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João Arsénio Nunes

BREVE CURSO DE
HISTÓRIA DO SÉCULO XX

Lisboa, 2014
2

LIVRO I

A EUROPA NO MUNDO DE ENTRE


GUERRAS
3

ÍNDICE

Lição 1: O início do Século XX.


Apogeu da Europa. Imperialismo e colonialismos……………………………………..7

Lição 2: Belle Époque.


Massificação e urbanização. As classes sociais………………………………………..13

Lição 3: Sistemas e movimentos políticos.


Socialismo e nacionalismo……………………………………………………………..18

Lição 4: Origens da I Guerra Mundial.


O problema balcânico. A formação das alianças. O conflito sobre Marrocos…………27

Lição 5: A I Guerra Mundial.


Nacionalismo dos combatentes e das populações. Da guerra de movimento à guerra de
posições. Consequências económicas, sociais e políticas da guerra prolongada. O
movimento de Zimmerwald. A intervenção americana e o wilsonismo………………….38

Lição 6: A I Guerra Mundial.


Extensão das hostilidades. Agravamento das condições sociais e desenvolvimento do
movimento político contra a Guerra. A Rússia: da revolução de Fevereiro de 1917 à
revolução de Outubro…………………………………………………………………..44

Lição 7: A I Guerra Mundial.


A Rússia: da revolução de Outubro a Brest-Litovsk. A intervenção americana. O fim do
Império Austro-Húngaro e a derrota alemã. A Revolução de Novembro de 1918 na
Alemanha.A conferência de Paz de Paris………………………………………………51

Lição 8: O pós-guerra.
O novo quadro político europeu. O sistema de Versalhes e a fundação da Sociedade das
Nações………………………………………………………………………………….57
4

Lição 9: A crise do pós-guerra.


Revoluções e contra-revoluções. A formação da Terceira Internacional e dos Partidos
Comunistas……………………………………………………………………………..68

Lição 10: A crise da Guerra e do pós-guerra em Itália.


O movimento das ocupações de fábrica. O fascismo: das origens à “marcha sobre
Roma”. Formação, características e impacto internacional do regime fascista………..80

Lição 11: Da estabilização à crise (1).


A Restauração política e social na Europa ocidental………………………………….93

Lição 12: Da estabilização à crise (2).


A Restauração política e social na Europa central, oriental e setentrional……………101

Lição 13: Origens da Revolução Russa…………………………………………….109

Lição 14: A Revolução Russa de 1917……………………………………………...126

Lição 15: A Rússia soviética.


Guerra civil e comunismo de guerra. A NEP. A morte de Lenine e a crise de
direcção……………………………………………………………………………….138

Lição 16: Socialismo num só país e estalinismo.


A divisão no Partido e a crise da NEP. A derrota das oposições de esquerda e de direita.
Colectivização e industrialização aceleradas. Os Planos Quinquenais. A revolução
social e cultural. Concentração do poder e repressão. O Grande Terror……………..144

Lição 17: De Weimar a Hitler (1). …………………………………………………161

Lição 18: De Weimar a Hitler (2)…………………………………………………. 172


5

Lição 19: As relações internacionais após Locarno e as origens da II Guerra


mundial…………………………………………………………………………………. 187

Lição 20: A Segunda Guerra Mundial…………………………………………………201

Lição 21: A Segunda Guerra Mundial (continuação)…………………………………214

Lição 22: O genocídio dos judeus e de outros povos ( por Irene Pimentel)………….. 222

Lição 23: As Resistências antifascistas…………………………………………………228

Bibliografia………………………………………………………………………………248
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7

Lição 1: O início do Século XX. Apogeu da Europa. Imperialismo e colonialismos.1

As cadeiras A Europa e o Mundo entre Guerras e A Europa e o Mundo após 1945


constituem um conjunto que tem como objecto a História do Século XX.
A expressão “história do século XX” tem suscitado, nos últimos anos, um certo
debate, que está relacionado com o seu nascimento como domínio disciplinar com
autonomia. Ela é aqui concebida no sentido cronológico mais simples, aquilo que se
passa na viragem do século é o ponto de partida, como é, aliás, o do Robert Paxton2.
Outros autores, com relevo por exemplo para o livro, muito discutido, do Eric
Hobsbawm, A Era dos Extremos, talvez o livro de História do século XX que mais
impacto teve nos últimos anos e mais debates provocou, começam em 1914.
O que justifica que falemos da História do Século XX como disciplina, que já não é
um simples prolongamento da “História Contemporânea”, expressão em que
tradicionalmente incluíamos toda a história desde a Revolução Francesa até aos nossos
dias, é que há tendências de fundo novas, que só no final do século se tornaram
perfeitamente definidas, mas que retrospectivamente podemos ver que se começaram a
delinear muito mais cedo. Tendências que têm a ver, antes de mais, com o fim da
cultura e da política europeias, em suma, da Europa como centro dos acontecimentos
mundiais. Centro que ainda foi até à II Guerra mundial. No entanto, desde a I Guerra
mundial que as tendências para a perda de centralidade da Europa se começavam a
desenhar.
O princípio do século XX é caracterizado por uma intensidade máxima da influência
da Europa e da cultura europeia (e no seu conjunto do mundo de origem europeia, se

1
Transcrição pela aluna Carla Sofia Carvalho da aula de 09.10.04, revista e corrigida pelo
docente.
2
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century,Harcourt Brace College Publishers, Fort
Worth, 3ª ed., 1997.
8

incluirmos os EUA), um peso máximo na economia mundial e uma influência cultural e


política máximas. É a época do apogeu do Império Britânico, da grande voga dos
poemas do Rudyard Kipling e do seu “ fardo do homem branco”, da noção de um papel
civilizador da Europa no mundo, e da ideia de que o futuro, concebido como progresso
constante, teria como consequência primeira a europeização dos costumes e dos modos
de vida em todo o mundo. Era essa a noção dominante e que reflectia realidades bem
materiais.
O capítulo que Robert Paxton dedica à caracterização do princípio do século XX
tem o título significativo “A Europa no zénite”, quer dizer, trata-se do apogeu da
influência europeia no mundo. O continente europeu desempenhava um papel
desproporcionado em relação à sua dimensão geográfica no conjunto do planeta. Esse
papel e peso têm a ver em primeiro lugar com o peso demográfico relativo, que é
máximo na História. Nunca tinha havido proporcionalmente tantos Europeus em relação
ao resto do mundo como em 1914: nesse ano há 25% de Europeus na população
mundial. Foi o ponto máximo e a partir daí a tendência tem sido de declínio: hoje é uma
percentagem inferior a 9%. Isto é resultado de uma explosão demográfica que nós
associamos à situação dos países do chamado Terceiro Mundo, em particular dos países
atrasados, mas que começou por ser um facto do continente europeu a partir de meados
do século XVIII.
O peso demográfico dos Europeus e o seu avanço em termos técnicos e económicos
teve como consequência que esse foi também um período de máxima expansão
demográfica dos habitantes da Europa para todo o mundo, através da colonização e da
emigração. O apogeu do colonialismo na transição do século XIX para o século XX, e o
seu colapso passado pouco mais de cinquenta anos, foram talvez dos factos mais
importantes da história contemporânea e que concentraram num período curto um
grande conjunto de transformações. Ou seja, a partir da segunda metade, e sobretudo do
último quartel do século XIX, um dos factos fundamentais da História mundial é o
desenvolvimento sistemático da ocupação e da presença colonial de um conjunto de
potências europeias em todos os continentes, excepto nas Américas, onde a influência
crescente vai ser a dos EUA. Normalmente essas potências europeias já tinham
possessões coloniais que em muitos casos datavam do século XVI ou até antes. Mas a
maior parte delas eram posições estratégicas no litoral. Eram depois, a partir de certa
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altura, também postos de comércio já com algum significado de penetração para o


interior, estabelecimento de plantações e exploração de minas. Mas não correspondiam
a uma ocupação de território por gentes vindas dos países europeus, nem a uma
utilização sistemática dos recursos e das potencialidades dos territórios coloniais. Essa
utilização sistemática dos territórios, em termos de exploração de matérias-primas, de
criação de mercados, de realização de investimento, dá-se fundamentalmente na
segunda metade do século XIX e levará a curto prazo a conflitos entre as várias
potências. Conflitos que são temporariamente arrumados na Conferência de Berlim de
1884, o que não obstou a que alguns anos depois se reacendessem fenómenos de
competição aguda. O colonialismo foi uma ocupação militar sistemática dos territórios,
destinada à sua exploração também sistemática e à sua ocupação política, justificada
pela noção de um papel civilizacional dos povos colonizadores em relação aos
colonizados. Este movimento acentuou-se nas últimas décadas do século XIX e nas
primeiras do século XX. Pareceu, enquanto se desenvolveu, um fenómeno irreversível,
um facto definitivo, que só podia significar progresso, embora desde cedo algumas
vozes e alguns espíritos tenham posto em causa essa noção do papel civilizador ou
progressivo do colonialismo. O colapso inicia-se logo a seguir à II Guerra mundial, com
a independência da Índia em 1947, e terminará vinte e sete anos depois com a
independência das colónias portuguesas, que foram as últimas a libertarem-se, a porem
termo ao domínio colonial.
Para além da colonização, há também o facto da emigração. No princípio do século
XX havia cerca de um milhão de emigrantes por ano, principalmente da Europa para as
Américas do Norte e do Sul, e para a Rússia Asiática, estes provenientes sobretudo da
Rússia europeia .
Este fenómeno de expansividade dos Europeus assentava numa forte superioridade
industrial, financeira e comercial. Embora, nomeadamente no domínio industrial,
comece a haver sinais de uma alteração que se vai confirmar plenamente no século XX
com a ascensão industrial dos EUA e também do Japão. Antes de 1900 e na primeira
década do século XX, dos países europeus, é sobretudo a Alemanha que regista um
crescimento mais rápido, mas cronologicamente a primeira potência industrial tinha
sido a Grã-Bretanha, que mantém um largo domínio financeiro e comercial do mundo.
A bolsa de Londres é a mais importante, é em geral em Londres que as companhias de
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seguros e de navegação têm sede. O investimento estrangeiro no mundo é sobretudo de


origem europeia, aliás, o investimento europeu nos EUA era no princípio do século XX
dez vezes maior do que o investimento americano na Europa.
A esta superioridade económica correspondia a colocação de capitais de origem
europeia nos EUA, no Brasil, no Chile, na Argentina, na Pérsia (o actual Irão), na
Turquia, na China, isto para além das regiões de ocupação colonial europeia directa. A
China perde na prática a sua independência, a partir da penetração que há na segunda
metade do século XIX e que culmina, justamente em 1900, na intervenção militar
conjunta das grandes potências europeias (Grã-Bretanha, França, Alemanha, Império
austro-húngaro, Itália e Rússia), dos EUA e do Japão. Há zonas da China, sobretudo as
portuárias com particular interesse económico, onde os Europeus passam a ter tribunais
próprios, alfândegas próprias, em suma, zonas e até regiões inteiras que são subtraídas à
soberania chinesa.
Quanto à África, é toda ela partilhada entre potências europeias, à excepção da
Etiópia e da Libéria. A África do Sul tem uma história própria, mas depois da guerra
dos Boers (1899-1902) passa a integrar a Commonwealth britânica.
O fenómeno colonial articula-se com a expansão económica das potências
europeias, suscitando análises e debates teóricos importantes em torno, nomeadamente,
daquilo que ficou conhecido como o imperialismo. Em todas as épocas houve
impérios: o Império Romano, o Império Napoleónico, etc. Mas aquilo que há de
específico no imperialismo do final do século XIX é que ele surge como uma tendência
necessária da evolução das grandes potências e do alargamento dos seus espaços
económicos de influência. Esta tendência expansionista está ligada a uma mudança da
própria natureza do sistema económico capitalista, que se expandiu desde as suas
origens no século XVI mas, sobretudo depois, com o triunfo da ordem político-social
burguesa nos países da Europa Ocidental a partir da Revolução Francesa, sob o signo do
liberalismo. O capitalismo tinha-se apresentado e justificado na base da ideia de ser o
regime da livre iniciativa, isto é, a expansão das relações capitalistas, a liberdade de
investimento, a liberdade da contratação de força de trabalho, justificava-se pela
liberdade de iniciativa dos indivíduos e pela vantagem económica que havia no
encontro livre dos “factores de produção”, o trabalho e o capital. A essa filosofia da
livre iniciativa e do livre-câmbio se atribuía também um sentido democrático, isto é, a
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expansão do liberalismo económico vinha associada à consolidação das liberdades


políticas e ao estabelecimento de regimes políticos que, seja sob a forma de república ou
de monarquia constitucional, em todos os casos, instituíam um Parlamento eleito, pelo
menos, por aqueles que tinham alguns bens e que portanto eram autónomos
economicamente e tinham um direito de participação na comunidade política. O
liberalismo económico, o capitalismo, estava assim associado ao liberalismo político, às
liberdades, às instituições eleitas, e tendencialmente à ideia de democracia, porque
aqueles que tivessem suficiente capacidade e espírito de iniciativa para serem
proprietários tinham também o direito de voto. Aquilo que se verifica no último quartel
do século XIX, nomeadamente a partir da crise que ficou conhecida como a Grande
Depressão de 1873-96, depois de cerca de vinte e cinco anos de expansão que sucedera
à época das revoluções de 1848, é que se entra num período prolongado de crise
económica, de depressão, de falências, que tem como consequência a concentração da
produção, ou seja, a tendência para a fusão dos capitais que resistem e a liquidação
daqueles que não têm essa capacidade e são votados à proletarização.
Esta concentração gerou um fenómeno novo que é o monopólio, isto é, o
nascimento em diversos ramos da indústria de grandes aglomerados económicos com
capacidade de controlarem todo um sector da produção, ou noutros casos até de
associarem o controlo de uma produção com o de todo o ciclo produtivo, por exemplo
nas metalúrgicas e siderurgias desde a extracção do minério, ao seu transporte e à sua
transformação (trust). Ou noutros casos ainda, a concentração gera fenómenos de
associação entre produtores, que no mesmo ramo se associam para controlarem os
preços, as condições de fabrico, dominarem o mercado, criarem condições tais que
tornam impossível a entrada de novos concorrentes (cartel).
Por outro lado, esgotaram-se as possibilidades oferecidas pelos mercados nacionais
para a realização de lucro destas grandes actividades. Só se tornam verdadeiramente
lucrativos os negócios que tenham possibilidade de explorar matérias-primas muitas
vezes provenientes de territórios longínquos e que tenham a possibilidade de assegurar
mercados de venda para além do território nacional. E se numa primeira fase este
fenómeno foi um dos que motivaram a expansão colonial, aquilo que cada vez mais se
vai verificar à medida que caminhamos para o final do século XIX é que os próprios
limites dos impérios coloniais, isto é, dos territórios detidos por cada nação, deixam de
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ser suficientes e entra-se na fase da rivalidade inter-imperialista. Ou, dito de outra forma
e como escreveram os teóricos do imperialismo, aproximadamente com a Conferência
de Berlim de 1884 terminou a fase da distribuição do mundo entre as grandes potências,
a partir daí vai-se entrar (mais marcadamente a partir do final do século) nas lutas pela
redistribuição, em que naturalmente as potências que entraram mais tarde na ocupação
de territórios coloniais, na formação do seu império colonial, são as que se sentem mais
prejudicadas, sobretudo se durante os mesmos anos registaram uma consolidação
económica, um fortalecimento das suas capacidades industriais e financeiras, e é o que
acontece no caso da Alemanha. Um dos grandes países europeus que só se unificou
como Estado em 1871, que não detinha colónias e que ocupou um tempo, no último
quartel do século, em adquirir algumas colónias africanas, mas muito poucas para
aquilo que eram as suas necessidades de potência que entretanto se tinha tornado, como
se tornou a partir da década de 1890, a maior potência industrial europeia. Essa situação
vai ser um factor de agudização da concorrência entre as potências satisfeitas e aquelas
que estavam insatisfeitas e aprofundar o fenómeno do imperialismo.
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Lição 2: Belle Époque. Massificação e urbanização. As classes sociais.3

Um dos fenómenos que nos finais do século XIX mais impressionou os observadores
contemporâneos, e que está na base da emergência da Sociologia como ciência, foi
aquilo a que chamamos a irrupção das massas na vida social e política.
Expressão fundamental da massificação foi a urbanização, a formação das grandes
cidades. Entre 1800 e 1900, o número de cidades europeias com mais de 100 mil
habitantes passa de 22 para 120. Destas cento e vinte, nas vésperas da I Guerra mundial,
cinco (Londres, Berlim, Paris, Viena e São Petersburgo) tinham já mais de um milhão
de habitantes e Moscovo tinha cerca de um milhão.

