipertensão induzida pela gravidez e diabetes.
A supressão da atividade da doença pode ser alcançada pela
administração de corticoide sistêmico e antimaláricos que podem ser
mantidos durante a gestação. Os efeitos adversos pré-natais da
exposição ao corticoide são o baixo peso ao nascer e anormalidades
na formação do sistema nervoso central. Pacientes com LES e
síndrome antifosfolípide podem ter perdas gestacionais de
repetição, prematuridade e restrição de crescimento intrauterino.
Como manifestações da própria gravidez, pode haver eritemas
palmar e facial, artralgias e elevação da velocidade de
hemossedimentação, dificultando a caracterização da atividade da
doença.
A presença do anti-DNAds e/ou a elevação dos
seus títulos e do consumo do complemento
podem auxiliar na diferenciação entre atividade
da doença e pré-eclâmpsia.

Um problema potencial adicional para o feto é a presença de


anticorpos anti-Ro, às vezes associada ao LES neonatal, com lesões
cutâneas e bloqueio atrioventricular (BAV) congênito. O LES
neonatal é uma doença imunológica rara, resultante da passagem
para o feto de autoanticorpos maternos anti-Ro. A manifestação
clínica mais frequente e mais grave é o BAV completo congênito,
que, geralmente, é considerado permanente. Associa-se a
significativa morbimortalidade, particularmente durante os
primeiros 3 meses de vida. Os anticorpos anti-Ro e anti-La estão
presentes em mais de 85% das mães cujos filhos têm BAV congênito
com coração estruturalmente normal. Os BAVs congênitos são
habitualmente detectados entre a décima oitava e a vigésima oitava
semana de idade gestacional e podem causar insuficiência cardíaca
intrauterina, com perda fetal ou neonatal. Por conta disso, alguns
autores recomendam ecocardiogramas seriados entre a décima sexta
e a vigésima nona semana de gestação a todas as grávidas com
autoanticorpos, porque essa é a fase em que existe maior
probabilidade de detecção de bradiarritmia fetal.
O lúpus neonatal é especialmente relacionado
ao anti-Ro. Contudo, anti-La e anti-U1 RNP
também já foram associados à condição.
As manifestações não cardíacas são transitórias e desaparecem até 6
a 8 meses de vida, quando se dá o desaparecimento dos anticorpos
maternos da circulação. As alterações cutâneas podem estar
presentes desde o nascimento ou surgir pouco tempo depois,
frequentemente associadas à exposição solar (lesões fotossensíveis).
O exantema é, em geral, eritematoso, anular, descamativo,
fotossensível e atinge a face e o couro cabeludo (Figura 3.6).
Também pode cursar com alterações da função hepática (colestase) e
hematológicas (anemia, trombocitopenia e neutropenia).
Figura 3.6 - Lúpus neonatal
Fonte: Lúpus neonatal: relato de caso com achados exuberantes, 2019.

A presença de anti-Ro requer monitorização da frequência cardíaca


fetal, com intervenção precoce caso haja sofrimento. A gestação
acontece geralmente sem surtos da doença, porém uma proporção
pequena desenvolve crises severas que requerem terapia
imunossupressora agressiva ou interrupção precoce da gestação. Os
piores resultados apresentam-se entre mulheres com nefrite ativa.
Anticoncepcionais orais de baixa dosagem de estrogênios, quando
indicados, não têm mostrado indução de atividade significativa da
doença, porém são contraindicados na presença de anticorpos
antifosfolípides, em virtude do risco aumentado de tromboses. A
prednisona, a hidroxicloroquina e o ácido acetilsalicílico em baixas
doses podem ser utilizados na gravidez. Se é extremamente
necessário o uso de imunossupressores, a melhor opção é a
azatioprina, pois ciclofosfamida, micofenolato de mofetila,
metotrexato e leflunomida são totalmente contraindicados. Às
gestantes com anticorpos antifosfolípides positivos, porém sem a
síndrome antifosfolípide, pode-se indicar ácido acetilsalicílico 100
mg/d.
Na amamentação, doses superiores a 20 mg/d de prednisona podem
determinar riscos para a criança, sendo recomendado intervalo de 4
horas entre a tomada da medicação e a amamentação.
A monitorização de tais pacientes deve ser individualizada, e a
gestação, considerada de alto risco, necessita de acompanhamento
multidisciplinar até o puerpério, em virtude da possibilidade de
exacerbação da doença.
3.3.2 Síndrome antifosfolípide
A síndrome antifosfolípide (SAF) é uma DSTC que se manifesta,
sobretudo, com tromboses de repetição de origem autoimune. Assim
como as demais conectivopatias, apresenta-se clinicamente nos
diversos espectros fisiopatológicos, mas suas manifestações mais
singulares decorrem da circulação de anticorpos que promovem
trombose micro e macrovascular.
3.3.2.1 Etiologia

O conceito mais aceito atualmente para explicar a fisiopatologia da


SAF se baseia na ideia de que é uma doença com alta carga de
anticorpos circulantes voltados, especialmente, contra elementos
não prontamente disponíveis na circulação. Isso explica porque, na
imensa maioria dos pacientes com SAF, tromboses ocorrem
intermitentemente com períodos de calmaria clínica. Do ponto de
vista imunológico, as vias mais ativadas na SAF são aquelas voltadas
à produção de anticorpos via linfócito B – ou seja, as vias Th17 e Tfh
–, que, neste caso, reconhecem fosfolipídios de membranas ou a
beta-2-glicoproteína I, uma proteína que parece participar da
produção de óxido nítrico endotelial, contribuindo, portanto, para
um efeito antitrombótico.
Contudo, nos estados homeostáticos, tanto os fosfolipídios de
membrana quanto a beta-2-glicoproteína I estão ocultos dos
anticorpos circulantes. É necessário que um evento ocorra para
primeiro expor estes sítios de ligação, para, só então, os anticorpos
patológicos exercerem o seu papel.
Desta constatação nasceu o conceito mais contemporâneo de “duplo
gatilho” na SAF: um primeiro insulto, geralmente capaz de gerar
lesão endotelial ou estresse oxidativo, deve ocorrer para que o
segundo insulto, na forma dos anticorpos circulantes e posteriores
imunocomplexos, possa ser possível (Giannakopoulos; Krilis, 2013).
Ter em mente esta noção fisiopatológica torna mais fácil
compreender os fatores de risco para trombose nos pacientes com
anticorpos antifosfolípides. Qualquer evento que produza estresse
oxidativo ou lesão endotelial pode iniciar uma trombose. Assim,
tabagismo e exposição a outras toxinas, infecções, gestação,
síndrome metabólica e outras condições hormonais e inflamatórias
podem ser potenciais fatores etiológicos.
A presença de anticorpos antifosfolípides pode ocorrer de maneira
isolada, quando esta for a disfunção imune primordial do paciente.
Neste caso, a doença se intitula SAF primária. Contudo, alguns
pacientes terão outras doenças que cursam com a produção de
anticorpos, sendo alguns deles, possivelmente, autoanticorpos
antifosfolípides. Nesta situação, a doença primordial do indivíduo
não é a SAF, sendo intitulada, por sua vez, SAF secundária. A doença
que mais cursa com SAF secundária é o LES, justamente pelas suas
fisiopatologias convergentes.
3.3.2.2 Epidemiologia

Os estudos epidemiológicos em SAF ainda são bastante


heterogêneos, possibilitando poucas informações universais. Cerca
de metade dos pacientes com manifestações clínicas compatíveis
com SAF possuem doença primária e, dos que possuem doença
secundária, quase 90% são pacientes com LES (Cervera et al., 2015).
A SAF primária parece ocorrer em prevalência semelhante ao LES –
em torno de 0,05% da população (Duarte-García et al., 2019) –,
ainda com predominância feminina – cerca de 4 mulheres para cada
homem –, porém menor do que no LES (Cervera et al., 2015). O
quadro em geral se inicia nos pacientes ainda jovens, comumente em
mulheres na menacma – na terceira e quarta década de vida. Os
estudos até o momento geralmente apontam para uma importante
maioria caucasiana, mas também possuem o viés populacional das
regiões estudadas.
A SAF é uma trombofilia de altíssimo risco.
Pacientes não tratados têm risco relativo anual
de nova trombose 34 vezes maior que a
população em geral e, mesmo tratados, 11%
recorrem ao menos 1 vez na vida (Rosove;
Brewer, 1992).
3.3.2.3 Manifestações clínicas

Assim como nas demais DSTCs, as manifestações da SAF se espraiam


por todas as fisiopatologias descritas anteriormente. No polo
principal da SAF, aquele que envolve alta produção de
autoanticorpos e formação de imunocomplexos, encontram-se as
suas manifestações clínicas que melhor a identificam entre as
conectivopatias.
a) Trombose de vasos nomináveis

Por tratar-se de uma síndrome relacionada a um estado de


hipercoagulabilidade, a SAF pode produzir eventos tromboembólicos
em, virtualmente, qualquer tecido ou órgão. Como exemplos mais
comuns e importantes, podem-se citar tromboses venosas
profundas (em 32% dos casos), oclusões arteriais agudas de
membros, acidentes vasculares encefálicos (em 13% dos casos),
ataques isquêmicos transitórios do sistema nervoso central (em 7%
dos casos), tromboembolismo pulmonar (em 9% dos casos), infarto
agudo do miocárdio, infartos hepáticos, esplênicos ou renais,
síndrome de Budd-Chiari, insuficiência adrenal isquêmica e
neuropatia óptica.
b) Trombose de vasos macroscópicos

As manifestações mais comuns de SAF se referem aos vasos


macroscópicos nomináveis. Contudo, vasos macroscópicos que não
são tipicamente nomeados pela sua relevância em conjunto e não
individual – ou seja, vasos que nutrem segmentos de um órgão e são
mais bem entendidos coletivamente –, como os “vasos
intrarrenais”, “vasos intramiocárdicos” ou “vasos esplâncnicos”,
também podem ocluir na SAF. O caso mais comumente observado se
refere à trombose de vasos renais, produzindo uma nefropatia
trombótica. O quadro clínico é de uma perda de função renal
paulatina, com frequente ascenso pressórico, algum grau de
proteinúria (geralmente não nefrótica) e sedimento urinário brando.
Ocasionalmente, pode ocorrer visualização de esquizócitos na urina
e no sangue, simbolizando algum grau de microangiopatia
trombótica.
Tromboses em território cutâneo podem levar a algumas
manifestações na SAF: livedo (Figura 3.7) – representando um
distúrbio perfusional intermitente, sem grande repercussão
isquêmica para o tecido –, ulcerações – quando o distúrbio
perfusional é grande o suficiente para lesar o tecido tegumentar - ou
gangrena – quando o distúrbio é vasto e compromete a extremidade
como um todo.
Figura 3.7 - Paciente com livedo em membros inferiores
Fonte: arquivo pessoal do dr. Jean Souza.
Outra manifestação singular que envolve trombose multiterritorial
na SAF é a SAF catastrófica (catastrophic antiphospholipid syndrome).
Esta entidade é definida como uma síndrome aguda, em portadores
de anticorpos antifosfolípides, com duração de até 7 dias, na qual 3
ou mais sítios sofrem insulto trombótico simultâneo ou sequencial
(Asherson et al., 2003). A maior parte dos pacientes terão
insuficiência respiratória, confusão mental, déficit focais e
nefropatia trombótica, além de tromboses cutâneas e viscerais
(representando a trombose de vasos maiores).
Do ponto de vista neurológico, apesar dos quadros ictais isquêmicos
agudos chamarem prontamente a atenção dos clínicos, muitos
pacientes com manifestação neurológica na SAF a farão na
microcirculação. É bem documentado nos pacientes a ocorrência de
síndromes cognitivas de evolução muito lenta, muito provavelmente
relacionadas à doença microvascular (Tektonidou et al., 2006).
Do ponto de vista obstétrico, além das manifestações citadas nos
critérios de classificação da SAF (ver adiante), são possíveis outras
condições mórbidas durante a gravidez relacionadas à perfusão
placentária, como pré-eclâmpsia, eclâmpsia, síndrome HELLP e
retardo de crescimento intrauterino. Admite-se que as
manifestações de SAF gestacionais decorrem de trombose e
inflamação placentária, aumentando consideravelmente a
morbidade gestacional do feto e, inclusive, da mãe.
No diferencial da SAF catastrófica, entram
especialmente as síndromes trombo-
hemorrágicas: púrpura trombocitopênica
trombótica, síndrome hemolítico-urêmica,
coagulação intravascular disseminada e
síndrome HELLP.

c) Citopenias
Como a SAF cursa com anticorpos circulantes, pode ocorrer lise de
células opsonizadas. O alvo principal da SAF é a plaqueta, causando
trombocitopenia imune. Outro mecanismo que pode levar à
plaquetopenia neste caso é o consumo por microtrombos, embora
muito provavelmente seja o mecanismo menos importante no
indivíduo fora de estado grave (exemplo: SAF catastrófica).
A trombocitopenia na SAF é geralmente menos intensa do que no
LES, mas o seu manejo segue as mesmas diretrizes.
No polo da regeneração inadequada, a SAF pode evoluir com
manifestações valvares, assim como o LES. A forma mais comum de
doença valvar nestas doenças inclui espessamento valvar e eventual
formação de trombos nos folhetos – depósitos endocárdicos
trombóticos não bacterianos (NBTE), endocardite marântica ou
endocardite de Libman-Sacks. O espessamento valvar pode evoluir
para insuficiência, geralmente na valva mitral, e os trombos podem,
por sua vez, embolizar. Por fim, como outras manifestações do polo
regenerativo, a imunossupressão parece não reverter a valvopatia.
Na NBTE relacionada às conectivopatias, existe
evidência para uso de antiagregantes na
ausência de eventos embólicos prévios (se
presentes, o paciente teria já indicação de
anticoagulação), como forma de prevenção
(Lockshin et al., 2003).

3.3.2.4 Diagnóstico

O diagnóstico de SAF deve ser suspeitado em qualquer paciente com


trombose fora de contexto (exemplo: jovem, sem comorbidades, não
provocada), morbidade gestacional recorrente ou em paciente com
LES e manifestações trombóticas. Outros sinais menos evidentes
incluem manifestações cutâneas sugestivas, plaquetopenia ou
doença renal.
Como a fisiopatologia é intrinsecamente relacionada aos anticorpos,
em geral, entende-se que são condição sine qua non para o
estabelecimento da relação causal e devem sempre estar presentes
no soro do paciente.
3.3.2.5 Anticorpos antifosfolípides

Os 3 principais tipos de anticorpos antifosfolípides relacionados à


SAF estão relacionados a seguir.
a) Anticoagulante lúpico

Apesar do nome, sua atividade associa-se a um estado pró-


coagulante in vivo, tendo sido assim denominado por ser capaz de
prolongar, in vitro, o tempo de tromboplastina parcial ativada, não
corrigível pela adição de plasma normal ao ensaio. A pesquisa do
anticoagulante lúpico é um teste funcional de coagulação para a
detecção de anticorpos antifosfolípides, sendo que mais de 1
anticorpo antifosfolípide pode estar associado à atividade do
anticoagulante lúpico. É o anticorpo mais associado a morbidade na
SAF.
b) Anticorpos anticardiolipina

São, geralmente, detectados por ELISA e podem ser da classe IgM,


IgG ou IgA. Vale ressaltar que aproximadamente 50% dos pacientes
com SAF portadores de anticorpos anticardiolipina podem
apresentar testes falsos positivos para VDRL (Venereal Disease
Research Laboratory), uma vez que, nesse exame, o substrato é
formado por partículas contendo cardiolipina. No entanto, o VDRL
falso positivo apresenta baixa sensibilidade e fraca correlação com a
ocorrência de tromboses, não devendo ser usado como teste de
screening para SAF.
c) Anticorpo antibeta-2-glicoproteína I
A beta-2-glicoproteína I é o antígeno-alvo mais comum dos
anticorpos antifosfolípides. Geralmente, os anticorpos
anticardiolipina de pacientes com SAF são dependentes de beta-2-
glicoproteína I; no entanto, nem sempre pacientes positivos para
anticardiolipina são também positivos para antibeta-2-
glicoproteína I.
Há outros anticorpos antifosfolípides, como antifosfatidilserina e
antianexina-V, porém seu papel na SAF ainda é incerto, e sua
pesquisa não faz parte da avaliação-padrão da síndrome.
Os critérios atuais (critérios de Sidney) para a classificação da SAF
(Miyakis et al., 2006) são:
1. Clínicos:
a) Trombose vascular:
Um ou mais episódios de trombose arterial, venosa ou de
pequenos vasos, em qualquer tecido ou órgão. É importante
salientar que a trombose superficial não consta nos critérios,
e o exame histopatológico não deve apresentar inflamação
significativa.
b) Morbidades gestacionais:
1 ou mais óbitos de fetos morfologicamente normais após a
décima semana de gestação;
1 ou mais partos prematuros de neonatos morfologicamente
normais até a trigésima quarta semana de gestação, devido
a pré-eclâmpsia grave ou insuficiência placentária;
3 ou mais abortamentos espontâneos até a décima semana
de gestação, excluídas alterações hormonais e anatômicas
maternas e cromossômicas dos pais.
2. Laboratoriais: é necessária a presença de anticorpos
antifosfolípides em 2 ou mais ocasiões com intervalo de, pelo menos,
12 semanas:
a) Detecção no sangue de anticorpos anticardiolipina IgG ou IgM
em títulos moderados a elevados;
b) Detecção no sangue de anticoagulante lúpico;
c) Detecção no sangue de anticorpo antibeta-2-glicoproteína I IgM
e/ou IgG em altos títulos.
O diagnóstico da SAF definida requer a presença de, no mínimo, 1
critério clínico e de, pelo menos, 1 critério laboratorial, sem limite de
tempo decorrido entre os eventos clínicos e os achados laboratoriais.
No momento da coleta, pacientes em vigência de anticoagulação
terão níveis de anticoagulante lúpico alterados, porém os níveis de
anticardiolipina e antibeta-2-glicoproteína I IgM e/ou IgG poderão
ser avaliados.
Para o diagnóstico de SAF, recorre-se a 1 critério de cada categoria:
clínicos (≥ 1 episódio de trombose vascular), morbidades
gestacionais (1 ou mais óbitos de fetos normais após a décima
semana; ou 1 ou mais partos prematuros de neonatos
morfologicamente normais até a trigésima quarta semana de
gestação; ou 3 ou mais abortamentos espontâneos até a décima
semana de gestação) e laboratoriais (anticorpos em 2 ou mais
ocasiões, com intervalo mínimo de 12 semanas).
O diagnóstico diferencial inclui, necessariamente, outras causas de
trombofilias. Dentre as congênitas, podem ser citados fator V de
Leiden, mutação de protrombina, deficiências de proteínas C e S,
deficiência de antitrombina III e hiper-homocisteinemia. As causas
adquiridas mais importantes de trombofilia são o uso de
anticoncepcionais orais, terapia de reposição hormonal, gravidez,
neoplasias, traumas, cirurgias e imobilidade.
3.3.2.6 Tratamento

O tratamento inicial dos eventos trombóticos agudos relacionados à


SAF é o mesmo de qualquer outra trombose, requerendo
anticoagulação com heparina. Podem ser usadas tanto a heparina
subcutânea de baixo peso molecular em dose plena quanto a não
fracionada em infusão intravenosa contínua.
Em todos os pacientes com SAF confirmada, está indicada a
anticoagulação oral com varfarina em longo prazo, muitas vezes por
tempo indeterminado, dado o elevado risco de recorrência dos
quadros trombóticos (Andrade et al., 2017). A intensidade de
anticoagulação atualmente recomendada tem, como meta, a
manutenção do valor do INR (razão normatizada internacional)
entre 2 e 3. Estudos recentes demonstraram que, em pacientes com
SAF, a manutenção do INR nestes níveis é tão eficaz quanto em
níveis mais agressivos (3 a 4) para a prevenção de tromboses, salvo
em casos excepcionais, como em tromboses arteriais de alto fluxo,
nos quais essa modalidade pode ser considerada (Tektonidou et al.,
2019). Vale ressaltar que os novos anticoagulantes orais (como
dabigatrana e rivaroxabana) já foram estudados no tratamento da
SAF, e, até o momento, estão contraindicados por aumento do risco
de sangramento e trombose (Pengo et al., 2018; Tektonidou et al.,
2019). Quando houver plaquetopenia (níveis > 50.000/mm3), a
anticoagulação oral apresentará tem as mesmas metas.
Na gestação, a heparina e o ácido acetilsalicílico passam a ter papel
central no tratamento da SAF, dados os riscos do uso de varfarina
durante a gravidez. A gestantes com SAF clínica definida,
recomenda-se trocar a anticoagulação oral com varfarina pela
anticoagulação plena com heparina de baixo peso molecular
associada a baixas doses de ácido acetilsalicílico até o parto,
voltando à varfarina após. Nos casos de gestantes com SAF apenas
gestacional (exemplo: sem antecedentes de tromboses clínicas),
recomenda-se ácido acetilsalicílico a partir do desejo gestacional e
durante a gravidez, associado a doses profiláticas de heparina de
baixo peso molecular. Estas drogas são mantidas até a sexta semana
pós-parto.
Em gestantes com anticorpos presentes e história de partos
prematuros (antes da trigésima quarta semana) somente, ou em
gestantes portadoras de anticorpos antifosfolípides, mas sem
manifestações gestacionais de SAF, pode-se usar somente ácido
acetilsalicílico durante a gravidez (ACOG, Practice Bulletin 132, 2012;
Tektonidou et al., 2019).
Existem muitos pormenores na SAF obstétrica
durante a gestação, mas, de maneira geral,
ácido acetilsalicílico e heparina de baixo peso
profilática costumam ser um esquema
razoavelmente adequado em todas as ocasiões.

Em condições específicas, pode-se lançar mão de outras linhas


terapêuticas. Pacientes com tromboses de repetição, a despeito de
anticoagulação, geralmente são tratados com estatinas e
hidroxicloroquina (na mesma dose do LES). O racional para tal
medida se sustenta no fato de que as estatinas possuem relação com
a lesão endotelial – agindo sobre a sintase de óxido nítrico e,
portanto, reduzindo a chance de trombose pelo primeiro gatilho (ver
item 3.3.2.1) –, e a hidroxicloroquina tem efeito imunomodulador –
inibindo os toll-like receptors (TLR), e, portanto, reduzindo a
ativação linfocitária, assim como no LES (Giannakopoulos; Krilis,
2013).
Nos casos de SAF catastrófica, há necessidade de terapêutica
agressiva, incluindo, além da anticoagulação com heparina,
pulsoterapia com corticoide e plasmaférese (Tektonidou et al., 2019).
Em outubro de 2017, a Pediatric Rheumatology European Society
publicou o primeiro consenso exclusivo de SAF em crianças
(SHARE). Porém, as evidências ainda são pequenas. O estudo
objetivou o diagnóstico e tratamento de SAF em crianças reunindo
estudos previamente publicados. A conclusão do consenso é a de que
os critérios diagnósticos de SAF do adulto são pouco sensíveis para a
faixa pediátrica, e novos critérios são necessários para tal faixa
etária. Além disso, as recomendações sobre o tratamento são
semelhantes às dos adultos, apresentando contradições sobre a
manutenção do INR entre 3 e 4 em pacientes com eventos
trombóticos arteriais, visto que não existem estudos com evidência
significativa na literatura.
Com relação a outras medidas, convém lembrar da teoria do duplo
gatilho na SAF: todas as medidas visando reduzir estresse oxidativo
e lesão endotelial precisam ser consideradas. Portanto, cessar o
tabagismo, controlar a síndrome metabólica e praticar atividade
física são medidas provavelmente benéficas.
3.4 DOENÇAS DO ESPECTRO DA
ATIVAÇÃO LINFOCITÁRIA
3.4.1 Miopatias autoimunes sistêmicas
As Miopatias Autoimunes Sistêmicas (MASs) não são uma única
doença, mas, sim, um grupo heterogêneo de conectivopatias com
uma forte representação no polo da ativação linfocitária, cursando
de maneira cardinal com invasão muscular por células inflamatórias
que geram disfunção muscular.
3.4.1.1 Etiologia

Embora ainda se conheça pouco sobre a etiologia das MASs,


entende-se que se originam de uma predisposição genética à
autoimunidade, através de polimorfismos de genes do human
leucocyte antigen (Chen et al., 2017), associada a exposições
ambientais diversas, como infecções – por vírus HTLV e
Coxsackievirus (Morgan et al., 1989) –, neoplasias (Hill et al., 2001) e
drogas, especialmente as estatinas (Mammen et al., 2014) e
antineoplásicos (Portow et al., 2018). Esta combinação levaria a uma
quebra da imunotolerância com desenvolvimento de autoimunidade.
3.4.1.2 Epidemiologia

Apresentam baixa incidência na população geral, em torno de 0,5 a


8,4 casos/1.000.000 de pessoas. A incidência parece estar
aumentando devido ao diagnóstico mais acurado. De forma geral,
são encontradas em todos os grupos etários, mas há distribuição
bimodal, com picos nas faixas entre 10 e 15 anos e 45 e 60 anos.
Entretanto, de acordo com o tipo de miopatia encontrada, a
incidência nos grupos etários pode ser bem diferente. Em quase
todas as formas de MASs, o acometimento é uniforme em relação ao
sexo e à etnia.
Quanto mais idoso é o paciente, maior é a
chance de que uma neoplasia acompanhe a
miopatia.

3.4.1.3 Manifestações clínicas

As MASs apresentam manifestações clínicas universais e comuns a


todas as desordens inflamatórias ou autoimunes, que representam a
ativação imune de maneira sensu lato. Essas manifestações não
diferenciam as grandes síndromes reumatológicas e por vezes se
confundem, inclusive, com desordens infecciosas, hormonais ou
neoplásicas. São exemplos desses sintomas inespecíficos: fadiga,
febre, perda ponderal, hiporexia, mialgia e mal-estar em geral.
Grande parte das manifestações clínicas das MASs se encontram no
polo da ativação linfofagocitária com lesão tecidual e celular direta.
Como as MASs representam um grupo de doenças – mais do que
uma única doença –, algumas facetas específicas foram agrupadas
em subdenominações, que na prática clínica dão nome à doença em
questão. Para o clínico não especialista, as formas mais relevantes de
MASs são a dermatomiosite (DM) e a polimiosite (PM),
principalmente. A síndrome antissintetase (SAS) e a Miosite por
Corpos de Inclusão (MCI) ganharam notoriedade recentemente nos
congressos e reuniões de Medicina Interna pela sua ascendente
prevalência e singularidade. Assim, serão abordados de maneira
sucinta. Ao longo das apresentações clínicas, serão pontuadas as
manifestações mais típicas de uma ou outra condição.
Muitos profissionais não especialistas e,
infelizmente, muitos concursos médicos,
incorrem em um reducionismo que é impreciso,
mas que deve ser conhecido: para efeito de
prova, dermatomiosite é uma polimiosite com
acometimento cutâneo.

a) Miosite

Sem dúvida a manifestação cardinal nas MASs. A ativação


linfofagocitária voltada ao músculo promove lesão muscular direta,
com extensos infiltrados inflamatórios musculares e
perimusculares, compostos especialmente por linfócitos e
macrófagos (Figura 3.8). Na prática, este insulto inflamatório gerará
destruição de fibras musculares, com consequente fraqueza e
elevação de enzimas musculares. Nas formas com alta produção de
anticorpos, o componente de deposição de imunocomplexos
também se faz presente, com inflamação nos vasos sanguíneos que
nutrem o músculo. Este evento piora a disfunção muscular já
estabelecida, pois as fibras entram em hipóxia, perpetuado o ciclo de
inflamação e destruição (Shreeniwas et al., 1992).
Frente a biópsia muscular, em geral pacientes
com dermatomiosite terão mais vasculite do
que pacientes com polimiosite. Pacientes com
dermatomiosite geralmente possuem
autoanticorpos circulantes e, de polimiosite,
quase sempre não.
Figura 3.8 - Corte histológico corado em hematoxilina-eosina mostrando infiltrado
inflamatório predominantemente linfocítico e especialmente perifascicular
Nota: os achados são muito sugestivos de dermatomiosite.
Fonte: arquivo pessoal do dr. Jean Souza.

Clinicamente, a fraqueza muscular geralmente é progressiva, de


início insidioso, levando de 1 a 6 meses para se instalar. O
acometimento é simétrico e proximal, com comprometimento dos
músculos das cinturas escapular e pélvica. O indivíduo queixa-se de
dificuldade para tarefas específicas que envolvam essa musculatura
proximal, como levantar-se da cadeira, subir escadas (cintura
pélvica), pentear e lavar o cabelo e elevar os braços (cintura
escapular). A musculatura do pescoço, principalmente a flexora,
também pode estar acometida, e o paciente tem dificuldade de elevar
a cabeça quando deitado de costas. É necessário, ao exame, fazer a
graduação da força muscular tanto para o diagnóstico quanto para o
acompanhamento do tratamento.
Os pacientes também podem apresentar comprometimento da
parede posterior da faringe e do terço proximal do esôfago (músculo
estriado esquelético), o que resulta em disfagia de transferência, isto
é, dificuldade em deglutir com sincronismo o alimento, resultando,
em casos avançados, em broncoaspiração. Pode ocorrer disfonia em
alguns casos e alguns pacientes com inflamação maciça também
podem ter comprometimento de musculatura respiratória.
Na fase aguda, a maior mortalidade dos
pacientes com miopatias autoimunes
sistêmicas se dá por pneumonia secundária a
broncoaspiração (Oliveira; Souza; Shinjo, 2019).

Dor muscular é um evento menos comum do que fraqueza, contudo,


como pode ocorrer inflamação do tecido perimuscular (fascículos e
fáscia muscular), alguns pacientes podem eventualmente apresentar
mialgia.
Na MCI, uma forma de miopatia inflamatória adquirida de idosos,
com inflamação branda e alterações distróficas e degenerativas
musculares, a fraqueza se instala de maneira muito insidiosa,
geralmente em vários anos. O músculo mais acometido é o
quadríceps femoral, que quase sempre cursa não só com fraqueza,
mas também atrofia (perda de volume muscular) importante.
O diagnóstico de acometimento muscular por MAS se dá
principalmente pela clínica e pela dosagem de enzimas musculares –
creatinofosfoquinase (CPK) e suas frações, aldolase, desidrogenase
láctica (DHL) e transaminases –, que geralmente virão aumentadas
no plasma, refletindo a lise muscular. Academicamente, a
eletroneuromiografia (um exame extremamente doloroso) deve ser
solicitada somente nos casos de dúvida diagnóstica, pois entre as
miopatias em geral, mesmo as não inflamatórias, o aspecto será
sempre miopático e não ajudará na distinção.
Deve-se ficar atento, pois, como nos primeiros
critérios diagnósticos entrava a
eletroneuromiografia, é muito comum que
questões de exames pressuponham que este
exame deva ser solicitado, apesar da pouca
aplicabilidade clínica.

A ressonância magnética muscular ganhou muita importância nos


últimos anos se consolidando como um exame que é capaz de ver a
quantidade e a localização tanto da inflamação quanto de eventuais
sequelas (Pinal-Fernandes et al., 2017). Assim, torna possível sugerir
atividade e apontar eventuais diferenciais, pelo padrão de
acometimento.
Por fim, a biópsia muscular frequentemente será necessária nos
quadros de acometimento muscular isolado, pois o leque de
diferenciais é amplo. Quando houver outros acometimentos
(pulmonar, cutâneo, articular), é possível que o diagnóstico
prescinda do anatomopatológico pela especificidade dos achados,
particularmente as formas de dermatite.
No que se refere aos diferenciais do acometimento muscular,
especialmente quando ocorre isoladamente, faz-se necessária a
busca por miopatias metabólicas (glicogenoses e lipidoses),
mitocondriais, congênitas, tóxicas, infecciosas, paraneoplásicas,
distrofias musculares, neuropatias, miastenia e outras formas
incomuns de miopatia autoimune. Em muitas ocasiões, a biópsia
muscular com técnicas moleculares estreitará este diagnóstico, mas
não é infrequente que o paciente necessite de testes genéticos.
Sinais que sugerem outro diagnóstico incluem:
assimetria, acometimento preferencialmente
distal, atrofia muscular e acometimento de
face.
b) Dermatite

As manifestações cutâneas nas MASs decorrem de 2 mecanismos:


infiltração tegumentar direta por células inflamatórias (maior parte
dos casos) ou vasculite. A segunda situação será abordada adiante
(no subitem sobre vasculite mais adiante nesse item).
Na dermatite das MASs encontramos as lesões mais características
das doenças, que por vezes permitem o diagnóstico quase imediato
da condição dada a sua particularidade. As lesões mais específicas e
altamente sugestivas de MAS são:
1. Sinal de Gottron: máculas eritematovioláceas presentes na
superfície extensora das articulações, especialmente dos dedos das
mãos, dispostas simetricamente (Figura 3.9);
2. Pápulas de Gottron: pápulas eritematovioláceas, por vezes
descamativas, simétricas, localizadas sobre as superfícies extensoras
dos dedos, cotovelos, joelhos e maléolos (Figura 3.10);
3. Lesão “em heliotropo”: erupção violácea na pálpebra superior,
geralmente acompanhada de edema periorbital (Figura 3.11).

Na prática clínica, pápulas e sinal de Gottron são


quase sempre simultâneos e representam o
mesmo mecanismo fisiopatológico, sendo
usados como sinônimos pela maior parte dos
especialistas.

De forma menos específica, ainda se podem identificar outros


comprometimentos cutâneos em pacientes com MAS, como o
eritema macular fotossensível na face (Figura 3.12) – diferente do
rash em “asa de borboleta” do LES, pois não poupa a região
nasolabial – e placas eritematosas nos ombros (sinal do xale), no
peitoral (sinal do “V do decote”) e nas coxas (sinal do coldre).
Figura 3.9 - Sinal de Gottron nos joelhos
Fonte: Dermatomiosite, 2008.

Figura 3.10 - Pápulas de Gottron


Fonte: Dermatomiosite, 2008.

Figura 3.11 - Rash “em heliotropo”: pigmentação rosa ou violácea nas pálpebras de
pacientes com dermatomiosite
Fonte: Photoessay of the cutaneous manifestations of the idiopathic inflammatory
myopathies, 2009.

Figura 3.12 - Eritema ou rash facial


Legenda: (A) nas regiões malares e mentoniana; (B) na fronte, na mesma paciente.
As manifestações cutâneas das MASs ocorrem preferencialmente no
subgrupo DM, embora possam acompanhar também a SAS. A PM e a
MCI classicamente não têm lesões de pele.
Nem sempre um paciente com manifestações cutâneas terá
manifestações clínicas musculares. Contudo, nas MASs, o músculo é
o órgão-alvo e, histologicamente, haverá lesão muscular
virtualmente em todos os pacientes. Nos pacientes com dermatite
que não possuem acometimento clínico muscular (exemplo: não têm
fraqueza), diz-se que possuem dermatomiosite clinicamente
amiopática.
O diagnóstico diferencial da dermatite na DM é estreito, dada a sua
especificidade. Nos quadros menos típicos, deve-se considerar a
possibilidade de rash infeccioso – especialmente na abertura do
quadro –, síndrome paraneoplásica, linfomas cutâneos e
farmacodermias.
c) Artrite

A sinovite decorre de 2 mecanismos: invasão linfomonocítica da


sinóvia ou de proliferação sinovial secundária às substâncias
inflamatória circulantes. Na maior parte dos casos, a artrite
decorrerá do segundo mecanismo, sendo geralmente branda e
lembrando muito a artrite do LES. O mais comum é que os pacientes
tenham apenas dor à palpação, sem o edema e calor vistos na artrite
reumatoide, por exemplo. Os sítios mais comuns são os punhos, as
articulações dos dedos e os joelhos, embora qualquer articulação
sinovial possa estar dolorida. A rigidez matinal é menor do que nas
artropatias autoimunes, mas a marcha inflamatória da dor –
melhorar com a movimentação – costuma se manter.
Quando ocorre invasão maciça da sinóvia por células inflamatórias,
pode ocorrer artrite mais exuberante, inclusive com o achado de
pannus sinovial (proliferação da membrana sinovial, tornando-a
palpável com uma consistência borrachuda). Nesta situação, o
achado clínico lembra muito uma artropatia autoimune. Na
ocorrência de sinovite importante, deve-se considerar a
possibilidade de SAS.
O diagnóstico da artrite nas MASs é clínico e geralmente não será a
principal queixa do paciente na abertura do quadro, que costuma ser
grave. Com o tratamento da miopatia, a artrite geralmente cederá.
No caso dos pacientes em seguimento por MASs de longa data, a
ocorrência de monoartrite ou oligoartrite com inflamação evidente,
especialmente na vigência de corticoterapia em dose alta, representa
sinal de alarme para artrite infecciosa, especialmente por germes de
crescimento lento, como micobacterioses.
#IMPORTANTE
A despeito da característica agressiva da artrite
vista clinicamente, não é esperada erosão nas
artrites das DSTCs (com exceção da artrite
reumatoide, que se comporta clinicamente
como uma artropatia autoimune).

A seguir, essa obra discorrerá brevemente sobre as manifestações


das MASs que se encontram no polo da deposição de
imunocomplexos (vasculite) e no polo da regeneração inadequada
(pneumopatia, calcinose, hiperqueratose e vasculopatia).
d) Vasculite

A vasculite das MASs decorre de inflamação vascular secundária à


deposição de imunocomplexos na pequena circulação e cursa com
púrpura, ulceração cutânea e, raramente, vasculite visceral
(intestinal ou cardíaca, por exemplo). São quadros frequentemente
graves, com grande mortalidade associada.
A suspeita de vasculite é clínica e pode ser aventada especialmente
na observação das mãos dos pacientes, sítio principal de púrpura e
ulceração. O diagnóstico é facilitado pela presença das outras
manifestações descritas anteriormente de maneira concomitante.
O diferencial inclui as outras vasculites sistêmicas e vasculites
infecciosas (por exemplo, endocardite infecciosa).
e) Pneumopatia

O acometimento pulmonar nas MASs passa por 2 fases: uma fase


mais inflamatória, com alveolite mediada por ataque direto do
sistema imune linfofagocitário; e uma fase crônica de reparação
inadequada, com expansão colagênica e fibrose. Nas 2 situações, a
queixa será de dispneia e tosse seca. No exame físico, os pacientes
podem apresentar dessaturação e estertoração fina à ausculta
pulmonar. Nos casos de fibrose, a hipoxemia e a própria alteração
arquitetural do pulmão podem levar à hipertensão pulmonar. Nesta
hipótese, o paciente poderá ter achados de cor pulmonale. Outro
achado relacionado a fibrose pulmonar é a ocorrência, eventual, de
pneumomediastino e pneumotórax.
O diagnóstico de acometimento pulmonar nas MASs é feito pela
suspeita clínica, corroborada pela tomografia de tórax e pela prova
de função pulmonar. Na tomografia, provavelmente haverá
infiltrado em vidro fosco e eventualmente alterações já fibrogênicas,
como traves, cistos, faveolamento e bronquiectasias de tração. Na
prova de função, é esperada redução da capacidade vital forçada e da
difusão de monóxido de carbono. O diferencial do acometimento
pulmonar nas MASs passa por causas infecciosas (infecções por
vírus, fungos e micobactérias), medicamentosas (pneumonite
medicamentosa, como por metotrexato, por exemplo) e outras
formas de acometimento imune, como a pneumonite por
hipersensibilidade e a sarcoidose. Nos casos extremamente
duvidosos, a biópsia pulmonar pode fornecer dados adicionais. O
diagnóstico de pneumonite em contexto de MAS sugere mais SAS.
O acometimento pulmonar é extremamente
frequente na síndrome antissintetase, sendo
importante a pesquisa de autoanticorpos neste
cenário

f) Calcinose, hiperqueratose e vasculopatia

No extremo da regeneração inadequada está a deposição de cálcio


heterotópico. Pelo perfil das citocinas isoladas na calcinose
(Mukamel et al., 2001), entende-se que decorram de uma ativação
aberrante dos macrófagos no polo M2 (polo regenerativo). O quadro
clínico é bastante característico, com deposição de cálcio no
subcutâneo, fáscia ou músculo, sendo prontamente identificado ao
exame físico e eventualmente confirmado por radiografia simples.
Esta manifestação clínica é muito frequente na DM juvenil..
A calcinose é uma entidade desafiadora para o reumatologista, pois
não parece se relacionar com a atividade inflamatória e não costuma
responder à imunossupressão convencional. Ademais, deve-se ficar
atento à possibilidade de infecção secundária, especialmente quando
ocorre ulceração da calcinose.
A hiperqueratose também representa um polo mais regenerativo e
hiperproliferativo (Mii et al., 2009), embora ocorra com frequência
nos momentos de exacerbação inflamatória da doença em outros
sítios (por exemplo, a hiperqueratose piora quando o paciente está
pior do pulmão). O sítio mais comum de hiperqueratose é nas mãos e
pés. Quando ocorre na face lateral dos dedos, ganha o nome de
“mãos de mecânico” – análoga à hiperqueratose traumática
adaptativa que ocorre em trabalhadores manuais de ferramentas de
torção, como mecânicos e encanadores –, e acompanha muito
frequentemente a SAS. A hiperqueratose pode ser intensa e inclusive
causar fissuras nas mãos (Figura 3.13). Um diagnóstico diferencial
importante de queratose palmoplantar associada à SAS é a dermite
de contato; nesta entidade, geralmente o espessamento é mais
difuso e acompanhado de liquenificação da pele.
Por fim, vale apontar que a incompetência vasomotora também pode
acometer pacientes com MASs, culminando com alterações
perfusionais vasculares como o fenômeno de Raynaud. Geralmente
esses pacientes apresentarão alterações na capilaroscopia
periungueal (ver adiante em esclerose sistêmica), que decorrem
tanto de vasculite quanto de vasculopatia colagênica.
Figura 3.13 - Foto de mão de paciente com síndrome antissintetase
Nota: na face lateral do segundo dedo e medial do primeiro dedo há hiperqueratose
(espessamento cutâneo) com fissuras.
Fonte: arquivo pessoal do dr. Jean Souza.

3.4.1.4 Diagnóstico

O diagnóstico de MAS é fundamentalmente clínico, com a exceção


das formas exclusivamente musculares (ver miosite no item 3.4.1.3).
Alguns exames relevantes que podem ser úteis incluem:
a) Dosagem sérica de enzimas musculares;
b) Eletroneuromiografia;
c) Ressonância magnética muscular;
d) Biópsia muscular;
e) Tomografia de tórax;
f) Prova de função pulmonar.

Do ponto de vista sorológico, há poucos anticorpos relevantes para o


clínico generalista, embora, para o especialista, haja uma lista
enorme de autoanticorpos e eventuais associações clínicas,
especialmente para a DM.
Uma boa parte das MASs terão FAN positivo, com padrões variáveis.
Padrões relevantes são especialmente os padrões citoplasmáticos,
pois podem representar anticorpos antissintetase. Entre os
anticorpos antissintetase, o mais frequente é o anti-Jo-1.
De maneira reducionista, para efeito de prova, a
SAS é uma doença que cursa com miosite,
artrite, pneumopatia, febre, mãos “de
mecânico”, fenômeno de Raynaud e anticorpos
antissintetase (especialmente anti-Jo-1
positivos).

Além dos anticorpos antissintetases, o anti-Mi-2 (forma DM) e o


anti-SRP (forma necrosante) são classicamente considerados
anticorpos miosite-específicos (Satoh et al., 2017). Contudo, esse
conceito é provavelmente obsoleto, dado que dezenas de novos
autoanticorpos relacionados à miosite já foram descritos.
MAS é muito relacionada a neoplasia. Exceto
pelas formas juvenis, de maneira geral,
rastreamento neoplásico para a idade e
expansão para câncer de mama, linfoma e
ovários pode ser considerado proporcional.

3.4.1.5 Tratamento

O tratamento das MASs é baseado especialmente nos


imunossupressores sistêmicos. O glicocorticoide ainda é uma
ferramenta importante no tratamento inicial, sendo indicado em
pulsoterapia para os casos graves, seguido de dose de 0,5 a 1
mg/kg/d de prednisona (ou equivalente) com desmame até dose
mínima (5 mg/d ou menos) preferencialmente rápido (em até 6
meses). Nos casos de acometimento muscular grave ou vasculite
extensa, a imunoglobulina em pulsos também pode ser
recomendada (Souza et al., 2019).
Entre especialistas, entende-se que o imunossupressor de
manutenção deve ser iniciado precocemente, considerando que mais
de 50% dos pacientes não toleram redução de corticoterapia ou não
entram em remissão completa em monoterapia (Mathur et al., 2015).
Contudo, a evidência científica em MASs é sempre pouco robusta
pela raridade da doença. De todo modo, os imunossupressores mais
utilizados são o metotrexato (10 a 25 mg/sem) e a azatioprina (2 a 3
mg/kg/d). Quadros pulmonares tendem a responder bem ao
micofenolato de mofetila (2 a 3 g/d).
Os antimaláricos (hidroxicloroquina) e corticoides tópicos podem
ser usados no tratamento de lesões cutâneas da dermatomiosite,
sem ação sistêmica.
Quanto às medidas não farmacológicas, o exercício físico emerge
como importante ferramenta, indicado precocemente em todos os
grupos de pacientes (Oliveira et al., 2018). Finalmente, a exposição
solar deve ser evitada em pacientes com lesões cutâneas e
comorbidades como osteoporose induzida por corticoide e síndrome
metabólica devem ser tratadas adequadamente.
3.4.2 Síndrome de Sjögren
A Síndrome de Sjögren (SS) é uma doença autoimune sistêmica
crônica caracterizada especialmente, mas não exclusivamente, pelo
ataque linfocitário às glândulas exócrinas, e tem como principais
alvos as glândulas salivares e lacrimais. O processo inflamatório da
doença gera o funcionamento inadequado das glândulas
comprometidas, levando a redução na produção salivar e lacrimal.
A forma primária da doença tem maior probabilidade de
acometimento extraglandular e acomete indivíduos sem outras
doenças autoimunes. A forma secundária, por sua vez, associa-se a
outras DSTCs.
3.4.2.1 Etiologia

A etiologia da SS é entendida, assim como nas demais DSTCs, como


uma disfunção do sistema imune – especialmente na sua vertente
adaptativa – com predisposição genética polimórfica, iniciada por
gatilhos ambientais. Vírus Epstein-Barr, HTLV-1 e hepatite C já
foram associados à condição (Nakamura; Kawakami, 2016). Após a
perpetuação da ativação dos linfócitos T helperl, especialmente no
polo Th17 e Tfh, ocorre estimulação para invasão direta das
glândulas por linfócitos T e macrófagos e coestimulação de linfócitos
B para produção maciça de anticorpos, frequentemente
autorreativos. As manifestações clínicas da síndrome ocorrerão,
portanto, nos modelos da lesão tecidual direta e da vasculite por
imunocomplexos.
3.4.2.2 Epidemiologia
A incidência da doença é de cerca de 7 casos por 100 mil pessoas,
sendo maior na Europa e na Ásia. A prevalência da doença é de 43
casos em 100 mil habitantes. Contudo, existe grande variabilidade
nos estudos epidemiológicos, pois os critérios classificatórios da
doença passaram por diversas revisões.
Compromete geralmente indivíduos com mais de 40 anos e a relação
entre mulheres e homens é de, pelo menos, 9:1. Devido à sua
apresentação insidiosa, o diagnóstico pode ser retardado por vários
anos.
3.4.2.3 Manifestações clínicas

A seguir, serão apresentadas as manifestações mais singulares da SS,


aquelas que se encontram no polo da ativação linfofagocitária. Além
das manifestações com alvo definido, a SS pode ser acompanhada
por febre, fadiga (muito prevalente nesta DSTC), mialgias, perda
ponderal e mal-estar, assim como todas as DSTCs.
a) Adenite

Os principais achados na SS são os sintomas de secura oral


(xerostomia) e ocular (xeroftalmia). A infiltração linfocitária da
glândula lacrimal pode resultar na redução da produção de lágrimas
e na alteração na composição delas, o que acarreta dano ao epitélio
corneal e conjuntival, gerando ceratoconjuntivite seca. O quadro
ocular pode evoluir com complicações como úlcera de córnea e
infecções como a conjuntivite bacteriana, que requerem contínua
avaliação oftalmológica. O paciente queixa-se de secura nos olhos,
“sensação de areia” ou “corpo estranho”, queimação, visão borrada
e fotossensibilidade.
Os sintomas orais mais comuns na SS incluem sensação de
diminuição na produção de saliva, secura oral, necessidade de
ingerir líquidos para mastigar alimentos secos, alteração do paladar,
intolerância a alimentos apimentados e cáries frequentes.
Ao exame físico, os pacientes podem apresentar cáries, úlceras orais,
mucosa eritematosa, atrofia de papilas gustativas e candidíase oral
de repetição (Figura 3.14). O comprometimento inflamatório agudo
das glândulas parótidas pode ser visualizado pelo aumento dessas
glândulas (Figura 3.15), geralmente bilateral e em surtos de
inflamação.
Pele seca, pela deficiência na produção do componente aquoso do
suor, pode ocorrer em metade dos pacientes, com prurido cutâneo
devido ao ressecamento, capaz de levar a liquenização e
pigmentação da pele.
O comprometimento da mucosa nasal pode provocar secura e dor,
prurido e sangramentos de repetição, além de diminuição do olfato.
Secura nos seios da face predispõe a sinusites agudas e crônicas. A
secura e o infiltrado inflamatório traqueobrônquicos podem
provocar tosse crônica e não produtiva.
Figura 3.14 - Mucosa oral com ressecamento
Figura 3.15 - Hipertrofia da parótida esquerda
Por fim, as glândulas do epitélio genital também podem estar
acometidas. Nas mulheres os sintomas são mais evidentes, com
dispareunia e eventualmente sintomas urinários, mimetizando
infecções.
O diagnóstico de adenite por SS é a peça fundamental para a sua
caracterização. No momento, a demonstração de adenite objetiva é
condição sine qua non para a classificação acadêmica de SS por
critérios classificatórios. Não obstante os sintomas do paciente,
descritos anteriormente, é necessário um teste funcional que
comprove déficit glandular, ou mesmo um teste de imagem ou
anatomopatológico que evidencie adenite inflamatória.
O teste usado para a comprovação de disfunção glandular salivar é a
sialometria, que nada mais é do que a quantificação da quantidade de
saliva produzida por tempo. O paciente expectora e cospe qualquer
conteúdo eventual bucal e o teste se inicia. É fornecido um recipiente
milimetrado para que o paciente despreze toda a saliva que se
acumular em sua cavidade oral dentro de 5 minutos. Ao final do
tempo, o volume é medido. É considerado normal um volume maior
ou igual a 0,1 mL/min.
Os testes usados para comprovação de adenite são:
1. Ultrassonografia ou ressonância de parótida: os métodos de
imagem ainda não fazem parte dos critérios classificatórios de SS, mas
tem ganhado muito espaço como ferramentas não invasivas de
diagnóstico. Os achados (que refletem, de maneira bastante básica,
heterogeneidade glandular) não são patognomônicos de SS, mas
ajudam a corroborar o diagnóstico;
2. Biópsia de glândula salivar menor: talvez a ferramenta mais
importante e acurada no diagnóstico, pode ser facilmente realizada,
inclusive, em ambiente ambulatorial. No anatomopatológico, faz-se
necessária a presença de, ao menos, 4 lóbulos de tecido exócrino. O
achado típico é a sialadenite linfocítica focal, que nada mais é do que
agregados de linfócitos, geralmente periductais. A quantidade é
importante, de tal forma que, para o critério classificatório, são
necessários 1 ou mais focos de linfócitos para cada 4 mm2. Cada foco,
por sua vez, é definido como, ao menos, 50 linfócitos agrupados
(Shiboski et al., 2017).

Os testes usados para comprovação de disfunção de glândula


lacrimal são:
1. Teste de Schirmer (Figura 3.16): consiste na aferição direta do
fluxo lacrimal em 5 minutos através de um papel filtro milimetrado. Os
valores são considerados indicativos de disfunção relevante quando
menores do que 1 mm/min;
2. Testes de superfície ocular (ocular staining score): consistem na
instilação de tinturas oculares que coram áreas de desepitelização. As
colorações mais usadas atualmente são a fluoresceína e a verde
lisamina – a coloração de rosa-bengala tem sido abandonada pelo
potencial irritativo e doloroso. É necessária uma lâmpada de fenda
para a análise, sendo necessário o encaminhamento ao oftalmologista.
De acordo com a padronização internacional (Whitcher et al., 2010),
um escore maior ou igual a 5 é sugestivo de ceratoconjuntivite sicca.
Ao instilar a fluoresceína, o oftalmologista também é capaz de medir o
tempo de quebra do filme lacrimal; este exame não faz parte dos
critérios classificatórios, mas quando menor ou igual a 10 segundos,
também sugere deficiência lacrimal.
Figura 3.16 - Teste de Schirmer

Infelizmente, comprovar a disfunção glandular não é o suficiente


para o diagnóstico. É necessário estabelecer o diagnóstico diferencial
com desordens não autoimunes ou síndromes de sobreposição,
doenças infecciosas ou processos neoplásicos. É fundamental a
exclusão de efeitos colaterais de tricíclicos, antidepressivos e anti-
histamínicos, bem como neurolépticos, anticolinérgicos e diuréticos.
Entre os principais diagnósticos diferenciais para SS, incluem-se
sarcoidose, amiloidose, linfoma, doença relacionada a IgG4, doença
do enxerto contra hospedeiro, infecção por vírus da hepatite C, HIV e
diabetes.
b) Artrite

A sinovite na SS é um sintoma bastante frequente, sendo o principal


extraglandular. A artrite desta condição segue a mesma
característica das demais DSTCs, com poliartralgia de ritmo
inflamatório, simétrica, predominantemente de mãos, punhos e
joelhos, não deformante. O exame físico é geralmente frustro e o
quadro não causa erosão.
O diagnóstico é predominantemente clínico e os diferenciais
incluem, na fase inicial, as artrites virais (especialmente por
arbovírus, parvovírus ou vírus das hepatites com forma aguda), a
endocardite infecciosa e proliferações neoplásicas hematológicas
(linfomas e leucemias). Nas apresentações mais crônicas os
diferenciais incluem infecções virais crônicas (hepatite C e HIV) e
fibromialgia.
c) Nefrite

No polo da ativação linfofagocitária, há invasão do interstício renal


por linfócitos com destruição tubular. O resultado será doença
predominantemente de túbulos, com alterações de sedimento
urinário, geralmente brandas, com algum grau de leucocitúria,
cilindros leucocitários e pouca hematúria, sem cilindros hemáticos
ou proteinúrias importantes. Raramente há perda grave de função ou
hipertensão. Pelo acometimento tubular, também são marcantes os
distúrbios eletrolíticos, lembrando uma síndrome de Fanconi (com
perda urinária de glicose, aminoácidos e redução sérica de íons com
acidose metabólica) ou uma acidose tubular renal distal. Por vezes,
não há infiltração intersticial evidente, mas o paciente se apresenta
com acidose metabólica isoladamente, acompanhada ou não de
hipocalemia. Acredita-se que esse fenômeno derive de uma
autoimunidade diretamente contra a bomba de próton (Cohen et al.,
1992).
Pode ser interessante, de tempos em tempos,
solicitar, aos pacientes com SS, gasometria
venosa e dosagem sérica de potássio.

No polo da deposição de imunocomplexos, em situação de alta


produção de anticorpos, a SS pode cursar com glomerulonefrite, tal
qual a do LES (ver nefrite do LES no item 3.3.1.3).
O diagnóstico de acometimento renal pela SS se baseia no achado de
acidose metabólica, distúrbios iônicos (geralmente redução dos íons
plasmáticos, especialmente potássio) e alteração de sedimento e
função renal. É comum que o diagnóstico não seja suspeitado até que
complicações ocorram (como sintomas musculares pela hipocalemia
ou disfunção renal).
O diagnóstico diferencial envolve outras formas de tubulopatia com
ou sem glomerulonefrite, como nefrite intersticial medicamentosa,
doenças clonais, hiperuricemia, infecções virais crônicas e vasculites
sistêmicas. Na ausência de outros indícios de SS, suspeitar de
nefropatia secundária a esta conectivopatia é improvável.
d) Pneumonite

Além dos pulmões em si, a via aérea como um todo pode ser
acometida, como dito anteriormente. Nas vias aéreas
intrapulmonares, pode ocorrer infiltração dos brônquios e
bronquíolos, levando a um quadro de obstrução de grandes e
pequenas vias. O quadro clínico é de tosse, sibilância e dispneia. O
parênquima pulmonar também pode ser invadido por células
inflamatórias, culminando em doença intersticial pulmonar.
Diversos padrões são descritos, mas a pneumonite intersticial
linfocítica – que se apresenta como uma doença cística pulmonar –
é altamente associada a SS (Parambil et al., 2006). A queixa é
heterogênea; muitos pacientes são assintomáticos e outros evoluem
com graus variáveis de tosse e dispneia.
O diagnóstico de pneumopatia associada à SS é baseado na clínica, na
prova de função pulmonar, na tomografia de tórax e,
ocasionalmente, na biópsia pulmonar quando restarem dúvidas.
O diagnóstico diferencial passa por causas infecciosas (infecções por
vírus, fungos e micobactérias), medicamentosas e outras formas de
acometimento imune, como a pneumonite por hipersensibilidade,
eosinofílica e a sarcoidose.
e) Neuronite
O acometimento neural na SS passa pelas formas diretamente
inflamatórias aos tecidos neurais (no conjunto as mais frequentes) e
as formas isquêmicas induzidas por vasculite (ver no item seguinte).
Nas formas diretas, que representam melhor o principal polo da SS,
encontram-se a neuropatia de fibras finas, que cursa com alodinia,
prurido e dor bem delimitados, geralmente com alteração de
sensibilidade apenas superficial do território acometido ao exame
físico; as polineuropatias axonais, que se apresentam como quadros
sensitivos (superficiais e profundos) ou sensitivo-motores
segmentares, distais (“em bota”), e, por vezes, simétricos (Mori et
al., 2005); a ganglionite sensorial – uma forma de acometimento
dos gânglios dorsais da medula e seus funículos posteriores –, que
cursa com dor neuropática, alteração da sensibilidade profunda,
ataxia sensorial, incoordenação e raramente disautonomia; as
meningites; e as raríssimas formas de polirradiculoneurites e
neuropatias desmielinizantes.
Alguns sintomas neuropsiquiátricos, extremamente comuns em SS,
como declínio cognitivo, sintomas depressivos e queixas de memória
não encontram substrato diretamente inflamatório, mas
provavelmente se relacionam com alterações microangiopáticas,
psicológicas e neurodegenerativas (Segal et al., 2012).
Dos quadros neurológicos, mais da metade são
neuropatia de fibras finas ou polineuropatia
axonal, de tal forma que os sintomas mais
relatados serão dor, parestesia e alterações
sensitivas.

