autoimune?
1.1 INTRODUÇÃO
Àqueles afeitos ao estudo científico o sistema imune talvez seja uma
das coisas mais fascinantes. A vida humana seria impossível sem
mecanismos que garantissem a sua integridade, dada a quantidade
de ameaças presentes no ambiente.
Seguramente, um dos elementos que permitiu a ascensão do ser
humano como espécie suprema foi o sistema imune, que,
evolutivamente, foi se tornando cada vez mais específico e capaz de
diferenciar entre os mais diversos patógenos com um nível de
precisão chocante.
Contudo, em alguns indivíduos, as falhas do sistema de defesa são
tão notáveis quanto a sua eficiência. Seja agindo silenciosamente em
conjunto com fatores metabólicos para gerar a ateromatose, seja
trazendo ao colapso absoluto toda uma circuitaria biológica nos
estados sépticos; as imprecisões da imunidade são um dos principais
temas de estudo nas ciências biológicas.
Mas quais são os mecanismos que permitem ao sistema imune tratar
com tanta voracidade aquilo tudo que é externo e tolerar, ou mesmo
proteger, aquilo que é do hospedeiro? Como diferenciá-los?
Nas próximas páginas tentaremos, à luz do conhecimento científico
atual, compreender, ainda que superficialmente, os mecanismos do
sistema imune em seu funcionamento saudável e patológico.
1.2 O SISTEMA IMUNE NA SAÚDE
Classicamente se divide o sistema imune em 2 vertentes: uma mais
imediata e inespecífica, o sistema imune inato; e uma posterior e
extremamente refinada, o sistema imune adaptativo.
1.2.1 Sistema imune inato
O termo inato se refere a ideia de que esta vertente do sistema imune
é presente desde o nascimento, sem passar pelas fases adaptativas
que a outra vertente passa. O sistema imune inato é de extrema
importância ao indivíduo, de tal forma que representa a primeira
barreira que os patógenos irão enfrentar. Seria impossível combater
infecções de rápida instalação se só houvesse sistema imune
adaptativo, pois sua resposta pode durar semanas para se
orquestrar. Ilustra-se esse fenômeno, por exemplo, nos pacientes
com disfunções neutrofílicas, que sofrem com infecções de repetição
por germes altamente virulentos.
Existem diversos componentes do sistema imune inato. Os mais
intuitivamente importantes para a Reumatologia e a Imunologia são
os componentes celulares, contudo, temos diversos outros
mecanismos inatos de defesa. Os principais componentes do sistema
imune inato e suas funções são:
a) Barreiras físicas, como a pele, membranas mucosas e endotélios;
b) Enzimas secretadas pelos epitélios ou em células fagocitárias;
c) Proteínas séricas como o complemento, as proteínas de fase aguda
e as lectinas;
d) Peptídios antimicrobianos, que são proteínas solúveis secretadas
pelo epitélio ou pelos fagócitos e que neutralizam germes;
e) Células que amplificam, auxiliam e modulam a resposta imune,
como mastócitos, macrófagos e células NK;
f) Células fagocitárias, como os neutrófilos, macrófagos (monócitos) e
células dendríticas;
g) Microbioma, ou seja, bactérias que povoam o corpo humano e
vivem em relativa cooperação com os órgãos e sistemas, servindo
como competidores de organismos patogênicos.
Uma vez que uma APC reconheça através dos seus PRR um patógeno,
ela o fagocitará, processará e lhe apresentará em seu HLA passando,
então, a expressar na sua membrana um coestimulador: o CD40.
Esta proteína de membrana marca invasão e será necessária para a
ativação linfocitária. Tão logo os peptídios patogênicos ligados ao
HLA sejam reconhecidos pelo linfócito T, este expressará em sua
membrana um CD40L, que buscará o seu sítio de ligação, o CD40. Se
não houver contato entre estes ligantes, o linfócito se torna anérgico
e entra em apoptose. Se houver contato entre estes ligantes, o
linfócito passará a expressar em sua membrana o CD28 e a APC
passará a expressar o CD80/CD86. Um novo contato entre estas 2
moléculas finaliza o processo de ativação e torna o linfócito T
outrora naïve (Th0, inativo, ou seja, em busca do seu antígeno-alvo)
um linfócito ativo (Jenkins et al., 2001). A Figura 1.2 resume a
coestimulação.
Figura 1.2 - Esquema mostrando os sinais trocados entre um linfócito T e uma célula
apresentadora de antígeno
Nota: após fagocitose e processamento do patógeno, peptídios são expostos no HLA
(MHC). Se houver correspondência entre o HLA com peptídios e o TCR linfocitário,
ocorrem novos sinais que podem estimular ou inibir a ativação linfocitária. Linfócitos que
não recebem sinais coestimulatórios entram em anergia ou apoptose.
Fonte: elaborado pelo autor.
1.2.2.3 O HLA
1.3.1.2 Th2
1.3.1.4 Treg
1.3.2 Autoinflamação
As doenças autoinflamatórias geralmente se referem a disfunções na
ativação dos inflamossomas e das vias a eles relacionadas. Ao
contrário das doenças autoimunes, que geralmente possuem causa
poligênica e multifatorial, as doenças autoinflamatórias possuem
quadro genético mais bem definido (inclusive frequentemente
monogênico, com herança bem definida). Mutações em proteínas
envolvidas no funcionamento do inflamossoma o tornam
hiperativado, cursando com aumento da produção e da ação de
citocinas diversas, mas, especialmente, da IL-1. A IL-1 é uma
citocina muito relacionada à resposta dos fagócitos ao
reconhecimento de padrões patológicos e de dano, aos sinais
cardinais de inflamação e à febre. Situações dependentes de IL-1
geralmente cursam com muita flogose local e, quase
invariavelmente, febre. Pela característica da ativação do
inflamossoma, uma estrutura que se esgota de tempos em tempos, a
febre nas doenças autoinflamatórias é, tipicamente, periódica.
#IMPORTANTE
Ao longo de meses, febres de caráter periódico
sugerem autoinflamação, ao passo que febres
mantidas sugerem autoimunidade.
O que define uma doença
autoimune?
Doenças autoimunes são condições clínicas decorrentes da
ativação patológica e mantida do sistema imune
adaptativo, ou seja, dos linfócitos T e B, sem um estímulo
infeccioso, tóxico ou neoplásico que a justifique.
Dentro de uma unidade
motora articular, quais são
as estruturas de maior
interesse nas doenças
reumáticas?
2.1 INTRODUÇÃO
A Reumatologia é uma ciência com um ramo de estudo amplo e de
difícil determinação. O nome da especialidade deriva do termo grego
rheuma, que simboliza algo como “líquido fluindo”. Tal
nomenclatura remete à medicina hipocrática, que imaginava que os
diversos distúrbios corporais se deviam à desorganização dos fluidos
(humores) intrínsecos. De fato, a dor articular, um dos sintomas
mais comuns da humanidade, era relacionada ao desbalanço em
diversos fluidos, eminentemente o próprio líquido articular. De
maneira ampla, toda dor articular era chamada de reumatismo,
simbolizando uma alteração no fluxo fisiológico. Anos depois,
durante a Idade Média, cunhou-se também o termo “gota” para se
referir à pequena quantidade de líquido que pingava nas articulações
de reis e nobres que se ilibavam com álcool e comilanças (Nuki;
Simkin, 2006).
Pode-se notar, portanto, que, historicamente, o termo reumatismo
sempre esteve associado à ideia de dor, especialmente dor no
aparelho locomotor, estando entre as doenças mais comuns da
humanidade. Durante muito tempo, portanto, muitos médicos
trataram enfermidades locomotoras sem perceber que se referiam a
distúrbios do sistema imune. De fato, a compreensão de que a
Reumatologia tratava, na verdade, de disfunções do sistema
imunológico, só veio muito mais tarde, no século 20.
As articulações e os músculos são órgãos muito sensíveis à
inflamação e à dor. Citocinas inflamatórias, mesmo de processos à
distância, são capazes de adentrar o espaço articular e sinalizar para
a redução do limiar álgico e, inclusive, para recrutamento celular
para o espaço articular. As fáscias musculares parecem igualmente
sensíveis aos distúrbios inflamatórios e estímulos álgicos, causando
dor difusa em uma infinidade de patologias absolutamente não
diretamente ligadas aos músculos (como quadros infecciosos,
reações vacinais, dor crônica e mesmo à privação de sono). Por essa
razão, dor articular sem grandes sinais flogísticos ou dor muscular
sem sinais de lesão muscular objetiva são sintomas promíscuos de
doença e não ajudam a topografar patologias.
Resumindo, atualmente a Reumatologia é uma ciência clínica que
trata das síndromes álgicas do aparelho locomotor, estando elas
relacionadas ou não ao sistema imune. Assim sendo, qualquer
estudante que planeja entender as nossas patologias precisa
conhecer o capítulo Noções gerais de imunologia, deste livro, e o
presente capítulo, que se propõe a explicar as noções básicas sobre a
anatomia e fisiologia da locomoção.
2.2 ARTICULAÇÕES
A compreensão das doenças reumáticas passa invariavelmente pelo
entendimento, ainda que superficial, do funcionamento das
estruturas relacionadas ao aparelho locomotor. É verdade que as
afecções reumáticas acometem muito mais do que os aparelhos
relacionados à movimentação, mas, tratando-se de desordens que
possuem disfunção intimamente relacionada ao tecido conectivo,
quase invariavelmente as patologias dessa especialidade se
apresentarão com algum sintoma relacionado a ossos, sinóvia,
cartilagens ou músculo.
De maneira bastante simplista, as articulações são as estruturas
responsáveis por unir 2 ou mais ossos, conferindo movimentação ao
esqueleto. Existem diversas articulações diferentes no corpo,
algumas delas com maior movimentação e outras com menor, a
depender da estrutura articular em si e dos músculos e ligamentos
que a circundam.
Genericamente, uma articulação é formada de maneira elementar
pelos ossos e cartilagens associadas. Alguns grupos de articulações
possuem mais de uma cartilagem e, portanto, um espaço articular,
que pode ser circundado pela estrutura sinovial e por uma cápsula
fibrosa. A Figura 2.1 representa o esquema básico de uma articulação.
As articulações podem ser divididas, inicialmente, conforme a
densidade da cartilagem que possuem:
1. Sinartroses: junções de tecido conectivo extremamente fibroso que
unem 2 extremidades ósseas, com mínima ou nenhuma possibilidade
de movimentação – o exemplo principal são as suturas cranianas;
2. Anfiartroses: fibrocartilagens adjacentes às extremidades ósseas,
permitindo um grau pequeno de movimentação – os exemplos
principais são os discos vertebrais, a sínfise púbica e a parte superior
da articulação sacroilíaca;
3. Diartroses: conhecidas também como articulações sinoviais,
possuem uma membrana sinovial e realmente um espaço articular,
permitindo ampla movimentação.
2.2.3.3 Ênteses
A entese é a inserção de um tendão, ligamento, cápsula ou fáscia no
osso. Essa ligação é estabelecida através de um gradiente
estruturalmente contínuo, do tendão não calcificado ao osso
calcificado. As ênteses podem ser ainda descritas de acordo com o
tipo de tecido presente no local de ligação esquelética,
especificamente, tecido conjuntivo fibroso denso ou fibrocartilagem.
As ênteses fibrosas se ligam diretamente ao osso ou periósteo,
principalmente por meio de tecido fibroso, cuja estrutura é
semelhante à do tendão. As ênteses fibrocartilaginosas se ligam ao
osso através de uma camada de fibrocartilagem que atua como uma
transição do tecido fibroso do tendão; essas ênteses, as mais
prevalentes no aparelho locomotor, também se encontram em
íntima relação com as sinóvias e bursas, de tal forma que, nos
últimos anos, emergiu uma nova visão dessa estrutura insercional
morfofuncional, denominada complexo sinovioentesial (Hochberg,
2019). Essa estrutura é particularmente vulnerável à autoimunidade,
especialmente quando há disfunção Th17 e grande participação das
IL-17, IL-22 e IL-23 – como no caso das espondiloartrites.