3
Transcrição pelo aluno Thiers Calado da aula de 16.10.04, revista e corrigida pelo docente.
14

Mas esta urbanização não se distribui uniformemente e há neste aspecto, como em


muitos outros, um contraste muito acentuado entre a Europa Ocidental, especialmente a
Europa do Norte, por um lado, e pelo outro a Europa de Leste, incluindo a Rússia
europeia, e a Europa do Sul. A maior parte destas concentrações urbanas encontram-se
na Europa Ocidental e Setentrional, embora também já existam cidades importantes no
Norte de Itália.
A urbanização significa um novo modo de socialização. As relações sociais próprias da
vida rural e associadas, em geral, a um domínio espiritual da Igreja, tendem a ser postas
em causa. Em lugar das relações de proximidade pessoal e familiar, nas cidades
organiza-se a vida social em novos tipos de associação. Surgem por exemplo os
sindicatos, associados à emergência da indústria e da classe operária. Também os
partidos políticos, que a partir do último quartel do século XIX começam a organizar
grandes massas de população, e também neste aspecto o movimento operário, através
dos partidos socialistas, foi pioneiro. No que diz respeito à formação da opinião, a Igreja
perde a posição de hegemonia que tradicionalmente detinha para passar a sofrer a
concorrência, em primeiro lugar, da imprensa. Desde meados do século XVII que se
publicavam jornais e na segunda metade do século XVIII, em Inglaterra, já se
publicavam quotidianos ainda hoje muito influentes, como por exemplo o Times. Em
Portugal a imprensa é mais tardia, mas o Diário de Notícias já se publica desde 1864.
Porém só no final do século XIX é que aparece outro tipo de imprensa, com difusão e
efeitos comparáveis ao que é hoje a televisão – a imprensa “popular”, recorrendo ao
sensacionalismo, consumida por grandes massas de população.
No entanto, uma grande parte das populações europeias, na viragem do século, vive
ainda no campo. Mesmo num país relativamente industrializado como a França, a maior
parte da população vive da agricultura e sobretudo na Europa do Sul e do Leste a grande
maioria da população é agrária.
A questão agrária é uma das grandes questões sociais no século XIX e ainda por toda a
primeira metade do século XX, porque, ao contrário do que alguns teóricos tinham
previsto, a sua diminuição não foi tão rápida nem tão contínua como fora vaticinado.
Nomeadamente os socialistas viram-se confrontados com a permanência de sectores
agrários com mais ou menos importância. De facto, no princípio do século XX, só na
Inglaterra é que a população urbana era já superior à população rural. Isto vai colocar
15

um problema político, porque a permanência do peso importante do campesinato


significa a relevância de uma classe ligada à propriedade pessoal e privada e portanto
com comportamentos e posições diferentes dos das classes operárias.
Porém, há um grande contraste entre a situação do campesinato na Europa desenvolvida
– Europa Ocidental, em particular do Norte – e a Europa de Leste e do Sul. Ao passo
que, em países como a Inglaterra, França e Alemanha e países escandinavos se
consolidou um campesinato independente, moderno, que abastecia os mercados criados
pela indústria, na Europa menos desenvolvida – na Europa do Sul e na de Leste,
incluindo parte da Alemanha – permanecem grandes sectores de propriedade em que
um único indivíduo ou família são proprietários de grandes extensões de terra, como
acontecia na Península Ibérica e concretamente, em Portugal, no Alentejo.
Essa permanência do latifúndio está ligada a níveis de vida muito baixos, propriamente
miseráveis, e a comportamentos que oscilam entre revoltas súbitas por vezes violentas,
como sempre existiram desde os tempos medievais, sem continuidade e sem articulação
com projectos de transformação social, por um lado, e por outro o predomínio da
passividade e do alheamento da política, causado justamente pelas condições de vida
miseráveis e pelo analfabetismo.
Já na Europa mais desenvolvida o campesinato, porque constitui uma classe de
proprietários individuais que preza essa propriedade, era em geral uma classe
conservadora. Imediatamente a seguir à I Guerra mundial, num período de grande crise
social em que o operariado vai desenvolver movimentos revolucionários importantes, a
maior parte desse campesinato vai servir como apoio da ordem burguesa,.
Apesar do desenvolvimento económico que o último quartel do século XIX conheceu e
do consequente aumento dos níveis médios de vida, entre 1880 e 1914, nos três países
mais desenvolvidos, Inglaterra, França e Alemanha, onde o poder de compra duplicou,
uma grande parte das populações continuou a viver em condições de precariedade.
Segundo Robert Paxton, em Londres, no princípio do século, cerca de 1/3 da população
vivia na pobreza.
Na Alemanha, em 1883, é introduzido pela primeira vez um esquema de seguros
sociais, no governo do Chanceler Bismarck, que foi o primeiro governo a associar uma
política conservadora com um certo paternalismo social, tendo em conta o peso social
crescente da classe operária e a necessidade de lhe dar satisfação para contrariar a
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atracção do partido socialista. Mas este caso alemão esteve durante muito tempo
isolado. Na Inglaterra só em 1911 são criados os seguros de saúde e desemprego. A vida
dos grupos etários mais avançados, dos mais velhos, era muito difícil. É certo que este
problema não atinge grandes massas da população visto que a esperança média de vida
era muito mais baixa que hoje em dia. Nos Balcãs e em Espanha, segundo Paxton, era
de 35 anos4.

Existe muito generalizada a ideia de que, com a Revolução Francesa e com as


revoluções liberais, um pouco por toda a parte, com expressões e tempos diversos, a
Europa após Napoleão se tornou, em geral, burguesa. É um pouco mais complicado e
Arno Mayer, historiador americano, na sua obra A força da tradição5, põe em relevo o
peso da agricultura na economia dos vários países e também o peso da classe senhorial
dos proprietários de terras, nomeadamente a influência própria dos detentores de títulos
nobiliárquicos, quer nos seus domínios, quer ao nível político, nos aparelhos de Estado,
pelo facto de que, em particular em domínios como a diplomacia e as forças armadas,
continuaram a ser seleccionados privilegiadamente elementos de origem nobre. Arno
Mayer pôs em relevo essa importância da aristocracia tradicional mesmo em países
como a França, onde a revolução burguesa foi relativamente precoce, embora também
reconheça uma fusão crescente, nomeadamente através do casamento, entre interesses
da nobreza ligada à propriedade de terras e os da burguesia industrial e financeira.
Embora seja muito divulgada essa imagem dos finais do século XIX como a época da
burguesia, esse domínio era limitado, tanto pela permanência da influência da
aristocracia como pelo facto de que a burguesia desafogada ou rica era uma
percentagem muito pequena da população. A maior parte da chamada classe média era
composta por pequenos proprietários comerciais, lojistas, alguns trabalhadores
especializados (“aristocracia operária”), jornalistas e pequenos intelectuais, por vezes
mesmo médicos e advogados – os engenheiros começam apenas a aparecer –, que se
preocupam muito com a sua imagem de dignidade e procuram imitar os modos de vida

4
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, p.14.
5
Arno J. Mayer, A Força da Tradição. A persistência do Antigo Regime (1848-1914),
Companhia das Letras, São Paulo, 1987. A Introdução é o texto nº2 do Caderno.
17

da burguesia, mas que com frequência vivem em situações de dificuldade e de risco de


degradação social.
Por outro lado, um grupo social que entra em crise no final do século é o artesanato
tradicional, que no entanto continua a constituir uma parte importante da actividade
industrial, mas tende a ser suplantado em termos numéricos pela emergência da classe
operária industrial nos países mais avançados. Na Europa Ocidental desenvolvida, a
classe operária industrial, ou seja os assalariados industriais, constituem, no princípio do
século, cerca de 1/3 da população que, segundo Paxton, é, com oscilações, mais ou
menos a proporção que se manteve até hoje. Por volta de 1900, o grupo social urbano
que começa a registar um crescimento mais rápido é o dos empregados, aqueles a que
na sociologia se chama os “colarinhos brancos” (em oposição aos colarinhos azuis dos
fatos de ganga operários) – empregados de comércio e de serviços, funcionários
públicos, professores. Constituem uma massa crescente de assalariados e nesse aspecto
têm características semelhantes às das classes operárias. Mas têm outro tipo de estatuto
pelo facto de desempenharem não um trabalho físico mas sim intelectual, mesmo que
elementar. Cuidam por isso muito da sua “distinção”, que os governos também
procuram cultivar com políticas apropriadas. Os socialistas vão deparar-se aqui com um
problema semelhante ao colocado pela permanência do campesinato, mas ainda mais
desconcertante para a previsão de que o crescimento da massa dos trabalhadores
significaria também a sua unidade crescente contra os capitalistas. Há de facto algumas
tendências de aproximação (nomeadamente através da sindicalização), mas os aspectos
de diferenciação e até de antagonismo vão revelar-se, em certas conjunturas,
fortíssimos.
Esta transformação social caracterizada pela massificação, urbanização e crescimento
dos assalariados teve importantes repercussões políticas, de que falaremos
seguidamente.
18

Lição 3: Sistemas e movimentos políticos. Socialismo e nacionalismo.6

Há uma ideia exagerada da modernização política da Europa no princípio do século XX.


Se, em esquema, o domínio das aristocracias correspondia à forma de governo
monárquica, a ascensão das burguesias corresponderia teoricamente às democracias e às
repúblicas. De facto, na Europa do princípio do século XIX só existiam duas repúblicas:
a Suíça, uma república federal com origem ainda nas lutas do final da Idade Média, e a
França, que só estabilizou a sua república no último quartel do século XIX. A Terceira
República francesa nasceu um pouco ao acaso. Tinham existido experiências anteriores:
1792–1804, período correspondente à Primeira República, 1848-1852 período da
Segunda República. Em 1870 é novamente proclamada a República, mas esta Terceira
República francesa só se firmou em 1875/76, com a aprovação das leis constitucionais.

6
Transcrição pelo aluno Thiers Calado da aula de 16.10.04, revista e corrigida pelo docente.
19

A República que vai nascer na Europa em terceiro lugar é em Portugal em 1910. Só


depois da primeira Guerra Mundial é que há um maior movimento de emergência de
repúblicas, com a revolução na Alemanha e a formação de novos países na Europa
Central e de Leste. A maior parte desses países adoptam a forma republicana em
resultado do desaparecimento dos Impérios Russo, Alemão e Austro-Húngaro.
Portanto, a forma política dominante na Europa do princípio do século XX é a
monarquia constitucional, sendo que mesmo esse aspecto não é universal. Em 1894,
quando o Czar Nicolau II ascende ao trono, ele faz questão de se afirmar “autocrata de
todas as Rússias”, autocrata porque não depende de nenhum tipo de assembleia. Mas
passados uns anos foi obrigado a conceder a existência de um parlamento – a Duma.
Mesmo nos restantes países europeus, onde existiam assembleias parlamentares, elas
tinham poderes que eram sempre limitados e condicionados pela permanência dos
poderes dos monarcas e pela existência de uma segunda câmara, como em Inglaterra,
onde até 1911 a Câmara dos Lordes tem ainda poder de veto sobre as decisões da
Câmara dos Comuns.
Na Alemanha combinam-se as duas coisas: limitação aos poderes do Parlamento pela
existência dos poderes próprios do rei da Prússia, que é simultaneamente o Imperador
da Alemanha; e limitações derivadas da existência de uma segunda câmara, que não é
eleita. Existem ainda limitações derivadas de sistemas eleitorais específicos, como a
existência na Prússia das três classes de sufrágio, em função dos rendimentos.
Embora o peso crescente da população urbana, a alfabetização, o peso crescente dos
movimentos populares, em especial do movimento socialista, tenda a favorecer
ideologias democráticas e a generalização do voto secreto individual, esta realidade não
é universal. Ao longo do século XIX os Parlamentos aumentaram as suas atribuições, os
seus poderes, e sobretudo a sua base eleitoral, quer dizer, o regime de sufrágio universal
ainda não é absolutamente realizado mas é a tendência geral. Mesmo o próprio
Parlamento da Alemanha é eleito por sufrágio universal, embora o Parlamento da
Prússia não o seja.
Ao mesmo tempo, no final do século XIX, deparamos com tendências de reacção a esta
evolução de sentido democrático, reacção que muitas vezes é assumida e protagonizada
pelos monarcas. A afirmação crescente do movimento socialista gera receios da sua
influência na população. Noutros casos não é o movimento socialista que está em causa
20

– em Portugal, onde 80% da população vive no campo e uma percentagem idêntica é


analfabeta, mas que regista uma urbanização sensível no último terço do século XIX,
verifica-se o crescimento do movimento republicano, que se torna uma presença
política constante. No caso português, vai haver em 1895 e 1901 leis eleitorais que
restringem o sufrágio, que abarca nesse primeiro ano do século XX menos de 10% da
população, leis estas que vão limitar a influência dos republicanos.
Há na Alemanha algumas semelhanças, com a recusa da reforma do direito eleitoral na
Prússia, e a um nível mais geral, ideológico, com a ideia de que a democratização do
sufrágio e dos parlamentos é um factor de subversão que tem de ser contido.
As ideologias, e até teorias mais ou menos sistematizadas de defesa da ditadura,
começam a ganhar expressão nesta época. Segundo Paxton, a década anterior à I Guerra
Mundial “não foi a alvorada mas sim o crepúsculo dos regimes parlamentares, o último
momento antes das complexidades económicas dos anos do pós-guerra substituírem os
parlamentos por planeadores burocráticos e a paixão nacionalista pela ‘eficiência’ do
Estado os substituir por ditadores”7.
Se, por um lado, a urbanização e a massificação favoreceram a presença crescente das
massas na política, o alargamento dos sufrágios e a relevância dos Parlamentos, por
outro, o nacionalismo e as tendências de reacção anti-socialista interferem no sentido
contrário. Isto antecipa de certa forma o que vai marcar o período entre guerras.
A grande novidade do último quartel do século XIX, em particular da sua última
década, são os partidos socialistas, sobretudo a partir da constituição em 1889 da II
Internacional. Já tinha havido durante uma dúzia de anos (1864-76) uma I Internacional,
a Associação Internacional dos Trabalhadores, a cujo Conselho Geral Marx pertenceu e
no qual teve um certo papel de destaque. Essa I Internacional também deu muito que
falar porque ficou historicamente associada a uma revolução que teve grande impacto e
foi esmagada brutalmente - a Comuna de Paris de 1871. Mas, na verdade, a I
Internacional nem tinha grandes responsabilidades na Comuna, ao contrário do que lhe
foi atribuído. Foi um fogo iluminante mas momentâneo, não tinha uma infra-estrutura
nem era a potência subversiva que alguns julgaram. Com a II Internacional já a coisa foi
diferente, justamente porque estamos numa fase histórica de muito maior presença

7
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, p.27.
21

massiva da classe operária. Porque há a existência de partidos de massas nalguns países,


e é o caso da Alemanha, país que registou uma industrialização mais intensiva e onde o
movimento político socialista se articula organicamente com um movimento sindical
que agrupa milhões de operários. O único outro país onde o movimento sindical teve
peso comparável, e onde de resto o sindicalismo nasceu muito cedo, foi a Inglaterra.
Mas, ao passo que no caso inglês o sindicalismo se desenvolveu, depois da derrota dos
Cartistas em 1848, em larga medida separado da política (não houve nenhuma ideologia
socialista organizada a estruturar os sindicatos), no caso alemão essa ligação dos
sindicatos ao partido socialista é muito estreita. Por outro lado, ao passo que no caso
inglês o Partido Trabalhista se formou tarde (em 1906, embora tivesse alguns
antecedentes), e sem uma ideologia socialista bem definida, no caso alemão, pelo
contrário, essa ideologia existia – era o marxismo – e ligava-se à existência de um
partido formado já em 1875 (o Partido Social-Democrata, SPD), com uma estratégia
bem definida.
Entre 1875 e o final do século XIX constituem-se em toda a Europa partidos socialistas,
com capacidades muito variadas. Nos casos inglês e alemão o movimento operário,
apesar de fórmulas diferentes, era uma realidade social de peso e crescentemente
organizada. O SPD vai adquirir grande importância eleitoral nas eleições de 1912,
torna-se o maior partido no Parlamento (com cerca de 1/3 dos mandatos). Os sindicatos
também exercem grande influência. O número de delegados sindicais em vésperas da
Guerra era de quase 3 mil (no princípio do século eram 290, havendo portanto um
crescimento muito rápido).
Em França e em Portugal o movimento sindical era minoritário. Nestes dois países
existe um movimento anarquista importante, que é o principal organizador de greves e
outras formas de acção directa contra o capitalismo.
Do ponto de vista doutrinário, há uma generalizada expansão do marxismo, mas deve
ter-se em conta que se situa neste período de viragem do século a origem da divisão
entre as duas principais correntes em que o movimento operário socialista se vai cindir
depois da I Guerra Mundial: por um lado a corrente social-democrata, por outro a
corrente comunista. As origens da social-democracia, no sentido que a palavra adquire
depois da Guerra e da revolução russa de 1917, situam-se na corrente chamada
22

revisionista, que põe em causa a ideia de revolução político-social e defende que o


capitalismo é susceptível de se transformar através de progressivas reformas.
Embora estas orientações revisionistas fossem ganhando progressivamente maior
influência nos partidos socialistas, para o observador exterior não era isso que
sobressaía e que era importante. O importante era sim o aspecto compacto da oposição
simultaneamente social e política que os partidos operários representavam e o que
significavam como potencial factor de revolução, naturalmente encarado com esperança
por muitos, mas com receio e hostilidade também por muitíssimos. A isto se liga o
problema, que há pouco referi, de a distribuição das classes sociais nas sociedades
europeias não se ter verificado de acordo com as previsões que os marxistas
formulavam no tempo de Karl Marx (que morreu em 1883) ou nos anos seguintes.
A composição das classes médias muda. O campesinato proprietário diminui, no
entanto, nalguns casos como é o da França, Itália, Península Ibérica e toda a Europa de
leste, mantém um grande peso. O facto mais inovador é a emergência das novas classes
médias de empregados: comércio, escritório, Estado, e quem diz o Estado não diz
apenas o Estado central – o Governo – porque uma das características da transformação
social relacionada com a urbanização e a massificação é a ampliação enorme dos
aparelhos do Estado, através por exemplo do aparelho escolar, ou do aparelho
administrativo em que os ministérios se vão desdobrando e requerendo mais
funcionários. Também os empregados do comércio não são só do pequeno comércio
lojista, mas cada vez mais de grandes armazéns. Tudo isto significa uma nova classe
média, uma nova pequena-burguesia, com uma consciência diferenciada do seu estatuto
e com estatuto salarial também diferenciado da classe operária. É justamente nestas
classes que vai sentir-se com mais força a principal ideologia alternativa e de reacção ao
socialismo, que se vai manifestar no nacionalismo e nas organizações respectivas.
O nacionalismo está por um lado ligado à formação dos Estados modernos, visto só em
1871 se ter completado na Europa Ocidental a formação dos Estados nacionais, com a
formação do Império Alemão e a conclusão, no ano anterior, da unificação de Itália. Ao
mesmo tempo, na Europa Oriental continuavam a existir grandes impérios – Russo e
Austro-Húngaro, que dominam uma série de nacionalidades, e cada uma dessas
nacionalidades tem a aspiração de se constituir num novo Estado ou de se juntar com
outras, mas de se libertar da sujeição ao Império.
23