O diagnóstico de acometimento neurológico na SS envolve,


especialmente, uma história e um exame físico que defina
topografia. Uma vez definida a topografia suspeita, exames
(ressonância magnética, eletroneuromiografia, coleta de liquor e
biópsia de nervo ou pele – para contagem de fibras) são voltados a
confirmar a hipótese.
Um estudo eletrofisiológico normal não exclui
neuropatia de fibras finas. Na suspeita desta
entidade, deve-se biopsiar a pele para
contagem de fibras.

O diagnóstico diferencial foca majoritariamente nas causas de


neuropatias e se encontra resumido a seguir. Inclui quadros
metabólicos, iônicos, infecciosos, neoplásicos e tóxicos.
São causas de neuropatias:
1. Disfunções orgânicas: renal, hepática;
2. Disfunções endócrinas: diabetes, acromegalia, tireoidopatias;
3. Infecções: HIV, doença de Lyme, herpes-zóster, hanseníase;
4. Síndromes carenciais: vitaminas (especialmente B12);
5. Doenças clonais: amiloidose, mieloma, Waldenström;
6. Drogas: isoniazida, talidomida, quimioterápicos;
7. Disfunções iônicas: sódio, cálcio, magnésio.

A seguir, esta obra passará às síndromes clínicas relacionadas mais à


deposição de imunocomplexos. Como imaginado, as manifestações
serão primordialmente relacionadas à vasculite de pequenos vasos.
f) Vasculite

Os quadros vasculíticos na SS acometem especialmente a pele e o


sistema nervoso. Do ponto de vista cutâneo, o sintoma clássico é a
púrpura palpável. O diagnóstico é prontamente clínico pela
visualização e palpação das lesões.
No polo vasculítico neurológico se encontram as formas menos
comuns e mais graves destas síndromes: a mononeurite múltipla,
que cursa com quadros sensitivo-motores em nervos distantes entre
si; e as formas de vasculite de sistema nervoso central, que, como no
LES, consistem em síndromes de acidente vascular encefálico ou
medular em múltiplos territórios.
Na SS em seus polos vasculíticos há grande
produção de anticorpos. Alguns destes
anticorpos podem ser crioglobulinas. Por isso,
SS é causa de crioglobulinemia secundária.

Como dito anteriormente, pode haver deposição de imunocomplexos


renais também, na forma de glomerulonefrite que deve ser encarada
à semelhança da nefrite por LES. (ver nefrite do LES no item 3.3.1.3).
O diagnóstico dos quadros vasculíticos se baseia nos achados
cutâneos – altamente sugestivos por si só – e, na vigência de quadro
neurológico, pode requerer imagens de sistema nervoso central e
eletroneuromiografia.
Pela proliferação linfocítica que acompanha a SS, o desenvolvimento
de neoplasia hematológica pode ocorrer e o clínico deve ficar atento
aos sinais de alarme, como alargamento crônico de parótidas (e,
não, intermitente), hepato e esplenomegalia, linfonodomegalias,
alterações hematológicas importantes (como linfopenia, linfocitose
e, especialmente, neutropenia abruptas) e elementos vasculíticos,
como consumo de complemento, púrpura cutânea e evidência de
crioglobulinemia – que pode representar uma deposição de
imunocomplexos advinda de clone maligno.
3.4.2.4 Diagnóstico

O diagnóstico de SS se baseia na ocorrência de síndrome sicca


comprovada por métodos funcionais ou anatomopatológicos,
preferencialmente com documentação de autoimunidade. Na
ausência de acometimento glandular, os marcadores sorológicos
tornam-se imperativos.
Os anticorpos relevantes à SS são o FAN, geralmente de padrão
nuclear pontilhado fino, representando um anti-Ro/SSA ou um anti-
La/SSB. Como a síndrome pode cursar com grande produção de
anticorpos, não é infrequente que o fator reumatoide seja também
positivo.
O anti-Ro/SSA é o anticorpo mais importante para a SS, uma vez que
os demais anticorpos são mais promíscuos e aparecem em outras
entidades clínicas. Ainda assim, a presença de anti-Ro não é
específica para SS, uma vez que pode aparecer no LES, na esclerose
sistêmica e em algumas formas de MASs.
A positividade do anti-Ro é importante para o
diagnóstico. Mas não é essencial e, por outro
lado, a sua presença não indica, isoladamente,
SS.

Os critérios de SS mudaram diversas vezes nos últimos anos e esta


obra desaconselha o uso de critérios classificatórios com finalidade
diagnóstica na prática clínica. Contudo, do ponto de vista de
pesquisa, os critérios são essenciais. O Quadro 3.4 os resume.
Quadro 3.4 - Critérios classificatórios do American College of Rheumatology/European
League Against
Nota: a classificação de SS se dá quando o indivíduo pontua 4 ou mais, obrigatoriamente
excluídas as seguintes condições: história de irradiação de cabeça e pescoço; infecção
ativa por vírus da hepatite C; HIV; sarcoidose; amiloidose; doença do enxerto versus
hospedeiro; doença relacionada à IgG4.
Fonte: adaptado de ACR/EULAR classification criteria for primary Sjögren’s Syndrome. A
consensus and data-driven methodology involving three international patient cohorts.

Com a melhoria dos métodos de análise isso se


tornou muito infrequente, mas é possível que
um paciente com anti-Ro positivo tenha um
FAN negativo. Assim, na suspeita de SS, é
possível solicitar anti-Ro diretamente.
3.4.2.5 Tratamento

Deve-se deixar o paciente a par da doença e do tratamento de


possíveis complicações, além de evitar o uso de medicamentos que
possam exacerbar os sintomas de secura (agentes tricíclicos,
diuréticos), bebidas cafeinadas, álcool e abandonar o tabagismo.
Boa parte do tratamento da SS será sintomático e se voltará ao
manejo da síndrome sicca. Para os olhos, o paciente pode lançar mão
de colírios lubrificantes e óculos de proteção. Algumas fontes
recomendam óleo de linhaça para melhorar a qualidade do filme
lacrimal (Pinheiro et al., 2007). Na refratariedade, uma opção é a
ciclosporina ocular. Por fim, quadros muito graves podem ser
tratados cirurgicamente, com oclusão de ponto lacrimal (Del Pappa;
Vitali, 2018).
Do ponto de vista bucal, pode-se lançar mão de saliva artificial, flúor
tópico para prevenção de cáries, goma de mascar e secretagogos
(como a pilocarpina). A acetilcisteína também pode ser tentada para
os sintomas de vias aéreas altas, como tosse.
No que se refere à terapia sistêmica, não há evidência de
imunossupressão para controle da síndrome sicca. Para os quadros
de fadiga e dor crônica, incluindo a dor neuropática, deve-se
orientar medidas comportamentais, como exercícios físicos, terapia
contemplativas e terapias físicas. Medicações para dor crônica, como
a pregabalina, a gabapentina e a duloxetina podem ser úteis, com
ressalvas sobre o eventual efeito da síndrome sicca.
Para os quadros articulares, a hidroxicloroquina geralmente
apresenta excelente resposta e pode ser associada aos analgésicos e
eventuais anti-inflamatórios usados com parcimônia no resgate.
Finalmente, os quadros graves (vasculite ou neuropatias com
potencial de sequela importante) são geralmente manejados com
corticoterapia em dose alta e imunossupressão sistêmica (com
azatioprina, por exemplo).
3.4.3 Polimialgia reumática
A polimialgia reumática (PMR) é uma doença inflamatória
autoimune do aparelho locomotor que ocorre em idosos. Nem todos
os autores entendem a PMR como parte das DSTCs, de tal forma que
alguns estudiosos a entendem como um espectro de vasculite
sistêmica ou uma entidade separada das demais autoimunidades. A
presença de artrite não erosiva, o forte componente Th17 – sem
tanto componente Th1 –, a ausência de fenômenos vasculíticos na
maior parte dos pacientes e a observação pessoal de fenômenos
relacionados às DSTCs – como fenômeno de Raynaud e leves graus
de esclerodactilia – ocorrendo em concomitância com a PMR são
alguns dos argumentos que sustentam esta obra a classificar a PMR
como uma DSTC, assim como West e seus colaboradores (West,
2015).
3.4.3.1 Etiologia

A fisiopatologia da PMR é muito pouco conhecida. São descritos


fatores genéticos relacionados ao HLA (Weyand et al., 1994) e
possíveis gatilhos infecciosos sazonais, sem grande elucidação do
verdadeiro mecanismo imune envolvido.
Na mecânica da autoimunidade, observa-se ativação dos linfócitos T
auxiliares para um polo Th17, com grande participação da IL-6 e da
IL-1, sugerindo ativação fagocítica. Os pacientes com PMR
virtualmente não terão erosões articulares e não há formação
granulomatosa – exceto com evolução para arterite de células
gigantes –, falando, ao menos até o momento, contra mecanismos
Th1 preponderantes (Weyand et al., 1994 [2]).
Na prática, esta maquinaria causa ataque tecidual no polo da
ativação linfofagocitária, sem grandes componentes das outras vias
fisiopatológicas das DSTCs.
Aproximadamente em 10% dos pacientes diagnosticados com PMR o
quadro clínico pode preceder um quadro de arterite de células
gigantes. Há dúvida entre os pesquisadores se representam
espectros de uma mesma doença ou se é apenas uma coincidência
que pacientes com arterite de células gigantes apresentem um
quadro clínico do aparelho locomotor que lembra uma PMR.
Independentemente de polêmicas
fisiopatológicas, polimialgia reumática e
arterite de células gigantes são altamente
relacionadas.

3.4.3.2 Epidemiologia

A PMR é uma doença comum – se consideradas as doenças


autoimunes reumáticas – com prevalência entre a artrite
reumatoide e o LES, acometendo até 0,7% da população (Crowson et
al., 2017). A idade de início é sempre após os 50 anos, geralmente
acometendo pacientes na oitava década de vida. Mulheres podem ser
mais acometidas, em uma proporção de até 3 para cada homem. Não
há estudos étnicos, mas a maior parte dos levantamentos foram
feitos em países de população francamente caucasiana.
3.4.3.3 Manifestações clínicas

As manifestações clínicas relevantes para a prática médica se


encontram no polo da ativação linfofagocitária com ataque tecidual
direto. Como todas as DSTCs, a PMR pode cursar – e frequentemente
o faz – com febre, fadiga, astenia, perda ponderal, perda de
performance física e cognitiva, hiporexia e mal-estar.
a) Sinovite

A sinovite é um dos sintomas mais importantes e ocorre nas


articulações dos ombros e quadris, especialmente. É geralmente
simétrica, e de início razoavelmente agudo. Alguns pacientes se
recordam do dia em que começaram a sentir os sintomas. Existe uma
importante rigidez articular associada à PMR – às vezes
francamente predominante ao fenômeno álgico –, que pode durar
muitas horas (algo como 5 a 6 horas), e que não pode ser explicada
apenas pelo componente sinovial, que geralmente é brando. A
rigidez decorre mais especialmente do componente periarticular da
condição (ver adiante).
Uma porção dos pacientes terá também artrite periférica,
geralmente em dedos das mãos e punhos, lembrando a artrite das
DSTCs em geral. Quase sempre não será uma artrite muito flogística.
O exame físico mostrará sinais frustros de inflamação e,
comumente, restrição à movimentação ativa e mesmo passiva.
Grande foco deve ser dado às articulações dos ombros e quadris.
O diagnóstico da artrite é clínico. O diferencial inclui quadros
infecciosos, especialmente aqueles que cursam com poliartrite.
Neste sentido, provavelmente devem ser considerados, dentro do
contexto adequado, poliartrites virais (por parvovírus e arbovírus,
por exemplo) ou endocardite infecciosa. Um outro diferencial por
vezes desafiador é a artrite reumatoide. Geralmente as imagens –
que mostram erosão articular – e a sorologia (fator reumatoide e
antipeptídio C citrulinado) ajudam a diferenciar as entidades.
b) Bursite e tenossinovite

Uma marca registrada da PMR é o acometimento do aparelho


periarticular. As articulações do quadril e dos ombros são formadas
por diversas bursas e algumas bainhas sinoviais, de tal forma que a
inflamação destes componentes gera não só dor, mas,
especialmente, rigidez articular. Mesmo no exame físico, é possível
que o clínico encontre dificuldade em realizar as manobras passivas,
por dor ou propriamente restrição à movimentação.
Apesar da eventual rigidez, contudo, não é esperada fraqueza
quando as manobras são feitas considerando a restrição mecânica ao
movimento.
O acesso às bursas inclui palpá-las ou criar manobras compressivas
para testar sintomas álgicos. No ombro, a maioria das bursas são
palpáveis, assim como no trocânter maior e na região isquiática. A
bursa do iliopsoas deve ser estressada por manobras que estendem a
coxa passivamente ou com a flexão resistida das coxas.
A polimialgia reumática não é uma desordem
muscular, a despeito do nome. A força muscular
deve ser preservada nestes pacientes.

O diagnóstico de bursite e tenossinovite é clínico. A ultrassonografia


e a ressonância são usadas quando o exame físico deixa dúvidas
apenas para documentar os achados. Os diferenciais principais
incluem desordens mecânicas do manguito, a síndrome do trocânter
maior (bursite trocantérica com tendinopatia dos glúteos médios), a
capsulite adesiva (uma desordem transitória da articulação
glenoumeral que cursa com perda da amplitude de movimento),
quadros musculares (como síndrome miofascial e mialgia),
desordens hormonais (como o hipotireoidismo) ou álgicas (como a
fibromialgia).
3.4.3.4 Diagnóstico

O diagnóstico de PMR é feito majoritariamente com os achados


clínicos – eventualmente corroborados pelas imagens na dúvida
frente ao exame físico – associados à elevação de proteína C reativa
(PCR) e da velocidade de hemossedimentação (VHS). A elevação pode
ser muito marcante, com valores sugerindo inclusive sepse quando
não interpretados no contexto adequado. Outros sinais vagos
incluem aumento de fosfatase alcalina, leucocitose, queda de
albumina, anemia de doença crônica e outros sinais inespecíficos de
inflamação.
Não há sorologia para a PMR e o FAN e o fator reumatoide são
geralmente negativos.
Muitos clínicos, na suspeita de PMR, optam por uma prova
terapêutica (ver adiante). A resposta geralmente é gritante,
corroborando fortemente o diagnóstico.
3.4.3.5 Tratamento

O tratamento da PMR geralmente é muito bem-sucedido com


corticoide oral em dose baixa. Um esquema clássico é prednisona 15
mg/d. Em pouco tempo, o paciente costuma apresentar melhora
marcante dos sintomas e normalização dos exames laboratoriais.
Contudo, o desmame de corticoide na PMR é muito difícil, com
recidiva quase universal. Assim, após estabilização, o desmame deve
ser feito de maneira muito lenta, geralmente ao longo de, pelo
menos, 6 meses a 1 ano. O momento mais difícil geralmente é após
os 7,5 mg.
Terapias imunossupressoras são usadas por especialistas como
poupadoras de corticoide, mas apresentam evidência limitada e
fogem do escopo deste livro. Recomenda-se que pacientes com
dificuldade de desmame sejam encaminhados ao reumatologista.
A não resposta plena a doses baixas de
corticoide sugere que a doença possa ser, na
verdade, uma arterite de células gigantes.

3.4.4 Artrite reumatoide (como conectivopatia)


A Artrite Reumatoide (AR) é uma entidade muito singular na
Reumatologia. A maioria dos autores a considera uma DSTC,
justificando que se trata de uma doença com grande produção de
autoanticorpos, que frequentemente serve como doença primária
para uma conectivopatia secundária (como SS e SAF) e que cursa
com acometimento multissistêmico, ao mesmo tempo com facetas
de patologia relacionada ao colágeno (como presença de
pneumopatia fibrosante) e de vasculite. Ademais, quando analisadas
as vias fisiopatológicas por trás das manifestações clínicas, a AR
apresenta as mesmas disfunções imunes e, inclusive, muitos fatores
genéticos e ambientais semelhantes às DSTCs. Por estes prismas,
não haveria como negar que a AR pertence à grande família das
colagenoses.
Contudo, a maior parte dos pacientes com AR não se apresentarão
fenotipicamente como em uma DSTC; ao menos não mais. Talvez
pela inovação na terapia, culminando com uma modificação na
resposta imune inicial, freando a história natural da doença,
raramente os pacientes terão doença multissistêmica. Clinicamente,
a AR deve ser encarada muito mais como uma artropatia autoimune,
pois a maioria dos pacientes terão exclusivamente as manifestações
articulares.
Ainda mais enigmático é o fato de que a marcha de progressão
articular na AR não acompanha a marcha vista nas DSTCs. Um novo
braço de disfunção imune emerge na AR, o eixo Th1, com grande
importância fisiopatológica. Este modelo de defeito na resposta
linfocitária auxiliar se caracteriza pela produção de citocinas como o
TNF-alfa e o IFN-gama e culmina, em última análise, em uma
potente ativação fagocitária com inflamação sinovial exuberante e
destruição irreversível da arquitetura tecidual osteocartilaginosa.
Pela característica deste capítulo, a AR será aqui analisada pelo seu
prisma de DSTC. Contudo, para a prática clínica, a AR vista pela sua
apresentação fenotípica mais comum – como artropatia autoimune
– é mais relevante.
3.4.4.1 Etiologia

A AR ocorre como resultado da perda do mecanismo de tolerância


imune. Esse mecanismo é dependente de fatores ambientais e
genéticos. Acomete 4 vezes mais os parentes de primeiro grau de
outros pacientes com AR do que a população geral.
Aproximadamente 10% dos pacientes com AR terão 1 parente de
primeiro grau acometido. Entretanto, há concordância de apenas 12
a 15% em gêmeos monozigóticos, demonstrando claramente a
participação de outros fatores. A maioria dos pacientes não tem
história familiar significativa. Os fatores genéticos envolvidos mais
importantes estão relacionados aos alelos do complexo principal de
histocompatibilidade (MHC ou HLA) classe II, principalmente alelos
do HLA-DRB1 e HLA-DR4, fortemente associados ao
desenvolvimento de AR.
É possível que a AR esteja relacionada à resposta imune a agente
infeccioso em indivíduo geneticamente suscetível. Vários possíveis
agentes são sugeridos, inclusive micoplasma, vírus Epstein-Barr,
citomegalovírus, parvovírus e vírus da rubéola. Existe o papel
definido de citrulinização de proteínas e consequente formação de
anticorpos anticitrulina ou antipeptídio C citrulinado, que
contribuem para o desenvolvimento de AR e para o surgimento de
doença mais agressiva. A citrulinização ocorre na mucosa oral na
presença de Porphyromonas gingivalis, encontradas em periodontites.
Possivelmente, a mucosa do intestino também está envolvida, na
presença de espécies de Prevotella. Dentre os gatilhos ambientais, o
tabagismo é capaz de provocar citrulinização de proteínas
pulmonares.
Boa parte das respostas sistêmicas na AR decorrem da ativação
aberrante das vias Th17/Tfh. A IL-6 e a IL-21 têm papel central nesta
via, contribuindo para a ativação, por um lado, dos macrófagos e
neutrófilos que farão a lesão tecidual direta, e, por outro, dos
linfócitos B que produzirão anticorpos – muitos deles, autorreativos.
3.4.4.2 Epidemiologia

A AR é uma doença mundial que afeta todas as etnias, com


prevalência de cerca de 0,5 a 1% da população, com predomínio de
acometimento em mulheres (2,5 a 3 vezes maior do que em
homens), e aumenta com a idade. A diferença entre sexos diminui na
faixa etária mais elevada. Em mulheres, o início acontece durante a
quarta e a sexta década de vida, com 80% de todos os pacientes
acometidos com idade entre 35 e 50 anos. Em homens, ocorre mais
tardiamente, durante a sexta e a oitava década de vida. A AR causa
aumento da mortalidade e é responsável por grande morbidade. Pelo
fato de acometer indivíduos em idade produtiva e potencialmente
causar danos articulares irreversíveis, essa patologia gera altos
custos para esses pacientes e a sociedade.
3.4.4.3 Manifestações clínicas

Serão abordadas as síndromes relacionadas ao mecanismo de


ativação linfofagocitária.
a) Serosite

O acometimento de serosas é frequente na AR, especialmente nas


pleuras. Contudo, a maior parte dos pacientes é assintomática
(Balbir-Gurman et al., 2006). As apresentações possíveis incluem
dispneia, tosse e dor torácica. O derrame pleural é tipicamente um
exsudato com predomínio linfocítico, glicose baixa e DHL alto.
Assim, a diferenciação com pleurites infecciosas crônicas (e.g.:
tuberculose) ou neoplásicas deve sempre ser considerada.
A pericardite pode acometer mais de 50% dos pacientes, geralmente
sem sintomas relatados. No derrame pericárdico, o líquido apresenta
baixa concentração de glicose e baixo pH, sendo habitualmente
associado a derrame pleural. Muito raramente, ocorrem
tamponamento cardíaco e pericardite constritiva. O subitem i)
Serosite do item 3.3.1.3 apresenta exames laboratoriais que podem
ser relevantes no diferencial das serosites em geral.
Os derrames cavitários na artrite reumatoide
precisam ser diferenciados, especialmente, das
infecções por micobactéria.

b) Ceratite e esclerite
Embora a AR possa cursar com inflamação direta da esclera e da
córnea, o acometimento ocular mais comum é a ceratoconjuntivite
seca por SS secundária. Nos casos de ceratite e esclerite/episclerite, o
quadro clínico geralmente é de olho vermelho doloroso, com
evolução subaguda (Figura 3.17). O exame físico pode mostrar
alterações na superfície da córnea ou áreas circunscritas de eritema
com aumento da vascularização local. Casos mais graves de esclerite
podem apresentar nodulações na esclera e afilamento desta, com
visualização, ao exame físico, do humor vítreo.
Figura 3.17 - Olho com esclerite nodular

Nota: há grande hipervascularização focal na esclera, com formação nodular abaixo.


Fonte: Kribz, 2011.

O diagnóstico de acometimento ocular pela AR é clínico, feito pelo


oftalmologista com equipamento propedêutico adequado. O controle
pode ser feito com medicamentos tópicos (incluindo corticoides e
imunossupressores). Na vigência de quadros graves (esclerite
nodular, necrosante ou ceratite), é comum a necessidade de
imunossupressão sistêmica.
A seguir, serão abordadas as manifestações mais relacionadas à
hiperprodução de anticorpos e à subsequente deposição de
imunocomplexos.
c) Vasculite reumatoide

A grande produção de anticorpos pode levar à formação de


imunocomplexos que se depositam na circulação terminal. Com a
deposição, ocorre destruição do vaso, extravasamento de elementos
sanguíneos e sofrimento à jusante. A vasculite reumatoide pode
afetar qualquer órgão, sendo comumente vista em pacientes com AR
grave e títulos elevados de fator reumatoide. As formas mais
agressivas se manifestam como polineuropatia, mononeurite
múltipla, úlceras cutâneas, necrose dérmica, gangrena digital
(Figura 3.18) e infarto visceral (isquemias miocárdica, pulmonar,
intestinal, hepática, esplênica, pancreática e testicular, que são
raras). As formas mais frequentes de apresentação são pequenas
manchas acastanhadas ungueais e periungueais e nas polpas digitais
das mãos (Figura 3.19), além de grandes úlceras isquêmicas,
principalmente nos membros inferiores (Figura 3.20).
O diagnóstico de vasculite é suspeitado pelo quadro clínico, mas é
frequente a necessidade de biópsia para confirmação. A obtenção do
material é frequentemente fácil visto que a maioria dos pacientes
apresentam manifestações cutâneas.
Diagnósticos diferenciais incluem aqueles que cursam com úlceras
de membros inferiores, como insuficiência arterial ou venosa,
síndromes infecciosas ulcerativas (como infecções por fungos,
leishmaniose e micobactérias) e outras formas de autoimunidade,
como a poliarterite nodosa e a SAF.
A poliarterite nodosa pode ser praticamente
idêntica à AR na forma vasculite reumatoide.
Nestes casos, a positividade dos marcadores
sorológicos é essencial.
Figura 3.18 - Vasculite de polpa digital evoluindo para gangrena

Figura 3.19 - Vasculite digital com úlceras cutâneas

Figura 3.20 - Vasculite evoluindo com úlcera no membro inferior (pré-debridamento e pós-
debridamento)
d) Citopenias

A produção de anticorpos exacerbada nas DSTC pode opsonizar


elementos do sangue e marcá-los para remoção pelo sistema
reticuloendotelial. Na AR, existe uma forma de citopenia bastante
particular que cursa com febre, neutropenia e organomegalia
(especialmente esplenomegalia, secundária). Esta entidade se chama
síndrome de Felty e ocorre geralmente em pacientes com AR
soropositiva de difícil controle e de longa data. É uma complicação
grave da AR que predispõe a infecções, mas que, com a terapia
avançada que se dispõe atualmente, tornou-se absolutamente
infrequente.
Outras aberrações hematológicas que podem ocorrer incluem
trombocitopenia, geralmente de pequena monta, e anemia. É
importante diferenciar a anemia hemolítica e a anemia de sequestro
esplênico da anemia de doença crônica; esta é infinitamente mais
comum na AR. Na anemia de doença crônica, há reticulócitos,
transferrina e a capacidade total de ligação de ferro reduzidas, sendo
a saturação de transferrina normal e a ferritina elevada.
O diagnóstico da síndrome de Felty é clínico e laboratorial, baseado
na ocorrência de neutropenia. O leque diferencial inclui
especialmente uma forma de leucemia, que é a leucemia de linfócitos
grandes granulares (LGL). Neste caso, haverá citopenias, mas elas
decorrerão mais da invasão da medula pelas células neoplásicas do
que da lise por anticorpos. A suspeita de LGL geralmente se dá pela
presença de linfocitose – com ou sem atipia – no esfregaço e
refratariedade ao tratamento inicial. A confirmação de LGL pode ser
feita com esfregaço periférico ou medular e, caso necessária,
imunofenotipagem sérica ou medular. Outros diferenciais incluem
quadros infecciosos, como a malária, leishmaniose visceral e
síndromes virais causadas por HIV e vírus Epstein-Barr, por
exemplo.
Síndrome de Felty é uma manifestação rara da
AR que cursa com neutropenia, febre e
esplenomegalia em um indivíduo com AR grave.

Por fim, a pneumopatia é a principal representante das


manifestações da AR relacionadas à regeneração inadequada com
expansão do colágeno e fibrose.
e) Pneumopatia

As manifestações pulmonares da AR se encontram divididas pelos


mecanismos de ataque linfofagocitário direto e regeneração
inadequada. No polo mais inflamatório (o menos frequente), a AR
pode cursar com quadros mais agudos ou subagudos de dispneia e
tosse. A análise tomográfica e patológica geralmente mostrará,
nestes casos, pneumonia intersticial não específica. Contudo, a
doença intersticial mais frequente é a forma de pneumonia
intersticial usual, que se assemelha muito a fibrose pulmonar
idiopática e possui pouca inflamação ativa e forte componente de
regeneração fibrótica. Apesar do prognóstico ruim, a progressão da
doença pulmonar na AR é muito lenta e a maioria dos pacientes não
apresenta grandes queixas ao longo da vida.
Adicionalmente, a AR pode cursar com nódulos pulmonares, que
podem aparecer isoladamente ou em grupos e evoluir com cavitação,
que pode infectar, calcificar ou produzir pneumotórax ou fístula
broncopleural. O encontro isolado de nódulo pulmonar requer
investigação adicional para neoplasia de pulmão. Também pode
ocorrer a obstrução de via aérea superior, cricoaritenoide ou da
laringe pelo surgimento de nódulos reumatoides, ou pela própria
artrite dessa articulação, podendo manifestar-se como dor para
deglutir, disfonia e, raramente, obstrução.
A síndrome de Caplan ocorre em pacientes com AR e pneumoconiose
relacionada à exposição a poeiras minerais (carvão, asbestos e sílica)
e caracteriza-se pelo rápido desenvolvimento de múltiplos nódulos
basais periféricos em associação a leve obstrução do fluxo aéreo.
Essa síndrome pode complicar-se com o desenvolvimento de fibrose
progressiva.
3.4.4.4 Diagnóstico

Assim como o diagnóstico da AR sem manifestações extra-


articulares, as formas viscerais desta conectivopatia são
diagnosticadas baseadas na apresentação clínica, comprovação
laboratorial e radiológica dos achados suspeitos (exemplos:
neutropenia e infiltrado intersticial) e, quase sempre, documentação
de fator reumatoide e/ou antipeptídio C citrulinado (anti-CCP)
aumentados. Quase sempre as formas graves de AR serão
acompanhadas de positividade sorológica.
A ocorrência de vasculite também sugere possível componente
crioglobulinêmico, sendo importante a sua pesquisa do ponto de
vista prognóstico.
3.4.4.5 Tratamento

O tratamento da complicação visceral depende do sítio de


acometimento.
Quadros de serosa geralmente são benignos na AR e costumam
responder ao tratamento da doença como um todo. Anti-
inflamatórios não esteroidais ou corticoides sistêmicos em dose
baixa podem ser usados como terapia adjuvante temporária.
Os quadros oculares relacionados à SS secundária devem ser
manejados com medidas locais (ver item 3.4.2.5) e os quadros de
ceratite e esclerite devem ser vistos em conjunto com
oftalmologista. Em geral, as medicações modificadoras do curso da
doença, especialmente o metotrexato, possuem ação sobre as
queixas oculares inflamatórias – e, não, sobre a síndrome sicca –
também. Quadros que ameaçam a integridade ocular geralmente são
pulsados com glicocorticoide e, eventualmente, ciclofosfamida.
A vasculite reumatoide geralmente é um intercorrência grave e
costuma ser manejada com imunossupressão intensiva:
glicocorticoide dose alta associado a ciclofosfamida ou rituximabe.
A síndrome de Felty geralmente é bem manejada com metotrexato, a
despeito da neutropenia, que costuma melhorar.
Por fim, a pneumonite na AR geralmente apresenta padrão sequelar
e não se beneficia muito de imunossupressão. Na ocorrência de
imagens sugestivas de inflamação e eventual piora abrupta, os
pacientes podem se beneficiar de corticoterapia sistêmica e
imunossupressão (com micofenolato de mofetila, por exemplo).
3.5 DOENÇAS DO ESPECTRO DA
REGENERAÇÃO INADEQUADA
3.5.1 Esclerose sistêmica
No polo da regeneração inadequada, a grande protagonista é a
Esclerose Sistêmica (ES). Trata-se de uma doença autoimune
multissistêmica, que, além das manifestações inflamatórias, cursa
especialmente com deposição colagênica e fibrose de pele, vasos e
vísceras.
O resultado é uma disfunção orgânica pela interpolação da fibrose no
tecido saudável. Quando este evento ocorre na vasculatura, o
suprimento sanguíneo fica comprometido e ocorrem mecanismos
que perpetuam a inflamação e a fibrose. De maneira geral, a ES deve
ser interpretada como uma doença autoimune com forte
componente cicatricial. A imunossupressão, portanto, nem sempre é
indicada nestas condições.
3.5.1.1 Etiologia

A ES se caracteriza singularmente pelo comportamento quase


tumoral do fibroblasto, que deposita matriz colagênica de maneira
aberrante e cria um ambiente disfuncional para os órgãos e tecidos.
Especula-se que os próprios fibroblastos dos pacientes com ES
possam ser doentes, com resposta desproporcional ao estímulo
inflamatório promovido pela autoimunidade (Trojanowska et al.,
1988).
A maioria dos casos ocorre de maneira esporádica, mas, raramente,
pode haver agrupamento familiar. A contribuição genética
polimórfica tem sido estudada, havendo associação a HLA-A1, B8 e
DR3.
Na fisiopatologia da ES, alguns solventes, materiais sintéticos e
adjuvantes têm sido estudados como gatilhos para desencadear a
doença. Há, no momento, atenção especial à sílica, solventes e
hidrocarbonetos de petróleo (Wei et al., 2016).
Vírus também são estudados, especialmente o citomegalovírus, com
modelos in vitro e murino gerando lesão e hiperproliferação
endotelial com hiperativação de TBGβ e PDGF, motivados talvez por
mimetismo molecular (Lunardi et al., 2000).
No desenvolvimento da fibrose, ocorre ativação anormal do sistema
imune, com autorreatividade de linfócitos T e B, liberação de
citocinas e quimiotaxia de células inflamatórias, como os
macrófagos. Essas células inflamatórias, em conjunto com as
plaquetas ativadas e o endotélio, liberam fatores de crescimento,
capazes de atrair e ativar os fibroblastos, levando à deposição
excessiva de colágeno (principalmente, tipos I, III e VI).
As alterações vasculares podem ser explicadas pelo componente
fibrótico e colagênico, pela produção de maior quantidade de fatores
vasoconstritores (endotelina-1 e tromboxano A2), menor
quantidade de substâncias vasodilatadoras (óxido nítrico e
prostaciclina) e ativação plaquetária – com formação de
microagregadores de plaquetas nos capilares e nas vênulas. Esse
desequilíbrio a favor de uma vasoconstrição persistente provoca
episódios repetidos de isquemia e hipoperfusão tecidual,
acarretando injúria celular, sendo mais um estímulo para o acúmulo
dos fibroblastos ativados e a formação de fibrose.
3.5.1.2 Epidemiologia

Trata-se de uma doença rara, de etiologia desconhecida. Todas as


faixas etárias podem ser acometidas, mas a maior incidência se dá
entre 30 e 50 anos. A relação entre mulheres e homens é de 4 a 5:1. É
incomum em crianças menores de 13 anos (0,1/1.000.000), mas que,
quando acometidas, apresentam menor incidência de crise renal,
porém maior propensão a atingir o sistema cardiopulmonar.
A ES tem distribuição mundial e acomete todas as raças, mas com
graus variáveis. Negros tendem a ter maior incidência da forma
difusa, com comprometimento pulmonar e pior prognóstico e idade
de início mais baixa, enquanto quadros cutâneos limitados são
comuns em mulheres brancas. Na idade pós-menopausa, há
pequena redução na prevalência em relação aos homens (2 a 4:1).
3.5.1.3 Manifestações clínicas

A maioria das manifestações relacionadas à ES se encontram no polo


da regeneração inadequada.
a) Espessamento cutâneo

Os achados mais característicos da ES estão na pele.


A infiltração do tecido subcutâneo com colágeno e fibrose leva a
espessamento e endurecimento cutâneos. A distribuição da esclerose
é responsável pela divisão da ES nas formas difusa e limitada. Na
forma difusa, o espessamento cutâneo está presente no tronco e nas
extremidades proximais (acima dos joelhos e cotovelos), além da
face e da porção distal dos membros, e, na forma limitada, o
espessamento cutâneo fica limitado aos membros, distalmente aos
cotovelos ou joelhos, podendo acometer face e pescoço.
O processo de esclerose de pele passa por 3 fases: edematosa,
fibrótica e atrófica. Na fase precoce, ou edematosa (Figura 3.21), há
edema difuso da pele e, em alguns casos, eritema. Este se deve ao
infiltrado inflamatório e pode estar inicialmente restrito às mãos,
aos dedos ou aos pés. Pode haver sensação de prurido e sensibilidade
cutânea nessa fase pré-fibrose.
Figura 3.21 - Fase edematosa
Na fase fibrótica (Figura 3.22), a pele se torna espessada e aderida. O
processo inicia-se distalmente e progride proximalmente,
acometendo mais os membros superiores do que os inferiores. Pode
haver limitação de movimentos pela perda de elasticidade da pele
sobre várias articulações e, dependendo da gravidade do processo,
contraturas em flexão. Sobre as superfícies extensoras dessas
articulações, são comuns, pela tração da pele pouco elástica,
isquemia e traumas, além do aparecimento de úlceras de tração (que
não têm relação com o fenômeno de Raynaud, diferentemente das
pitting scars, que ocorrem nas polpas digitais). O espessamento e
endurecimento da pele dos dedos na ES é conhecido como
esclerodactilia (Figura 3.23). Na fase atrófica, a pele fica mais afinada
e desprende-se dos planos profundos, com aparente “melhora” do
quadro.
Figura 3.22 - Fase fibrótica

Figura 3.23 - Espessamento cutâneo e retração da pele dorsal dos dedos (esclerodactilia),
com contratura em flexão de interfalangianas proximais e distais
Fonte: adaptado de Thermography Improves Clinical Assessment in Patients with Systemic
Sclerosis Treated with Ozone Therapy, 2017.

Na face, o acometimento da pele leva a perda de rugas, estiramento


da pele, afinamento dos lábios e do nariz. A rima oral se reduz,
provocando microstomia (Figura 3.24), o que pode dificultar
abordagens na cavidade oral, como avaliações e tratamentos
odontológicos, ou mesmo a intubação.
Embora o espessamento distal dos
quirodáctilos, a partir da interfalangiana
proximal, possa ocorrer na ES, é um achado
frequente nas DSTCs como um todo e não
ajuda, isoladamente, a diferenciá-las.
Figura 3.24 - Afinamento dos lábios e redução da rima oral
Fonte: Improvement of Mouth Functional Disability in Systemic Sclerosis Patients over One
Year in a Trial of Fat Transplantation versus Adipose-Derived Stromal Cells, 2016.

Na fase tardia do espessamento, aparecem lesões chamadas, no seu


conjunto, de leucomelanodermia (ou lesões em “sal e pimenta”),
que são lesões hipocrômicas ou acrômicas entremeadas com pele
normocrômica, em um padrão marmoreado (Figura 3.25).
Figura 3.25 - Lesões “em sal e pimenta”
Fonte: Adult-onset dyschromatoses, 2011.

O diagnóstico do espessamento é clínico e possui alguns diferenciais,


tal como:
1. Escleredema: espessamento cutâneo proximal, geralmente na
parte dorsal alta e raiz dos ombros, que poupa os membros
distalmente. É associada a diabetes mellitus insulinodependente
(escleredema de Buschke) e neoplasias hematológicas;
2. Escleromixedema: lesões eritematoamareladas e elevadas que
ocorrem sobre superfície cutânea espessada, especialmente na face,
pavilhão auricular e dorso, relacionadas a doenças hematológicas
clonais;
3. Mixedema: edema endurado e não compressível associado ao
hipotireoidismo, visto mais frequentemente nas pernas;
4. Fasciite eosinofílica: espessamento e aderência cutânea às
fáscias musculares adjacentes, dando um aspecto de casca de laranja;
5. Doença do enxerto versus hospedeiro: na fase tardia da doença,
a pele pode começar a espessar e aderir à fáscia. Pode ser
clinicamente muito semelhante à esclerose sistêmica;
6. Fibrose nefrogênica: espessamento cutâneo difuso que ocorre
após infusão de gadolínio, especialmente em pacientes com disfunção
renal. Tem um aspecto brilhante, pode ser levemente eritematosa e
lembra as lesões em casca de laranja da fasciite eosinofílica.

Raramente será necessária, mas a biópsia cutânea pode ajudar nos


casos que deixam dúvida.
b) Calcinose

Outro achado característico são as calcinoses, que correspondem a


depósitos de cálcio no subcutâneo, geralmente sobre áreas expostas
a microtraumas, como antebraços, mãos, cotovelos, joelhos, coxas e
nádegas. Esse material pode provocar dor, desconforto e ulcerações,
facilitando infecções.
Acredita-se que as calcinoses correspondam a um recrutamento
inadequado de cálcio por macrófagos do perfil M2, ou seja,
macrófagos regenerativos. O diagnóstico é prontamente feito pela
palpação e a monitorização da quantidade e tamanho das calcinoses
pode ser feita com radiografias em 2 incidências.
c) Vasculopatia

A infiltração colagênica intimal e perivascular, a proliferação das


camas musculares vasculares, a desregulação do balanço
vasodilatador-vasoconstritor e a trombogênese microvascular
levam à incompetência vasomotora arterial nos pacientes com ES.
Estes fenômenos se expressam em múltiplos sítios e são
responsáveis por muitos dos sintomas desses indivíduos.
Ocorrendo nas extremidades, um dos sítios principais de
acometimento da ES, nota-se a tradução clínica do evento
fisiopatológico na forma do fenômeno de Raynaud (ver adiante), das
úlceras isquêmicas, das telangiectasias (que surgem como estímulo
neoangiogênico induzido por hipóxia), das depressões cutâneas na
extremidade digital (pitting scars – Figura 3.26) e na reabsorção das
polpas digitais (Figura 3.27).
Figura 3.26 - Fenômeno de Raynaud com pitting scars ou úlcera digital por isquemia

Fonte: Esclerose sistémica juvenil: uma doença incomum na infância, 2012.

Figura 3.27 - Reabsorção de falanges distais em paciente com esclerose sistêmica difusa,
fenômeno de Raynaud e pitting scars
Legenda: (A) infarto digital; (B) reabsorção de falanges distais.

A manifestação de vasculopatia periférica pode ser comprovada


através da capilaroscopia periungueal, que nada mais é do que
observar o leito vascular ungueal com uma lente de aumento.
Achados como ectasias, hemorragias e deleções sugerem doença
vascular (Figura 3.28).
Figura 3.28 - Capilaroscopia periungueal: observar a dilatação dos capilares e áreas sem
capilares (deletados) – padrão SD
O fenômeno de Raynaud (FRy) é um vasoespasmo reversível de
artérias digitais de mãos e pés que pode ser primário ou secundário
(ou seja, ocorre em associação a outras doenças). Classicamente, o
fenômeno vascular é trifásico, porém pode haver formas menos
características, sendo, em geral, desencadeado pela exposição ao
frio.
Incide de preferência em mulheres jovens e costuma ser simétrico,
acometendo as mãos, mas é possível também acometer os pés.
Classicamente, trata-se de forma benigna que não cursa com
manifestações isquêmicas. Seu diagnóstico depende da exclusão de
outros fatores que podem desencadeá-lo, como uso de drogas
vasoconstritoras, tabagismo, distúrbios vasculares e as DSTCs.
Para o diagnóstico do FRy primário, além de
excluir causas externas e doença sistêmica pela
anamnese e pelo exame físico, o paciente deve
ter capilaroscopia periungueal normal ou com
leves alterações inespecíficas.

A forma secundária, por sua vez, simboliza doença vasomotora ou


vasculítica associada e é encontrada na ES (pode ser, inclusive, a sua
primeira manifestação), nas doenças mistas do tecido conectivo e
nas MASs, predominantemente.
Na circulação pulmonar, a vasculopatia culmina no aumento das
pressões em leito arterial que se transmitem ao ventrículo direito. O
resultado é a temida Hipertensão Arterial Pulmonar (HAP). Se
nenhuma medida é tomada, a sobrecarga pressórica induz
insuficiência de ventrículo direito, com as suas nefastas
consequências. Junto com a doença intersticial pulmonar,
representam a principal causa de morte na ES. Os pacientes com HAP
geralmente se queixam de dispneia e, eventualmente, sintomas de
baixo débito. Em pacientes com insuficiência grave de ventrículo
direito, pode haver morte súbita.
A hipertensão pulmonar da ES é considerada
arterial, uma vez que a gênese da doença é,
primariamente, arterial. Existem formas não
arteriais de aumento pressórico pulmonar,
sendo chamadas, apenas, de hipertensão
pulmonar.

O diagnóstico de HAP é sugerido pelo ecocardiograma, mas deve


sempre ser quantificada pela aferição invasiva de pressão de artéria
pulmonar pelo cateterismo, pois o ecocardiograma é pouco acurado
na quantificação precisa.
Os diagnósticos diferenciais incluem outras causas de hipertensão
pulmonar, como tromboembolismo, doença cardíaca e doença
pulmonar hipoxêmica.
Na circulação renal, a deposição de colágeno oblitera o lúmen
vascular, causando hipofluxo renal e isquemia. O quadro clínico
geralmente conta com hipertensão, perda de função renal,
proteinúria não nefrótica e sedimento urinário brando ou normal. O
estreitamento vascular pode gerar lise de células sanguíneas e
agregação plaquetária, causando citopenias; eventualmente podem
surgir esquizócitos – hemácias deformadas – no esfregaço
sanguíneo. Por fim, elevações rápidas de pressão arterial podem
causar encefalopatia. O quadro de disfunção renal associado à ES
geralmente se dá rapidamente, motivo pelo qual ficou conhecido
como crise renal esclerodérmica.
A crise renal esclerodérmica ocorre com mais frequência em
pacientes que foram diagnosticados recentemente, possuem grande
extensão de acometimento cutâneo, geralmente com formas difusas
de doença, e que apresentam anticorpos malignos, como o anti-
RNA-polimerase III. O uso de glicocorticoide pode ser o gatilho para
iniciar o quadro.
O diagnóstico de crise renal esclerodérmica deve ser suspeitado em
paciente com perda de função renal relativamente rápida na vigência
de ES. Exames úteis são a análise do sedimento urinário e a
proteinúria de 24 horas. Biópsia renal raramente é necessária.
Diagnósticos diferenciais importantes incluem a hipertensão
maligna e as síndromes trombo-hemorrágicas, especialmente a
síndrome hemolítico-urêmica.
O Quadro 3.5 resume as manifestações e os exames a serem
solicitados na ES em suas formas vasculares.
Existe uma minoria dos pacientes que
apresenta crise renal sem aumento pressórico.
Como será visto futuramente, o prognóstico
deste grupo é bastante reservado.
Quadro 3.5 - Exames relevantes nas formas vasculares de esclerose sistêmica

d) Manifestações gastrintestinais

O aparelho digestivo é o segundo mais atingido, depois da pele. O


acometimento neurológico do plexo mioentérico, com atrofia e
fibrose da musculatura lisa, leva a dismotilidade gastrintestinal. O
esôfago acometido, principalmente nos 2 terços distais, pode chegar
a ficar aperistáltico e provocar disfagia, em especial, para sólidos. O
esfíncter esofágico inferior acometido causa doença do refluxo
gastroesofágico (DRGE), com pirose, podendo evoluir com disfagia,
erosões de mucosa, constrição esofágica, esôfago de Barrett e até
pneumopatia secundária a aspiração. O acometimento gástrico pode
levar a gastroparesia, saciedade precoce, náuseas e vômitos.
É comum que uma parte importante da doença
pulmonar na ES seja causada pela aspiração do
conteúdo regurgitante do trato gastrintestinal.
Controlar o refluxo pode melhor o pulmão,
portanto.

Pode haver, ainda, dismotilidade intestinal: no intestino delgado,


pode provocar borborigmos, pseudo-obstrução, distensão
abdominal, diarreia, hipercrescimento bacteriano e síndrome de má
absorção, necessitando de cursos intermitentes de antibióticos; no
intestino grosso, a dismotilidade causa constipação e pode provocar
incontinência fecal, caso atinja o esfíncter. Casos graves de pseudo-
obstrução intestinal também são possíveis.
Além da dismotilidade, a ES pode provocar telangiectasias com
sangramento e perda sanguínea crônica. A atrofia da mucosa
gástrica pode provocar ectasia vascular gástrica antral (GAVE),
também conhecida como estômago “em melancia”, que pode ser
observada à endoscopia.
Exames como radiografias contrastadas de Esôfago-Estômago-
Duodeno (EED) mostram a dismotilidade do tubo digestivo (Figura
3.29), DRGE e lesões constritivas. Pode ser necessária pHmetria para
definir a DRGE e endoscopias periódicas para avaliar complicações.
Figura 3.29 - Síndrome CREST
Fonte: Qual o seu diagnóstico?, 2002.

e) Pneumopatia

O acometimento pulmonar é a principal causa de mortalidade e pode


dever-se à fibrose intersticial e/ou doença vascular pulmonar
(discutida anteriormente). Pacientes com a forma difusa da ES têm
maior risco de Doença Pulmonar Intersticial (DPI), enquanto aqueles
com a forma limitada têm maior risco de hipertensão pulmonar.
Apesar disso, a correlação não é perfeita, e todos os pacientes devem
ser monitorizados, pois, em ambos os casos, existe um período
subclínico ideal para a intervenção. A DPI, ou alveolite fibrosante, é
inicialmente assintomática, apresentando, progressivamente,
dispneia e tosse seca. Comparada à evolução das demais DPIs nas
DSTCs, a condição na ES geralmente evolui de maneira mais rápida,
mais grave e mais refratária, de tal forma que, na evolução da
doença, 20% dos casos precisam de oxigênio suplementar. Tem forte
associação à presença de antitopoisomerase I (anti-Scl-70), mas
não está restrita a esse grupo de pacientes. Provas de Função
Pulmonar (PFPs) com difusão devem ser realizadas precoce e
periodicamente, mesmo na ausência de sintomas, e representam a
forma mais sensível para indicar DPI. Mostram alterações
restritivas, com redução da capacidade vital forçada, dos volumes
pulmonares e da capacidade de difusão do monóxido de carbono.
A Tomografia Computadorizada de Alta Resolução de tórax (TCAR –
Figura 3.30) também é usada, uma vez que radiografias simples não
são suficientemente acuradas para monitorizar alterações
intersticiais finas. Pode ocorrer inicialmente alveolite, com achado
de “vidro fosco”, que pode responder ao tratamento, mas evolui com
fibrose, apresentando infiltrado reticulonodular e faveolamento.
Nesta situação plena do polo da regeneração inadequada, a resposta
clínica é muito modesta (Tashkin et al., 2006).
Figura 3.30 - Padrões de anormalidades encontrados na tomografia de alta resolução de
tórax de paciente com esclerose sistêmica
Legenda: (A) faveolamento; (B) opacidades “em vidro fosco” associadas a opacidades
reticulares; (C) opacidades reticulares; (D) opacidades “em vidro fosco”.
Fonte: adaptado de Comprometimento pulmonar na esclerose sistêmica: revisão de casos,
2006.

O diagnóstico diferencial do acometimento intersticial pela ES pode


ser desafiador. O clínico deve sempre ter em mente diagnósticos
infecciosos (como micobacterioses, vírus e fungos), tóxicos
(pneumonite induzida por drogas) e de mecanismo imune (como
sarcoidose e pneumonite por hipersensibilidade). Por vezes, faz-se
necessário lavado broncoalveolar para exclusão de infecções e,
eventualmente, biópsia pulmonar para documentação
anatomopatológica.
f) Cardiopatia
As manifestações da doença, do ponto de vista cardíaco, são
variáveis. Na maior parte das vezes serão oligossintomáticas e
muitos dos achados coletados até o momento documentando doença
cardíaca se referiram a estudos anatomopatológicos post mortem ou
levantamentos populacionais (Meune et al., 2008). Ademais, muito
do que se encontra em ES no miocárdio se refere também a outros
mecanismos patogênicos, como aterosclerose, que se relacionam
com as doenças inflamatórias em geral, mas não representam um
alvo das doenças em si. Sintomas, quando presentes, incluem
dispneia, desconforto torácico e palpitações. Pode acometer o
miocárdio, com distúrbios de condução, arritmias e insuficiência
cardíaca (inclusive com fração de ejeção preservada). Efusão
pericárdica discreta pode ser observada em 30 a 40% dos
assintomáticos. Pericardite sintomática é incomum.
Dentro do polo da ativação linfofagocitária, a ES pode cursar com
miopatia inflamatória, lembrando o padrão da PM. Contudo, o
quadro raramente causa fraqueza grave ou aumentos marcantes de
enzimas musculares. Sinovites e queixas articulares são frequentes,
quase sempre sem grande flogose ao exame físico e virtualmente
sem erosões nas imagens, exatamente como nas demais DSTCs (ver
anteriormente nas subseções sobre LES ou SS).
As manifestações vasculíticas na ES são bem mais raras, com relatos
de mononeurite múltipla, por exemplo. Todavia, como todas as
DSTCs compartilham fisiopatologia semelhante, todas as
manifestações que ocupem os polos discutidos neste capítulo são
possíveis em qualquer uma das conectivopatias.
3.5.1.4 Diagnóstico

O diagnóstico de ES é baseado nos achados clínicos, nos exames


suplementares (exemplos: TCAR, PFP e EED) que documentam e
monitorizam as suspeitas e na sorologia. O FAN é o exame inicial e
mais importante para a triagem dos pacientes. Em geral, pacientes
com ES terão FAN padrão nuclear ou nucleolar, com padrões
específicos e eventualmente mistos. Dentro do padrão nuclear,
grande atenção deve ser dada ao padrão nuclear centromérico, pois é
diagnóstico de anticorpos anticentrômero – nenhum exame
adicional é necessário. Do ponto de vista nucleolar, o anticorpo mais
importante é o anti-Scl-70 (antitopoisomerase I), que deve ser
solicitado separadamente; este anticorpo também pode ter um
padrão nucleolar e nuclear misto.
A positividade de anticentrômero se refere à doença limitada, com
evolução mais prolongada e menos fibrose visceral. A presença de
anti-Scl-70 se refere mais à doença difusa, com curso mais rápido,
mais refratário e com maior fibrose visceral (especialmente
pulmonar).
O Quadro 3.6 resume alguns dos anticorpos relevantes em ES.
Quadro 3.6 - Autoanticorpos encontrados na esclerose sistêmica
Há a possibilidade de ES sem espessamento cutâneo. Este difícil
diagnóstico é obtido nos pacientes com fortes indícios de
acometimento visceral por ES (como DPI e esofagopatia, por
exemplo), sinais de vasculopatia (como uma capilaroscopia positiva,
por exemplo) e sorologia compatível (anticorpos relacionados à ES).
Nesta situação, chama-se esclerose sistema sine scleroderma.
3.5.1.5 Tratamento

O tratamento de pacientes com ES deve ser individualizado de acordo


com as manifestações predominantes, levando em consideração o
subtipo da doença e os órgãos comprometidos. O tratamento deve
ser iniciado precocemente, com o objetivo de minimizar danos ao
paciente, uma vez que a fibrose estabelecida raramente reverte. De
forma geral, no momento do diagnóstico e, rotineiramente, os
pacientes são avaliados para possíveis complicações cardíacas,
pulmonares e renais.
Para tratamento com base no comprometimento de órgãos, as
últimas diretrizes publicadas são da European League Against
Rheumatism de 2017 e serão resumidas a seguir.
Para pacientes com comprometimento cutâneo e visceral, o
tratamento com imunossupressores é usualmente indicado, porém
com benefício limitado. Nas formas de comprometimento cutâneo
extenso sem comprometimento visceral, são medicações de escolha
metotrexato e micofenolato de mofetila. Em casos refratários, pode-
se usar ciclofosfamida, principalmente na presença de
comprometimento visceral associado. Em casos com espessamento
cutâneo refratário e falha de outros tratamentos, no contexto de
comprometimentos viscerais, há possibilidade do uso de
imunoglobulina humana ou rituximabe.
Pacientes com prurido podem se beneficiar do uso de anti-
histamínicos. Na presença de calcinose importante, gerando
alteração funcional ou ulcerações, são opções terapêuticas
minociclina e metotrexato. Existem relatos de melhora das
calcinoses com bisfosfonatos, rituximabe e imunoglobulina,
contudo, não há evidência suficiente para se afirmar que, de fato,
agem sobre a condição.
O objetivo do tratamento do FRy é prevenir eventos isquêmicos e
melhorar a qualidade de vida dos pacientes. A exposição ao frio e o
estresse emocional são fatores que podem influenciar no sucesso
terapêutico. São medidas iniciais no tratamento de pacientes com
FRy: educação do paciente, manutenção de membros aquecidos,
mudanças comportamentais e tratamento farmacológico.
Os pacientes devem ser estimulados a realizar mudanças de estilo de
vida e interromper o uso de drogas que possam desencadear o
vasoespasmo. Evitar exposição ao frio ou a grandes variações de
temperatura, manter extremidades aquecidas (usar luvas e meias) e,
ao presenciar manifestações relacionadas ao vasoespasmo, manter o
membro aquecido em água quente. Além disso, é importante
incentivar a cessação do tabagismo e o uso de medicações
simpaticomiméticas (descongestionantes nasais e anfetaminas, por
exemplo), bem como medicações para enxaqueca (sumatriptana).
Quando apenas orientações e mudanças no estilo de vida são
insuficientes, há necessidade do tratamento farmacológico. Nesse
contexto, bloqueadores dos canais de cálcio como nifedipino podem
ser úteis. Porém, há um subgrupo de pacientes com ES que não tolera
altas doses de tais medicações e geralmente necessita de alternativa.
De forma geral, os bloqueadores de canais de cálcio são
contraindicados ou pouco tolerados em pacientes com dismotilidade
gastrintestinal grave, HAP grave, doença cardíaca com edema
significativo ou hipotensão sintomática. Para esses pacientes, são
possíveis opções: sildenafila, nitratos tópicos, losartana, fluoxetina
ou ainda injeção local de toxina botulínica.
O comprometimento renal mais temido na ES é a crise renal
esclerodérmica que, quando tratada precocemente, responde
consideravelmente bem. É fundamental que a terapêutica com anti-
hipertensivos seja iniciada antes do dano renal irreversível. O
tratamento de primeira linha é feito com inibidores de enzima
conversora de angiotensina (IECA), especialmente captopril. Para
pacientes nos quais que os níveis pressóricos não são atingidos com
o uso do IECA, é possível a associação de anlodipino. Mesmo para os
pacientes não hipertensos, o IECA continua sendo a droga de
escolha, dentro do tolerável. Contudo, paciente hipotensos
geralmente já apresentam outras disfunções orgânicas, como
cardiopatia, e possuem prognóstico muito ruim. Nos casos
refratários, está indicada diálise.
A biópsia de pacientes com crise renal esclerodérmica não é
necessária para estabelecer diagnóstico, porém pode ser útil para
indicar a reversibilidade do quadro.
A presença de múltiplos vasos trombosados, grave colapso
isquêmico glomerular e depósito de C4 peritubular correlacionam-
se com pior prognóstico.
O tratamento do comprometimento esofágico é direcionado para os
sintomas do paciente. Na presença de DRGE, mudanças no estilo de
vida são indicadas, bem como substituição de medicações
possivelmente associadas aos sintomas (bloqueadores dos canais de
cálcio, por exemplo). Além disso, recomenda-se o tratamento com
inibidores da bomba de prótons, em dose plena. Em casos
refratários, há possibilidade de associação de ranitidina noturna. O
uso de procinéticos não parece ser útil para o refluxo, mas como a
gastroparesia e a disfagia ocorrem também com frequência, é
incomum que clínicos não tentem estas medidas devido ao seu baixo
custo e razoável segurança farmacológica. Em geral, usa-se
domperidona, bromoprida ou metoclopramida. A gastroparesia
depende de mudanças no estilo de vida e controle de outros fatores
agravantes, como glicemia e hidratação. Em casos graves, associam-
se procinéticos e antieméticos. No tratamento da hiperproliferação
bacteriana pelo acometimento do intestino delgado, preconiza-se o
uso de antibioticoterapia rotativa, com doxiciclina 100 mg, a cada 12
horas; ciprofloxacino 500 mg, a cada 12 horas; metronidazol 250 mg,
a cada 8 horas. Em geral, cada antibiótico é utilizado por 10 dias, com
intervalos de 15 dias, em esquema de rodízio, com o objetivo de
evitar a resistência bacteriana.
A pseudo-obstrução intestinal pode ser tratada com aspiração
nasogástrica e nutrição parenteral. Na desnutrição, deve-se instituir
nutrição parenteral prolongada.
A abordagem terapêutica na doença pulmonar da ES visa ao controle
da alveolite fibrosante e da vasculopatia pulmonar, que podem
acarretar, respectivamente, DPI e HAP. A monitorização precoce e
seriada da doença pulmonar com PFP com difusão, TCAR e
ecocardiograma é fundamental para diagnosticar e dar seguimento
evolutivo e terapêutico.
Na DPI, a droga preferida atualmente é o micofenolato de mofetila,
pois produz benefícios semelhantes à ciclofosfamida, com menores
efeitos adversos (Tashkin et al., 2016). Quando usada a
ciclofosfamida, a maioria dos reumatologistas prefere doses
intravenosas (pulsoterapia 0,5 a 1 g/m2), mensalmente, pelo menor
risco de cistite e garantia de aderência. A duração do tratamento
dessa entidade clínica parece incerta, podendo durar até 2 anos (24
pulsos), já que muitos autores a consideram ineficaz após esse
período. Existem estudos em andamento com antifibróticos, um
deles publicado em 2019 e que demonstrou resultados promissores
(Distler et al., 2019).
É proporcional o rastreamento ativo e anual de
HAP e DPI com prova de função pulmonar e
ecocardiograma nos pacientes com ES.