#IMPORTANTE
Presença de entesite inflamatória no contexto
de autoimunidade sugere fortemente
pertencimento ao grupo das espondiloartrites.
3.1 INTRODUÇÃO
É provável que as Doenças Sistêmicas do Tecido Conectivo (DSTCs)
sejam aquelas que mais se relacionam diretamente ao
reumatologista. Dentre um vasto universo de condições que podem
ser tratadas por diferentes especialistas, as DSTC geralmente são
encaminhadas aos reumatologistas por seus colegas, dada a
inexorável identificação que se faz entre essa entidade clínica e a
especialidade. Essas condições ganham nomes diversos como
doenças do colágeno, conectivopatias, colagenoses, doenças
reumáticas sistêmicas, entre outros, e são prontamente
identificadas pelo acometimento precoce e marcante de múltiplos
órgãos e sistemas.
Além do caráter inflamatório difuso que parece acompanhar os
pacientes com DSTCs, nota-se um comportamento patológico da
matriz extracelular dos diversos órgãos e tecidos acometidos, que
apresenta resposta insuficiente, ineficaz e frequentemente
inadequada ao ataque sofrido, culminando, em última análise, em
uma reparação tecidual inapropriada que gera distúrbios clínicos tão
comuns aos pacientes com essas moléstias, como o fenômeno de
Raynaud (caracterizado por uma resposta vasomotora anormal,
capaz de gerar distúrbios de perfusão cutânea), a calcinose
(deposição de cálcio nos tecidos) e a fibrose visceral.
Seria presunçoso que nesta obra se tentasse esmiuçar em detalhes os
mecanismos envolvidos na origem destes distúrbios inflamatórios e
reparadores, até mesmo porque a ciência ainda os desconhece em
sua maioria. Contudo, a compreensão de uma maquinaria imune
básica, especialmente no que se refere ao sistema imune adaptativo,
já é capaz de esclarecer em muitos aspectos a correlação clínico-
fisiopatológica que os pacientes apresentam, permitindo que o
estudo das DSTCs não se torne mera memorização de
autoanticorpos, permeada por um mundo de aleatoriedades em que
tudo pode ser tudo.
3.2 AS GRANDES VIAS
FISIOPATOLÓGICAS
Na essência da compreensão da fisiopatologia das DSTCs se encontra
o sistema imune em seu funcionamento fisiológico. Uma elegante e
complexa circuitaria garante que fragmentos de patógenos sejam
apresentados aos linfócitos T e que uma resposta altamente
específica e eficaz seja disparada, dirigida contra o invasor em
questão. Na saúde, a resposta imune é impressionantemente
competente, no sentido de se iniciar somente quando ocorre
infecção, atacar primordialmente o patógeno – minimizando os
danos colaterais – e findar tão logo ocorra neutralização do hóspede,
com cicatrização adequada e retorno à homeostase. Pormenores
destas vias podem ser vistos no capítulo Noções gerais de imunologia.
Na doença, contudo, entende-se que uma ou mais vias da resposta
linfocitária estão permanentemente excitadas, gerando uma
resposta contra o self que os mecanismos de controle não conseguem
suplantar. Mesmo na ausência de patógenos que justifiquem uma
resposta inflamatória, o sistema imune mantém um ambiente hostil,
gerando dano e reparação inadequada. As seções seguintes
abordarão as principais vias doentes nas DSTCs.
As doenças autoimunes em geral são assim
chamadas por apresentarem disfunção
primariamente na imunidade adaptativa.
Doenças relacionadas à imunidade inata são
chamadas autoinflamatórias.
d) Hemorragia alveolar
Legenda: (A) luxadas, com desvio palmar; (B) de volta à posição normal.
O diagnóstico da artrite lúpica é totalmente clínico. As imagens
tendem a ser normais, não havendo erosões, e os exames
laboratoriais não necessariamente mostram elevação das provas de
atividade inflamatória. Diferenciais incluem, na fase inicial, as
artrites virais (especialmente por arbovírus, parvovírus ou vírus das
hepatites com forma aguda), a endocardite infecciosa e proliferações
neoplásicas hematológicas (linfomas e leucemias). Nas
apresentações mais crônicas os diferenciais incluem infecções virais
crônicas (hepatite C e HIV) e fibromialgia. Um resumo dos exames
diferenciais se encontra adiante. Por fim, é preciso ter em mente,
como dito anteriormente neste capítulo, que a presença de artrite é
um achado promíscuo entre as doenças autoimunes. Sendo não
erosiva, todas as DSTCs, vasculites e doenças inflamatórias da
Reumatologia entram como possível diagnóstico diferencial,
tornando impossível, apenas com esse achado, um diagnóstico
único.
Os seguintes exames laboratoriais são relevantes na suspeita de
artrite lúpica, de acordo com cada grupo laboratorial:
1. Sangue:
a) Hemograma;
b) Coagulograma.
2. Autoimune:
a) C3;
b) C4;
c) FAN;
d) Anti-Sm;
e) Anti-DNA;
f) Anticardiolipinas;
g) Anticoagulante lúpico;
h) Antibeta-2-glicoproteína I;
i) Anti-Ro;
j) Anti-La.
3. Infeccioso:
a) Sorologias (arbovírus, parvovírus, hepatites A, B e C, HIV);
b) Hemoculturas.
4. Renal:
a) Ureia;
b) Creatinina;
c) Sedimento urinário;
d) Proteinúria 24h.
i) Serosite
3.3.1.5 Tratamento
c) Citopenias
Como a SAF cursa com anticorpos circulantes, pode ocorrer lise de
células opsonizadas. O alvo principal da SAF é a plaqueta, causando
trombocitopenia imune. Outro mecanismo que pode levar à
plaquetopenia neste caso é o consumo por microtrombos, embora
muito provavelmente seja o mecanismo menos importante no
indivíduo fora de estado grave (exemplo: SAF catastrófica).
A trombocitopenia na SAF é geralmente menos intensa do que no
LES, mas o seu manejo segue as mesmas diretrizes.
No polo da regeneração inadequada, a SAF pode evoluir com
manifestações valvares, assim como o LES. A forma mais comum de
doença valvar nestas doenças inclui espessamento valvar e eventual
formação de trombos nos folhetos – depósitos endocárdicos
trombóticos não bacterianos (NBTE), endocardite marântica ou
endocardite de Libman-Sacks. O espessamento valvar pode evoluir
para insuficiência, geralmente na valva mitral, e os trombos podem,
por sua vez, embolizar. Por fim, como outras manifestações do polo
regenerativo, a imunossupressão parece não reverter a valvopatia.
Na NBTE relacionada às conectivopatias, existe
evidência para uso de antiagregantes na
ausência de eventos embólicos prévios (se
presentes, o paciente teria já indicação de
anticoagulação), como forma de prevenção
(Lockshin et al., 2003).
3.3.2.4 Diagnóstico
a) Miosite
Figura 3.11 - Rash “em heliotropo”: pigmentação rosa ou violácea nas pálpebras de
pacientes com dermatomiosite
Fonte: Photoessay of the cutaneous manifestations of the idiopathic inflammatory
myopathies, 2009.
3.4.1.4 Diagnóstico
3.4.1.5 Tratamento
Além dos pulmões em si, a via aérea como um todo pode ser
acometida, como dito anteriormente. Nas vias aéreas
intrapulmonares, pode ocorrer infiltração dos brônquios e
bronquíolos, levando a um quadro de obstrução de grandes e
pequenas vias. O quadro clínico é de tosse, sibilância e dispneia. O
parênquima pulmonar também pode ser invadido por células
inflamatórias, culminando em doença intersticial pulmonar.
Diversos padrões são descritos, mas a pneumonite intersticial
linfocítica – que se apresenta como uma doença cística pulmonar –
é altamente associada a SS (Parambil et al., 2006). A queixa é
heterogênea; muitos pacientes são assintomáticos e outros evoluem
com graus variáveis de tosse e dispneia.
O diagnóstico de pneumopatia associada à SS é baseado na clínica, na
prova de função pulmonar, na tomografia de tórax e,
ocasionalmente, na biópsia pulmonar quando restarem dúvidas.
O diagnóstico diferencial passa por causas infecciosas (infecções por
vírus, fungos e micobactérias), medicamentosas e outras formas de
acometimento imune, como a pneumonite por hipersensibilidade,
eosinofílica e a sarcoidose.
e) Neuronite
O acometimento neural na SS passa pelas formas diretamente
inflamatórias aos tecidos neurais (no conjunto as mais frequentes) e
as formas isquêmicas induzidas por vasculite (ver no item seguinte).
Nas formas diretas, que representam melhor o principal polo da SS,
encontram-se a neuropatia de fibras finas, que cursa com alodinia,
prurido e dor bem delimitados, geralmente com alteração de
sensibilidade apenas superficial do território acometido ao exame
físico; as polineuropatias axonais, que se apresentam como quadros
sensitivos (superficiais e profundos) ou sensitivo-motores
segmentares, distais (“em bota”), e, por vezes, simétricos (Mori et
al., 2005); a ganglionite sensorial – uma forma de acometimento
dos gânglios dorsais da medula e seus funículos posteriores –, que
cursa com dor neuropática, alteração da sensibilidade profunda,
ataxia sensorial, incoordenação e raramente disautonomia; as
meningites; e as raríssimas formas de polirradiculoneurites e
neuropatias desmielinizantes.
Alguns sintomas neuropsiquiátricos, extremamente comuns em SS,
como declínio cognitivo, sintomas depressivos e queixas de memória
não encontram substrato diretamente inflamatório, mas
provavelmente se relacionam com alterações microangiopáticas,
psicológicas e neurodegenerativas (Segal et al., 2012).
Dos quadros neurológicos, mais da metade são
neuropatia de fibras finas ou polineuropatia
axonal, de tal forma que os sintomas mais
relatados serão dor, parestesia e alterações
sensitivas.
3.4.3.2 Epidemiologia
b) Ceratite e esclerite
Embora a AR possa cursar com inflamação direta da esclera e da
córnea, o acometimento ocular mais comum é a ceratoconjuntivite
seca por SS secundária. Nos casos de ceratite e esclerite/episclerite, o
quadro clínico geralmente é de olho vermelho doloroso, com
evolução subaguda (Figura 3.17). O exame físico pode mostrar
alterações na superfície da córnea ou áreas circunscritas de eritema
com aumento da vascularização local. Casos mais graves de esclerite
podem apresentar nodulações na esclera e afilamento desta, com
visualização, ao exame físico, do humor vítreo.
Figura 3.17 - Olho com esclerite nodular
Figura 3.20 - Vasculite evoluindo com úlcera no membro inferior (pré-debridamento e pós-
debridamento)
d) Citopenias
Figura 3.23 - Espessamento cutâneo e retração da pele dorsal dos dedos (esclerodactilia),
com contratura em flexão de interfalangianas proximais e distais
Fonte: adaptado de Thermography Improves Clinical Assessment in Patients with Systemic
Sclerosis Treated with Ozone Therapy, 2017.
Figura 3.27 - Reabsorção de falanges distais em paciente com esclerose sistêmica difusa,
fenômeno de Raynaud e pitting scars
Legenda: (A) infarto digital; (B) reabsorção de falanges distais.
d) Manifestações gastrintestinais
e) Pneumopatia
a) Acropatia e vasculopatia
f) Miosite
4.1 INTRODUÇÃO
As Artropatias Autoimunes (AAs) são entidades singulares na
Reumatologia e se referem a desordens principalmente do sistema
imune adaptativo, com uma fisiopatologia razoavelmente bem
definida que provoca manifestações clínicas particulares a esse
grupo de doenças.