O nacionalismo, ideologia que esteve ligada ao advento das revoluções liberais, à


afirmação dos ideais do liberalismo e à formação dos Estados nacionais, está muito
presente como uma aquisição recente, e as ideologias nacionais têm todo o prestígio de
ideologias de libertação e democráticas. Mas, num mundo cada vez mais dominado por
rivalidades, por efeito da concorrência entre interesses económicos com uma presença
mundial, um mundo onde cada vez mais se faz sentir o peso de grandes empresas ou
complexos industriais e financeiros com uma vocação mundial, o nacionalismo serve de
canal e de meio de expressão dessas realidades. Se o ideal socialista aponta para uma
superação dos antagonismos nacionais – o hino operário chama-se A Internacional –,
para os não socialistas este internacionalismo aparece como um factor de divisão no
interior da nação. A aspiração de justiça e igualdade dos socialistas é contrariada pelos
nacionalistas através da ideia de que o importante para a realização do interesse comum
é a defesa do interesse nacional: onde este se imponha, todos beneficiam com isso, quer
os que estão mais abaixo quer os que estão mais acima na escala social. Essa afirmação
da Nação é o primeiro objectivo, aquilo que é essencial atingir. A isto ligam uma
reafirmação da necessidade das hierarquias: assim como há povos mais civilizados e
menos civilizados, povos superiores e inferiores (e toda uma série de descobertas da
etnologia e da antropologia física são interpretadas neste sentido), assim deve haver
uma hierarquia entre grupos sociais. O nacionalismo articula-se com essa revalorização
da ideia de hierarquia. As ideologias nacionalistas beneficiaram, neste período de
viragem do século, da influência crescente dos Estados, através da generalização da
instrução e do serviço militar obrigatório (a excepção neste aspecto é a Inglaterra, onde
o SMO vai ser introduzido só durante a Primeira Guerra Mundial). Também a grande
imprensa de massas se combina com isto e é um factor desta ideologia nacionalista. O
nacionalismo articula-se crescentemente com uma mobilização conservadora, também
favorecida pela Igreja católica, que é uma característica das tendências políticas do
princípio do século XX.
No seu ataque ao socialismo, alguns teóricos conservadores tenderão a defender a ideia
de que a origem de todos os males que vieram dar ao socialismo, factor perturbador, de
subversão das hierarquias sociais e de desnacionalização, se situa na própria ideia
liberal de fundar a legitimidade política no indivíduo, e que é preciso, perante as tensões
24

sociais que se vivem, ao mesmo tempo que se valoriza a Nação, consolidar a ideia de
hierarquia como alternativa ao individualismo.
Assistimos neste período de finais do século XIX, princípio do século XX, à emergência
quase simultânea de ideologias que se colocam em ruptura com o individualismo
liberal: é o caso em França da Action Française, na Alemanha e na Áustria do
pangermanismo, em Itália do nacionalismo (que está na origem de um partido com esse
nome), em Portugal do grupo político-militar em torno de Mouzinho de Albuquerque e
depois de João Franco, bem como de um Partido Nacionalista.
Um dos agregadores desta reacção conservadora e nacionalista do final do século é o
anti-semitismo, que ocasionou, em França, um conflito que dividiu a sociedade e ficou
conhecido como o caso Dreyfus.
Trata-se da história de um oficial do Exército, judeu, um capitão que durante algum
tempo prestara serviço junto do Estado-Maior, que a dada altura é acusado de
espionagem a favor da Alemanha. As relações com a Alemanha eram, desde a derrota
francesa na guerra de 1870-71 e da perda da Alsácia-Lorena, uma questão muito
sensível do patriotismo francês. Apesar dos seus protestos de inocência, Alfred Dreyfus
é condenado em tribunal militar a prisão perpétua na ilha do Diabo, na Guiana francesa,
para onde é deportado. Passou-se isto em 1894. Pouco depois começam a surgir
indícios de que o verdadeiro culpado era outro oficial, bem colocado nas altas esferas, e
de que havia uma acção deliberada para inculpar Dreyfus. O grande escritor da época,
Émile Zola, intervem então na imprensa com um famoso artigo intitulado “J’Accuse!”,
em que acusava as autoridades judiciais e militares de condenação de um inocente e
encobrimento dos culpados. O próprio Zola é porém condenado, e durante algum tempo
exila-se em Londres. Com uma mudança de governo que se dá em 1899, Dreyfus é
agraciado e liberto. Só alguns anos depois é que se dá a reabertura do processo, com a
condenação dos verdadeiros culpados e o restabelecimento de Alfred Dreyfus, em 1906,
no seu posto militar e na integralidade dos seus direitos.
Durante doze anos a França política esteve pode dizer-se dividida entre dois partidos, o
dos partidários de Dreyfus e dos Direitos do Homem (os dreyfusards) e o dos anti-
dreyfusards, polémica que se repercutiu em vários países e simbolizou a oposição
direita-esquerda. O motivo por que alcançou enorme projecção e significado é que,
mesmo quando já se acumulavam as provas da inocência de Dreyfus, as direitas anti-
25

Dreyfus sustentavam que, acima dos direitos individuais e da verdade, tinha de colocar-
se o prestígio da França e do seu Exército, contra os quais um simples indivíduo, judeu
e “portanto” estrangeiro, nada podia valer. Posto perante a prova de que um documento
fora falsificado, o escritor nacionalista Charles Maurras considerou-o “uma falsificação
patriótica”8.
Quer dizer, a polémica do caso Dreyfus contrapôs uma direita nacionalista, militarista e
anti-semita aos princípios do liberalismo, dos direitos do Homem e do Estado
democrático. Entre os partidários de Dreyfus, encontraram-se alguns dos mais
destacados socialistas da época, nomeadamente Jaurès. Entre os antidreyfusards
destacou-se o grupo da Action Française, uma espécie de antecipação em França dos
fascismos, tendo à cabeça o mencionado Maurras, que seria um escritor muito lido e
apreciado por Salazar. Muitos anos mais tarde, depois da II Guerra mundial, quando
Maurras estava na prisão em França, condenado por colaboração com os ocupantes
nazis durante a II Guerra mundial, Salazar não se esqueceu de lhe prestar publicamente
homenagem num discurso que então pronunciou.

8
Robert O. Paxton, The Anatomy of Fascism, Allen Lane/Penguin Books, Londres, 2004, p.47.
26
27

Lição 4: Origens da I Guerra Mundial. O problema balcânico. A formação das


alianças. O conflito sobre Marrocos.9

Temos aqui a reprodução de uma fotografia bastante conhecida. A cena que nela é
retratada documenta o momento imediato a um “acidente” do qual bem se pode dizer
que mudou a história do mundo: o atentado de Sarajevo, causa próxima da I Guerra
Mundial. O homem que vemos a ser agarrado pelos guardas é Gavrilo Princip, um
sérvio da Bósnia (Sarajevo é a capital da Bósnia-Herzegovina) que tinha acabado de
assassinar o Arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono do Império Austro-
Húngaro. O que é que ele tinha contra o sucessor do trono do Império?
Talvez este mapa dê uma ideia. É o mapa do Império Habsburgo, o Império Austro-
Húngaro, e pode verificar-se que aquilo que caracterizava principalmente este Império

9
Transcrição pela aluna Ângela Gomes da aula de 27.10.2004, revista e corrigida pelo docente.
28

era a existência de uma grande diversidade de nacionalidades e de povos, sujeitos a uma


autoridade única.

O Império Habsburgo era também conhecido como Monarquia Dual: o imperador era
simultaneamente rei da Áustria e da Hungria, e eram estas nacionalidades,
respectivamente germânica e magiar, que dominavam no Império. Os povos mais a sul,
Eslovenos, Croatas e Sérvios da Bósnia têm em comum ser eslavos, aliás os Sérvios e
os Croatas têm a mesma língua, que é o servo-croata. Todos eles estão integrados no
Império, ao mesmo tempo que fora do Império existem Estados independentes
29

compostos por população eslava, a Sérvia e o Montenegro (a Albânia só existe a partir


de 1913 e a população albanesa não é eslava).
A região balcânica esteve até bastante tarde sujeita ao domínio turco, ou seja, ao
Império Otomano, que no século XVII esteve perto de conquistar Viena. Tudo isto que
é hoje de novo a Macedónia, a Bósnia, o Montenegro, a Sérvia, a Bulgária, assim como
a Grécia e a maior parte da Roménia, até ao início do século XIX fazia parte do Império
Otomano. Em 1832, deu-se a independência da Grécia. Mais tarde, já em 1878, é que se
deu a independência da Sérvia, do Montenegro e da Roménia. A Bulgária também
quase que acedeu à independência, mas só mais tarde é que o consegue plenamente
(1908). Formou-se assim uma série de Estados independentes mas, por outro lado,
houve regiões que não conseguiram obter a independência, em relação às quais o
enfraquecimento do Império Otomano, em vez de dar lugar à independência, deu lugar a
apropriações de território pelo Império Austro-Húngaro, que tinha um interesse
económico e estratégico pela região. Nomeadamente o Império Austro-Húngaro
ambicionava expandir-se para o sul e chegar ao Mar Egeu. O que aconteceu em 1878
foi que, ao mesmo tempo que a Sérvia e a Roménia se tornavam independentes, a
Áustria-Hungria estabeleceu um protectorado sobre a Bósnia. E mais tarde, em 1908,
transforma esse protectorado em anexação, ou seja, integra a Bósnia no Império Austro-
Húngaro. Nesta altura já existiam vários Estados consolidados na região, e muitos dos
Eslavos do sul ambicionavam juntar-se à Sérvia e ao Montenegro. O Império Austro-
Húngaro, ao realizar em 1908 a anexação da Bósnia-Herzegovina pondo termo ao seu
estatuto anterior de protectorado, toma assim uma iniciativa justamente destinada a
prevenir qualquer alargamento da Sérvia. Isso suscitou não só um descontentamento dos
Sérvios e Croatas da região mas, também, a irritação em particular da Sérvia e,
sobretudo, da Rússia, que era um grande Império e uma espécie de potência protectora
da Sérvia, na medida em que a Rússia, como grande país dos eslavos, tinha relações
económicas, politicas e culturais privilegiadas com esta região e de alguma maneira
encarava os interesses dos Sérvios e, em geral, dos eslavos da região balcânica como
seus.
Em 1908, tinha havido uma negociação secreta entre o ministro dos negócios
estrangeiros russo e o ministro dos negócios estrangeiros austro-húngaro. A Rússia
tinha sido, por assim dizer, conquistada para a anexação da Bósnia a troco de
30

determinadas compensações. Os Austríacos, quando acharam que era oportuno, fizeram


a anexação sem dar cavaco aos Russos e, portanto, anulando as compensações que a
Rússia esperava. Isso gerou um incidente diplomático de certa gravidade e ficou sempre
entalado na garganta dos Russos como uma afronta, tanto mais que é um problema que
se vai manter porque a hostilidade dos Sérvios e dos Croatas ao domínio austríaco se
mantém. E esta hostilidade converge com a de um conjunto de povos sujeitos ao
Império austro-húngaro, que por seu turno vão desenvolvendo também os seus
movimentos independentistas: os Checos, os Eslovacos, os Polacos, os Romenos da
Transilvânia.
Vemos assim que a situação na região era a de um complicado puzzle de povos e
de Estados desiguais, em que qualquer alteração da posição de uma peça ia implicar
com as outras e podia pôr em causa os interesses ou o prestígio dos dois grandes
Impérios, o Russo e o Austro-Húngaro. É neste contexto que em 1912-13 vão ter lugar
as guerras dos Balcãs, em princípio um conflito puramente local, que os Europeus
ocidentais olhavam como problema duma região atrasada e remota.
Na Turquia (Império Otomano) iniciara-se poucos anos antes a revolução
chamada dos Jovens Turcos e o país atravessava portanto uma crise política.
Aproveitando esta situação de enfraquecimento, em 1912 forma-se uma coligação de
Estados (Grécia, Sérvia, Montenegro e Bulgária) com o objectivo de libertarem a
Macedónia do jugo turco, dividindo a seguir o território entre si. Foi uma guerra
localizada, que talvez não tivesse tido maiores implicações se não se desse o caso de
logo a seguir, entre a Bulgária e os restantes participantes da coligação, se gerar um
conflito pela divisão territorial, e a Bulgária (com o apoio da monarquia austro-húngara)
desencadear de novo as hostilidades contra os restantes membros da coligação, ou seja,
contra a Grécia, a Sérvia e o Montenegro. A Bulgária foi derrotada, ao passo que a
Sérvia saía vencedora. Isto significava indirectamente uma derrota do Império Austro-
Húngaro, um acrescer de preocupações quanto à possibilidade da sua fragmentação e,
naturalmente, uma reavivada hostilidade para com a Sérvia.
Em resultado de tudo isto, os Estados periféricos do Império tinham-se
consolidado e alargado os seus domínios, ao mesmo tempo que no interior do Império
várias populações manifestavam a sua vontade de independência e, no que diz respeito a
esta região, a vontade de integração com a Sérvia. Consequentemente, na política
31

austro-húngara foi-se firmando a convicção de que era preciso fazer qualquer coisa no
sentido de reforçar, do ponto de vista político e militar, o Império, e de liquidar a
Sérvia, fazendo com que ela ficasse impossibilitada de exercer um efeito de
desagregação sobre as populações do Império ou de por qualquer modo concretizar a
ideia da “grande Sérvia”. Gera-se um tipo de comportamento que não é raro em
situações de crise, que é o de procurar responder a uma crise interna com um sucesso
militar. É a ideia de que o êxito militar reforça o governo vencedor, que os factores
patrióticos, que se podem mobilizar em torno de uma guerra, servem para consolidar a
situação interna. Esse tipo de problema e de reacção não é raro. Por exemplo, uma das
determinantes da guerra russo-japonesa (1904) foi a vontade do Czar e do círculo
dominante de sair da crise que a Rússia atravessava através de uma vitória militar. Foi
exactamente o contrário que aconteceu. Também se pode considerar que o ímpeto
belicista que caracteriza actualmente a administração americana do Presidente Bush tem
a ver com a percepção de um claro declínio da posição económica dos Estados Unidos
da América no mundo.
Para o Império Austro-Húngaro travar uma guerra com sucesso, tinha que estar
seguro dos seus apoios, e isso significava seguro da sua aliança com a Alemanha. Desde
os anos 70, no tempo de Bismarck, que existia uma aliança militar entre a Alemanha e a
Áustria-Hungria, que inicialmente também incluia a Rússia e tinha o significado de ser
uma aliança dos grandes Impérios conservadores contra as tendências liberais no
mundo. Depois o esquema das alianças mudou: a partir dos anos 80 a Rússia ligou-se
cada vez mais à França. A aliança militar que se consolidou foi a chamada Tríplice
Aliança, que ligava o Império Alemão, o Império Austro-Húngaro e a Itália. Contra a
coligação da Tríplice Aliança foi-se definindo uma coligação oposta, que de resto levou
mais tempo a formar-se e, sobretudo, a oficializar-se. Foi a coligação entre a França e a
Rússia e, já no princípio do século XX, progressivamente, a extensão dessa coligação à
Inglaterra (formação da Entente Cordiale anglo-francesa em 1904 e da Triple Entente
em 1907).
Quando ocorre o atentado de Sarajevo e a monarquia austro-húngara tem a
oportunidade de liquidar a Sérvia, como há bastante tempo ambicionava, antes de tomar
qualquer iniciativa tem que se assegurar do apoio alemão, porque a Europa estava
dividida em duas grandes alianças: de um lado a Tríplice Aliança, do lado oposto a
32