Nos pacientes com diagnóstico de HAP, o tratamento


imunossupressor não produz resultados, sendo indicada terapia com
vasodilatadores da circulação pulmonar.
Por fim, mialgias, artralgias, artrites e serosites podem ser tratadas
com anti-inflamatórios não hormonais ou metotrexato. Terapia
física deve ser instituída precocemente para evitar contraturas.
Pacientes com distúrbios de condução, arritmias e insuficiência
cardíaca devem ser tratados de acordo com os protocolos da
Cardiologia.
3.5.2 Doença mista do tecido conectivo
A Doença Mista do Tecido Conectivo (DMTC) é uma entidade de
caracterização recente que apresenta manifestações em todos os
polos fisiopatológicos das DSTCs, mimetizando várias
conectivopatias, com discreta predileção para a regeneração
inadequada. Contudo, é uma doença muito mais inflamatória e
muito menos cicatricial do que a ES, de tal forma que a
imunossupressão, em geral, apresenta resultados melhores.
3.5.2.1 Epidemiologia

Poucos estudos avaliaram a prevalência e a incidência da doença. Um


estudo norueguês constatou a prevalência de 3,8/100.000
indivíduos, com incidência de 2,1/1.000.000 ao ano (Gunnarsson et
al., 2011). É uma doença que acomete mais mulheres do que homens,
com estimativas que variam de 3,3:1 até 16:1.
3.5.2.2 Manifestações clínicas
A DMTC é uma doença que possui algumas características marcantes
que a singularizam dentro das DSTCs (acropatia, marcadores
sorológicos e pouca tendência a vasculite). Contudo, exceto por essas
características, a DMTC costuma apresentar múltiplas
manifestações de várias outras conectivopatias, geralmente
compartilhando os espectros do LES – na sua vertente mais de
ativação linfofagocitária –, PM e ES. Um traço da doença é,
geralmente, apresentar manifestações mais brandas do que seus
pares. Assim como todas as DSTCs, a DMTC pode cursar com febre,
mialgia, anorexia, perda ponderal e fadiga.
A DMTC não é uma síndrome de sobreposição.
Trata-se de uma doença única que possui
características muito semelhantes a outras
conectivopatias, especialmente LES, PM e ES.

a) Acropatia e vasculopatia

Duas manifestações relacionadas à disposição da matriz colagênica e


que são muito prevalentes na DMTC são o FRy e o edema de mãos e
dedos, sendo que o último é uma apresentação que sugere bastante o
diagnóstico. O FRy é um fenômeno decorrente de incompetência
vasomotora (discutido anteriormente) e o edema periférico (pu y
hands e pu y fingers) decorre de alteração do tecido conectivo da
derme, com proliferação de colágeno entremeado com edema, sem
grande fibrose (Sawai et al., 1997), ocasionando um aumento não
compressível da superfície das mãos e dos dedos, sem, no entanto,
cursar com inflamação ativa, espessamento cutâneo ou sintomas
objetivos. De fato, em geral, é o médico que percebe o aumento do
volume dos dedos e das mãos.
Todas as implicações do FRy que ocorrem na ES, bem como suas
manifestações cutâneas, podem ocorrer na DMTC, de tal forma que
os pacientes podem também apresentar isquemia, ulcerações e graus
variados – quase sempre discretos – de espessamento cutâneo.
A acropatia na DMTC é prontamente reconhecida ao exame físico.
Ainda do ponto de vista vascular, a DMTC pode acometer a circulação
pulmonar por proliferação colagênica e produzir um quadro
semelhante à HAP vista na ES (ver item 3.5.1.3). Contudo, o quadro
costuma ser menos agressivo e pode responder à imunossupressão
(Jaïs et al., 2008).
b) Manifestações gastrintestinais

O envolvimento do trato gastrintestinal é a característica de


sobreposição mais comum com a ES, ocorrendo em cerca de 60 a
80% dos casos; o comprometimento esofágico é o mais frequente. A
dismotilidade esofágica pode piorar com a evolução da doença e o
refluxo gastroesofágico pode levar ao esôfago de Barrett, uma lesão
com evolução potencialmente maligna. Infiltração do trato
digestório mais baixo é possível, com gastroparesia e síndromes
disabsortivas, contudo, é extremamente infrequente. Assim como na
ES, pacientes com DMTC podem fazer telangiectasias sangrantes
intestinais e evoluir com algum grau de anemia.
c) Pneumopatia

É representada pela DPI, ocorre em mais da metade dos pacientes


(Bodolay et al., 2005) e, se não tratada, evolui com fibrose
irreversível em uma parcela muito significativa. A DPI da DMTC deve
ser encarada de maneira muito semelhante à da ES, com necessidade
de rastreamento constante por PFP e de terapia precoce (ver item
3.5.1.3).
d) Dermatite

Além das manifestações periféricas, a DMTC pode cursar com lesões


cutâneas que lembram o lúpus agudo – rash malar e eritema
morbiliforme – ou mesmo as formas subagudas e crônicas – anular
e discoide, por exemplo. A fotossensibilidade costuma ser
igualmente marcante. Nas mucosas, úlceras orais e síndrome seca
também podem fazer parte do quadro.
O fluxo diagnóstico e terapêutico seguirá as mesmas orientações do
LES (ver item 3.3.1.3).
e) Artrite

O envolvimento articular é comum e frequentemente mais refratário


do que nas demais DSTCs. Contudo, a maioria dos pacientes não
apresentarão um quadro tão grave e destrutivo quanto na AR. Em
geral, não são esperadas erosões e a sequela, quando ocorre, refere-
se mais à artropatia de Jaccoud (ver anteriormente, em LES, item
3.3.1). A ocorrência de quadro articular com erosões coloca a
síndrome em uma querela diagnóstica, sugerindo mais uma
sobreposição de conectivopatias (DMTC ou LES com AR, por
exemplo) do que uma doença única (ver adiante, em Síndromes de
sobreposição, item 3.16).
O fluxograma diagnóstico segue semelhante ao utilizado para o LES,
por exemplo, e se encontra no item
3.3.1.3.

f) Miosite

A miopatia, representando a PM na mistura das doenças que formam


a DMTC, é uma miopatia inflamatória clínica e histologicamente
idêntica à PM. Mialgia é um sintoma comum e geralmente não
representa miosite, contudo, a ocorrência de fraqueza e elevação das
enzimas musculares sugere acometimento inflamatório muscular.
O fluxograma diagnóstico e os diferenciais podem ser encontrados
no item 3.4.1, sobre as MASs.
g) Serosite
A ocorrência de serosite é razoavelmente comum, ocorrendo em
cerca de 40% dos pacientes (Ungprasert et al., 2014). Tanto pleura
quanto pericárdio são acometidos, sendo o peritônio bem menos
provável. Exames relevantes na investigação são citados no item
3.3.1.3.
h) Citopenias e linfadenopatia

As alterações hematológicas na DMTC lembram muito às do LES,


exceto a trombocitopenia. O quadro mais comum é a linfopenia, que
geralmente é branda e não causa sintomas específicos. A presença de
linfonodomegalias, hepatomegalia e esplenomegalia é possível, e
relaciona-se com doença ativa frequentemente. Em geral, o quadro
hematológico responderá com o tratamento para as outras
manifestações.
A DMTC possui fraca associação com as manifestações do polo
vasculítico. Assim, manifestações como vasculite cutânea extensa,
glomerulonefrite e síndromes neurológicas isquêmicas são
incomuns.
3.5.2.3 Diagnóstico

O diagnóstico definitivo da DMTC é, muitas vezes, difícil, pelo fato


de que as características das doenças tendem a ocorrer
sequencialmente. Vários anos podem se passar até que apareça toda
a constelação de achados. Diversos critérios diagnósticos já foram
criados e todos são ainda utilizados na prática científica, o que
dificulta muito os estudos. Devido a uma sensibilidade de 63% e
especificidade de 86%, sendo uma das melhores combinações
estudadas entre os critérios (Alarcón-Segovia; Cardiel, 1989), esta
obra optou por utilizar os critérios de Alarcón-Segovia, que se
encontram resumidos a seguir:
1. Critérios sorológicos: anticorpo anti-U1 RNP positivo com título na
hemaglutinação ≥ 1:1.600;
2. Critérios clínicos:
a) Edema de mãos;
b) Sinovite;
c) Miosite (mialgia é frequentemente substituída por miosite);
d) Fenômeno de Raynaud;
e) Acroesclerose.

O diagnóstico será estabelecido se o critério sorológico estiver


acompanhado de 3 ou mais critérios clínicos (um deles deve
incluir sinovite ou miosite). A presença do anti-U1 RNP é
indispensável para o diagnóstico.
O paciente que apresente FAN positivo com padrão pontilhado
em altos títulos (> 1:1.000 até > 1:10.000), especialmente se for
anti-RNP positivo, associado a alterações como edema de mãos,
deve ser atentamente acompanhado, pois apresenta risco de
evolução para DMTC.
A presença de anti-DNAds ou anti-Sm cria um impasse
diagnóstico, pois são anticorpos extremamente específicos para
LES. De maneira geral, os reumatologistas tendem a assumir
estes pacientes como portadores de LES e, não, de DMTC. Os
anticorpos antifosfolípides ocorrem com menor frequência do
que no LES e, se presentes, tendem a se correlacionar com
trombocitopenia e HAP, mas não com trombose e/ou abortos.
3.5.2.4 Tratamento

A terapia utilizada para o tratamento da DMTC consiste nas já


conhecidas drogas para as diversas conectivopatias, todas
descritas anteriormente neste capítulo em sua seção específica.
Uma vez que a hipertensão pulmonar é a principal causa de
morte, recomenda-se o diagnóstico precoce com
ecocardiograma de rotina a todos os pacientes. O manejo das
complicações cardiopulmonares é semelhante ao da ES, com a
exceção de que a HAP pode ser manejada não só com
vasodilatação pulmonar, mas, também, com imunossupressão.
Os estudos, em geral, usaram corticoide em dose alta associado
a ciclofosfamida (Jais et al., 2008).
Nos poucos estudos que existem sobre terapia em DMTC, o
corticoide é a droga mais utilizada, geralmente com resposta
muito eficaz para as manifestações inflamatórias.
Medicamentos específicos para refluxo são indicados para as
manifestações gastrintestinais e vasodilatadores para o FRy.
Finalmente, as orientações sobre medidas não farmacológicas,
como aquecimento das mãos, também podem ser transferidas à
DMTC.
3.6 SÍNDROMES DE SOBREPOSIÇÃO
As síndromes de sobreposição são condições nas quais 2 ou mais
DSTCs ocorrem simultaneamente. Nem sempre é possível
diferenciar as síndromes, até mesmo porque, como fica claro
nas seções anteriores, as apresentações clínicas se confundem
muito, ao ponto de que, por vezes, parece quase sem sentido dar
um sobrenome à conectivopatia – ao menos do ponto de vista
clínico. Uma vez que o manejo será órgão-específico, a
“doença-mãe” nem sempre é tão relevante. Isso é
absolutamente verdadeiro na rotina do reumatologista, que em
muitas situações inicia o tratamento do seu paciente sem ter
pleno conhecimento da doença envolvida, levando,
frequentemente, meses, ou mesmo anos, até conseguir lhe dar
um nome completo.
Ainda assim, algumas síndromes de sobreposição (ou overlap)
foram descritas com razoável frequência, permitem
diferenciação e merecem destaque especial. É possível que, com
o passar dos anos, as sobreposições ganhem marcadores e
facetas singulares que lhes permitam a classificação em doença
única, como ocorreu com a DMTC (Sharp et al., 1972).
A diferenciação entre manifestação de uma doença primária e
ocorrência de síndromes conjuntas nem sempre é fácil, mas
existem algumas características clínicas que podem ajudar. Elas
se encontram resumidas no Quadro 3.7.
O momento de início de cada manifestação é importante: um
paciente lúpico que evolui com uma miopatia após anos de
doença exclusivamente lúpica tem chance maior de
sobreposição do que um paciente que abriu o seu lúpus com
miopatia simultânea; neste caso, é provável que a miopatia seja
apenas manifestação lúpica.
A gravidade de cada manifestação também é relevante, de tal
modo que, pacientes com sobreposições apresentam cada
doença muito marcada, com grande gravidade associada à sua
manifestação específica. Um paciente com LES e AR, por
exemplo, pode apresentar artrite erosiva e grave associada a
quadro renal e neurológico vasculítico. Um paciente lúpico com
artrite branda, ainda que seja de mãos e punhos e com
características que a aproximam da AR, tem chance maior de ter
apenas uma artrite lúpica.
E, por fim, a concomitância das exacerbações talvez seja a
principal característica que permite diferenciar as condições:
síndromes de sobreposição possuem polos que respondem ao
tratamento de formas diferentes e exacerbam em momentos
diferentes. Na ocorrência de LES associado a PM, por exemplo, é
possível que um paciente esteja plenamente controlado da parte
muscular, mas evolua com lúpus discoide refratário.
Alternativamente, um paciente com miopatia como
manifestação lúpica provavelmente piorará também da sua
miopatia quando a pele entrar em atividade.
Quadro 3.7 - Resumo das características clínicas fundamentais para diferenciação
entre manifestações de doença primária e síndrome de sobreposição
A seguir, serão apresentadas as 2 síndromes de sobreposição
mais comuns e suas características clínicas.
3.6.1 Escleromiosite
Pacientes com manifestações de ES e PM são tão frequentes que
existem anticorpos descritos em associação com essa
combinação de doenças, como o anti-Pm/Scl e o anti-Ku. De
maneira geral, esses pacientes evoluem com quadro miopático
compatível com PM, ou seja, com fraqueza bastante importante
e grandes elevações de enzimas musculares. Do ponto de vista
da ES, as manifestações se referem mais aos fenômenos
periféricos, como esclerodactilia e ulcerações digitais. O quadro
pulmonar, quando presente, pode ser mais refratário do que se
observa nas MASs, trazendo consigo o comportamento mais
fibrótico da ES.
Pacientes com escleromiosite apresentam um desafio ao
reumatologista, pois a corticoterapia, a principal medida para o
tratamento das MASs, pode desencadear piora da ES. Neste
cenário, medidas possivelmente eficazes são a imunoglobulina
ou a inibição do linfócito B por terapia biológica.
3.6.2 Rhupus
A ocorrência de artrite erosiva na vigência de LES causa
estranheza ao reumatologista, uma vez que, tipicamente, com a
exceção da AR, as artrites nas DSTCs não são erosivas. Muitos
pacientes, contudo, evoluem com destruição articular e,
inclusive, positividade para fator reumatoide e anti-CCP. Esses
pacientes foram relatados por múltiplas vezes e a condição
tornou-se singular a ponto de receber um nome próprio: rhupus
(rheumatoid lúpus – lúpus reumatoide).
Pacientes com esta entidade costumam apresentar um quadro
refratário do ponto de vista articular, necessitando de terapias
múltiplas para controlar a sinovite. Considerando que os anti-
TNF são potencialmente perigosos no LES (ver item 3.3.1.6 sobre
lúpus induzido por droga), uma grande fatia das possibilidades
terapêuticas para a AR tradicional se perde. Uma possibilidade
frequentemente empregada, portanto, é o bloqueio do linfócito
B ou o bloqueio da coestimulação entre linfócito e célula
apresentadora de antígeno, com biológicos mais recentes.
Quais são as principais
vias fisiopatológicas pelas
quais se explicam as
manifestações clínicas
das doenças sistêmicas do
tecido conectivo?
Com esse capítulo é possível concluir que as doenças
sistêmicas do tecido conectivo se apresentam com
manifestações que podem ser enquadradas como
decorrentes de:
a) Deposição de imunocomplexos na circulação com
fenômenos vasculíticos;
b) Invasão dos tecidos por células inflamatórias com
ataque tecidual e celular direto;
c) Regeneração inadequada com proliferação de
colágeno e matriz extracelular de maneira patológica,
causando disfunção orgânica.
Clinicamente, como se
apresenta um paciente com
uma artropatia autoimune?

4.1 INTRODUÇÃO
As Artropatias Autoimunes (AAs) são entidades singulares na
Reumatologia e se referem a desordens principalmente do sistema
imune adaptativo, com uma fisiopatologia razoavelmente bem
definida que provoca manifestações clínicas particulares a esse
grupo de doenças.
A grande manifestação cardinal das AAs é justamente o
comprometimento sinovial, quase sempre muito exuberante do
ponto de vista inflamatório, com artrite muito agressiva e, quase
sempre, destrutiva. Frente a um paciente com manifestações
articulares predominando o quadro clínico, esse grupo de doenças
deve sempre ser aventado, especialmente se, ao exame físico, houver
nítida flogose.
Ademais, componentes periarticulares, especialmente aqueles
intimamente relacionado ao tecido sinovial, como as bainhas
tendíneas, as ênteses e as bursas, estarão frequentemente
acometidos em conjunto, ajudando a sugerir a etiologia.
As AAs são simbolizadas especialmente pelas espondiloartrites
(EpAs) e pela artrite idiopática juvenil (AIJ). Nesta obra, os autores
optaram por descrever a AIJ em um capítulo à parte, apenas pelas
suas características inerentes à infância (ver capítulo Doenças
reumáticas de início na infância). A Artrite Reumatoide (AR) é
geralmente classificada como uma Doença Sistêmica do Tecido
Conectivo (DSTC) pela sua fisiopatologia, contudo, mais
recentemente, com as terapias imunossupressoras mais modernas,
as manifestações clínicas mais viscerais da AR – que carregam
inerentemente consigo as facetas de conectivopatia – raramente
ocorrem, ficando a doença em um espectro clínico que a aproxima
muito mais das AAs. Pode-se dizer, portanto, que a AR carrega
consigo uma espécie de paradoxo clínico-fisiopatológico. Neste
capítulo, os autores abordarão a AR pelo seu prisma eminentemente
articular, que é, de fato, o mais importante ao clínico (devido à maior
prevalência). A AR como conectivopatia – portanto nas suas formas
menos frequentes, porém bem mais graves – foi abordada no
capítulo Doenças sistêmicas do tecido conectivo.
Do ponto de vista fisiopatológico, a artrite
reumatoide é mais entendida como doença
sistêmica do tecido conectivo, mas a
modificação da doença empreendida pelo
tratamento atual a torna clinicamente mais
semelhante às artropatias autoimunes.

4.2 FISIOPATOLOGIA
As AAs, como todas as doenças autoimunes, ocorrem como resultado
da perda do mecanismo de tolerância imune, gerando uma ativação
aberrante de células linfocitárias. Esse mecanismo é dependente de
fatores ambientais e genéticos. Os fatores genéticos envolvidos mais
importantes estão relacionados aos alelos do HLA (human leukocyte
antigen). No caso da AR, são HLAs mais frequentemente do tipo II –
representados, principalmente, por polimorfismos nos alelos HLA-
DR (Okada et al., 2014). No caso das EpAs, especialmente
polimorfismos relacionados aos HLA do tipo I – principalmente os
HLA B (Uchanska-Ziegler et al., 2013).
Para a compreensão do papel dos HLAs na gênese da doença é
importante compreender que esses indivíduos não apresentam
doença primária relacionada ao genoma em si. Não é que esses
indivíduos apresentem mutação que determina maior ou menor
função da proteína produzida. Na verdade, existem diversas
sequências de aminoácidos dispostas pelas populações do mundo
que são capazes de produzir cadeias totalmente normais e
funcionantes de HLA; ocorre apenas que algumas sequências em
especial são mais suscetíveis ao reconhecimento aberrante de
autoantígenos.
Outras vias de processamento genético e proteico (conhecidos como
fenômenos epigenéticos, como a metilação do DNA), além de vias
relacionadas à sinalização inflamatória provavelmente participam
também da gênese da doença (Liu et al., 2013). Sabe-se que esses
mecanismos não são somente herdados, mas, também, modulados
pelas diversas exposições ambientais. De maneira prática, pode-se
citar, por exemplo, que a exposição a determinadas bactérias causa
maior citrulinização (transformação de radicais proteicos de
arginina em citrulina) de proteínas no corpo (Koziel et al., 2014).
Proteínas citrulinadas, por sua vez, são fortes indutoras de resposta
imune; em um paciente com um fundo genético propenso à
autoimunidade, a ocorrência de maior quantidade de proteínas
citrulinadas pode servir como gatilho para a quebra da
imunotolerância. Outrossim, o consumo de cigarros também é
consistentemente identificado como relacionado à citrulinização
proteica (Makrygiannakis et al., 2008). Desta forma, fumar contribui
não só com a gênese, mas também com a perpetuação de todas as
formas de AAs.
É provável que as AAs também estejam relacionadas a agentes
infecciosos e a própria microbiota. Vários possíveis agentes são
sugeridos, inclusive micoplasma, vírus Epstein-Barr (EBV),
citomegalovírus, parvovírus e vírus da rubéola. Como comentado
anteriormente, existe o papel definido de citrulinização de proteínas
e consequente formação de anticorpos anticitrulina ou antipeptídio
C citrulinado, que contribuem para o desenvolvimento de AR e para o
surgimento de doença mais agressiva. A citrulinização ocorre na
mucosa oral na presença de Porphyromonas gengivais, encontrada
nas periodontites. Possivelmente, a mucosa do intestino também
está envolvida. No caso das espondiloartrites, acredita-se que o
desbalanço da microbiota intestinal possa causar a ruptura das
barreiras epiteliais, levando as células linfoides locais a ficarem
constantemente ativadas, culminando com autoimunidade em
indivíduos susceptíveis (Jethwa; Abraham, 2017).
Independentemente dos mecanismos relacionados ao gatilho das
doenças, as AAs possuem disfunções semelhantes nas vias de
resposta linfocitária. De maneira ampla, indivíduos com AA terão
uma estimulação aberrante e consistente das vias Th1 e Th17. Como
visto no capítulo Noções gerais de imunologia, a via Th1 culmina na
liberação de citocinas como os TNF (tumoral necrosis factor) e o IFN
(interferon)-gama. O efeito final de uma via Th1 hiperestimulada
será a ativação aberrante e perene de fagócitos (especialmente
macrófagos), com grande reação celular local e destruição dos
tecidos adjacentes. Quando esse fenômeno ocorre na articulação,
haverá exuberante inflamação sinovial (com flogose e
hiperproliferação celular sinovial) e eventual formação de pannus
articular (aumento da espessura da membrana sinovial, com aspecto
borrachudo ao toque). Com a persistência do fenômeno autoimune,
erosões ósseas periarticulares passarão a ocorrer, não só pela
destruição óssea em si, mas também pela regulação negativa que as
citocinas imprimem sobre o metabolismo ósseo, aumentando a
ativação dos osteoclastos (Lam et al., 2000). Essa via explica a alta
chance de sequela articular nos pacientes com AA, uma manifestação
cardinal desse grupo de doenças.
Pela ação negativa sobre o metabolismo ósseo,
indivíduos com artropatias autoimunes têm
chance muito aumentada de osteoporose.
A resposta Th17, por sua vez, apresenta 2 possíveis caminhos, a
depender das citocinas com as quais dialoga e com os fatores de
transcrição envolvidos na resposta imune aberrante. Se, por um
lado, a resposta Th17 cursar com estimulação de linfócitos B via IL-
6, o resultado esperado será grande produção de anticorpos, muitos
deles autorreativos, com as consequências esperadas das condições
reumáticas com alta carga de resposta humoral, como citotoxicidade
por opsoninas (levando às citopenias) e manifestações vasculíticas.
Essa vertente da resposta imune é familiar às DSTCs e incomum nas
AAs, mas pode ocorrer na AR, devido à sua ligação com as
conectivopatias (neste caso, essa fisiopatologia gerará sintomas que
são abordados no capítulo Doenças sistêmicas do tecido conectivo).
Muito mais relacionada às AAs está o braço da resposta Th17 que
dialoga com as citocinas IL 17, IL-22 e IL-23. Nessa condição, a
resposta imune é muito mais celular do que humoral e gera ativação
de fagócitos com inflamação tecidual direta. O resultado é uma
resposta semelhante à Th1, com infiltração do tecido sinovial por
células inflamatórias. A resposta Th17 é muito importante nos
tecidos periarticulares (especialmente nas ênteses), que parecem ser
mais sensíveis à IL-23 e IL-17 do que aos TNF (Sherlock et al., 2012).
Outro fator importante da resposta Th17 é a capacidade não só de,
assim como o TNF, induzir perda óssea pelo aumento da
osteoclastogênese, mas, também, promover proliferação óssea por
sua ação no tecido mesenquimal periosteal (Gravallese; Schett,
2018). Deste modo, pacientes com uma ativação exacerbada da via
Th17 podem cursar também com neoformação óssea. Clinicamente,
este fenômeno pode ser observado na formação de sindesmófitos,
tão frequentes nas EpAs axiais.
Artropatias autoimunes são condições
reumáticas em que há disfunção imune com
participação do sistema imune adaptativo,
cursando com comprometimento articular
erosivo como principal achado clínico,
associado ao acometimento periarticular.
4.3 ARTRITE REUMATOIDE (COMO
ARTROPATIA AUTOIMUNE)
A AR é uma condição singular na Reumatologia, espraiando-se por
quase todas as vias fisiopatológicas linfocitárias. Enquanto
conectivopatia, cursa com inflamação tecidual, deposição de
imunocomplexos e reparação inadequada com deposição colagênica
cicatricial. Nesta faceta, encontram-se as manifestações mais
viscerais da AR, como a síndrome de Felty, a vasculite reumatoide e a
pneumopatia intersticial. Como DSTC, a AR pode inclusive servir de
doença-base para uma segunda colagenose, como no caso da
síndrome de Sjögren secundária ou mesmo da síndrome
antifosfolípide secundária; ademais, também podem ocorrer
sobreposições com outras doenças, como com lúpus eritematoso
sistêmico. Essa face da AR foi explorada no capítulo Doenças
sistêmicas do tecido conectivo, dada a discussão que se fez naquele
capítulo sobre os mecanismos fisiopatológicos das conectivopatias.
Porém, do ponto de vista clínico, a AR se comporta muito mais como
uma AA, especialmente na abertura da doença. É provável que esse
fenômeno seja explicado pela disfunção imune com “assinatura”
Th1 presente na AR e pouco comum nas DSTCs. Pode-se especular
que a AR se inicia como uma disfunção primordialmente Th1 que
progride com os anos até a sua maturidade patológica final, como
DSTC. Como os regimes de terapia para AR avançaram muito nas
últimas décadas, atualmente é infrequente que os pacientes
cheguem a revelar doença mais visceral. Deste modo, a face da AR
que a aproxima das AAs é a mais importante à maioria dos clínicos.
Como a terapia-alvo é a regra na Reumatologia atualmente, para a
doença exclusivamente articular e periarticular, a AR é mais bem
manejada quando vista de maneira simplificada como uma
artropatia autoimune. Para os quadros mais sistêmicos, a terapia
deve se voltar às suas raízes nas doenças sistêmicas do tecido
conectivo.
A seguir, esta obra se dedicará aos aspectos mais importantes da AR
quando vista por seu prisma de artropatia autoimune.
4.3.1 Epidemiologia
A AR é uma doença mundial que afeta todas as etnias, com
prevalência de cerca de 0,5 a 1% da população, com predomínio de
acometimento em mulheres (2,5 a 3 vezes maior do que em
homens), e aumento com a idade. A diferença entre sexos diminui na
faixa etária mais elevada. Em mulheres, o início acontece durante a
quarta e a sexta década de vida, com 80% de todos os pacientes
acometidos com idade entre 35 e 50 anos. Em homens, tende a
ocorrer um pouco mais tardiamente, durante a sexta e a oitava
década de vida. Contudo, a doença é bem descrita em todas as faixas
etárias.
A AR causa aumento da mortalidade e é responsável por grande
morbidade. Pelo fato de acometer indivíduos em idade produtiva e
potencialmente causar danos articulares irreversíveis, essa patologia
gera altos custos para esses pacientes e a sociedade.
A artrite reumatoide é a doença imunomediada
mais prevalente da Reumatologia.

Como a AR possui contribuição genética para sua patogênese (ver


anteriormente), ela acomete 4 vezes mais os parentes de primeiro
grau de outros pacientes com AR do que a população geral.
Aproximadamente 10% dos pacientes com AR terão um parente de
primeiro grau acometido. Entretanto, há concordância de apenas 12
a 15% em gêmeos monozigóticos, demonstrando claramente a
participação de outros fatores. A maioria dos pacientes, contudo, não
consegue trazer à anamnese história familiar significativa.
4.3.2 Manifestações articulares
Caracteristicamente, a AR é uma doença crônica e progressiva, com
início insidioso, acompanhada de sintomas constitucionais
inespecíficos, como fadiga, anorexia, fraqueza generalizada, perda
de peso e febre baixa. No início, os sintomas musculoesqueléticos
são vagos até o aparecimento da sinovite. Esse quadro prodrômico
pode persistir durante semanas ou meses e dificultar o diagnóstico.
Os sintomas específicos com frequência surgem de modo gradual em
várias articulações, especialmente mãos, punhos, joelhos e pés, de
forma simétrica: artralgia inflamatória, que é pior após longos
períodos de repouso, com melhora ao movimento, edema e
espessamento articular, além de rigidez matinal prolongada (mais
de 1 hora de duração). A rigidez matinal por mais de 1 hora de
duração é característica quase invariável de artrite inflamatória e
pode ser útil na distinção de outras patologias não inflamatórias.
Esse quadro típico ocorre em cerca de 2 terços dos pacientes. Em
cerca de 10% dos casos, o quadro clínico inicial é mais agressivo,
com o surgimento rápido de poliartrite, comumente acompanhada
por sintomas constitucionais. Em cerca de 30% dos pacientes, os
sintomas podem ser limitados no início a uma ou algumas
articulações. O padrão simétrico é o mais frequente, embora o
padrão de envolvimento articular possa permanecer assimétrico em
alguns pacientes.
O padrão clássico de acometimento articular na AR é o envolvimento
de grandes e pequenas articulações de membros inferiores e
superiores, de forma simétrica, atingindo caracteristicamente
pequenas articulações das mãos (metacarpofalangianas e
interfalangianas proximais), metatarsofalangianas (MTFs), punhos,
joelhos, cotovelos, tornozelos, quadris e ombros, em geral nessa
ordem de aparecimento (pequenas para grandes). O tratamento
instituído precocemente pode limitar o número de articulações
acometidas.
O quadro clínico da AR envolve dor articular,
com piora ao repouso e melhora ao movimento,
rigidez matinal superior a 1 hora, edema e
espessamento articular.

As mãos são o principal local de acometimento na grande maioria


dos pacientes. Esse acometimento é mais habitual nos punhos, nas
articulações metacarpofalangianas (MCFs) e nas interfalangianas
proximais (IFPs – Figura 4.1). As interfalangianas distais (IFDs)
geralmente são poupadas, o que ajuda a distinguir a AR da
osteoartrite e da artrite psoriásica, em que essas podem ser
acometidas. A dor e o edema nessas articulações causam limitação
funcional, com menor uso das mãos, levando à atrofia de músculos
interósseos (Figura 4.2) e ao achado clássico de alargamento de
punhos com atrofia muscular. O envolvimento das MCFs pode
provocar dor e edema difuso nessas articulações, mas quadros
iniciais podem ser percebidos apenas pela compressão laterolateral
(teste de squeeze) da segunda à quinta MCF, desencadeando dor.
Anéis que não passam pelas IFPs são uma queixa frequente, devido
ao edema.
À medida que a doença evolui, as articulações sofrem desvios
característicos, como o desvio ulnar das MCFs, o desvio radial e,
posteriormente, volar (anterior) do punho. Nos quirodáctilos,
podem ocorrer ainda deformidades “em pescoço de cisne”, com
hiperextensão da IFP e flexão da IFD (Figura 4.3), dedos “em
botoeira” (boutonnière – Figura 4.4) por hiperextensão da MCF e
flexão da IFP, e polegar “em Z”, pela subluxação da primeira MCF e
da interfalangiana. Embora quadros muito iniciais possam reverter,
a AR costuma provocar destruição articular, com limitações e
desvios articulares fixos.
Figura 4.1 - Sinovite (inflamação) das articulações interfalangianas proximais (dedo “em
fuso”)
Figura 4.2 - Mão reumatoide: exuberante atrofia da musculatura interóssea e cisto sinovial
no dorso da mão direita
Figura 4.3 - Deformidade em extensão das interfalangianas proximais e em flexão das
interfalangianas distais, caracterizando dedos “em pescoço de cisne” em paciente com
artrite reumatoide
Nota: perceba o aumento de volume das metacarpofalangianas.

Figura 4.4 - Deformidade “em botoeira”, por hiperextensão da metacarpofalangiana e


flexão da interfalangiana proximal
Fonte: Prashanthns, 2005.

Com as novas terapias para AR, esse painel de


deformidades descrito é cada vez mais
incomum. Apesar disso, algumas provas ainda
cobram as nomenclaturas dos achados no
exame físico.

O acometimento dos cotovelos, com sinovite dessa articulação, pode


ser precoce e levar à contratura em flexão. Nos pés, as articulações
mais acometidas são as MTFs. A avaliação de edema nesse local é
difícil, mas o teste de squeeze (compressão laterolateral conjunta de
todas as MTFs) ajuda muito ao desencadear dor. A progressão do
acometimento dessas articulações pode provocar subluxação plantar
das cabeças dos metatarsos, alargamento do antepé, hálux valgo,
desvio lateral e subluxação dorsal dos dedos do pé. Isso é causa de
grande incômodo por provocar úlceras plantares e nas regiões
dorsais nos dedos encurvados. Artrite de tornozelos e de articulações
do tarso também podem ocorrer e produzir dor intensa ao
deambular. Outra causa de dor é a formação de ulcerações cutâneas,
consequentes da subluxação das MTFs e da diminuição dos coxins
gordurosos. A eversão de tornozelos por fraqueza de tibiais
posteriores é comum, e as erosões radiográficas são vistas mais
precocemente nos pés que nas mãos.
Joelhos, quadris e ombros também podem ser acometidos. O
comprometimento costuma ser simétrico e afetar cada articulação
como um todo, em toda a superfície articular. Nos joelhos, isso ajuda
a diferenciar a AR (em que os compartimentos medial e lateral são
igual e gravemente acometidos) da osteoartrite (em que,
geralmente, um dos compartimentos é mais atingido). O joelho
desenvolve hipertrofia sinovial, derrame articular crônico e
frouxidão ligamentar. Herniação posterior da membrana sinovial
por meio da cápsula articular forma um cisto poplíteo (cisto de
Baker), que pode levar à sensação de plenitude, dor e compressão de
estruturas poplíteas. Seu rompimento provoca inflamação, com
edema e muita dor na perna, podendo simular tromboflebite ou
trombose venosa profunda. O diagnóstico diferencial é feito pela
ultrassonografia com Doppler da região, que afasta trombose venosa
e mostra o cisto roto com grande edema de partes moles.
O comprometimento articular na AR costuma
ser simétrico e afetar toda a superfície articular
(diferentemente da osteoartrite).

Virtualmente, qualquer articulação sinovial pode ser atingida, como


as articulações temporomandibulares (ATMs), esternoclaviculares e
cricoaritenoides, que podem ser acometidas com menos frequência,
sobretudo em casos de doença grave e de longa duração. O
envolvimento das cricoaritenoides pode provocar sensação de
plenitude na garganta, disfagia, rouquidão, dor na região cervical
anterior e estridor.
Na coluna, o acometimento geralmente é cervical alto e, na maioria
dos casos, assintomático, diferentemente das espondiloartrites, que
podem acometer toda a coluna, com dor espinhal inflamatória
(sobretudo lombar). O envolvimento da coluna torácica, sacroilíaca e
lombar é improvável e deve sugerir outro diagnóstico. Em pacientes
com doença de longa duração, pode ocorrer subluxação atlantoaxial
(desvio entre a primeira e a segunda vértebra cervical). Esse
comprometimento ocorre porque a articulação atlantoaxial é
sinovial e, portanto, suscetível ao processo inflamatório da AR. A
subluxação atlantoaxial pode levar à compressão medular, com dor,
parestesias e perda de força nos membros, até tetraplegia. Trata-se
de comprometimento grave e de urgência neurocirúrgica.
Dor e disfunção também podem ser causadas por compressão de
nervos periféricos em áreas de sinovite. O local mais comum é o
punho, que desenvolve síndrome do túnel do carpo (compressão do
nervo mediano), com parestesias na face palmar das mãos,
poupando o lado medial do quarto e quinto quirodáctilos. Outras
síndromes compressivas incluem a síndrome do canal de Guyon e a
síndrome do túnel do tarso.
Tenossinovites, com inflamação dos tendões e das suas bainhas
sinoviais, são comuns também nas mãos e pés, principalmente no
dorso, e são diferenciais do acometimento articular (Figuras 4.5 e
4.6). A persistência da inflamação pode levar a roturas de tendões
com grande perda funcional.
Figura 4.5 - Bainhas tendíneas da face lateral do tornozelo e pé
Fonte: adaptado de Henry Gray, 1918.

Figura 4.6 - Bainhas tendíneas (verdes) do dorso da mão


Fonte: adaptado de Alila Medical Media.

Cistos sinoviais podem ocorrer perto de qualquer articulação


acometida, por herniação da membrana sinovial através da cápsula
articular sob pressão de líquido sinovial e deformidades que alteram
os vetores articulares, como acontece principalmente no dorso dos
punhos e das mãos e no joelho, no caso do cisto de Baker.
4.3.3 Manifestações extra-articulares
A maior parte das manifestações extra-articulares da AR se devem à
sua fisiopatologia relacionada às DSTCs. Portanto, decorrem ou de
produção de anticorpos com formação de imunocomplexos –
levando à destruição celular ou aos fenômenos vasculíticos –, ou de
ativação linfofagocitária com inflamação tecidual direta ou de
expansão colagênica com formação cicatricial. Todas essas situações
clínicas dependem de forte correlação com a IL-6, a IL-17 e a IL-21 e
foram abordadas devidamente no capítulo Doenças sistêmicas do
tecido conectivo. Resta a este capítulo as manifestações extra-
articulares da AR mais relacionadas à via Th1, incomum às DSTCs.
4.3.3.1 Nódulos reumatoides

Nódulos reumatoides ocorrem em 30% das pessoas com AR e são


encontrados em estruturas periarticulares, superfícies extensoras ou
outras áreas expostas à pressão mecânica. Locais comuns incluem a
bursa do olecrânio, a face extensora proximal do antebraço e dos
dedos, o tendão de Aquiles e o occipício (Figura 4.7). Também podem
ocorrer em outras regiões, como coração, pulmões, pleura, olhos e
meninges. Variam em tamanho e consistência, são raramente
sintomáticos, podendo infectar-se após trauma local, e ocorrem
quase exclusivamente em pacientes com fator reumatoide positivo. A
avaliação anatomopatológica revela uma área central de necrose
rodeada por células linfomonocíticas que se organizam em meio a
tecido fibrótico, dando o aspecto de um granuloma. A principal
resposta envolvida neste padrão de inflamação é provavelmente a
resposta Th1 (Hessian et al., 2003).
Figura 4.7 - Artrite reumatoide
Nota: podem-se notar múltiplos nódulos reumatoides nas faces extensoras dos dedos.
Fonte: Sue McDonald.

Raramente, o uso de metotrexato pode


aumentar ou acelerar o desenvolvimento dos
nódulos reumatoides, provocando a síndrome
de hipernodulose, que pode ocorrer
independentemente do bom controle articular.

4.3.4 Diagnóstico
O diagnóstico de AR é baseado especialmente nas manifestações
clínicas e no exame físico. Alguns achados laboratoriais podem
auxiliar na confirmação da suspeita e os dados de imagem são
razoavelmente típicos dentro de um contexto adequado.
4.3.4.1 Exames laboratoriais
Não existe marcador diagnóstico isoladamente confirmatório para
AR, mas o Fator Reumatoide (FR) é o marcador mais importante.
Trata-se de uma imunoglobulina M contra a fração Fc da
imunoglobulina G, sendo encontrado em 70 a 80% dos pacientes
com a doença, na forma estabelecida (Hochberg, 2018). A presença
de FR, contudo, não é específica para AR e é encontrada em 5% das
pessoas saudáveis, aumentando a sua frequência com o avançar da
idade (10 a 20% de indivíduos acima de 65 anos). Além disso, outras
doenças crônicas com estimulação persistente do sistema
imunológico são associadas à presença do FR: lúpus eritematoso
sistêmico, síndrome de Sjögren (maiores títulos encontrados),
hepatopatia crônica, sarcoidose, fibrose pulmonar intersticial,
mononucleose infecciosa, hepatite B, tuberculose, hanseníase,
sífilis, endocardite bacteriana subaguda, leishmaniose visceral,
esquistossomose, malária e crioglobulinemia.
É pertinente a pesquisa de FR nas seguintes
suspeitas clínicas: artrite reumatoide, síndrome
de Sjögren e vasculite crioglobulinêmica.

O FR pode surgir transitoriamente em indivíduos normais depois de


vacinação ou transfusão e ser encontrado em parentes de indivíduos
com AR. Sua presença dissociada de achados clínicos compatíveis
não estabelece o diagnóstico e tem baixo valor preditivo de
desenvolvimento de doença. Menos de 1 terço de pacientes com FR
positivo terá o diagnóstico de AR. A presença de FR nos pacientes
com AR clinicamente observada pode ter significado prognóstico,
pois pacientes com títulos elevados tendem a ter doença articular
mais grave e progressiva, associada a manifestações extra-
articulares, principalmente nódulos ou vasculite.
Pela alta positividade em pessoas normais ou
com condições clínicas não associadas, não se
deve solicitar a pesquisa de fator reumatoide
sem suspeita clínica que o justifique, por risco
de investigações adicionais desnecessárias.

Como discutido na fisiopatologia, anticorpos contra proteínas


citrulinadas fazem parte do mecanismo de doença na AR. Os
anticorpos contra os peptídeos cíclicos citrulinados (ACCP) podem
ser pesquisados por ELISA (enzyme-linked immunosorbent assay) e
também funcionam como biomarcadores. Os ACCP apresentam
sensibilidade de 70 a 75%, especificidade de 95% e estima-se que
cerca de 20 a 25% dos pacientes com FR negativo serão positivos
para ACCP (Nishimura et al., 2007). Pela sua alta especificidade, pode
ajudar nos casos clinicamente duvidosos, mas o seu custo é alto e, no
Brasil, nem sempre é disponível pela rede de saúde suplementar.
Assim como o FR, os títulos do ACCP parecem se relacionar com a
gravidade de doença.
Recentemente, anticorpos antivimentina citrulinada mutada
(AMCV) foram descritos, aumentando ainda mais a porção de
pacientes considerados soropositivos (Luime et al., 2010). Porém,
deve-se considerar que cerca de 10% dos pacientes com AR serão,
ainda, soronegativos para todos os anticorpos.
Existem diversos exames adicionais inespecíficos. A anemia
normocrômica normocítica é frequente na doença ativa, refletindo
eritropoese inefetiva. Em geral, a anemia e a plaquetose
correlacionam-se com atividade. A linhagem branca geralmente não
se altera, mas pode ocorrer discreta leucocitose. Na presença de
neutropenia, considerar o diagnóstico da síndrome de Felty (ver
capítulo Doenças sistêmicas do tecido conectivo).
A velocidade de hemossedimentação (VHS) é aumentada em quase
todos os pacientes com AR ativa, bem como a proteína C reativa
(PCR). Ambos os biomarcadores podem ser usados na monitorização
ao longo do tratamento e fazem parte dos escores internacionais de
atividade de doença.
O complemento total e suas frações (CH100, C3 e C4) costumam
estar normais (ou mesmo elevados). Contudo, na presença de
vasculite, há consumo de complemento – explicado pela
fisiopatologia envolvida, descrita no capítulo Doenças sistêmicas do
tecido conectivo – e esse biomarcador torna-se uma ferramenta
diagnóstica muito importante.
A análise do líquido sinovial confirma a presença de artrite
inflamatória inespecífica, não sendo fundamental para o diagnóstico
da doença. O líquido é normalmente turvo e com viscosidade
reduzida. A contagem de leucócitos varia entre 5 e 50.000
células/mL, com predomínio de polimorfonucleares. Uma contagem
acima de 2.000 células/mL com mais de 75% de polimorfonucleares
é altamente característica de artrite inflamatória, embora não seja
diagnóstica de AR.
Faz-se necessária a solicitação de outros exames, como sorologias
virais (parvovírus B19, hepatite B e hepatite C) em pacientes com
poliartrite inflamatória de início recente, especialmente com menos
de 6 semanas, e com FR e anti-CCP negativos. Em casos duvidosos, a
análise do líquido sinovial contribui para a exclusão do diagnóstico
de artrite microcristalina ou artrite infecciosa.
4.3.4.2 Exames de imagem

Nenhum exame radiográfico é patognomônico de AR. As radiografias


convencionais são o método mais utilizado na avaliação por imagem
do dano estrutural articular na AR. Os sinais radiográficos mais
precoces são edema de partes moles e osteopenia justa-articular. A
perda de cartilagem articular (redução do espaço articular) e as
erosões ósseas (sinal muito específico de doença) desenvolvem-se
depois de meses de atividade contínua. A avaliação radiológica
permite determinar a extensão da destruição das cartilagens e da
erosão óssea produzida pela doença (particularmente quando se
tenta estimar a agressividade desta) e definir o momento de eventual
intervenção cirúrgica.
As erosões (Figura 4.8) são razoavelmente características na AR e
são extremamente importantes para o diagnóstico. Elas acontecem
como soluções de continuidade na superfície articular e devem ser
pesquisadas nas articulações tradicionalmente acometidas, que são
as mãos e os pés. As alterações radiológicas nos pés costumam ser
mais precoces que as das mãos. Com a evolução da doença, ocorre
osteoartrite secundária (Figura 4.9), com perda acentuada e
simétrica do espaço articular, e intensa esclerose subcondral. Os
desvios ósseos e as subluxações ficam aparentes, e pode haver
grande destruição óssea.
Figura 4.8 - Punho de paciente com artrite reumatoide

Legenda: setas vermelhas mostram as erosões ósseas (discretas e de difícil visualização


sem lente de aumento ou zoom em aparelho digital).
Fonte: arquivo pessoal do dr. Jean Souza.
Figura 4.9 - Joelho na artrite reumatoide
Nota: redução acentuada do espaço articular, de forma simétrica (envolvendo os 2
compartimentos), com muita esclerose subcondral e irregularidades na superfície da
articulação.

A ultrassonografia (USG) e a Ressonância Magnética (RM) são


capazes de detectar alterações mais precocemente por apresentarem
maior sensibilidade para detecção de dano estrutural articular que a
radiografia.
A RM ganha particular importância na diferenciação entre processos
articulares e periarticulares (como comprometimento de bursas e
bainhas tendíneas). A USG, por sua vez, ganhou muita força nos
últimos anos, sendo utilizada com frequência pelos reumatologistas
como ferramenta de diagnóstico e monitorização. É capaz de avaliar
erosões com bastante sensibilidade e a possibilidade do uso do Power
Doppler permite ao médico avaliar a vascularização da sinóvia,
achado que se relaciona com o grau de inflamação e, portanto, de
atividade de doença (Szkudlarek et al., 2003).
4.3.4.3 Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da AR inclui osteoartrite (sem componente


inflamatório intenso, acomete IFDs e poupa MCF e punhos), artrite
reativa (oligoartrite predominante de membros inferiores, com
entesites, dactilites e envolvimento inflamatório axial), artrite
psoriásica (pode assemelhar-se bastante à AR, principalmente se
tiver o mesmo padrão de distribuição – pode acometer esqueleto
axial e IFDs e, na maioria dos casos, tem FR negativo, na presença de
lesão cutânea típica de psoríase), gota tofácea, lúpus eritematoso
sistêmico, síndrome de Sjögren, pseudogota e polimialgia reumática.
Ademais, síndromes virais podem causar artrite com 2 a 4 semanas
de duração, como os vírus da hepatite com formas agudas, HIV, vírus
Epstein-Barr, citomegalovírus, parvovírus e rubéola. Finalmente, o
vírus da hepatite C pode cursar com formas crônicas de artropatia e
entra como diferencial importante de AR.
4.3.4.4 Critérios diagnósticos
Conforme reiterado anteriormente, não existe achado
patognomônico de AR. O diagnóstico baseia-se nos achados clínicos,
laboratoriais e radiográficos e na exclusão de outras doenças. Na
maioria dos pacientes, a doença apresenta as características típicas
em 1 a 2 anos após seu início. O quadro típico de poliartrite
inflamatória simétrica que envolve pequenas e grandes articulações
em extremidades superiores e inferiores é sugestivo do diagnóstico.
Características constitucionais indicativas da natureza inflamatória
da doença, como rigidez matinal, reafirmam a suspeita. Nódulos
subcutâneos são achados diagnósticos importantes. Associados a
esses fatores, a presença do FR e os achados radiológicos de
desmineralização justa-articular e erosões ósseas sugerem
fortemente o diagnóstico.
Como de costume, os autores desta obra e a maioria dos
reumatologistas desaconselha o uso de critérios classificatórios na
prática clínica, mas estes são essenciais na prática científica e,
infelizmente, ainda são alvo de questões em muitas provas de
concursos médicos. Atualmente, utilizamos os critérios
classificatórios de AR publicados em 2010 pelo ACR/EULAR
(American College of Rheumatology/European League Against
Rheumatism – Quadro 4.1).
Quadro 4.1 - Critérios classificatórios do American College of Rheumatology/European
League Against Rheumatism (2010)
Nota: pontuação ≥ 6 necessária para classificação definitiva de paciente com AR.
1 Os diagnósticos diferenciais podem incluir condições como lúpus eritematoso sistêmico,
artrite psoriásica e gota. Se houver dúvidas quanto aos diagnósticos diferenciais
relevantes, um reumatologista deve ser consultado. Pacientes com doença erosiva típica
de AR e aqueles com doença de longa data, mesmo se inativa no momento (com ou sem
tratamento), e que anteriormente preencheram os critérios apresentados, são classificados
como portadores de AR.
Fonte: adaptado de 2010 Rheumatoid arthritis classification criteria: an American College
of Rheumatology/European League Against Rheumatism collaborative initiative, 2010.

4.3.5 Seguimento
O acompanhamento do paciente é feito em cada consulta por meio de
índices compostos de atividade clínica, sendo o DAS ou DAS28
(Disease Activity Score) o mais utilizado. Esse escore conta
articulações edemaciadas e dolorosas, além de ter uma pontuação
global do paciente para a doença e valores de PCR ou VHS. Os exames
radiográficos de mãos, punhos e pés devem ser repetidos
anualmente a fim de avaliar a progressão ou não da doença.
As metas do tratamento da AR são o alívio da dor, a redução da
inflamação, a proteção das estruturas articulares, a preservação
articular e o controle de envolvimento sistêmico. Nenhuma das
intervenções terapêuticas é curativa, mas após alguns anos de
doença a maior parte dos pacientes apresentará relativo controle,
sendo frequentemente possível a suspensão ou, ao menos, redução
dos imunossupressores.
O diagnóstico e o início precoce do tratamento são fundamentais
para o controle da atividade da doença, assim como também
previnem a incapacidade funcional e lesões articulares irreversíveis,
prejudicando a qualidade de vida.
Os pacientes devem ser avaliados antes do início do tratamento, com
hemograma, creatinina, AST/ALT, VHS e PCR. Antes do início dos
imunossupressores, devem ser solicitadas as sorologias para
hepatites virais, até mesmo pelo valor no diagnóstico diferencial.
Indivíduos que farão uso dos imunossupressores biológicos devem
ser investigados para tuberculose com a realização de radiografia de
tórax e PPD (derivado de proteína purificada). Os IGRA (interferon
gamma release assay) são métodos mais caros e menos disponíveis,
porém mais específicos para diagnóstico de tuberculose latente e
podem também ser utilizados. Se o paciente sem tuberculose ativa
(se tiver tuberculose ativa deverá primeiramente tratar a doença) ou
epidemiologia positiva (se tiver epidemiologia positiva deverá
receber profilaxia independentemente de exames) apresentar sinais
sugestivos à radiografia, PPD > 5 mm ou IGRA positivo, deverá
receber quimioprofilaxia com isoniazida 300 mg/d por 6 meses. De
maneira geral, os reumatologistas aguardam de 2 a 4 semanas para
iniciar o biológico após o início da profilaxia, mas dados do Centers
for Disease Control and Prevention (CDC) permitem que seja iniciado
tão logo o paciente esteja em uso da isoniazida (Winthrop et al.,
2005).
4.3.5.1 Anti-Inflamatórios Não Hormonais (AINHs) e corticoides

Os AINHs têm ação analgésica e anti-inflamatória, mas não alteram


o curso da doença nem previnem a destruição articular. Não devem
ser usados isoladamente no tratamento da AR. O uso contínuo e em
dose máxima é indicado quando a AR está em franca atividade, como
artifício sintomático, sendo após retirado (ou deixado como resgate
apenas). Não há diferença de eficácia entre os diversos AINHs.
De maneira geral, os corticoides podem ser utilizados no controle da
dor e do processo inflamatório, enquanto se aguarda a ação das
medicações modificadoras do curso de doença. São também
ferramentas úteis nas formas ameaçadoras como as esclerites graves
e na vasculite reumatoide (o seu uso nessas condições foi abordado
no capítulo Doenças sistêmicas do tecido conectivo). Nos quadros
exclusivamente articulares são utilizados sempre em baixas doses
(até 15 mg/d de prednisona, ou equivalente) e pelo menor tempo
possível. Existem evidências de que os corticoides poderiam ser
participantes na modificação do curso da doença, porém seu uso
crônico pode causar diversos efeitos adversos, como osteoporose,
sangramento no trato gastrintestinal, diabetes, infecções e catarata.
Em pacientes que farão uso de corticoides por mais de 3 meses,
indica-se a suplementação de cálcio e vitamina D e a avaliação de
benefício de terapia para osteoporose induzida por glicocorticoide
(ver capítulo Doenças dos ossos e cartilagens). Por fim, o uso de
corticoide intra-articular pode promover alívio sintomático
transitório em casos de mono ou oligoartrites persistentes.
4.3.5.2 Medicamentos Modificadores de Curso de Doença (MMCDs)

Todas as recomendações sugeridas a seguir estão em consenso com


as recomendações do ACR/EULAR de 2017 para manejo da AR
(Smolen et al., 2017) e do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas
do Ministério da Saúde de 2019 (http://conitec.gov.br). Neste
capítulo, as indicações de tratamento são voltadas às manifestações
articulares e periarticulares da AR. A terapia indicada para os casos
sistêmicos e viscerais de AR está descrita no capítulo Doenças
sistêmicas do tecido conectivo.
Todos os pacientes com AR são candidatos ao uso de MMCDs (ou, do
inglês, Disease-Modifying Anti-Rheumatic Drugs – DMARD), pois
estas têm a capacidade de reduzir e prevenir o dano articular,
preservando a integridade e a função articulares. Tratam-se de
imunossupressores e imunomoduladores e podem ser sintéticos ou
biológicos (globulinas ou receptores criados por engenharia
genética). No grupo das drogas sintéticas, podem ser de amplo
espectro (sintéticos convencionais) ou com alvo específico (no caso
das pequenas moléculas, como os inibidores de janusquinase – JAK).
O início das MMCDs deve ocorrer o mais cedo possível, tão logo haja
segurança para tal. As mais comumente utilizadas no tratamento
incluem o metotrexato, antimaláricos (difosfato de cloroquina,
hidroxicloroquina), sulfassalazina, leflunomida e os agentes
biológicos. O benefício do tratamento com MMDC ocorre de semanas
a meses após o seu uso. Mais de 60% dos pacientes apresentam
melhora significativa como resultado da terapia com qualquer um
desses agentes. Há também melhora dos exames de atividade
inflamatória.
O metotrexato (MTX) é classicamente a MMDC de escolha como
droga inicial e essa indicação sobrevive às mais diversas provas do
tempo há décadas. Mesmo com centenas de estudos e dezenas de
drogas disponíveis, todos os consensos e diretrizes continuam
recomendando o MTX como droga inicial. A maioria dos pacientes
controlará a sua doença apenas com essa medicação. O MTX possui
início relativamente rápido de ação, grande eficácia e posologia
conveniente pelo uso semanal. A dose é de 10 a 25 mg/sem, por via
oral ou subcutânea. A biodisponibilidade é maior por via parenteral e
a chance de efeitos colaterais (náusea, sonolência, dispepsia e
tontura) é menor. O uso de ácido fólico (na dose de 5 mg/sem) pode
também reduzir os efeitos colaterais. Apesar de incomum, o MTX
está associado a pneumopatia, desse modo, seu uso deve ser feito
com cautela em pacientes com AR e manifestações pulmonares.
Disfunção renal grave (clearance de creatinina < 30 mL/min) ou
disfunção hepática grave contraindicam o seu uso.
A falta de resposta a um agente geralmente indica a associação de
outro (desde que o medicamento inicial seja bem tolerado). São
comuns as associações de antimaláricos, sulfassalazina e MTX
(tripla terapia), antimaláricos, leflunomida e MTX ou, ainda, agentes
biológicos com MTX . Segundo as diretrizes mais recentes de
tratamento da AR, é possível a associação de qualquer medicação
sintética (e qualquer biológico anti-TNF) ao MTX como segunda
linha de tratamento (Smolen et al., 2017).
#IMPORTANTE
Na falta de resposta à dose máxima de
metotrexato (25 mg/sem), esta obra recomenda
a associação de leflunomida (20 mg/d) ao
metotrexato ou terapia anti-TNF (qualquer um).