A grande manifestação cardinal das AAs é justamente o
comprometimento sinovial, quase sempre muito exuberante do
ponto de vista inflamatório, com artrite muito agressiva e, quase
sempre, destrutiva. Frente a um paciente com manifestações
articulares predominando o quadro clínico, esse grupo de doenças
deve sempre ser aventado, especialmente se, ao exame físico, houver
nítida flogose.
Ademais, componentes periarticulares, especialmente aqueles
intimamente relacionado ao tecido sinovial, como as bainhas
tendíneas, as ênteses e as bursas, estarão frequentemente
acometidos em conjunto, ajudando a sugerir a etiologia.
As AAs são simbolizadas especialmente pelas espondiloartrites
(EpAs) e pela artrite idiopática juvenil (AIJ). Nesta obra, os autores
optaram por descrever a AIJ em um capítulo à parte, apenas pelas
suas características inerentes à infância (ver capítulo Doenças
reumáticas de início na infância). A Artrite Reumatoide (AR) é
geralmente classificada como uma Doença Sistêmica do Tecido
Conectivo (DSTC) pela sua fisiopatologia, contudo, mais
recentemente, com as terapias imunossupressoras mais modernas,
as manifestações clínicas mais viscerais da AR – que carregam
inerentemente consigo as facetas de conectivopatia – raramente
ocorrem, ficando a doença em um espectro clínico que a aproxima
muito mais das AAs. Pode-se dizer, portanto, que a AR carrega
consigo uma espécie de paradoxo clínico-fisiopatológico. Neste
capítulo, os autores abordarão a AR pelo seu prisma eminentemente
articular, que é, de fato, o mais importante ao clínico (devido à maior
prevalência). A AR como conectivopatia – portanto nas suas formas
menos frequentes, porém bem mais graves – foi abordada no
capítulo Doenças sistêmicas do tecido conectivo.
Do ponto de vista fisiopatológico, a artrite
reumatoide é mais entendida como doença
sistêmica do tecido conectivo, mas a
modificação da doença empreendida pelo
tratamento atual a torna clinicamente mais
semelhante às artropatias autoimunes.
4.2 FISIOPATOLOGIA
As AAs, como todas as doenças autoimunes, ocorrem como resultado
da perda do mecanismo de tolerância imune, gerando uma ativação
aberrante de células linfocitárias. Esse mecanismo é dependente de
fatores ambientais e genéticos. Os fatores genéticos envolvidos mais
importantes estão relacionados aos alelos do HLA (human leukocyte
antigen). No caso da AR, são HLAs mais frequentemente do tipo II –
representados, principalmente, por polimorfismos nos alelos HLA-
DR (Okada et al., 2014). No caso das EpAs, especialmente
polimorfismos relacionados aos HLA do tipo I – principalmente os
HLA B (Uchanska-Ziegler et al., 2013).
Para a compreensão do papel dos HLAs na gênese da doença é
importante compreender que esses indivíduos não apresentam
doença primária relacionada ao genoma em si. Não é que esses
indivíduos apresentem mutação que determina maior ou menor
função da proteína produzida. Na verdade, existem diversas
sequências de aminoácidos dispostas pelas populações do mundo
que são capazes de produzir cadeias totalmente normais e
funcionantes de HLA; ocorre apenas que algumas sequências em
especial são mais suscetíveis ao reconhecimento aberrante de
autoantígenos.
Outras vias de processamento genético e proteico (conhecidos como
fenômenos epigenéticos, como a metilação do DNA), além de vias
relacionadas à sinalização inflamatória provavelmente participam
também da gênese da doença (Liu et al., 2013). Sabe-se que esses
mecanismos não são somente herdados, mas, também, modulados
pelas diversas exposições ambientais. De maneira prática, pode-se
citar, por exemplo, que a exposição a determinadas bactérias causa
maior citrulinização (transformação de radicais proteicos de
arginina em citrulina) de proteínas no corpo (Koziel et al., 2014).
Proteínas citrulinadas, por sua vez, são fortes indutoras de resposta
imune; em um paciente com um fundo genético propenso à
autoimunidade, a ocorrência de maior quantidade de proteínas
citrulinadas pode servir como gatilho para a quebra da
imunotolerância. Outrossim, o consumo de cigarros também é
consistentemente identificado como relacionado à citrulinização
proteica (Makrygiannakis et al., 2008). Desta forma, fumar contribui
não só com a gênese, mas também com a perpetuação de todas as
formas de AAs.
É provável que as AAs também estejam relacionadas a agentes
infecciosos e a própria microbiota. Vários possíveis agentes são
sugeridos, inclusive micoplasma, vírus Epstein-Barr (EBV),
citomegalovírus, parvovírus e vírus da rubéola. Como comentado
anteriormente, existe o papel definido de citrulinização de proteínas
e consequente formação de anticorpos anticitrulina ou antipeptídio
C citrulinado, que contribuem para o desenvolvimento de AR e para o
surgimento de doença mais agressiva. A citrulinização ocorre na
mucosa oral na presença de Porphyromonas gengivais, encontrada
nas periodontites. Possivelmente, a mucosa do intestino também
está envolvida. No caso das espondiloartrites, acredita-se que o
desbalanço da microbiota intestinal possa causar a ruptura das
barreiras epiteliais, levando as células linfoides locais a ficarem
constantemente ativadas, culminando com autoimunidade em
indivíduos susceptíveis (Jethwa; Abraham, 2017).
Independentemente dos mecanismos relacionados ao gatilho das
doenças, as AAs possuem disfunções semelhantes nas vias de
resposta linfocitária. De maneira ampla, indivíduos com AA terão
uma estimulação aberrante e consistente das vias Th1 e Th17. Como
visto no capítulo Noções gerais de imunologia, a via Th1 culmina na
liberação de citocinas como os TNF (tumoral necrosis factor) e o IFN
(interferon)-gama. O efeito final de uma via Th1 hiperestimulada
será a ativação aberrante e perene de fagócitos (especialmente
macrófagos), com grande reação celular local e destruição dos
tecidos adjacentes. Quando esse fenômeno ocorre na articulação,
haverá exuberante inflamação sinovial (com flogose e
hiperproliferação celular sinovial) e eventual formação de pannus
articular (aumento da espessura da membrana sinovial, com aspecto
borrachudo ao toque). Com a persistência do fenômeno autoimune,
erosões ósseas periarticulares passarão a ocorrer, não só pela
destruição óssea em si, mas também pela regulação negativa que as
citocinas imprimem sobre o metabolismo ósseo, aumentando a
ativação dos osteoclastos (Lam et al., 2000). Essa via explica a alta
chance de sequela articular nos pacientes com AA, uma manifestação
cardinal desse grupo de doenças.
Pela ação negativa sobre o metabolismo ósseo,
indivíduos com artropatias autoimunes têm
chance muito aumentada de osteoporose.
A resposta Th17, por sua vez, apresenta 2 possíveis caminhos, a
depender das citocinas com as quais dialoga e com os fatores de
transcrição envolvidos na resposta imune aberrante. Se, por um
lado, a resposta Th17 cursar com estimulação de linfócitos B via IL-
6, o resultado esperado será grande produção de anticorpos, muitos
deles autorreativos, com as consequências esperadas das condições
reumáticas com alta carga de resposta humoral, como citotoxicidade
por opsoninas (levando às citopenias) e manifestações vasculíticas.
Essa vertente da resposta imune é familiar às DSTCs e incomum nas
AAs, mas pode ocorrer na AR, devido à sua ligação com as
conectivopatias (neste caso, essa fisiopatologia gerará sintomas que
são abordados no capítulo Doenças sistêmicas do tecido conectivo).
Muito mais relacionada às AAs está o braço da resposta Th17 que
dialoga com as citocinas IL 17, IL-22 e IL-23. Nessa condição, a
resposta imune é muito mais celular do que humoral e gera ativação
de fagócitos com inflamação tecidual direta. O resultado é uma
resposta semelhante à Th1, com infiltração do tecido sinovial por
células inflamatórias. A resposta Th17 é muito importante nos
tecidos periarticulares (especialmente nas ênteses), que parecem ser
mais sensíveis à IL-23 e IL-17 do que aos TNF (Sherlock et al., 2012).
Outro fator importante da resposta Th17 é a capacidade não só de,
assim como o TNF, induzir perda óssea pelo aumento da
osteoclastogênese, mas, também, promover proliferação óssea por
sua ação no tecido mesenquimal periosteal (Gravallese; Schett,
2018). Deste modo, pacientes com uma ativação exacerbada da via
Th17 podem cursar também com neoformação óssea. Clinicamente,
este fenômeno pode ser observado na formação de sindesmófitos,
tão frequentes nas EpAs axiais.
Artropatias autoimunes são condições
reumáticas em que há disfunção imune com
participação do sistema imune adaptativo,
cursando com comprometimento articular
erosivo como principal achado clínico,
associado ao acometimento periarticular.
4.3 ARTRITE REUMATOIDE (COMO
ARTROPATIA AUTOIMUNE)
A AR é uma condição singular na Reumatologia, espraiando-se por
quase todas as vias fisiopatológicas linfocitárias. Enquanto
conectivopatia, cursa com inflamação tecidual, deposição de
imunocomplexos e reparação inadequada com deposição colagênica
cicatricial. Nesta faceta, encontram-se as manifestações mais
viscerais da AR, como a síndrome de Felty, a vasculite reumatoide e a
pneumopatia intersticial. Como DSTC, a AR pode inclusive servir de
doença-base para uma segunda colagenose, como no caso da
síndrome de Sjögren secundária ou mesmo da síndrome
antifosfolípide secundária; ademais, também podem ocorrer
sobreposições com outras doenças, como com lúpus eritematoso
sistêmico. Essa face da AR foi explorada no capítulo Doenças
sistêmicas do tecido conectivo, dada a discussão que se fez naquele
capítulo sobre os mecanismos fisiopatológicos das conectivopatias.
Porém, do ponto de vista clínico, a AR se comporta muito mais como
uma AA, especialmente na abertura da doença. É provável que esse
fenômeno seja explicado pela disfunção imune com “assinatura”
Th1 presente na AR e pouco comum nas DSTCs. Pode-se especular
que a AR se inicia como uma disfunção primordialmente Th1 que
progride com os anos até a sua maturidade patológica final, como
DSTC. Como os regimes de terapia para AR avançaram muito nas
últimas décadas, atualmente é infrequente que os pacientes
cheguem a revelar doença mais visceral. Deste modo, a face da AR
que a aproxima das AAs é a mais importante à maioria dos clínicos.
Como a terapia-alvo é a regra na Reumatologia atualmente, para a
doença exclusivamente articular e periarticular, a AR é mais bem
manejada quando vista de maneira simplificada como uma
artropatia autoimune. Para os quadros mais sistêmicos, a terapia
deve se voltar às suas raízes nas doenças sistêmicas do tecido
conectivo.
A seguir, esta obra se dedicará aos aspectos mais importantes da AR
quando vista por seu prisma de artropatia autoimune.
4.3.1 Epidemiologia
A AR é uma doença mundial que afeta todas as etnias, com
prevalência de cerca de 0,5 a 1% da população, com predomínio de
acometimento em mulheres (2,5 a 3 vezes maior do que em
homens), e aumento com a idade. A diferença entre sexos diminui na
faixa etária mais elevada. Em mulheres, o início acontece durante a
quarta e a sexta década de vida, com 80% de todos os pacientes
acometidos com idade entre 35 e 50 anos. Em homens, tende a
ocorrer um pouco mais tardiamente, durante a sexta e a oitava
década de vida. Contudo, a doença é bem descrita em todas as faixas
etárias.