Triple Entente. (No primeiro caso costumamos dizer, em Português, Tríplice Aliança;
mas para indicar a coligação da França, da Inglaterra e da Rússia usamos a expressão
francesa Triple Entente. O significado literal das palavras é quase o mesmo, porque
‘entente’ significa entendimento).
O governo austro-húngaro consultou o Kaiser e o chanceler alemão, que
corresponderam com inteiro apoio: consideravam que a Áustria tinha o direito de
colocar um ultimato à Sérvia, considerando-a responsável pelo atentado, e de exigir
compensações.
A possibilidade de um conflito entre a Áustria-Hungria e a Sérvia evoluir para um
conflito mais amplo, envolvendo outras potências, foi desde o princípio ponderada pelos
Alemães. Mas prevaleceu a opinião dos chefes militares de que, no caso de haver
guerra, mais valia ser então do que mais tarde. Na apreciação dos estrategas alemães, o
facto de tanto a França como a Rússia terem reformas militares em vias de execução,
mas ainda não completadas, fazia com que fosse mais favorável para a Alemanha e para
a Áustria-Hungria, numa eventualidade de guerra, defrontá-la no imediato. No que dizia
respeito à Inglaterra, persistiu até muito tarde, entre os responsáveis alemães, a
convicção de que a Inglaterra não entraria na guerra, porque a Inglaterra tinha tido
problemas com a Rússia. Além disso, como potência essencialmente marítima e
colonial, ela não teria interesse real na entrada na guerra. Mas, como havia uma
tendência de aproximação da Inglaterra à França e à Rússia, também neste aspecto a
ideia dos Alemães era que mais valia haver uma guerra mais cedo, porque seria menos
susceptível de contar com a entrada em cena da Inglaterra.
Assim sendo, é na base destes pressupostos que o governo austro-húngaro, no
princípio de Julho, formula um ultimato ao governo da Sérvia, redigido em termos
intransigentes e drásticos, reclamando a realização de um inquérito, conduzido pela
própria Áustria na Sérvia, acerca das condições do atentado. Isto é, sabia-se que o autor
do homicídio, Gavrilo Princip, era membro duma associação secreta eslavista chamada
Mão Negra e que essa associação tinha apoio na Sérvia. Concretamente, tratava-se
agora de fazer um inquérito para revelar as cumplicidades, o envolvimento de
funcionários sérvios, e a Áustria-Hungria exigia ser ela própria a conduzir, no interior
da Sérvia, esse inquérito. Havia outras condições, mas esta era especialmente drástica, e
o prazo de resposta era extremamente curto (48 horas). A Sérvia deu uma resposta
33

muito diplomática em que cedia a quase todas as condições excepto, justamente, essa da
realização do inquérito no seu território, por ser considerada uma violação de soberania.
É essa recusa que vai servir de motivo para a declaração de guerra pelo Império Austro-
Húngaro à Sérvia no dia 28 de Julho de 1914, seguida imediatamente do
bombardeamento da capital da Sérvia, Belgrado. Esta guerra localizada vai arrastar
num ritmo muito rápido todas as grandes potências da época.
Coloca-se ao governo russo o problema da atitude a tomar perante a agressão
austro-húngara à Sérvia, e decide apoiar a Sérvia. Aliás, o ressentimento pela anexação
da Bósnia, em 1908, tinha permanecido nos círculos governamentais russos e, em
função disto, o governo russo organiza imediatamente a mobilização das suas tropas
contra a Áustria-Hungria. Mas aqui entra um aspecto técnico-militar que também é
importante: os planos militares estavam concebidos em função das alianças existentes e,
uma vez que a Tríplice Aliança juntava em primeiro lugar o Império Austro-Húngaro e
a Alemanha, os planos militares implicavam uma mobilização simultânea contra os dois
Estados 10 . Apesar de uma carta de última hora que o “primo Willy” (o Kaiser
Guilherme II) escreveu “ao primo Niki” (o Czar Nicolau II), episódio referido no filme
da aula anterior, o Czar não se comoveu por aí além, aliás tomou atitudes contraditórias
mas, enfim, a decisão que prevaleceu ao nível das esferas de governo e militares foi a de
realizar a mobilização, que por seu turno punha o problema de atitude da França.
Para a França, a hostilidade em relação à Alemanha era um problema de longa
duração. Nomeadamente, desde a derrota francesa na guerra franco-prussiana de 1870-
71, que teve como consequência a perda pela França das regiões da Alsácia e da Lorena,
com um interesse económico e também estratégico grande, devido ao minério de ferro.
Consequentemente, o Governo francês, no sentido de manter a aliança russa e de
afirmar posição contra a Alemanha, decide a mobilização. Na sequência desta, é a
Alemanha que decide a colocação dum ultimato à Rússia contra a mobilização e, uma
vez que esse ultimato não é aceite, a 1 de Agosto a Alemanha declara guerra à Rússia e,
dois dias depois, a 3 de Agosto, à França. É este o princípio da Primeira Guerra
Mundial, que os Alemães concebem como uma operação militar a realizar rapidamente.

10
Paxton, Europe in the Twentieth Century, p. 58.
34

Parece que o Kaiser chegou a usar a expressão “almoço em Paris, jantar em


Moscovo”. Os Alemães contavam com a eficácia do seu plano Schlieffen (do nome dum
chefe militar alemão). O plano era um golpe decisivo e rápido a ocidente contra a
França, utilizando uma forte superioridade de meios de artilharia e infantaria, que
permitisse ocupar Paris num curto espaço de tempo e, depois, transferir o grosso das
tropas para a frente russa, onde havia que contar com um exército inimigo muito mais
numeroso.
Vejamos agora uma gravura publicada num jornal americano em Julho de 1914,
sob o título “A chain of friendship”. Dá uma imagem curiosa do alinhamento dos
protagonistas. Temos a pequena Sérvia em vias de ser agredida pela Áustria, que diz ‘se
te mexes bato-te’, mas logo por trás a Rússia que ameaça a Áustria, e atrás da Rússia a
Alemanha. Estes protagonistas estão a uma certa distância do francês, o que mostra que

provávelmente, no momento da publicação da caricatura, os primeiros quatro já estavam


envolvidos, mas vemos que a França também já se encaminhava a passos largos. A
Inglaterra é a única que não está simbolizada por um uniforme militar, o inglês está à
paisana e tem uma atitude pacificadora. E, efectivamente, chegou a haver ainda uma
proposta de conciliação da Inglaterra, que não teve efeito prático. De qualquer maneira,
três dias depois, a 4 de Agosto, a Inglaterra vai também entrar na guerra. É que os
Alemães, para invadirem a França rapidamente, atravessam a Bélgica, mas isso
35

significa violar a neutralidade belga, que era garantida por tratado pela Inglaterra. Há
quem sustente que a Inglaterra atrasou a entrada, porque estava tão interessada em que
houvesse uma grande guerra para liquidar a Alemanha, que não se pronunciou
imediatamente, sugerindo aos Alemães que não ia entrar e, assim, precipitando a
Alemanha a desencadear as operações11.
A verdade é que a Inglaterra, a grande potência tradicional ao longo do século
XIX, a grande potência capitalista, dominante no plano comercial e marítimo, teve esta
sua posição económica no mundo posta em causa crescentemente no último quartel do
século XIX. Isto porque se deu um desenvolvimento industrial e militar alemão que
disputava a sua posição económica no mundo e que ameaçava fazer-lhe perder também
a superioridade em termos de marinha de guerra, nomeadamente, com a construção dos
couraçados que a Alemanha intensificou no princípio do século XX, sob a direcção do
almirante Tirpitz. Além disso, no fim do século XIX, a Inglaterra tinha intervindo na
guerra dos Boers, na África do Sul, colocando-se indirectamente em situação
conflituosa com a Alemanha. Em resultado disso, houve como vimos um processo de
aproximação à França e à Rússia, com a formação do Triple Entente, em 1907. A
permanência do domínio inglês dos mares dependia já da sobrevivência da França,
porque por si só a armada inglesa não era suficiente para dominar o Mediterrâneo. O
acesso à Índia e ao Médio Oriente era bastante complicado sem o acesso mediterrânico,
que só era possibilitado pelo domínio francês. Isto são também condicionalismos de
fundo que, para além da questão jurídica da neutralidade belga, são determinantes da
entrada da Inglaterra na guerra.
Das grandes potências da época, a única que se mantém neutral, por enquanto, e
que em 1915 acabará por entrar na guerra numa posição oposta àquela a que pertencia
em termos dos tratados existentes, vai ser a Itália. A Itália era uma das potências da
Tríplice Aliança, mas, no princípio do século XX, foi evoluindo no sentido de relações
económicas crescentes com a França. Os sectores mais activos da sociedade italiana
olhavam com mais simpatia para a França. Nomeadamente, os nacionalistas italianos
reclamavam as chamadas “terre irredente”, territórios com população de língua italiana,
a sul dos Alpes, que tinham permanecido integrados na Áustria aquando da libertação e

11
Efimov, Galkine, Zubok (dir.), História Moderna, vol. II, Estampa, Lisboa, 1977, pp.233-234.
36

unificação da Itália. Quando a Itália entra na Guerra, em 1915, vai ser ao lado da
Entente e contra os seus antigos aliados da Tríplice Aliança, contra a Alemanha e contra
o Império Austro-Húngaro.

Em relação aos antecedentes da guerra, há um outro aspecto que tem a sua


importância. Entre os conflitos que opuseram a Alemanha à França, no princípio do
século XX e que contribuíram para o sentimento de isolamento da Alemanha, que todos
os historiadores consideram ser um factor de agressividade do comportamento alemão,
isto é, desse sentimento de que era indispensável ir em socorro do Império Austro-
Húngaro porque era o único aliado, encontra-se o problema colonial. Como é sabido, a
Alemanha tinha muito menos possessões coloniais, nomeadamente em África, do que a
Inglaterra, a França, a Bélgica e mesmo do que Portugal. Tinha por isso ambições sobre
Marrocos, um dos poucos países africanos ainda independentes mas onde se registava
crescente penetração económica e influência política da França (influência esta que a
Inglaterra reconheceu e aceitou, ao concluir a Entente Cordiale). Com a intenção de
contrariar a evolução em curso, que tornava o Marrocos um protectorado francês, em
1905, numa visita a Tânger, o Kaiser Guilherme II faz um discurso em que se declara
garante da independência do Marrocos. Isso gera um conflito com a França, e a
Alemanha pede a realização de uma conferência internacional para resolver o problema.
A reunião realizou-se, foi a Conferência de Algeciras, que tomou posição favorável à
França, consagrando o seu domínio sobre as finanças e a polícia de Marrocos.
Em 1911 há um segundo incidente relacionado com problemas internos no
Marrocos, onde tinha havido uma rebelião contra o sultão, intervindo as tropas
francesas em defesa deste. Com o objectivo de marcar posição contra a ocupação
francesa de Marrocos, a Alemanha envia para Agadir um navio de guerra. Mas é
obrigada a retirar, principalmente, por pressão inglesa. Acaba por reconhecer o
protectorado francês em Marrocos, em troca de umas pequenas concessões de território
do Congo francês. Globalmente porém o incidente saldou-se por uma derrota alemã. Na
altura não teve consequências bélicas, mas contribuiu para o agravar das tensões entre
os dois países e, indirectamente, também para o agravar das tensões entre a Alemanha e
a Inglaterra.
37
38

Lição 5: A I Guerra Mundial. Nacionalismo dos combatentes e das populações. Da


guerra de movimento à guerra de posições. Consequências económicas, sociais e
políticas da guerra prolongada. O movimento de Zimmerwald. A intervenção
americana e o wilsonismo.12

A 1 de Agosto de 1914 a Alemanha declarou guerra à Rússia, logo a seguir dá-se


a declaração de guerra à França (3 de Agosto) e a mobilização dos exércitos alemães
para a invasão da França, atravessando a Bélgica. Esta violação da neutralidade belga é
que, como vimos, forneceu a motivação final para a entrada em guerra da Grã-
Bretanha, a 4 de Agosto. A invasão da França não obedeceu inteiramente ao esquema
inicialmente definido, pelo facto de os Russos terem tomado a iniciativa militar mais
cedo do que os Alemães esperavam, de modo que estes foram obrigados a deslocar mais
tropas do que contavam para a frente oriental13. Assim, em vez de fazerem o percurso
pelo norte de França, entraram directamente com o ataque sobre Paris, mas vão
defrontar-se com uma resistência encarniçada junto ao rio Marne, onde teve lugar a
primeira grande batalha da guerra. Mas os alemães não conseguem chegar a ocupar
Paris e são obrigados a recuar. Ao cabo de cerca de dois meses de recontros
estabilizaram as duas linhas da frente, através da construção de trincheiras que no início
da guerra eram elementares, mas depois foram bastante desenvolvidas. Algumas
trincheiras até se tornaram numa espécie de cidades subterrâneas, sobretudo as alemãs,
porque os alemães eram mais organizados, bem equipados, já com ligações eléctricas
sofisticadas. Eram trincheiras onde as tropas conseguiam sobreviver durante muito
tempo. O potencial destrutivo de ambos os lados é de tal ordem que obriga a uma
fixação de posições. Dá-se assim a passagem da chamada guerra de movimento àquilo a
que na estratégia militar se chama a guerra de posições, que veio desmentir
completamente os prognósticos anteriormente feitos acerca da duração eventual da
guerra. Quer ao nível das populações em geral, quer ao nível dos estrategas militares e
dos responsáveis políticos, praticamente, nunca ninguém tinha contado que com os

12
Transcrição pela aluna Ângela Gomes da aula de 27.10.2004, revista e corrigida pelo docente. A
exposição baseia-se principalmente em Massimo Salvadori, Storia dell’Età Contemporanea, Loescher,
Turim, 1976, pp. 488-506.
13
Efimov, Galkine, Zubok (dir.), História Moderna, vol. II, p.236.
39

meios de tecnologia existentes uma guerra pudesse durar tanto tempo. Isto é uma lição
que pode ser útil para a actualidade e para o futuro.
Há pouco referimos a expressão do Kaiser, “almoço em Paris, jantar em
Moscovo”, que corresponde bastante ao estado de espírito e ao entusiasmo com que as
tropas se mobilizaram. Por exemplo, no caso da Inglaterra não havia tropas de
contingente geral do serviço militar obrigatório. O que houve aí foi um apelo ao
voluntariado, que foi entusiasticamente correspondido. Um autor refere que os jovens se
inscreviam para ir para a guerra como num fim de tarde no baile da aldeia costumavam
entrar num concurso para terminar a festa. E foi nesse estado de espírito que milhões de
homens, nomeadamente jovens, entraram na guerra e poucos meses depois estavam
nesta situação: uma trincheira em frente da outra, sendo que a qualquer tentativa de
surtida e de avanço correspondia uma dizimação em massa.
Esta guerra foi diferente de tudo o que até então era conhecido, quer pela
capacidade dos equipamentos militares, desde logo os novos tipos de canhão e a
metralhadora, assim como outros que só durante a guerra vão sendo desenvolvidos,
como é o uso da aviação. A aviação tem um papel relativamente secundário, mas já tem
de qualquer maneira uma importância que vai para além do simbólico e que não deixa
de impressionar se pensarmos que, na última fase da guerra (1917-18), a esperança
média de vida de um piloto era da ordem das poucas semanas. Houve ainda a entrada
em cena do tanque, em 1916, que vai ter um papel decisivo. E quanto à Marinha são de
referir os couraçados, os contra-torpedeiros e os submarinos. É ainda importante
mencionar a importância das aplicações da indústria química, nomeadamente, dos
explosivos.
Para além destes aspectos técnico-militares, é toda a potência moderna das
siderurgias desenvolvidas desde os finais do século XIX, mas também a força da
capacidade de mobilização dos Estados modernos, os seus meios de coacção para
assegurar a disciplina das populações e das tropas e ainda os meios propagandísticos e
de influência moral, que nunca tinham entrado em funcionamento com esta dimensão.
Nunca tinham sido travadas grandes guerras com aparelhos de imprensa de massa em
pleno desenvolvimento e com um sector já extenso de intelectuais de diversos tipos ao
serviço da propaganda.
40

A partir do momento em que falhou a guerra breve e se entra numa guerra


prolongada, a capacidade de produção industrial e de acesso a matérias-primas tornam-
se factores decisivos e, desse ponto de vista, a Alemanha tinha uma capacidade superior
no plano industrial mas muito menor no que dizia respeito ao acesso a matérias-primas,
ao passo que a Entente dispunha dos recursos infindos do Império Britânico e do
domínio britânico sobre os mares em geral. Domínio esse que a Alemanha nunca
conseguiu impedir, apesar do uso que vai fazer dos submarinos. Pelo contrário, os
Impérios Centrais (a Alemanha e a Áustria-Hungria) ficam numa situação de bloqueio,
que em parte compensavam com o recurso crescente às produções de sintéticos.
Sobretudo durante a II Guerra Mundial o recurso da Alemanha à produção química de
sintéticos será muito implementado; durante a I Guerra esse recurso aos sintéticos não
era suficiente. De qualquer forma, os Impérios Centrais dispunham de uma
superioridade inicial no que dizia respeito à preparação, à direcção e à artilharia pesada.
A Entente carecia de uma direcção coordenada, que só na parte final da guerra será
conseguida. Sobretudo, a frente russa sofre dos problemas de débil organização
administrativa e politica, que fazem com que, apesar da iniciativa do exército russo na
primeira fase da guerra, a Rússia seja remetida para uma posição defensiva e finalmente
derrotada desde relativamente cedo.
Depois da primeira batalha do Marne dá-se, como vimos, uma estabilização das
frentes, a passagem à guerra de posições, com 800 km de trincheiras entre a Flandres e a
fronteira suíça. Os russos sofrem derrotas importantes e o exército alemão ocupa uma
boa parte do território do Império russo. Como podemos observar através do mapa, os
alemães têm uma primeira vitória importante em Tannenberg, na frente oriental. É a
partir dali que se dá o seu avanço, de maneira que, no fim de 1915, já dominavam uma
zona que ia de Riga (capital da Letónia) até aos Cárpatos. Portanto já dominavam
também toda a Lituânia e a Polónia (que estava anteriormente na maior parte sob o
domínio russo), assim como a Bielorússia.
Embora a Itália declare guerra à Áustria em 1915, todas as ofensivas que a Itália
tentou nesse ano falharam. A Sérvia foi invadida pela Áustria e pela Bulgária. Os
Aliados tentaram em 1915 o desembarque de Galipoli no estreito dos Dardanelos, de
maneira a abrir caminho para a Bulgária. Mas essa tentativa falhou e foi muito custosa
41

em termos de efectivos. De maneira que em 1915 a situação era favorável aos Impérios
Centrais, embora eles começassem a sentir os efeitos do bloqueio.
Em 1916, desde Fevereiro, os alemães desencadeiam a ofensiva de Verdun, uma
das grandes batalhas da Guerra que fez para cima de 600 000 mortos em quatro meses, à
qual se seguiu a contra-ofensiva do Somme, onde pela primeira vez foram utilizados
tanques, e essa faz mais de um milhão de mortos. O resultado global foi o fracasso da
ofensiva alemã. Isto levou ao prolongamento da guerra, o que jogava a favor da Entente,
até porque se começa a pôr a hipótese de os EUA entrarem na Guerra, apesar das
repetidas promessas de neutralidade do Presidente americano Wilson, à custa das quais
ele ganhara as eleições e fora reeleito em 1916.
A Alemanha respondeu às dificuldades, usando sistematicamente a planificação
dos recursos internos, o recurso ao fabrico de produtos sintéticos, a introdução do
racionamento. E de um lado e de outro recorre-se crescentemente à integração das
mulheres na indústria e a várias formas de controlo do Estado sobre a produção para os
fins da guerra. A integração das mulheres e dos jovens é um aspecto que terá grande
importância a longo prazo. A emancipação feminina é sem dúvida um dos factos
centrais da história do século XX, para que decisivamente contribuiu a I Guerra
Mundial e a massificação do emprego feminino a que deu lugar.
O prolongamento da guerra tem enormes consequências no plano económico-
social. Em primeiro lugar, é ocasião da realização de grandes lucros para as indústrias
directamente envolvidas, as indústrias metalúrgicas, sobretudo as grandes siderurgias,
as empresas de armamento, mas também algumas empresas têxteis e indústrias
alimentares (por exemplo as conservas, para o abastecimento dos soldados, foram um
ramo que em Portugal prosperou durante a Guerra). Ao mesmo tempo, geram-se
tremendas situações de escassez, porque os campos de cultivo estão destruídos ou a
realização das tarefas agrícolas se torna impossível. No caso dos Impérios Centrais,
acrescem a isto as consequências do bloqueio. Por toda a parte, a escassez gera o
mercado negro e a inflação: verifica-se uma alta dos preços como nunca tinha sido
conhecida na história europeia. (Aquilo que caracterizou a evolução económica durante
a maior parte do século XIX não foi a subida dos preços, mas, pelo contrário, a descida;
a chamada Longa Depressão de 1873-96, que constituía ainda experiência relativamente
recente, tinha sido um período de quebra dos preços.) É certo que, a partir da viragem
42