De maneira geral, entende-se que o clínico internista saiba manejar


uma AR inicial, sendo indicado encaminhamento ao reumatologista
quando ocorre falha terapêutica. Deste modo, esta obra entende que
não seja frutífero ao generalista aprofundamento na farmacologia e
indicações precisas das diversas drogas disponíveis para o
tratamento da AR. De todo modo, o Quadro 4.2 resume de maneira
sucinta as principais drogas utilizadas atualmente no manejo da AR.
Quadro 4.2 - Principais medicações utilizadas atualmente no manejo da artrite reumatoide
Fonte: elaborado pelo autor.

4.3.5.3 Fisioterapia e exercícios físicos

Essas formas de tratamento têm importante papel em todas as fases


da doença. Exercícios passivos ajudam a prevenir ou minimizar a
perda de função, e exercícios resistidos aumentam a força muscular,
contribuindo para a manutenção da estabilidade articular. Atividades
aeróbicas são importantes para melhor condicionamento
cardiovascular e redução do risco de morbidades.
4.3.5.4 Tratamento cirúrgico

Os procedimentos com melhor resultado são aqueles realizados nos


quadris, joelhos e ombros. Os objetivos desses procedimentos são o
alívio da dor e a redução da perda funcional. Reparação cirúrgica das
mãos pode proporcionar melhora cosmética e funcional.
Sinovectomia aberta ou por artroscopia pode ser útil a alguns
pacientes com monoartrite persistente, especialmente dos joelhos
ou dos cotovelos.
4.3.5.5 Vacinação

Vacinas de organismos não vivos podem e devem ser administradas


em qualquer momento do tratamento, sendo mais eficazes antes do
início das MMCDs sintéticas ou biológicas. Durante o tratamento, há
contraindicação relativa ao uso de vacinas de vírus atenuados nos
usuários de biológicos e sintéticos com alvo, devendo-se pesar
risco-benefício. De maneira geral, pacientes em uso de MTX na dose
menor ou igual a 20 mg/sem podem receber qualquer vacina (Furer
et al., 2019).
4.3.5.6 Prognóstico

O curso da AR é variável e difícil de ser predito individualmente. A


maior parte dos pacientes apresenta atividade flutuante,
acompanhada por grau variável de anormalidades articulares e
prejuízo funcional. Várias características são relacionadas a pior
prognóstico, tais como sexo feminino, tabagismo, FR e/ou ACCP em
títulos elevados, provas inflamatórias (VHS e/ou PCR)
persistentemente elevadas, grande número de articulações
edemaciadas, presença de manifestações extra-articulares,
atividade da doença elevada aferida por índices objetivos de
atividade da doença como DAS28 e presença de erosões
precocemente na evolução da doença (Mota et al., 2012).
Atualmente, a principal causa de óbito em pacientes com AR são as
doenças cardiovasculares, principalmente a doença arterial
coronariana e a insuficiência cardíaca. Existem dados na literatura
que sugerem que o paciente com AR deva ter níveis de LDL inferiores
a 100 mg/dL e que as principais drogas para controle de hipertensão
sejam inibidores de enzima conversora de angiotensina ou
bloqueadores de receptor de angiotensina II (Pereira et al., 2012).
4.4 ESPONDILOARTRITES

As EpAs formam um grupo de doenças interrelacionadas com


aspectos epidemiológicos, patogenéticos, clínicos e radiológicos
comuns entre si. As entidades que compõem esse grupo cursam,
como todas as AAs, com artrite muito flogística como principal
manifestação clínica, além de comprometimento periarticular. Neste
sentido, acompanhando a sinovite, frequentemente se observa
tenossinovite, bursite e entesite. A entesite, quando presente e de
etiologia inflamatória – importante diferenciação, pois existem
entesites mecânicas –, sugere fortemente doença relacionada às
EpAs, pois esse tecido parece ser bastante sensível à IL-17 e IL-23,
ambas interleucinas muito associadas à fisiopatologia das EpAs.
Outro elo que une as EpAs é uma forte correlação genética com um
polimorfismo específico da região B do HLA tipo I, nomeado HLA-
B27. Embora no Brasil a miscigenação tenha tornado esse
polimorfismo menos frequente, em populações europeias o
encontramos em até 90% dos pacientes com espondilite
anquilosante (West, 2015), por exemplo. Ainda assim, as EpAs são
definitivamente multifatoriais, com gatilhos ambientais
participando do início da disfunção imune (ver anteriormente, no
item 4.2).
Embora de maneira acadêmica se divida classicamente as EpAs em
suas doenças finais (como espondilite anquilosante), muitos
pacientes apresentam quadro clínico inespecífico e indeterminado
por anos até que manifestem as facetas que permitirão o seu
diagnóstico final. Assim sendo, é bastante útil ao clínico a
compreensão dessas entidades como um espectro contínuo, que
permita o manejo mesmo antes da diferenciação final. De maneira
bastante simplificada e em termos práticos, o que mais interessa ao
médico em um primeiro contato com o seu paciente é a diferenciação
entre EpA predominantemente axial ou periférica, pois, como
veremos adiante, o seu manejo e prognóstico são radicalmente
diferentes.
4.4.1 Axial
Denomina-se EpA axial aquela que acomete a coluna e as
articulações sacroilíacas. Evidentemente, o paciente com EpA axial
também pode ter manifestações periféricas, mas o quadro axial
evidentemente lidera a apresentação clínica.
O sintoma clínico característico é dor lombar inflamatória (Figura
4.10), iniciando-se nas articulações sacroilíacas e coluna
lombossacra, podendo comprometer também a região cervical.
Figura 4.10 - Patogenia da lombalgia inflamatória
Fonte: ilustração Claudio Van Erven Ripinskas.

A dor inflamatória caracteriza-se por melhora com movimentação


(diferente da dor de origem mecânica, que piora com a
movimentação e melhora com o repouso) e rigidez matinal maior do
que 30 minutos. As dores têm início insidioso, com mais de 3 meses
de evolução. Sua localização geralmente é lombar (mas pode
acometer todos os níveis da coluna) e nas nádegas, uni ou
bilateralmente, podendo ser alternante. O paciente pode apresentar
despertares noturnos ocasionados pela dor lombar inflamatória.
Ao exame físico, um dos achados iniciais é a perda da lordose
lombar. Com o passar do tempo, há calcificação dos ligamentos e das
ênteses da coluna em toda a sua extensão, gerando perda de
mobilidade.
Existem diversas manobras para avaliar o grau de comprometimento
da mobilidade do paciente com EpA axial. Todos os movimentos da
coluna podem ser avaliados em todos os níveis. Ao clínico
generalista, a memorização de todos esses parâmetros é
provavelmente infrutífera e não haverá retenção, uma vez que
raramente as utilizará. Contudo, o teste de Schober vale menção,
pela sua popularidade. A versão mais validada é a sua versão
modificada (Jenkinson et al., 1994): deve-se fazer uma marca na
linha média, com o paciente em posição neutra, ao nível da espinha
ilíaca posterossuperior, outra 10 cm acima e outra 5 cm abaixo.
Pede-se ao indivíduo que realize flexão máxima do tronco, sem
dobrar os joelhos, tentando alcançar o chão com as mãos. Mede-se a
distância máxima entre os 2 pontos, que deve aumentar pelo menos
5 cm e atingir 20 cm (Figura 4.11).
Figura 4.11 - Teste de Schober
Nota: na versão original, são marcados 2 pontos, um ao nível da junção lombossacra e
outro 10 cm acima. Na versão modificada, são marcados 3 pontos, um na junção
lombossacra, um 5 cm abaixo e um 5 cm acima. O objetivo em ambos os testes é
aumentar a distância entre as extremidades mais do que 5 cm.
Fonte: Nasch92, 2018.

Como ferramenta válida para a avaliação da sacroileíte, podemos


citar, por exemplo, o teste de Patrick (Figura 4.12).
Figura 4.12 - Teste de Patrick (também conhecido como FAbER)
Nota: realiza-se, passivamente, uma flexão com abdução e rotação externa da coxa. Na
prática, o paciente assumirá uma posição lembrando o algarismo “4” deitado na maca. O
teste é positivo se o paciente se queixar de dor contralateral, na região sacroilíaca.
Fonte: acervo Medcel.

Entesites são comuns a todas as formas de EpA. Podem ocorrer na fáscia


plantar, na inserção do tendão de aquiles, ao redor da pelve (na
tuberosidade isquiática, nas cristas ilíacas e no trocânter maior), na coluna
(nas inserções ósseas de ligamentos e cápsulas de articulações
discovertebrais e costovertebrais e nos ligamentos interespinal e
paravertebrais), na região anterior do tórax (junções costocondrais) e na
tuberosidade tibial, uni ou bilateralmente. A Figura 4.13 ilustra os principais
pontos de entesites. O acesso no exame físico deve ser feito por meio da
palpação da inserção dos ligamentos e tendões nos ossos, com importante
dor local.

Sobrecargas mecânicas também podem causar


entesites, especialmente no tendão do calcâneo
e na fáscia plantar. Neste caso, nada têm a ver
com inflamação e são tratadas com reabilitação
e medidas locais.
Figura 4.13 - Pontos de possíveis entesites
Legenda: (A) manúbrio do esterno; (B) processo xifoide; (C) e (D) crista e espinha ilíacas
anterossuperiores; (E) espinha ilíaca posterossuperior; (F) coluna lombar; (G) calcâneo.
Fonte: adaptado de Olga Bolbot.

4.4.2 Periférica
São denominadas EpAs periféricas aquelas que possuem como
manifestação mais importante o acometimento das articulações não
axiais. Neste caso, qualquer padrão de acometimento pode ser
considerado (oligoarticular, poliarticular, pequenas ou grandes
articulações) e o acometimento das articulações da coluna e das
sacroilíacas ou estão ausentes ou são menos significativas.
Nas formas periféricas, também pode haver acometimento do
aparelho periarticular, com entesite, tenossinovite e bursite
inflamatórias. Nas formas periféricas, chama bastante a atenção a
ocorrência de dactilite, que nada mais é do que a inflamação
concomitante das articulares, ênteses e bainhas tendíneas de um ou
mais dedos, causando uma inflamação difusa que os deixa
edemaciados e eritematosos. Devido ao seu aspecto, cunhou-se o
termo “dedo em salsicha” para descrê-lo (Figura 4.14).
Figura 4.14 - Paciente com dactilites no quarto pododáctilo esquerdo e terceiro pododáctilo
direito

Fonte: Case Report: A Psoriatic Arthritis Patient with Dactylitis & Enthesitis, 2018.

O exame físico do paciente com manifestação articular periférica


passa pelo acesso a cada uma das articulações envolvidas, com
especial atenção ao calor e ao edema articular ao toque. A ocorrência
de derrame articular, por vezes acompanhado de redução da
amplitude de movimento, ajuda a sugerir etiologia inflamatória
nesse contexto.
As dactilites são bastante evidentes à inspeção e muito dolorosas à
mobilização, e as entesites e bursites podem ser acessadas por meio
da palpação, que revela sensibilidade dolorosa local.
4.4.3 Manifestações extra-articulares
As manifestações extra-articulares das EpAs são geralmente
atribuídas ao polo Th1 da patologia e representam a invasão tecidual
por fagócitos ativados e células citotóxicas. Ao contrário das doenças
sistêmicas do tecido conectivo, nas quais o espectro de
manifestações é vasto e ataca, virtualmente, qualquer órgão e
sistema, nas EpAs o acometimento é muito mais previsível e contido.
De fato, o que sempre chamará mais a atenção nas artropatias
autoimunes é o quadro articular. Todavia, é possível, sim, que um
paciente abra o seu quadro com uma manifestação fora da
articulação; neste caso, provavelmente não será entendido como
uma EpA até que ocorra o quadro locomotor.
Não há importância, porém, na prática clínica, o nome e sobrenome
da doença, mas a compreensão de como a patologia funciona e,
portanto, de como deverá se dar o manejo do paciente. É muito
comum que dermatologistas, por exemplo, acabem manejando
inicialmente os pacientes com artrite psoriásica (uma forma de EpA,
ver adiante no item 4.4.4) que abriram o quadro com sintomas
exclusivamente cutâneos. Quando estes abrem a parte articular (e
descobre-se, portanto, que se tratava de uma artrite psoriásica e,
não, de uma psoríase) por vezes terminam globalmente manejados
pelo dermatologista, uma vez que a terapia para a pele, por seguir a
mesma fisiopatologia da lesão articular, acaba controlando,
também, o quadro locomotor.
Os sítios principais de acometimento extra-articular são: pele, olhos
e trato gastrintestinal. As entesites, tenossinovites e bursites são, de
maneira purista, manifestações também extra-articulares, mas,
pela sua relação com o aparelho locomotor, foram descritas
anteriormente (itens 4.4.1 e 4.4.2).
4.4.3.1 Manifestações cutâneas

Uma das manifestações cutâneas mais importantes é a psoríase.


Trata-se de placas eritematosas e descamativas, por vezes
pruriginosas. A psoríase vulgar é a forma mais comum de
apresentação, e manifesta-se pelo acometimento das superfícies
extensoras, principalmente dos cotovelos e joelhos (Figura 4.15).
Pode acometer também o couro cabeludo.
Figura 4.15 - Joelho de paciente com psoríase

Fonte: Werayuth Piriyapornprapa.

Outra forma de doença cutânea que pode acompanhar os pacientes


com EpA é o eritema nodoso (Figura 4.16). O eritema nodoso se
manifesta como uma lesão eritematosa indurada, dolorosa e imóvel
que geralmente acomete a região anterior das pernas (Cribier et al.,
1998). Do ponto de vista patológico, o eritema nodoso é uma
paniculite septal sem vasculite.
Figura 4.16 - Perna de paciente com diversas lesões compatíveis com eritema nodoso
(circuladas)
Fonte: adaptado de James Heilman, 2010.

O eritema nodoso é mais frequentemente


observado em associação com a artrite
relacionada à doença inflamatória intestinal
(enteroartrite).

Também associada mais comumente à forma articular relacionada a


doença inflamatória intestinal, outra manifestação cutânea das EpAs
é o pioderma gangrenoso. Trata-se de uma dermatose neutrofílica
que cursa com ulcerações dolorosas, geralmente em membros
inferiores, com bordas elevadas violáceas e fundo eritematoso e
marcadamente purulento (Figura 4.17). O pioderma gangrenoso
cursa com hiperativação neutrofílica e ocorrência de lesões satélites
(fenômeno de Koebner), motivadas por trauma. Assim, o manejo da
lesão é bastante específico, com imunossupressão, sendo que
medidas de debridamento geralmente pioram o quadro clínico.
Figura 4.17 - Perna de paciente com úlcera extensa crônica com fundo marcadamente
purulento

Nota: o aspecto sugere pioderma gangrenoso.


Fonte: arquivo pessoal do dr. Jean Souza.

Algumas manifestações cutâneas nas EpAs são fortemente


preditoras do subgrupo ao qual o paciente pertence. Como dito
anteriormente, o eritema nodoso e o pioderma gangrenoso sugerem
mais artrite relacionada a doença inflamatória intestinal e a psoríase
sugere mais artrite psoriásica. O acometimento cutâneo por vezes é o
que permite a diferenciação entre os pacientes e a sua efetiva
classificação. Neste sentido, a ocorrência de queratoderma
blenorrágico e balanite circinada sugerem o pertencimento ao
subgrupo da artrite reativa.
O queratoderma blenorrágico se inicia com vesículas claras em bases
eritematosas, evoluindo para lesões pustulares e queratósicas que
coalescem e formam placas. Geralmente ocorrem nas plantas dos
pés e solas das mãos (Figura 4.18).
Figura 4.18 - Ceratoderma blenorrágico

Fonte: ABC of Rheumatology, 2009.

A balanite circinada ocorre na margem coronal do prepúcio e


próxima à glande. Trata-se de uma erupção eritematosa que evolui
para lesões exulceradas ou pustulares. As bordas geralmente são
marcadas, arredondadas e irregulares, dando o seu título de
“circinada” (Figura 4.19). As lesões podem ocorrer também na
vulva, recebendo o nome de vulvite ulcerativa, embora seja uma
apresentação muito menos comum (Wu; Schwartz, 2008).
Figura 4.19 - Balanite circinada: observar as lesões de aspecto serpiginoso
Finalmente, do ponto de vista tegumentar, outras lesões menos
específicas, mas que ocorrem com frequência, são as úlceras orais.
Podem ser dolorosas ou não e a sua diferenciação com aftose vulgar
pode ser impossível a depender da apresentação, devendo sempre se
valorizar as demais manifestações clínicas.
4.4.3.2 Manifestações oculares

A manifestação mais importante e frequente nas EpAs é a uveíte


anterior. Trata-se de inflamação da úvea anterior (íris e corpo ciliar)
e cursa com síndrome do olho vermelho dolorosa. Geralmente é
unilateral e de apresentação aguda, com dor ocular, vermelhidão e
fotofobia intensa (Figura 4.20). Medidas tópicas provavelmente
resolverão o quadro agudo, mas os pacientes com EpA tendem a
recorrer com frequência. Com surtos repetidos, pode ocorrer perda
de acuidade visual.
Figura 4.20 - Detalhe do exame de olho de paciente com uveíte anterior
Nota: há intensa hiperemia perilímbica (em volta da íris e da córnea), o que a diferencia do
eritema da conjuntivite (mais periférico), visto na Figura 4.21.
Fonte: Arztsamui.

O diagnóstico de uveíte é feito com exame oftalmológico com


lâmpada de fenda, que mostra leucócitos suspensos na câmara
anterior.
A doença de Behçet também cursa com uveíte
e eventualmente artrite. A principal diferença
que ajuda a distinguir as condições é a
ocorrência de panuveíte (uveíte anterior e
posterior) bilateral na vasculite.

Outra manifestação que ocorre nas EpAs do ponto de vista ocular é a


conjuntivite. Trata-se de conjuntivite asséptica, uni ou bilateral,
aguda ou subaguda, e se apresenta com sensação de corpo estranho
ocular, ardência e descarga hialina (Figura 4.21). A conjuntivite nas
EpAs costuma ser transitória e não costuma trazer complicações a
longo prazo. É mais frequentemente observada em associação com a
artrite reativa.
Figura 4.21 - Detalhe do exame do olho de paciente com conjuntivite

Nota: a hiperemia é periférica e nitidamente poupa a região perilímbica.


Fonte: Arztsamui.

4.4.3.3 Manifestações gastrintestinais

Inflamação de mucosa intestinal ocorre em uma boa porcentagem


dos pacientes, com estudos mostrando até 60% de prevalência (De
Keyser et al., 2002). Contudo, apenas alguns poucos pacientes terão
manifestações clínicas propriamente ditas, como dor abdominal e
diarreia. Pacientes com manifestações francas de doença
inflamatória intestinal podem ainda cursar com estenoses, fístulas e
doença orificial. É comum que os pacientes com manifestações
intestinais apresentem um aspecto de doença um pouco mais
sistêmico, com fadiga, anorexia, febre eventual e perda de peso.
Nem sempre a manifestação intestinal acompanha a artrite. Podem
aparecer dispersas no tempo em um mesmo paciente. Porém, em
geral, iniciam-se próximas e tendem a exacerbar
concomitantemente.
Manifestações renais, como glomerulonefrite mesangial ou doença
por amiloide, são descritas, bem como doença aórtica (insuficiência
aórtica) e pneumopatia intersticial. Contudo, são manifestações
absolutamente incomuns e fogem do padrão, devendo sempre
levantar a suspeita de outras doenças associadas.
4.4.4 Subgrupos
Como dito anteriormente, do ponto de vista clínico, a maior
importância reside na diferenciação entre espondiloartrite
predominantemente axial ou periférica, bem como na identificação
de doença extra-articular de maneira precoce. Tal observação se
pauta nas modalidades de tratamento, que são diferentes de acordo
com a topografia da lesão articular e de eventuais manifestações
extra-articulares. Como exemplo, pacientes com psoríase e artrite
tendem a responder melhor ao metotrexato, ao passo que pacientes
com artrite e doença inflamatória intestinal podem se beneficiar da
ação dupla da sulfassalazina.
Contudo, do ponto de vista acadêmico e para finalidade de pesquisa,
a diferenciação final da doença do paciente tem grande importância,
pois as diversas formas de espondiloartrites possuem prognóstico e
evolução diferentes.
Assim sendo, esta obra agora apresentará as doenças sob um prisma
um pouco diferente, partindo da doença em sua classificação final.
Epistemologicamente, o médico que conhece os 2 caminhos de
raciocínio (partindo das apresentações sindrômicas ao diagnóstico
final e retornando pelo mesmo caminho no sentido oposto)
apresenta maior chance de sucesso na sua jornada diagnóstica e
terapêutica.
4.4.4.1 Espondilite anquilosante
A espondilite anquilosante (EA) é o protótipo das espondiloartrites
axiais. O envolvimento axial é característico, com acometimento da
coluna, levando à dor axial inflamatória (comumente lombar), e das
sacroilíacas, causando dor inflamatória nas nádegas. Costuma ter
início insidioso, no fim da adolescência ou no começo da vida adulta,
e é infrequente apresentar-se após os 40 anos. Há grande associação
a HLA-B27 (90%) e é mais frequente em homens (3:1 em relação às
mulheres).
Como em todas as doenças reumáticas, podem estar presentes
sintomas constitucionais, como fadiga, perda de peso e febre.
O acometimento de articulações periféricas na EA ocorre em cerca de
25% dos casos (West, 2015) e costuma ser mono ou oligoarticular (1
a 4 articulações acometidas), costumeiramente de forma assimétrica
e preferencialmente nos membros inferiores. Quadris, joelhos,
tornozelos e articulações metatarsofalangianas são frequentemente
acometidos.
Entesites são comuns na EA e podem ocorrer especialmente na fáscia
plantar, na inserção do tendão do calcâneo, em volta da patela e em
ênteses mais axiais, como aquelas relacionadas à musculatura
peitoral e abdominal.
A uveíte anterior recorrente é a manifestação extra-articular mais
comum na EA e ocorre em até 30% dos pacientes (West, 2015), com
associação à presença de HLA-B27. O surgimento da uveíte pode ser
o primeiro sintoma no paciente. Acomete a câmara anterior do olho e
costuma ser unilateral, com aparecimento de olho vermelho, dor,
borramento visual, fotofobia e lacrimejamento. Não tem relação
obrigatória com surtos de piora no acometimento articular e, se não
tratada, pode gerar perda visual e irregularidade da pupila.
4.4.4.2 Artrite psoriásica

A Artrite Psoriásica (AP) forma um grupo heterogêneo de


manifestações articulares inflamatórias crônicas em associação à
psoríase cutânea ou ungueal, ou em pacientes com quadro clínico
sugestivo na vigência de história familiar de psoríase.
A prevalência da AP nos estudos contemporâneos é de cerca de 0,1 a
0,5%, sendo que a artrite ocorre em até 25% dos pacientes com
psoríase (West, 2015). O acometimento da pele costuma preceder a
artrite em 75% dos casos, com início simultâneo em 10% dos
pacientes. Na minoria restante (15%), a artrite pode anteceder o
surgimento da psoríase em vários anos, dificultando muito o
diagnóstico. Não há diferença entre os sexos e a idade de maior
prevalência está entre os 30 e os 55 anos.
Fatores genéticos, ambientais e imunológicos estão envolvidos na
suscetibilidade e na expressão da doença. Dentre os fatores
genéticos, o gene PSORS1 demonstrou maior suscetibilidade à
psoríase. Existe grande associação entre artrite psoriásica e
síndrome metabólica.
O quadro locomotor na AP costuma ser oligoarticular no início da
doença, mas, com o passar dos anos e um número maior de
articulações acometidas, tende a tornar-se poliarticular. Algumas
características ajudam a diferenciar a AP da artrite reumatoide: a AP
é mais frequentemente assimétrica, pode acometer as
interfalangianas distais (poupadas na artrite reumatoide), tem FR
costumeiramente negativo, acomete homens e mulheres igualmente
e tem características radiográficas peculiares com lesões mais
destrutivas e erosivas.
A agressividade pode ser tamanha que alguns pacientes podem
apresentar osteólise de falanges e doença francamente mutilante.
A AP também pode acometer as articulações sacroilíacas e coluna.
Entretanto, o envolvimento axial costuma ser mais assimétrico do
que na EA. Alguns achados radiológicos ajudam a diferenciar a AP da
EA (ver adiante no item 4.4.5).
O acometimento periarticular é extremamente
comum na AP, sendo a espondiloartrite a que
mais cursa com dactilite.

Na maioria dos pacientes com AP ocorrem alterações ungueais


(Figura 4.22), sendo, por vezes, a primeira manifestação do paciente
e o achado que permitirá a sua classificação antes mesmo da
apresentação cutânea. Assim, o exame físico do paciente com AP
requer uma obstinada inspeção de todas as unhas.
Figura 4.22 - Unha de paciente com psoríase

Nota: há depressões puntiformes ungueais (pitting nails) e onicodistrofia.


Fonte: Sweetheart studio.
4.4.4.3 Artrite reativa

A Artrite Reativa (ARe) é uma espondiloartrite caracterizada por


artrite periférica, habitualmente acompanhada por manifestações
extra-articulares, que aparecem após certas infecções dos aparelhos
geniturinário e gastrintestinal, acometendo principalmente adultos
jovens.
A relação entre homens e mulheres é de 1:1.
Associam-se à doença diarreica por bactérias dos gêneros Shigella,
Salmonella, Yersinia e Campylobacter, assim como infecções não
gonocócicas do aparelho geniturinário por Chlamydia trachomatis ou
Ureaplasma urealyticum.
O termo síndrome de Reiter, dado em
homenagem a Hans Reiter, descreve a tríade
clínica de uretrite, conjuntivite e artrite no
contexto da artrite reativa. É um termo em
desuso atualmente.

A ARe tipicamente tem início agudo, de 1 a 4 semanas, após infecção


venérea não gonocócica ou gastroenterite. Sintomas constitucionais,
como febre e perda de peso, são possíveis.
O envolvimento articular periférico é o mais característico da ARe
(90% dos casos) e geralmente é agudo, aditivo, assimétrico e
oligoarticular, com predomínio em articulações dos membros
inferiores, especialmente joelhos, tornozelos e pequenas
articulações dos pés.
O acometimento do quadril é incomum, mas articulações
esternoclaviculares, ombros e temporomandibulares também
podem ser afetados.
Manifestações periarticulares com entesite e dactilite (Figura 4.23)
podem ocorrer. A entesite (Figura 4.24) é mais frequente na inserção
da fáscia plantar ou na inserção do tendão de aquiles no calcâneo,
levando a uma das manifestações mais frequentes da doença: dor no
calcanhar.
Figura 4.23 - Fotos de pacientes com dactilites (“dedo em salsicha”)

Fonte: ABC of Rheumatology, 2009.

Figura 4.24 - Entesite no calcanhar esquerdo


Lombalgia e dor nas nádegas são comuns na ARe e ocorrem em cerca
de 50% dos casos. Já alterações radiográficas no esqueleto axial
estão presentes em 20% dos pacientes, embora o envolvimento
radiográfico axial chegue a 70% nas formas crônicas.
Uretrite não gonocócica, quando presente, é a primeira manifestação
e ocorre nas formas pós-venérea e pós-entérica. Disúria e descarga
uretral purulenta são os sintomas mais típicos no homem, mas estão
presentes, ocasionalmente, prostatite e/ou epididimite. Mulheres
podem ter disúria, corrimento vaginal, cervicite e/ou vaginite.
Pacientes assintomáticos para inflamação genital frequentemente
têm piúria estéril, principalmente na primeira urina da manhã.
Conjuntivite ocorre em 1 terço dos casos e, quando presente,
geralmente acompanha a uretrite ou se desenvolve vários dias
depois. Os pacientes podem apresentar leve hiperemia conjuntival
bilateral, com sensação de queimação e exsudato. A conjuntivite não
tem relação com HLA-B27.
Uveíte anterior aguda (irite) tipicamente é unilateral, mas pode ser
bilateral, acompanhada de conjuntivite. Ocorre com menor
frequência do que na EA (15 a 20%).
Como apresentado anteriormente, o queratoderma blenorrágico
ocorre em cerca de 25% dos pacientes com ARe. Quando atinge o
leito subungueal, as unhas das mãos e dos pés podem tornar-se
quebradiças e opacas, assemelhando-se às alterações encontradas
nas infecções micóticas e psoriásicas. A balanite circinada, por sua
vez, envolve a glande peniana e aparece como ulceração serpiginosa
ao redor da uretra.
A ARe tem sido relatada com frequência em indivíduos HIV positivos,
e sua prevalência e gravidade podem estar aumentadas quando estão
associadas aos vírus. O HIV isolado não causa a doença, mas sua
relação com outras doenças, como infecção por Chlamydia sp., pode
ser responsável pelo desenvolvimento de ARe.
4.4.4.4 Artrite relacionada a doença inflamatória intestinal
A artrite periférica ocorre em cerca de 20% dos pacientes com
Doença de Crohn (DC) ou retocolite ulcerativa.
A prevalência é ligeiramente maior na DC. Pode ocorrer
acometimento periférico, com artralgias migratórias ou artrite
aditiva, oligoarticular ou poliarticular, em geral assimétrica e
predominantemente de membros inferiores, acometendo, com
frequência, joelhos, tornozelos e pés. Grandes derrames articulares,
em especial, nos joelhos, são comuns. O aparecimento da artrite
pode anteceder os sintomas gastrintestinais, apresentando-se, no
início, como uma forma indiferenciada da EA. Comumente, a artrite
acompanha a atividade da doença inflamatória intestinal e melhora
com o controle desta, mas, como dito anteriormente, não é uma
regra absoluta. Na retocolite ulcerativa, a colectomia para controle
da doença intestinal pode levar à remissão da artrite, mas isso não
acontece na DC.
Acometimento da coluna, incluindo sacroileíte, acontece em cerca de
10% de pacientes com doenças inflamatórias intestinais e
frequentemente é assintomático. O envolvimento axial tem curso
independente da atividade da doença intestinal, podendo antecedê-
la, e a colectomia terapêutica não se reflete na atividade de doença
axial. O HLA-B27 é encontrado com menor frequência nessa doença
(aproximadamente 50% nos casos com envolvimento axial).
Manifestações extra-articulares da doença inflamatória intestinal
também podem ocorrer em 24% dos casos: a complicação cutânea
mais comum é o eritema nodoso, que costuma acompanhar a
atividade inflamatória intestinal e articular periférica. O pioderma
gangrenoso é menos frequente, mas é mais grave, com
aparecimento de úlceras profundas e dolorosas na pele. É possível
haver úlceras orais recorrentes, as quais refletem a atividade
intestinal da DC.
Uveíte anterior aguda, unilateral, alternante, similar àquelas
encontradas nas outras EpAs, é vista em 11% dos casos de
enteroartrites. Na DC, pode ocorrer uveíte granulomatosa, mais
grave e persistente. Febre e perda de peso também são comuns.
4.4.4.5 Espondiloartrite indiferenciada

São chamadas de EpAs indiferenciadas aquelas síndromes que não


conseguem ser alocadas em nenhum dos grupos mencionados
anteriormente, mas que possuem características que sugerem EpAs
(como oligoartrite com entesite inflamatória, por exemplo).
Possuem maior importância nos estudos clínicos, quando não
perfazem nenhum dos critérios classificatórios.
4.4.5 Diagnóstico
O diagnóstico de EpA se baseia especialmente nos achados de
história e exame físico. Contudo, tratando-se de quadro axial, a
documentação de acometimento radiológico se faz necessária,
devendo se ter em mente que os achados mais precoces serão visíveis
apenas por ressonância magnética e não por métodos radiográficos.
Os exames laboratoriais podem ser usados para afastar outras
entidades (como infecções virais e quadros metabólicos) e para
corroborar a inflamação (com os marcadores de atividade
inflamatória). Contudo, não há teste confirmatório de EpA. A
pesquisa do HLA-B27 possui valor diagnóstico, mas não deve ser
interpretado de maneira isolada, e tanto o FR quanto o fator
antinuclear costumam ser negativos.
4.4.5.1 Exames laboratoriais

Na investigação dos pacientes com EpA, geralmente são solicitados


os exames relacionados às funções orgânicas – hemograma, função
renal e transaminases – para se investigar possibilidades
terapêuticas. Ademais, as provas de atividades inflamatória (PCR e
VHS) são importantes para o diagnóstico e monitorização da doença,
sendo essenciais. Contudo, muitos pacientes possuem marcadores
inflamatórios normais, especialmente aqueles com quadro
exclusivamente axial.
Na suspeita de ARe, existe um grande interesse em identificar uma
eventual infecção precedendo o quadro, assim, deve-se considerar
coleta de fezes para cultura se houver diarreia ativa, sorologias para
os germes envolvidos (Chlamydia trachomatis, Shigella spp.,
Campylobacter spp., Yersinia spp. e Salmonella spp.) e pesquisa de
Chlamydia trachomatis por PCR em swab uretral e cervical. Enquanto
a positividade da cultura e do swab ajudam bastante a estreitar o
diagnóstico, as sorologias não confirmam o quadro, pois podem
simbolizar infecção remota. Isso é particularmente infeliz na ARe,
porque, na cronologia da entidade clínica, tratando-se de uma
reação imune tardia, quase sempre não há mais germe detectável.
Como alguns pacientes com ARe apresentam monoartrite febril, é
muito frequente que necessitem de artrocentese com pesquisa para
infecção. Neste caso, o bacterioscópico e a cultura do líquido sinovial
são importantes (e devem resultar negativas), uma vez que a
celularidade pode vir com valores muito altos e, por vezes, com
predomínio neutrofílico.
Na suspeita de enteroartrite, pode ser conveniente a pesquisa de
anticorpo anticitoplasma de neutrófilo (ANCA) e anticorpos anti-
Saccharomyces cerevisiae (ASCA) para auxílio no diagnóstico de
doença inflamatória intestinal. É conveniente lembrar, porém, que a
sensibilidade de ambos os anticorpos é pequena neste contexto
(Peeters et al., 2001).
4.4.5.2 Exames de imagem

a) Radiografias

A sacroileíte das espondiloartrites envolve a porção sinovial, nos 2


terços inferiores da articulação sacroilíaca. Na EA, o acometimento é
geralmente bilateral e simétrico (Figura 4.26). Já na ARe e na AP, o
acometimento geralmente é unilateral e assimétrico. As formas
enteropáticas são variáveis (Voulgari, 2011).
Na EA e em enteroartrites, os sindesmófitos são geralmente
simétricos e regulares, bem verticalizados e marginais (Figura 4.25),
ao contrário do que ocorre na AP (sindesmófitos assimétricos,
irregulares e mais grosseiros – Figura 4.27). Também se distinguem
dos osteófitos da osteoartrite, que têm orientação bem lateralizada.
Figura 4.25 - Coluna lombar de paciente com espondilite anquilosante
Nota: a curvatura lombar se perdeu, as vértebras possuem acentuada quadratura e finos
sindesmófitos unem os corpos vertebrais rente ao ligamento longitudinal anterior.

Figura 4.26 - Sacroileíte bilateral

Nota: observar a redução do espaço nas sacroilíacas e a esclerose óssea.


Fonte: adaptado de Ankilozan spondilitli hastalardapreobezitenin yaşam kalitesine etkileri
[Os efeitos da pré-obesidade na qualidade de vida em pacientes com espondilite
anquilosante (tradução literal)], 2014.

Figura 4.27 - Formação de sindesmófitos na coluna vertebral


Nas radiografias das articulações periféricas, observam-se os
achados típicos da destruição articular promovida pelas artropatias
autoimunes. O acometimento quase sempre é assimétrico e, no caso
da AP, pode acometer interfalangianas distais – esses achados
ajudam a diferenciar da AR. Quase sempre haverá erosão óssea
periarticular e, eventualmente, neoformação óssea, com grandes
osteófitos. À medida que o quadro progride, ocorrem sinais de
osteoartrite secundária, com redução do espaço articular e
deformidades do osso subcondral. Na AP, especificamente, o
acometimento ósseo pode ser muito intenso, inclusive com osteólise
(destruição e afilamento das extremidades ósseas). Na sua forma
mutilante, há total desarranjo articular, com excesso de partes
moles em meio aos resquícios das falanges.
Uma falange afilada distalmente na articulação com outra cuja base
foi alargada em forma de taça leva à característica lesão tipo “pencil-
in-cup” (Figura 4.28), sugestiva de artrite psoriásica.
Uma falange afilada distalmente na articulação
com outra cuja base foi alargada em forma de
taça leva à característica lesão tipo “pencil-in-
cup” (Figura 4.28), sugestiva de artrite
psoriásica.
Figura 4.28 - Acometimento assimétrico das articulações, mais evidente nas
interfalangianas distais – aspecto “pencil-in-cup” na terceira interfalangiana distal
b) Ressonância magnética

Em pacientes com quadros precoces, é possível que as radiografias


não mostrem alterações. Nesses casos, a RM é capaz de demonstrar
alterações precoces, como sinovite, tenossinovite e edema ósseo
(Figura 4.29).
A RM também é capaz de ver achados crônicos, como erosões e
fibrose. Os pacientes com acometimento axial que não é visto à
radiografia, mas que aparece na RM, são denominados portadores de
espondiloartrite axial não radiográfica.
Em um paciente com ressonância normal (do
sítio acometido) deve-se questionar o
diagnóstico de espondiloartrite, uma vez que o
processo é, quase invariavelmente, muito
inflamatório do ponto de vista articular e
periarticular.
Figura 4.29 - Coluna de paciente com espondilite anquilosante vista pela ressonância
magnética

Legenda: da esquerda para a direita, os exames estão ponderados em T1, T1 com


contraste e T2. Na imagem contrastada e, especialmente, ponderada em T2, zonas com
hipersinal representam o edema ósseo.
4.4.5.3 Critérios classificatórios

Os critérios classificatórios de EpA foram estabelecidos pelo


Assessment of SpondyloArthritis International Society (ASAS) em
2011 e são encontrados a seguir:
Quadro 4.3 - Critérios classificatórios para espondiloartrite axial
Fonte: adaptado de The Assessment of SpondyloArthritis International Society
classification criteria for peripheral spondyloarthritis and for spondyloarthritis in general,
2011.

Quadro 4.4 - Critérios classificatórios para espondiloartrite periférica


Fonte: adaptado de The Assessment of SpondyloArthritis International Society
classification criteria for peripheral spondyloarthritis and for spondyloarthritis in general,
2011.

4.4.6 Manejo
Inicialmente, o paciente deverá receber orientações sobre o
prognóstico da doença. A fisioterapia deve ser realizada de maneira
sistemática em todos os estágios da doença, para educação postural,
preservação de amplitude articular e conservação de energia. Assim
que possível, o paciente deve ser orientado a buscar a prática de
exercício aeróbico e resistido de maneira rotineira, pois são
associados a melhor controle dos sintomas e menor dano cumulativo
articular. Pela característica anquilosante, exercícios de flexibilidade
são igualmente bem-vindos.
Em relação aos hábitos, é essencial cessar o tabagismo e manter
dieta com níveis adequados de cálcio. A chance de osteoporose deve
ser frequentemente acessada conforme os protocolos específicos
(ver capítulo Doenças dos ossos e cartilagens).
No que se refere ao tratamento medicamentoso, para todas as
formas de EpA o tratamento inicial será com AINHs. Nessa categoria
de AA, o AINH é considerado droga modificadora de doença e deve
ser usado de maneira contínua. Os efeitos colaterais (renais,
gastrintestinais e hepáticos) devem ser monitorizados com acesso
clínico e laboratorial periódico.
Uma vez que não haja resposta, uma diferença essencial se refere ao
perfil de acometimento do paciente. Nos quadros
predominantemente axiais, a segunda droga de tratamento será
diretamente um imunossupressor biológico (Ward et al., 2019), de
preferência um anti-TNF. Nos casos de artrite periférica, os
imunossupressores MTX, leflunomida e sulfassalazina podem ser
considerados antes da passagem para o imunossupressor biológico.
As particularidades dessas medicações são encontradas no Quadro
4.2.
De maneira geral, os anti-TNF (descritos no Quadro 4.2) são
equivalentes nas EpAs, porém, o etanercepte parece ser menos eficaz
para os quadros de uveíte e doença inflamatória intestinal (Ward et
al., 2019).
O uso de corticoides sistêmicos deve ser evitado nos pacientes com
EpA, pois apresenta poucos benefícios em relação ao AINH e pior
perfil de efeitos colaterais a longo prazo. Uma possível exceção são
os quadros de artrite relacionados às doenças inflamatórias
intestinais, nos quais o corticoide estaria indicado pelas
manifestações intestinais. Em pacientes com oligo ou monoartrite, o
uso de corticoide intra-articular pode ser considerado como ponte
até que o imunossupressor faça efeito.
O uso de antibióticos está indicado na vigência de quadro vigente que
os justifique, como cervicite ou uretrite por Chlamydia trachomatis –
neste caso, azitromicina 1 g, dose única –, ou infecção entérica –
podendo-se optar também pela azitromicina na dose de 500 mg a 1 g
por dia por 1 a 3 dias. O tratamento empírico com antibióticos não
parece mudar a chance de evolução para artrite crônica (Barber et al.
2013).
Os pacientes com manifestações oculares são geralmente manejados
com corticoide ocular. Os quadros mais graves ou recorrentes podem
se beneficiar de imunossupressão (MTX, sulfassalazina ou anti-
TNF).
Em pacientes com quadro cutâneo, pode-se lançar mão de terapia
tópica com corticoide, análogos de vitamina D e retinoicos. Doença
mais sistêmica se beneficia de MTX, anti-TNF ou outros biológicos
específicos para psoríase.
Por fim, pacientes com doença inflamatória intestinal são
geralmente seguidos em conjunto com a Gastroenterologia. É
normal que usem imunossupressores sistêmicos como a azatioprina
e os anti-TNF pela própria indicação intestinal. Pelo efeito sobre o
intestino adjuvante, a sulfassalazina é geralmente uma droga
tentada.
Como dito anteriormente, foge ao escopo desta obra detalhar todas
as linhas de terapia para os casos mais difíceis de EpA. Na prática,
raramente um paciente com EpA será seguido pelo clínico
generalista isoladamente, pois a sua monitorização requer
conhecimentos bastante específicos. De todo modo, as linhas
terapêuticas iniciais para os casos mais brandos foram devidamente
descritas anteriormente.
Clinicamente, como se
apresenta um paciente com
uma artropatia autoimune?
Os pacientes com artropatias autoimunes se apresentarão
especialmente com quadro de artrite crônica de
características inflamatórias e o acometimento de
estruturas periarticulares (ênteses, bainhas tendíneas e
bursas) é bastante frequente.
Quais são os principais
grupos de síndromes
clínicas que sugerem
vasculite sistêmica?

5.1 INTRODUÇÃO
As vasculites sistêmicas formam um grupo de doenças heterogêneas
que apresentam, em comum, um processo inflamatório na parede
vascular, podendo levar à diminuição de sua luz e trombose
secundária ou à ruptura de sua parede e consequente sangramento.
A maioria das vasculites sistêmicas inicia-se com sintomas
constitucionais inespecíficos, que podem ser confundidos com uma
série de outras doenças, dificultando muito o diagnóstico.
Sem tratamento, muitos dos pacientes com vasculites sistêmicas
evolui para óbito. O tratamento controla os sintomas e pode levar a
remissões prolongadas.
As vasculites primárias possuem baixa incidência na população. No
que diz respeito à faixa etária de acometimento, esta varia conforme
o tipo de vasculite. Por exemplo, a púrpura de Henoch-Schönlein
predomina em crianças, a arterite de Takayasu em adultos com idade
inferior a 40 anos, e a arterite de células gigantes é predominante em
adultos acima de 60 anos. Ainda não foi identificado fator etiológico
comum, porém se sabe que os vírus das hepatites B e C possuem
correlação com vasculites, em especial, a poliarterite nodosa e a
vasculite por crioglobulinas, respectivamente. Além disso, especula-
se que diversos agentes microbianos ou ambientais, como o
citomegalovírus ou o estreptococo, podem ocasionalmente
desencadear vasculite.
De maneira ampla, todos os sintomas que são causados pelas
vasculites decorrem de oclusão de vasos com sofrimento a jusante.
Com a destruição dos vasos, pode ocorrer também extravasamento
de elementos do sangue para os tecidos adjacentes. Quando os vasos
estão expostos ao ambiente (como nos vasos dos capilares
pulmonares), ocorrem síndromes hemorrágicas. A caracterização
das síndromes vasculíticas depende da compreensão desse
mecanismo fisiopatológico elementar.
Uma vez compreendido o mecanismo básico, toma-se como regra
geral que as vasculites nada mais são do que síndromes isquêmicas.
A manifestação clínica dependerá, então, do tamanho do vaso que
está comprometido. É justamente por essa razão que as
classificações de vasculites, sendo a última a do Consenso de Chapel
Hill de 2012 (Jennette et al., 2013), tomam como base o tamanho do
vaso acometido (Figura 5.1).
Figura 5.1 - Classificação atual das vasculites primárias
Fonte: adaptado de Pathogenesis of antineutrophil cytoplasmic autoantibody-mediated
disease, 2014.

Por um segundo prisma, pode-se observar as vasculites pelo


mecanismo fisiopatológico de doença. Para tanto, lança-se mão da
compreensão das vias da autoimunidade que possam estar doentes.
Como toda autoimunidade, as vasculites sistêmicas possuem
desregulação relevante nas vias de sinalização linfocitária,
especialmente nas vias Th1 e Th17. Como discutido no capítulo
Noções gerais de imunologia, uma disfunção destas vias pode gerar,
no polo mais Th1, ativação e recrutamento de fagócitos aos tecidos,
com inflamação e destruição tecidual, e formação de granulomas.
Por outro lado, disfunções mais Th17 podem gerar sensibilização dos
fagócitos às opsoninas, inflamação tecidual direta, produção de
anticorpos com deposição de imunocomplexos em circulação
terminal.
Quando usadas nessa terminologia de maneira
isolada (“vasculites sistêmicas”), entende-se
que tratam-se de disfunções primordialmente
imunes, sem outra causa atribuível envolvida.
Diz-se, igualmente, tratarem-se de vasculites
primárias.

Quando se associa ao tamanho do vaso a fisiopatologia envolvida no


processo, emergem padrões fenotípicos de doença. Se imaginarmos
os vasos de grande calibre, por exemplo, concluiremos que o ataque
imune raramente será capaz de ocluí-los de uma só vez, de tal forma
que as síndromes relacionadas aos vasos grandes serão compostas
por isquemia progressiva de segmentos corporais inteiros ou de
órgãos completos (pois um grande vaso origina dezenas de vasos
menores que nutrem todo um segmento ou órgão). De fato, as
vasculites de grandes vasos acometem preferencialmente aorta e
seus ramos, com sintomas de cefaleia, claudicação de mandíbula e
membro superior e insuficiência renal renovascular. Daí emerge o
nosso primeiro padrão fenotípico: síndromes oclusivas de vasos
grandes e nomináveis (ou seja, que são grandes o bastante para
receberem um nome individual).
Prosseguindo para vasos menores, entraremos em um universo
misto de vasos ainda nomináveis, mas, preferencialmente, de vasos
macroscópicos, porém não nominados. Estes vasos têm importância
em conjunto, pois nutrem um segmento de um órgão, mas perdem
importância individualmente – como ocorrem ramificações
progressivas dos vasos para os segmentos orgânicos, raramente se
nomina gerações acima da terceira ou quarta ramificação vascular.
Os principais exemplos de vasos de médio calibre, ou seja, vasos que
nutrem um segmento de um órgão, são as coronárias, os vasos das
extremidades digitais, os vasa nervorum (vasos que nutrem os
nervos) e os vasos esplâncnicos. Assim sendo, revela-se um segundo
padrão fenotípico: síndromes oclusivas segmentares de órgãos e
tecidos, incluindo as neurites isquêmicas. As vasculites de médios
vasos geralmente acometem porções dos rins, porções do coração e
porções das extremidades, com grande tendência à neuropatia.
Por fim, resta o grande universo das vasculites de pequenos vasos.
Esses vasos são microscópicos e nutrem a microestrutura dos
órgãos. Como são vasos muito pequenos, a reação imune
rapidamente os destrói e causa extravasamento de sangue. Na pele, o
extravasamento se manifesta como púrpura palpável; no pulmão,
como hemorragia alveolar; e, nos glomérulos, como
glomerulonefrite. Fecham-se, assim, as principais manifestações
clínicas dos pacientes com vasculites.
De maneira bastante universalista, vasculites sistêmicas cursarão
com 1 ou mais das seguintes manifestações: oclusão de vasos
grandes, oclusão de vasos macroscópicos não nomináveis
(causando, entre outros, neurite), púrpura palpável,
glomerulonefrite e capilarite pulmonar (com provável hemorragia
alveolar).
De maneira universal, vasculites sistêmicas
cursarão com 1 ou mais das manifestações a
seguir: oclusão de vasos grandes, oclusão de
vasos macroscópicos não nomináveis, púrpura
palpável, glomerulonefrite e capilarite
pulmonar.

Tendo em vista a fisiopatologia envolvida, deve-se sempre


considerar, também, que as vasculites não são processos
necessariamente primários, no sentido de que outras doenças
podem causar autoimunidade dirigida contra o vaso. Os principais
exemplos são as infecções, as neoplasias, as reações às drogas e as
doenças autoimunes (especialmente as conectivopatias). Em todas
estas situações, uma grande carga de anticorpos associada à
condição primária pode eventualmente depositar nos vasos e causar
destruição vascular. Diz-se, nestes casos, que se trata de vasculite
secundária.
Não é uma definição universal, mas, de uma
maneira geral, quadros com alterações
hematológicas muito relevantes, especialmente
citopenias, sugerem mais causa secundária de
vasculite.

Tomando como base especialmente a classificação internacional de


Chapel Hill (Jennette et al., 2013), esta obra agora se deterá em
explorar cada um dos grandes grupos de vasculites sistêmicas e as
suas principais formas secundárias associadas.
5.2 VASCULITES DE GRANDES VASOS
As vasculites de grandes vasos possuem forte componente Th1 e
Th17 e, como dito anteriormente, tendem a ocluir lentamente os
grandes vasos do corpo (especialmente aorta e seus ramos). Como o
bloqueio de citocinas relacionadas à resposta Th17, como a IL-6,
parece controlar a doença (Hellmich et al., 2019), é possível que seja
o mecanismo predominante. A presença Th1 na fisiopatologia das
vasculites de grandes vasos, porém, as torna doenças com presença
de granulomas vasculares. Na análise patológica dos pacientes, o
achado mais típico, será, portanto, o de invasão das camadas
vasculares por infiltrados organizados de linfócitos e macrófagos.
São 2 as vasculites de grande calibre de interesse: a artrite de células
gigantes e a arterite de Takayasu.
5.2.1 Arterite de células gigantes
A Arterite de Células Gigantes (ACG), outrora conhecida como
arterite temporal, ocorre exclusivamente em indivíduos acima dos
50 anos, com aumento da incidência conforme a idade. É 2 vezes
mais frequente em mulheres do que em homens. De causa
desconhecida, afeta, primariamente, ramos extracranianos das
carótidas. O arco aórtico também pode ser acometido, em especial,
os ramos proximais dos membros superiores.
Trata-se de uma panarterite, já que todas as camadas da parede
arterial são acometidas por um infiltrado inflamatório constituído
por células T e macrófagos. O infiltrado pode ser granulomatoso,
com acúmulo de histiócitos e células gigantes multinucleadas.
Diferentemente da arterite de Takayasu (< 40
anos), a arterite temporal tem início após 50
anos.

As manifestações mais comuns são sintomas constitucionais


(fadiga, perda de peso, febre e mialgia). Após os sintomas
constitucionais, a cefaleia é o sintoma mais comum da ACG,
classicamente descrita como dor moderada a intensa no território da
artéria temporal, que pode estar espessada (Figura 5.2) ou dolorida.
Os sintomas visuais são comuns (20% dos casos – Gonzales-Gay et
al., 2005), com eventual evolução para perda visual ou diplopia. A
perda visual é a complicação mais temida, geralmente precedida por
episódios de borramento visual ou amaurose fugaz, estabelecendo-
se alguns meses após o início dos sintomas sistêmicos. Reflete
neuropatia óptica anterior isquêmica (NOIA) e pode ser prevenida
pelo tratamento com doses altas de corticoide. A diplopia acontece
por oftalmoplegia (paralisia dos nervos motores devido à isquemia).
Pode ocorrer claudicação intermitente da mandíbula e da língua pela
isquemia dos músculos da mastigação, sintoma mais específico de
ACG. Também é possível claudicação dos membros superiores por
arterite em artérias braquiais.
Neurite óptica isquêmica anterior (NOIA) é a principal causa de
perda visual na arterite de células gigantes. Como a avaliação do
fundo de olho em geral é alterada nos casos de NOIA, um bom exame
físico oftalmológico é um divisor de águas.
Figura 5.2 - Espessamento da artéria temporal em paciente com arterite de células
gigantes

Frequentemente, a ACG se manifesta de maneira muito semelhante à


polimialgia reumática (PMR – ver capítulo Doenças sistêmicas do
tecido conectivo) com dor e rigidez nos músculos do pescoço, nas
cinturas escapular e pélvica, associada a sinais de inflamação
sistêmica, como fadiga, perda de peso, sudorese e febre baixa, além
de anormalidades laboratoriais, como aumento da velocidade de
hemossedimentação (VHS), da Proteína C Reativa (PCR) e anemia.
Cerca de 30 a 50% dos pacientes com ACG possuem uma síndrome
clínica inicial que lembra muito a PMR, sendo o diagnóstico
verdadeiro só obtido com a evolução desfavorável (incomum na
PMR), com a documentação de acometimento vascular ou com o
aparecimento de outras formas clínicas de ACG (Dejaco et al., 2017).
A elevação das proteínas de fase aguda é um achado típico e auxilia
no diagnóstico e no seguimento dos pacientes após o tratamento: a
VHS encontra-se elevada, acima de 50 mm na primeira hora. Outras
provas de fase aguda podem estar alteradas. Fator antinúcleo (FAN)
e Fator Reumatoide (FR), em geral, são negativos.
O diagnóstico de ACG deve ser considerado a pacientes acima de 50
anos com história inexplicada de cefaleia, sinais de isquemia em
território vascular extracranial, perda da visão ou síndrome clínica
semelhante à PMR associada à evidência laboratorial de inflamação
(aumento de proteínas de fase aguda). Como exame complementar
disponível, há a ultrassonografia com Doppler de artéria temporal,
que classicamente demonstrará o sinal “do halo” (edema no interior
do vaso sanguíneo). Em pacientes com quadro clínico clássico e
ultrassonografia positiva, o histopatológico não se faz necessário. A
biópsia da artéria temporal, o padrão-ouro para o diagnóstico, pode
ser realizada para confirmação diagnóstica em casos duvidosos.
Recomenda-se biópsia unilateral de segmento com 2 cm de artéria
temporal em até 2 semanas após o início do tratamento. Caso seja
negativa, pode-se realizar a biópsia da artéria contralateral, porém
os exames não devem retardar o tratamento. Os exames de imagem,
muitas vezes, são necessários e constituem importante método
diagnóstico. Entre os principais exames de imagem disponíveis para
o diagnóstico do comprometimento extracraniano na ACG, podemos
citar angiotomografia de aorta e/ou angiorressonância de aorta.
É fundamental que o tratamento seja iniciado precocemente na
suspeita do diagnóstico. Para tanto, recomenda-se prednisona em
doses até 1 mg/kg com redução lenta e progressiva. Na vigência de
quadro ocular, deve-se proceder rapidamente com pulsoterapia com
metilprednisolona, 1 g/d, por 3 dias, para evitar amaurose definitiva;
após a pulsoterapia, o tratamento com corticoide é semelhante. A
maioria dos pacientes responde bem ao corticoide, mas pode haver
recidiva ou corticodependência. Nesses casos, podem ser utilizadas
drogas imunossupressoras, como metotrexato ou inibidor de IL-6
(Hellmich et al., 2019).
Sintomas de inflamação sistêmica e provas de atividade
inflamatória, como VHS ou PCR, são úteis na detecção de recidivas e
má resposta.
Baixas doses de ácido acetilsalicílico (AAS) eram indicadas para
reduzir o risco vascular, mas as recomendações mais recentes do
European League Against Rheumatism (EULAR) excluíram essa
medida (Hellmich et al., 2019), sendo usada apenas para pacientes
que já tinham outras indicações de ácido acetilsalicílico.
5.2.2 Arterite de Takayasu
A arterite de Takayasu, também conhecida como doença sem pulsos
(pulseless disease), tem predomínio entre mulheres (relação 10:1), e
seu início ocorre entre 15 e 40 anos (doença de adolescentes e
adultos jovens).
É uma poliarterite granulomatosa, com formação de granulomas e
células gigantes, que podem destruir a camada média e substituí-la
por tecido fibrótico.
O processo pode enfraquecer a parede do vaso, favorecendo a
formação de aneurisma, ou proliferá-la, provocando o
estreitamento da luz arterial.
Pode acometer a aorta e quaisquer de seus ramos, bem como as
artérias pulmonares. Até 10% dos pacientes são assintomáticos ao
diagnóstico. Aproximadamente 40% dos pacientes apresentam
sinais e sintomas inflamatórios (febre, sudorese noturna, fadiga,
mialgia, anorexia e perda de peso). Os sintomas mais sugestivos,
entretanto, são dor à palpação de trajetos vasculares (por exemplo, a
carotidínea), claudicação de extremidades, diminuição de pulsos,
diferença de pressão entre os membros e presença de sopros
vasculares. Comprometimento de territórios nobres podem culminar
com angina cardíaca ou mesentérica, acidente vascular encefálico ou
acidente isquêmico transitório e hipertensão renovascular.
Os exames de imagem, como arteriografia (Figura 5.3),
angiotomografia e angiorressonância fornecem informações sobre o
lúmen dos vasos, a distribuição e a gravidade da doença.
Figura 5.3 - Arteriografia que mostra dilatação do arco aórtico e múltiplas estenoses em
carótidas e, especialmente, em artérias subclávias
Fonte: Justin Ly.