A AR causa aumento da mortalidade e é responsável por grande
morbidade. Pelo fato de acometer indivíduos em idade produtiva e
potencialmente causar danos articulares irreversíveis, essa patologia
gera altos custos para esses pacientes e a sociedade.
A artrite reumatoide é a doença imunomediada
mais prevalente da Reumatologia.
4.3.4 Diagnóstico
O diagnóstico de AR é baseado especialmente nas manifestações
clínicas e no exame físico. Alguns achados laboratoriais podem
auxiliar na confirmação da suspeita e os dados de imagem são
razoavelmente típicos dentro de um contexto adequado.
4.3.4.1 Exames laboratoriais
Não existe marcador diagnóstico isoladamente confirmatório para
AR, mas o Fator Reumatoide (FR) é o marcador mais importante.
Trata-se de uma imunoglobulina M contra a fração Fc da
imunoglobulina G, sendo encontrado em 70 a 80% dos pacientes
com a doença, na forma estabelecida (Hochberg, 2018). A presença
de FR, contudo, não é específica para AR e é encontrada em 5% das
pessoas saudáveis, aumentando a sua frequência com o avançar da
idade (10 a 20% de indivíduos acima de 65 anos). Além disso, outras
doenças crônicas com estimulação persistente do sistema
imunológico são associadas à presença do FR: lúpus eritematoso
sistêmico, síndrome de Sjögren (maiores títulos encontrados),
hepatopatia crônica, sarcoidose, fibrose pulmonar intersticial,
mononucleose infecciosa, hepatite B, tuberculose, hanseníase,
sífilis, endocardite bacteriana subaguda, leishmaniose visceral,
esquistossomose, malária e crioglobulinemia.
É pertinente a pesquisa de FR nas seguintes
suspeitas clínicas: artrite reumatoide, síndrome
de Sjögren e vasculite crioglobulinêmica.
4.3.5 Seguimento
O acompanhamento do paciente é feito em cada consulta por meio de
índices compostos de atividade clínica, sendo o DAS ou DAS28
(Disease Activity Score) o mais utilizado. Esse escore conta
articulações edemaciadas e dolorosas, além de ter uma pontuação
global do paciente para a doença e valores de PCR ou VHS. Os exames
radiográficos de mãos, punhos e pés devem ser repetidos
anualmente a fim de avaliar a progressão ou não da doença.
As metas do tratamento da AR são o alívio da dor, a redução da
inflamação, a proteção das estruturas articulares, a preservação
articular e o controle de envolvimento sistêmico. Nenhuma das
intervenções terapêuticas é curativa, mas após alguns anos de
doença a maior parte dos pacientes apresentará relativo controle,
sendo frequentemente possível a suspensão ou, ao menos, redução
dos imunossupressores.
O diagnóstico e o início precoce do tratamento são fundamentais
para o controle da atividade da doença, assim como também
previnem a incapacidade funcional e lesões articulares irreversíveis,
prejudicando a qualidade de vida.
Os pacientes devem ser avaliados antes do início do tratamento, com
hemograma, creatinina, AST/ALT, VHS e PCR. Antes do início dos
imunossupressores, devem ser solicitadas as sorologias para
hepatites virais, até mesmo pelo valor no diagnóstico diferencial.
Indivíduos que farão uso dos imunossupressores biológicos devem
ser investigados para tuberculose com a realização de radiografia de
tórax e PPD (derivado de proteína purificada). Os IGRA (interferon
gamma release assay) são métodos mais caros e menos disponíveis,
porém mais específicos para diagnóstico de tuberculose latente e
podem também ser utilizados. Se o paciente sem tuberculose ativa
(se tiver tuberculose ativa deverá primeiramente tratar a doença) ou
epidemiologia positiva (se tiver epidemiologia positiva deverá
receber profilaxia independentemente de exames) apresentar sinais
sugestivos à radiografia, PPD > 5 mm ou IGRA positivo, deverá
receber quimioprofilaxia com isoniazida 300 mg/d por 6 meses. De
maneira geral, os reumatologistas aguardam de 2 a 4 semanas para
iniciar o biológico após o início da profilaxia, mas dados do Centers
for Disease Control and Prevention (CDC) permitem que seja iniciado
tão logo o paciente esteja em uso da isoniazida (Winthrop et al.,
2005).
4.3.5.1 Anti-Inflamatórios Não Hormonais (AINHs) e corticoides
4.4.2 Periférica
São denominadas EpAs periféricas aquelas que possuem como
manifestação mais importante o acometimento das articulações não
axiais. Neste caso, qualquer padrão de acometimento pode ser
considerado (oligoarticular, poliarticular, pequenas ou grandes
articulações) e o acometimento das articulações da coluna e das
sacroilíacas ou estão ausentes ou são menos significativas.
Nas formas periféricas, também pode haver acometimento do
aparelho periarticular, com entesite, tenossinovite e bursite
inflamatórias. Nas formas periféricas, chama bastante a atenção a
ocorrência de dactilite, que nada mais é do que a inflamação
concomitante das articulares, ênteses e bainhas tendíneas de um ou
mais dedos, causando uma inflamação difusa que os deixa
edemaciados e eritematosos. Devido ao seu aspecto, cunhou-se o
termo “dedo em salsicha” para descrê-lo (Figura 4.14).
Figura 4.14 - Paciente com dactilites no quarto pododáctilo esquerdo e terceiro pododáctilo
direito
Fonte: Case Report: A Psoriatic Arthritis Patient with Dactylitis & Enthesitis, 2018.
a) Radiografias
4.4.6 Manejo
Inicialmente, o paciente deverá receber orientações sobre o
prognóstico da doença. A fisioterapia deve ser realizada de maneira
sistemática em todos os estágios da doença, para educação postural,
preservação de amplitude articular e conservação de energia. Assim
que possível, o paciente deve ser orientado a buscar a prática de
exercício aeróbico e resistido de maneira rotineira, pois são
associados a melhor controle dos sintomas e menor dano cumulativo
articular. Pela característica anquilosante, exercícios de flexibilidade
são igualmente bem-vindos.
Em relação aos hábitos, é essencial cessar o tabagismo e manter
dieta com níveis adequados de cálcio. A chance de osteoporose deve
ser frequentemente acessada conforme os protocolos específicos
(ver capítulo Doenças dos ossos e cartilagens).
No que se refere ao tratamento medicamentoso, para todas as
formas de EpA o tratamento inicial será com AINHs. Nessa categoria
de AA, o AINH é considerado droga modificadora de doença e deve
ser usado de maneira contínua. Os efeitos colaterais (renais,
gastrintestinais e hepáticos) devem ser monitorizados com acesso
clínico e laboratorial periódico.
Uma vez que não haja resposta, uma diferença essencial se refere ao
perfil de acometimento do paciente. Nos quadros
predominantemente axiais, a segunda droga de tratamento será
diretamente um imunossupressor biológico (Ward et al., 2019), de
preferência um anti-TNF. Nos casos de artrite periférica, os
imunossupressores MTX, leflunomida e sulfassalazina podem ser
considerados antes da passagem para o imunossupressor biológico.
As particularidades dessas medicações são encontradas no Quadro
4.2.
De maneira geral, os anti-TNF (descritos no Quadro 4.2) são
equivalentes nas EpAs, porém, o etanercepte parece ser menos eficaz
para os quadros de uveíte e doença inflamatória intestinal (Ward et
al., 2019).
O uso de corticoides sistêmicos deve ser evitado nos pacientes com
EpA, pois apresenta poucos benefícios em relação ao AINH e pior
perfil de efeitos colaterais a longo prazo. Uma possível exceção são
os quadros de artrite relacionados às doenças inflamatórias
intestinais, nos quais o corticoide estaria indicado pelas
manifestações intestinais. Em pacientes com oligo ou monoartrite, o
uso de corticoide intra-articular pode ser considerado como ponte
até que o imunossupressor faça efeito.
O uso de antibióticos está indicado na vigência de quadro vigente que
os justifique, como cervicite ou uretrite por Chlamydia trachomatis –
neste caso, azitromicina 1 g, dose única –, ou infecção entérica –
podendo-se optar também pela azitromicina na dose de 500 mg a 1 g
por dia por 1 a 3 dias. O tratamento empírico com antibióticos não
parece mudar a chance de evolução para artrite crônica (Barber et al.
2013).
Os pacientes com manifestações oculares são geralmente manejados
com corticoide ocular. Os quadros mais graves ou recorrentes podem
se beneficiar de imunossupressão (MTX, sulfassalazina ou anti-
TNF).
Em pacientes com quadro cutâneo, pode-se lançar mão de terapia
tópica com corticoide, análogos de vitamina D e retinoicos. Doença
mais sistêmica se beneficia de MTX, anti-TNF ou outros biológicos
específicos para psoríase.
Por fim, pacientes com doença inflamatória intestinal são
geralmente seguidos em conjunto com a Gastroenterologia. É
normal que usem imunossupressores sistêmicos como a azatioprina
e os anti-TNF pela própria indicação intestinal. Pelo efeito sobre o
intestino adjuvante, a sulfassalazina é geralmente uma droga
tentada.
Como dito anteriormente, foge ao escopo desta obra detalhar todas
as linhas de terapia para os casos mais difíceis de EpA. Na prática,
raramente um paciente com EpA será seguido pelo clínico
generalista isoladamente, pois a sua monitorização requer
conhecimentos bastante específicos. De todo modo, as linhas
terapêuticas iniciais para os casos mais brandos foram devidamente
descritas anteriormente.
Clinicamente, como se
apresenta um paciente com
uma artropatia autoimune?
Os pacientes com artropatias autoimunes se apresentarão
especialmente com quadro de artrite crônica de
características inflamatórias e o acometimento de
estruturas periarticulares (ênteses, bainhas tendíneas e
bursas) é bastante frequente.
Quais são os principais
grupos de síndromes
clínicas que sugerem
vasculite sistêmica?
5.1 INTRODUÇÃO
As vasculites sistêmicas formam um grupo de doenças heterogêneas
que apresentam, em comum, um processo inflamatório na parede
vascular, podendo levar à diminuição de sua luz e trombose
secundária ou à ruptura de sua parede e consequente sangramento.
A maioria das vasculites sistêmicas inicia-se com sintomas
constitucionais inespecíficos, que podem ser confundidos com uma
série de outras doenças, dificultando muito o diagnóstico.
Sem tratamento, muitos dos pacientes com vasculites sistêmicas
evolui para óbito. O tratamento controla os sintomas e pode levar a
remissões prolongadas.
As vasculites primárias possuem baixa incidência na população. No
que diz respeito à faixa etária de acometimento, esta varia conforme
o tipo de vasculite. Por exemplo, a púrpura de Henoch-Schönlein
predomina em crianças, a arterite de Takayasu em adultos com idade
inferior a 40 anos, e a arterite de células gigantes é predominante em
adultos acima de 60 anos. Ainda não foi identificado fator etiológico
comum, porém se sabe que os vírus das hepatites B e C possuem
correlação com vasculites, em especial, a poliarterite nodosa e a
vasculite por crioglobulinas, respectivamente. Além disso, especula-
se que diversos agentes microbianos ou ambientais, como o
citomegalovírus ou o estreptococo, podem ocasionalmente
desencadear vasculite.
De maneira ampla, todos os sintomas que são causados pelas
vasculites decorrem de oclusão de vasos com sofrimento a jusante.
Com a destruição dos vasos, pode ocorrer também extravasamento
de elementos do sangue para os tecidos adjacentes. Quando os vasos
estão expostos ao ambiente (como nos vasos dos capilares
pulmonares), ocorrem síndromes hemorrágicas. A caracterização
das síndromes vasculíticas depende da compreensão desse
mecanismo fisiopatológico elementar.
Uma vez compreendido o mecanismo básico, toma-se como regra
geral que as vasculites nada mais são do que síndromes isquêmicas.