para o século XX, as tendências inflacionistas tinham-se acentuado, mas não era nada
de comparável ao que vai ter lugar durante a Guerra. O mercado negro, efeito da
disparidade de condições sociais, tem por seu turno a consequência de as agravar, ao
mesmo tempo que propicia a formação de fortunas rápidas. Tudo isto é causa de
desequilíbrios súbitos, chocantes, que assumem aspectos de catástrofe, ao mesmo tempo
que são motivo de escândalo e causam profunda impressão em toda a gente.
A partir de 1916, o entusiasmo nacionalista, que foi o traço dominante da atitude
das populações durante os primeiros tempos da Guerra, vai ser posto em causa em todos
os países envolvidos. Junta-se a isso a evolução que se começa a dar no movimento
operário.
Uma das grandes esperanças de paz, mesmo nas várias situações de tensão e de
crise internacional do princípio do século XX, fora a existência dos partidos socialistas
e da II Internacional. Mas a Internacional fracassou completamente perante os
acontecimentos da Guerra. Apesar das muitas resoluções anteriormente aprovadas
(nomeadamente no Congresso de Estugarda de 1907 e no Congresso de Basileia de
1912), no momento da verdade os partidos socialistas aderiram a posições nacionalistas
e vários de entre eles entram, pela primeira vez, no governo do seu país: é o caso
francês, belga, inglês, nomeadamente; no caso alemão, não entram no governo mas
apoiam activamente. Mas isso desde o primeiro momento gerou algumas oposições,
principalmente por parte da ala esquerda dos partidos. Estas oposições começam a
organizar-se, a partir de 1915, no chamado movimento de Zimmerwald, que é o nome de
uma localidade da Suiça onde fizeram uma primeira conferência. Em 1916 houve uma
segunda conferência do movimento, em Kienthal, também na Suiça.
A resposta dos governos à acção dos opositores vai traduzir-se na acentuação do
autoritarismo do Estado e concretamente daquilo a que se pode chamar a ditadura do
executivo, isto é, em cada país há tendência para centralizar no governo, e mesmo num
chefe único, a responsabilidade político-militar e a convergência de esforços para a
defesa nacional. Este fenómeno é também importante porque abriu caminho para um
tipo de experiência politica que contrastava com o parlamentarismo do século XIX e
que de alguma forma prenuncia o modelo do líder carismático investido de uma grande
autoridade, que depois os fascismos cultivarão. No caso francês é o Primeiro-ministro,
Georges Clemenceau, que assume esses plenos poderes. No caso alemão são sobretudo
43

os chefes militares, os generais Hindenburg e Ludendorff, que exercem uma autoridade


que de certa maneira se sobrepõe à do governo.
Em consequência da evolução dos resultados militares, em 1916 os Impérios
Centrais chegam a avançar propostas de paz. Contudo essas propostas são rejeitadas, a
guerra continua e em Abril de 1917 dá-se a decisão da entrada dos EUA na guerra. O
envio das tropas, que chegaram a ser um milhão de soldados americanos na França e na
Bélgica, ainda vai demorar algum tempo e só se concretiza em 1918.
A entrada formal dos EUA na guerra reforçou a Entente do ponto de vista dos
efectivos, do ponto de vista financeiro e, o que não é de somenos, também do ponto de
vista ideológico, aspecto que vai marcar alguma coisa no pós-guerra. Antes de os EUA
entrarem na guerra, ela era vista por muitos como um conflito de ambições
imperialistas, em que as questões coloniais tinham grande peso. Os EUA, que nesta
época eram por excelência o país do liberalismo, do livre-câmbio, que não tinham
interesses territoriais directos, podiam arrogar-se o papel de arautos dos preceitos
morais que deveriam presidir ao pós-guerra, e pessoalmente Wilson desempenhou esse
papel com toda a convicção. É claro que os EUA tinham motivações económicas tão
fortes como todas as outras potências, porque era com os países da Entente que tinham a
maior parte do comércio e era neles que tinham colocados mais créditos.
Assim, a entrada em guerra dos Estados Unidos da América vai dar-se na base do
programa chamado dos 14 pontos de Wilson, que são um esquema de reorganização da
sociedade mundial no pós-guerra que, entre outras coisas, prevê o estabelecimento da
Sociedade das Nações – veio a ser criada em 1919 e foi uma antepassada da ONU.
Defendendo a ideia de que esta seria a última das guerras, que todos os conflitos na
sociedade mundial seriam futuramente resolvidos por via pacífica sob a égide de um
organismo próprio, de que os problemas territoriais seriam resolvidos na base do
principio das nacionalidades e do direito dos povos, de que vigoraria a liberdade do
comércio internacional, de que o fim do proteccionismo geraria a prosperidade geral,
muita gente se convenceu que a doutrina de Wilson representava um conjunto de
princípios aceitáveis para a efectiva reconstrução da sociedade mundial e, nesse sentido,
devia ser apoiado para derrotar os militarismos e conseguir uma paz justa.
44

Lição 6: A I Guerra Mundial. Extensão das hostilidades. Agravamento das


condições sociais e desenvolvimento do movimento político contra a Guerra. A
Rússia: da revolução de Fevereiro de 1917 à revolução de Outubro.14

É a partir de 1916 que a Guerra se torna efectivamente mundial. Os Balcãs ficaram


plenamente envolvidos com a entrada na guerra da Bulgária e da Roménia, a Itália
entrou em 1915, Portugal em 1916, a Grécia em 1917. Os combates alargam-se ao
Médio Oriente, com o apoio inglês ao levantamento das populações árabes contra o
domínio turco. A Turquia não é um dado secundário no conjunto da Guerra. É, apesar
de tudo, um império com importantes posições no Médio Oriente, e os Ingleses vão
empenhar-se nessa mobilização dos Árabes, em que ficou conhecido o trabalho do
coronel Lawrence – o famoso Lawrence da Arábia, agente do Intelligence Service. Esse
apoio foi o princípio de uma crescente influência que a Inglaterra adquire nessa região e
que vai durar até depois da II Guerra Mundial. Mas é a partir daqui, da descoberta e
exploração das riquezas petrolíferas realizada sistematicamente após a I Guerra
Mundial, que o Médio Oriente passa a ser um dos principais focos de interesses e de
conflitos, uma região estratégica nas relações internacionais contemporâneas.
Outro dado fundamental da mundialização da guerra é o Extremo Oriente: a entrada do
Japão, logo em 1914, na guerra contra a Alemanha, e a ocupação pelos Japoneses dos
arquipélagos alemães no Pacífico e de posições alemãs na China. O que tem muita
importância na história da formação do imperialismo japonês e nas relações entre o
Japão e a China, porque essa tomada de posições do Japão vai ser um dos
desencadeadores do movimento nacional anti-imperialista na China, que se desenvolve
com grande vigor no pós-guerra, a partir de 1919, e que é a fonte da qual virá a nascer a
guerra civil da China e, em última análise, a revolução socialista que triunfará em 1949.

Ainda em 1915, um outro aspecto da intensificação da guerra pelo lado alemão


consistiu no início da guerra submarina, que desde logo conduziu a alguns importantes
conflitos como, por exemplo, o afundamento do navio mercante Lusitânia, um navio
mercante inglês que transportava, além de passageiros, armas e abastecimentos dos

14
Transcrição pelo aluno Markus Almeida da aula de 29.10.04, revista e corrigida pelo docente.
45

EUA para Inglaterra. O afundamento fez 1200 vítimas mortais e gerou uma primeira
ameaça de intervenção por parte dos EUA, que não se concretizou de imediato. Mas
acentuou-se a partir daí na política americana a vontade de intervenção. Era
essencialmente com os países da “Entente” que os EUA tinham relações, quer políticas,
por via da relação histórica anglo-americana, quer comerciais (embora também tivessem
relações comerciais com a Alemanha, tinham mais com a França e a Inglaterra e mais
créditos investidos nestes países). Joga além disso uma certa afinidade ideológica entre
a democracia americana e os países da “Entente”, que se reclamavam da liberdade e da
democracia contra o autoritarismo e militarismo prussiano.
O facto de, no princípio de 1917, ser interceptado pelos serviços secretos ingleses um
telegrama alemão que garantia ao México determinadas vantagens se estes
desencadeassem a guerra contra os EUA - prometiam ao México, em caso de vitória, os
territórios que no século XIX lhe tinham sido conquistados pela América - criou muita
agitação nos EUA e foi o elemento que precipitou a intervenção americana na Guerra.
A intervenção dos EUA significa obviamente um decisivo fortalecimento da “Entente”.

A Guerra tornara-se, como diz Procacci, “uma rotina macabra”. Apesar do ambiente de
unanimidade nacional com que a maior parte das potências tinha entrado nela, a partir
de 1915, e sobretudo 1916, as condições mudam no plano económico, porque as
dificuldades de abastecimento são crescentes, o que gera o mercado negro. O mercado
negro não só agrava brutalmente as condições objectivas da população trabalhadora,
como junta a isso o aspecto da imoralidade. Porque à sombra do mercado negro
formam-se grandes fortunas e para alguns tudo continua a ser possível, ao passo que a
maioria vive com restrições insuportáveis.
As condições mudam no plano económico e, consequentemente, no plano político.
Nesse aspecto, a prevalência no movimento socialista duma posição patriótica,
nacionalista, começa a ser posta em causa, e a partir de 1915 há mesmo um movimento
organizado que junta socialistas de vários países que reclamam o fim da guerra e a paz
sem anexações nem indemnizações. Tudo isto joga no estado de espírito das populações
e das tropas. Em Maio de 1917 têm lugar importantes motins de tropas em França, que
vão ser defrontados brutalmente, com condenações à morte. Também na Alemanha, um
pouco depois, dá-se um primeiro levantamento dos marinheiros do porto báltico de
46

Kiel. Na Itália há motins em torno dos problemas de abastecimento, nomeadamente em


Turim, assim como em Portugal. Porque a crise dos abastecimentos durante a Guerra
gerou em Portugal uma onda de assaltos a estabelecimentos que assumiu a certa altura
aspectos insurreccionais. Portugal foi um dos países fortemente atingidos do ponto de
vista social e político pelos efeitos da guerra.
Dentro da própria esquerda do movimento socialista, embora a posição dominante seja
de carácter pacifista, começa a surgir uma esquerda da esquerda, que defende a
transformação da guerra imperialista em guerra civil revolucionária e, para isso, a
formação de novos partidos, de um novo movimento diferente do socialismo
tradicional. É essa tendência, com expressão sobretudo na Rússia e na Alemanha, mas
também alguma em França e noutros países, que vai estar na origem do movimento
comunista.
A Rússia é um dos países onde a crise social se vai sentir com mais intensidade e vai
atingir rapidamente uma dimensão política. Isso não surpreende ninguém. Uma parte
da motivação da entrada da Rússia na Guerra era de carácter interno. Era a esperança de
que a causa nacional atenuasse a conflitualidade social e política e servisse para o
reforço do trono. Mas houve já em 1914 quem advertisse que a evolução das coisas não
seria essa. Mesmo ao nível do governo russo, houve um ex-ministro chamado Durnovo
que, em vésperas do começo da Guerra, escreveu um memorando para o czar onde
esboça as possíveis consequências da guerra para a Rússia. Quase tudo o que esse
ministro previa concretizou-se: movimentações de massa; agravamento do descrédito do
czar; revoltas camponesas; mas também intensificação dos conflitos nas próprias classes
dominantes - visto que alguns círculos simpatizavam com a Alemanha e a própria
czarina era alemã. O descrédito do regime czarista faz com que nas esferas de governo
nasça uma espécie de conspiração que visava a substituição do czar. Mas essa
substituição não chegou a acontecer. O que vai acontecer no princípio de 1917 é uma
sucessão de manifestações populares espontâneas que não foram planificadas.
O movimento socialista, que era bastante forte na Rússia, tinha tido já uma grande
experiência revolucionária derrotada - a revolução de 1905. No entanto, estava dividido,
e com o início da Guerra declinou claramente, por efeito da repressão e da contenção da
conflitualidade social. Mas tinha tradições e estava, por assim dizer, pronto a ressurgir.
E é o que acontece em resultado dos motins de protesto por motivos económicos - crise
47

de abastecimentos e falta do pão - e das derrotas sofridas pelo exército, com as


deserções que começam a ser em número cada vez maior. Dentro dessa movimentação
a existência de uma tradição política tem naturalmente o seu peso.
De qualquer maneira, é um conjunto de manifestações espontâneas na capital,
Petrogrado (nome de São Petersburgo entre 1914 e1924) que, em Fevereiro de 1917,
segundo o antigo calendário tradicional da Rússia, ou Março segundo o nosso
calendário, têm um impacto tal que a própria guarda encarregada de as reprimir a certa
altura desiste de o fazer e confraterniza com os manifestantes. Essas manifestações
desembocam naquilo a que se chama a segunda Revolução Russa do século XX. A
primeira tinha sido a de 1905, a segunda é a chamada Revolução de Fevereiro, que
levou à abdicação do czar e à formação de um novo governo. O czar tentou ainda
oferecer o trono ao tio, mas este não se dispôs a aceitar, o que é revelador da situação da
Rússia na altura.
Em consequência forma-se um novo governo. Esse governo é formado a partir do
parlamento que existia, a chamada Duma. Apesar do carácter reaccionário e autoritário
do regime czarista, o parlamento tinha sido uma conquista da revolução de 1905, uma
concessão que o czar se tinha visto forçado a dar. Nesse parlamento, a maioria pertence
a forças que podemos chamar democrático-burguesas. Havia o partido chamado “kadet”
ou “cadete” – nome derivado das suas iniciais “K” e “D”, significando constitucional e
democrático -, que exigia um constituição democrática e apontava para o exemplo da
Inglaterra, mas que não era republicano. Havia depois partidos socialistas,
essencialmente divididos em três. O maior era o Partido Socialista Revolucionário,
essencialmente um partido de intelectuais e camponeses fundado no princípio do século
e derivado do movimento narodnik (populista). Como partido de base operária temos o
Partido Operário Social Democrático da Rússia, que desde 1912 estava dividido entre
mencheviques e bolcheviques. De qualquer maneira, a componente socialista era
minoritária na Duma .
Em função disto, o governo que se constitui, mais ou menos espontaneamente, porque
uma delegação de manifestantes se dirige à Duma, que é aceite pela população, é um
governo presidido por um príncipe, o príncipe Lvof. É um governo dos partidos a que
podemos chamar liberais, nomeadamente o partido cadete e o partido outubrista (este
derivava o nome do manifesto de Outubro de 1905, em que o czar outorgara reformas e
48

a instituição da Duma), com apenas um socialista, de seu nome Alexandre Kerensky,


que entra como ministro da justiça e está lá a titulo pessoal e não como representante
partidário.
Ao mesmo tempo que se constitui este governo formal, que é o primeiro governo
provisório, formou-se um organismo representativo das organizações populares de base,
os conselhos constituídos a nível de fábrica e de quartel pelos operários e pelos
soldados, e depois também os constituídos a nível de aldeia por camponeses – os
sovietes. Os sovietes existem desde a vitória da Revolução de Fevereiro e na prática têm
um enorme poder, porque constituem uma estrutura unificada. Renascem - já tinha
havido sovietes em 1905 - e rapidamente constituem estruturas de coordenação. O
soviete de Petrogrado funciona como coordenador do conjunto dos sovietes. Se
tivermos em conta que uma das suas primeiras resoluções é que as ordens dos oficiais
passam a estar sujeitas ao consentimento dos sovietes dos quarteis, fica-se com uma
ideia do enorme poder que os sovietes têm.
Pode-se dizer que desde essa época existe aquilo a que se chamou uma situação de
duplo poder.
De qualquer maneira, ao princípio o governo provisório conta com o apoio dos sovietes.
Os socialistas são dominantes nos sovietes, porque são eles os mais organizados e
influentes nas classes populares, nomeadamente entre os operários e os soldados. Mas
esses socialistas não ambicionam exercer directamente o poder, porque consideram que
a Rússia não tem ainda condições para o socialismo. Por isso aceitam, num primeiro
momento, a autoridade do governo provisório.