As imagens vasculares são fundamentais para o diagnóstico, sendo a


arteriografia reservada para procedimentos cirúrgicos.
O diagnóstico diferencial é amplo e difícil, necessitando de
minuciosa investigação laboratorial e de imagem. Devemos excluir
arterite de células gigantes (compromete indivíduos com mais de 50
anos), doença de Kawasaki, doenças vasculares congênitas,
aterosclerose, dentre outras.
Corticosteroide é a terapia de escolha no tratamento da arterite de
Takayasu, na dose de 1 mg/kg de prednisona ou equivalente para
controle inflamatório da doença, com posterior desmame da
medicação. A última diretriz do EULAR recomenda associação de
imediato com imunossupressores, como o metotrexato (Hellmich et
al., 2019).
Em casos de estenose ou formações aneurismáticas, cirurgia e
angioplastia são importantes no tratamento da arterite de Takayasu.
5.3 VASCULITES DE MÉDIOS VASOS
As vasculites de médios vasos acometem artérias de calibre
intermediário e cursam com sofrimento orgânico segmentar.
Possuem como principal fisiopatologia o ataque direto aos vasos
sanguíneos por células inflamatórias, especialmente por neutrófilos
e macrófagos. O ataque à parede do vaso é intenso, com perda da
estrutura muscular e substituição por tecido cicatricial fibrinoide.
Nas regiões de cicatrização, ocorre abaulamento da parede vascular e
formação de aneurismas e microaneurismas.
A presença de microaneurismas renais e
aneurismas coronarianos sugere vasculite de
médios vasos.
Os órgãos mais acometidos pelas vasculites de médio calibre são o
coração, as extremidades, o rim e os nervos. As suas 2 principais
representantes são a poliarterite nodosa e a doença de Kawasaki.
5.3.1 Poliarterite nodosa
A poliarterite nodosa (PAN) é uma forma de vasculite que afeta
artérias de médio e pequeno calibres. Pode surgir em qualquer idade,
mas o pico ocorre entre 40 e 50 anos, sendo 3 vezes mais comum em
homens do que em mulheres. Vacinas ou infecções podem estar
relacionadas ao desencadeamento da doença. Em 30% dos casos,
associa-se à infecção por hepatite B e C, apresentando melhora após
o tratamento do quadro, quando possível. Acomete mais comumente
rins, trato gastrintestinal e sistema nervoso central.
Como dito anteriormente, o comprometimento inflamatório da
parede arterial leva à formação de aneurismas.
A imagem à arteriografia de segmentos de várias artérias com
abaulamentos em suas paredes originou o nome da doença (Figura
5.4). Caracteristicamente, as lesões histológicas estão em diferentes
estágios de evolução, acompanhadas de necrose fibrinoide, ausência
de granulomas e presença de aneurismas da parede arterial.
Figura 5.4 - Arteriografia renal em paciente com poliarterite nodosa
Nota: observar aneurismas saculares intraparenquimatosos em artérias de médio calibre.

A doença costuma começar com queixas vagas, febre baixa e


emagrecimento. As lesões cutâneas incluem nódulos subcutâneos
(Figura 5.5), livedo reticularis (Figura 5.6), úlceras vasculíticas
(Figura 5.7) e gangrena digital. A PAN cutânea é uma variante da PAN
clássica, em que só a pele é acometida, sem envolvimento visceral.
Mais de 80% dos pacientes têm neuropatia periférica por vasculite,
tipicamente uma mononeurite múltipla, que afeta nervos
específicos, com frequência, os nervos fibular, tibial, ulnar, mediano
e radial, levando a sintomas e sinais nas extremidades distais, como
pé e mão caídos (Figura 5.8). O acometimento de vasos mesentéricos
leva à manifestação clássica de angina intestinal: dor periumbilical
pós-prandial. Pode haver perfuração ou isquemia do intestino, com
sangramento intestinal maciço. Envolvimento renal, presente
universalmente nas autópsias, pode provocar insuficiência renal e
hipertensão. Orquiepididimite também é possível. Lesões cardíacas
podem levar a infarto do miocárdico e falência cardíaca congestiva,
mas, em geral, são subclínicas.
A PAN costuma poupar o leito arterial pulmonar.
Figura 5.5 - Nódulos subcutâneos em paciente com poliarterite nodosa
Fonte: site Logical Images.

Figura 5.6 - Livedo reticularis em paciente com poliarterite nodosa

Fonte: ABC of Rheumatology, 2009.


Figura 5.7 - Úlcera cutânea em paciente com poliarterite nodosa

Fonte: Livedo reticularis ulcerado em paciente com anticorpo anticardiolipina tipo IgA,
2005.

Figura 5.8 - Mão caída por acometimento do nervo radial em paciente com poliarterite
nodosa
Quanto às alterações laboratoriais, as mais encontradas são
leucocitose, elevação da VHS e anemia discreta. FR e FAN podem
estar presentes em títulos baixos.
Para o diagnóstico, entretanto, é necessário excluir outras doenças
sistêmicas infecciosas, neoplásicas ou inflamatórias. Para a
confirmação por achados mais específicos de PAN, biópsias
mostrando a vasculite necrosante em parede arterial podem ser
realizadas em lesões cutâneas, músculos ou nervos. Os
microaneurismas podem ser demonstrados em angiografias renais
ou mesentéricas.
São associações fortemente sugestivas de PAN:
livedo, mononeurite múltipla, dor muscular e
perda da função renal com hipertensão em
paciente com provas de atividade inflamatória
elevadas.

No diagnóstico diferencial dessa patologia, entram as demais


vasculites sistêmicas (granulomatose com poliangiite – Wegener,
granulomatose com poliangiite e eosinofilia – Churg-Strauss), além
das pseudovasculites, como ateroembolismo, linfoma,
neurofibromatose, displasia fibromuscular, pseudoxantoma
elástico, amiloidose, mixoma atrial, coarctação de aorta, síndrome
de Sweet, sepse, endocardite, calcifilaxia, púrpura trombocitopênica
trombótica, síndrome de Ehlers-Danlos, síndrome do desfiladeiro
torácico etc.
O tratamento da PAN idiopática (primária, não associada ao vírus da
hepatite B) inclui corticoide em altas doses e terapia com
imunossupressor – por exemplo, azatioprina ou ciclofosfamida
(West, 2015). No caso de PAN associada ao vírus B, é requerido o
tratamento antiviral. A plasmaférese também é uma opção nessas
situações.
5.3.2 Doença de Kawasaki
A doença de Kawasaki, também conhecida como síndrome
linfonodo-mucocutânea, é uma doença aguda, febril, exantemática e
de etiologia desconhecida. Trata-se de vasculite aguda e
multissistêmica, que compromete vasos predominantemente de
médio calibre. Predomina no sexo masculino, em crianças menores
de 5 anos, sendo, na maioria das vezes, autolimitada.
A doença de Kawasaki pode causar vasculite em vários órgãos e
aparelhos, como pulmão, intestino, vesícula biliar, sistema nervoso
central, entre outros, porém o comprometimento cardíaco é o mais
significativo, com formação de aneurismas coronarianos.
É de ocorrência universal e atinge todas as faixas etárias pediátricas,
ainda que 85% dos casos acometam crianças com menos de 5 anos,
sendo infrequente em pacientes com menos de 6 meses ou mais de 8
anos, nos quais, entretanto, há maior risco de formação de
aneurismas coronarianos.
Sua causa permanece desconhecida, apesar de as características
clínicas (doença febril autolimitada) e epidemiológicas
(sazonalidade e caráter epidêmico) favorecerem a hipótese de um
agente infeccioso ser o determinante causal, hipótese que,
entretanto, ainda não está comprovada.
As alterações histológicas precoces mostram infiltrado inflamatório
macrofágico síncrono e circunferencial nas paredes dos vasos. Após
alguns dias, a inflamação reduz e o processo cicatricial gera a
formação de aneurismas (Takahashi et al., 2013).
A doença de Kawasaki é dividida em 3 fases clínicas distintas: aguda,
subaguda e de convalescença. A fase aguda dura de 1 a 2 semanas e
caracteriza-se por febre, conjuntivite, hiperemia de mucosas,
linfadenopatia e rash cutâneo. Outros achados clínicos podem estar
associados, como miocardite, derrame pericárdico, meningite
asséptica (10 a 25%), diarreia (15%), disfunção hepática (5%), uveíte
(17%) e artrite e/ou artralgia (30%).
A fase subaguda inicia-se quando a febre, o rash e a linfadenopatia
cessam, em média, de 1 a 2 semanas depois do início da doença. A
duração dessa fase é de cerca de 4 semanas, na qual ocorrem
descamação periungueal (Figura 5.9), trombocitose, formação de
aneurismas coronarianos e risco maior de morte súbita.
Complicações neurológicas também podem surgir em 1% dos casos e
incluem paralisia do nervo facial, ataxia, encefalopatia, hemiplegia e
infarto cerebral.
Figura 5.9 - Descamação palmoplantar em paciente com doença de Kawasaki

Fonte: Doença de Kawasaki, 2009.

A fase de convalescença inicia-se quando os sinais clínicos


desaparecem e dura até a normalização da VHS, em média de 6 a 8
semanas após início do quadro febril.
Na doença de Kawasaki, a febre, sinal característico da fase aguda da
doença, é, em geral, acima de 39 a 40 °C e remitente. O primeiro dia
de febre é considerado o primeiro dia de doença, no entanto alguns
pacientes ocasionalmente apresentam outras manifestações clínicas
antecedendo o quadro febril. A febre dura, em média, de 1 a 2
semanas, podendo, na ausência de tratamento, estender-se até 3 ou
4 semanas, e tem resposta apenas parcial ao uso de antipiréticos. Ao
se iniciar, porém, a terapêutica apropriada (imunoglobulina
intravenosa e ácido acetilsalicílico), a febre cessa em 2 dias.
A conjuntivite (Figura 5.10) bilateral não exsudativa envolve,
principalmente, a conjuntiva bulbar em relação às conjuntivas
palpebral e tarsal; é indolor e ocorre na fase aguda da doença. A
iridociclite pode acompanhar o quadro clínico, com rápida
resolução, e é raramente associada à fotofobia.
Figura 5.10 - Conjuntivite em paciente com doença de Kawasaki

As alterações vistas na mucosa labial são caracterizadas por eritema,


edema com fissuras, descamação e exsudação (Figura 5.11); a
mucosa orofaríngea apresenta-se com enantema, e a língua, com
eritema intenso e papilas gustativas proeminentes, o chamado
“aspecto framboesiforme” (Figura 5.11).
Figura 5.11 - Língua com aspecto framboesiforme em menor com doença de Kawasaki
Fonte: Natr, 2011.

O rash cutâneo que surge no paciente é polimórfico, não pruriginoso


e geralmente aparece até o quinto dia de febre. O exantema cutâneo
pode compreender lesões maculopapulares eritematosas e difusas
(Figura 5.12), a forma mais comum, além de rash tipo urticariforme,
escarlatiniforme, eritrodérmico, purpúrico, eritema multiforme-like
e, mais raramente, com micropústulas em superfície extensora dos
membros.
Figura 5.12 - Intenso eritema labial e rash maculopapular na face de criança com doença
de Kawasaki
Fonte: Cardiovascular Lesions of Kawasaki Disease: From Genetic Study to Clinical
Management, 2012.

As manifestações cardíacas podem ser exacerbadas na fase aguda da


doença, conferindo aumento na mortalidade e na morbidade. Pode
haver miocardite, pericardite, endocardite, além de
comprometimentos valvular e coronariano com repercussão
hemodinâmica. Ao exame, pode haver precórdio hiperdinâmico,
taquicardia, sopro pansistólico em caso de regurgitação mitral
significativa e ritmo “de galope”, devido à instalação de
insuficiência cardíaca. O dano coronariano pode variar de dilatação a
estenose, até a formação de aneurisma. A frequência do
envolvimento coronariano é maior nos lactentes com menos de 6
meses em relação àqueles de 6 a 12 meses. Os aneurismas fusiformes
e saculares aparecem de 18 a 25 dias depois de instalada a doença
(Figura 5.13).
Figura 5.13 - Arteriografia evidenciando aneurisma da artéria coronária esquerda
Outras possíveis manifestações incluem poliartrites e rabdomiólise.
Pelo comprometimento cardiovascular, é possível o achado de
aneurismas coronarianos, miocardite, pericardite e regurgitação
valvar. Pacientes com comprometimento gastrintestinal evoluem
com dor abdominal e diarreia, colangite, pancreatite e ascite.
O comprometimento pulmonar apresenta-se como quadros
influenza-like ou derrames pleurais. O paciente pode evoluir ainda
com cistite e prostatite. Na presença de sintomas neurológicos,
podemos encontrar quadros de meningites assépticas e surdez
neurossensorial.
Na doença de Kawasaki, há conjuntivite
bilateral não exsudativa, edema labial com
fissuras, língua “em framboesa”, rash cutâneo
polimórfico, maculopapular eritematoso e
difuso e envolvimento cardíaco, com formação
de aneurismas coronarianos.

São fatores de risco para surgimento de aneurismas: sexo masculino,


idade < 1 ano, febre recorrente apesar do tratamento, aumento de
VHS, anemia e hipoalbuminemia, trombocitopenia e hiponatremia.
Recentemente, a American Heart Association apresentou critérios
para complementar os critérios originais propostos por Tomisaku
Kawasaki (McCrindle et al., 2017), tornando possível, teoricamente,
o diagnóstico de formas incompletas da doença. Assim, pacientes
com febre alta de início abrupto presente por 5 ou mais dias
preenchem critério se apresentarem 4 ou mais dos seguintes
achados:
a) Conjuntivas oculares hiperemiadas;
b) Alterações da cavidade oral, incluindo eritema, secura, mucosa e
orofaringe hiperemiada;
c) Alterações nas extremidades distais dos membros, incluindo rubor e
edema endurado das mãos e dos pés e descamação periungueal;
d) Exantema eritematoso polimorfo (morbiliforme, escarlatiniforme,
maculopapular, eritema marginado), propagando-se das extremidades
para o tronco e durando cerca de 1 semana;
e) Aumento não supurado dos linfonodos cervicais.

Pacientes que não preenchem critério e possuem alta suspeita,


podem, então, ser avaliados para os critérios de Kawasaki
incompletos:
Quadro 5.1 - Critérios diagnósticos propostos pela American Heart Association para
doença de Kawasaki incompleta
Fonte: adaptado de Diagnosis, Treatment, and Long-Term Management of Kawasaki
Disease: A Scientific Statement for Health Professionals From the American Heart
Association, 2017.

Laboratorialmente, observam-se aumento da VHS ou PCR,


leucocitose e trombocitose caracteristicamente a partir da segunda
semana de doença. Podemos ainda evidenciar hipoalbuminemia,
aumento moderado de transaminases, piúria estéril, hiponatremia e
líquido sinovial com leucocitose. O liquor demonstra pleocitose com
predomínio de mononucleares.
O diagnóstico diferencial inclui síndrome de Stevens-Johnson,
farmacodermias, exantemas virais, artrite reumatoide juvenil,
síndrome da pele escaldada, síndrome do choque tóxico e
linfadenites cervicais bacterianas.
A imunoglobulina intravenosa é o principal medicamento na doença
de Kawasaki, sendo utilizada na fase aguda, preferencialmente nos
primeiros 10 dias da doença. Deve-se utilizar a dose de 2 g/kg em
infusão única, durante período de 10 a 12 horas, associada a ácido
acetilsalicílico na dose de 30 a 100 mg/kg/d (McCrindle et al., 2017).
Na fase aguda, o ácido acetilsalicílico é utilizado dividido em 4
tomadas diárias para potencializar o efeito anti-inflamatório da
imunoglobulina intravenosa, porém não diminui a frequência de
anormalidades coronarianas. O tempo de uso do ácido acetilsalicílico
em altas doses varia, sendo, em geral, reduzido à dose de 3 a 5
mg/kg/d após um período de 48 a 72 horas afebril. Essa nova dose é
mantida por 4 a 6 semanas (McCrindle et al., 2017). Para crianças
com anormalidades cardíacas, o ácido acetilsalicílico é mantido até a
melhora.
5.4 VASCULITE DE PEQUENOS VASOS
As vasculites de pequenos vasos acometem vasos microscópicos e
aparelhos relacionados à microestrutura dos órgãos, como o
aparelho glomerular e a interface alveolocapilar. O mecanismo
envolvido nas vasculites de pequenos vasos é amplo, mas, de
maneira geral, é mais relacionado às vias Th17, com produção de
anticorpos ou inflamação tecidual direta.
Quando há grande produção de anticorpos voltados contra antígenos
que são disponíveis em circulação, ocorre formação de
imunocomplexos circulantes e deposição vascular com vasculite
como consequência; neste caso, teremos vasculite por
imunocomplexos, um dos subgrupos de vasculite de vasos de
pequeno calibre.
Quando não há grande produção de anticorpos, ou quando os
anticorpos produzidos não encontram os seus antígenos
prontamente disponíveis na circulação – como é o caso do
citoplasma neutrofílico (Xiao et al., 2015) –, ocorre ataque direto ao
vaso sanguíneo, com infiltração fagocitária e destruição vascular.
Neste subgrupo, encontram-se as vasculites ditas pauci-imune, ou
seja, com lesão não relacionada à deposição de imunocomplexos.
Nas vasculites relacionadas ao anticorpo anticitoplasma de
neutrófilo (ANCA), ainda há mais mecanismos, como hiperativação
Th1 com formação de granulomas e hiperativação Th2 com
recrutamento de eosinófilos.
Assim sendo, as vasculites relacionadas ao ANCA possuem uma das
fisiopatologias mais ricas e intrigantes da Reumatologia, com
inúmeras perguntas ainda não respondidas.
5.4.1 Vasculites relacionadas aos ANCA
Como dito, as vasculites pauci-imunes são assim chamadas porque o
mecanismo de dano à parede vascular não se faz por meio de
depósitos de imunocomplexos à histologia. Isso as difere das
vasculites por imunocomplexos.
São ditas relacionadas ao ANCA porque a maioria dos pacientes com
vasculite de pequenos vasos pauci-imune apresenta anticorpos
contra determinadas proteínas específicas encontradas dentro dos
grânulos citoplasmáticos dos neutrófilos. Há 2 padrões clássicos de
ANCA pela imunofluorescência: o citoplasmático (c-ANCA) e o
perinuclear (p-ANCA). Um padrão atípico, quando não há c-ANCA
nem p-ANCA, também foi descrito.
Por método ELISA (enzyme-linked immunosorbent assay), podemos
encontrar anticorpos antiproteinase-3 (anti-PR3) e
antimieloperoxidase de neutrófilos (anti-MPO).
O c-ANCA é relativamente específico para granulomatose com
poliangiite (outrora chamada de granulomatose de Wegener) e pode
correlacionar-se com a atividade da doença. O p-ANCA, por sua vez,
é mais relacionado à poliangiite microscópica e à granulomatose
eosinofílica com poliangiite (outrora chamada de síndrome de
Churg-Strauss).
5.4.1.1 Poliangiite microscópica

A poliangiite microscópica (PAM) é uma desordem que acomete


vasos de pequeno calibre, incluindo capilares, vênulas e arteríolas. É
uma vasculite necrosante pauci-imune com tropismo pelos rins
(glomerulonefrite rapidamente progressiva) e pulmões (capilarite
pulmonar).
As manifestações mais comuns são glomerulonefrite com
hematúria, perda de função renal, hipertensão, perda de peso, lesões
cutâneas purpúricas (Figura 5.14) e febre. Capilarite pulmonar pode
acarretar hemorragia alveolar (Figura 5.15) e hemoptise. A
hemorragia pulmonar ocorre em até 30% dos casos e pode causar
dispneia e hemoptise, com radiografia mostrando infiltrado alveolar
focal (Figura 5.16).
Figura 5.14 - Púrpura palpável nos membros inferiores
Figura 5.15 - Radiografia de tórax de paciente com poliangiite microscópica e hemorragia
pulmonar

Figura 5.16 - Tomografia computadorizada evidenciando hemorragia alveolar no pulmão


direito
Embora a PAM possa cursar com manifestações neurológicas
(eminentemente mononeurite múltipla) e inflamação de vias aéreas
altas (Hochberg, 2019), não é infrequente que se apresente apenas
com síndrome pulmão-rim pura, sem muitos outros achados
(Gayraud et al., 2001). Quando ocorre acometimento do parênquima
pulmonar, geralmente se dá mais na forma de intersticiopatia (West,
2015).
Sessenta a oitenta por cento dos pacientes com PAM são positivos
para o ANCA (Hochberg, 2019), sendo o padrão perinuclear (pANCA)
o mais encontrado na imunofluorescência. Em geral, esse padrão
simboliza o anticorpo anti-MPO. A titulação do p-ANCA pode
eventualmente se associar à atividade de doença (Han et al., 2003),
mas jamais deve ser avaliada de maneira isolada (Hochberg, 2019).
Apresentam-se ainda achados incaracterísticos, como anemia
normo/normo, trombocitose, hipoalbuminemia e elevação de provas
inflamatórias (VHS e PCR).
O p-ANCA é geralmente positivo (70%) em
pacientes com PAM e seus títulos podem
eventualmente se relacionar à atividade dentro
de um contexto clínico pertinente.

Para pacientes com PAM que apresentam glomerulonefrite,


hemorragia alveolar, mononeurite múltipla ou outras manifestações
graves, está indicado o tratamento com a combinação de corticoide
em forma de pulsoterapia – acompanhada de corticoide oral dose
alta – e ciclofosfamida. Rituximabe é uma outra opção possível
(Yates et al., 2016).
5.4.1.2 Granulomatose com poliangiite

A granulomatose com poliangiite (GPA), chamada anteriormente de


granulomatose de Wegener, é uma doença sistêmica caracterizada
pela vasculite necrosante granulomatosa do trato respiratório
superior e inferior, com ou sem glomerulonefrite. É uma doença
incomum, que afeta ambos os sexos igualmente e surge em todas as
faixas etárias, sendo mais encontrada em caucasianos (97%). Sua
causa é desconhecida.
Como sintomas gerais iniciais, o paciente costuma apresentar febre,
anorexia, emagrecimento, fadiga e fraqueza. As vias aéreas
superiores (seios da face, ouvidos, nasofaringe, orofaringe e
traqueia), o trato respiratório inferior (brônquios e pulmões) e os
rins são caracteristicamente envolvidos.
Nas vias aéreas superiores, podem ocorrer obstrução nasal crônica
com rinorreia persistente (sanguinolenta e/ou purulenta), ulceração
e edema da mucosa nasal. Perfuração do septo nasal e ulceração e
erosão do vômer, levando à deformidade de nariz “em sela” (Figura
5.17), são achados clássicos. É comum o envolvimento
granulomatoso dos seios da face, podendo haver invasão das
estruturas contíguas, como a órbita (Figura 5.18). Tais lesões são
com frequência infectadas, secundariamente, por Staphylococcus
aureus. Podem ocorrer otite média secretora, otite média crônica,
com perfuração da membrana timpânica, otalgia e otorreia, assim
como disfonia, estridor laríngeo, sibilos, ulceração oral, edema oral
e gengivite (Figura 5.19).
As manifestações oculares incluem pseudotumor orbital (Figura
5.18), massa inflamatória retrobulbar (que pode levar à proptose);
dor; diplopia e perda visual devido à isquemia do nervo óptico;
esclerite, com dor e vermelhidão ocular, podendo complicar com
escleromalácia perfurante e cegueira; ceratite ulcerativa periférica,
que pode evoluir com perfuração da córnea e cegueira; além de
outras manifestações inflamatórias e vasculíticas como uveíte,
conjuntivite, episclerite e obstrução do ducto lacrimal.
A granulomatose com poliangiite acomete
principalmente as vias aéreas superiores
(incluindo as órbitas e os olhos) e inferiores e os
rins.
Figura 5.17 - Nariz “em sela” e ulceração cutânea em paciente com granulomatose com
poliangiite
Figura 5.18 - Pseudotumor orbital na granulomatose com poliangiite

Figura 5.19 - Paciente com granulomatose com poliangiite


Legenda: (A) ulceração na língua; (B) “gengivas de morango”.
O envolvimento pulmonar também é extremamente comum. Tosse
produtiva, dispneia, hemoptise, dor e desconforto torácico são os
principais sintomas. Anormalidades nas radiografias de tórax são
vistas em mais de 90% dos casos e incluem lesões nodulares
escavadas não calcificadas, largas, múltiplas e bilaterais (Figura
5.20).
Figura 5.20 - Nódulo pulmonar em paciente com granulomatose com poliangiite

As características nefrológicas da GPA são, predominantemente,


representadas por glomerulonefrite focal necrosante, que leva a
hematúria, leucocitúria e anormalidades nos níveis de ureia e
creatinina, podendo provocar falência renal e morte. Esse
acometimento está presente em 80% dos pacientes em algum
momento da evolução, porém apenas 20% dos casos como
manifestação inicial. A síndrome pulmão-rim pode aparecer na GPA,
assim como na PAM.
Manifestações no sistema nervoso, como mononeurite múltipla,
neuropatia sensorial, anormalidades de nervos cranianos e perda
auditiva neurossensorial, podem ocorrer, mas em frequência menor
do que nas demais vasculites relacionadas ao ANCA (Hochberg,
2019).
Os achados laboratoriais encontrados são anemia de doença crônica
e aumento das provas de atividade de fase aguda, como a VHS e a
PCR. O FAN costuma ser negativo, e o complemento, normal. A
associação entre GPA e ANCA é bem estabelecida. O ANCA, mais
frequentemente de padrão citoplasmático e representando
geralmente o anticorpo anti-PR3, ocorre em mais de 90% dos
pacientes com GPA (Hochberg, 2019) e é relativamente específico,
podendo correlacionar-se com a atividade da doença (Han et al.,
2003).
O diagnóstico diferencial inclui outras vasculites, síndrome pulmão-
rim, infecções fúngicas ou micobacterioses, neoplasias, sarcoidose e
doenças autoimunes sistêmicas (lúpus eritematoso sistêmico e
artrite reumatoide).
A positividade do ANCA é encontrada em mais
de 90% dos pacientes com granulomatose com
poliangiite. O padrão mais comum é o
citoplasmático (aproximadamente 70%).

O tratamento atual é semelhante ao preconizado para a PAM e


geralmente consistirá em pulsoterapia com metilprednisolona (1 g/d
por 3 dias), acompanhada de ciclofosfamida (oral ou em pulsos
mensais). Nessa fase de indução, o rituximabe também pode ser
utilizado (Yates et al., 2016). A plasmaférese é indicada nos casos de
síndrome urêmica associada à glomerulonefrite rapidamente
progressiva, com indicação de terapia dialítica, ou na hemorragia
alveolar grave.
5.4.1.3 Granulomatose eosinofílica com poliangiite

A granulomatose eosinofílica com poliangiite, anteriormente


chamada de síndrome de Churg-Strauss, é uma vasculite rara, que
afeta vasos de médio e pequeno calibres, com predileção por
pequenas artérias, arteríolas, capilares e vênulas. Caracteriza-se
pela síndrome que apresenta asma, rinite alérgica, eosinofilia (>
10%) e febre, acompanhada por vasculite de vários sistemas
orgânicos. Também se trata de vasculite associada ao ANCA. É
descrita na literatura a ocorrência de 3 fases da doença: fase
prodrômica, com sintomas atópicos; fase eosinofílica, com
infiltração dos tecidos por eosinófilos, como na gastroenterite
eosinofílica; e fase vasculítica, com acometimento sistêmico e
fulminante. O espectro total da doença pode levar anos para se
desenvolver, mas não é obrigatório que todas as fases estejam nessa
ordem, nem que todas ocorram.
Como manifestações pulmonares, há asma de início tardio, de maior
frequência e intensidade até a terceira fase, quando tende a entrar
em remissão. Alterações cutâneas podem estar presentes em 66%
dos casos, e, dentre as manifestações mais comuns, estão a púrpura
(Figura 5.21), urticária, eritema e nódulos. Nesse subtipo das
vasculites associadas ao ANCA, sintomas neurológicos são bem mais
comuns, na forma de mononeurite múltipla e, muito raramente,
alterações do sistema nervoso central. Manifestações renais são
ainda possíveis (glomerulonefrite focal e segmentar necrosante,
com presença de crescentes), mas menos frequentes do que nas
demais vasculites associadas ao ANCA (Hochberg, 2019).
Figura 5.21 - Lesões purpúricas em paciente com granulomatose com poliangiite e
eosinofilia
Os achados laboratoriais incluem: anemia e provas de atividade
inflamatória elevadas em 80% dos casos; eosinofilia constante,
geralmente > 1.000/mm3 e logo reduzida após uso de
corticosteroide, sendo o aumento na contagem precedente ao
período de atividade da doença. Pode ocorrer elevação dos níveis
séricos de IgE (75% dos casos). O p-ANCA (anti-MPO), por sua vez,
está positivo em cerca de 40% dos casos.
#IMPORTANTE
Uma causa importante de morbidade na
granulomatose eosinofílica com poliangiite é a
infiltração cardíaca por eosinófilos, gerando
insuficiência cardíaca e distúrbios de ritmo.

O diagnóstico diferencial se faz com pneumonia eosinofílica crônica


(comprometimento exclusivamente pulmonar) e síndromes
hipereosinofílicas.
Para o tratamento, são utilizadas altas doses de prednisona (1
mg/kg/d). Agentes citotóxicos, como a ciclofosfamida, devem ser
reservados a casos individuais graves e progressivos, com
envolvimentos renal, intestinal, cardíaco ou pulmonar.
5.4.2 Púrpura de Henoch-Schönlein
A Púrpura de Henoch-Schönlein (PHS) pode desenvolver-se em
qualquer idade, mas, em 90% dos casos, acontece em crianças.
Nesse grupo, 2 terços dos pacientes relatam antecedente de infecção
do trato respiratório superior, sugerindo que o processo infeccioso
possa ser o desencadeador da doença.
O paciente apresenta, tipicamente, quadro agudo de febre, púrpura
palpável nos membros inferiores e nas nádegas (Figura 5.22), dor
abdominal (tipo cólica pós-prandial), artrite (grandes articulações)
e glomerulonefrite com hematúria. A púrpura pode ser extensa e
confluente e envolver braços e tronco. Dor abdominal pode ser
causada por edema intestinal e isquemia mesentérica. Doença
articular pode manifestar-se como artralgia e artrite, em especial,
de grandes articulações, como joelhos e tornozelos e, menos
comumente, punhos e cotovelos. A principal manifestação da
glomerulonefrite é hematúria microscópica acompanhada por
proteinúria. Em geral, é benigna, mas pode evoluir com insuficiência
renal em 10% dos casos.
Figura 5.22 - Púrpura nos membros inferiores em paciente com púrpura de Henoch-
Schönlein
Fonte: Púrpura de Henoch-Schönlein com anticorpo c-ANCA em um adulto, 2016.

A púrpura palpável em menores de 20 anos, com angina abdominal,


é altamente indicativa do diagnóstico. À histologia, tem-se o achado
de granulócitos nas paredes dos vasos com depósito de IgA. Apesar
de ser mediada por imunocomplexos, a PHS não necessariamente
provoca hipocomplementenemia, pois a IgA é uma fraca indutora
das vias do complemento.
O tratamento inclui anti-inflamatórios não hormonais para
artralgias e corticoides para os sintomas gastrintestinais, se
necessário. A maioria dos pacientes evolui bem, sem maiores
necessidades de imunossupressão. Casos de glomerulonefrite grave,
com crescentes, podem ser tratados com pulsoterapia de corticoide e
altas doses de corticoterapia oral, além de imunossupressores, como
azatioprina e ciclofosfamida.
5.4.3 Vasculite por crioglobulinas
As crioglobulinas são anticorpos que se precipitam em condições de
baixa temperatura, dissolvem no calor e ocorrem em associação a
inúmeras condições sistêmicas, podendo levar a complicações que
incluem vasculites e hiperviscosidade. As crioglobulinemias são
classificadas em tipos I, II ou III:
1. Crioglobulinemia tipo I: contém anticorpos monoclonais (IgG ou
IgM), sem atividade de FR; estes estão associados a certas doenças
hematológicas malignas, como mieloma múltiplo e
macroglobulinemia de Waldenström;
2. Crioglobulinemia tipos II e III: são chamadas “mistas”, pois
contêm anticorpos IgM e IgG. O componente IgG é sempre
policlonal. Já o componente IgM diferencia a do tipo II, quando é
monoclonal, da do tipo III, que é policlonal. Em ambos os casos, o FR
é positivo. Crioglobulinemias II e III ocorrem em associação a
algumas doenças, como hepatite C, síndrome de Sjögren e lúpus.
Podem provocar vasculite predominantemente de pequenos vasos
do tipo hipocomplementêmica. A glomerulonefrite
membranoproliferativa é a forma mais comum de
comprometimento renal.
A manifestação mais comum na crioglobulinemia é a púrpura
palpável nos membros inferiores (Figura 5.23). Outras manifestações
são neuropatia, glomerulonefrite, artralgia, mialgia e fadiga.
O diagnóstico é tipicamente feito com base na história, nas
manifestações típicas da doença, como púrpura e
hipocomplementenemia, e na presença de crioglobulinas. Os testes
sorológicos positivos para o vírus da hepatite C reforçam o
diagnóstico da crioglobulinemia relacionada a este vírus.
Figura 5.23 - Púrpura palpável em paciente com crioglobulinemia

Fonte: Crioglobulinemia: relação entre hepatite C e glomerulonefrite, 2018.

O tratamento depende se há doença de base associada, mas quase


sempre passará por imunossupressão. Caso seja crioglobulinemia
por vírus C, o tratamento antiviral está sempre indicado, mas, se
houver doença ameaçadora, a imunossupressão deve vir primeiro
(Pietrogrande et al., 2011). Para pacientes com mononeurite múltipla
ou outras manifestações graves, podem ser usados corticosteroides,
ciclofosfamida e o rituximabe. A plasmaférese pode ser indicada em
casos de glomerulonefrite grave.
5.5 VASCULITE DE VASOS VARIÁVEIS
As vasculites de vasos variáveis incluem doenças de difícil
classificação inicial, por acometerem vasos de vários tipos (artérias e
veias) e calibres (todas as espessuras). Por essa característica, a
fisiopatologia dessas entidades clínicas é pouco conhecida e o seu
comportamento é mais incerto do que nas demais vasculites. A
maioria dessas síndromes são extremamente infrequentes e fogem
ao escopo desta obra, contudo, a doença de Behçet é aqui classificada
e merece especial atenção pela sua singularidade.
5.5.1 Doença de Behçet
A doença de Behçet é uma doença vascular inflamatória crônica de
etiologia desconhecida que ocorre em todo o mundo, com
prevalência mais elevada em países do Mediterrâneo, do Oriente
Médio e da Ásia. Acomete, principalmente, adultos jovens, com idade
entre 15 e 40 anos (pico aos 20 anos).
As aftas orais são, usualmente, os primeiros sintomas. Em geral, são
múltiplas e dolorosas e podem estar presentes na língua, na gengiva
e no palato (Figura 5.24). Úlceras genitais podem aparecer na vulva,
na vagina, no escroto e, muito raramente, no pênis (Figura 5.25).
Sempre se deve pensar em doença de Behçet
quando há úlceras orais, úlceras genitais e
uveíte.
Figura 5.24 - Aftas orais em paciente com doença de Behçet
Figura 5.25 - Ulceração na bolsa escrotal de paciente com doença de Behçet
Fonte: Doença de Behçet: revisão com ênfase em aspectos dermatológicos, 2017.

Lesões cutâneas são comuns e incluem paniculite (que lembra muito


um eritema nodoso na apresentação, mas a patologia revela ser, na
verdade, paniculite com vasculite), pseudofoliculites, lesões
papulopustulosas ou nódulos acneiformes.
O teste da patergia positivo (uma resposta exacerbada da pele ao
trauma, resultante da hiperatividade dos neutrófilos) pode auxiliar
no diagnóstico, mas não é específico de doença de Behçet. Para
reproduzir o teste, uma agulha estéril é inserida perpendicularmente
na pele e no subcutâneo, na região anterior do antebraço. Após 48
horas, aparece eritema ou pústula (> 2 mm de diâmetro) nos locais
onde ocorreu o trauma, considerando o teste positivo.
O achado ocular clássico na doença de Behçet é a uveíte aguda
bilateral, eventualmente com formação de hipópio (Figura 5.26).
Além de uveíte anterior, a doença de Behçet pode fazer uma
verdadeira panuveíte, acometendo todas as câmaras oculares.
Ademais, vasculite de retina é outro achado possível. As
manifestações oculares frequentemente cursam com perda de
acuidade visual.
Figura 5.26 - Hipópio: observar a formação do nível líquido

O envolvimento de grandes vasos, tanto no território venoso quanto


no arterial, é comum, sendo a maior causa de morbimortalidade.
Trombose venosa profunda é a complicação vascular mais comum.
Podem, ainda, ocorrer trombose de veia cava, síndrome de Budd-
Chiari, trombose venosa cerebral e varizes de esôfago. Lesões
arteriais podem ocorrer na circulação sistêmica e no leito arterial
pulmonar, causando estenoses, oclusões e aneurismas.
Do ponto de vista neurológico, além das síndromes trombóticas,
pode cursar com vasculite de sistema nervoso central, com
consequências graves ao paciente por acometer preferencialmente o
rombencéfalo.
O diagnóstico de doença de Behçet é difícil, sendo apenas facilitado
pela presença de úlceras bipolares. Quando não estão presentes (ou
estão presentes na forma unipolar), faz-se necessário grande
esforço para confirmá-lo, baseando-se, quase que exclusivamente,
em achados clínicos. Deste modo, é uma doença que desperta
interesse entre os reumatologistas.
Não existem testes específicos ou biomarcadores confirmatórios. Os
reagentes de fase aguda geralmente estão aumentados, mas são
inespecíficos, e as dosagens do complemento, fator reumatoide,
crioglobulinas e fator antinúcleo são caracteristicamente normais ou
negativas. A biópsia de eventuais lesões acessíveis pode contribuir se
mostrar vasculite neutrofílica, dentro de um contexto adequado,
mas é comum que retornem com achados inespecíficos. Assim,
existe, acima de tudo, uma importância em excluir outros
diagnósticos mais comuns antes de concluir se tratar de doença de
Behçet, como infecções por herpes-simples, HIV ou citomegalovírus
e doença inflamatória intestinal.
As espondiloartrites e a doença inflamatória
intestinal são 2 grandes mimetizadores de
doença de Behçet.

As lesões aftosas são tratadas agudamente com corticoide tópico.


Colchicina, talidomida e metotrexato são utilizados como drogas
profiláticas no tratamento de manifestações mucocutâneas. A
azatioprina e a ciclosporina têm sido utilizadas no envolvimento
ocular. A ciclofosfamida é usada em casos oculares incontroláveis,
doença do sistema nervoso central e vasculites. Inibidores do TNF-
alfa também podem ser utilizados no tratamento das formas
refratárias.
Quais são os principais
grupos de síndromes
clínicas que sugerem
vasculite sistêmica?
As vasculites sistêmicas cursam com 1 ou mais dos
seguintes grupos de síndromes clínicas: oclusão vascular
de grandes vasos, oclusão vascular de vasos macroscópicos
não nomináveis (incluindo neurites), púrpura palpável,
glomerulonefrite e capilarite pulmonar (hemorragia
alveolar).
Do ponto de vista
microbiológico, o que
diferencia as síndromes
reumatológicas
relacionadas a agentes
infecciosos das demais
doenças reumáticas?

6.1 FEBRE REUMÁTICA


A Febre Reumática (FR) é uma doença inflamatória multissistêmica,
com sequela tardia não supurativa desencadeada pela infecção da
orofaringe pelo Estreptococo Beta-Hemolítico do Grupo A (EBHGA)
de Lancefield e caracterizada por acometer o coração, as
articulações, o sistema nervoso central, o tecido celular subcutâneo e
a pele. Ocorre infecção estreptocócica da orofaringe e a resposta
imunológica provocada por ela é responsável por mediar lesões ao
tecido conjuntivo através da reação cruzada de reconhecimento
antigênico.
O paciente precisa ter tido contato prévio com os antígenos
bacterianos para que o organismo os reconheça e a doença possa se
estabelecer. Por isso, a FR ocorre, em geral, após os 3 anos.
O estreptococo beta-hemolítico do grupo A (S.
pyogenes) é responsável por faringotonsilites e
infecções de pele. Entre as suas sequelas
imunes, encontram-se a febre reumática e a
glomerulonefrite pós-estreptocócica.

6.1.1 Fisiopatologia
Nem todas as infecções por EBHGAs causam FR, ou seja, nem todas
as cepas desse grupo de bactérias são reumatogênicas, e nem todos
os indivíduos são suscetíveis. As cepas que causam piodermites e
infecções de tecidos moles não causam faringite nem FR, mas podem
causar glomerulonefrite aguda. Das cepas que causam faringite, as
ricas em proteína M, uma proteína externa da parede bacteriana, são
as mais artritogênicas.
A patogenia da doença ainda não é totalmente compreendida, mas
parece ocorrer por meio de reação cruzada, ou seja, mimetismo
molecular: a similaridade entre sequências antigênicas do ser
humano e do EBHGA levaria à produção de anticorpos induzida pela
infecção estreptocócica e seria direcionada contra antígenos
bacterianos, mas que agiriam contra estruturas do hospedeiro,
desencadeando a lesão tecidual (Galvin et al., 2000).
Pacientes com FR apresentam altos níveis de anticorpos contra a
proteína M, que pode atuar como um superantígeno, induzindo a
uma resposta imune excessiva e autoimunidade. Ela impede a
fagocitose e a ação do complemento e ajuda a fixar a bactéria na
célula epitelial da faringe.
De 2 a 3% das crianças com infecção estreptocócica desenvolverão
FR, o que mostra predisposição genética de alguns indivíduos, que
pode estar associada à presença de antígenos leucocitários humanos
(HLAs) nas diversas populações, como DR4 em caucasianos, DR2 em
negros e DR3 em indianos. Em nosso meio, foi observada maior
frequência do HLA-DR7 (Visentainer et al., 2000) e, possivelmente,
do HLA-DR53 (Guilherme et al. 1991). Foram descritos aloantígenos
na superfície de células B, não associados ao sistema HLA,
denominados 883 e D8/17, que teriam forte associação à FR. No
entanto, outros estudos não confirmaram esses achados, e o
marcador genético definitivo para a doença ainda não foi
encontrado.
6.1.2 Epidemiologia
A FR geralmente afeta indivíduos entre 5 e 15 anos, de qualquer raça
e em qualquer parte do mundo. Em adultos, os ataques iniciais
acontecem no final da segunda e no começo da terceira décadas de
vida. Sua incidência varia de acordo com a região geográfica e as
características socioeconômicas de cada população. Baixos níveis de
higiene, alta densidade demográfica e difícil acesso ao sistema de
saúde favorecem o seu aparecimento. Um grande estudo mundial
estimou a prevalência de doença reumática valvar no Brasil em 0,2%
(Seckeler; Hoke, 2011), muito próxima da prevalência de países de
alta renda da América do Norte (Watkins et al., 2017). Contudo,
muito provavelmente há uma importante subnotificação,
considerando que os dados epidemiológicos são gerados
principalmente por grandes cidades, nas quais, de fato, a prevalência
deve ser menor do que nas áreas mais carentes do nosso país.
Estima-se que ela seja responsável por cerca de 60% de todas as
doenças cardiovasculares em crianças e adultos jovens. No Brasil, é
responsável por 8.000 a 10.000 cirurgias cardíacas por ano na rede
pública.
Os EBHGAs são a causa mais comum da faringite bacteriana,
atingindo principalmente crianças e jovens com idades entre 5 e 18
anos. Para se ter uma ideia do fardo social da FR, se considerada a
incidência anual de 10 milhões de faringotonsilites estimada para o
Brasil, teoricamente haveria 30.000 casos novos de surto reumático
ao ano, sendo que, destes, metade poderia evoluir com sequela
valvar (Barbosa et al., 2009).
6.1.3 Manifestações clínicas
O quadro clínico geralmente se inicia após 2 a 4 semanas de um
quadro de faringite estreptocócica, entretanto, um terço dos
pacientes não se lembra da faringite.
A média de idade de acometimento é de 7 anos, principalmente na
faixa dos 5 aos 15 anos. Quase sempre o surto reumático será uma
síndrome febril prolongada, fazendo diferencial com síndromes
infecciosas. Não existe exame laboratorial, sinal ou sintoma
característico da FR no surto agudo. O diagnóstico baseia-se no
reconhecimento e na combinação de alguns achados clínicos e
laboratoriais.
A identificação de alguns sinais
ecocardiográficos tardios extremamente típicos
confirma o diagnóstico retrospectivamente.

Embora critérios diagnósticos sejam especialmente voltados à


pesquisa, os critérios de Jones modificados e revisados em 2015
(Quadro 6.1) são ferramenta de auxílio no diagnóstico da doença,
pois são razoavelmente sucintos e caracterizam bem as
manifestações clínicas mais importantes.
Quadro 6.1 - Critérios de Jones (revisados em 2015)
Nota: a) Para diagnóstico de primeiro surto de febre reumática: 2 critérios maiores ou 1
maior e 2 menores, com evidência de infecção estreptocócica anterior; b) Para o
diagnóstico de FR recorrente: 2 critérios maiores ou 1 maior e 2 menores ou 3 menores,
com evidência de infecção estreptocócica anterior; c) Populações de baixo risco –
incidência de FR ≤ 2/100.000 crianças com idade entre 5 a 14 anos/ano ou prevalência de
doença cardíaca reumática em todas as idades ≤ 1/1.000 habitantes por ano; d)
Populações de risco moderado a alto – aquelas que não se enquadrarem nas
características de população de baixo risco.

Nenhum dos critérios de Jones é específico de FR. Entretanto, a


presença de coreia e/ou cardite (valvulite mitral) permite,
habitualmente, maior segurança diagnóstica. Por ocorrer mais
tardiamente na evolução da doença, quando os outros achados já
passaram, e por ser mais específica, a coreia é o único sinal maior
que isoladamente permite o diagnóstico de FR.
6.1.3.1 Articulares

O quadro articular ocorre em 75% dos casos de FR e é o sintoma mais


comum. É mais frequente e mais grave entre adultos jovens (100%) e
adolescentes portadores da doença (82%) do que em crianças (66%).
O acometimento articular é precoce e costuma ser o primeiro
achado, embora cardite assintomática possa precedê-lo.
O quadro clássico é de poliartrite de grandes articulações,
assimétrica, intensa, muito dolorosa, migratória e fugaz, com boa
resposta aos anti-inflamatórios, não evoluindo com sequelas. A
artrite manifesta-se em uma articulação e, quando está regredindo,
outra articulação é acometida cerca de 2 a 3 dias depois. Pode haver
alguma flogose, mas a dor é mais importante do que os sinais
inflamatórios objetivos. O surto de artrite tem resolução espontânea
e dura de 2 a 6 semanas. As articulações prediletas são os joelhos e
tornozelos, seguidas pelos punhos e cotovelos. Excepcionalmente,
pequenas articulações das mãos e dos pés também podem ser
envolvidas.
Radiografias serão sempre normais do ponto de vista articular,
mesmo tardiamente. Por definição, não é esperada que seja uma
doença erosiva, como as artropatias autoimunes. Entretanto, surtos
repetidos sem diagnóstico (o que é cada vez mais raro hoje em dia)
podem provocar frouxidão ligamentar e de cápsula articular, com
subluxações e desvios articulares não fixos (artropatia de Jaccoud).
Atualmente, a principal causa de artropatia de
Jaccoud é lúpus eritematoso sistêmico.

Na prática, muitos pacientes com artrite e/ou artralgia são tratados


empiricamente com salicilatos ou outro Anti-Inflamatório Não
Esteroidal (AINE). Por causa disso, a artrite pode melhorar
rapidamente e não migrar para outras articulações, dificultando o
diagnóstico. Na FR, a artrite é rapidamente responsiva aos
salicilatos, de forma que a falta de resposta em 48 horas do uso
desses agentes torna o diagnóstico improvável.
6.1.3.2 Cardíacas

A incidência de doença cardíaca na FR ocorre em 50 a 60% dos


pacientes, mas pode ser assintomática. Sua frequência, ao contrário
do quadro articular, diminui com a idade (90% em crianças
pequenas e 15% em adultos jovens). O acometimento caracteriza-se
por pancardite, em que o endocárdio (mais comumente), miocárdio
e pericárdio (menos comumente) estão envolvidos.
A presença de cardite é importante no prognóstico em curto e longo
prazo.
Na fase aguda, o envolvimento miocárdico pode provocar
cardiomegalia, taquicardia, distúrbios de condução e insuficiência
cardíaca congestiva. Os nódulos de Ascho , encontrados na
anatomia patológica da miocardite, são patognomônicos da doença.
A pericardite pode manifestar-se como desconforto ou dor torácica,
derrame ou atrito pericárdico e não costuma evoluir com pericardite
constritiva.
O dano valvar agudo característico decorre do envolvimento do
endocárdio, provocando valvulite principalmente mitral e aórtica,
com sopros novos de regurgitação, que podem provocar
insuficiência cardíaca aguda. Anormalidades eletrocardiográficas
encontradas são bloqueios atrioventriculares de vários graus, sendo
o de terceiro grau e o bloqueio de ramo esquerdo raros na fase aguda.
A alteração radiográfica mais comum da cardite é a cardiomegalia
(Figura 6.1). Estudos utilizando o ecocardiograma sugerem que esse
exame seja mais sensível para detectar disfunções cardíacas.
O ecocardiograma, atualmente, é sempre
indicado, tanto para diagnóstico no momento
do surto, quanto para monitorização de sequela
tardia.
Figura 6.1 - Cardiomegalia em paciente com febre reumática

O envolvimento valvar persistente é a principal causa da grande


morbimortalidade cardíaca associada à FR, uma vez que é a única
forma sequelar de doença. Ocorre de 10 a 20 anos após o surto inicial,
sendo a principal causa de doença valvular adquirida entre jovens no
Brasil. A válvula mitral é a mais acometida, sendo, na fase aguda, a
insuficiência mitral predominante e, posteriormente, nas formas
crônicas, encontramos a estenose mitral (achado clássico). O
segundo envolvimento mais comum é o mitro-aórtico e, com menor
frequência, o aórtico isolado (em geral, insuficiência). Raramente, a
tricúspide e a pulmonar são envolvidas (Figura 6.2). Esse
acometimento valvar, por menor que seja, por si, leva a maior
suscetibilidade à endocardite infecciosa.
Três sopros são característicos do primeiro episódio da doença e
podem não representar disfunção valvar definitiva: sopro sistólico
de regurgitação mitral; sopro de Carey Coombs (um sopro diastólico
em ruflar sem estalido de abertura) e sopro diastólico de
regurgitação aórtica.
Figura 6.2 - Ordem do acometimento valvar na cardite reumática

Fonte: ilustração Claudio Van Erven Ripinskas.

#IMPORTANTE
Tardiamente, o achado de estenose mitral ao
exame físico sugere muito febre reumática no
passado, dado que a doença é responsável por
mais de 70% das estenoses mitrais (Horstkotte
et al., 1991).

6.1.3.3 Neurológicas
A coreia de Sydenham, “coreia menor” ou “dança de San Vito”, é a
desordem neurológica que se manifesta por movimentos abruptos,
involuntários e desordenados nos membros, face e língua. Os
movimentos geralmente são mais evidentes em um lado do corpo,
podem ser completamente unilaterais (hemicoreia), desaparecem
durante o sono e pioram com o estresse.
A coreia ocorre em menos de 10% dos pacientes, tem predomínio em
meninas e aparece mais tardiamente que as demais manifestações,
cerca de 6 a 8 semanas após a infecção estreptocócica, por isso pode
ocorrer isoladamente e dar o diagnóstico de FR sem a presença de
outros critérios. Tem duração de 1 semana a 2 anos (média de 8 a 15
semanas). Transtornos emocionais, choro e alterações psiquiátricas
podem ser observados nesses pacientes.
Alguns indivíduos com coreia podem não ter sintoma, mas o exame
cardiológico deve ser realizado com atenção, para tentar
diagnosticar sopro persistente.
#IMPORTANTE
Uma maneira de exacerbar os sintomas da
coreia no exame físico é solicitar que a criança
faça múltiplas tarefas ao mesmo tempo.

6.1.3.4 Tegumentares

Os nódulos subcutâneos da FR aparecem após as primeiras semanas


da doença e associam-se à cardite. São pequenos (1 a 2 cm de
diâmetro), firmes e indolores, localizados mais comumente sobre
proeminências ósseas, próximas aos tendões, em superfícies
extensoras, como cotovelos, joelhos, punhos, região occipital e
dorso. Podem ser únicos ou múltiplos (Figura 6.3) e assemelham-se
aos nódulos reumatoides, com os quais fazem o principal
diagnóstico diferencial. Ao contrário dos nódulos reumatoides,
geralmente perenes, os nódulos da febre reumática são
autolimitados, como todas as manifestações do surto reumático. Não
costumam inflamar ou ulcerar, sendo frequentemente descobertos
pelo clínico apenas no exame físico.
O eritema marginado, por sua vez, é uma erupção cutânea de caráter
evanescente, não pruriginoso, de coloração rósea a avermelhada,
que acomete o tronco e a porção proximal dos membros, poupando a
face. Essas lesões estendem-se centrifugamente, enquanto a região
central é de coloração normal, de limites bem delimitados (Figura
6.4). As lesões podem desaparecer em questão de horas, e banho
quente pode torná-las mais evidentes. Usualmente, é precoce
durante a doença e está associado à cardite.
Figura 6.3 - Nódulo subcutâneo no cotovelo de paciente com febre reumática

Figura 6.4 - Eritema marginado na região dorsal


Fonte: Zorkun, 2008.

6.1.3.5 Critérios revisados de Jones

Conforme exposto, o diagnóstico de FR é dado pelos critérios


revisados de Jones de 2015, sendo os pacientes estratificados em
grupos de acordo com considerações epidemiológicas de risco para
adquirir a doença. Considera-se grupo de baixo risco aquele em que a
incidência de FR é menor do que 2/100.000 escolares (entre 5 e 14
anos) por ano ou que tenha uma prevalência de cardite reumática
crônica em qualquer grupo etário menor ou igual a 1/1.000 por ano.
Crianças pertencentes a comunidades com níveis superiores a esses
teriam risco moderado a alto para adquirir a doença. Além disso, de
acordo com a revisão de 2015, consideram-se alterações nos
critérios para recidiva de doença. Para os indivíduos com possível
recidiva de doença, além do preenchimento de 2 critérios maiores ou
de 1 maior e 2 menores (como no surto inicial), pode-se considerar a
possibilidade do preenchimento de 3 critérios menores como
diagnóstico de recidiva, independentemente do grupo de risco ao
qual o paciente pertence.
6.1.3.6 Achados laboratoriais

Nenhum exame laboratorial é específico de FR. Alguns podem estar


alterados e ter implicação no diagnóstico, como as provas de
atividade inflamatória ou as provas de fase aguda: a velocidade de
hemossedimentação e a proteína C reativa costumam estar
aumentadas, e sua alteração consiste em um critério menor para o
diagnóstico.
Outro grupo importante de achados laboratoriais é o que denuncia
infecção recente por estreptococo. Culturas de orofaringe
usualmente são negativas na época em que a FR aparece, mas podem
ajudar a isolar o micro-organismo (Figura 6.5). O tratamento da
faringoamigdalite e a erradicação do estreptococo da orofaringe
devem ser feitos na vigência da suspeita clínica da FR,
independentemente do resultado da cultura de orofaringe. Alguns
anticorpos contra antígenos bacterianos podem ser dosados, como
os anticorpos ASLO e anti-DNAse B. O anticorpo mais utilizado é o
ASLO, pela facilidade de obtenção e homogeneidade dos resultados,
sendo encontrado em títulos elevados em até 80% dos pacientes no
quadro inicial. Seus títulos atingem o pico de 3 a 6 semanas após a
infecção; o anticorpo anti-DNAse B, por sua vez, atinge seu pico
entre 6 e 8 semanas após a infecção.
Figura 6.5 - Swab de orofaringe para identificar o estreptococo beta-hemolítico do grupo A
Outros exames podem auxiliar no diagnóstico. Radiografias de tórax
seriadas podem ajudar no curso da cardite, mostrando variações no
tamanho da área cardíaca. O eletrocardiograma pode mostrar
alargamento do intervalo PR (critério menor) ou do QT. Se houver
derrame pericárdico, poderão ocorrer alterações difusas do
segmento ST. O ecocardiograma é de grande valia e deve ser sempre
solicitado, pois a ocorrência de cardite e, especialmente, sequela
valvar, modifica a profilaxia secundária.
6.1.3.7 Diagnóstico diferencial

Como o quadro clínico e as alterações laboratoriais não são


específicos da FR, e esse diagnóstico implica tratamento prolongado,
recomenda-se sempre excluir outras patologias possíveis e tentar
evidenciar a infecção estreptocócica pregressa. O quadro de
poliartrite na faixa etária da FR entra no diagnóstico diferencial de
artrite idiopática juvenil, lúpus eritematoso sistêmico juvenil e, em
adolescentes, artrite gonocócica. A coreia pode ser encontrada em
pacientes com síndrome antifosfolípide e lúpus, em tumores de
gânglios basais e na gravidez.
A presença de sopro cardíaco novo com febre,
poliartrite e aumento das provas de atividade
inflamatória exige a exclusão de endocardite
bacteriana com ecocardiograma e pelo menos 3
pares negativos de hemocultura.

6.1.4 Tratamento
A medida mais eficaz para o tratamento da FR é não deixar que ela
ocorra. É justamente pela terapia adequada e precoce da
faringotonsilite estreptocócica que os países desenvolvidos
conseguiram reduzir tanto a incidência de surtos de febre reumática.
Uma vez que os sinais clínicos apontem para faringotonsilite
estreptocócica possível, o paciente deve ser submetido ao teste
rápido por swab de orofaringe para identificação do agente. Se a
pesquisa for negativa e a suspeita for alta, o indivíduo deve ser
submetido à cultura de orofaringe (Shulman et al., 2012).
Uma vez confirmada a infecção, é mandatória a
prescrição de antibiótico. Essa é a profilaxia
primária da febre reumática e a principal
garantia de que o hospedeiro não vai gerar
memória imunológica.
O Quadro 6.2 aponta as principais drogas usadas para tratamento da
faringoamigdalite. É importante lembrar que, na maior parte dos
esquemas, 10 dias serão necessários para a completa erradicação da
bactéria. De maneira geral, a benzilpenicilina (penicilina G
benzatina) é uma droga confiável e com garantia de aderência, sendo
necessária apenas uma dose. Pacientes alérgicos a penicilina podem
usar macrolídeos ou clindamicina.
Quadro 6.2 - Profilaxia primária
Fonte: Diretrizes Brasileiras para o Diagnóstico, Tratamento e Prevenção da Febre
Reumática, 2009.