A manifestação clínica dependerá, então, do tamanho do vaso que
está comprometido. É justamente por essa razão que as
classificações de vasculites, sendo a última a do Consenso de Chapel
Hill de 2012 (Jennette et al., 2013), tomam como base o tamanho do
vaso acometido (Figura 5.1).
Figura 5.1 - Classificação atual das vasculites primárias
Fonte: adaptado de Pathogenesis of antineutrophil cytoplasmic autoantibody-mediated
disease, 2014.
Fonte: Livedo reticularis ulcerado em paciente com anticorpo anticardiolipina tipo IgA,
2005.
Figura 5.8 - Mão caída por acometimento do nervo radial em paciente com poliarterite
nodosa
Quanto às alterações laboratoriais, as mais encontradas são
leucocitose, elevação da VHS e anemia discreta. FR e FAN podem
estar presentes em títulos baixos.
Para o diagnóstico, entretanto, é necessário excluir outras doenças
sistêmicas infecciosas, neoplásicas ou inflamatórias. Para a
confirmação por achados mais específicos de PAN, biópsias
mostrando a vasculite necrosante em parede arterial podem ser
realizadas em lesões cutâneas, músculos ou nervos. Os
microaneurismas podem ser demonstrados em angiografias renais
ou mesentéricas.
São associações fortemente sugestivas de PAN:
livedo, mononeurite múltipla, dor muscular e
perda da função renal com hipertensão em
paciente com provas de atividade inflamatória
elevadas.
6.1.1 Fisiopatologia
Nem todas as infecções por EBHGAs causam FR, ou seja, nem todas
as cepas desse grupo de bactérias são reumatogênicas, e nem todos
os indivíduos são suscetíveis. As cepas que causam piodermites e
infecções de tecidos moles não causam faringite nem FR, mas podem
causar glomerulonefrite aguda. Das cepas que causam faringite, as
ricas em proteína M, uma proteína externa da parede bacteriana, são
as mais artritogênicas.
A patogenia da doença ainda não é totalmente compreendida, mas
parece ocorrer por meio de reação cruzada, ou seja, mimetismo
molecular: a similaridade entre sequências antigênicas do ser
humano e do EBHGA levaria à produção de anticorpos induzida pela
infecção estreptocócica e seria direcionada contra antígenos
bacterianos, mas que agiriam contra estruturas do hospedeiro,
desencadeando a lesão tecidual (Galvin et al., 2000).
Pacientes com FR apresentam altos níveis de anticorpos contra a
proteína M, que pode atuar como um superantígeno, induzindo a
uma resposta imune excessiva e autoimunidade. Ela impede a
fagocitose e a ação do complemento e ajuda a fixar a bactéria na
célula epitelial da faringe.
De 2 a 3% das crianças com infecção estreptocócica desenvolverão
FR, o que mostra predisposição genética de alguns indivíduos, que
pode estar associada à presença de antígenos leucocitários humanos
(HLAs) nas diversas populações, como DR4 em caucasianos, DR2 em
negros e DR3 em indianos. Em nosso meio, foi observada maior
frequência do HLA-DR7 (Visentainer et al., 2000) e, possivelmente,
do HLA-DR53 (Guilherme et al. 1991). Foram descritos aloantígenos
na superfície de células B, não associados ao sistema HLA,
denominados 883 e D8/17, que teriam forte associação à FR. No
entanto, outros estudos não confirmaram esses achados, e o
marcador genético definitivo para a doença ainda não foi
encontrado.
6.1.2 Epidemiologia
A FR geralmente afeta indivíduos entre 5 e 15 anos, de qualquer raça
e em qualquer parte do mundo. Em adultos, os ataques iniciais
acontecem no final da segunda e no começo da terceira décadas de
vida. Sua incidência varia de acordo com a região geográfica e as
características socioeconômicas de cada população. Baixos níveis de
higiene, alta densidade demográfica e difícil acesso ao sistema de
saúde favorecem o seu aparecimento. Um grande estudo mundial
estimou a prevalência de doença reumática valvar no Brasil em 0,2%
(Seckeler; Hoke, 2011), muito próxima da prevalência de países de
alta renda da América do Norte (Watkins et al., 2017). Contudo,
muito provavelmente há uma importante subnotificação,
considerando que os dados epidemiológicos são gerados
principalmente por grandes cidades, nas quais, de fato, a prevalência
deve ser menor do que nas áreas mais carentes do nosso país.
Estima-se que ela seja responsável por cerca de 60% de todas as
doenças cardiovasculares em crianças e adultos jovens. No Brasil, é
responsável por 8.000 a 10.000 cirurgias cardíacas por ano na rede
pública.
Os EBHGAs são a causa mais comum da faringite bacteriana,
atingindo principalmente crianças e jovens com idades entre 5 e 18
anos. Para se ter uma ideia do fardo social da FR, se considerada a
incidência anual de 10 milhões de faringotonsilites estimada para o
Brasil, teoricamente haveria 30.000 casos novos de surto reumático
ao ano, sendo que, destes, metade poderia evoluir com sequela
valvar (Barbosa et al., 2009).
6.1.3 Manifestações clínicas
O quadro clínico geralmente se inicia após 2 a 4 semanas de um
quadro de faringite estreptocócica, entretanto, um terço dos
pacientes não se lembra da faringite.
A média de idade de acometimento é de 7 anos, principalmente na
faixa dos 5 aos 15 anos. Quase sempre o surto reumático será uma
síndrome febril prolongada, fazendo diferencial com síndromes
infecciosas. Não existe exame laboratorial, sinal ou sintoma
característico da FR no surto agudo. O diagnóstico baseia-se no
reconhecimento e na combinação de alguns achados clínicos e
laboratoriais.
A identificação de alguns sinais
ecocardiográficos tardios extremamente típicos
confirma o diagnóstico retrospectivamente.
#IMPORTANTE
Tardiamente, o achado de estenose mitral ao
exame físico sugere muito febre reumática no
passado, dado que a doença é responsável por
mais de 70% das estenoses mitrais (Horstkotte
et al., 1991).
6.1.3.3 Neurológicas
A coreia de Sydenham, “coreia menor” ou “dança de San Vito”, é a
desordem neurológica que se manifesta por movimentos abruptos,
involuntários e desordenados nos membros, face e língua. Os
movimentos geralmente são mais evidentes em um lado do corpo,
podem ser completamente unilaterais (hemicoreia), desaparecem
durante o sono e pioram com o estresse.
A coreia ocorre em menos de 10% dos pacientes, tem predomínio em
meninas e aparece mais tardiamente que as demais manifestações,
cerca de 6 a 8 semanas após a infecção estreptocócica, por isso pode
ocorrer isoladamente e dar o diagnóstico de FR sem a presença de
outros critérios. Tem duração de 1 semana a 2 anos (média de 8 a 15
semanas). Transtornos emocionais, choro e alterações psiquiátricas
podem ser observados nesses pacientes.
Alguns indivíduos com coreia podem não ter sintoma, mas o exame
cardiológico deve ser realizado com atenção, para tentar
diagnosticar sopro persistente.
#IMPORTANTE
Uma maneira de exacerbar os sintomas da
coreia no exame físico é solicitar que a criança
faça múltiplas tarefas ao mesmo tempo.
6.1.3.4 Tegumentares
6.1.4 Tratamento
A medida mais eficaz para o tratamento da FR é não deixar que ela
ocorra. É justamente pela terapia adequada e precoce da
faringotonsilite estreptocócica que os países desenvolvidos
conseguiram reduzir tanto a incidência de surtos de febre reumática.
Uma vez que os sinais clínicos apontem para faringotonsilite
estreptocócica possível, o paciente deve ser submetido ao teste
rápido por swab de orofaringe para identificação do agente. Se a
pesquisa for negativa e a suspeita for alta, o indivíduo deve ser
submetido à cultura de orofaringe (Shulman et al., 2012).
Uma vez confirmada a infecção, é mandatória a
prescrição de antibiótico. Essa é a profilaxia
primária da febre reumática e a principal
garantia de que o hospedeiro não vai gerar
memória imunológica.
O Quadro 6.2 aponta as principais drogas usadas para tratamento da
faringoamigdalite. É importante lembrar que, na maior parte dos
esquemas, 10 dias serão necessários para a completa erradicação da
bactéria. De maneira geral, a benzilpenicilina (penicilina G
benzatina) é uma droga confiável e com garantia de aderência, sendo
necessária apenas uma dose. Pacientes alérgicos a penicilina podem
usar macrolídeos ou clindamicina.
Quadro 6.2 - Profilaxia primária
Fonte: Diretrizes Brasileiras para o Diagnóstico, Tratamento e Prevenção da Febre
Reumática, 2009.
3. Hemartrose:
a) Trauma;
b) Anticoagulação;
c) Distúrbios de coagulação;
d) Fraturas;
e) Sinovite vilonodular pigmentada.
4. Tumor:
a) Condrossarcoma;
b) Osteoma osteoide;
c) Doença metastática.
6. Osteoartrite:
a) Variante erosiva.
7. Degeneração intra-articular:
a) Rompimento meniscal;
b) Osteonecrose;
c) Fraturas.
Legenda: (A) normal; (B) não inflamatório; (C) inflamatório; (D) séptico; (E) hemorrágico.
7.1 INTRODUÇÃO
A complexidade das vias metabólicas no corpo humano é
absolutamente fascinante. A maneira como substâncias são
constantemente formadas e destruídas e as vias regulatórias que
permitem a máxima otimização deste processo ainda são apenas
parcialmente conhecidas pela ciência. É intrigante ao pesquisador
que erros maiores não ocorram na maior parte das vezes e que
apenas porcentagens pequenas de indivíduos sofram com
imperfeições metabólicas. Nesta seção, esta obra se dedicará a
estudar estes indivíduos e as suas particularidades.
Como em muitas especialidades da Medicina, a Reumatologia possui
também as suas condições que se devem a distúrbios de depósito; ou
seja, condições reumáticas que ocorrem pelo excesso de formação ou
déficit no depuramento de alguma substância, que, uma vez
acumulada, gera distúrbios no funcionamento normal dos órgãos,
tecidos e sistemas.
Poderíamos nos ater a diversos órgãos acometidos pelas doenças
metabólicas, mas, devido ao propósito restrito desta obra,
discutiremos especialmente as artropatias. Boa parte dos processos
que levam uma articulação a adoecer por acúmulo de substâncias
ocorrem devido à precipitação de cristais intra-articulares. De
maneira ampla, esse fenômeno patológico é conhecido como artrite
microcristalina.
Compreender como esses cristais são formados e como a sua
presença causa lesão articular são passos fundamentais a todo
clínico que pretenda tratar uma artrite microcristalina.
7.2 FISIOPATOLOGIA
7.2.1 Ácido úrico
O ácido úrico é a principal forma pela qual o organismo excreta
produtos finais das vias das purinas. As purinas, por sua vez, são
constituintes fundamentais do código genético de todas as células e
potentes mediadores intracelulares de uma infinidade de reações. A
partir de glutamina e sacarídeos, diversas reações ocorrem para a
formação de inosina. A inosina, por sua vez, a depender da via que
percorre, pode originar guanina, adenina ou ser convertida em
hipoxantina. Todas as reações até este nível são reversíveis e o
balanço químico é definido pela necessidade corporal de cada
substância. Uma vez que hipoxantina se acumula, a enzima xantina
oxidase (XO) é capaz de convertê-la em xantina, e, após, em ácido
úrico. A Figura 7.1 ilustra essa via metabólica. Muitas espécies
possuem ainda a enzima uricase, capaz de converter o ácido úrico
em alantoína, uma substância muito mais solúvel, e, portanto, mais
facilmente excretada por via renal do que o ácido úrico. O ser
humano, porém, não possui esta enzima ativa e acumula, por
consequência, mais ácido úrico. Entende-se que o ácido úrico deva
ter alguma função evolutiva para o ser humano, possivelmente
relacionada à capacidade de poupar volemia e manter atividade
simpática (Álvarez-Lario; Macarrón-Vicente, 2010).