A revolução implicou o agravamento da fraqueza militar da Rússia. O aparelho


administrativo e militar já estava em crise anteriormente. As tropas que sofriam derrotas
sucessivas não tinham vontade de combater, as deserções multiplicavam-se. Agora,
embora quase todos os partidos, inclusive os socialistas, sejam partidários da
continuação da guerra, vai abrir-se uma divisão política. Porque, enquanto os socialistas
querem conduzir uma guerra defensiva, as forças dominantes do governo provisório
pretendem realizar os objectivos imperialistas desde início fixados, nomeadamente a
conquista dos Dardanelos. E quando o ministro dos Negócios Estrangeiros, o cadete
Miliukov, faz declarações nesse sentido, gera-se uma enorme reacção popular que vai
49

ser, logo em Abril, a causa da queda do primeiro governo provisório. Estas condições de
divisão diminuem naturalmente a eficácia militar da Rússia na guerra.
Portanto, e voltando à história da evolução da Guerra, a situação ao longo de 1917
continua complicada porque, por um lado, é declarada a entrada na guerra dos EUA, o
que reforça a posição da Entente do ponto de vista militar, material e até do ponto de
vista ideológico. Por outro lado, a Entente está enfraquecida pela crise russa e essa crise
vai acentuar-se quando, já perto do final de 1917, com a Revolução de Outubro, os
bolcheviques, ou seja, o sector mais à esquerda do socialismo russo, tomam o poder.
Essa revolução bolchevique resultou essencialmente do facto de, nos meses que se
seguiram a Fevereiro, se ter desenvolvido, nas classes populares da Rússia, um vasto
movimento de exigência da paz e resolução dos problemas sociais mais imediatos com,
por exemplo, os movimentos de ocupação de terras e de fábricas. Isso reflectiu-se, ao
nível da organização dos sovietes, no crescente peso e influência do partido
bolchevique.
Por outro lado, houve tentativas de golpe de estado da direita pró-czarista. Isso criou as
condições em que foi possível aos bolcheviques encabeçarem uma iniciativa de tomada
do poder destinada a acabar com o governo provisório e colocar o poder nas mãos dos
sovietes. Por isso, a Revolução de Outubro também se chama Revolução soviética.
E quais são as consequências desta revolução no que diz respeito à guerra?
Os bolcheviques eram contra a guerra e tinham no seu programa pôr-lhe termo o mais
depressa possível. Logo na manhã de 25 de Outubro (7 de Novembro), o Comité
Militar-Revolucionário do Soviete de Petrogrado, que dirigira a insurreição, faz afixar a
seguinte proclamação:

“Aos cidadãos da Rússia.


O governo provisório foi derrubado. O poder do Estado passou para as mãos do Comité
Militar-Revolucionário, órgão do Soviete de Petrogrado dos deputados operários e
soldados, à cabeça do proletariado e da guarnição de Petrogrado.
A causa pela qual o povo lutou: proposta imediata de paz democrática, abolição da
propriedade senhorial da terra, controle operário da produção, criação do governo
soviético – esta causa está assegurada.
Viva a revolução dos operários, soldados e camponeses!”
50

E logo no dia seguinte, na sessão do II Congresso Panrusso dos Sovietes, são aprovados
os primeiros decretos do poder soviético, justamente sobre a paz e sobre a terra. O
Decreto sobre a Paz, no seu primeiro parágrafo, “propõe a todos os povos em guerra e
aos seus governos começar negociações imediatas sobre a paz justa democrática”, quer
dizer, a paz sem anexações nem indemnizações.
51

Lição 7: A I Guerra Mundial. A Rússia: da revolução de Outubro a Brest-Litovsk.


A intervenção americana. O fim do Império Austro-Húngaro e a derrota alemã. A
Revolução de Novembro de 1918 na Alemanha. A conferência de Paz de Paris.15

Um dos pressupostos essenciais dos bolcheviques, ao decidirem a conquista do poder,


foi o de que a consumação de uma revolução socialista na Rússia inevitavelmente
desencadearia movimentos semelhantes noutros países e com toda a probabilidade
precipitaria a revolução na Alemanha, onde as dificuldades da população tinham já
atingido um ponto extremo e onde a esquerda socialista, embora não unificada,
dispunha de organizações e de lideranças fortes.
A verdade é que a expectativa de tal revolução alemã não se confirmou nas semanas
seguintes, mas o que se confirmou foi que os operários, os camponeses e os soldados
russos não queriam nem tinham condições para continuar a lutar.
Como não havia revolução na Alemanha e as tropas alemãs continuavam a avançar na
frente russa, ou o governo soviético capitulava, ou passava a uma guerra de guerrilha
contra o ocupante alemão, perdendo de qualquer modo o poder no imediato. Ou ainda,
entrava num compromisso e tentava uma negociação, porque entretanto, e apesar de
tudo, a Rússia sempre era um grande exército e os alemães ficariam contentes se
conseguissem cessar a guerra na frente oriental para apenas se preocuparem com a
frente ocidental, até porque já estavam bastante aflitos com a intervenção americana,
que ainda não tinha começado, mas que já se sabia que ia começar em 1918.
A opção entre os dois caminhos foi uma das primeiras grandes divisões no governo
bolchevique. Lenin foi o primeiro a defender a negociação mas, para a impor, teve de
chegar a ameaçar com a sua própria demissão de presidente do conselho de comissários
do povo, quer dizer, de chefe do governo. A Rússia concluiu um armistício com a
Alemanha em Dezembro, e logo a seguir iniciaram-se as conversações que acabariam
por conduzir, em Março de 1918, ao tratado de paz de Brest-Litovsk. Este tratado foi
um choque, porque favorecia a posição alemã na Guerra e constituía um enorme
sacrifício de território da Rússia.

15
Transcrição pelo aluno Markus Almeida da aula de 29.10.04, revista e corrigida pelo docente.
52

Na altura do armistício as tropas alemãs já ocupavam uma linha contínua de território


que ia da Letónia aos Cárpatos e ao Mar Negro, mas Brest-Litovsk significa uma perda
de território ainda maior.
A Finlândia já se tinha tornado independente, em Dezembro de 1917, por decreto de
iniciativa do próprio governo soviético, dentro do quadro da política de
autodeterminação. Mas em relação à Ucrânia, cuja relação histórica com a Rússia é
mais antiga e onde chegara a ser proclamado um governo soviético, não era evidente
que se tornasse independente. A Ucrânia tinha grande importância económica, pela
produção de cereais. Em resultado do tratado de Brest-Litovsk, a Rússia soviética não
só reconhece a independência da Finlândia e da Ucrânia, mas também renuncia aos
países bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) e cede território da Transcaucásia à
Turquia. Em relação às fronteiras do Império Russo em 1914, isto significa uma perda
de 800 mil km2, de um quarto da população, quase um terço da produção agrícola e
quase um quarto da industrial, três quartos dos recursos de carvão e minério de ferro.
Além disso, a Rússia fica obrigada ao pagamento de uma forte indemnização de guerra.
Após Brest-Litovsk, os Alemães puderam deslocar mais tropas para ocidente e
empreender, entre Março e Julho de 1918, uma última grande ofensiva, que porém se
defronta com um grau superior de organização (com um comando unificado) das tropas
da Entente apoiadas, a partir do fim da Primavera de 1918, por um milhão de soldados
americanos bem equipados e bem dirigidos.
É no Verão de 1918 que tem lugar a segunda batalha do Marne, que se salda pela
derrota alemã e pelo avanço das tropas aliadas em direcção à Alemanha. É nesta altura
que os tanques e os aviões vão entrar em força na guerra. O alto comando alemão
percebe que a guerra está perdida e, para se salvar, preconiza a nomeação de um
governo parlamentar, para isentar o governo imperial de responsabilidades. Dá-se então
uma reforma política na Alemanha, que visa também criar condiçoes mais favoráveis a
uma negociação, porque um dos grandes ódios dos Aliados era o imperador e a estrutura
imperial da Alemanha.
Mas este governo, presidido por um aristocrata liberal, Max von Baden – governo no
qual também participaram socialistas -, não consegue aguentar-se, devido à eclosão de
rebeliões populares. Ou seja, a revolução alemã que os bolcheviques tinham previsto
53

verificou-se, só que com atraso e, como veremos, com um desenvolvimento e conclusão


política que não é aquela que esperavam.
Ainda em Outubro, a Turquia sai da guerra derrotada.
A 4 de Novembro a Áustria é derrotada, conclui a paz, o Imperador Austro-Húngaro
abdica e dá-se imediatamente a dissolução do Império e, logo depois, a formação da
Checoslováquia e da Jugoslávia. As várias nacionalidades dentro do Império já tinham
os seus próprios movimentos, partidos e líderes.
Na sequência de tudo isto, inicia-se a 3 de Novembro uma revolta popular na Alemanha
– uma revolta de marinheiros no porto báltico de Kiel - e essa revolução vai alastrar
“como uma mancha de óleo” (P.Broué) nos dias seguintes. Tal como aconteceu na
revolução russa, este movimento revolucionário leva à formação de conselhos de
operários e soldados, ou seja, de organismos de representação directa de base em que os
partidos socialistas (que na Alemanha eram dois, um mais à esquerda, o USPD, outro
mais à direita, o SPD) são dominantes.
Finalmente, a 9 de novembro, é proclamada a República em Berlim. De facto, há duas
proclamações da República quase simultâneas por parte de dirigentes socialistas.
Scheidemann, do SPD, frente ao Reichstag (Parlamento), proclama a Livre República
Alemã, enquanto noutro local da cidade Karl Liebknecht, líder da Liga Spartakus,
proclama a Livre República Socialista da Alemanha.
Abre-se um período revolucionário. O Kaiser abdica e foge para a Holanda. Forma-se
um Rat der Volksbeauftragten (conselho de encarregados ou comissários do povo, nome
idêntico ao do governo soviético russo), com representantes apenas dos dois partidos
socialistas. Estes não só estavam divididos entre si como cada um deles tinha divisões
no seu interior. É um dos factores que explicam uma certa falta de operatividade, uma
concentração de facto do governo no líder do SPD, Ebert, e a inacção perante o enorme
poder que a estrutura militar e os seus chefes continuam a deter. A primeira
preocupação deste “conselho de comissários” é restabelecer a ordem, assegurar o
funcionamento da hierarquia e concluir o armistício.

A 11 de Novembro de 1918 é acordado o armistício e termina a Primeira Guerra


Mundial.
54

A evolução do estado de espírito das populações e a influência dos ideais pacifistas da


revolução russa fazem com que no final da guerra existisse uma forte corrente de
opinião no sentido de uma paz sem anexações nem indemnizações. Isto é, uma forte
corrente de opinião que entendia que era preciso pôr definitivamente termo às políticas
de exacerbação nacionalista e de imperialismo e que era preciso criar um mundo novo,
assente em princípios novos, ordenado por uma organizaçao internacional capaz de
conter os conflitos nacionais e as ambições imperialistas das potências, e que viam esse
novo ordenamento como parte de uma necessária renovação político-social no interior
dos países e nas relações internacionais.
Mas esse tipo de expectativas não correspondia apenas ao pensamento das esquerdas
socialistas.
Como vimos, o Presidente dos EUA tinha anunciado 14 pontos que deveriam presidir à
organização da paz no pós-guerra. Estes 14 pontos surgiam como a realização de um
ideal de renovação e democratização das relações internacionais e instauração de
princípios de liberdade e democracia. Na imaginação de muitos, isto corresponderia a
realizar os objectivos dos revolucionários russos sem os custos de uma revolução social
e com o conforto da protecção do presidente americano.
Depois dessa declaração muitos acreditaram que a paz iria estabelecer-se na base de
princípios não-nacionalistas e de renovação social e política.
Mas esta corrente não vai ser a mais determinante. Temos de ter presente o que tinha
sido o nacionalismo da mobilização de ambos os lados na Guerra e o que as violências
acumuladas acentuaram desse nacionalismo - todas as histórias de atrocidades infligidas
pelos Alemães no início da Guerra contra populações civis na Bélgica e no norte de
França, bem como as destruições materiais. O território da Alemanha nunca foi
invadido, sendo por isso da parte dos Aliados a maior parte dos danos materiais
registados.

Depois há o sofrimento dos soldados, os mortos e feridos - são contabilizados 9 milhões


de mortos na Primeira Guerra Mundial e cerca de 20 milhões de feridos; a França sofreu
um milhão e trezentos mil mortos e um número muito superior de mutilados.
Os ódios nacionais permanecem com muita força na visão de alguns dos políticos que
conduziram a guerra, nomeadamente do primeiro-ministro Clemenceau. Segundo esses,
55

era preciso impor aquilo a que se chamou de “paz cartaginesa”16, ou seja, colocar a
Alemanha numa situação tal que jamais pudesse levantar-se para iniciar outra guerra e
fazê-la pagar pelas destruições causadas. Consideravam portanto a Alemanha
responsável pela Guerra e que, mesmo tendo mudado de regime, devia ser obrigada a
indemnizar os vencedores - em termos de alterações territoriais e de pagamentos em
dinheiro.
É esta temática que vai dominar as negociações da Conferência de Versalhes, que se
reúne em Janeiro de 1919 e só vai terminar em Junho desse ano. Conferência na qual a
Alemanha só foi convidada a participar no fim para assinar aquilo que os vencedores
tinham resolvido.
Vale a pena contrastar o conteúdo das resoluções da conferência de Versalhes com
aquilo que eram os objectivos declarados nos 14 pontos do presidente Wilson. Esses 14
pontos incluíam a abolição da diplomacia secreta, a liberdade de navegação, o comércio
livre internacional e a redução de armamentos. Portanto, condições de liberdade e
igualdade entre todos os Estados, nomeadamente nas relações económicas
internacionais.
No aspecto das nacionalidades, os 14 pontos compreendiam: a evacuação da Rússia;
restauração da soberania da Bélgica; restituição à França da Alsácia e Lorena;
rectificação das fronteiras italianas segundo o princípio das nacionalidades;
independência dos povos da Áustria e Hungria; evacuação da Roménia, da Sérvia e
Montenegro; independência dos povos do Império Otomano e independência da Polónia
com acesso ao mar. Havia ainda um ponto relativo à satisfação de justas pretensões
coloniais, portanto dentro da ideia de que era preciso remodelar o regime colonial.
O 14º ponto era o estabelecimento de uma organização internacional (é a Sociedade das
Nações, que fica sediada na Suiça).
As negociações de Paris reúnem representantes de 32 estados, mas os 32 elegem um
conselho de 10 e, na prática, quem realmente decide são quatro primeiros-ministros, os
representantes da França, Clemenceau, da Inglaterra, Lloyd George, dos EUA,
Woodrow Wilson e, de início, também o primeiro-ministro italiano, Orlando. Mais tarde
Orlando abandonou a conferência por não ver as ambições italianas de extensão

16
Expressão derivada das condições impostas por Roma a Cartago após as Guerras Púnicas (séc.
II a.C.).
56

territorial, prometidas pela Inglaterra e pela França no tratado secreto de Londres a troco
da entrada na Guerra, serem correspondidas. A única coisa que a Itália alcançou foram
alargamentos a norte, como veremos, muito aquém do que lhe fora prometido (a maior
parte da Dalmácia, territórios na Líbia e na Eritreia, concessões mineiras na Ásia
Menor).

Da conferência vão sair 5 tratados, cada um com um país derrotado na guerra. O tratado
principal era o tratado com a Alemanha, concluído a 28 de Junho de 1919 e que é o
famoso tratado de Versalhes. Todos estes tratados foram assinados em palácios à volta
de Paris, sendo o de Versalhes o tratado mais importante. E por isso se chama a este
conjunto de tratados e à arquitectura de disposições deles resultante “sistema de
Versalhes”. O Tratado de Versalhes foi o primeiro, seguiu-se o Tratado de Saint-
Germain com a Áustria em 10 de Setembro de 1919, o Tratado de Neuilly com a
Bulgária em 27 de Novembro de 1919, o Tratado de Trianon com a Hungria em 4 de
Junho de 1920, e o Tratado de Sèvres com a Turquia em 10 de Agosto de 1920. O
pacto da Sociedade das Nações passou a fazer parte integrante destes tratados, de que
era o Preâmbulo.
57

Lição 8: O pós-guerra. O novo quadro político europeu. O sistema de Versalhes


e a fundação da Sociedade das Nações.17

Nos vários países a última fase da Guerra foi marcada por uma acentuação da
conflitualidade social e política.
O primeiro país onde essa
conflitualidade explodiu numa revolução
foi a Rússia, em Fevereiro (aliás Março,
segundo o nosso calendário) de 1917,
desencadeando-se a partir daí um
processo revolucionário que desembocou
na revolução socialista de Outubro, ou
como dantes se dizia oficialmente na
URSS, “a Grande Revolução Socialista
de Outubro”. Era uma expressão que
reproduzia aquilo que antes fora a designação da própria Revolução Francesa (também
se falava na Grande Revolução Francesa): para significar que a Revolução de Outubro
tinha um alcance histórico mundial comparável, ou até superior, ao da Revolução
Francesa de 1789.
Aquilo que se passou na Rússia foi uma manifestação agudizada e aumentada de
tendências de ruptura social e política que se manifestaram noutros países e que
levavam muita gente a pensar que, nomeadamente, uma revolução social e política
poderia eclodir na Alemanha. Efectivamente isso acontece, desde Setembro de 1918 que
os exércitos alemães estão em recuo, a derrota dos Impérios Centrais é uma certeza.
Mas aquilo que vai precipitá-la é a recusa dos soldados. O episódio que desencadeia a
revolução na Alemanha é a recusa dos marinheiros da frota do Báltico de realizarem
determinadas missões militares que lhes tinham sido atribuídas e para as quais eles já
não estão dispostos a arriscar a vida numa situação em que era evidente que a Guerra
estava perdida para a Alemanha. Esse levantamento dos marinheiros conduziu a uma
revolução generalizada, que em certos aspectos imita a Revolução Russa, com a

17
Transcrição pela aluna Carla Sofia Carvalho da aula de 05.11.2004, revista e corrigida pelo
docente.
58

formação de conselhos semelhantes aos sovietes de soldados e operários. Mas logo aqui
há uma diferença: no caso alemão não há sovietes de camponeses, isto é, os camponeses
não são uma classe politicamente activa no sentido revolucionário. Para além de serem
também uma percentagem da população muito mais pequena do que na Rússia. De
qualquer maneira, não se mobilizaram, e isso é uma das diferenças estruturais que há
entre as duas sociedades, e mesmo mais globalmente entre as sociedades ocidentais e a
Rússia, que explicam que, na Europa ocidental, nunca se tenha chegado a uma
revolução semelhante à revolução soviética.
Em consequência da revolução na Alemanha, da abdicação do Imperador e do fim
do Império, é concluído o Armistício de 11 de Novembro, que marca o fim da I Guerra
Mundial. Antes disso, em consequência da derrota militar, já em Outubro tinha deixado
de existir o Império Austro-Húngaro, que deu lugar à formação de uma série de novos
Estados.
O problema que se põe no final de 1918 é que os Aliados ganharam a Guerra, é
preciso criar novas estruturas políticas, reorganizar o mapa político europeu, e de certa
maneira reconstituir o mundo em bases novas. É essa a intenção manifestada pelos
Aliados. Todos os governantes tiveram de prometer, para assegurar a participação das
populações, que a Grande Guerra seria a última das guerras. Por um lado, essa ideia de
que valia a pena o esforço supremo, porque depois se entraria num mundo liberto
definitivamente de catástrofes semelhantes, por outro lado a força que o movimento
socialista revelava, obrigavam aqueles que queriam evitar uma solução de tipo socialista
a idealizar algo como solução verosímil para o estabelecimento duradouro da Paz. É
neste aspecto que foi importante o Presidente Wilson, como representante dos EUA,
cuja participação fora decisiva para a conclusão vitoriosa da Guerra e dava, na visão de
muitos, um significado novo ao próprio objectivo da vitória. Wilson tinha-se arvorado
em porta-voz de um conjunto de princípios, nomeadamente os chamados catorze pontos
que constituíam o seu programa de paz, baseados na auto-determinação (o princípio do
direito dos povos à constituição dos seus Estados), na liberdade do comércio e das
comunicações, e além disso na ideia da constituição de uma Sociedade das Nações que
permitiria a solução pacífica dos litígios e uma regulação das relações internacionais
capaz de dar conteúdo concreto àqueles princípios. Porém, a França e a Inglaterra eram
as grandes potências aliadas que desde princípio tinham estado comprometidas na
59

Guerra e as que mais tinham sofrido em termos humanos e materiais. Quer dizer, eram
protagonistas que não se identificavam, embora antes do fim da Guerra não o dissessem
claramente, com o idealismo do Wilson. Nomeadamente o primeiro-ministro francês,
Clemenceau, por várias vezes exprimiu a ideia de que se tratava de fazer a Alemanha
pagar pelo que tinha cometido e de a sujeitar a condições que lhe não permitissem voltar
a levantar-se como grande potência. A Inglaterra tinha uma posição um pouco diferente,
mas que também não se identificava com o idealismo americano. Para discutir tudo isto
e chegar a soluções concretas, reuniu-se uma série de conferências destinadas a regular
a situação das potências vencidas, conferências que decorreram em cinco palácios
diferentes dos arredores de Paris, e de que resultaram, como referi, os cinco tratados que
no seu conjunto formam o sistema de Versalhes.