Estabelecido o diagnóstico de FR, contudo, a terapêutica envolve 3


fases que, de modo geral, são realizadas, quase simultaneamente:
erradicação do foco, tratamento sintomático e profilaxia secundária
(prevenção das recorrências).
6.1.4.1 Erradicação de foco

O objetivo da erradicação do foco é retirar qualquer substrato


imunogênico de circulação. Ela está indicada para todos os pacientes
com surto agudo. Em geral, é feito com uma dose de benzilpenicilina.
Se houver alergia, o esquema de tratamento é idêntico ao tratamento
na profilaxia primária, e, portanto, pode ser encontrado no Quadro
6.2.
Contactantes domiciliares de um caso de FR deverão ser submetidos
à cultura de orofaringe e tratados quando o resultado for positivo.
Muitas vezes, pela dificuldade em realizar culturas, a profilaxia
primária é recomendada a todos os contactantes domiciliares,
especialmente crianças em idade escolar e adolescentes. Não há
indicação de tonsilectomia para evitar surtos de infecção em
portadores de FR.
6.1.4.2 Tratamento sintomático

De forma geral, os AINEs são excelentes para o controle da febre e da


artrite, com desaparecimento dos sinais e sintomas da poliartrite
migratória em 24 a 48 horas. Crianças com quadros articulares mal
caracterizados, em fases muito iniciais, poderão ser tratadas com
analgésicos, como o paracetamol ou a codeína e medidas locais
(gelo/calor), de modo a permitir melhor caracterização do quadro
articular e, consequentemente, diagnóstico e tratamento mais
adequados. Uma vez que os AINEs são sintomáticos e não interferem
no curso da FR, a duração do tratamento deve ser estimada, de modo
a cobrir o período de atividade da doença que, na presença de artrite
isolada, varia de 1 a 6 semanas.
O tratamento da cardite é focado, acima de tudo, no controle
sintomático. Assim, diuréticos, digitálicos, restrição hídrica e sódica
poderá ser necessários em casos de insuficiência cardíaca. Há uma
revisão sistemática ampla que avaliou o papel da imunossupressão
com corticosteroides na cardite reumática aguda e não encontrou
diferenças significativas em relação à terapia padrão (Cilliers; Adler;
Saloojee, 2015). Contudo, as Diretrizes Brasileiras realmente indicam
a terapia com corticoide para os casos de cardite moderada a grave
baseadas em opinião de especialistas e estudos observacionais
(Barbosa et al., 2009).
O corticosteroide de escolha é habitualmente a prednisona, utilizada
inicialmente em dose alta (1 a 2 mg/kg/d) e fracionada (2 tomadas
por dia) por aproximadamente 2 a 4 semanas (tempo de melhora dos
sintomas e/ou tendência à normalização das provas de atividade
inflamatória); após esse período, passa-se para dose única pela
manhã e inicia-se a redução lenta até a retirada completa da droga
em cerca de 12 semanas. Se o paciente fizer uso de corticosteroide, o
uso do AINE se tornará desnecessário.
A pulsoterapia com metilprednisolona, na dose de 30 mg/kg,
máximo de 1 g/dose, por 3 dias consecutivos e eventual repetição,
pode ser utilizada para o tratamento das cardites graves. Apesar de a
melhora laboratorial não diferir da observada com o uso de
prednisona, a melhora clínica parece ser mais rápida, e o período de
internação hospitalar, menor.
Não existe evidência atualmente para a recomendação de repouso
como terapia para a FR, uma vez que, consistentemente, a
inatividade tem sido associada em diversas patologias a piores
desfechos e o exercício já se mostrou seguro na insuficiência
cardíaca em múltiplos ensaios clínicos (Taylor et al., 2014). O
paciente deve realizar suas atividades tão logo se sinta capaz e a
reabilitação precoce é desejável. Em alguns casos de cardite
refratária com lesão miocárdica ou valvar grave, pode ser necessária
a realização de tratamento cirúrgico na fase aguda, incluindo
transplante cardíaco.
Pacientes com coreia devem ser mantidos em ambientes tranquilos,
sem muitos estímulos externos. Várias drogas, como tranquilizantes
e sedativos, poderão ser utilizadas de forma isolada ou em
associação. O haloperidol permanece como a melhor opção
terapêutica para casos graves, com melhora clínica após 5 a 6 dias,
em média, e desaparecimento dos sinais em 30 a 40 dias, permitindo
à criança um retorno mais rápido às atividades diárias. Deve-se
iniciar com doses baixas, em geral 0,5 a 1 mg por dia. Apesar de
serem raras as reações graves ou irreversíveis associadas ao uso de
haloperidol, recomenda-se cautela na sua administração (a
discinesia tardia é um dos possíveis efeitos colaterais), e, quando
doses superiores a 5 mg/d forem necessárias, será importante a
monitorização em ambiente hospitalar, pelos riscos de impregnação.
O ácido valproico ou a carbamazepina podem ser alternativas
terapêuticas para crianças que apresentarem toxicidade ou que não
podem ser supervisionadas durante a administração do haloperidol.
O tempo de resposta é discretamente maior, e, apesar da possível
hepatotoxicidade, em geral, nenhuma complicação importante está
associada ao uso da droga.
6.1.4.3 Profilaxia secundária

Independentemente da gravidade do surto inicial, portadores de FR


apresentam riscos elevados (de 20 a 50%) de recorrência da doença
após novas infecções estreptocócicas de orofaringe. Novos surtos –
ou simplesmente o estado inflamatório mínimo que a exposição aos
antígenos estreptocócicos causa – poderão agravar lesões cardíacas
preexistentes ou propiciar seu surgimento, razão pela qual a
profilaxia secundária é obrigatória.
A droga de escolha para a profilaxia secundária é a penicilina G
benzatina, por ser a que fornece proteção mais efetiva contra
faringite estreptocócica e contra recorrências de FR comparada a
outras drogas, como a penicilina oral ou a sulfadiazina
(possivelmente relacionada à aderência). Com a utilização de
1.200.000 UI de penicilina benzatina intramusculares a cada 4
semanas, a taxa de recorrência da FR situa-se entre 5 e 8% em
seguimentos de 5 a 6 anos, sendo essa a principal razão para a
Organização Mundial da Saúde e a American Heart Association
recomendarem o uso de penicilina G benzatina a cada 3 semanas em
países em desenvolvimento, como o Brasil (Quadro 6.3).
A duração do tratamento difere segundo a diretriz adotada. A
American Heart Association (Gerber et al., 2009) sugere:
a) Profilaxia até os 21 anos de idade ou até 5 anos após o último surto
(o que for mais longo) para pacientes que não tiveram cardite;
b) Profilaxia até os 21 anos de idade ou 10 anos após o último surto (o
mais longo) para pacientes que tiveram cardite, mas não tiveram
sequela valvar;
c) Profilaxia até os 40 anos de idade ou 10 anos após o último surto (o
que for mais longo) para pacientes com sequela valvar.

Esta diretriz discute, ainda, que indivíduos com exposição constante


ao estreptococo, como dentistas, médicos, professores etc., ou que
sejam de alto risco, devido ao grau de lesão e ao número de surtos,
devam considerar profilaxia para toda a vida.
A Sociedade Brasileira de Cardiologia e a Sociedade Brasileira de
Reumatologia recomendam medidas discretamente diferentes
(Barbosa et al., 2009). O Quadro 6.3 resume essas diretrizes.
Quadro 6.3 - Duração da profilaxia secundária

Fonte: Diretrizes Brasileiras para o Diagnóstico, Tratamento e Prevenção da Febre


Reumática, 2009.

6.1.4.4 Profilaxia da endocardite bacteriana

Outro tema com indicações diferentes segundo a diretriz e com


alguma controvérsia no meio acadêmico é a profilaxia para
endocardite infecciosa após procedimentos invasivos. A American
Heart Association não recomenda profilaxia para a maioria dos
pacientes, com exceção daqueles com risco muito alto de
endocardite (dos quais os mais importantes são: próteses valvares
ou com plastia com material protético e pacientes com episódio
prévio de endocardite).
Contudo, a Sociedade Brasileira de Cardiologia (Tarasoutchi et al.,
2017) recomenda profilaxia para todos os pacientes reumáticos com
valvopatia submetidos a procedimentos dentários com amoxicilina 2
g, VO, 1 hora antes do procedimento. Se for procedimento de via
geniturinária ou trato gastrintestinal, deve ser realizada profilaxia
com ampicilina, 2 g, intravenosa, associada a gentamicina,
intravenosa, 1,5 mg/kg, 30 minutos antes do procedimento. A
ampicilina deve ser refeita, na dose de 1 g, 6 horas após o
procedimento.
6.1.4.5 Alergia a penicilina

Estudos em pacientes tratados em longo prazo com penicilina


mostram que somente 3,2% deles apresentam algum tipo de alergia.
Reações anafiláticas graves apresentam incidência na ordem de 0,04
a 0,2%, e as reações potencialmente fatais são extremamente raras,
na ordem de 0,001%. Na faixa etária pediátrica, essas cifras são
ainda menores.
Na ausência de reações após a primeira aplicação de penicilina
benzatina, a presença de reações à segunda dose é extremamente
baixa. A primeira aplicação deve ser realizada em local com recursos
para atendimento de possíveis reações alérgicas.
Testes cutâneos para detecção de alergia a penicilina costumam ser
inadequados, pela falta de utilização dos determinantes antigênicos
apropriados e, ainda, por erros técnicos na sua execução e
interpretação. A utilização prévia de penicilina pelo paciente e a
ausência de alergia nos familiares são dados importantes na
caracterização da provável alergia.
Os benefícios da penicilina benzatina na profilaxia secundária da FR
superam os riscos.
6.2 ARTRITES INFECCIOSAS
6.2.1 Introdução
As artrites infecciosas são condições nas quais um micro-organismo
patológico está diretamente envolvido na patogênese da lesão
articular. O mecanismo de lesão se dá por 2 vias:
a) O patógeno está diretamente instalado na articulação, causando
danos e inflamação localmente; ou
b) O patógeno está infectando estruturas distantes da articulação,
porém, a resposta inflamatória promovida gera substâncias como
interleucinas e quimiocinas, que causam inflamação secundária
articular.

Diferenciar as 2 formas de acometimento é essencial para predizer o


risco de sequela articular e, portanto, a necessidade de abordagem
invasiva.
6.2.2 Artrites sépticas
As artrites sépticas são condições infecciosas agudas, em que a
sinóvia está inflamada pela presença direta de um micro-organismo,
por disseminação hematogênica, inoculação direta ou contiguidade
com outros tecidos comprometidos (Nair et al., 2017). Podem ser
divididas em 2 grupos: a artrite gonocócica, forma mais comum
entre adultos jovens sexualmente ativos, e a não gonocócica.
Têm importância significativa no subgrupo de patologias
osteomusculares, pois são verdadeiras emergências clínicas, que
necessitam de diagnóstico precoce e tratamento adequado. A taxa de
dano é de 25 a 50%, com mortalidade de 5 a 15%, sendo maior
quando a artrite séptica se instala em imunossuprimidos ou acomete
mais de uma articulação. O prognóstico da patologia não melhorou
significativamente nos últimos 20 anos. E, mais recentemente, com
a maior prevalência de doenças crônicas, próteses articulares, AIDS e
idade avançada, a artrite séptica evoluiu com mudanças na sua
apresentação clínica. Vale ressaltar que, em pacientes com HIV, a
artrite séptica parece ocorrer na mesma frequência do que na
população geral; porém, em pacientes com doença avançada, os
germes oportunistas (fungos e micobactérias) ganham mais
importância.
A incidência de artrites sépticas varia de 2 a 10 por 100.000
pessoas/ano na população geral, com relato de taxas mais elevadas
em portadores de artrite reumatoide ou próteses articulares, sendo
também mais elevada em crianças.
Os fatores de risco para a artrite séptica não gonocócica são: idade
superior a 60 anos; diabetes mellitus; artrite reumatoide; articulação
protética; imunodeficiências primárias ou secundárias;
hemoglobinopatias; cirurgia articular recente; abuso de drogas
intravenosas; alcoolismo; infiltração intra-articular prévia;
infecções cutâneas e neoplasias. No caso de artrite gonocócica, o
fator de risco é a atividade sexual desprotegida.
Confirmado o diagnóstico, é importante investigar a possibilidade de
endocardite bacteriana, principalmente em paciente sem fatores
predisponentes que apresentem infecção por S. aureus, Enterococcus e
Streptococcus.
6.2.3 Artrites infecciosas assépticas
São denominadas artrites infecciosas assépticas aquelas nas quais
não é possível isolar o agente infeccioso na articulação. Entende-se,
portanto, que o patógeno não está na articulação – ou, pelo menos,
não está em quantidade suficiente para promover doença localmente
– e o mecanismo do dano não é diretamente articular, e, sim, por
substâncias inflamatórias circulantes.
As principais representantes das artrites infecciosas assépticas são a
forma asséptica da artrite gonocócica, mais adequadamente
chamada de infecção gonocócica disseminada, e as artrites virais.
Entre as artrites causadas por agentes que agridem diretamente a
sinóvia, ainda existem as artrites por germes de crescimento lento e
virulência baixa. Na prática, essas condições causarão uma artrite de
evolução crônica e que requer um manejo especial (ver item 6.2.10).
Na propedêutica das artrites infecciosas, o principal elemento que
determinará a conduta será o tempo de instalação. Este dado da
história permite decidir sobre a necessidade de artrocentese e dá
dicas sobre as etiologias envolvidas.
6.2.4 Artrites agudas ou subagudas
Esta definição não é absolutamente rígida, mas são definidas como
artrites agudas aquelas que se instalam em aproximadamente 2
semanas ou menos e são definidas como subagudas aquelas que se
instalam em até 6 semanas.
No diagnóstico das artrites agudas entram especialmente as artrites
sépticas por germes altamente virulentos (como artrite séptica
gonocócica e artrite séptica não gonocócica), as artrites
microcristalinas e as artrites virais. Nas artrites subagudas, o
diagnóstico se volta mais à diferenciação entre artrites virais e
doenças reumáticas iniciais, pois, na maior parte dos casos de
artrites agudas por germes francamente virulentos, o tempo de
algumas semanas já será o suficiente para desfechos catastróficos.
6.2.5 Artrite não gonocócica
Os principais micro-organismos associados à artrite séptica não
gonocócica estão resumidos nos Quadro 6.4 e 6.5.
Quadro 6.4 - Micro-organismos mais comumente envolvidos na artrite séptica não
gonocócica
Quadro 6.5 - Bactérias mais comumente associadas à artrite séptica, conforme a doença
de base ou outros fatores predisponentes
6.2.5.1 Achados clínicos

Os achados clássicos são o quadro de início súbito de edema


monoarticular (80 a 90% dos casos), com calor e dor que restringem
os movimentos passivos e ativos. O paciente com monoartrite aguda
deve ser considerado portador de artrite séptica até que se prove o
contrário (Figura 6.6). Formas mais indolentes, de início mais
arrastado e menos exuberantes, podem acometer indivíduos
imunossuprimidos com doença reumática preexistente (como artrite
reumatoide), ou no caso de infecção tardia de prótese articular.
Figura 6.6 - Monoartrite aguda do joelho direito
Fonte: Rheumatology in Practice, 2010.

As articulações mais envolvidas são joelhos (40 a 50%), quadris (13 a


20%), ombros (10 a 15%), punhos, tornozelos, cotovelos e, menos
comumente, pequenas articulações das mãos e dos pés. Bursites
sépticas olecranianas e pré-patelares podem anteceder o quadro de
artrite séptica.
Febre ocorre em 60 a 80% dos casos. Focos de infecção em outros
sítios podem ser encontrados e devem ser minuciosamente
pesquisados. As bactérias atingem a articulação por via
hematogênica em mais de 50% dos casos, por inoculação direta em
procedimentos ou traumas articulares ou por contiguidade de
infecções de partes moles ou osso. Além disso, deve-se atentar ao
diagnóstico diferencial da monoartrite aguda:
1. Infecção:
a) Bacteriana;
b) Fúngica;
c) Micobacteriana;
d) Viral;
e) Espiroquetas.

2. Induzida por cristal:


a) Urato monossódico (gota);
b) Pirofosfato de cálcio diidratado (pseudogota);
c) Hidroxiapatita;
d) Oxalato de cálcio;
e) Lipídios.

3. Hemartrose:
a) Trauma;
b) Anticoagulação;
c) Distúrbios de coagulação;
d) Fraturas;
e) Sinovite vilonodular pigmentada.

4. Tumor:
a) Condrossarcoma;
b) Osteoma osteoide;
c) Doença metastática.

5. Doenças reumáticas sistêmicas:


a) Artrite reumatoide;
b) Espondiloartrites;
c) Lúpus eritematoso sistêmico;
d) Sarcoidose.

6. Osteoartrite:
a) Variante erosiva.

7. Degeneração intra-articular:
a) Rompimento meniscal;
b) Osteonecrose;
c) Fraturas.

O quadro clínico de bursite infecciosa, celulite e osteomielite pode


ser facilmente confundido com artrite séptica. À beira do leito, um
dado muito útil para diferenciação é a análise do arco do movimento:
somente estará comprometido na artrite séptica, enquanto nas
demais patologias o paciente tem a movimentação ativa e passiva
praticamente normal.
Ainda como diagnóstico diferencial, vale lembrar a piomiosite
tropical, infecção piogênica grave da musculatura esquelética, com
tendência a formar abscessos. O principal agente etiológico é o S.
aureus, que compromete principalmente crianças e indivíduos do
sexo masculino imunossuprimidos. O quadro clínico é marcado por
dor muscular com aumento de temperatura local e edema, além de
febre. Os grupos musculares mais comumente acometidos são
quadríceps, glúteos e musculatura do tronco. Assim, faz diagnóstico
diferencial com a artrite séptica de quadril. Além dos achados
laboratoriais sugestivos de processo infeccioso, a piomiosite tropical
não costuma gerar aumento de enzimas musculares. Métodos de
imagem, como ultrassonografia, tomografia e ressonância, podem
identificar os músculos comprometidos precocemente, bem como
definir a presença de abscessos, e auxiliam a realização de punção
guiada e drenagem cirúrgica. O tratamento é realizado por meio da
antibioticoterapia parenteral. A drenagem cirúrgica faz-se
necessária na presença de abscessos.
6.2.5.2 Achados laboratoriais

Os pacientes podem apresentar leucocitose em dois terços dos casos


e, geralmente, têm aumento das provas de atividade inflamatória. As
culturas de sangue periférico são positivas em 50 a 60% dos casos.
Na suspeita ou na presença de outros focos infecciosos, a cultura
desses locais deve ser realizada.
A análise do líquido sinovial é fundamental em qualquer paciente
com monoartrite ou na suspeita de artrite séptica (Quadro 6.7). As
particularidades da análise do líquido serão discutidas no item 6.2.8.
6.2.5.3 Achados de imagem

As radiografias são úteis para afastar osteomielite instalada. Em


casos de infecção por E. coli ou anaeróbios, é possível observar gás
dentro da articulação. A ultrassonografia funciona como ferramenta
de auxílio para punção articular, porém não é um método eficaz para
fornecer o diagnóstico da afecção.
A tomografia computadorizada ou a ressonância magnética podem
ser solicitadas em casos de suspeita de artrite séptica de articulações
de difícil avaliação, como quadril, ombro, articulações
esternoclaviculares ou sacroilíacas.
A ressonância é ótima para demonstrar edema de partes moles ou
abscessos e detectar erosões precoces por osteomielite contígua
subjacente. É ideal nos casos de suspeita de artrite séptica em
articulações sacroilíacas.
6.2.6 Artrite gonocócica
Existem 2 formas de infecção pelo gonococo (Bardin, 2003). Ou o
paciente apresentará uma artrite séptica purulenta, com
apresentação semelhante à artrite séptica não gonocócica (ver
anteriormente), porém menos toxêmica; ou o paciente apresentará a
Infecção Gonocócica Disseminada (IGD), uma combinação de artrite
por infecção direta e por inflamação à distância que cursa com
sintomas cutâneos e periarticulares. A maior parte dos pacientes
apresentará o segundo espectro.
As manifestações articulares por gonococo (Neisseria gonorrhoeae)
são a forma mais comum de artrite séptica entre jovens saudáveis
sexualmente ativos. Ocorre em 1 a 3% dos casos de infecção
gonocócica não tratada e é 2 a 3 vezes mais comum entre mulheres,
nas quais o risco de disseminação é maior após 7 dias da
menstruação, durante a gravidez ou no período pós-parto.
A duração entre a infecção e a disseminação é de 1 dia a 2 meses,
sendo o período médio 5 dias. Apenas 1 quarto dos pacientes relata
sintomas mucosos da infecção gonocócica, que podem ser
geniturinários, faríngeos ou retais.
A IGD caracteriza-se pela síndrome de poliartrite, tenossinovite e
dermatite (Rice, 2005). Sintomas iniciais inespecíficos, como febre,
calafrios e poliartralgia migratória antecedem a artrite franca, que
pode se instalar nos joelhos, tornozelos ou punhos. Na maioria dos
casos, há mais de 1 articulação acometida. A articulação acometida é
quente, dolorosa e edemaciada.
A tenossinovite geralmente é migratória e ocorre em 2 terços dos
pacientes; habitualmente, acomete tendões do dorso das mãos, dos
punhos, dos tornozelos e dos joelhos.
A dermatite também acontece em 3 quartos dos casos e se manifesta
por lesões pustulosas, vesiculares ou maculopapulares, sobre uma
base eritematosa, com centro necrótico, distribuídas pelo tronco e
distalmente nos membros, incluindo os dedos (Figura 6.7). Essas
lesões são indolores e podem passar despercebidas. Podem ocorrer
também eritema multiforme, bolhas hemáticas e lesões vasculíticas.
Culturas para Neisseria gonorrhoeae podem ser positivas em até 10%
dos casos de biópsias das lesões cutâneas.
Pode haver complicações incomuns, como pericardite, meningite,
aortite, endocardite, miocardite, piomiosite e osteomielite.
Figura 6.7 - Lesão pustulosa na mão de paciente com artrite gonocócica
6.2.6.1 Achados laboratoriais

Os pacientes podem apresentar leucocitose em 2 terços dos casos e


geralmente têm aumento das provas de atividade inflamatória (VHS
e PCR).
As culturas de sangue periférico raramente são positivas na IGD, e,
na sua suspeita, deve-se proceder com histórico de exposição sexual
e sintomas mucosos. Culturas das regiões uretral, cervical uterina
(em mulheres), faríngea e retal devem ser realizadas, e culturas
geniturinárias são positivas em 70 a 90% dos casos.
A análise do líquido sinovial, como já foi dito, é crítica em qualquer
paciente com monoartrite ou na suspeita de artrite séptica.
Comparada à artrite séptica não gonocócica, a IGD pode ter, no
líquido sinovial, celularidade discretamente menos elevada (30.000
a 60.000 leucócitos/mm3). A bacterioscopia tem positividade mais
baixa, menos de 25%, e as culturas do líquido sinovial também têm
menor positividade que para outros germes, cerca de 20 a 50%. O
líquido deve ser imediatamente colocado em meio especial (Thayer-
Martin), e o período para crescimento pode ser maior do que 48
horas.
6.2.7 Artrites virais
Artrites causadas por vírus são a forma mais comum de artrite aguda
e subaguda. Na maior parte das vezes, são acompanhadas de outros
sintomas, como manifestações cutâneas, mucosas, musculares,
hepáticas, hematológicas, conjuntivais e gastrintestinais. Pela
própria característica da infecção por vírus, é incomum que a
infecção seja causada pelo agente diretamente na articulação. Como
são quase sempre benignas e autolimitadas, frequentemente não há
busca por auxílio médico e a etiologia não é definida. O Quadro 6.6
resume as principais causas de artrite viral.
Quadro 6.6 - Principais agentes envolvidos
6.2.8 Artrocentese
A artrocentese é a punção articular (Figura 6.8) com drenagem do
líquido articular (Figura 6.9) com finalidade diagnóstica ou
terapêutica (por exemplo, para reduzir a dor ou para drenar um foco
fechado). Está indicada em todas as monoartrites agudas e em todos
os quadros nos quais pode ser necessária a diferenciação entre
germes altamente virulentos e outros diagnósticos diferenciais
(como artrite microcristalina).
São aspectos a serem examinados no líquido sinovial:
1. Aparência: a cor e a turvação do líquido são importantes, pois os
purulentos ou turvos sugerem artrite séptica;
2. Celularidade e diferencial: a celularidade é maior do que 50.000
leucócitos/mm3 em 50 a 70% dos casos, e pode ser menor bem no
início da artrite, em casos de pacientes que já receberam antibióticos
ou em imunossuprimidos. Na análise diferencial da celularidade, há
predomínio de polimorfonucleares, em geral mais de 80%;
3. Bacterioscopia: é positiva em 50 a 75% das vezes e extremamente
específica; sua negatividade, entretanto, não afasta o diagnóstico;
4. Culturas: são positivas em 70 a 90% dos casos, dependendo do
micro-organismo. O S. aureus é o agente mais comumente implicado
em monoartrite séptica de articulações nativas (60 a 70% dos casos).
Estreptococos, bacilos Gram negativos e outros respondem pelo
restante. O Quadro 6.7 mostra os organismos mais frequentemente
envolvidos.
Figura 6.8 - Artrocentese
Fonte: acervo Medcel.
Quadro 6.7 - Análise do líquido sinovial
No líquido sinovial infeccioso por germe diretamente envolvido,
observam-se aumento de volume (> 3,5 mL), coloração turva,
celularidade > 50.000 leucócitos/mm3 (50 a 70%), com predomínio
de polimorfonucleares, bacterioscopia positiva em 50 a 75% e
cultura positiva em 70 a 90%.
Figura 6.9 - Líquido sinovial

Legenda: (A) normal; (B) não inflamatório; (C) inflamatório; (D) séptico; (E) hemorrágico.

6.2.9 Tratamento segundo a etiologia


6.2.9.1 Artrite não gonocócica

Trata-se de uma emergência médica que requer hospitalização.


A antibioticoterapia intravenosa empírica deve ser iniciada
imediatamente após a punção, com cobertura obrigatória para S.
aureus. Caso o indivíduo seja sexualmente ativo, a artrite gonocócica
também deve ser tratada empiricamente. Culturas de sangue
periférico devem ser colhidas. De acordo com o achado de coloração
ou o resultado da cultura, os antibióticos devem ser modificados. O
tempo de tratamento é de 4 semanas, mas, em casos de osteomielite
aguda, aumenta para 6 semanas e, se houver osteomielite crônica ou
infecção de prótese, chega a 6 meses. O tratamento pode ser
inicialmente intravenoso, mas, com a boa resposta e a cultura
confirmando sensibilidade, pode ser trocado para via oral após as 2
primeiras semanas, de acordo com as culturas.
Um bom esquema inicial é a oxacilina, 8 a 12 g/d IV, para cobrir S.
aureus (se não houver suspeita de resistência à oxacilina), e
cefalosporina de terceira geração para cobertura dos Gram negativos
(Shar et al., 2013). Se houver suspeita de artrite gonocócica
(indivíduos sexualmente ativos e descritos a seguir), a cefalosporina
de terceira geração será preferível. Casos específicos, como
indivíduos imunossuprimidos, hospitalizados, colonizados e
usuários de drogas, devem ser considerados separadamente.
A drenagem articular é indicada para acelerar a melhora e evitar
dano permanente. Pode ser feita lavagem artroscópica inicial com
debridamento e drenagem ou punções articulares de repetição, para
reduzir o risco de dano articular permanente. A cirurgia aberta pode
ser indicada a casos de falência de tratamento após 5 a 7 dias de
terapia, osteomielite adjacente, articulações de difícil abordagem
(quadris, ombros e sacroilíacas), infecções em próteses articulares e
artrite séptica de quadril em crianças. A Figura 6.10 demonstra um
fluxograma para a abordagem inicial das artrites sépticas.
Figura 6.10 - Tratamento
Fonte: elaborado pelos autores.

6.2.9.2 Artrite gonocócica

Para a cobertura antibiótica de Neisseria gonorrhoeae, dada a


crescente taxa de resistência a penicilina pelo gonococo,
recomenda-se o início de cefalosporina de terceira geração,
notadamente a ceftriaxona, na dose de 1 g/d IM/IV. Em caso de
alergia a betalactâmicos, aminoglicosídeos como a espectinomicina
(2 g IM, a cada 12 horas) ou fluoroquinolonas (ciprofloxacino, 400
mg IV, a cada 12 horas, ou levofloxacino, 500 mg IV, 1x/d, passando
rapidamente para via oral pela sua ótima disponibilidade) podem ser
utilizados. Recomenda-se, também, uso de azitromicina 1 g VO, em
dose única (West, 2015). Se a cultura é positiva para o gonococo e o
agente é sensível a penicilina, pode-se trocar o antibiótico para
ampicilina, 1 g IV, a cada 6 horas, passando para amoxicilina oral, 1
g, a cada 8 horas. O tratamento em casos não complicados dura 2
semanas. Em casos complicados por cardite, meningite, endocardite
ou osteomielite, antibióticos intravenosos devem ser feitos por 2 a 4
semanas, com complementação de 2 semanas com antibiótico por
via oral. Pela comum associação de infecção por Chlamydia
trachomatis nos pacientes, costuma-se proceder com o seu
tratamento concomitante (azitromicina ou doxiciclina). A artrite da
IGD costuma melhorar rapidamente seus sintomas em cerca de 24 a
48 horas. Artrocenteses de repetição são indicadas.
O Quadro 6.8 apresenta um resumo das diferenças entre artrites não
gonocócicas e artrites gonocócicas.
Quadro 6.8 - Resumo comparativo entre artrite gonocócica e não gonocócica
6.2.10 Artrites crônicas
As artrites crônicas são definidas como aquelas que duram mais de 6
semanas. Os principais diagnósticos diferenciais das artrites
crônicas são as infecções por germes de crescimento lento
(micobacterioses e fungos) e as artropatias autoimunes.
6.3 MICOBACTÉRIAS
6.3.1 Mycobacterium tuberculosis
O envolvimento articular é raro e representa apenas 5% dos casos.
Em crianças, o comprometimento articular ocorre basicamente por
disseminação hematogênica, já nos adultos, o comprometimento
pode ser secundário a foco pulmonar quiescente ou a sítio
extrapulmonar. O PPD (derivado de proteína purificada) pode ser
positivo em pacientes com comprometimento osteoarticular,
mesmo com radiografia de tórax normal. O diagnóstico da artrite é
confirmado pela demonstração do Mycobacterium tuberculosis no
líquido sinovial.
O quadro clínico osteoarticular da tuberculose pode cursar com
comprometimento da coluna vertebral (doença de Pott), artrites ou
tenossinovites periféricas e/ou, ainda, artrite reativa (doença de
Poncet).
6.3.1.1 Tuberculose espinal: doença de Pott

O quadro clínico é marcado por dorsalgia e febre baixa. Em 12 a 50%


dos casos há manifestações neurológicas. A dor ocorre
frequentemente na coluna torácica, seguida da lombar e, menos
comumente, na coluna cervical e nas vértebras sacrais. Há
comprometimento da porção anterior do corpo vertebral. A
destruição óssea gera colapso vertebral e formação de deformidade
“em giba”, além de causar comprometimento de partes moles
subjacentes. O principal diagnóstico diferencial faz-se com
osteomielite vertebral bacteriana, sendo que nesta última a febre é
mais comum. A radiografia demonstra redução de espaço discal,
colapso vertebral e abscesso paraespinal. A tomografia
computadorizada define bem as lesões e a ressonância nuclear
magnética mostra melhor o envolvimento neural. O diagnóstico
envolve biópsia guiada por tomografia computadorizada. O
tratamento é igual ao da tuberculose pulmonar.
6.3.1.2 Artrite tuberculosa
Trata-se de uma artrite monoarticular que afeta quadril ou joelho,
mas pode envolver outras articulações. O início é tipicamente
insidioso. Dor e edema articular estão presentes com sinais
inflamatórios limitados. São decorrentes da reativação de foco
latente, por via hematogênica, podendo associar-se a osteomielite
adjacente, mas não necessariamente concomitante com
envolvimento articular. Em adultos, comprometem metáfises de
ossos longos. São achados radiográficos encontrados: osteopenia
justa-articular, erosões marginais e redução gradual do espaço
articular (tríade de Phemister). Pode haver, ainda, edema de partes
moles, cistos subcondrais, esclerose óssea, periostite e calcificações.
No líquido sinovial, observa-se contagem de células elevadas, com
predomínio de neutrófilos e, ocasionalmente, de linfócitos. A glicose
usualmente está baixa, e a cultura, positiva em 80% dos casos. É
mais bem diagnosticada pelos achados histológicos e
microbiológicos da sinóvia, sendo a cultura sinovial positiva em
90% dos casos. A histologia demonstra o granuloma não caseoso, e o
tratamento é igual ao da tuberculose pulmonar.
6.3.1.3 Doença de Poncet

Forma de artrite reativa que ocorre durante tuberculose ativa. Há


artrite poliarticular, tipicamente envolvendo mãos e pés. O líquido
sinovial não demonstra sinais de comprometimento. Os sintomas
melhoram com o tratamento da tuberculose.
6.3.2 Mycobacterium leprae
Causa formas severas de artrite (formas erosivas de grandes e
pequenas articulações). A hanseníase virchowiana está associada à
presença do eritema nodoso. São possíveis achados associados:
nódulos subcutâneos, febre e artralgia/artrite. O isolamento do
agente no líquido sinovial (artrite séptica) é infrequente. O
tratamento da hanseníase melhora os sintomas.
Em estágios tardios, os pacientes desenvolvem articulação de
Charcot (doença neuropática articular) como consequência da
neuropatia sensorial e trauma repetido.
6.4 FUNGOS
As artrites fúngicas são condições infrequentes nos pacientes com
articulação nativa e imunocompetentes. Essas condições entram no
diagnóstico diferencial de pacientes com imunossupressão
importante e portadores de articulações protéticas. O Quadro 6.9
resume alguns fungos com relevância na prática clínica.
Quadro 6.9 - Artrites fúngicas
Do ponto de vista
microbiológico, o que
diferencia as síndromes
reumatológicas
relacionadas a agentes
infecciosos das demais
doenças reumáticas?
Nas síndromes reumatológicas relacionadas a agentes
infecciosos, o patógeno está diretamente relacionado à
doença articular, seja por dano direto ou por promotores
inflamatórios circulantes, e a sua remoção promove
melhora sintomática.
Quais são as apresentações
clínicas da gota?

7.1 INTRODUÇÃO
A complexidade das vias metabólicas no corpo humano é
absolutamente fascinante. A maneira como substâncias são
constantemente formadas e destruídas e as vias regulatórias que
permitem a máxima otimização deste processo ainda são apenas
parcialmente conhecidas pela ciência. É intrigante ao pesquisador
que erros maiores não ocorram na maior parte das vezes e que
apenas porcentagens pequenas de indivíduos sofram com
imperfeições metabólicas. Nesta seção, esta obra se dedicará a
estudar estes indivíduos e as suas particularidades.
Como em muitas especialidades da Medicina, a Reumatologia possui
também as suas condições que se devem a distúrbios de depósito; ou
seja, condições reumáticas que ocorrem pelo excesso de formação ou
déficit no depuramento de alguma substância, que, uma vez
acumulada, gera distúrbios no funcionamento normal dos órgãos,
tecidos e sistemas.
Poderíamos nos ater a diversos órgãos acometidos pelas doenças
metabólicas, mas, devido ao propósito restrito desta obra,
discutiremos especialmente as artropatias. Boa parte dos processos
que levam uma articulação a adoecer por acúmulo de substâncias
ocorrem devido à precipitação de cristais intra-articulares. De
maneira ampla, esse fenômeno patológico é conhecido como artrite
microcristalina.
Compreender como esses cristais são formados e como a sua
presença causa lesão articular são passos fundamentais a todo
clínico que pretenda tratar uma artrite microcristalina.
7.2 FISIOPATOLOGIA
7.2.1 Ácido úrico
O ácido úrico é a principal forma pela qual o organismo excreta
produtos finais das vias das purinas. As purinas, por sua vez, são
constituintes fundamentais do código genético de todas as células e
potentes mediadores intracelulares de uma infinidade de reações. A
partir de glutamina e sacarídeos, diversas reações ocorrem para a
formação de inosina. A inosina, por sua vez, a depender da via que
percorre, pode originar guanina, adenina ou ser convertida em
hipoxantina. Todas as reações até este nível são reversíveis e o
balanço químico é definido pela necessidade corporal de cada
substância. Uma vez que hipoxantina se acumula, a enzima xantina
oxidase (XO) é capaz de convertê-la em xantina, e, após, em ácido
úrico. A Figura 7.1 ilustra essa via metabólica. Muitas espécies
possuem ainda a enzima uricase, capaz de converter o ácido úrico
em alantoína, uma substância muito mais solúvel, e, portanto, mais
facilmente excretada por via renal do que o ácido úrico. O ser
humano, porém, não possui esta enzima ativa e acumula, por
consequência, mais ácido úrico. Entende-se que o ácido úrico deva
ter alguma função evolutiva para o ser humano, possivelmente
relacionada à capacidade de poupar volemia e manter atividade
simpática (Álvarez-Lario; Macarrón-Vicente, 2010).
Figura 7.1 - Vias enzimáticas envolvidas na síntese e depuração das purinas
Nota: no ser humano, a enzima uricase é ineficaz, aumentando a chance de acúmulo de
ácido úrico.
Legenda: guanosina monofosfato (GMP); adenosina monofosfato (AMP).
Fonte: arquivo pessoal do dr. Jean Souza.

Os níveis séricos de ácido úrico (monourato de sódio) variam no


homem (até 7 mg/dL) e na mulher (até 6,5 mg/dL). Acima desses
valores, define-se hiperuricemia, e os fluidos que contêm ácido
úrico ficam supersaturados, favorecendo a precipitação de cristais
nos tendões, ligamentos, bursas, bainhas sinoviais, interstício,
túbulos renais e pavilhão auricular. A precipitação dos cristais está
relacionada com o nível de ácido úrico e o tempo em que o indivíduo
fica com hiperuricemia. Algumas situações, como pH tecidual baixo
e baixas temperaturas, favorecem a deposição dos cristais.
O pool ou o conteúdo total de ácido úrico no corpo é resultante do
equilíbrio entre a formação e a excreção de uratos (uricosúria), que é
principalmente renal e ocorre no túbulo contorcido proximal.
Qualquer alteração levando à hiperprodução ou hipoexcreção pode
ocasionar hiperuricemia. Indivíduos podem ser hipoexcretores (90%
dos casos) ou hiperprodutores (10%), com base na uricosúria:
aqueles que eliminam menos de 800 mg de ácido úrico na urina de
24 horas são hipoexcretores; os que eliminam ao menos 800 mg em
24 horas têm rins funcionando adequadamente e buscam eliminar –
geralmente de maneira insuficiente – o excesso de ácido úrico
produzido (hiperprodutores). Entretanto, pode haver a associação
das situações. Vários fatores, incluindo doenças, álcool e
medicações, são causas importantes de diminuição na excreção renal
do ácido úrico. A eliminação intestinal, por sua vez, é responsável
por uma pequena quantidade da excreção de ácido úrico (de 200 a
300 mg/d) e pode chegar a ser a principal via de eliminação de uratos
em pacientes com insuficiência renal (Sorensen, 1965).
Os precursores das purinas que favorecem a produção de ácido úrico
podem ter origem exógena (dieta rica em proteínas ou calorias) ou
endógena (pela síntese de purina “de novo” e pelo turnover celular).
Assim, pode elevar-se como consequência da dieta (embora a
contribuição seja, geralmente, pequena) e do aumento do
catabolismo tecidual provocado por várias doenças e medicações,
bem como por erros inatos envolvidos no metabolismo das purinas.
O álcool tem grande ligação com a hiperuricemia e age tanto
aumentando a síntese quanto diminuindo a excreção de ácido úrico.
As crises de gota, sucedendo eventos com grande consumo de álcool,
são classicamente descritas.
As causas principais de hipoexcreção de ácido úrico são: obesidade,
hipotireoidismo, hiperparatireoidismo, diuréticos tiazídicos e de
alça, etanol, salicilatos (ácido acetilsalicílico) em dose baixa,
insuficiência renal crônica e desidratação. E as menos frequentes
causas de hiperprodução são: psoríase, hemólise, policitemia vera,
síndrome de lise tumoral, hipertireoidismo, deficiência de vitamina
B12 e deficiência de G6PD.
As principais causas de hipoexcreção e hiperprodução de ácido úrico
são:
1. Causas de hipoexcreção (< 800 mg de uricosúria em 24 horas):
a) Causas endócrinas:
Obesidade;
Hipotireoidismo;
Cetoacidose diabética;
Diabetes insipidus;
Hiperparatireoidismo.
b) Drogas:
Diuréticos (tiazídicos e de alça);
Ciclosporina;
Etanol;
Salicilatos em baixa dose;
Pirazinamida;
Etambutol;
Laxativos;
c) Causas renais:
Insuficiência renal crônica;
Desidratação;
Hipertensão arterial sistêmica;
Restrição salina;
Doença renal policística.
d) Miscelânea:
Toxemia gravídica;
Síndrome de Down;
Sarcoidose;
Acidose láctica.

2. Causas de hiperprodução (> 800 mg de uricosúria em 24 horas):


a) Doenças:
Psoríase;
Hemólise;
Policitemia vera;
Doenças mieloproliferativas;
Obesidade;
Glicogenoses I, III, V, VI e VII;
Síndrome de lise tumoral;
Hipertireoidismo;
Etanol;
Varfarina;
Vitamina B12;
Ácido nicotínico.
b) Agentes citotóxicos: frutose;
c) Distúrbios hereditários:
Deficiência de HGPRT (hipo-guanina fosforibosiltransferase) ou
síndrome de Lesch-Nyhan;
Hiperprodução de PRPP (fosforibosilpirofosfato);
Deficiência de G6PD (glicose-6-fosfato desidrogenase).

7.2.2 Pirofosfato de cálcio


O uso de nucleotídeos trifosfatos (como ATP, adenosina trifosfato) é
necessário ao condrócito para uma infinidade de processos celulares,
inclusive a geração de energia; basta lembrar que uma das principais
fontes de doação de fósforo nos humanos é justamente a hidrólise do
ATP. Na membrana e no interior do condrócito, enzimas são capazes
de catalisar esse processo, gerando AMP (adenosina monofosfato) e
pirofosfato (2 moléculas de fósforo ligadas a oxigênios). O
pirofosfato é um ânion que pode rapidamente compor um sal, caso
encontre um cátion compatível. A geração de sais de pirofosfato é
evitada no interior da articulação pela ação da fosfatase alcalina, que
transforma o pirofosfato em fósforo inorgânico, catalisada pela
presença de íons de magnésio (Abhishek; Doherty, 2016).
Na presença de concentrações altas de cálcio ou pirofosfato intra-
articular, pode ocorrer precipitação de pirofosfato de cálcio mais
rápido do que a fosfatase alcalina consegue promover a depuração do
pirofosfato, formando cristais intra-articulares. Os principais
mecanismos pelos quais ocorre esse excesso de substrato são
polimorfismos nas diversas enzimas relacionadas à formação de
pirofosfato e à extrusão do pirofosfato para o meio intra-articular
(Abhishek et al., 2014). Como não existe uma doença propriamente
dita causando essas alterações (são apenas polimorfismos), esses
pacientes são portadores das formas primárias de doença por
pirofosfato de cálcio. Contudo, as hipercalcemias, as
hipomagnesemias, a hipofosfatasia (redução da atividade da
fosfatase alcalina) e a presença de sais férricos circulantes, que são
capazes que inibir a fosfatase alcalina (Hochberg, 2015), são outros
exemplos de situações nas quais o paciente será portador de doença
por pirofosfato de cálcio secundária. A Figura 7.2 ilustra as reações
que ocorrem no ambiente articular e que promovem o acúmulo de
pirofosfato.
Figura 7.2 - Vias metabólicas articulares relacionadas à produção de pirofosfato

Nota: o acúmulo de pirofosfato, na presença de íons cálcio, pode formar cristais de


pirofosfato de cálcio.
Legenda: nucleotídeos trifosfatos (NTP); adenosina monofosfato (AMP); pirofosfato (PPi);
Fosfatase Alcalina (FA); fósforo inorgânico (Pi).
Fonte: arquivo pessoal do Dr. Jean Souza, adaptado de Abhishek et al. 2014.

7.2.3 Inflamação
A mera presença do cristal intra-articular, em geral, não é condição
suficiente para que a destruição articular ocorra. A lesão ocorre
porque o cristal é reconhecido pelos fagócitos como uma estrutura
não pertencente ao organismo, através de receptores
reconhecedores de padrão. Neste caso, os receptores envolvidos
geralmente são os TLR (Toll-Like Receptor) 2 e 4 (Liu-Bryan et al.,
2005).
Após entrar na célula, a estrutura do cristal, a sua eletronegatividade
e inclusive as moléculas que o cobrem são capazes de ativar o
inflamossomo. O inflamossomo é um agregado de proteínas
conectadas que passam por alterações conformacionais dependentes
de vários estímulos para gerar a resposta imune inata. A ativação do
inflamossomo culmina, em última análise, com liberação de IL-1.
A IL-1, por sua vez, é uma potente ativadora da resposta imune
celular, através do aumento da expressão de adesinas, vasodilatação,
sensibilização das vias fagocitárias, estimulação termorregulatória
talâmica e redução do limiar álgico. Na prática, fenômenos mediados
por IL-1 são geralmente muito inflamatórios, com francas
manifestações flogísticas teciduais e aumento da temperatura local e
corporal.
Em resumo, é a resposta imune ao cristal que causa problemas ao
paciente e, não, o cristal em si. Quando ocorre a depuração deste e
finda o estímulo do sistema imune inato, a articulação volta ao seu
estado basal e os sintomas melhoram. Contudo, a exposição cíclica a
esse processo pode gerar sequelas articulares irreversíveis, gerando,
em última análise, uma osteoartrite secundária.
7.3 ARTRITE MICROCRISTALINA
7.3.1 Gota
Gota é uma doença articular inflamatória, causada pelo depósito de
cristais de monourato de sódio no tecido articular e periarticular,
relacionada ao aumento da concentração sérica de ácido úrico
(hiperuricemia). Como características gerais destacamos as
seguintes: ataques recorrentes de artrite inflamatória aguda;
artropatia crônica; acúmulo de cristais de urato em forma de
depósitos tofáceos; nefrolitíase por ácido úrico; a nefropatia em
pacientes gotosos é mais comumente causada por outras
comorbidades associadas.
7.3.1.1 Epidemiologia
Compromete predominantemente homens de meia-idade, a partir
da quinta década de vida, mas existe aumento gradual na prevalência
tanto em homens quanto em mulheres nas últimas décadas. Após os
60 anos, a prevalência entre os sexos torna-se equivalente.
Raramente se observa gota em mulheres na pré-menopausa, a não
ser em casos de erro inato do metabolismo, associada a doenças
subjacentes ou ao uso de medicação.
A incidência e a prevalência de gota são paralelas à incidência e
prevalência de hiperuricemia na população geral. Muitos pacientes
com ácido úrico elevado não têm gota. Os principais fatores
correlacionados com aumento do ácido úrico e prevalência de gota
são aumento da longevidade da população; aumento da prevalência
de hipertensão; aumento do uso de diuréticos e baixas doses de ácido
acetilsalicílico; aumento no consumo de álcool; aumento da
prevalência de obesidade; aumento da prevalência de síndrome
metabólica; aumento da prevalência de doença renal terminal;
aumento do número de transplantes e uso de ciclosporina; aumento
de doença coronariana e insuficiência cardíaca congestiva.
7.3.1.2 Manifestações clínicas

a) Hiperuricemia assintomática

A hiperuricemia é um achado bioquímico comum. Nos fluidos


extracelulares, 98% do ácido úrico está na forma de monourato no
pH = 7,4. Em termos fisiológicos, qualquer valor acima de 6,8 mg/dL
compreende hiperuricemia, desde que exceda a concentração solúvel
de monourato nos fluidos corpóreos.
A maioria das pessoas com hiperuricemia nunca desenvolve
sintomas associados a excesso de ácido úrico, como artrite gotosa,
tofos e cálculos renais.
Hiperuricemia não diagnostica gota
isoladamente nem é uma doença propriamente
dita.

b) Gota aguda intermitente

O ataque inicial de gota aguda usualmente é precedido por décadas


de hiperuricemia assintomática.
O episódio de ataque, em geral, é uma dor de início agudo,
acompanhada de calor, edema e eritema. A dor é intensa e atinge o
pico máximo entre 12 e 48 horas. O ataque inicial costuma ser
monoarticular e, na metade dos pacientes, envolve a primeira
articulação metatarsofalangiana, a chamada crise de podagra
(Figura 7.3). Essa articulação é afetada em 90% dos indivíduos com
gota. Outras articulações frequentemente envolvidas em estágio
precoce são pequenas articulações do antepé, dos tornozelos,
calcanhares e joelhos e, às vezes, punhos, quirodáctilos. Raramente,
há envolvimento de ombros e quadris. A dor geralmente é muito
intensa.
Sintomas sistêmicos, como febre, calafrios e mal-estar, podem
acompanhar a gota aguda. O eritema cutâneo associado ao ataque
agudo de gota envolve a articulação e pode assemelhar-se a uma
celulite bacteriana. O curso natural da forma não tratada varia de
episódios de dores moderadas, que se resolvem em algumas horas, a
ataques severos, que duram de 1 a 2 semanas. O episódio entre os
ataques pode durar anos, mas, com o tempo, a tendência é que se
tornem mais frequentes, com maior duração e envolvimento de
múltiplas articulações.
O período intercrítico é aquele em que as articulações estão fora do
ataque agudo de gota. Apesar disso, cristais de monourato de sódio
são frequentemente identificados no líquido sinovial. Nesse período,
em estágios precoces da doença, a articulação se mantém
assintomática, mas, com a recorrência dos ataques, fica
comprometida; pode haver dor persistente, que indica evolução para
gota crônica.
As articulações distais são focos mais frequentes de gota devido à
temperatura mais baixa longe do tronco, reduzindo o limiar de
solubilidade do monourato de sódio.
Figura 7.3 - Podagra

Fonte: Gonzosft, 2010.

c) Gota crônica e gota tofácea

A gota crônica geralmente se desenvolve após 10 anos ou mais de


gota aguda intermitente. A transição da gota intermitente para a
gota crônica ocorre quando os períodos intercríticos não ficam livres
de dor. O envolvimento articular torna-se persistente, embora a
intensidade da dor seja menor do que a dos ataques agudos.
O acometimento poliarticular é mais comum nessa fase, com
envolvimento de pequenas articulações dos pés e das mãos de forma
simétrica, podendo até confundir-se com artrite reumatoide. As
articulações podem ficar deformadas, com aumento do tamanho e
desvios de eixo. Na prática, trata-se de uma osteoartrite secundária,
com características particulares de doença microcristalina.
Os tofos são decorrentes do depósito tofáceo de monourato sódico
em tecidos periarticulares e, geralmente, levam anos para se
desenvolver. Desta forma, entende-se que uma gota tofácea quase
sempre será uma gota crônica (embora, raramente, pacientes
possam desenvolver tofos já no ataque inicial). Inicialmente, podem
não ser palpáveis, mas tendem a evoluir com a deposição paulatina.
Podem ser encontrados em qualquer lugar do corpo, mas os mais
comuns são dedos (Figuras 7.4 e 7.5), punhos, orelhas (Figura 7.6),
joelhos, olecrânio e locais de maior pressão, como região ulnar e
tendão de aquiles (Figuras 7.7 e 7.8). Seu aparecimento está
relacionado com a severidade da hiperuricemia. Ocasionalmente, os
tofos também inflamam, em geral, acompanhando crises agudas de
artrite. Diferentemente dos cistos sinoviais que podem ocorrer na
artrite reumatoide e na osteoartrite, os tofos são de consistência
dura. Sua punção revela saída de material branco pastoso.
Figura 7.4 - Gota tofácea crônica
Figura 7.5 - Tofos nos quirodáctilos
Fonte: Multiple Tophaceous Gout of Hand with Extensor Tendon Rupture, 2017.