Figura 7.1 - Vias enzimáticas envolvidas na síntese e depuração das purinas
Nota: no ser humano, a enzima uricase é ineficaz, aumentando a chance de acúmulo de
ácido úrico.
Legenda: guanosina monofosfato (GMP); adenosina monofosfato (AMP).
Fonte: arquivo pessoal do dr. Jean Souza.
7.2.3 Inflamação
A mera presença do cristal intra-articular, em geral, não é condição
suficiente para que a destruição articular ocorra. A lesão ocorre
porque o cristal é reconhecido pelos fagócitos como uma estrutura
não pertencente ao organismo, através de receptores
reconhecedores de padrão. Neste caso, os receptores envolvidos
geralmente são os TLR (Toll-Like Receptor) 2 e 4 (Liu-Bryan et al.,
2005).
Após entrar na célula, a estrutura do cristal, a sua eletronegatividade
e inclusive as moléculas que o cobrem são capazes de ativar o
inflamossomo. O inflamossomo é um agregado de proteínas
conectadas que passam por alterações conformacionais dependentes
de vários estímulos para gerar a resposta imune inata. A ativação do
inflamossomo culmina, em última análise, com liberação de IL-1.
A IL-1, por sua vez, é uma potente ativadora da resposta imune
celular, através do aumento da expressão de adesinas, vasodilatação,
sensibilização das vias fagocitárias, estimulação termorregulatória
talâmica e redução do limiar álgico. Na prática, fenômenos mediados
por IL-1 são geralmente muito inflamatórios, com francas
manifestações flogísticas teciduais e aumento da temperatura local e
corporal.
Em resumo, é a resposta imune ao cristal que causa problemas ao
paciente e, não, o cristal em si. Quando ocorre a depuração deste e
finda o estímulo do sistema imune inato, a articulação volta ao seu
estado basal e os sintomas melhoram. Contudo, a exposição cíclica a
esse processo pode gerar sequelas articulares irreversíveis, gerando,
em última análise, uma osteoartrite secundária.
7.3 ARTRITE MICROCRISTALINA
7.3.1 Gota
Gota é uma doença articular inflamatória, causada pelo depósito de
cristais de monourato de sódio no tecido articular e periarticular,
relacionada ao aumento da concentração sérica de ácido úrico
(hiperuricemia). Como características gerais destacamos as
seguintes: ataques recorrentes de artrite inflamatória aguda;
artropatia crônica; acúmulo de cristais de urato em forma de
depósitos tofáceos; nefrolitíase por ácido úrico; a nefropatia em
pacientes gotosos é mais comumente causada por outras
comorbidades associadas.
7.3.1.1 Epidemiologia
Compromete predominantemente homens de meia-idade, a partir
da quinta década de vida, mas existe aumento gradual na prevalência
tanto em homens quanto em mulheres nas últimas décadas. Após os
60 anos, a prevalência entre os sexos torna-se equivalente.
Raramente se observa gota em mulheres na pré-menopausa, a não
ser em casos de erro inato do metabolismo, associada a doenças
subjacentes ou ao uso de medicação.
A incidência e a prevalência de gota são paralelas à incidência e
prevalência de hiperuricemia na população geral. Muitos pacientes
com ácido úrico elevado não têm gota. Os principais fatores
correlacionados com aumento do ácido úrico e prevalência de gota
são aumento da longevidade da população; aumento da prevalência
de hipertensão; aumento do uso de diuréticos e baixas doses de ácido
acetilsalicílico; aumento no consumo de álcool; aumento da
prevalência de obesidade; aumento da prevalência de síndrome
metabólica; aumento da prevalência de doença renal terminal;
aumento do número de transplantes e uso de ciclosporina; aumento
de doença coronariana e insuficiência cardíaca congestiva.
7.3.1.2 Manifestações clínicas
a) Hiperuricemia assintomática
7.3.2.5 Tratamento
Tratam-se as crises com AINHs, esvaziamento da articulação por
meio de punção articular e corticoides injetáveis. Os pacientes devem
ser orientados a evitar traumatismos articulares, que são, com
frequência, precipitantes de crises. O uso crônico de colchicina pode
reduzir a frequência e a intensidade das crises. As doses de AINH e
colchicina são as mesmas descritas no tratamento da gota.
7.3.3 Doença articular por deposição de outros
cristais
Uma série de outros cristais pode produzir inflamação aguda
osteomuscular. Dentre eles, destaca-se a deposição de cristais de
hidroxiapatita e de oxalato de cálcio.
São causas de doença articular por deposição de outros cristais:
1. Cristais de hidroxiapatita: causas frequentes de bursites e
tendinites calcificadas. Em alguns casos, podemos encontrar a
síndrome de Milwaukee (artropatia destrutiva que acomete
principalmente mulheres idosas). Associa-se também a doenças do
colágeno, hiperparatireoidismo, insuficiência renal crônica e
calcinose tumoral. À microscopia, são pequenos, não birrefringentes
e mais bem visualizados se corados com vermelho S de alizarina. O
tratamento é inespecífico;
2. Cristais de oxalato de cálcio (CaOx): a forma primária é rara
(distúrbio metabólico e hereditário), e a secundária é decorrente de
doença renal terminal. Como achado radiográfico, também podemos
encontrar condrocalcinose, indistinguível da deposição de cristais de
pirofosfato de cálcio. O líquido sinovial nesse caso não costuma ser
inflamatório, com contagem total de menos de 2.000 leucócitos,
com predomínio de mononucleares. O tratamento das crises agudas
inclui AINHs, colchicina e/ou corticosteroides, associado ao
aumento na frequência das sessões dialíticas. Já na doença
hereditária, há relatos de melhora após transplante hepático.
Quais são as apresentações
clínicas da gota?
A gota pode se apresentar como:
a) Gota aguda;
b) Gota articular crônica;
c) Gota tofácea;
d) Gota renal (insuficiência renal ou litíase).
No espectro das doenças relacionadas ao ácido úrico,
podemos ter também simplesmente a hiperuricemia
assintomática.
O que diferencia as formas
primárias de osteoartrite e
osteoporose das formas
secundárias?
8.1 INTRODUÇÃO
Neste capítulo, esta obra se dedicará a estudar os distúrbios
intrínsecos ao funcionamento fisiológico do tecido ósseo e
cartilaginoso. Como se tratam de estruturas complexas que
funcionam baseadas na interação entre diversas células, tecido
conectivo e material inorgânico, o mau funcionamento desses
sistemas produz uma infinidade de desordens. Existem muitas
condições raras relacionadas ao tema e que fogem do escopo do
livro, contudo, 2 condições extremamente frequentes na população
fazem parte deste grupo de doenças.
Como são condições prevalentes e fortemente relacionadas ao
envelhecimento, é essencial que todo clínico as conheça muito bem.
8.2 OSTEOARTRITE
A osteoartrite, artrose ou osteoartrose (OA) é a mais comum das
doenças reumatológicas. A OA determina comprometimento de
aproximadamente 1 quinto da população mundial, sendo
considerada uma das causas mais frequentes de incapacidade
laborativa após os 50 anos. Pode ser definida como uma síndrome
clínica que representa a via final comum das alterações bioquímicas,
metabólicas e fisiológicas que ocorrem, de forma simultânea, na
cartilagem hialina e no osso subcondral. A doença compreende uma
variedade de subgrupos com fatores etiológicos distintos, tendo,
como substrato patológico, a diminuição do espaço articular devido
à perda cartilaginosa e à formação de osteófitos.
8.2.1 Fisiopatologia
A cartilagem normal tem 2 componentes principais: a matriz
extracelular, rica em colágeno e proteoglicanos, e os condrócitos,
inseridos na matriz. Os componentes da matriz são responsáveis por
suas características de elasticidade e resistência. Os condrócitos são
responsáveis pela síntese da matriz extracelular e por sua renovação
por meio de proteinases, mantendo equilíbrio entre a formação e a
degradação de matriz.
Existem 2 fisiopatologias diferentes para a OA, a depender de sua
etiologia. Na primeira e mais importante, existe um déficit relativo
intrínseco à cartilagem que a torna incapaz de manter o seu ciclo de
destruição e reparação. Essa alteração intrínseca decorre de fatores
diversos em múltiplos componentes da cartilagem que se referem à
qualidade do colágeno e do osso subcondral, à eficiência dos
condrócitos, à eficiência das células inflamatórias, ao perfil de
citocinas, ao balanço entre fatores de crescimento e degradação etc.
(Chen et al., 2017). Isoladamente, essas alterações, que são genéticas
e epigenéticas (ou seja, mediadas por mecanismos não sequenciados
no DNA, mas que alteram a expressão final do DNA), não
necessariamente representam doença cartilaginosa e articular, mas,
uma vez que o indivíduo é exposto a mecanismos de insulto
cartilaginoso, é possível que os fatores descritos contribuam para
que o ciclo de recuperação articular seja insuficiente para manter a
homeostasia (Hochberg, 2018). Esse é um modelo para explicar a
osteoartrite chamada de primária – aquela que é intrínseca ao
indivíduo.
Um segundo modelo é necessário para explicar a osteoartrite
secundária. Nesta situação, a cartilagem é intrinsecamente
competente, mas doenças bem definidas externas à cartilagem
impedem que o ciclo natural e fisiológico de destruição e reparo se
mantenha, causando um saldo cartilaginoso negativo. É evidente
que, se o indivíduo se expuser a outros fatores estressores da
articulação (Quadro 8.1), o processo provavelmente irá acelerar
ainda mais.
As características histopatológicas principais da OA são a perda focal
e gradual da cartilagem articular e o comprometimento do osso
subcondral. Dentre os fatores relacionados ao estresse articular, o
envelhecimento talvez seja um dos mais importantes. Com o passar
dos anos, os componentes da matriz alteram-se: ocorrem
irregularidades na rede de colágeno, e os proteoglicanos alteram-se
qualitativa e quantitativamente, diminuindo sua capacidade de reter
água. Ocorre rarefação dos condrócitos em alguns sítios e hipertrofia
em outros, e passam a ser mais catabólicos, desequilibrando o
processo de formação e degradação da matriz.
O resultado desse processo é uma cartilagem que contém menos
água, condrócitos mal distribuídos e desequilibrados, proteoglicanos
alterados e colágeno fissurado, o que leva a uma matriz menos
resistente e menos elástica, mais suscetível aos traumas mecânicos,
com espessura diminuída. A cartilagem começa a apresentar
microfraturas e, posteriormente, fissuras verticais, atingindo o osso
subcondral.
O sistema imune também participa dessa insuficiência articular.
Uma vez que componentes da matriz são expostos, são interpretados
pelo sistema imune inato como partículas associada a dano, por
conseguinte ativando macrófagos, que irão secretar enzimas
proteolíticas e recrutar outras células de defesa ao espaço articular
(Liu-Bryan; Terkeltaub, 2015). Em síntese, a lesão cartilaginosa
prévia contribui para algum grau de inflamação que, por sua vez,
contribui para mais perda de volume da cartilagem, fechando o ciclo.
A redução do volume e das propriedades da cartilagem e as suas
irregularidades levam a maior atrito entre as estruturas, redução do
espaço articular e alteração dos vetores normais de força dentro da
articulação. Com isso, aparecem áreas de maior pressão sobre o osso,
contribuindo para a esclerose subcondral e surgimento de espículas
ósseas, denominadas osteófitos nas margens articulares.
Compreender a marcha histopatológica permite elucidar a tríade
radiológica clássica da OA: redução do espaço articular, esclerose
óssea subcondral e formação de osteófitos.
Finalmente, cabe lembrar que a OA não é uma doença
exclusivamente da cartilagem e, sim, de todo o aparelho locomotor.