Olhando para dois mapas da Europa, de 1914 e 1924, há uma diferença que salta aos
olhos, que é a substituição de uma mancha única correspondente ao Império Austro-
Húngaro, em 1914, por um mosaico de Estados, no mapa que retrata a situação após a
60

Guerra. Quanto às alterações territoriais resultantes do tratado de Versalhes, vejamos as


mudanças em relação à Alemanha: encontramos aquilo que correspondia a um dos
primeiros objectivos políticos e também sentimentais da França, a recuperação da
Alsácia e da Lorena, territórios perdidos na guerra franco-prussiana de 1870-71. Eram
igualmente territórios ricos, com importância mineira. Para a Bélgica, a Alemanha é
obrigada a transferir o território do Eupen-Malmédy. Mais a norte, temos a recuperação
pela Dinamarca do Schleswig do Norte, que tinha sido anexado pela Prússia nas guerras
de 1864-66, nas vésperas da unificação alemã. Territorialmente a grande alteração da
situação da Alemanha é a leste e resulta da formação da Polónia, que fica a ser um
grande Estado no centro da Europa, que vai ganhar o acesso ao mar através do porto de
Dantzig (hoje Gdansk), e para ter esse acesso ganha o território que ficará conhecido
como corredor polaco (corresponde a parte da Pomerânia ocidental e da Posnânia). O
corredor polaco permite que a Polónia seja uma potência marítima, mas separa a
Alemanha dos seus territórios da Prússia Oriental. A Alemanha mantém, depois de 1918
e até à II Guerra mundial, esta região da Prússia Oriental, mas ela fica geograficamente
separada do grosso do território alemão. No corredor polaco grande parte da população
é alemã. E naturalmente não é difícil adivinhar que esta amputação de território,
separando a Alemanha em duas partes, é uma situação que vai alimentar muitos
ressentimentos e protestos. Há ainda a registar a alteração na região da Alta Silésia, cujo
destino seria decidido por referendo. O referendo realizou-se mais tarde, foi favorável à
Alemanha, mas não foi cumprido e a Alta Silésia acaba por ficar integrada na Polónia.
Ainda em relação à fronteira leste da Alemanha, é de notar o problema dos Sudetas,
região montanhosa da Boémia predominantemente habitada por alemães e que fica
agora integrada na Checoslováquia. Enquanto eles estavam no Império Austro-Húngaro,
isso não era problema entre a Alemanha e a Áustria-Hungria, que eram países aliados e
uma vez que o núcleo histórico da Áustria era germânico. Mas agora os Sudetas ficam
integrados na Checoslováquia, que é um Estado predominantemente eslavo. Este vai ser
também um dos problemas que a propaganda alemã e que muitos políticos alemães
exploraram no sentido de dizer: então estiveram a prometer-nos um mundo baseado no
direito das nacionalidades, os Sudetas que são alemães são obrigados a viver num
Estado dominado por outra nacionalidade.
61

Ainda em relação ao corredor polaco, interessa dizer que Dantzig, que fica situada
no extremo do corredor polaco, era uma cidade também de população
predominantemente alemã. Dantzig torna-se cidade livre sob a tutela da Sociedade das
Nações. É este estatuto jurídico que a coloca em independência em relação à Alemanha
e com um estatuto próprio em relação à Polónia. Também portanto uma cidade com
uma larga tradição histórica alemã e que é retirada à soberania alemã. Esta questão de
Dantzig, em relação com o corredor polaco e a separação da Prússia Oriental, vai ser
grande motivo de agitação e protesto dos nacionalistas alemães e, em 1939, fornecerá o
pretexto final para a Alemanha nazi desencadear a II Guerra mundial.
Voltando às alterações territoriais a ocidente, elas não se resumiram à restituição da
Alsácia-Lorena e à entrega do Eupen-Malmédy. A Alemanha não existia como Estado
unificado antes de 1870. A região da Renânia tinha a sua especificidade e era, sem
dúvida, historicamente a mais próxima da Europa ocidental, e em vários aspectos em
comunicação próxima com a França e a Bélgica, até no aspecto cultural e político. Com
base nisto, os representantes franceses em Versalhes chegaram a ter pretensões de
separar a Renânia da Alemanha e constituir um novo Estado, que na prática seria um
Estado ligado à França. No entanto, isso não aconteceu, os Ingleses e os Americanos
não aceitaram. De qualquer maneira a França conseguiu impor uma parte das pretensões
que tinha em relação à região do Sarre. As minas de carvão do Sarre tinham um grande
interesse económico e vão ser exploradas pela França, embora a região fique sujeita
politicamente à SDN. Estabelece-se em Versalhes que a pertença definitiva do Sarre
será decidida por plebiscito a realizar quinze anos depois, em 1934. Assim foi, e em
1934 a maioria da população do Sarre votou pela integração na Alemanha, o que
constituiu um dos primeiros grandes êxitos da política externa de Hitler.
Mesmo sem autonomizar politicamente a Renânia, a França conseguiu que ficasse
estabelecido no tratado um estatuto próprio da região do ponto de vista militar. A
Renânia era dividida em três zonas sujeitas a ocupação militar pelos Aliados, uma parte
por cinco anos, outra por dez, e outra por quinze. Além disso, fica estabelecido que
numa faixa, que inclui toda a margem esquerda do Reno e também cinquenta
quilómetros na margem direita, a Alemanha não poderá nunca ter fortificações militares
nem estacionamento de tropas – é aquilo a que se chama a desmilitarização da Renânia.
62

É igualmente importante, para se perceber a História dos anos vinte e trinta, tudo
aquilo que resulta do fim do Império Austro-Húngaro.
A Áustria era o núcleo histórico do Império, por isso mesmo tinha uma grande
capital, Viena, que é ainda hoje uma das grandes cidades europeias, grande em
dimensão, em prestígio arquitectónico e artístico. Era uma grande capital com gente
vinda de toda a parte da Europa e até da Ásia, um cruzamento de civilizações. E não é
por acaso que Viena foi também uma das grandes capitais culturais da Europa no final
do século XIX, onde viveram pensadores e artistas de grande projecção no século XX:
basta citarmos nomes como Freud, Schoenberg, Mahler, Wittgenstein, Robert Musil,
para dizer apenas alguns nomes ao acaso. Agora passa a ser uma enorme capital de
quase dois milhões de habitantes num país de seis milhões de habitantes. Onde o
movimento socialista é bastante forte, numericamente e pela produção teórica, e muito
bem organizado. Isto num país predominantemente rural. Esse contraste entre uma
capital urbanizada e socialista e um país rural e predominantemente católico vai marcar
muito a história da Áustria entre Guerras.
A nova Áustria é um país etnicamente homogéneo, de população germânica. A
integração na Alemanha correspondia ao sentimento de uma grande parte da população,
e era nomeadamente defendida pelos socialistas. Mas esta integração (o “Anschluss”) é
formalmente proibida pelo tratado de Versalhes.
A Áustria sofreu perdas territoriais nomeadamente para a Itália, na região a Sul dos
Alpes e à volta da cidade de Trento, assim como perdeu a cidade de Trieste e a Ístria.
Mas a Itália não ficou satisfeita. Orlando, o primeiro-ministro italiano, abandonou a
Conferência de Versalhes a certa altura porque estava zangado com os resultados, e essa
insatisfação italiana teve grandes consequências também na história de Itália.
A Hungria torna-se também um pequeno país com oito milhões de habitantes e um
terço da superfície anterior, porque perde a Transilvânia para a Roménia.
Constitui-se a Checoslováquia, onde já havia um movimento de unificação nacional
dos checos e dos eslovacos com uma história anterior à Guerra. Os checos têm a capital
em Praga e dominam a região da Boémia e da Morávia, parte ocidental da
Checoslováquia. A Checoslováquia é um Estado plurinacional composto pelos checos,
eslovacos, e rutenos, mas também com um grande núcleo de alemães na zona de
fronteira com a Alemanha. Que são, como vimos, os Sudetas, mais de três milhões.
63

O outro novo Estado que se constitui a partir da dissolução do Império Austro-


Húngaro é a Jugoslávia, que também tem atrás de si um movimento de unificação dos
eslavos do sul (“iug” nas línguas eslavas significa sul). Antes de 1929, a sua designação
oficial era a de Reino dos Sérvios, Eslovenos e Croatas.
De notar que a Dalmácia, no litoral adriático da Jugoslávia, tinha sido prometida
pela Entente à Itália a troco da entrada na Guerra, em 1915, no Tratado de Londres. Mas
acabou por prevalecer o princípio das nacionalidades.

Outra grande alteração resultante dos tratados, nomeadamente do tratado de Sèvres,


foi o fim do Império Otomano e a redução drástica do território da Turquia, que fica só
com Constantinopla e pouco mais na Europa. O território do Império Otomano já tinha
sido muito reduzido na Europa progressivamente, e em particular depois das guerras
balcânicas é ainda reduzido um pouco mais. A grande alteração agora é na Ásia – o
Império Otomano dominava não só a Península da Anatólia como a Mesopotâmia, ou
64

seja o actual Iraque, e dominava também aquilo que corresponde ao Líbano, à Palestina,
à Síria. Depois de 1918 fica praticamente reduzido à Anatólia. Os territórios do Império
Otomano no Médio Oriente são distribuídos entre a França e a Inglaterra. Mas, como os
princípios anti-colonialistas do Wilson obrigavam a dar uma certa aparência de
independência a esses territórios, são atribuídos sob a forma de mandatos da Sociedade
das Nações. Quer dizer, o sistema de Versalhes não acabou com as colónias, nem
acabou com os Impérios coloniais francês e inglês. Mas, em relação aos territórios que
não pertenciam anteriormente à França e à Inglaterra, estes não são atribuídos
directamente mas sim como mandatos da Sociedade das Nações. O território ficava sob
tutela formal da Sociedade das Nações, mas há uma potência colonial que tem o
encargo de, para benefício dos povos tutelados e da sociedade internacional, realizar
funções de administração. É isso que acontece com a Síria e o Líbano, que são
atribuídas como mandato da Sociedade das Nações à França, e com a Mesopotâmia, ou
seja o Iraque e o Kuwait, bem como a Transjordânia e a Palestina, que são atribuídas
como mandato à Inglaterra.
Último aspecto da transformação territorial da Europa é a formação dos novos
Estados na fronteira com a Rússia: a Finlândia, que já no tempo do czarismo gozava de
certa autonomia, e a que é outorgada a independência pelos Russos a seguir à revolução
bolchevique; a Estónia, a Letónia e a Lituânia, que foram abandonadas pela Rússia na
sequência da paz de Brest-Litovsk com a Alemanha; e a constituição da Polónia como
grande Estado no centro-leste da Europa, cuja fronteira com a Rússia deveria passar,
nos termos estabelecidos a seguir ao tratado de Versalhes, pela linha Curzon. De facto,
em consequência da guerra russo-polaca de 1920, a Polónia alarga o seu território e a
fronteira acabará por passar muito a leste da linha Curzon, deixando na Polónia, até
1939, uma parte da Bielorússia.
A Roménia fica muito alargada e integra no seu território população também
heterogénea, em parte húngara, e também russa. De facto, este engrandecimento da
Roménia tem a ver essencialmente com o interesse francês.
Houve ainda algumas redistribuições coloniais em África. A Alemanha perde
completamente as colónias que tinha em África, o Sudoeste Africano, que corresponde
à actual Namíbia, é integrado na África do Sul, e esse vai ser um novo problema
colonial. Havia, além disso, a África oriental alemã, que vai passar para os Ingleses. Os
65

Camarões passam para a França, assim como o Togo. Mas, em todos estes casos se trata
de mandatos, embora na prática a situação seja pouco diferente. O Congo belga tem um
pequeno alargamento da fronteira.
As colónias alemãs do Pacífico passam para a Austrália e para o Japão.

Quanto às disposições do Tratado de Versalhes em relação à culpa da Alemanha na


Guerra e à obrigação de reparações. A Alemanha é considerada no artigo 231º
oficialmente responsável pela Guerra (é a chamada war guilt clause, a cláusula de culpa
na Guerra) e em consequência obrigada a pagar pelos prejuízos: a reparação pelas
destruições materiais, mas também por pensões dos soldados ou atribuídas às famílias
dos que morreram. Em suma, todo o tipo de prejuízos resultantes da Guerra destina-se a
ser indemnizado pela Alemanha. É constituída para esse efeito uma Comissão de
Reparações, que levou muito tempo a trabalhar e em 1921 acabou por fixar a soma de
132 mil milhões de marcos, o que correspondia a duas vezes e meia o Produto Nacional
Bruto da Alemanha nas vésperas da Guerra. Ou seja, uma soma muito grande, destinada
a enfraquecer economicamente a Alemanha. Além disso, é obrigada a entregar a sua
frota de marinha mercante e fazer fornecimentos de carvão e matérias-primas. Ora tudo
isto vai causar uma enorme indignação alemã, devido à situação de miséria na qual
estava mergulhada (e de que é um interessante testemunho o livro do escritor português
Aquilino Ribeiro, Alemanha Ensanguentada18).
Para concluir, há que mencionar que o exército alemão foi obrigado a reduzir
drasticamente os seus efectivos, para cem mil homens, devendo passar a ter apenas
funções de polícia. Fica ainda proibido o serviço militar obrigatório. Acabar com o
serviço militar obrigatório vai significar acentuar o carácter profissional do exército
alemão e com isso agravar o seu espírito militarista, que se manteve impermeável à
transformação democrática do sistema político. Este exército foi proibido de possuir
artilharia pesada, aviação e submarinos. Devia ainda entregar os navios de guerra mas,
perante isso, os alemães preferiram afundá-los.
É claro que estas disposições eram apregoadas como primeiro passo para um
desarmamento geral mas, quando se tratou de dar concretização ao desarmamento dos

18
Aquilino Ribeiro, Alemanha Ensanguentada, Livraria Bertrand, Lisboa, 1935.
66

vencedores, nunca se avançou nada nesse sentido. A partir de 1927 reuniu-se em


Genebra uma comissão preparatória da Conferência internacional do desarmamento,
que essencialmente discutiu o problema do rearmamento alemão. A conferência
internacional propriamente dita realizou-se em 1932-33. Uma vez que o desarmamento
geral não foi realizado, os Alemães logo que puderam começaram a pôr em questão o
seu próprio desarmamento, e logo que tiveram força começaram a rearmar.
O tratado de Versalhes estabeleceu a existência da Sociedade das Nações com sede
em Genebra, com um Conselho de nove membros com direito de veto (mais tarde o
número de membros aumentou para treze), dos quais quatro membros permanentes, e
que eram a França, a Grã-Bretanha, a Itália, o Japão (depois também os membros
permanentes aumentaram). Inicialmente esperava-se que participassem também os
EUA, como co-autores decisivos do sistema. Acontece, e essa é uma das condicionantes
fundamentais da política internacional do pós-guerra, que o Senado americano vetou o
projecto do presidente Wilson de participação na Sociedade das Nações e recusou a
própria ratificação do tratado de Versalhes pelos EUA. Os EUA vão-se orientar nos
anos vinte para uma política chamada de isolacionismo, de não quererem ter nada a ver
com os problemas na Europa. Por consequência, não fazem parte da Sociedade das
Nações.
Estabelece-se o princípio da obrigação da mediação e da arbitragem nos conflitos
internacionais. Mas a capacidade da Sociedade das Nações fica desde logo limitada pelo
facto de que estão fora dela os Estados Unidos, a Alemanha (até 1926), e a URSS (até
1934). Além disso, e ao contrário do que acontecerá com a ONU, a SDN não dispunha
de força militar própria.
Com 42 membros da Assembleia Geral ao início e 48 no final (1940), globalmente a
SDN reflecte um europeísmo que já não correspondia aos factos das relações
internacionais e ao peso que os Estados Unidos têm. Em vários pontos dos impérios
vão-se desenvolver, e em primeiro lugar na Índia, os movimentos independentistas que
vão pôr em causa a ascendência colonial europeia.
A Sociedade das Nações criou organismos subsidiários que tiveram continuidade,
sob formas diversas, até hoje: os mais importantes são o Tribunal Internacional de
Justiça de Haia, um tribunal internacional que se pronuncia sobre conflitos entre os
Estados, o Bureau Internacional do Trabalho (hoje Organização Internacional do
67

Trabalho, OIT) e o Banco de Pagamentos Internacionais (antecessor de organismos


como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, criados em 1944 e com
âmbito de actuação muito mais lato).
68

Lição 9. A crise do pós-guerra. Revoluções e contra-revoluções. A formação da


Terceira Internacional e dos Partidos Comunistas.