Figura 7.6 - Tofo no pavilhão auricular


Figura 7.7 - Tofos no olecrânio

Figura 7.8 - Tofo rompido drenando secreção rica em monourato de sódio


d) Doença renal

Diversas formas de doença renal induzida por hiperuricemia são


reconhecidas, incluindo nefropatia crônica por urato, nefropatia
aguda por ácido úrico e nefrolitíase por ácido úrico. A ocorrência de
uma ou de outra depende da velocidade de ascensão da
hiperuricemia e da quantidade de ácido úrico envolvida.
Na hiperuricemia crônica, o mais comum é a nefrolitíase, na qual
cálculos grandes de formação paulatina se depositam nas vias
urinárias. A incidência correlaciona-se diretamente com o nível
sérico de ácido úrico, e cálculos se desenvolvem em 50% dos
pacientes quando o urato está maior que 13 mg/dL. Sintomas de
calculose renal precedem o desenvolvimento de gota em 40% dos
pacientes, e cálculos contendo cálcio têm frequência 10 vezes maior
em indivíduos com gota do que na população geral.
Outra possibilidade é a nefropatia por urato. A fisiopatologia é
semelhante – com formação lenta de cálculos urinários – mas a
deposição é nos ductos coletores e no interstício renal, com resposta
inflamatória intersticial na região circunscrita ao depósito, com
fibrose e atrofia tubulointersticial. A apresentação clínica
geralmente se dá na forma de perda paulatina de função renal,
hipertensão e proteinúria leve. Na prática clínica, frequentemente se
confunde com a nefropatia crônica por hipertensão arterial
sistêmica e diabetes.
Por fim, em estados de formação extremamente exagerada de ácido
úrico agudamente (como após terapia citotóxica ou na síndrome de
lise tumoral), ocorre a nefropatia por ácido úrico. Pequenos cristais
ocluem agudamente os túbulos, causando insuficiência renal
rapidamente progressiva.
As uricases sintéticas são dadas em alguns
esquemas de quimioterapia para evitar a
nefropatia aguda por ácido úrico.

e) Hipertensão e síndrome metabólica

Hipertensão está presente em 25 a 50% dos pacientes com gota, e 2 a


4% das pessoas com hipertensão têm a doença. Contudo, a relação
entre hiperuricemia e hipertensão ainda é motivo de debate no meio
acadêmico. Pesquisadores já demonstraram em modelos murinos
que a hiperuricemia leva a vasoconstrição, retenção hídrica e
arteriopatia (Mazzali et al., 2001); ademais, um estudo randomizado
também já demonstrou que alguns pacientes apresentam redução da
pressão arterial quando tratados com terapias hipouricemiantes
(Feig et al., 2008). Todavia, os fatores de risco para desenvolvimento
de hiperuricemia são fortemente relacionados aos fatores de risco
relacionados à síndrome metabólica, o que suscita a teoria de que o
ácido úrico sirva mais como marcador de risco cardiovascular do que
promotor propriamente dito (Krishnan; Sokolove, 2011). Até o
momento, portanto, não há dúvida da relação entre hiperuricemia,
síndrome metabólica e risco cardiovascular, mas a maneira como
estas variáveis se influenciam ainda não é conhecida totalmente.
7.3.1.3 Achados radiográficos

Os achados radiográficos nas fases iniciais podem não existir. Na


artrite aguda, pode ser encontrado apenas aumento de partes moles
nas articulações afetadas (Figura 7.10). Na maioria dos casos,
anormalidades ósseas e articulares podem desenvolver-se após anos
de doença, e podem ser vistos depósitos de cristais de urato (Figura
7.9). Mais frequentemente, as anormalidades são assimétricas e
encontradas nos pés, nas mãos, nos punhos, nos ombros e nos
joelhos.
A erosão óssea da gota é radiologicamente distinta das alterações
erosivas das artrites autoimunes. Erosões da gota estão presentes
nas margens ósseas (lesão “em saca-bocado” – Figura 7.11).
Osteopenia justa-articular, um achado comum e precoce na artrite
reumatoide, é ausente ou mínima na gota.
Figura 7.9 - Presença de depósito de ácido úrico no primeiro pododáctilo, com total
destruição da porção distal do primeiro metatarso
Figura 7.10 - Aspecto radiográfico de um tofo: notar aumento de partes moles no local
Figura 7.11 - Lesão erosiva tipo “saca-bocado” no primeiro metatarso
7.3.1.4 Achados laboratoriais

A elevação de ácido úrico tem sido considerada a chave no


diagnóstico da gota. O nível normal de ácido úrico sérico para o sexo
masculino é de cerca de 7 mg/dL e, para o sexo feminino, 6 a 6,5
mg/dL. Na realidade, esse achado laboratorial não é diagnóstico. A
maioria dos estados hiperuricêmicos não desenvolve gota, e os
níveis de urato podem estar normais durante a crise, devido à
precipitação tecidual.
Em pacientes em investigação de artrite gotosa, devem-se avaliar,
além dos níveis de ácido úrico e uricosúria, exames laboratoriais
associados à síndrome metabólica.
O diagnóstico definitivo é possível pela aspiração do líquido sinovial
ou do tofo que demonstra cristais de monourato de sódio. Os cristais
geralmente assumem forma de agulha com intensa birrefringência
negativa ao microscópio de luz polarizada (Figura 7.12). Isso os
distingue dos cristais de pirofosfato de cálcio, encontrados na
pseudogota, que são curtos e rombos e têm birrefringência positiva
fraca. Os cristais usualmente são intracelulares, durante os ataques
agudos, e extracelulares, quando fora de crise. O líquido sinovial
mostra inflamação intensa a moderada, com predomínio de
neutrófilos.
Figura 7.12 - Cristal de monourato de sódio
Legenda: (A) localizado intracelularmente; (B) sob luz polarizada: fusiformes e fortemente
birrefringentes.
Fonte: Rheumatology in Practice, 2010.
A dosagem de ácido úrico na urina de 24 horas é necessária para
definir o tipo de paciente (hipoexcretor ou hiperprodutor) e, por
conseguinte, o tipo de tratamento. Em uma dieta regular, a excreção
de ácido úrico maior do que 800 mg em 24 horas sugere
superprodução de urato. Pode-se calcular o clearance de ácido úrico,
que é a taxa de filtração renal de ácido úrico, pois o indivíduo pode
ter uricosúria alta (hiperprodutor), mas clearance baixo, indicando
déficit de excreção em relação ao valor da hiperuricemia. Da mesma
forma, uma pessoa com uricosúria < 800 mg (que seria classificada
como hipoexcretora) pode excretar adequadamente em relação ao
nível sérico de ácido úrico. O clearance normal é de cerca de 8
mL/min e pode ser calculado com as concentrações urinária e sérica
de ácido úrico e o volume urinário total.
7.3.1.5 Diagnóstico

O diagnóstico de gota é definitivo quando há a documentação de


cristal de monourato de sódio em uma articulação sintomática.
Contudo, nem sempre será possível a positivação deste critério.
Assim, o diagnóstico é provável quando um paciente se apresenta
com surtos de artrite inflamatória aguda repetitivos e autolimitados,
especialmente se forem em articulações de tornozelo ou primeira
metatarsofalangiana. Modalidades de imagem, como radiografia ou
ultrassonografia também podem sugerir o diagnóstico. A presença
de hiperuricemia é sugestiva, mas não suficiente ou mesmo
necessária para o diagnóstico.
Existem critérios classificatórios estabelecidos em 2015 pelo
American College of Rheumatology/European League Against
Rheumatism, mas, como a maioria dos critérios atualmente, não
devem ser usados para a prática clínica, e, sim, para pesquisa. Assim,
são de difícil memorização e dependem de cálculos (Neogi et al.,
2015). Uma calculadora online pode ser encontrada no site
http://goutclassificationcalculator.auckland.ac.nz.
7.3.1.6 Diagnósticos diferenciais
O principal diagnóstico diferencial em uma crise de gota é artrite
séptica. Assim, toda monoartrite aguda deve ser puncionada e
enviada para bacterioscópico e cultura, bem como pesquisa de
cristais. A doença por deposição de pirofosfato de cálcio (ver adiante)
na sua forma aguda pode se manifestar semelhante à gota e o
diferencial depende muito da documentação dos cristais. Nos
quadros crônicos, o principal diferencial se dá com as artropatias
autoimunes. A diferenciação pode ser extremamente desafiadora e
as modalidades de imagem (ver anteriormente no item 7.3.1.3) e
sorologias (o fator reumatoide, por exemplo) podem ajudar a
diferenciá-las.
7.3.1.7 Tratamento

A gota pode ser tratada com sucesso, sem complicações. Os objetivos


terapêuticos incluem tratar a crise aguda, promover rápido alívio da
dor e da inflamação, além de prevenir ataques futuros e a formação
de tofos, cálculos renais e artropatia destrutiva. No tratamento da
gota, atenção também deve ser dada às comorbidades.
a) Gota aguda

Um ataque agudo de gota é marcado por inflamação intensa. Muitos


agentes, incluindo Anti-Inflamatórios Não Hormonais (AINHs),
colchicina, corticoides sistêmicos ou intra-articulares, podem ser
usados para eliminar a dor e os sintomas associados. A
administração precoce desses agentes é essencial. A colchicina, por
exemplo, funciona melhor quando instituída de minutos a horas
depois do ataque. Em pacientes com quadros mono/oligoarticulares,
recomenda-se o uso isolado de apenas uma classe das medicações
citadas. Em casos mais importantes, a associação entre as drogas é
realizada. Drogas que abaixam o urato não devem ser instituídas
durante o ataque agudo. Entretanto, pacientes que o apresentam e
estejam fazendo uso de alopurinol ou agente uricosúrico devem ter o
uso continuado.
1. Anti-inflamatórios não hormonais: os AINHs constituem a
terapia mais usada no tratamento precoce da artrite gotosa aguda e,
devido à intensidade das crises, podem ser administrados em suas
dosagens máximas. São as drogas de escolha no tratamento da crise
aguda de gota, administradas em dose plena ao primeiro sinal de
ataque, e devem ser mantidas por, ao menos, 48 horas após o
desaparecimento dos sintomas (geralmente, a duração total da
terapia com AINHs para o ataque agudo é de 5 a 7 dias). Há
evidências de que qualquer AINH tem ação semelhante no controle
da atividade inflamatória da gota. O ácido acetilsalicílico não é
indicado para o tratamento do quadro agudo por seu efeito
paradoxal relacionado ao ácido úrico, porém não é necessária a
suspensão em pacientes que fazem uso de baixas doses em razão de
profilaxia cardiovascular. Podem causar significativos efeitos
colaterais, mais comumente complicações gastrintestinais. Seu uso
deve ser evitado em hipertensos descontrolados e indivíduos com
disfunção renal. São efeitos colaterais gastrintestinais leves:
dispepsia; efeitos moderados: erosões gastrintestinais (estômago e
bulbo duodenal) e anemia ferropriva; efeitos graves: sangramento
gastrintestinal severo (estômago, bulbo duodenal, esôfago, intestino
grosso e delgado), perfuração aguda (bulbo duodenal e cólon) e
obstrução gástrica;
2. Colchicina: é efetiva no tratamento da crise aguda e promove
alívio da dor em 48 horas na maioria dos pacientes. Além disso, inibe
os microtúbulos envolvidos na quimiotaxia e fagocitose dos cristais
de ácido úrico pelos neutrófilos. Além de reduzir a produção de IL-6,
tem circulação êntero-hepática, e os efeitos tóxicos podem ser
amplificados em indivíduos com doença hepática. Atualmente, é
mais usada nos pacientes com contraindicação aos AINHs.
Geralmente, é administrada em doses orais de 1,5 mg/d (1
comprimido de 0,5 mg, a cada 8 horas) e costuma ser usada até que
ocorra melhora clínica significativa, aparecimento de efeitos
colaterais ou ausência de alívio após 10 doses. Os principais efeitos
colaterais são náuseas, vômitos, diarreia, cãibras e dor abdominal. A
dose deverá ser reduzida ou suspensa se esses sintomas aparecerem.
Dose excessiva pode resultar em supressão da medula óssea, falência
renal, coagulação intravascular disseminada, falência
cardiopulmonar, convulsões e óbito; portanto, o uso é limitado
naqueles com disfunção renal. As doses intravenosas usadas no
passado até o surgimento de efeitos colaterais são totalmente
desencorajadas atualmente. Também pode ser administrada na
prevenção de ataques em pacientes com crises de repetição, na dose
mais baixa, de 0,5 a 1 mg/d;
3. Corticoides: podem ser usados (em doses baixas por curto
intervalo de tempo) em pacientes a quem a colchicina e os AINHs são
contraindicados ou inefetivos, principalmente àqueles com
insuficiência renal. Como tratamento sistêmico, utiliza-se
prednisona com dose máxima de 35 mg/d até o início da melhora dos
sintomas, geralmente durante 7 a 10 dias.
A gota usualmente responde a colchicina, AINHs ou corticoides
isolados. Entretanto, se a terapia falha ou o ataque é intenso, um
único agente não é o suficiente. Na maioria das situações, os agentes
são utilizados em combinação. A pacientes com monoartrite
associada a insuficiência renal, a administração intra-articular de
corticoides pode ser uma opção útil.
7.3.1.8 Profilaxia

Pacientes com artrite gotosa devem receber recomendações sobre a


perda de peso e sobre a necessidade de evitar tabagismo, uso de
álcool, bebidas ricas em açúcares e refeições ricas em carnes e frutos
do mar. Tais medidas têm impacto no número de crises agudas.
Porém, dietas restritivas, pobres em purinas, não se mostraram
superiores para reduzir o número de crises agudas da doença.
Todos os pacientes devem ser submetidos a screening para possíveis
comorbidades associadas: insuficiência renal, insuficiência cardíaca,
doença arterial periférica, obesidade, hiperlipidemia e hipertensão.
É importante ressaltar que a crise aguda de gota pode ser induzida ou
exacerbada por qualquer alteração súbita dos níveis séricos de ácido
úrico, tanto para mais quanto para menos, ou seja, a instituição de
tratamento precipitar uma crise.
a) Alopurinol

É um inibidor da XO, enzima envolvida na síntese do ácido úrico (ver


item 7.2). Para pacientes com hiperprodução de ácido úrico,
nefrolitíase ou outras contraindicações para o uso de uricosúricos, é
o agente de escolha. Também é a droga preferível em casos de
insuficiência renal, mas sua toxicidade é possível quando a filtração
glomerular está rebaixada. Toxicidade pode ser evitada se as doses
forem apropriadas. Terapia típica é iniciada com a dose de 300 mg/d,
entretanto doses de 100 mg ou menos podem ser apropriadas para
pacientes idosos ou com filtração glomerular < 50 mL/min.
Os efeitos colaterais mais comuns são dispepsia, cefaleia e diarreia. O
rash papular pruriginoso ocorre em 3 a 10% dos pacientes. Outros
efeitos tóxicos incluem febre, urticária, eosinofilia, nefrite
intersticial, falência renal aguda, supressão de medula óssea,
hepatite, vasculite e toxicidade epidérmica.
A síndrome de hipersensibilidade ao alopurinol é rara, mas constitui
um quadro grave, com mortalidade em torno de 20 a 30%.
Até o momento, no Brasil, não são liberadas outras drogas orais
inibidoras de síntese de ácido úrico. Nos Estados Unidos e na Europa,
uma alternativa ao alopurinol, como droga hipouricemiante
inibidora da XO, é o febuxostate, na dose de 40 a 80 mg/d.
b) Agentes uricosúricos

São efetivos para os pacientes com filtração glomerular entre 50 e 60


mL/min, com ingesta de 2 L de fluidos e bom fluxo urinário, sem
história ou evidência ultrassonográfica de nefrolitíase. No Brasil, o
agente disponível é a benzbromarona, na dose de 50 a 200 mg/d. Não
deve ser administrada em indivíduos com uricosúria elevada (> 800
mg/24 horas).
A combinação de alopurinol e uricosúricos pode ser indicada para
pacientes com tofos extensos e função renal preservada. Os
uricosúricos aumentam a excreção de grandes quantidades de urato
solúvel, e o alopurinol reduz a formação de novos uratos.
A Figura 7.13 e o Quadro 7.1 resumem o tratamento da gota.
Figura 7.13 - Paciente com gota estabelecida
Fonte: elaborado pelos autores.

Quadro 7.1 - Tratamento da gota


7.3.1.9 Tratamento da hiperuricemia
Há muita controvérsia no tratamento de hiperuricemia isolada.
Alguns autores recomendam o tratamento nesses casos, mas
também há discussão quanto ao nível de uricemia que o indicaria. De
forma geral, em pacientes com hiperuricemia nos quais não se pode
tratar a causa desencadeadora, opta-se por tratar com drogas
redutoras de urato.
O tratamento crônico de gota está indicado nas seguintes condições:
a) Crises recorrentes de gota aguda (2 ou mais episódios);
b) Sinais radiográficos de artropatia gotosa;
c) Presença de depósitos tofáceos em tecidos moles ou no osso
subcondral;
d) Presença de gota e insuficiência renal (clearance de creatinina < 60
mg/min/1,73m2);
e) Nefrolitíase por ácido úrico recorrente, apesar de hidratação e
alcalinização da urina;
f) Excreção urinária de ácido úrico > 110 mg/d em indivíduos menores
de 25 anos ou mulheres na pré-menopausa.

7.3.2 Doença por deposição de pirofosfato de


cálcio
Trata-se de artropatia microcristalina caracterizada por depósito de
cristais de pirofosfato de cálcio diidratado. Os depósitos atingem
principalmente a cartilagem articular, os meniscos, a sinóvia e as
estruturas tendinosas e ligamentares. Pode mimetizar gota, artrite
reumatoide, osteoartrite, artropatia neuropática ou ser
assintomática.
É uma doença comum, que atinge principalmente pessoas na sexta
ou sétima década, sendo rara antes dos 40 anos. Sua importância
epidemiológica como grande causa secundária de osteoartrite tem
sido cada vez mais reconhecida.
Seu nome mais apropriado é “doença por deposição de pirofosfato
de cálcio”, sendo “condrocalcinose” apenas o achado radiológico. O
nome pseudogota está em desuso, uma vez que possui
características muito diferentes da doença por monourato de sódio
(ver item 7.3.1).
Algumas doenças metabólicas estão associadas ao desenvolvimento
de condrocalcinose (deposição de cristais de pirofosfato de cálcio
diidratado), destacando-se as seguintes: hemocromatose;
hiperparatireoidismo; hipofosfatasia e hipomagnesemia (ver item
7.2).
7.3.2.1 Quadro clínico

São tipos mais comuns de apresentação clínica:


a) Pseudogota isolada (25% dos casos)

Manifesta-se por surtos agudos ou subagudos autolimitados,


habitualmente tão severos quanto os da gota e com intervalo livre
assintomático.
b) Forma pseudorreumatoide (5% dos casos)

Manifesta-se com rigidez matinal, artrite simétrica das pequenas


articulações das mãos, espessamento sinovial, contratura em flexão.
Em 10% dos casos, o fator reumatoide é positivo. Os ataques duram
de 4 semanas a vários meses. As articulações mais acometidas são
punhos, cotovelos, metacarpofalangianas, joelhos e ombros.
Devem-se buscar imagens de calcificação articular à radiografia de
punhos, pube e joelhos, que corroboram esse diagnóstico, e afastar
erosões típicas de artrite reumatoide.
c) Osteoartrite secundária (50% dos casos)

O envolvimento geralmente é bilateral, com degeneração


progressiva de múltiplas articulações. Evolui cronicamente por
meses ou anos, mas pode ter curso de crises agudas. Compromete
predominantemente joelhos, punhos, articulações
metacarpofalangianas, articulações coxofemorais, ombros,
cotovelos e tornozelos. Devem-se buscar imagens de calcificação
articular à radiografia de punhos, pube e joelhos e observar o
acometimento de punhos e metacarpofalangianas (muito incomuns
na osteoartrite primária).
d) Artropatia pseudoneuropática

Monoartrite destrutiva grave, de curso crônico, dolorosa. A ausência


de neuropatia sensitiva a diferencia da artropatia neuropática.
e) Forma assintomática (20% dos casos)

Casualmente, são vistas, à radiografia, calcificações típicas da


condrocalcinose, principalmente nos joelhos, porém sem
manifestações clínicas associadas.
7.3.2.2 Achados radiológicos

O depósito de cristal de pirofosfato de cálcio diidratado pode ser


visto à radiografia simples e aparece na cartilagem hialina e fibrosa
como calcificação coalescente em linhas ou bandas paralelas à borda
do osso subcondral (Figura 7.14). Os locais mais frequentemente
acometidos são menisco do joelho, ligamento triangular do carpo e
fibrocartilagem da sínfise púbica. Qualquer articulação pode ser
acometida. Tais alterações são acompanhadas de lesões
degenerativas.
Figura 7.14 - Calcificação coalescente em linhas de bandas paralelas à borda do osso
subcondral
Figura 7.15 - Outras localizações
7.3.2.3 Exames laboratoriais

O líquido sinovial com cristais de pirofosfato de cálcio é o achado


característico. Os cristais são vistos à microscopia de luz polarizada,
apresentando-se com birrefringência positiva fraca e forma curta,
com extremidades rombas (Figura 7.16) – diferentemente dos de
monourato de sódio, que são longos e pontiagudos.
Figura 7.16 - Cristal de pirofosfato de cálcio sob luz polarizada: romboide e fracamente
birrefringente

Fonte: arquivo pessoal da dra. Hérica Cristiani Barra de Souza.

As provas de atividade inflamatória (velocidade de


hemossedimentação e proteína C reativa) podem estar aumentadas,
sobretudo nos casos de crise aguda.
Muitas vezes, é preciso afastar outras doenças comumente
associadas à condrocalcinose, como hiperparatireoidismo,
hemocromatose, hipomagnesemia, doença de Wilson e
hipofosfatasia.
7.3.2.4 Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se nos achados clínicos, radiológicos e


laboratoriais. Entram, no diagnóstico diferencial, doenças que
podem ser mimetizadas (gota, osteoartrite, artrite reumatoide,
artropatia neuropática) e as que podem estar associadas.
Quadro 7.2 - Sugestões diagnósticas para condrocalcinose

7.3.2.5 Tratamento
Tratam-se as crises com AINHs, esvaziamento da articulação por
meio de punção articular e corticoides injetáveis. Os pacientes devem
ser orientados a evitar traumatismos articulares, que são, com
frequência, precipitantes de crises. O uso crônico de colchicina pode
reduzir a frequência e a intensidade das crises. As doses de AINH e
colchicina são as mesmas descritas no tratamento da gota.
7.3.3 Doença articular por deposição de outros
cristais
Uma série de outros cristais pode produzir inflamação aguda
osteomuscular. Dentre eles, destaca-se a deposição de cristais de
hidroxiapatita e de oxalato de cálcio.
São causas de doença articular por deposição de outros cristais:
1. Cristais de hidroxiapatita: causas frequentes de bursites e
tendinites calcificadas. Em alguns casos, podemos encontrar a
síndrome de Milwaukee (artropatia destrutiva que acomete
principalmente mulheres idosas). Associa-se também a doenças do
colágeno, hiperparatireoidismo, insuficiência renal crônica e
calcinose tumoral. À microscopia, são pequenos, não birrefringentes
e mais bem visualizados se corados com vermelho S de alizarina. O
tratamento é inespecífico;
2. Cristais de oxalato de cálcio (CaOx): a forma primária é rara
(distúrbio metabólico e hereditário), e a secundária é decorrente de
doença renal terminal. Como achado radiográfico, também podemos
encontrar condrocalcinose, indistinguível da deposição de cristais de
pirofosfato de cálcio. O líquido sinovial nesse caso não costuma ser
inflamatório, com contagem total de menos de 2.000 leucócitos,
com predomínio de mononucleares. O tratamento das crises agudas
inclui AINHs, colchicina e/ou corticosteroides, associado ao
aumento na frequência das sessões dialíticas. Já na doença
hereditária, há relatos de melhora após transplante hepático.
Quais são as apresentações
clínicas da gota?
A gota pode se apresentar como:
a) Gota aguda;
b) Gota articular crônica;
c) Gota tofácea;
d) Gota renal (insuficiência renal ou litíase).
No espectro das doenças relacionadas ao ácido úrico,
podemos ter também simplesmente a hiperuricemia
assintomática.
O que diferencia as formas
primárias de osteoartrite e
osteoporose das formas
secundárias?

8.1 INTRODUÇÃO
Neste capítulo, esta obra se dedicará a estudar os distúrbios
intrínsecos ao funcionamento fisiológico do tecido ósseo e
cartilaginoso. Como se tratam de estruturas complexas que
funcionam baseadas na interação entre diversas células, tecido
conectivo e material inorgânico, o mau funcionamento desses
sistemas produz uma infinidade de desordens. Existem muitas
condições raras relacionadas ao tema e que fogem do escopo do
livro, contudo, 2 condições extremamente frequentes na população
fazem parte deste grupo de doenças.
Como são condições prevalentes e fortemente relacionadas ao
envelhecimento, é essencial que todo clínico as conheça muito bem.
8.2 OSTEOARTRITE
A osteoartrite, artrose ou osteoartrose (OA) é a mais comum das
doenças reumatológicas. A OA determina comprometimento de
aproximadamente 1 quinto da população mundial, sendo
considerada uma das causas mais frequentes de incapacidade
laborativa após os 50 anos. Pode ser definida como uma síndrome
clínica que representa a via final comum das alterações bioquímicas,
metabólicas e fisiológicas que ocorrem, de forma simultânea, na
cartilagem hialina e no osso subcondral. A doença compreende uma
variedade de subgrupos com fatores etiológicos distintos, tendo,
como substrato patológico, a diminuição do espaço articular devido
à perda cartilaginosa e à formação de osteófitos.
8.2.1 Fisiopatologia
A cartilagem normal tem 2 componentes principais: a matriz
extracelular, rica em colágeno e proteoglicanos, e os condrócitos,
inseridos na matriz. Os componentes da matriz são responsáveis por
suas características de elasticidade e resistência. Os condrócitos são
responsáveis pela síntese da matriz extracelular e por sua renovação
por meio de proteinases, mantendo equilíbrio entre a formação e a
degradação de matriz.
Existem 2 fisiopatologias diferentes para a OA, a depender de sua
etiologia. Na primeira e mais importante, existe um déficit relativo
intrínseco à cartilagem que a torna incapaz de manter o seu ciclo de
destruição e reparação. Essa alteração intrínseca decorre de fatores
diversos em múltiplos componentes da cartilagem que se referem à
qualidade do colágeno e do osso subcondral, à eficiência dos
condrócitos, à eficiência das células inflamatórias, ao perfil de
citocinas, ao balanço entre fatores de crescimento e degradação etc.
(Chen et al., 2017). Isoladamente, essas alterações, que são genéticas
e epigenéticas (ou seja, mediadas por mecanismos não sequenciados
no DNA, mas que alteram a expressão final do DNA), não
necessariamente representam doença cartilaginosa e articular, mas,
uma vez que o indivíduo é exposto a mecanismos de insulto
cartilaginoso, é possível que os fatores descritos contribuam para
que o ciclo de recuperação articular seja insuficiente para manter a
homeostasia (Hochberg, 2018). Esse é um modelo para explicar a
osteoartrite chamada de primária – aquela que é intrínseca ao
indivíduo.
Um segundo modelo é necessário para explicar a osteoartrite
secundária. Nesta situação, a cartilagem é intrinsecamente
competente, mas doenças bem definidas externas à cartilagem
impedem que o ciclo natural e fisiológico de destruição e reparo se
mantenha, causando um saldo cartilaginoso negativo. É evidente
que, se o indivíduo se expuser a outros fatores estressores da
articulação (Quadro 8.1), o processo provavelmente irá acelerar
ainda mais.
As características histopatológicas principais da OA são a perda focal
e gradual da cartilagem articular e o comprometimento do osso
subcondral. Dentre os fatores relacionados ao estresse articular, o
envelhecimento talvez seja um dos mais importantes. Com o passar
dos anos, os componentes da matriz alteram-se: ocorrem
irregularidades na rede de colágeno, e os proteoglicanos alteram-se
qualitativa e quantitativamente, diminuindo sua capacidade de reter
água. Ocorre rarefação dos condrócitos em alguns sítios e hipertrofia
em outros, e passam a ser mais catabólicos, desequilibrando o
processo de formação e degradação da matriz.
O resultado desse processo é uma cartilagem que contém menos
água, condrócitos mal distribuídos e desequilibrados, proteoglicanos
alterados e colágeno fissurado, o que leva a uma matriz menos
resistente e menos elástica, mais suscetível aos traumas mecânicos,
com espessura diminuída. A cartilagem começa a apresentar
microfraturas e, posteriormente, fissuras verticais, atingindo o osso
subcondral.
O sistema imune também participa dessa insuficiência articular.
Uma vez que componentes da matriz são expostos, são interpretados
pelo sistema imune inato como partículas associada a dano, por
conseguinte ativando macrófagos, que irão secretar enzimas
proteolíticas e recrutar outras células de defesa ao espaço articular
(Liu-Bryan; Terkeltaub, 2015). Em síntese, a lesão cartilaginosa
prévia contribui para algum grau de inflamação que, por sua vez,
contribui para mais perda de volume da cartilagem, fechando o ciclo.
A redução do volume e das propriedades da cartilagem e as suas
irregularidades levam a maior atrito entre as estruturas, redução do
espaço articular e alteração dos vetores normais de força dentro da
articulação. Com isso, aparecem áreas de maior pressão sobre o osso,
contribuindo para a esclerose subcondral e surgimento de espículas
ósseas, denominadas osteófitos nas margens articulares.
Compreender a marcha histopatológica permite elucidar a tríade
radiológica clássica da OA: redução do espaço articular, esclerose
óssea subcondral e formação de osteófitos.
Finalmente, cabe lembrar que a OA não é uma doença
exclusivamente da cartilagem e, sim, de todo o aparelho locomotor.
O processo mecânico articular associado a fatores comportamentais
e ambientais podem causar frouxidão ligamentar e capsular,
hipotrofia muscular e diminuição da sensibilidade proprioceptiva
articular, contribuindo para a perpetuação da doença.
8.2.2 Manifestações clínicas
A seguir, apresentaremos as principais características da OA
primária. Ao final do capítulo, serão feitas considerações sobre a
forma secundária.
Trata-se da condição intrinsecamente articular, sem causa
secundária (externa à cartilagem) definida. Também pode ser
chamada de idiopática (embora esse termo esteja cada vez mais em
desuso, visto que já existem múltiplas causas genéticas definidas).
As principais características da OA primária são a evolução lenta e o
acometimento de articulações típicas.
A prevalência está correlacionada a idade, sexo, localização da
doença e método do diagnóstico – OA simplesmente radiográfica ou
síndrome osteoartrítica – com predominância no sexo feminino nos
principais sítios (joelho e mãos).
Se considerada a prevalência de OA radiográfica, é incomum abaixo
dos 40 anos, quando a prevalência entre os sexos é semelhante.
Entre a quarta e a quinta década e no período da menopausa, a
incidência aumenta bastante com a idade e torna-se mais frequente
em mulheres. Estima-se que atinge 85% da população até os 64 anos
e, aos 85, torna-se praticamente universal. Contudo, se considerada
a síndrome osteoartrítica (ou seja, o quadro clínico típico), no Brasil,
atinge 4% dos indivíduos até 35 anos e 15% aos 55 anos (Fuller;
Pereira, 2016).
Além disso, constitui importante causa de morbidade e é a principal
indicação de cirurgias de próteses de quadril e joelho.
Existe uma gigantesca dissociação clínico-
radiológica, de tal forma que, na prática clínica,
não se pode fazer o diagnóstico de osteoartrite
apenas baseando-se na imagem.

A OA pode provocar dor articular, rigidez matinal (geralmente < 30


minutos), limitação de movimentos, crepitações, ocasionalmente
derrame articular e graus variados de inflamação local. É uma
doença de caráter crônico e evolução lenta, sem comprometimento
sistêmico. Na grande maioria dos indivíduos, desenvolve-se de
maneira silenciosa.
O que leva o paciente com OA ao médico é a dor ou algum tipo de
deformidade. A dor tem características mecânicas, aparece ou
exacerba-se no início dos movimentos (dor protocinética), melhora
levemente após alguma movimentação, mas é marcadamente
exacerbada com o uso prolongado da articulação. Nos estágios mais
avançados, não é incomum o paciente ter dor mesmo quando em
repouso, acordando algumas vezes durante a noite.
A rigidez matinal do segmento afetado pode ocorrer, porém, na OA,
diferentemente do que ocorre na artrite reumatoide e em outras
artrites inflamatórias, é de curta duração, sendo sempre inferior a 30
minutos.
Um sinal importante para o diagnóstico é a crepitação, que pode ser
fina ou grosseira. É a sensação palpável de atrito entre as estruturas
articulares, graças à presença de irregularidades na superfície da
cartilagem e fragmentos osteocartilaginosos soltos. A crepitação é
um achado de palpação, mas pode chegar a ser audível.
Outro achado comum é a deformidade articular. Por vezes, o
processo degenerativo e inflamatório pode levar ao aumento do
volume articular, com consistência óssea, limitando a amplitude de
movimento e, muitas vezes, provocando desvio de eixo articular.
A inflamação decorrente do processo pode provocar aumento
discreto da temperatura e derrames articulares (principalmente nos
joelhos).
O quadro clínico da OA envolve dor articular,
rigidez matinal inferior a 30 minutos, limitação
de movimentos, crepitação articular e
deformidade articular.

Nos membros superiores, a OA primária costuma acometer as


interfalangianas proximais (IFPs) e distais (IFDs) das mãos, a
articulação trapézio-metacarpo na base do polegar (rizartrose) e a
acromioclavicular. As deformidades das IFPs são descritas como
nódulos de Bouchard, e as das IFDs, como nódulos de Heberden
(Figura 8.1).
O acometimento dos dedos pode iniciar-se dedo a dedo, de forma
inicialmente assimétrica, mas, à medida que mais articulações são
acometidas, o envolvimento vai se tornando simétrico.
Classicamente, são poupados na OA primária as articulações
metacarpofalangianas, os punhos, os cotovelos e os ombros
(glenoumerais).
O acometimento por OA dessas articulações sugere OA secundária.
Nos membros inferiores, é comum o acometimento dos quadris
(coxartrose), joelhos (gonartrose), primeiras metatarsofalangianas
e as interfalangianas dos pés. Os joelhos podem apresentar-se
aumentados de volume, com discreta elevação de temperatura,
edema e alteração de eixo, sendo mais comum a acentuação de
joelho varo. O comprometimento crônico dos joelhos, com dor e
limitação funcional, leva à hipotrofia muscular dos quadríceps
femorais, que ajudam a instabilizar ainda mais tais articulações. As
metatarsofalangianas ficam com aumento de volume, e o hálux
comumente se desvia lateralmente (hálux valgo). Classicamente, são
poupados na OA primária as demais articulações
metatarsofalangianas, os tornozelos e o tarso. O acometimento
dessas articulações sugere OA secundária.
A OA axial caracteriza-se pelo acometimento das articulações
interapofisárias. Os segmentos mais atingidos são o cervical e o
lombar (maior mobilidade). A dor é também de natureza mecânica,
protocinética, com curta rigidez (< 30 minutos). Pode haver
retificação e perda da lordose cervical ou lombar, ou hiperlordose
lombar e perda de amplitude de movimentos, sobretudo com
desencadeamento de dor à extensão. Dor muscular paravertebral
associada é comum, e compressões neurológicas também podem
ocorrer.
Existe grande incerteza na área acadêmica se a OA de coluna é,
verdadeiramente, causa importante de dor na coluna. A ocorrência
de osteófitos na imagem não necessariamente explica de maneira
satisfatória a maior parte dos casos de dor dorsal (Kalichman et al.,
2008).
Apesar de alguns autores classificarem a OA em axial ou periférica, é
muito comum a associação entre ambas. Alguns materiais também
usam a definição de OA generalizada, em que há OA de mãos ou
coluna, associada a, ao menos, outros 2 sítios de acometimento
(Altman et al., 1986).
Os diferentes graus de perda de função podem ser avaliados pela
anamnese e pelo exame físico. O paciente informa sobre sua
capacidade de realizar atividades diárias, como subir e descer
escadas, fazer caminhadas, realizar tarefas domésticas, praticar
esportes. Isso ajuda a formar uma ideia de suas limitações e serve
como parâmetro na evolução do quadro clínico.
#IMPORTANTE
As articulações tipicamente envolvidas na
osteoartrite primária são joelhos, quadris,
metatarsofalangiana do hálux, interfalangianas
dos dedos, trapézio-metacarpal e coluna.
Qualquer outro padrão pode simbolizar OA
secundária.
Figura 8.1 - Nódulos de Heberden (interfalangianas distais) e de Bouchard
(interfalangianas proximais)

Fonte: Physical Examination of the Hand, 2014.


Tanto a OA primária quanto a secundária estão expostas a fatores
estressores da cartilagem, que são ambientais ou relacionados ao
envelhecimento. Assim, entende-se que esses estressores podem
atuar como desencadeantes e perpetuadores de OA primária, no
sentido que fazem aparecer a fragilidade da cartilagem
intrinsecamente acometida e, uma vez iniciado o ciclo patológico,
contribuirão para perpetuar a doença. Por outro lado, esses mesmos
fatores podem perpetuar (ou dificultar o controle de) uma OA
secundária a partir do momento que ela se inicia.
É importante não confundir os fatores estressores com as causas de
OA secundária. No caso dos estressores, eles não são condição única
ao desenvolvimento de OA; é necessário que haja déficit intrínseco à
cartilagem.
Nos dias de hoje, por vezes, a diferenciação entre OA primária e
secundária pode ainda ser muito difícil. Especialmente se
considerado o fato de que alguns pacientes possuem as 2 coisas.
Contudo, conhecer o mecanismo envolvido altera drasticamente as
oportunidades terapêuticas.
O Quadro 8.1 lista os principais fatores estressores da cartilagem.
Quadro 8.1 - Fatores de estresse sobre a cartilagem na osteoartrite
Fonte: elaborado pelos autores.

8.2.3 Diagnóstico
8.2.3.1 Achados radiológicos

O diagnóstico clínico da OA usualmente é confirmado com


radiografias das articulações acometidas. O clássico achado
radiológico é a tríade da OA (Figuras 8.2, 8.3, 8.4 e 8.5): redução do
espaço articular; esclerose do osso subcondral e presença de
osteófitos (proliferação óssea nas margens articulares).
Diferentemente da artrite reumatoide e de outras artrites
inflamatórias, o acometimento articular é focal e assimétrico dentro
de cada articulação. Assim, a redução do espaço articular é irregular,
acometendo mais um compartimento articular que outro. No
quadril, a porção superior da articulação é mais comumente afetada.
Já nos joelhos, é mais comum o acometimento do compartimento
femorotibial medial e do femoropatelar lateral, levando os achados
da tríade a serem encontrados de forma assimétrica. Podem aparecer
também cistos subcondrais com bordas escleróticas (Figura 8.3).
Existe grande dissociação clínico-radiológica na OA. Cerca de 80%
dos indivíduos a partir de 40 anos podem apresentar características
radiológicas compatíveis com OA em articulações que sustentam
peso, embora apenas 30% apresentem dor. Imagens de ressonância
magnética têm sido usadas para avaliação da OA, permitindo a
visualização direta da cartilagem articular e a detecção de
anormalidades de meniscos e ligamentos.
Figura 8.2 - Osteoartrite de joelho (gonartrose)
Nota: há redução assimétrica do espaço articular, mais evidente no compartimento medial
do joelho (abaixo), esclerose subcondral (osso mais branco à radiografia) e presença de
osteófitos (espículas ósseas laterais).

Figura 8.3 - Osteoartrite de coxofemoral (coxartrose) avançada

Nota: há total perda de espaço articular e esclerose subcondral com grandes cistos.
Fonte: arquivo pessoal do dr. Rodrigo Antônio Brandão Neto.

Figura 8.4 - Esclerose subcondral (seta)


Fonte: arquivo pessoal da dra. Hérica Cristiani Barra de Souza.

Figura 8.5 - Osteoartrite do joelho, esclerose e formação de osteófito


Legenda: (A) e (B) articulação do joelho tibiofemoral; (C) articulação do joelho
patelofemoral.
Fonte: arquivo pessoal da dra. Hérica Cristiani Barra de Souza.

8.2.3.2 Achados laboratoriais

Os exames laboratoriais de rotina habitualmente são normais e


utilizados para identificar outras condições que podem estar
associadas. A avaliação da hemoglobina, creatinina, potássio e
transaminases é necessária antes de iniciar a terapia com Anti-
Inflamatórios Não Hormonais (AINHs).
As provas de atividade inflamatória (velocidade de
hemossedimentação e proteína C reativa) são comumente normais.
Alguns pacientes com sinais inflamatórios mais intensos podem
apresentar velocidade de hemossedimentação levemente
aumentada, porém nunca comparável aos valores presentes na
artrite reumatoide, polimialgia reumática, processos infecciosos ou
tumorais. Na OA, o teste para a detecção do fator reumatoide é
negativo, todavia é preciso lembrar que 20% dos idosos saudáveis
têm esse teste positivo, o que pode levar à confusão com o
diagnóstico de artrite reumatoide.
A análise do líquido sinovial comumente revela perfil não
inflamatório, com viscosidade normal e baixa contagem celular (<
2.000 células/mm3). Excepcionalmente, quando há derrame
articular, alguns pacientes podem apresentar líquido sinovial
levemente inflamado, com pequenos aumentos na celularidade e
discreta diminuição da viscosidade.
O diagnóstico baseia-se na anamnese e no exame físico. Deve-se dar
atenção especial para curso crônico e insidioso, articulações
tipicamente envolvidas com suas deformidades clássicas, idade do
paciente (> 50 anos), dor mecânica e protocinética, com rigidez
matinal curta (< 30 minutos) e provas de atividade inflamatória
normais.
Embora não seja essencial ao diagnóstico, é incomum que não sejam
solicitadas imagens das articulações acometidas. A radiografia
simples é um exame acessível, de baixo custo, baixa radiação e
indolor que fornece informações importantes sobre o grau do
acometimento e eventuais diagnósticos diferenciais (OA secundária).
Como dito anteriormente, os achados de OA são extremamente
típicos quando vistos nas imagens e simbolizam a marcha
histopatológica da doença.
São sinais que simbolizam outro diagnóstico incluem: curso agudo;
articulações não classicamente acometidas; pessoas com menos de
30 anos; artrite franca ou em surtos; dor inflamatória com rigidez
matinal prolongada; comprometimento simétrico dentro de cada
articulação; alteração nas provas de atividade inflamatória.
Uma causa de OA secundária que faz diagnóstico diferencial
relevante com a OA primária é a artrite reumatoide (ver capítulo
Artropatias autoimunes). As principais características que ajudam a
diferenciá-las incluem a grande inflamação vista ao exame físico da
artrite reumatoide e as articulações acometidas. A Figura 8.6
demonstra as principais diferenças topográficas entre as doenças.
Figura 8.6 - Diagnóstico diferencial entre osteoartrite e artrite reumatoide, de acordo com
as principais articulações acometidas
Legenda: (A) osteoartrite; (B) artrite reumatoide.
Fonte: ABC of Rheumatology, 2009.

8.2.4 Tratamento
8.2.4.1 Não farmacológico

O tratamento não farmacológico é o mais importante na OA e inclui


programas educativos: esclarecimento sobre a doença, motivação ao
tratamento, estímulo à prática de atividade física, orientação quanto
ao uso de rampas e escadas e à ergonomia no trabalho; fisioterapia:
fortalecimento muscular, condicionamento físico e alongamento;
órteses e equipamentos de auxílio à marcha; estabilização medial da
patela: goteiras elásticas; palmilhas antivaro; e perda de peso
(Fernandes et al., 2013).
Métodos físicos como termoterapia, estimulação elétrica
transcutânea e ultrassonografia podem ser usados
intermitentemente para alívio sintomático, mas não apresentam
benefício robusto.
As últimas diretrizes no tratamento de OA reforçaram o papel dos
exercícios físicos holísticos (mind-body exercises). Então, ioga ou tai
chi chuan podem ser uma boa dica para iniciar (Bannuru et al., 2019).
8.2.4.2 Farmacológico

O principal objetivo do tratamento farmacológico na OA é o alívio da


dor. As evidências para tratamento sistêmico na OA são todas
bastante restritas. A única classe de medicamentos extensivamente
estudada e que apresenta benefício mantido nas revisões
sistemáticas e meta-análises é ao dos AINHs. Contudo, todas as
diretrizes fazem ressalvas ao risco de toxicidade renal, hepática e
gastrintestinal, ficando restrito aos pacientes de baixo risco de
complicação (Hochberg et al., 2012; Bannuru et al., 2019).
Pacientes com dor crônica ou perfil depressivo podem se beneficiar
de duloxetina.
As recomendações antigas de uso de paracetamol foram retiradas
dos consensos mais recentes, devido à preocupação com toxicidade
hepática e baixo benefício quando comparado ao placebo ou aos
AINHs (Bannuru et al., 2019).
Ademais, os opioides também são desencorajados após uma coorte
demonstrar que foram associados a maior risco de mortalidade a
longo prazo (Zeng et al., 2019).
No Brasil, temos grande experiência com a dipirona, que
provavelmente apresenta benefícios sobre a dor e é segura. Contudo,
como é uma substância proibida em diversos países, não se pode
dizer com segurança científica que é eficaz.
Do ponto de vista das terapias locais (tópicas ou intra-articulares), o
AINH tópico ganhou bastante força nos últimos anos, após revisão
sistemática que demonstrou que não é inferior ao AINH sistêmico no
controle sintomático (Derry et al., 2012). Como apresenta poucos
efeitos colaterais, é uma das primeiras opções de tratamento
atualmente.
As infiltrações articulares, por outro lado, vêm perdendo força.
Mantém-se indicação fraca de infiltração de joelhos com corticoide
ou hialuronatos apenas como medida de controle álgico de curta a
média duração em casos selecionados, não devendo ser repetido
constantemente (Bannuru et al., 2019).
a) Anti-inflamatórios não hormonais

Serão indicados quando houver dor moderada a grave, refratária a


analgesia simples, associada a quadro inflamatório exuberante e nas
eventuais crises de agudização. Os AINHs agem como inibidores da
cicloxigenase (COX). A COX-1 é constitutiva e importante na síntese
de prostaglandinas responsáveis pela proteção antiácida da mucosa
gástrica. A COX-2 é a mais importante na síntese de prostaglandinas
que causam dor e inflamação. Assim, têm-se AINHs não seletivos
(diclofenaco, nimesulida, meloxicam), que agem sobre as 2 formas,
tendo maior risco de sangramento/perfuração gastrintestinal, e os
seletivos de COX-2 (celecoxibe), usados preferencialmente quando
há fatores de risco para eventos adversos no trato gastrintestinal
alto, que incluem: pessoas com 65 anos ou mais; outras
comorbidades; glicocorticoides orais; história de úlcera péptica;
história de sangramento gastrintestinal; anticoagulantes. Os
principais efeitos colaterais a serem monitorizados são hipertensão
arterial, piora da função renal, retenção hídrica, hipercalemia,
sangramento ou intolerância gastrintestinal.
b) Duloxetina

A duloxetina é um antidepressivo que age na modulação da dor,


inibindo de forma seletiva a recaptação de serotonina e
norepinefrina. São possíveis efeitos colaterais como náuseas, fadiga,
constipação, sonolência e boca seca. Recomenda-se o uso de doses
entre 30 a 60 mg/d.
8.2.4.3 Opções terapêuticas secundárias

Existem dezenas de terapias com evidência baixa em OA publicadas


em revistas de diferentes fatores de impacto. A maioria das diretrizes
de organizações grandes e de relevância não indica o uso dessas
substâncias. Citaremos aqui algumas delas, sem grande discussão
acerca da evidência disponível, pois foge ao escopo desta obra.
A diacereína é indicada principalmente para OA de quadris. Atua
inibindo a IL-1 (interleucina-1) e aumentando relativamente a
produção de colágeno e proteoglicanos. Poucos estudos demonstram
eficácia. Pode ser usada na dose de 50 a 100 mg/d. O principal efeito
colateral é diarreia.
O uso de antimaláricos (hidroxicloroquina e difosfato de cloroquina)
é possível em casos de OA erosiva de mãos. As doses usuais são de
400 mg/d para a hidroxicloroquina e 250 mg/d para o difosfato de
cloroquina. Os pacientes devem ser orientados sobre o risco de
maculopatia e devem ser rastreados com tomografia de coerência
óptica e campo visual a cada 6 meses a partir do quinto ano de uso.
Pode ocorrer coloração acinzentada da pele em razão de sua
deposição. A hidroxicloroquina tem menos efeitos de depósito que o
difosfato de cloroquina.
Os estudos que avaliaram o benefício do uso de glicosamina e
condroitina são conflitantes. Pode ser recomendada para OA de
joelhos especialmente, associada ou não à condroitina. A dose usual
de glicosamina é de 1.500 mg/d, e a de condroitina, 1.200 mg/d.
O extrato insaponificável de abacate e soja, o extrato de Boswellia
serrata, o extrato de cúrcuma e as diversas formas de colágeno
disponíveis do mercado são considerados terapias nutricionais para
OA e podem também ser utilizados, com chance pequena de efeitos
colaterais (Liu et al., 2018). Por fim, a capsaicina, embora tenha
perdido força na última recomendação da OARSI (Bannuru et al.,
2019), foi usada durante muitos anos por via tópica como
sintomática. Parece agir em nociceptores e na depleção de
substância P, é segura e apresenta como único efeito colateral
possível a ardência no sítio da aplicação.
8.2.4.4 Tratamento cirúrgico

Pacientes com prejuízo da vida diária e falha do tratamento


conservador devem ser encaminhados ao ortopedista para avaliação.
Podem ser realizados osteotomias, debridamentos artroscópicos,
artroplastias e artrodeses. A artroplastia total é muito efetiva para
paciente com dor intensa e OA avançada de quadril ou joelho
(Figuras 8.7 e 8.8), mas não é tão indicada para outras articulações.
Figura 8.7 - Artroplastia de quadril
Fonte: ChooChin.

Figura 8.8 - Artroplastia de joelho


8.2.5 Osteoartrite secundária
Trata-se da condição na qual ocorre degeneração da cartilagem e do
osso subcondral devido a fatores totalmente extrínsecos à
cartilagem. Ou seja, a cartilagem é normal e seria saudável,
independentemente dos fatores estressores aos quais foi exposta, se
não houvesse sido vítima de processo externo que a destruiu. As
principais características da OA secundária são maior velocidade de
instalação, menor idade de início, maior destruição articular e,
especialmente, acometimento de articulações atípicas.
A prevalência da OA secundária é difícil de ser estimada e
acompanhará a doença responsável. Seguramente é muito menos
frequente do que a OA primária, mas, como apresenta causa
possivelmente reversível de doença articular, deve sempre ser
recordada.
As manifestações clínicas são idênticas às da OA primária, com
exceção das características já descritas. Algumas das principais
doenças relacionadas ao eventual desenvolvimento de OA secundária
são descritas a seguir.
1. Fatores localizados:
a) Trauma articular;
b) Deformidades congênitas;
c) Osteonecrose;
d) Artropatias autoimunes;
e) Artrite microcristalina;
f) Artrite séptica;
g) Neuropatia;
h) Hemofilia;
i) Doença de Paget;
j) Osteocondrite.

2. Fatores sistêmicos:
a) Hemocromatose;
b) Ocronose;
c) Hiperparatireoidismo;
d) Doença de Wilson;
e) Gota;
f) Condrocalcinose;
g) Acromegalia;
h) Hemoglobinopatias;
i) Síndromes de hipermobilidade.

O tratamento da OA secundária passa, primeiramente, pela remoção,


se possível, do fator causal. No mais, as linhas de terapia seguem
aproximadamente os mesmos princípios da OA primária, com
grande foco em terapia não farmacológica e controle sintomático.
8.3 OSTEOPOROSE
Uma vez que o esqueleto é essencial para a vida terrestre, o ser
humano adquiriu, durante o processo evolutivo, ossos leves que
proporcionam rapidez, mobilidade e força suficientes para evitar
fraturas, exceto nos traumas mais graves. Com o aumento da idade,
ocorrem declínio da função neuromuscular e fraqueza óssea em
ambos os sexos (principalmente nas mulheres, após a menopausa),
elevando o risco de fraturas.
O consenso do National Institutes of Health define a osteoporose
(OP) como uma doença associada à fragilidade do esqueleto ósseo,
com deterioração microarquitetural e risco aumentado de fraturas.
8.3.1 Fisiopatologia
O crescimento e a manutenção da integridade e da função óssea
dependem da remodelação, processo constante que leva cerca de 4 a
6 meses para completar-se (talvez mais, no osso cortical). Duas
células são as principais envolvidas nesse processo: os osteoclastos,
responsáveis pela reabsorção óssea, e os osteoblastos, responsáveis
pela formação óssea.
Quando há desequilíbrio entre a formação e a reabsorção óssea (por
hiperatividade dos osteoclastos ou por disfunção dos osteoblastos),
ocorre perda de massa mineral óssea, levando à OP.
A densidade óssea diminuída é possível tanto por reabsorção óssea
aumentada (principal achado na OP pós-menopausa) quanto por
alterações no pico de formação óssea (causando maior risco de OP na
vida adulta).
O pico de formação é atingido no início da vida adulta (por volta dos
20 aos 30 anos) e está relacionado, principalmente, a fatores
genéticos (responsáveis por 60 a 80% da variação do pico entre
diferentes indivíduos), mas também a fatores ambientais, como a
ingestão de cálcio na adolescência e o nível de impacto sobre o
esqueleto (atividade física). A reabsorção óssea aumentada,
entretanto, leva à OP, com perda de osso trabecular e porosidade do
osso cortical (Figura 8.9).
Figura 8.9 - Osso normal e com osteoporose

Fonte: Lightspring.

A OP pode ser classificada, de acordo com a etiologia, em causas


primárias ou secundárias. Entende-se OP primária como aquela que
decorre de alterações intrínsecas ao osso. Fatores genéticos
contribuem para definir como o osso reagirá aos fatores ambientais
para moldar a sua massa e arquitetura finais (Manolagas, 2018). Esta
conclusão é razoavelmente intuitiva se considerado que um dos
principais fatores a ser considerado na anamnese de um indivíduo
em avaliação para OP é justamente a sua etnia (com risco maior
entre caucasianos e asiáticos) e a sua história familiar de fraturas de
fragilidade.
Indivíduos com fragilidade óssea (determinada pela sua genética e
epigenética) geralmente a revelam em períodos naturais de desafio à
massa óssea, como na senescência e na pós-menopausa – períodos
normais de perda óssea na história de um ser humano.
Evidentemente, o pico de massa óssea de qualquer indivíduo
também é determinado pelos fatores ambientais aos quais foi
exposto, como nível de atividade física e exposição ao tabagismo,
por exemplo. De tal modo que a soma dos fatores genéticos (e
epigenéticos) à exposição ambiental determinará a qualidade óssea
final de um indivíduo e será diretamente responsável por torná-lo
apto (ou não) a superar as fases de desafio ósseo naturais da vida.
Na OP secundária, entende-se que a qualidade óssea do indivíduo é
normal. A doença ou condição é, primariamente, extrínseca ao osso.
Se não houvesse um fenômeno externo ao metabolismo ósseo em si,
o indivíduo não teria fragilidade.
Essa compreensão da fisiopatologia permite diferenciar – ao menos
na maior parte dos casos – os fatores de risco (precipitadores e
perpetuadores) para desenvolvimento da OP primária das causas de
OP secundária.
A OP secundária pode ser provocada por diversos distúrbios, como os
endocrinológicos, hematopoéticos, reumatológicos, erros inatos do
metabolismo, síndromes absortivas, doenças renais, transtornos
nutricionais, imobilização, neoplasias e uso de medicamentos
(Quadro 8.2).
Quadro 8.2 - Causas de osteoporose secundária
A forma mais comum de osteoporose
secundária é a medicamentosa, principalmente
a decorrente do uso de glicocorticoides em
doses suprafisiológicas.
A OP induzida por glicocorticoides deve ser teoricamente
considerada em todos os usuários por mais de 3 meses (Buckley et
al., 2017), independentemente da dose, pois ocorre alta frequência de
fraturas vertebrais, já a partir dos primeiros 3 a 6 meses de uso. O
efeito dos glicocorticoides ocorre tanto pelo aumento da reabsorção
quanto pela queda na formação óssea.
Os fatores de risco, conforme exposto anteriormente, são fatores
precipitadores e perpetuadores de OP primária e perpetuadores de
OP secundária. Os principais fatores de risco são: idade avançada;
baixo índice de massa corpórea; baixa exposição estrogênica; baixa
ingesta de cálcio e vitamina D; sedentarismo; tabagismo e
alcoolismo pesado (West, 2015).
Apesar de não serem exatamente precipitantes, pois são intrínsecos
à genética do indivíduo, muitos autores consideram também etnia
caucasiana ou asiática como fator de risco.
Por fim, pelo forte caráter genético, história familiar de fratura de
fragilidade também costuma ser entendida como um sinal de
alarme.
8.3.2 Manifestações clínicas
A OP não tem manifestações clínicas até ocorrer fratura,
determinando dor óssea. Entretanto, muitos atribuem,
erroneamente, quadros de dores em regiões ósseas e articulares à
doença. A osteomalácia, por sua vez, pode causar dor, mesmo na
ausência de fratura.
As fraturas mais comuns são as vertebrais, assintomáticas em mais
da metade dos casos. A presença delas indica risco aumentado de
novos episódios, com 19% apresentando nova fratura vertebral no
período de 1 ano. Como consequência, os indivíduos podem ter
deformidades de coluna vertebral, como cifose torácica, com perda
de altura que pode ser significativa. Diminuição de mais de 1 cm na
altura deve levantar a suspeita de fraturas vertebrais osteoporóticas.
Entretanto, as consequências mais graves são as secundárias às
fraturas de quadril. Pacientes idosos com fratura de colo de fêmur
têm mortalidade de 25% ao ano, e essa alta porcentagem relaciona-
se à imobilidade (acamados). Portanto, todos com fratura de quadril
devem ser avaliados quanto à presença de OP.
8.3.3 Avaliação diagnóstica
Há vários métodos para a avaliação da massa óssea: densitometria
por raios X de dupla energia (DXA), tomografia computadorizada,
ressonância magnética, ultrassonografia, radiografia simples e
biópsia óssea. No entanto, somente a densitometria óssea foi
estudada e padronizada para estimar o risco de fratura.
8.3.3.1 Densitometria óssea

A densitometria óssea (DMO) fornece o valor absoluto da densidade


mineral óssea (do inglês Bone Mineral Density – BMD) da área
estudada, em g/cm2 (Figura 8.10). O laudo também fornece o
número de Desvios-Padrão (DPs) do resultado da BMD do paciente,
comparado à média da BMD entre adultos jovens do mesmo sexo,
população que representa o pico de massa óssea, chamado de escore
T. O escore T é o parâmetro utilizado para definir o diagnóstico de OP
(escore T < -2,5DP), segundo os critérios da Organização Mundial da
Saúde, em mulheres pós-menopausa e homens com mais 50 anos
(Quadro 8.3).
Para cada DP abaixo da média, eleva-se de 1,5 a 3 vezes (em média, 2
vezes) o risco de fraturas osteoporóticas, dependendo do sítio ósseo
analisado. Em geral, indivíduos com osteopenia apresentam
aumento de 4 vezes no risco de fraturas, enquanto aqueles com OP
têm risco 8 vezes maior.
Quadro 8.3 - Interpretação da densitometria, usando o escore T
Já o escore z é o número de DPs em relação à média esperada para o
mesmo sexo e a mesma faixa etária do paciente. Representa outro
parâmetro de interesse, particularmente nas OPs secundárias a
doenças crônicas ou ao uso crônico de medicamentos que afetam a
massa óssea. Em crianças, adolescentes, mulheres na pré-
menopausa e homens com menos de 50 anos, o escore z também é
preferível. Considera-se normal escore z > -2 DP. A presença de
escore z < -2,5 DP reflete perda aproximada de 30% da massa óssea.
O escore z não faz diagnóstico de osteoporose,
pois não foi estudado neste contexto. Para o
jovem com escore z reduzido, diz-se que é
portador de “baixa massa óssea para a idade”.

Os locais mais investigados pela DMO são coluna lombar, colo do


fêmur e fêmur total. O antebraço distal, o calcâneo e, eventualmente,
o corpo inteiro (verificando a composição corpórea) podem ser
investigados. Idealmente, ao menos 2 sítios diferentes devem ser
avaliados no exame de DMO. Na presença de valores de escore T
discordantes, o diagnóstico leva em conta o valor mais baixo.
Figura 8.10 - Laudo de densitometria mineral óssea da coluna lombar, demonstrando
osteoporose (escore T -2,7 em L2-L4)
A avaliação da BMD do antebraço é realizada em pacientes que
apresentam dificuldades técnicas em análises da coluna vertebral e
fêmur, como obesos, protetizados e pacientes com alterações
degenerativas importantes na coluna vertebral ou fêmur.
A DMO por DXA é o padrão-ouro no diagnóstico e o critério que
define a presença de OP por todos os consensos nacionais e
internacionais, servindo para a avaliação do risco de fraturas e o
acompanhamento da evolução da doença. Os melhores sítios para
diagnóstico e acompanhamento são o fêmur e a coluna lombar.
Em pacientes com OP diagnosticada pela DXA que iniciam
tratamento, a densitometria pode ser repetida em 1 a 2 anos para
reavaliação.
8.3.4 Diagnóstico
O diagnóstico de osteoporose definitiva é feito pela presença de
fratura de fragilidade. Neste caso, é condição suficiente para
diagnóstico, independente da BMD. Contudo, como o objetivo maior
é que o paciente não frature nem mesmo a primeira vez, existem
ferramentas que diagnosticam osteoporose presuntivamente,
através do cálculo do risco de fragilidade óssea. A principal
ferramenta é a DMO, medida pela DXA. Como dito anteriormente,
assume-se que o paciente tem osteoporose quando o escore T é < 2,5
DP. Outra possibilidade é o cálculo do risco de fratura pelo FRAX®,
uma ferramenta matemática disponível no site
https://www.she eld.ac.uk/FRAX/tool.aspx?country=55. Esta
ferramenta contempla dados clínicos e familiares, podendo ou não
ser utilizada a BMD. Em países com baixa disponibilidade de
densitometria, torna-se a principal maneira de se indicar terapia
específica.
8.3.4.1 Exames laboratoriais

Até 30% das OPs são secundárias (West, 2015), então, na avaliação
de um paciente com OP, sempre se devem descartar causas
secundárias potencialmente tratáveis. Por isso, em pacientes sem
outros sinais evidentes de doença, como síndromes reumáticas,
distúrbios gonadais, estigmas neoplásicos ou desordens absortivas,
recomenda-se a coleta dos exames sugeridos no Quadro 8.4. Os
exames laboratoriais podem revelar:
a) Anemia, que pode ser sugestiva de mieloma múltiplo ou doenças
crônicas que se associam, por vezes, à OP;
b) Hipercalcemia com hipercalciúria e hipofosfatemia sugestivas de
hiperparatireoidismo;
c) Hipocalciúria, que pode indicar deficiência de vitamina D, baixo
consumo de cálcio ou má absorção intestinal.

Exames mais específicos serão indicados conforme a história clínica


e o exame físico.
Quadro 8.4 - Investigação de osteoporose secundária oculta
Fonte: adaptado de Diretrizes brasileiras para o diagnóstico e tratamento da osteoporose
em mulheres na pós-menopausa, 2017.