O processo mecânico articular associado a fatores comportamentais
e ambientais podem causar frouxidão ligamentar e capsular,
hipotrofia muscular e diminuição da sensibilidade proprioceptiva
articular, contribuindo para a perpetuação da doença.
8.2.2 Manifestações clínicas
A seguir, apresentaremos as principais características da OA
primária. Ao final do capítulo, serão feitas considerações sobre a
forma secundária.
Trata-se da condição intrinsecamente articular, sem causa
secundária (externa à cartilagem) definida. Também pode ser
chamada de idiopática (embora esse termo esteja cada vez mais em
desuso, visto que já existem múltiplas causas genéticas definidas).
As principais características da OA primária são a evolução lenta e o
acometimento de articulações típicas.
A prevalência está correlacionada a idade, sexo, localização da
doença e método do diagnóstico – OA simplesmente radiográfica ou
síndrome osteoartrítica – com predominância no sexo feminino nos
principais sítios (joelho e mãos).
Se considerada a prevalência de OA radiográfica, é incomum abaixo
dos 40 anos, quando a prevalência entre os sexos é semelhante.
Entre a quarta e a quinta década e no período da menopausa, a
incidência aumenta bastante com a idade e torna-se mais frequente
em mulheres. Estima-se que atinge 85% da população até os 64 anos
e, aos 85, torna-se praticamente universal. Contudo, se considerada
a síndrome osteoartrítica (ou seja, o quadro clínico típico), no Brasil,
atinge 4% dos indivíduos até 35 anos e 15% aos 55 anos (Fuller;
Pereira, 2016).
Além disso, constitui importante causa de morbidade e é a principal
indicação de cirurgias de próteses de quadril e joelho.
Existe uma gigantesca dissociação clínico-
radiológica, de tal forma que, na prática clínica,
não se pode fazer o diagnóstico de osteoartrite
apenas baseando-se na imagem.
8.2.3 Diagnóstico
8.2.3.1 Achados radiológicos
Nota: há total perda de espaço articular e esclerose subcondral com grandes cistos.
Fonte: arquivo pessoal do dr. Rodrigo Antônio Brandão Neto.
8.2.4 Tratamento
8.2.4.1 Não farmacológico
2. Fatores sistêmicos:
a) Hemocromatose;
b) Ocronose;
c) Hiperparatireoidismo;
d) Doença de Wilson;
e) Gota;
f) Condrocalcinose;
g) Acromegalia;
h) Hemoglobinopatias;
i) Síndromes de hipermobilidade.
Fonte: Lightspring.
Até 30% das OPs são secundárias (West, 2015), então, na avaliação
de um paciente com OP, sempre se devem descartar causas
secundárias potencialmente tratáveis. Por isso, em pacientes sem
outros sinais evidentes de doença, como síndromes reumáticas,
distúrbios gonadais, estigmas neoplásicos ou desordens absortivas,
recomenda-se a coleta dos exames sugeridos no Quadro 8.4. Os
exames laboratoriais podem revelar:
a) Anemia, que pode ser sugestiva de mieloma múltiplo ou doenças
crônicas que se associam, por vezes, à OP;
b) Hipercalcemia com hipercalciúria e hipofosfatemia sugestivas de
hiperparatireoidismo;
c) Hipocalciúria, que pode indicar deficiência de vitamina D, baixo
consumo de cálcio ou má absorção intestinal.
8.3.5 Tratamento
8.3.5.1 Medidas gerais e preventivas
9.1 LOMBALGIA
9.1.1 Introdução
Definimos dor lombar como a dor que ocorre no território das
vértebras lombares, podendo se estender aos membros. Na literatura
anglo-saxã, é mais bem definida com o termo “low back pain” e se
refere ao território entre a borda inferior das costelas e a dobra
glútea. Essa definição, mais ampla, permite também englobar as
patologias dos rotadores de coxa e estabilizadores de pelve, bem
como a sacroileíte, como causa de dor lombar baixa.
Chamamos de lombalgia primária (ou mais comumente mecânica,
idiopática ou inespecífica) aquela que decorre presumivelmente da
interação entre músculos, discos, ossos, tendões, fáscias e
ligamentos de maneira inadequada e disfuncional (causando,
portanto, dor), sem, no entanto, haver substrato macroscópico e
anatômico bem definido para a sintomatologia.
Isso não quer dizer que um paciente com lombalgia mecânica não
possa ter achados degenerativos na sua anatomia, apenas entende-
se que os achados não explicam a sintomatologia. Quando uma dor
lombar é atribuída a um achado específico (como uma herniação, por
exemplo), diz-se que é uma dor lombar secundária.
Com relação à temporalidade, de maneira geral, entende-se como
aguda uma dor que dura menos de 4 a 6 semanas; subaguda até 12
semanas; e crônicas as dores com mais de 12 semanas.
A dor lombar constitui uma causa frequente de morbidade e
incapacidade, sendo sobrepujada apenas pela cefaleia na escala dos
distúrbios dolorosos que afetam o homem. Cerca de 84% dos adultos
apresentarão algum episódio de lombalgia durante a vida, mas a
grande maioria será autolimitada (Cassidy; Carroll; Côté, 1998).
O maior desafio ao clínico é diferenciar as causas benignas das
potencialmente graves e que, portanto, beneficiar-se-iam de
investigação adicional. Estudos robustos indicam que a realização de
imagens, por exemplo, em pacientes sem sinais de alarme, não ajuda
a melhorar a acurácia diagnóstica e não promove melhores
desfechos (Chou et al., 2009). Como dito anteriormente, topografar a
real causa de uma dor lombar é muito difícil mesmo com exames de
imagem avançados e, geralmente, haverá grande dissociação entre
os achados radiológicos e a verdadeira causa de dor do paciente.
A dor lombar possui forte componente laboral, sendo a maior causa
de afastamento e invalidez no nosso país (Meziat Filho; Silva, 2011).
É importante conhecer o histórico trabalhista do paciente e ter em
mente que muitas das queixas poderão ser eventualmente
amplificadas pelo cenário social e laboral.
A dor lombar possui forte componente laboral,
sendo a maior causa de afastamento e invalidez
no nosso país.
9.1.2 Triagem
O racional de se realizar uma triagem nas lombalgias se baseia no
fato de que a maioria das lombalgias (idiopáticas) não terá
tratamento específico. Em geral, a triagem permite estabelecer a
necessidade de exames subsidiários e avaliação de outro especialista
para conduta intervencionista.
As causas mais graves são cânceres (com metástase óssea), infecções
(discites e espondilites) e mielopatia – que pode decorrer das 2
entidades descritas anteriormente ou mesmo por degeneração
instável, como uma fratura espontânea com deslizamento de
vértebra. Em geral, essas entidades exigem conduta em horas a, no
máximo, dias.
As causas menos graves, mas que possivelmente precisarão de
tratamento diferente de analgesia e reabilitação são: fraturas,
radiculopatias e estenose de canal medular.
Na estenose de canal medular, a queixa é geralmente de uma
radiculopatia múltipla intermitente, frequentemente bilateral, com
um fenômeno bem conhecido que é a claudicação neurogênica. O
paciente refere dor, fraqueza e parestesia após ficar um determinado
tempo em pé ou andando. Em geral, o tempo e a distância para
iniciar a dor podem ser precisados pelo paciente. Acredita-se que
decorra de redução do forame (que ocorre com extensão da coluna) e
aumento da pressão venosa intraliquórica. É uma doença
especialmente de idosos devido à degeneração dos ligamentos e
articulações intervertebrais.
Algumas nomenclaturas de interesse nas doenças lombares são:
1. Espondilólise: se refere à fratura da pars interarticular da vértebra
(Figura 9.1). Ocorre mais comumente em atletas jovens,
especialmente nas vértebras lombares mais baixas (L4 e L5).
Contudo, colunas muito degeneradas também podem fraturar;
2. Espondilolistese: se refere ao deslizamento da vértebra, saindo do
seu eixo normal – pode ser a evolução de uma espondilólise instável.
Algumas nomenclaturas de interesse nas
doenças lombares são a espondilólise e a
espondilolistese.
Figura 9.1 - Sítios de fratura eventual na pars interarticular (espondilólise)
Fonte: adaptado de Princekareem, 2012.
Geralmente, na história e no exame físico do paciente será possível
encontrar elementos que ajudem a triá-lo. Esses elementos são
conhecidos como sinais de alarme (red flags) e devem aumentar a
suspeição do clínico sobre eventuais diferenciais potencialmente
graves ou com tratamento alternativo. É possível que pacientes com
red flags se beneficiem de imagem mais precoce. Esta obra optou por
selecionar red flags em consonância com as recomendações do
American College of Physicians (Chou et al., 2011), que se encontram
resumidas no item 9.1.4.
De maneira geral, o paciente deve ser questionado sobre febre, perda
ponderal, dor noturna ou rigidez matinal. Na parte de antecedentes,
deve-se recordar de acessar diagnóstico prévio de câncer,
osteoporose, uso de drogas injetáveis ou eventual bacteriemia
recente (por exemplo, tratamento recente para endocardite). Por
fim, a ocorrência de sintomas neurológicos também é sugestiva de
patologia específica. A refratariedade ao tratamento é considerada
um sinal de alarme, mas é importante reforçar que a dor lombar
crônica é frequentemente de difícil tratamento, por carregar consigo
quase sempre elementos de dor crônica e fragilidade de cunho social
ou trabalhista, sem necessariamente simbolizar causa grave de dor
lombar.
9.1.3 Exame físico
O exame físico é talvez a ferramenta mais importante na avaliação
do paciente com lombalgia. Evidentemente, na história, emergirão
possíveis responsáveis, mas é no exame físico que a maioria dos
clínicos tem dificuldade, ou por falta de conhecimento ou por falta
de tempo. Deve-se ter em mente, portanto, que não existe
atendimento rápido de paciente com lombalgia. O exame físico
invariavelmente será longo e, por vezes, permeado por necessidade
de manobras distratoras ou confirmatórias, pois alguns achados são
amplificados ou falseados por litígio trabalhista (por exemplo,
fraqueza ou sinais de irritação radicular).
Na inspeção estática, a primeira etapa inclui a busca por
deformidades ou assimetrias, além de sinais cutâneos de doença.
Alguns pacientes se queixarão de dor lombar, por exemplo, e terão
alterações cutâneas sugestivas de infecção por herpes-zóster.
A inspeção dinâmica presta-se especialmente para a amplitude. O
paciente deve ser orientado a fletir, estender, rodar e fletir
lateralmente a coluna. Devem ser registradas eventuais dores e
limitações. Pacientes com artrose de corpo vertebral ou disco
costumam ter mais dor à flexão ao passo que pacientes com
acometimento de facetas e apófises em extensão têm mais dor em
extensão.
É possível que sintomas de estenose de canal se exacerbem com a
extensão da coluna.
A palpação deve ser voltada especialmente aos corpos vertebrais,
pois fraturas tendem a apresentar dor intensa e pontual. Ademais, é
possível, na palpação, encontrar bandas tensas com eventual ponto
gatilho, simbolizando síndrome miofascial.
A síndrome miofascial é uma desordem muscular devida à
contratura patológica e sustentada de uma banda muscular com
restrição passiva ao alongamento. O achado no exame físico de
banda tensa com ponto específico (ponto gatilho) com amplificação
da dor, reprodução dos sintomas relatados e sintomas satélites,
como parestesia, irradiação ou choque, confirma o diagnóstico. O
tratamento é feito com reversão física do ponto gatilho (com
agulhamento ou técnicas manuais de soltura).
A síndrome miofascial é uma desordem
muscular devida à contratura patológica e
sustentada de uma banda muscular com
restrição passiva ao alongamento.