Outros exames convenientes a depender do quadro clínico incluem


pesquisa de anticorpo antitransglutaminase tecidual (para pesquisa
de doença celíaca), eletroforese de proteínas (para suspeita de
doenças ósseas clonais, como o mieloma), hormônios sexuais,
especialmente testosterona em homens (para suspeita de
hipogonadismo), prolactina, cortisol urinário, entre outros. O
Quadro 8.2 aponta as causas mais importante de OP secundária e
pode ser usado como guia nos casos especiais.
Outros exames laboratoriais requisitados por alguns clínicos, mas
que, em geral, não são recomendados pelas diretrizes de diagnóstico
e manejo da OP são os marcadores de remodelamento ósseo (Lee et
al., 2012). Os mais importantes são o CTX e o P1NP, que marcam,
respectivamente, reabsorção e formação óssea. Há grande
variabilidade nos ensaios, entre os pacientes, e mesmo em um
mesmo indivíduo ao longo do dia, de tal forma que os estudos não
mostram que a dosagem rotineira destes exames faça realmente
diferença no manejo da OP. Ademais, em geral, são exames caros ou
pouco disponíveis. Se há uma utilidade, talvez se refira à checagem
da aderência aos medicamentos, ou identificação de não
respondedores (Radominski et al., 2017).
8.3.4.2 Exames de imagem

Todos os pacientes em investigação para OP devem realizar uma


radiografia de coluna (anteroposterior e perfil) torácica e lombar. O
exame se presta não só a identificar fraturas silenciosas, já que a
maioria é assintomática, mas também para estabelecer um ponto de
partida para o tratamento – uma vez que o desfecho principal é a
prevenção de novas fraturas.
8.3.4.3 Rastreamento

A maior parte das diretrizes é razoavelmente liberal no uso da


ferramenta matemática FRAX® para estimativa do risco de OP.
Assim, um indivíduo que o clínico considere de risco potencial pode
ser inserido no FRAX® e o resultado pode ser usado para auxiliar na
decisão (por exemplo, solicitar DXA em pacientes com risco
intermediário ou iniciar tratamento em pacientes com risco alto).
O rastreamento de OP pela DXA diretamente é amplamente
empregado no Brasil e referendado por muitas diretrizes, mas as
indicações precisas são um pouco menos consensuais.
A maior parte das diretrizes para rastreamento de osteoporose
recomenda o uso da DXA para rastreamento em mulheres com mais
de 65 anos, incluindo a mais recente diretriz publicada, do US Task
Force (Curry et al., 2018). Contudo, o rastreamento com DXA em
homens, em mulheres pós-menopausa jovens (menos de 65 anos) e
mulheres pré-menopausa é objeto de divergência entre as diretrizes.
De maneira geral, são ponderados os fatores de risco (ver item 8.3.1)
na decisão de se rastrear ou não OP com DXA. O Quadro 8.5 mostra
uma sugestão de rastreamento (West, 2015).
Quadro 8.5 - Rastreamento de osteoporose com DXA
Legenda: dual energy x-ray absorptiometry (DXA).
Fonte: adaptado de Official positions of the International Society for Clinical Densitometry
and Executive Summary of the 2005 Position Development Conference, 2006.

8.3.5 Tratamento
8.3.5.1 Medidas gerais e preventivas

Inclui medidas como a otimização do pico de massa óssea no adulto


jovem, por meio de atividade física e ingesta adequada de cálcio,
além da redução de perda de massa óssea por combate ao tabagismo,
etilismo e sedentarismo.
A ingesta de cálcio deve ser estimulada, principalmente a de
alimentos ricos neste mineral (como leite e derivados), reservando-
se o uso de suplementos quando a ingesta alimentar não for
suficiente, sempre considerando o risco cardiovascular associado à
reposição oral (Tankeu et al., 2017), especialmente quando não
acompanhada de suplementação de vitamina D (Abajo et al., 2017). O
sal de cálcio mais utilizado é o carbonato de cálcio, que contém 40%
de cálcio elementar (ou seja, 400 mg de cálcio elementar em cada
comprimido de 1.000 mg de carbonato de cálcio). Para ingerir 1 g de
cálcio elementar na forma de carbonato de cálcio, portanto, é
necessária a ingesta de 2,5 g desse sal. Não existem estudos até o
momento que demonstraram aumento do risco cardiovascular com
elevada ingesta de cálcio vinda exclusivamente da alimentação.
A suplementação de vitamina D profilática deve ser considerada em
idosos ou indivíduos com risco potencial de osteoporose ou quedas
frequentes (Judge et al., 2014). A suplementação profilática em
indivíduos saudáveis e jovens é muito polêmica, mas, de maneira
geral, apresenta baixo risco de complicações quando feita na dose de
600 a 800 UI/d, sendo indicada por diversos especialistas.
Os níveis adequados de vitamina D sérica são motivo de debate
também, mas, de maneira geral, assume-se que níveis abaixo de 10
ng/mL são associados a risco de osteomalácia mesmo em indivíduos
assintomáticos e devem ser corrigidos com celeridade. Uma sugestão
de reposição seria 50.000 UI por semana de colecalciferol por 6 a 12
semanas, seguidas de 1.000 a 3.000 UI/d. Para a redução da chance de
osteomalácia, é provável que manter os níveis de vitamina D acima
de 20 ng/mL seja igualmente desejável. Nesses pacientes, pode-se
usar a suplementação de 800 1.200 UI/d.
Em pacientes com osteoporose instalada,
recomenda-se ingesta de 800 a 1.200 UI/d de
vitamina D (West, 2015). Como é de difícil
obtenção na dieta, quase sempre esses
pacientes recebem suplementação.
Em pacientes com OP já instalada, também é fundamental orientar
cuidados ambientais para prevenção de quedas, que são o principal
fator precipitante de fraturas.
8.3.5.2 Tratamento não farmacológico

Consiste em 3 medidas: dieta, exercício físico e cessação do


tabagismo. A seguir, são resumidas as medidas principais:
1. Dieta e suplementação vitamínica: ingestão calórica apropriada.
Indivíduos com mais de 50 anos devem buscar uma ingesta mínima
diária de 1.200 mg de cálcio elementar e de 800 a 1.200 UI/d de
vitamina D3;
2. Exercícios físicos:
a) Frágeis: tai chi chuan, treino resistido com cautela, treino de
marcha e equilíbrio. Ao menos 3 vezes por semana (Gregg et al.,
1998);
b) Não frágeis: treino resistido e com impacto (saltos ou corrida). Ao
menos 3 vezes por semana (Howe et al., 2011).

3. Cessação do tabagismo e etilismo: tabagismo e etilismo estão


associados à perda de massa óssea.
O paciente deve sempre ser orientado a reduzir
o comportamento sedentário; caminhadas são
recomendáveis para todos em qualquer cenário,
mas não aumentam a massa óssea e não são o
exercício ideal para o paciente com
osteoporose.

8.3.5.3 Tratamento farmacológico


O tratamento medicamentoso específico deve ser indicado baseado
no risco de fraturas do paciente (se ele nunca fraturou) ou na
vigência de fratura por fragilidade prévia (neste caso, o paciente já
tem osteoporose definida independentemente de qualquer
ferramenta). Uma das medidas é a DXA isoladamente (ver item
8.3.4), mas cada vez mais se utiliza ferramentas compostas para o
cálculo do risco. A ferramenta mais utilizada é o FRAX®, que utiliza
DMO, etnia, idade, sexo, peso, altura, história prévia de fratura
(pessoal ou parente de primeiro grau), tabagismo, uso de
corticoides, etilismo e presença de artrite reumatoide ou outra causa
de OP secundária para calcular o risco de fratura em 10 anos.
Pacientes com risco ≥ 3% de fratura de fêmur ou ≥ 20% de outra
fratura osteoporótica devem ser indicados para terapia.
Pacientes com osteoporose densitométrica são
indicados para terapia. Pacientes com DMO
osteopênica podem ser analisados pelo FRAX®
e tratados se forem considerados de alto risco.

Uma vez iniciada a medicação específica, as metas terapêuticas


incluem ausência de novas fraturas de fragilidade acompanhada de
estabilização ou ganho de massa óssea. As metas podem ser
acessadas a cada 1 ou 2 anos. O não cumprimento das metas
configura falha terapêutica e o paciente deve ser avaliado quanto à
aderência e absorção da droga, ou ao mecanismo da OP, podendo se
optar por troca de classe ou potência da droga, conforme avaliação
clínica.
a) Bisfosfonatos

Agem inibindo a reabsorção mediada por osteoclastos. Reduzem o


risco de fraturas de colo de fêmur e coluna de pacientes com lesões
prévias ou com fatores de risco.
Os bisfosfonatos orais (alendronato, risedronato, ibandronato)
devem ser tomados em jejum, com 1 ou 2 copos de água. Deve-se
orientar a não ingerir alimentos ou outros medicamentos e não se
deitar por, no mínimo, 30 minutos, a fim de melhorar a absorção da
droga e reduzir o risco de esofagite. No tratamento da OP, o
alendronato é usado em dose semanal de 70 mg, e o risedronato, em
dose semanal de 35 mg. O ibandronato pode ser usado por via oral
(150 mg 1x/mês) ou intravenosa (3 mg, a cada 3 meses). Outra opção
é o olendronato, em dose única anual (5 mg, IV).
Os efeitos adversos das drogas orais estão, em especial, relacionados
ao trato gastrintestinal, como náuseas, vômito e queimação
retroesternal resultantes da inflamação da mucosa do esôfago e,
raramente, ulceração esofágica. Em pacientes com doenças
gastroesofágicas ou em uso de anti-inflamatórios, prefere-se o uso
de bisfosfonatos injetáveis. Os efeitos adversos mais comuns das
drogas intravenosas são febre e mialgia nos primeiros dias após a
administração, contornáveis com hidratação adequada e
analgésicos/antitérmicos. Eventos adversos raros relacionados ao
uso de bisfosfonatos intravenosos incluem osteonecrose da
mandíbula (Figura 8.11) e fibrilação atrial.
Figura 8.11 - Osteonecrose da mandíbula por uso de bisfosfonato

Fonte: Osteonecrose maxilar associada ao uso de bisfosfonatos, 2012.


Uma vez que haja sucesso terapêutico, recomenda-se o uso de
bisfosfonatos por cerca de 5 anos. Se, nessa ocasião, o paciente
mantiver risco alto de fraturas, será interessante continuar o
bisfosfonato por tempo maior; nos demais casos, deve-se fazer uma
pausa medicamentosa (o chamado holiday). Durante a pausa, o
paciente continua sendo acessado para novas fraturas e redução da
BMD, a cada 1 ou 2 anos. Uma vez que apresente qualquer um destes
desfechos, deve ser realocado novamente para terapia
medicamentosa, seguindo os mesmos princípios (Radominski et al.,
2017). O uso de bisfosfonatos por mais de 10 anos consecutivos não é
recomendado, pelo aumento do risco de fraturas atípicas – aquelas
que ocorrem na diáfise óssea e decorrem de excesso de matriz
mineralizada. Contudo, quando o medicamento é usado com pausas,
permitindo a renovação da matriz óssea, o risco de fratura atípica
reduz.
b) Terapia de reposição hormonal

A terapia de reposição hormonal reduz a incidência de fraturas de


coluna e fêmur (Radominski et al., 2017). A ação dos estrogênios é
bem conhecida na redução da reabsorção óssea. Há maior benefício
com essa terapia nos primeiros anos após a menopausa, perdendo
grande parte de seus efeitos 5 a 10 anos depois. Os estrogênios,
portanto, estão indicados exclusivamente na OP pós-menopausa,
preferencialmente para mulheres com sintomas vasomotores
significativos e, portanto, com indicação de TRH, nas menores doses
e pelo menor tempo possível. Para tratamento exclusivo da OP, os
bisfosfonatos são drogas mais atrativas e mais estudadas.
O conhecimento aprofundado de outras medicações para o
tratamento da OP geralmente foge do escopo do médico generalista.
Ainda assim, visando eventual desejo de aprofundamento, o Quadro
8.6 resume as principais particularidades de cada medicação.
Quadro 8.6 - Características das principais drogas usadas no tratamento
#PERGUNTA AÍ
Qual é a indicação formal do uso do raloxifeno? É
consagrado no tratamento da osteoporose?
Raloxifeno é um modulador seletivo de receptor de estrogênio. Na
pós-menopausa esta classe reduz o risco de fratura vertebral em
paciente com osteoporose e alto risco de fratura. Paciente de escolha
para raloxifeno: osteoporose com alto risco de fratura que não possa
utilizar bifosfonato ou denosumabe e que apresente alto risco de
neoplasia de mama e baixo risco de trombose venosa profunda.
O que diferencia as formas
primárias de osteoartrite e
osteoporose das formas
secundárias?
Nas formas primárias, há um distúrbio intrínseco
(genético e epigenético) ao tecido ósseo ou cartilaginoso,
que, influenciado por fatores de risco, manifesta-se como
doença. Nas formas secundárias, não há doença que não
seja por fator externo ao osso ou à cartilagem. Ambas as
formas, contudo, podem coexistir em um mesmo paciente.
Como tratar as síndromes
álgicas do aparelho
locomotor que cursam com
desregulação das vias
dolorosas, como a
fibromialgia e a lombalgia
crônica?

9.1 LOMBALGIA
9.1.1 Introdução
Definimos dor lombar como a dor que ocorre no território das
vértebras lombares, podendo se estender aos membros. Na literatura
anglo-saxã, é mais bem definida com o termo “low back pain” e se
refere ao território entre a borda inferior das costelas e a dobra
glútea. Essa definição, mais ampla, permite também englobar as
patologias dos rotadores de coxa e estabilizadores de pelve, bem
como a sacroileíte, como causa de dor lombar baixa.
Chamamos de lombalgia primária (ou mais comumente mecânica,
idiopática ou inespecífica) aquela que decorre presumivelmente da
interação entre músculos, discos, ossos, tendões, fáscias e
ligamentos de maneira inadequada e disfuncional (causando,
portanto, dor), sem, no entanto, haver substrato macroscópico e
anatômico bem definido para a sintomatologia.
Isso não quer dizer que um paciente com lombalgia mecânica não
possa ter achados degenerativos na sua anatomia, apenas entende-
se que os achados não explicam a sintomatologia. Quando uma dor
lombar é atribuída a um achado específico (como uma herniação, por
exemplo), diz-se que é uma dor lombar secundária.
Com relação à temporalidade, de maneira geral, entende-se como
aguda uma dor que dura menos de 4 a 6 semanas; subaguda até 12
semanas; e crônicas as dores com mais de 12 semanas.
A dor lombar constitui uma causa frequente de morbidade e
incapacidade, sendo sobrepujada apenas pela cefaleia na escala dos
distúrbios dolorosos que afetam o homem. Cerca de 84% dos adultos
apresentarão algum episódio de lombalgia durante a vida, mas a
grande maioria será autolimitada (Cassidy; Carroll; Côté, 1998).
O maior desafio ao clínico é diferenciar as causas benignas das
potencialmente graves e que, portanto, beneficiar-se-iam de
investigação adicional. Estudos robustos indicam que a realização de
imagens, por exemplo, em pacientes sem sinais de alarme, não ajuda
a melhorar a acurácia diagnóstica e não promove melhores
desfechos (Chou et al., 2009). Como dito anteriormente, topografar a
real causa de uma dor lombar é muito difícil mesmo com exames de
imagem avançados e, geralmente, haverá grande dissociação entre
os achados radiológicos e a verdadeira causa de dor do paciente.
A dor lombar possui forte componente laboral, sendo a maior causa
de afastamento e invalidez no nosso país (Meziat Filho; Silva, 2011).
É importante conhecer o histórico trabalhista do paciente e ter em
mente que muitas das queixas poderão ser eventualmente
amplificadas pelo cenário social e laboral.
A dor lombar possui forte componente laboral,
sendo a maior causa de afastamento e invalidez
no nosso país.

9.1.2 Triagem
O racional de se realizar uma triagem nas lombalgias se baseia no
fato de que a maioria das lombalgias (idiopáticas) não terá
tratamento específico. Em geral, a triagem permite estabelecer a
necessidade de exames subsidiários e avaliação de outro especialista
para conduta intervencionista.
As causas mais graves são cânceres (com metástase óssea), infecções
(discites e espondilites) e mielopatia – que pode decorrer das 2
entidades descritas anteriormente ou mesmo por degeneração
instável, como uma fratura espontânea com deslizamento de
vértebra. Em geral, essas entidades exigem conduta em horas a, no
máximo, dias.
As causas menos graves, mas que possivelmente precisarão de
tratamento diferente de analgesia e reabilitação são: fraturas,
radiculopatias e estenose de canal medular.
Na estenose de canal medular, a queixa é geralmente de uma
radiculopatia múltipla intermitente, frequentemente bilateral, com
um fenômeno bem conhecido que é a claudicação neurogênica. O
paciente refere dor, fraqueza e parestesia após ficar um determinado
tempo em pé ou andando. Em geral, o tempo e a distância para
iniciar a dor podem ser precisados pelo paciente. Acredita-se que
decorra de redução do forame (que ocorre com extensão da coluna) e
aumento da pressão venosa intraliquórica. É uma doença
especialmente de idosos devido à degeneração dos ligamentos e
articulações intervertebrais.
Algumas nomenclaturas de interesse nas doenças lombares são:
1. Espondilólise: se refere à fratura da pars interarticular da vértebra
(Figura 9.1). Ocorre mais comumente em atletas jovens,
especialmente nas vértebras lombares mais baixas (L4 e L5).
Contudo, colunas muito degeneradas também podem fraturar;
2. Espondilolistese: se refere ao deslizamento da vértebra, saindo do
seu eixo normal – pode ser a evolução de uma espondilólise instável.
Algumas nomenclaturas de interesse nas
doenças lombares são a espondilólise e a
espondilolistese.
Figura 9.1 - Sítios de fratura eventual na pars interarticular (espondilólise)
Fonte: adaptado de Princekareem, 2012.
Geralmente, na história e no exame físico do paciente será possível
encontrar elementos que ajudem a triá-lo. Esses elementos são
conhecidos como sinais de alarme (red flags) e devem aumentar a
suspeição do clínico sobre eventuais diferenciais potencialmente
graves ou com tratamento alternativo. É possível que pacientes com
red flags se beneficiem de imagem mais precoce. Esta obra optou por
selecionar red flags em consonância com as recomendações do
American College of Physicians (Chou et al., 2011), que se encontram
resumidas no item 9.1.4.
De maneira geral, o paciente deve ser questionado sobre febre, perda
ponderal, dor noturna ou rigidez matinal. Na parte de antecedentes,
deve-se recordar de acessar diagnóstico prévio de câncer,
osteoporose, uso de drogas injetáveis ou eventual bacteriemia
recente (por exemplo, tratamento recente para endocardite). Por
fim, a ocorrência de sintomas neurológicos também é sugestiva de
patologia específica. A refratariedade ao tratamento é considerada
um sinal de alarme, mas é importante reforçar que a dor lombar
crônica é frequentemente de difícil tratamento, por carregar consigo
quase sempre elementos de dor crônica e fragilidade de cunho social
ou trabalhista, sem necessariamente simbolizar causa grave de dor
lombar.
9.1.3 Exame físico
O exame físico é talvez a ferramenta mais importante na avaliação
do paciente com lombalgia. Evidentemente, na história, emergirão
possíveis responsáveis, mas é no exame físico que a maioria dos
clínicos tem dificuldade, ou por falta de conhecimento ou por falta
de tempo. Deve-se ter em mente, portanto, que não existe
atendimento rápido de paciente com lombalgia. O exame físico
invariavelmente será longo e, por vezes, permeado por necessidade
de manobras distratoras ou confirmatórias, pois alguns achados são
amplificados ou falseados por litígio trabalhista (por exemplo,
fraqueza ou sinais de irritação radicular).
Na inspeção estática, a primeira etapa inclui a busca por
deformidades ou assimetrias, além de sinais cutâneos de doença.
Alguns pacientes se queixarão de dor lombar, por exemplo, e terão
alterações cutâneas sugestivas de infecção por herpes-zóster.
A inspeção dinâmica presta-se especialmente para a amplitude. O
paciente deve ser orientado a fletir, estender, rodar e fletir
lateralmente a coluna. Devem ser registradas eventuais dores e
limitações. Pacientes com artrose de corpo vertebral ou disco
costumam ter mais dor à flexão ao passo que pacientes com
acometimento de facetas e apófises em extensão têm mais dor em
extensão.
É possível que sintomas de estenose de canal se exacerbem com a
extensão da coluna.
A palpação deve ser voltada especialmente aos corpos vertebrais,
pois fraturas tendem a apresentar dor intensa e pontual. Ademais, é
possível, na palpação, encontrar bandas tensas com eventual ponto
gatilho, simbolizando síndrome miofascial.
A síndrome miofascial é uma desordem muscular devida à
contratura patológica e sustentada de uma banda muscular com
restrição passiva ao alongamento. O achado no exame físico de
banda tensa com ponto específico (ponto gatilho) com amplificação
da dor, reprodução dos sintomas relatados e sintomas satélites,
como parestesia, irradiação ou choque, confirma o diagnóstico. O
tratamento é feito com reversão física do ponto gatilho (com
agulhamento ou técnicas manuais de soltura).
A síndrome miofascial é uma desordem
muscular devida à contratura patológica e
sustentada de uma banda muscular com
restrição passiva ao alongamento.
O exame neurológico é uma parte muito importante do exame do
paciente com dor lombar com suspeita de radiculopatia, mielopatia
ou estenose de canal. O exame precisa ter achados positivos em
pacientes com radiculopatia ou mielopatia, praticamente anulando a
chance dessas etiologias quando está normal. No caso da estenose de
canal, frequentemente é positivo também, mas, pela sua
intermitência, pode ser normal. O exame consiste em análise da
sensibilidade superficial, sensibilidade profunda, motricidade e pela
realização das manobras irritativas.
A maior parte das radiculopatias por compressão discal (a causa
mais comum de radiculopatia), ocorrem no nível de L5 e S1. O exame
neurológico dessas condições é quase totalmente obtido com o
exame do pé do paciente, o que o torna bastante conveniente. O
Quadro 9.1 demonstra os principais achados sensitivos e motores
associados à disfunção dessas raízes.
Quadro 9.1 - Exame neurológico resumido, focado nas radiculopatias baixas

Fonte: elaborado pelos autores.

Dentro das manobras irritativas, as mais importantes são:


1. Manobra de Lasègue: extensamente conhecida, até mesmo pelos
pacientes (o que é um problema nos litígios), envolve a elevação da
perna esticada até cerca de 70 graus. O teste é positivo quando o
paciente reclama de reprodução dos seus sintomas entre os ângulos
de 30 e 70 graus (West, 2015).
A manobra de Lasègue se presta a detectar radiculopatias baixas (L4
em diante, apenas). Pode haver sinal contralateral, neste caso com
maior especificidade para radiculopatia;
2. Distensão femoral: com o paciente em decúbito ventral, o
examinador flete o joelho maximamente. Se não houver sintomas, a
coxa é estendida passivamente com o joelho fletido. O sinal é
positivo se houver reprodução dos sintomas em território
compatível (L2 a L4).
9.1.4 Imagem
Como dito anteriormente, existem achados contaminantes nas
imagens da coluna, e, de maneira geral, as imagens devem ser
limitadas aos quadros nos quais forem mudar uma conduta já
proposta (West, 2015).
Exercício para pedido de imagem em dor
lombar: antes de solicitar, tentar topografar a
lesão e imaginar os resultados possíveis, bem
como as condutas. Se a conduta não for
objetivamente alterada pela imagem, esta não
deve ser pedida.

De maneira resumida, 5 grandes grupos de patologias mudam a


conduta na lombalgia:
1. Suspeita de câncer ósseo: sugerida por história familiar ou pessoal
de alto risco (como câncer prévio ou atual);
2. Suspeita de fratura: sugerida por uso de corticoide crônico,
trauma ou fatores de risco, como osteoporose;
3. Autoimunidade: sugerida por outras articulações acometidas ou
sintomas sistêmicos como febre, perda ponderal, sintomas
intestinais, oculares ou cutâneos;
4. Suspeita de infecção: sugerida por febre, perda ponderal, uso de
drogas, bacteriemia recente e uso de dispositivos intravasculares ou
cardíacos;
5. Possibilidade de cirurgia: refere-se às condições que podem se
beneficiar de conduta cirúrgica, como déficit neurológico importante
(déficit motor relevante ou déficit potencialmente catastrófico,
como síndrome da cauda equina), refratário ou progressivo. Nesse
caso, a imagem se presta mais a planejar a intervenção cirúrgica do
que efetivamente diagnosticar, pois o diagnóstico é clínico.
Baseado nesses parâmetros, em consonância com as indicações de
imagem em dor lombar propostas pelo American College of
Physicians (Chou et al., 2011), resumimos a seguir os principais
sinais de alarme, que devem ser usados como norte para guiar a
conduta na solicitação de imagens.
Sinais de alarme para lombalgia secundária:
a) História de câncer;
b) Mais de 50 anos;
c) Perda ponderal;
d) Sintomas neurológicos;
e) Dor noturna;
f) Refratariedade;
g) Febre;
h) Uso de drogas injetáveis;
i) Bacteriemia recente;
j) Risco de osteoporose.

De maneira geral, quando há indicação de exame, quase sempre será


uma ressonância magnética. A radiografia simples pode ser usada
em casos suspeitos de fratura vertebral ou câncer, mas traz poucas
informações acerca da condição dos nervos e raízes.
A ressonância é capaz de avaliar a condição dos discos, vértebras,
ligamentos e músculos, fornecendo informações sobre inflamação,
degeneração e conflitos radiculares. Em pacientes que não possam
realizar ressonância, a tomografia computadorizada pode trazer
informações eventuais (Patel et al., 2016).
9.1.5 Tratamento
Existem muitas terapias possíveis para lombalgia, todas com
estudos de baixa qualidade mostrando benefício (Chou et al., 2017). É
uma situação clínica em que o mais importante é saber o que não se
deve fazer.
Há razoável evidência de que o afastamento das atividades laborais e
físicas leves a moderadas é maléfico, especialmente nos quadros
subagudos e crônicos, nos quais há componente de cronificação e
perda da regulação álgica. É conhecida a falta de benefício do
repouso nessas condições e há estudos mostrando que ele na verdade
piora a condição psicológica do paciente e pode retardar a melhora,
ou mesmo agravar o quadro crônico (Liddle; Gracey; Baxter, 2007).
De maneira geral, os pacientes não devem ser afastados do trabalho
por lombalgia.
Coletes são extremamente controversos e vários estudos já falharam
em mostrar diferença em relação à terapia padrão, composta por
analgesia e exercício (Duijvenbode et al., 2008). Há uma preocupação
com atrofia muscular associada ao colete e, se ele for usado, deve ser
pelo menor período possível em pacientes com dor aguda e chance
de instabilidade.
O tratamento da lombalgia primária crônica se assenta
principalmente em medidas não farmacológicas.
O paciente deve ser devidamente orientado sobre a importância de se
manter ativo e sobre o benefício modesto das medicações, para que
não haja frustração e para que se apodere de seu próprio tratamento.
O tratamento da lombalgia primária crônica se
assenta principalmente em medidas não
farmacológicas. O paciente deve ser
devidamente orientado sobre a importância de
se manter ativo e sobre o benefício modesto
das medicações.

O exercício físico (eventualmente com início na fisioterapia e


progressão para exercício físico) é a medida não farmacológica com
maior evidência em lombalgia, devendo ser recomendado a todos os
pacientes (Hayden et al., 2005). Deve ser paulatino e, se possível,
combinado (aeróbico e resistido). Há diversos esquemas de
treinamento específicos para lombalgia. Em geral, mesclam
exercícios para o core com equilíbrio e estabilização. Pacientes com
estenose de canal se beneficiam muito de bicicleta, pois tendem a
ficar fletidos e com isso não sentem tanta dor.
O paciente que se apresenta agudamente com dor deve ter tratado,
principalmente, o componente nociceptivo. Portanto, analgésicos,
anti-inflamatórios não esteroidais e, se necessário, opioides, podem
ser usados. Quando o quadro é subagudo a crônico, o problema
geralmente envolve desregulação nas vias dolorosas, sendo o
estímulo nociceptivo, em si, geralmente já findado. Desse modo, há
menos benefício no uso de analgésicos e a terapia se volta mais à dor
crônica, com antidepressivos e anticonvulsivantes.
9.2 FIBROMIALGIA
A fibromialgia é uma doença não inflamatória e não degenerativa,
que se caracteriza por fadiga, dores difusas crônicas e distúrbios do
sono. Acomete mais mulheres e relaciona-se a distúrbios do humor.
Dor crônica e fadiga são sintomas muito prevalentes na população
geral, especialmente em mulheres e pessoas de baixo nível
socioeconômico. Seu diagnóstico é exclusivamente clínico, e os
exames subsidiários devem ser solicitados apenas para estabelecer o
diagnóstico diferencial. É importante salientar que a orientação do
paciente é crucial para o controle adequado da doença. A estratégia
para o tratamento ideal depende de uma abordagem de tratamento
multidisciplinar.
A fibromialgia é uma síndrome muito comum, responsável por
aproximadamente 15% das consultas em ambulatórios de
Reumatologia, perdendo apenas para a osteoartrite como causa de
dor musculoesquelética crônica.
Sua prevalência é de 2% na população geral: em mulheres, é de 3 a
5% e, em homens, de 0,5 até 1,6%. Aproximadamente 75% dos
pacientes são mulheres, a uma proporção média de 8 mulheres para
1 homem. Pode ocorrer também em crianças e idosos, mas a maioria
dos indivíduos está entre 30 e 50 anos.
A fibromialgia pode associar-se a doenças inflamatórias do
colágeno, como lúpus e artrite reumatoide. Seus sintomas podem
sobrepor-se aos da síndrome da fadiga crônica, da síndrome do
cólon irritável e de outras síndromes dolorosas crônicas. Distúrbios
psiquiátricos são frequentemente encontrados, principalmente
depressão, ansiedade e distúrbios de personalidade.
Sua prevalência é mais comum em pacientes com algumas
patologias, como vírus HIV (17%), diabetes (17%), pacientes em
hemodiálise (7,4%) e com psoríase (8,3%).
9.2.1 Vias da dor
A etiopatogenia da fibromialgia permanece desconhecida. Observou-
se aumento no risco para a síndrome de até 8 vezes em parentes de
primeiro grau de pacientes com fibromialgia. Foram descritos
polimorfismos genéticos envolvidos no metabolismo das
monoaminas, que estão envolvidas no processo sensorial e na
resposta ao estresse.
São descritas várias alterações na percepção da dor: estímulos
elétricos, térmicos e de pressão têm limiar mais baixo nesses
indivíduos. Isso acontece por meio de mecanismos de amplificação
de estímulos sensitivos periféricos no sistema nervoso central
desses pacientes, passando a provocar dor (Figura 9.2).
Tal amplificação pode ser provocada pelo desbalanço entre
substâncias pró-nociceptivas (que aumentam a percepção da dor) e
antinociceptivas (que diminuem a percepção da dor). Na
fibromialgia e em outros distúrbios de dor crônica, o nível da
substância P, uma substância pró-nociceptiva, está aumentado nos
grânulos secretórios dos nervos sensoriais. Enquanto isso, as vias
antinociceptoras serotonina/noradrenalina (monoaminas) podem
estar comprometidas nesses pacientes, o que é corroborado pelo fato
de que inibidores da recaptação de serotonina/noradrenalina são
efetivos no tratamento.
Figura 9.2 - Fatores que influenciam a percepção da dor

Fonte: elaborado pelos autores.


9.2.2 Manifestações clínicas
O sintoma cardinal da fibromialgia é a dor difusa e crônica. Ela
começa, com frequência, localizada, torna-se generalizada e
acomete os 4 quadrantes do corpo. A dor é relatada pelo paciente
como em queimação ou peso, exaustiva e insuportável. Comumente,
vem da musculatura axial (em particular, no pescoço e nos ombros)
e espalha-se pelo corpo, sobretudo pelos músculos.
Artralgias são comuns, com sensação subjetiva de inchaço, não só
articular, como também de partes moles, que não se confirma ao
exame físico. Muitos pacientes relatam fadiga “profunda”
(principalmente ao levantar-se pela manhã), dificuldade para
dormir e sono superficial. Fenômeno de Raynaud, frio excessivo,
vertigens, dificuldade de concentração, olhos e boca secos são
comuns. Parestesias, especialmente em extremidades, estão
presentes em mais de 75% dos pacientes, mas não seguem território
de nervos específicos, e o exame neurológico é normal. É comum o
relato de que as coisas caem das mãos e o simples toque dos
familiares é extremamente doloroso.
Dores crônicas regionais, como na articulação temporomandibular,
dor pélvica crônica e cefaleia são comumente associadas, estando
presentes em cerca de 70% dos pacientes.
Os distúrbios do sono são comuns. O paciente queixa-se de sono não
reparador e sensação de acordar cansado, como se não tivesse
dormido. Distúrbios do sono podem ser demonstrados na
polissonografia, particularmente intrusões de ondas alfa no sono
não REM, com ondas delta lentas.
Problemas psicológicos, dificuldade de lidar com o estresse do dia a
dia, sintomas de ansiedade e depressão são comuns. Geralmente, os
pacientes mostram-se frustrados com suas queixas dolorosas e com
a incapacidade médica de ajudá-los.
Ao exame físico, o paciente apresenta-se em bom estado geral, sem
evidência de doença sistêmica ou anormalidades articulares. Se não
houver outra doença associada, o único achado ao exame físico será
dor muscular difusa.
Como os famosos tender points, ou pontos dolorosos, ainda são um
guia para muitos clínicos, serão resumidos a seguir. A pesquisa
desses pontos deve ser feita por meio da palpação de locais
estabelecidos utilizando o polegar e o dedo indicador, e aplicando
uma força equivalente a 4 kg/força (até que o leito ungueal fique
esbranquiçado).
Figura 9.3 - Localização dos 18 pontos dolorosos
Fonte: Sav vas e Jmarchn, 2012.

Até 2010, grande importância era dada à palpação dos tender points
no paciente com fibromialgia. Contudo, o que se observa no paciente
é uma dor difusa, reprodutível em muitos pontos, por vezes fora do
mapa estabelecido pelos tender points. Assim, mesmo nos critérios
classificatórios (ver adiante), os pontos deixaram de ser
contabilizados ao exame. O importante no exame físico do paciente
com fibromialgia é que ele seja palpado em diversos ventres
musculares, em todos os quadrantes do corpo, nos territórios axiais
e periféricos. O achado é típico e chama a atenção, com grande
sensibilização álgica, realmente difusa e desproporcional ao
estímulo realizado.
Até 2010, grande importância era dada à
palpação dos tender points no paciente com
fibromialgia. Contudo, o que se observa é uma
dor difusa, reprodutível em muitos pontos, por
vezes fora do mapa estabelecido pelos tender
points.

Mesmo nos critérios classificatórios, os pontos


deixaram de ser contabilizados. O importante é
que o paciente seja palpado em diversos
ventres musculares, em todos os quadrantes do
corpo, nos territórios axiais e periféricos.

9.2.3 Diagnóstico
O diagnóstico de fibromialgia é feito em pacientes com história
crônica de dor difusa, fadiga, sintomas neurocognitivos e sono não
reparador. Frequentemente, pacientes com fibromialgia também
apresentarão outros distúrbios funcionais, como síndrome do
intestino irritável, dispepsia funcional, cistite intersticial ou cefaleia.
Na ausência de comorbidades associadas, toda a investigação
laboratorial e radiológica é normal. Teoricamente, nenhum exame é
necessário para o diagnóstico de fibromialgia. Nesse sentido, a
American Pain Society inclusive propôs novos critérios diagnósticos
para a doença (Arnold et al., 2019), nos quais a presença de outras
entidades que poderiam causar dor não exclui o diagnóstico de
fibromialgia. Dentro de uma abordagem holística, alguns exames
poderiam ser solicitados para avaliar comorbidades que dificultem o
tratamento da fibromialgia, como infecções virais e distúrbios
endocrinológicos. Nesse sentido, esta obra sugere os seguintes
exames ao longo do seguimento: hemograma, íons séricos, função
renal, velocidade de hemossedimentação, proteína C reativa,
vitamina D, sorologia para vírus da hepatite C e HIV e hormônio
tireoestimulante. Entendemos que os últimos anos de estudo
caminham no sentido de considerar a fibromialgia uma entidade de
diagnóstico totalmente clínico (Arnold et al., 2019; Macfarlane et al.,
2017).
Tendo isso em mente, uma possível polêmica acadêmica emerge
quando analisados os últimos critérios para fibromialgia, propostos
pelo American College of Rheumatology em 2010 (Wolfe et al., 2010).
Nessa ocasião, era condição obrigatória para a entrada no critério a
ausência de outras patologias que explicassem a dor. Talvez
situações como essa explicitem bem a problemática do uso dos
critérios diagnósticos na prática clínica.
9.2.4 Tratamento
O tratamento baseia-se em medidas não farmacológicas e
farmacológicas. Os objetivos são alívio da dor, melhora da qualidade
do sono, manutenção ou restabelecimento do equilíbrio emocional e
melhora do condicionamento físico e da fadiga. Objetiva-se o
controle dos sintomas, não a cura. Embora a fibromialgia não curse
com morte, deficiências ou deformidades, os estudos mostram
grande impacto na qualidade de vida dos pacientes.
O tratamento não farmacológico é a parte mais importante do
manejo da fibromialgia. Sabe-se que a resposta aos medicamentos é
pobre e que as medidas comportamentais participam da própria
fisiopatologia da doença, sendo elementares. Nas últimas diretrizes
do European League Against Rheumatism (Macfarlane et al., 2017),
recomenda-se uma primeira consulta apenas para explicação sobre
a doença, medida que, em diversos pacientes, faz grande diferença,
pois, comumente, são indivíduos que passaram em dezenas de
outros profissionais que nunca lhe forneceram uma resposta.
A afirmação de que a doença não é grave e que o tratamento é
prolongado, individualizado e com resposta que depende muito mais
da ação do paciente do que do médico são essenciais para se criar um
vínculo, tão necessário a essas pessoas, e se alinhar as expectativas
sobre o futuro.
No ato do diagnóstico e da orientação, já se pode recomendar a
introdução de exercícios físicos, a terapia atualmente com o maior
nível de evidência e o maior grau de recomendação. Os exercícios
podem ser resistidos ou aeróbios, idealmente ambos, com
progressão lenta e gradual. Inicialmente, o paciente deve se
exercitar, idealmente, por, pelo menos, 90 minutos por semana. É
comum que os pacientes observem melhora progressiva à medida
que, paulatinamente, aumentam a carga e o volume dos treinos.
Na ausência de resposta, outras medidas não comportamentais
como meditação (especialmente as modalidades autocontemplativas
como o modelo mindfulness) ou psicoterapia devem ser sugeridas.
Nesse momento, o paciente pode se beneficiar da terapia
farmacológica, sempre orientado sobre a baixa expectativa de
melhora, na ausência das alterações comportamentais.
As principais drogas utilizadas para o tratamento da fibromialgia são
a duloxetina, a pregabalina, a amitriptilina, a ciclobenzaprina e o
tramadol (Macfarlane et al., 2017). O Quadro 9.2 resume as principais
características para recomendar um ou outro medicamento.
Quadro 9.2 - Tratamento farmacológico para fibromialgia
Como tratar as síndromes
álgicas do aparelho
locomotor que cursam com
desregulação das vias
dolorosas, como a
fibromialgia e a lombalgia
crônica?
As medidas farmacológicas funcionam muito mal para os
pacientes com dor crônica. Deve-se lançar mão de medidas
comportamentais, sendo o exercício físico regular a
medida com maior grau de recomendação e nível de
evidência.
Quais são as principais
formas de artrite idiopática
juvenil?

10.1 INTRODUÇÃO
De maneira geral, muitas entidades reumáticas acometem
indivíduos em faixa pediátrica, especialmente as conectivopatias e
as vasculites. Algumas delas são especificamente relacionadas às
crianças, com raras manifestações nos pacientes adultos. Tal
fenômeno decorre do amadurecimento do sistema imune
adaptativo, momento no qual eventuais iniciadores de doença
autoimune podem fazer emergir uma propensão a doença latente,
geralmente relacionada a mecanismos multifatoriais.
No que se refere às síndromes autoinflamatórias, com herança
gênica mais bem definida e, portanto, menor peso dos fatores
ambientais para o desenvolvimento de doença, a presença infantil se
faz ainda mais marcante, com a maior parte das doenças
acometendo indivíduos antes da adolescência.
Pelas características desta obra, voltada ao generalista, não nos
deteremos às mais diversas manifestações pediátricas das doenças
reumáticas, tampouco estudaremos as doenças autoinflamatórias.
Contudo, faz-se necessário o olhar para a principal doença
reumática da faixa pediátrica, importante não apenas como alvo
diagnóstico, mas, também, como diagnóstico diferencial das artrites
na infância. Trata-se da artrite idiopática juvenil.
10.2 ARTRITE IDIOPÁTICA JUVENIL
10.2.1 Introdução
A Artrite Idiopática Juvenil (AIJ) é a forma mais comum de artrite na
infância e uma das doenças crônicas mais frequentes dessa fase, com
causa desconhecida. Na verdade, trata-se de um grupo de desordens
que tem a artrite inflamatória crônica como manifestação.
O diagnóstico requer a combinação de dados da história e do exame
físico. Exames laboratoriais podem ser úteis. Para ser incluída como
AIJ, deve haver artrite persistente na mesma articulação, com
duração mínima de 6 semanas, com início antes dos 16 anos, além de
exclusão de outras causas.
A AIJ acomete crianças e adolescentes em todos os países do mundo.
As taxas de prevalência variam de 20 a 86/100.000 crianças por ano,
e as taxas de incidência variam entre 0,83 e 22,6/100.000 crianças.
Não existem estudos epidemiológicos brasileiros sobre a AIJ. Em
50% dos casos, a doença mantém atividade também na fase adulta
(Figura 10.1).
10.2.2 Espectro clínico
A AIJ é um diagnóstico de exclusão e inclui uma lista de subtipos que
têm em comum os seguintes critérios gerais: idade de início inferior
a 16 anos; artrite persistente na mesma articulação com duração de,
no mínimo, 6 semanas; e exclusão de outros tipos de artrite em
crianças. Já como critério de artrite para AIJ é necessário que haja
derrame articular ou 2 dos seguintes critérios: limitação articular;
dor articular; e dor à movimentação.
Figura 10.1 - Artrite nas mãos em indivíduo com artrite idiopática juvenil
A International League of Associations for Rheumatology (ILAR),
atualmente, classifica a AIJ em 5 subtipos (Petty et al., 2004):
a) Sistêmica;
b) Oligoartrite – persistente e estendida;
c) Poliartrite – com Fator Reumatoide (FR) positivo ou negativo;
d) Artrite relacionada à entesite;
e) Artrite psoriásica juvenil.

Crianças que possuem critérios para AIJ, mas não conseguem ser
identificadas em um subgrupo são ditas portadoras de artrite
indiferenciada.
10.2.2.1 Forma sistêmica ou doença de Still

Aproximadamente 10% das crianças com AIJ têm a forma sistêmica.


A doença pode desenvolver-se em qualquer idade abaixo dos 16 anos
(a partir de então, passa a ser doença de Still do adulto), sendo mais
comum entre 1 e 6 anos. Meninos e meninas são igualmente
acometidos.
Caracteriza-se por febre por mais de 2 semanas (diária, com
episódios de picos febris elevados e temperaturas normais ou
subnormais no restante do dia) e pelo menos um dos seguintes
achados (extra-articulares): rash maculopapular eritematoso
evanescente; frequentemente rosa-salmão, de caráter não fixo e não
pruriginoso, que se manifesta no tronco superior e na região
proximal dos membros, aparecendo ou piorando quando a febre está
presente (Figura 10.2); hepatomegalia; esplenomegalia;
linfadenopatia e serosite.
Figura 10.2 - Rash cutâneo típico da artrite idiopática juvenil sistêmica
Fonte: Pediatric Rheumatology in Clinical Practice, 2007 (braço); ABC of Rheumatology,
2009 (tronco).

As articulações mais acometidas são punhos, joelhos e tornozelos,


mas coluna cervical, quadris, articulações temporomandibulares e
mãos também são envolvidos. Pacientes podem ter poucas
articulações envolvidas, com evolução menos erosiva, ou podem ter
doença francamente destrutiva, culminando com deformidades e
perda funcional. É o subtipo de maior morbimortalidade, até mesmo
porque possui curso marcadamente extra-articular (Behrens et al.,
2008).
Crianças com AIJ sistêmica frequentemente têm atraso de
crescimento, osteopenia, anemia, leucocitose, trombocitose e
elevação dos reagentes de fase aguda e da ferritina. FR ou fator
antinúcleo (FAN) positivo e uveíte são muito raros e, quando
presentes, sugerem outro diagnóstico.
A maior parte dos pacientes com AIJ sistêmica possui pleocitoses no
hemograma. Citopenias sugerem ou diagnóstico alternativo, ou
degeneração para síndrome de ativação macrofágica (ver item
10.2.4).
A maior parte dos pacientes com AIJ sistêmica
possui pleocitoses no hemograma. Citopenias
sugerem ou diagnóstico alternativo, ou
degeneração para síndrome de ativação
macrofágica.

O diagnóstico diferencial deve ser feito com as condições clínicas


descritas no Quadro 10.1.
Quadro 10.1 - Diagnóstico diferencial
Legenda: síndrome neurológica, cutânea e articular infantil crônica/doença inflamatória
multissistêmica de início neonatal – síndromes autoinflamatórias (CINCA/NOMID).

10.2.2.2 Forma oligoarticular

É a mais frequente das AIJs (aproximadamente 50% dos casos),


sendo mais comum em menores de 5 anos (pico de 1 a 3 anos),
preferencialmente meninas (4 vezes mais que meninos).
Figura 10.3 - Artrite idiopática juvenil na forma oligoarticular
Fonte: Pediatric Rheumatology in Clinical Practice, 2007; ABC of Rheumatology, 2009.

As articulações mais envolvidas são joelhos, tornozelos, pequenas


articulações das mãos e dos cotovelos. Há acometimento de 4 ou
menos articulações, durante os primeiros 6 meses de apresentação
da doença. Depois disso, os pacientes são subdivididos em 2 grupos
distintos: a forma oligoarticular persistente, que permanece
oligoarticular ao longo da evolução da doença, e a oligoarticular
estendida, que passa a acometer mais de 4 articulações depois dos 6
meses de evolução. Após alguns anos de doença, cerca de 65% dos
casos de início oligoarticular mantêm-se persistentes e 35%
evoluem para a forma estendida (Nordal et al., 2011). A forma
oligoarticular persistente é a mais benigna e com melhor
prognóstico, havendo remissão após cerca de 8 anos em quase 70%
dos casos (Nordal et al. 2011).
As formas oligoarticulares frequentemente cursam com FAN
positivo (cerca de 80%, Macaubas et al., 2009), sendo que a forma
oligoarticular estendida tem chance um pouco maior de positividade.
Como a positividade do FAN confere maior risco de uveíte, as
crianças com formas estendidas possuem chance igualmente um
pouco mais alta desta complicação (Macaubas et al., 2009). Cerca de
30% das crianças com as formas oligoarticulares terão uveíte em
algum momento da doença (Macaubas et al. 2009), sendo necessária
a busca ativa.
As formas estendidas também apresentam pior prognóstico
articular, cronificando-se, e tornando-se erosivas em 60% dos
casos. A chance de remissão do quadro articular após 8 anos é de
aproximadamente 37% (Nordal et al., 2011). Fatores de risco iniciais
da oligoartrite para evolução para fase estendida são artrite de mãos,
punhos ou tornozelos, artrite simétrica, artrite em mais de 1
articulação, elevação da velocidade de hemossedimentação ou da
proteína C reativa e presença de FAN.
10.2.2.3 Formas poliarticulares (fator reumatoide positivo ou
negativo)

Para caracterizar a forma poliarticular, a criança deve ter artrite em


5 ou mais articulações nos primeiros 6 meses da doença (Figura
10.4). Cerca de 40% das crianças com AIJ têm envolvimento
poliarticular: 10% com FR positivo e 30% com FR negativo
(Macaubas et al., 2009).
Figura 10.4 - Artrite idiopática juvenil – forma poliarticular
Fonte: Rheumatology in Practice, 2010.

Pacientes com FR positivo são comumente meninas (6:1 em relação a


meninos), com idade pouco mais elevada (em torno de 8 anos, até os
16), com HLA-DR4 positivo, artrite simétrica de pequenas
articulações das mãos (metacarpofalangianas; interfalangianas
proximais e distais) e pés (metatarsofalangianas). Esse subgrupo
tem elevado risco de desenvolver erosões, nódulos e perda funcional.
É a que mais se assemelha à artrite reumatoide do adulto. As
manifestações clínicas extra-articulares são variáveis e incluem
fadiga, anorexia, desnutrição, anemia, retardo de crescimento
ponderoestatural, retardo na maturação sexual e osteopenia.
10.2.2.4 Artrite relacionada à entesite

O envolvimento do esqueleto axial na AIJ pode levar muito tempo


para ser diagnosticado. Assim, um subgrupo que desenvolve
espondiloartrite antes dos 16 anos, na maioria das vezes, iniciará
quadro de artrite associada à entesite. Esse grupo corresponde a até
10% dos casos de AIJ.
O paciente será classificado nesse grupo se apresentar artrite e
entesite, ou artrite ou entesite isoladamente com 2 dos seguintes
achados (Petty et al., 2004; Colbert, 2010):
a) Dor nas sacroilíacas e/ou dor lombossacral inflamatória;
b) HLA-B27 positivo;
c) Acometimento em meninos com 6 anos ou mais;
d) Uveíte anterior aguda sintomática;
e) Presença de parente de primeiro grau com espondilite anquilosante,
artrite relacionada à entesite, doença intestinal inflamatória com
sacroileíte, artrite reativa ou uveíte anterior aguda.

Figura 10.5 - Artrite idiopática juvenil na forma relacionada à entesite


Legenda: (A) redução da flexão lombar; (B) oligoartrite (joelho esquerdo); (C) entesite da
inserção do tendão de aquiles; (D) hálux valgo e pé plano secundário. Fonte:
Rheumatology in Practice, 2010.

A artrite geralmente é oligoarticular (até 4 articulações acometidas)


e atinge joelhos (Figura 10.7), tornozelos e quadris. A entesite
caracteriza-se pelo acometimento da inserção do tendão ou
ligamento no osso e manifesta-se com dor no local, algumas vezes
com calor e edema.
Os locais mais comuns de entesite na AIJ são suprapatelar,
infrapatelar, na tuberosidade da tíbia, nas inserções do tendão de
aquiles e da fáscia plantar no calcâneo e no antepé (Figura 10.5 - C).
No início da doença, 80% dos casos têm envolvimento periférico e
poliarticular, e apenas 25% dos pacientes terão sintomas de
envolvimento axial (Figura 10.5 - A) que, entretanto, com a evolução
da doença, chega a ser de 65 a 90%.
Até 25% terão envolvimento ocular (uveíte anterior aguda)
sintomático, com episódios intermitentes e unilaterais de olho
vermelho com dor, edema, fotofobia e borramento visual.
10.2.2.5 Forma psoriásica

A artrite psoriásica que se inicia antes dos 16 anos é considerada


como AIJ psoriásica. Corresponde a cerca de 2% dos casos de AIJ. Em
apenas 10% dos pacientes, a artrite manifesta-se
concomitantemente à psoríase. Em mais da metade dos casos (Stoll
et al., 2006), a artrite aparece antes e pode anteceder o quadro
cutâneo em muitos anos, dificultando muito o diagnóstico. É
definida pela presença de artrite com psoríase diagnosticada por
médico ou artrite com 2 dos seguintes critérios (Petty et al., 2004):
a) Dactilite (edema articular e de partes moles de 1 ou mais dedos,
geralmente assimétrico – Figura 10.6);
b) Pitting nail ou unha “em dedal” (unha com depressões típicas de
psoríase);
c) Onicólise;
d) Parente de primeiro grau com psoríase.

Figura 10.6 - Dactilite e distrofia ungueal em criança com artrite idiopática juvenil – forma
psoriásica

Fonte: Pediatric Rheumatology in Clinical Practice, 2007.

Na maioria dos casos, a artrite é periférica, poliarticular,


assimétrica, com envolvimento das pequenas articulações de mãos,
pés, joelhos e tornozelos. As sacroilíacas também podem ser
acometidas em 40% dos casos ao longo da evolução da doença.
Até 20% poderão ter envolvimento ocular (uveíte anterior), e devem
ser feitas avaliações periódicas com oftalmologista (ver
posteriormente no item 10.2.4).
10.2.2.6 Forma indiferenciada

Alguns pacientes não fecham critérios para nenhuma das


classificações e são diagnosticados com AIJ indiferenciada. Estudos
adicionais são necessários para indicar a evolução desses pacientes,
se permanecerão como forma indiferenciada ou evoluirão para
alguma outra categoria.
Figura 10.7 - Artrite nos joelhos em paciente com artrite idiopática juvenil
Quadro 10.2 - Comparação dos subtipos de artrite idiopática juvenil e suas manifestações
clínicas
10.2.3 Diagnóstico
10.2.3.1 Achados laboratoriais e de imagem

As provas inflamatórias (velocidade de hemossedimentação,


proteína C reativa, glicoproteína ácida) podem estar normais nos
pacientes com acometimento de poucas articulações, mas estarão
alteradas (elevados valores) nas formas poliarticular e sistêmica. A
ferritina costuma estar bem aumentada na forma sistêmica.
Na AIJ sistêmica, há alguns achados frequentes no hemograma:
plaquetose, anemia e leucocitose, de graus variáveis (média de
11.000 a 20.000/mm3), que também podem ocorrer em menor grau
nas formas poliarticulares.
Em relação aos exames de imagem, a radiografia evidencia, no início
do quadro, edema de partes moles, seguido por possível diminuição
do espaço articular e lesões erosivas, dependendo do curso da
doença.
O FAN e o FR devem ser dosados em todos os pacientes com AIJ, pois
se associam ao risco de desenvolvimento de uveíte (ver item 10.2.4).
#IMPORTANTE
O FAN e o FR devem ser dosados em todos os
pacientes com AIJ, pois se associam ao risco de
desenvolvimento de uveíte.

10.2.3.2 Diagnóstico diferencial

Entre as doenças que se assemelham à forma oligoarticular, têm-se


leucemias, artrite tuberculosa, doença de Hansen e doença
inflamatória intestinal.
A manifestação poliarticular tem, entre os diferenciais a serem
pensados, leucemias, doença inflamatória intestinal, lúpus
eritematoso sistêmico, mucopolissacaridoses, espondiloartropatias
e doença de Lyme.
Por fim, dentre as entidades que cursam com manifestação
sistêmica, devem-se excluir leucemias, doença inflamatória
intestinal, lúpus eritematoso sistêmico juvenil, vasculites, infecções,
entre outras.
10.2.4 Complicações
10.2.4.1 Deformidades

A maior parte das complicações relacionadas à AIJ se refere a


distúrbios motores ou estéticos devido à erosão articular. Como
atinge indivíduos que estão em modificação do esqueleto, quadros
erosivos em pacientes submetidos a terapia inadequada, ou aqueles
que são altamente refratários, podem cursar com desproporções de
crescimento, gerando assimetrias e deformidades (Figura 10.8).
Pacientes com osteoartrite secundária grave, ademais,
frequentemente precisam de procedimentos cirúrgicos na vida
adulta, como artroplastias.
Figura 10.8 - Discrepância de membros como complicação da artrite idiopática juvenil
Fonte: Rheumatology in Practice, 2010.

10.2.4.2 Síndrome de ativação macrofágica

A síndrome de ativação macrofágica é uma das complicações mais


graves da AIJ sistêmica. É uma doença rara e potencialmente fatal,
que cursa com achados como febre não remitente,
hepatoesplenomegalia, linfadenopatia, disfunção hepática,
hemorragias, convulsões e coma.
A biópsia de medula óssea é importante para o diagnóstico e pode
revelar hemofagocitose. Outros achados que contribuem para o
diagnóstico incluem bicitopenia ou pancitopenia,
hipertrigliceridemia (≥ 265 mg/dL) e ferritina sérica elevada (≥ 500
ng/mL). O tratamento é realizado com altas doses de corticoides, e
em alguns casos podem ser utilizados ciclosporina, ciclofosfamida e
o antagonista da IL-1 (no Brasil, o canaquinumabe).
10.2.4.3 Uveíte

Como dito anteriormente, o FAN é positivo em cerca de 80% dos


casos de AIJ oligoarticular e está associado a elevado risco de uveíte
crônica anterior (Figura 10.9), sobretudo em meninas. A uveíte pode
ser bilateral e provocar perda de visão, sendo assintomática em 50%
dos casos e progredindo independentemente do curso da artrite.
Devido às alterações graves e irreversíveis, incluindo descolamento
de córnea, catarata, glaucoma e perda visual parcial ou total, os
pacientes com AIJ devem ser avaliados regularmente pelo
oftalmologista. O esquema de rastreamento de uveíte recomendado
pelo American College of Rheumatology em 2019 envolve a
realização de lâmpada de fenda por oftalmologista a cada 3 meses
para crianças com as formas oligoarticular, poliarticular (FR
negativo), psoriásica e indiferenciada que sejam também positivos
para o FAN, tenham menos de 7 anos de idade e tempo de doença
menor ou igual a 4 anos. Para todas as demais crianças, o
rastreamento é indicado a cada 6 ou 12 meses (Angeles-Han et al.,
2019).
Figura 10.9 - Uveíte anterior crônica complicada com sinéquias e catarata na artrite
idiopática juvenil

10.2.5 Tratamento
O tratamento compreende acompanhamento multidisciplinar, que
inclui educação do paciente e da família, cuidados domiciliares,
ajustes sociais, entre outros, e começa durante o diagnóstico.
Os pacientes com manifestação articular leve podem ser tratados
com anti-inflamatórios não hormonais isolados, os quais controlam
a inflamação e a dor e são utilizados por longos períodos. Corticoides
sistêmicos também são utilizados continuamente no controle da
inflamação e estão reservados a casos de serosite, acometimento
ocular, febre e artrites não responsivas aos anti-inflamatórios não
hormonais. Injeções intra-articulares de corticoides podem ser
utilizadas em casos de mono/oligoartrites.
Dois terços dos pacientes com AIJ não respondem ao anti-
inflamatório isolado, sendo necessária a introdução de drogas de
base. Os fatores de mau prognóstico são persistência de
manifestações sistêmicas após os primeiros 6 meses de doença;
início e curso poliarticular ou oligoartrite estendida; sexo feminino;
presença de FR; rigidez matinal persistente; tenossinovite; nódulos
subcutâneos; anticorpos antinucleares; envolvimento precoce de
pequenas articulações de mãos e pés; aparecimento precoce de
erosões. São opções terapêuticas nesse grupo: metotrexato,
sulfassalazina, leflunomida, ciclosporina ou medicamentos com
ação biológica (especialmente os anti-TNF).
Nos pacientes com AIJ sistêmica, existe uma certa tendência à
prescrição precoce de anti-IL-1 ou anti-IL-6, devido ao mecanismo
da doença.
#IMPORTANTE
Nos pacientes com AIJ sistêmica, existe uma
certa tendência à prescrição precoce de anti-IL-
1 ou anti-IL-6, devido ao mecanismo da doença.

O tratamento da inflamação ocular deve ser orientado pelo


oftalmologista, à base de corticoides tópicos. Imunossupressores
estão indicados em caso de uveíte grave ou dependência de
corticoide.
Quais são as principais
formas de artrite idiopática
juvenil?
A artrite idiopática juvenil é dividida em 5 formas, em
ordem de prevalência: oligoarticular, poliarticular,
sistêmica, artrite relacionada à entesite e psoriásica.

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