O exame neurológico é uma parte muito importante do exame do
paciente com dor lombar com suspeita de radiculopatia, mielopatia
ou estenose de canal. O exame precisa ter achados positivos em
pacientes com radiculopatia ou mielopatia, praticamente anulando a
chance dessas etiologias quando está normal. No caso da estenose de
canal, frequentemente é positivo também, mas, pela sua
intermitência, pode ser normal. O exame consiste em análise da
sensibilidade superficial, sensibilidade profunda, motricidade e pela
realização das manobras irritativas.
A maior parte das radiculopatias por compressão discal (a causa
mais comum de radiculopatia), ocorrem no nível de L5 e S1. O exame
neurológico dessas condições é quase totalmente obtido com o
exame do pé do paciente, o que o torna bastante conveniente. O
Quadro 9.1 demonstra os principais achados sensitivos e motores
associados à disfunção dessas raízes.
Quadro 9.1 - Exame neurológico resumido, focado nas radiculopatias baixas
Até 2010, grande importância era dada à palpação dos tender points
no paciente com fibromialgia. Contudo, o que se observa no paciente
é uma dor difusa, reprodutível em muitos pontos, por vezes fora do
mapa estabelecido pelos tender points. Assim, mesmo nos critérios
classificatórios (ver adiante), os pontos deixaram de ser
contabilizados ao exame. O importante no exame físico do paciente
com fibromialgia é que ele seja palpado em diversos ventres
musculares, em todos os quadrantes do corpo, nos territórios axiais
e periféricos. O achado é típico e chama a atenção, com grande
sensibilização álgica, realmente difusa e desproporcional ao
estímulo realizado.
Até 2010, grande importância era dada à
palpação dos tender points no paciente com
fibromialgia. Contudo, o que se observa é uma
dor difusa, reprodutível em muitos pontos, por
vezes fora do mapa estabelecido pelos tender
points.
9.2.3 Diagnóstico
O diagnóstico de fibromialgia é feito em pacientes com história
crônica de dor difusa, fadiga, sintomas neurocognitivos e sono não
reparador. Frequentemente, pacientes com fibromialgia também
apresentarão outros distúrbios funcionais, como síndrome do
intestino irritável, dispepsia funcional, cistite intersticial ou cefaleia.
Na ausência de comorbidades associadas, toda a investigação
laboratorial e radiológica é normal. Teoricamente, nenhum exame é
necessário para o diagnóstico de fibromialgia. Nesse sentido, a
American Pain Society inclusive propôs novos critérios diagnósticos
para a doença (Arnold et al., 2019), nos quais a presença de outras
entidades que poderiam causar dor não exclui o diagnóstico de
fibromialgia. Dentro de uma abordagem holística, alguns exames
poderiam ser solicitados para avaliar comorbidades que dificultem o
tratamento da fibromialgia, como infecções virais e distúrbios
endocrinológicos. Nesse sentido, esta obra sugere os seguintes
exames ao longo do seguimento: hemograma, íons séricos, função
renal, velocidade de hemossedimentação, proteína C reativa,
vitamina D, sorologia para vírus da hepatite C e HIV e hormônio
tireoestimulante. Entendemos que os últimos anos de estudo
caminham no sentido de considerar a fibromialgia uma entidade de
diagnóstico totalmente clínico (Arnold et al., 2019; Macfarlane et al.,
2017).
Tendo isso em mente, uma possível polêmica acadêmica emerge
quando analisados os últimos critérios para fibromialgia, propostos
pelo American College of Rheumatology em 2010 (Wolfe et al., 2010).
Nessa ocasião, era condição obrigatória para a entrada no critério a
ausência de outras patologias que explicassem a dor. Talvez
situações como essa explicitem bem a problemática do uso dos
critérios diagnósticos na prática clínica.
9.2.4 Tratamento
O tratamento baseia-se em medidas não farmacológicas e
farmacológicas. Os objetivos são alívio da dor, melhora da qualidade
do sono, manutenção ou restabelecimento do equilíbrio emocional e
melhora do condicionamento físico e da fadiga. Objetiva-se o
controle dos sintomas, não a cura. Embora a fibromialgia não curse
com morte, deficiências ou deformidades, os estudos mostram
grande impacto na qualidade de vida dos pacientes.
O tratamento não farmacológico é a parte mais importante do
manejo da fibromialgia. Sabe-se que a resposta aos medicamentos é
pobre e que as medidas comportamentais participam da própria
fisiopatologia da doença, sendo elementares. Nas últimas diretrizes
do European League Against Rheumatism (Macfarlane et al., 2017),
recomenda-se uma primeira consulta apenas para explicação sobre
a doença, medida que, em diversos pacientes, faz grande diferença,
pois, comumente, são indivíduos que passaram em dezenas de
outros profissionais que nunca lhe forneceram uma resposta.
A afirmação de que a doença não é grave e que o tratamento é
prolongado, individualizado e com resposta que depende muito mais
da ação do paciente do que do médico são essenciais para se criar um
vínculo, tão necessário a essas pessoas, e se alinhar as expectativas
sobre o futuro.
No ato do diagnóstico e da orientação, já se pode recomendar a
introdução de exercícios físicos, a terapia atualmente com o maior
nível de evidência e o maior grau de recomendação. Os exercícios
podem ser resistidos ou aeróbios, idealmente ambos, com
progressão lenta e gradual. Inicialmente, o paciente deve se
exercitar, idealmente, por, pelo menos, 90 minutos por semana. É
comum que os pacientes observem melhora progressiva à medida
que, paulatinamente, aumentam a carga e o volume dos treinos.
Na ausência de resposta, outras medidas não comportamentais
como meditação (especialmente as modalidades autocontemplativas
como o modelo mindfulness) ou psicoterapia devem ser sugeridas.
Nesse momento, o paciente pode se beneficiar da terapia
farmacológica, sempre orientado sobre a baixa expectativa de
melhora, na ausência das alterações comportamentais.
As principais drogas utilizadas para o tratamento da fibromialgia são
a duloxetina, a pregabalina, a amitriptilina, a ciclobenzaprina e o
tramadol (Macfarlane et al., 2017). O Quadro 9.2 resume as principais
características para recomendar um ou outro medicamento.
Quadro 9.2 - Tratamento farmacológico para fibromialgia
Como tratar as síndromes
álgicas do aparelho
locomotor que cursam com
desregulação das vias
dolorosas, como a
fibromialgia e a lombalgia
crônica?
As medidas farmacológicas funcionam muito mal para os
pacientes com dor crônica. Deve-se lançar mão de medidas
comportamentais, sendo o exercício físico regular a
medida com maior grau de recomendação e nível de
evidência.
Quais são as principais
formas de artrite idiopática
juvenil?
10.1 INTRODUÇÃO
De maneira geral, muitas entidades reumáticas acometem
indivíduos em faixa pediátrica, especialmente as conectivopatias e
as vasculites. Algumas delas são especificamente relacionadas às
crianças, com raras manifestações nos pacientes adultos. Tal
fenômeno decorre do amadurecimento do sistema imune
adaptativo, momento no qual eventuais iniciadores de doença
autoimune podem fazer emergir uma propensão a doença latente,
geralmente relacionada a mecanismos multifatoriais.
No que se refere às síndromes autoinflamatórias, com herança
gênica mais bem definida e, portanto, menor peso dos fatores
ambientais para o desenvolvimento de doença, a presença infantil se
faz ainda mais marcante, com a maior parte das doenças
acometendo indivíduos antes da adolescência.
Pelas características desta obra, voltada ao generalista, não nos
deteremos às mais diversas manifestações pediátricas das doenças
reumáticas, tampouco estudaremos as doenças autoinflamatórias.
Contudo, faz-se necessário o olhar para a principal doença
reumática da faixa pediátrica, importante não apenas como alvo
diagnóstico, mas, também, como diagnóstico diferencial das artrites
na infância. Trata-se da artrite idiopática juvenil.
10.2 ARTRITE IDIOPÁTICA JUVENIL
10.2.1 Introdução
A Artrite Idiopática Juvenil (AIJ) é a forma mais comum de artrite na
infância e uma das doenças crônicas mais frequentes dessa fase, com
causa desconhecida. Na verdade, trata-se de um grupo de desordens
que tem a artrite inflamatória crônica como manifestação.
O diagnóstico requer a combinação de dados da história e do exame
físico. Exames laboratoriais podem ser úteis. Para ser incluída como
AIJ, deve haver artrite persistente na mesma articulação, com
duração mínima de 6 semanas, com início antes dos 16 anos, além de
exclusão de outras causas.
A AIJ acomete crianças e adolescentes em todos os países do mundo.
As taxas de prevalência variam de 20 a 86/100.000 crianças por ano,
e as taxas de incidência variam entre 0,83 e 22,6/100.000 crianças.
Não existem estudos epidemiológicos brasileiros sobre a AIJ. Em
50% dos casos, a doença mantém atividade também na fase adulta
(Figura 10.1).
10.2.2 Espectro clínico
A AIJ é um diagnóstico de exclusão e inclui uma lista de subtipos que
têm em comum os seguintes critérios gerais: idade de início inferior
a 16 anos; artrite persistente na mesma articulação com duração de,
no mínimo, 6 semanas; e exclusão de outros tipos de artrite em
crianças. Já como critério de artrite para AIJ é necessário que haja
derrame articular ou 2 dos seguintes critérios: limitação articular;
dor articular; e dor à movimentação.
Figura 10.1 - Artrite nas mãos em indivíduo com artrite idiopática juvenil
A International League of Associations for Rheumatology (ILAR),
atualmente, classifica a AIJ em 5 subtipos (Petty et al., 2004):
a) Sistêmica;
b) Oligoartrite – persistente e estendida;
c) Poliartrite – com Fator Reumatoide (FR) positivo ou negativo;
d) Artrite relacionada à entesite;
e) Artrite psoriásica juvenil.
Crianças que possuem critérios para AIJ, mas não conseguem ser
identificadas em um subgrupo são ditas portadoras de artrite
indiferenciada.
10.2.2.1 Forma sistêmica ou doença de Still
Figura 10.6 - Dactilite e distrofia ungueal em criança com artrite idiopática juvenil – forma
psoriásica
10.2.5 Tratamento
O tratamento compreende acompanhamento multidisciplinar, que
inclui educação do paciente e da família, cuidados domiciliares,
ajustes sociais, entre outros, e começa durante o diagnóstico.
Os pacientes com manifestação articular leve podem ser tratados
com anti-inflamatórios não hormonais isolados, os quais controlam
a inflamação e a dor e são utilizados por longos períodos. Corticoides
sistêmicos também são utilizados continuamente no controle da
inflamação e estão reservados a casos de serosite, acometimento
ocular, febre e artrites não responsivas aos anti-inflamatórios não
hormonais. Injeções intra-articulares de corticoides podem ser
utilizadas em casos de mono/oligoartrites.
Dois terços dos pacientes com AIJ não respondem ao anti-
inflamatório isolado, sendo necessária a introdução de drogas de
base. Os fatores de mau prognóstico são persistência de
manifestações sistêmicas após os primeiros 6 meses de doença;
início e curso poliarticular ou oligoartrite estendida; sexo feminino;
presença de FR; rigidez matinal persistente; tenossinovite; nódulos
subcutâneos; anticorpos antinucleares; envolvimento precoce de
pequenas articulações de mãos e pés; aparecimento precoce de
erosões. São opções terapêuticas nesse grupo: metotrexato,
sulfassalazina, leflunomida, ciclosporina ou medicamentos com
ação biológica (especialmente os anti-TNF).
Nos pacientes com AIJ sistêmica, existe uma certa tendência à
prescrição precoce de anti-IL-1 ou anti-IL-6, devido ao mecanismo
da doença.
#IMPORTANTE
Nos pacientes com AIJ sistêmica, existe uma
certa tendência à prescrição precoce de anti-IL-
1 ou anti-IL-6, devido ao mecanismo da doença.