A situação política da Europa depois da I Guerra Mundial é antes do mais


caracterizada pelo grande impacto da revolução socialista na Rússia, concomitante com
a expansão e radicalização do movimento operário e socialista praticamente por toda a
parte, o que faz com que uma grande parte das populações encare este período como um
período revolucionário. Estas populações têm esperança de que a revolução iniciada na
Rússia se torne, a curto prazo, uma revolução mundial, ao passo que outra parte das
populações receia ou tem mesmo o pavor de que isso possa acontecer, reagindo
correspondentemente. Em termos esquemáticos, porque cada situação nacional é
específica, e os ritmos dos fenómenos sociais são diversos, podemos dizer que os anos
de 1919-20 são anos vermelhos. São anos de uma ofensiva de esquerda, anos com
marca revolucionária, ao passo que nos anos seguintes - a divisória passa, com
diferenças de país para país, pela crise económica mundial de 1921, que não é muito
falada nem teve efeitos tão catastróficos como a de 1929, mas não deixa de ser uma
viragem no ciclo económico com significado - existe uma nítida quebra dos
movimentos operários, designadamente das greves, e surge em força a reacção de
direita, anti-operária e anti-socialista, reacção quase sempre associada à ideologia
nacionalista. Uma das suas primeiras e mais fortes expressões irá ser o advento em Itália
do movimento fascista e a ocupação do poder por Mussolini em 1922.

Apesar da vitalidade e do vigor das movimentações operárias do pós-guerra, que


levaram os autores a falar de um biénio vermelho nos anos 1919-20 e que levaram as
esquerdas socialistas da época a acreditar que estava aberta uma crise revolucionária, a
posteriori a maior parte da historiografia contemporânea marca um contraste claro entre
o que se passou na Europa ocidental no pós-guerra e o que se passou na Rússia. Na
visão imediata das coisas parecia que aquilo que se iria passar no Ocidente era
semelhante ao que se tinha passado na Rússia. Uma análise mais profunda permite
detectar diferenças estruturais entre dois tipos de sociedade e de organização política,
que em grande parte explicam que o desenlace das lutas sociais tenha sido diferente. A
diferença reside em que, no Ocidente, se verificaram mudanças importantes nos
69

Estados, com grande impacto nas relações internacionais: o colapso do império alemão,
do império austro-húngaro, a formação de novos países- mas trata-se essencialmente de
mudanças nas superestruturas políticas.
Já ao nível das bases da organização socio-política, no que diz respeito à propriedade, à
consistência dos aparelhos de Estado – não só das suas cúpulas mas das formas
institucionais e do enraizamento da força militar –, o quadro que se nos apresenta é
diferente. Ao passo que na Rússia pudemos assistir à desagregação do exército, esta
desagregação praticamente não se verificou em mais nenhuma parte, a não ser
temporariamente em países do Império Austro-Húngaro, que naturalmente foram
afectados pela ruptura do regime. Mas, nos países da Europa ocidental, os vencedores
celebravam a vitória. Especialmente os exércitos francês e inglês, e sobretudo os
franceses que tinham sofrido mais e beneficiavam do prestígio inerente a uma vitória
duramente conquistada. Decerto um prestígio que é também fomentado politicamente,
mas que encontrava eco na população. No que diz respeito à grande potência derrotada,
a Alemanha, é verdade que o exército alemão também sofreu movimentos de
contestação importantes. É verdade que durante a revolução de Novembro de 1918
houve fenómenos que podem ser comparados àquilo que ocorreu aqui em Portugal, com
certas movimentações militares, em 1974-75. Quer dizer, encontravam-se
destacamentos que eram conquistados por facções revolucionárias, mas é um fenómeno
minoritário. O facto de as decisões do tratado de Versalhes terem proibido o serviço
militar obrigatório na Alemanha e terem portanto obrigado à existência de um exército
estritamente profissional, e com um contigente limitado, possibilitou que o espírito de
corpo, muito marcado na tradição do exército alemão, se recompusesse rapidamente,
apesar da derrota, e cuidasse de preservar a sua autonomia para não ser atingido pela
influência dos movimentos sociais.
Outro aspecto importante do aparelho de Estado é o que diz respeito ao
funcionamento da educação. As universidades tinham na Alemanha uma forte tradição
conservadora que pouco foi afectada pela revolução política. Também as universidades
mantiveram esse espírito de corpo.
O aparelho judicial manteve-se de pé com a mesma composição, a mesma extracção
social. De maneira que a posteriori pode dizer-se, como escreve Massimo Salvadori,
70

que a crise foi das instituições e das técnicas do poder mais do que propriamente da
estrutura do Estado19.
De qualquer maneira, vale a pena referir resumidamente os acontecimentos principais
nos vários países.
Na Alemanha, como vimos, dá-se em Novembro de 1918 uma revolução resultante da
rebelião das tropas, em primeiro lugar dos marinheiros. Num curto espaço de tempo
constituiu-se uma estrutura de conselhos de operários e de soldados, o que fez pensar
que se estava a reproduzir o que passara na Rússia revolucionária com os sovietes.
Contudo, desde os primeiros dias e mesmo depois de a revolução ter conduzido à
abdicação do imperador e à proclamação da República, tornaram-se claras as diferenças
em relação ao que se passou na revolução russa. Em primeiro lugar, a ausência do
campesinato nas lutas sociais. Embora em algumas regiões - nomeadamente na Prússia
oriental - persista o problema agrário, com a existência de grandes latifúndios e a
existência de uma massa de trabalhadores rurais muito explorados, muitos de origem
polaca. O certo é que esses trabalhadores são trabalhadores que se sujeitam às tradições
da velha aristocracia prussiana e portanto não constituem propriamente um campesinato
sedento de terra, reclamando a terra. É uma parte da classe trabalhadora em que o
movimento operário não conseguiu ganhar influência consistente.
Nas zonas mais ocidentais da Alemanha, onde havia um campesinato independente,
justamente esse campesinato independente tinha ao longo do século XIX prosperado,
tinha-se estabilizado como classe possidente, e não é portanto minimamente sensível às
temáticas socialistas. Portanto, apesar de nos programas teóricos do socialismo alemão a
questão agrária ter uma longa história, haver longas análises e de os socialistas terem o
seu programa agrário, a verdade é que essa tentativa de conquista dos camponeses
nunca conseguiu, antes da Guerra, um êxito suficiente, e isso reflecte-se no pós-guerra,
na ausência da mobilização dessa classe.
De uma maneira geral, no Ocidente a situação do campesinato é, salvo poucas
excepções, caracterizada pelo conservadorismo, que é a regra. Essas excepções são no
sul da França, onde havia um pequeno campesinato identificado com as causas de
esquerda (a tradição da Revolução Francesa e a República), mas que não constitui um

19
Massimo Salvadori, Storia dell’Età Contemporanea, Loescher, Turim, 1976, p.562.
71

movimento propriamente revolucionário. Uma outra excepção é a que se verifica na


Itália, e aí com componentes diferentes: por um lado, o movimento de assalariados
rurais no norte e centro, que é mobilizado pelo Partido Socialista durante os anos do
pós-guerra; por outro lado, um movimento de camponeses do sul que desencadeiam
ocupações de terras, mas entre os quais o Partido Socialista não tem organização
suficientemente consistente. Outro caso ainda, talvez o mais importante, em termos de
mobilizações de camponeses, é o da Espanha. Aí sob forte influência anarquista e
localizada geograficamente. O movimento camponês na Espanha foi uma realidade,
mas o facto de estar sob influência anarquista condicionou a sua eficácia política. De
qualquer maneira, é uma realidade que prosseguirá e que não é alheia ao facto de a
Espanha ter sido mais tarde, em 1936-39, o único país da Europa ocidental onde se
verificou uma guerra civil em que a componente agrária é essencial. Uma guerra civil
que é simultaneamente uma revolução falhada, derrotada , mas que é uma revolução.
Quanto às classes médias urbanas, na Rússia revelaram-se fracas. Mesmo se antes da
revolução de 1917 estavam numa posição de oposição ao czarismo, não conseguiram
suficiente consistência em termos político-partidários para representarem uma
alternativa ao socialismo. No Ocidente, pelo contrário, as classes médias revelaram-se
mais integradas nos sistemas partidários, através dos partidos liberais e democratas-
cristãos: na Itália, por exemplo, onde é um novo partido democrata-cristão que se
constitui no pós-guerra, o chamado Partido Popular, mas também na Alemanha, o
Partido do Centro Católico (Zentrum), que é não só um partido de burguesia urbana,
mas também influente na Baviera, uma região predominantemente agrária. No fundo
esse partido do Centro é o antepassado daquilo que nos últimos 50-60 anos tem sido a
democracia-cristã na Alemanha. Partido que, de resto, está organicamente dividido em
dois (CDU e CSU), aliás já no tempo da república de Weimar também tinha expressões
diferenciadas na Baviera e no resto da Alemanha
Voltando à sequência dos acontecimentos. Surge-nos em Novembro de 1918 na
Alemanha um quadro parecido com o da revolução russa, com a formação de conselhos
de operários e de soldados, dominados pelos dois partidos socialistas que existiam na
Alemanha na altura, mas, primeira grande diferença: ausência de conselhos de
camponeses. Segunda grande diferença: apesar da existência, tal como na Rússia, de
uma divisão do movimento socialista, em moderados (partido social-democrata, SPD) e
72

esquerda (USPD, partido social-democrata independente), na verdade é o SPD, os


chamados social-democratas majoritários, que tem a maioria nos próprios conselhos de
soldados e operários. Mas não é só essa a diferença. Ao contrário ao que acontecia na
Rússia, onde o partido bolchevique era fortemente unido e com uma direcção política
bem definida, a esquerda socialista alemã representada pelo USPD era uma coligação de
socialistas que se tinham oposto à guerra, mas que no pós-guerra não tinham grandes
motivos doutrinários de unidade entre si e que os diferenciassem claramente do SPD.
Portanto há uma certa oscilação e indecisão, que faz com que, embora no primeiro
governo que se constituiu na sequência da revolução, o chamado Conselho de
Comissários do povo (Volksbeauftragten), os dois partidos estivessem representados
em pé de igualdade, na prática era o chefe dos maioritários (o líder socialista Friedrich
Ebert) quem comandava. Ele próprio dizia “eu odeio a revolução como a peste”. O que
ele pretendia era canalizar as coisas para o restabelecimento da normalidade das
instituições e para garantir o armistício, nomeadamente porque havia a ideia de que o
prolongamento de uma situação revolucionária poderia proporcionar a intervenção
directa dos Aliados (a Alemanha não chegara a ser ocupada militarmente). Ele queria
evitar isso e sobretudo fazer regressar o respeito pela hierarquia militar. A aliança entre
Ebert, na prática líder do governo e depois Presidente da República, e o Estado-Maior
alemão, foi a chave da consolidação da situação no sentido parlamentar e da liquidação
do esboço de movimento soviético que chegou a existir. Esse acordo foi muito estreito,
e na acção repressiva intervieram também as milícias dos Freikorps (corpos-francos,
isto é, milícias de voluntários). Muitos deles tinham estado envolvidos na Guerra até ao
final, na frente oriental, já em combate com os russos, quer antes de Brest-Litovsk, quer
mesmo depois, em apoio das tropas brancas na guerra civil russa ou na defesa dos
novos Países Bálticos (Estónia, Letónia, Lituânia), que constituíam uma base de
operações anti-soviética. Portanto essas milícias, animadas de um forte nacionalismo,
são agora mobilizadas para reprimir o movimento operário, e nomeadamente para
conter a mobilização de sectores de marinheiros captados pela esquerda revolucionária,
pelo grupo de Spartakus, nomeadamente, que vai ser o embrião do partido comunista
alemão, o KPD (Kommunistische Partei Deutschlands), dirigido por Rosa Luxemburg e
Karl Liebknecht . Estes defendiam uma república de conselhos e é contra isso que se
mobilizam os Freikorps.
73

Tal como aconteceu em Portugal a seguir ao 25 de Abril de 1974, a esquerda tinha


conquistado posições de poder, por exemplo, a nível local. O chefe da polícia de
Berlim, eleito no decurso da revolução, Emil Eichhorn, era um homem da esquerda do
USPD, digamos próximo de Spartakus. Uma das medidas do governo vai ser a
demissão forçada do Eichhorn. Essa demissão acarreta protestos das esquerdas,
manifestações, mobilizações. É a mobilização contra essa medida do governo que gera
uma situação de confronto militar e a ocupação pelas esquerdas, por militantes
espartaquistas, de posições de poder, nomeadamente dos locais do jornal do SPD, o
Vorwaerts. Foi a isto que se chamou a insurreição espartaquista de Janeiro de 1919. Na
verdade, foi o contrário do que aconteceu em Outubro de 1917 na Rússia onde, por
detrás da tomada de poder, existiu um trabalho minucioso de preparação técnico-militar.
Quer dizer, os bolcheviques na Rússia, antes de organizarem a insurreição, tinham
influência política crescente nos sovietes de toda a Rússia e sobretudo no soviete da
capital, São Petersburgo, e através do soviete dispuseram de destacamentos militares
para os objectivos políticos. Na Alemanha, na chamada insurreição espartaquista, não
havia nada disso. Havia algumas tropas, digamos, simpatizantes da extrema-esquerda,
mas a movimentação ocorreu espontaneamente, em protesto contra as decisões do
governo e nomeadamente contra a demissão do presidente da Polícia de Berlim. A
insurreição não foi um movimento planeado, e por isso foi facilmente derrotada. No
decurso dos acontecimentos os oficiais dos corpos-francos liquidaram a Rosa
Luxemburg e o Karl Liebknecht com um tiro na nuca. Essa decapitação do socialismo
alemão teve também influência no curso ulterior dos acontecimentos, quer dizer, no
facto de a esquerda ter ficado, a partir daí, claramente enfraquecida ao nível dirigente.
Já em 1919, realizam-se as eleições para a Assembleia Constituinte, que vem a reunir
em Weimar. Dessa reunião da Constituinte o que resulta é o estabelecimento de um
regime parlamentar pluripartidário. Nas primeiras eleições a esquerda tem uma
expressão eleitoral bastante grande. O SPD é o partido mais votado, o USPD tem
também expressão importante mas, em lugar de se formar uma coligação desses
partidos, o SPD, os socialistas maioritários de direita, realizam uma coligação com
partidos burgueses: o partido do Zentrum, ou seja, a democracia-cristã, e o chamado
Partido Democrático (DDP). É essa coligação que vai inicialmente governar.
74

Um traço característico da República de Weimar, e também neste aspecto comparável


àquilo que se passou em Portugal depois de 1974, é a Constituição, aprovada em 1919.
A constituição de Weimar tem um forte aspecto social. Num contexto em que as
expectativas de revolução social eram grandes e o prestígio da ideologia socialista era
muito forte, o mínimo que o novo regime podia oferecer era a outorga de direitos aos
trabalhadores - direitos inovadores para o contexto da época. Ainda antes das eleições, o
governo estabeleceu as 8 horas de trabalho (norma que foi pouco depois adoptada por
uma convenção internacional, a convenção de Washington de 1919, promovida pelo
Bureau Internacional do Trabalho). A Constituição de Weimar, ao mesmo tempo que
mantém o direito de propriedade privada, é obrigada a reconhecer a existência de
conselhos de trabalhadores com poderes de fiscalização da actividade empresarial e de
intervenção económica ao nível regional e nacional20. É também criado um sistema de
segurança social inovador, com o estabelecimento, uns anos mais tarde, do subsídio de
desemprego, por exemplo. A Constituição criava ainda as chamadas comissões de
socialização, que visavam preparar, em certos sectores da economia, como o sector
mineiro por exemplo, a socialização da propriedade. É claro que a maior parte destas
disposições fica letra morta, porque a ulterior evolução das relações de força sociais, a
consolidação do regime capitalista, impediu que elas fossem aplicadas. A introdução
destas medidas reflecte um determinado período e, uma vez passado esse período
revolucionário, elas são esquecidas. Mais tarde, quando o problema de desemprego, no
final da década de 20, se vai colocar de uma forma aguda para as grandes massas
trabalhadoras na Alemanha, a solução que o Estado vai encontrar são os sucessivos
cortes nos direitos garantidos até então.
Neste aspecto há muitas comparações que podem ser feitas com aquilo que se passou
em Portugal neste últimos trinta anos. A Constituição portuguesa de 1976 teve um
carácter socializante e de resto ainda hoje, no seu Preâmbulo, fala em “abrir caminho
para o socialismo”. Também no caso português houve medidas de socialização
importantes mas, uma vez que não se deu uma transferência social de poder,
ulteriormente as medidas socializantes foram anuladas, ou melhor: ao longo dos anos
foram deixadas por aplicar e depois anuladas formalmente.

20
V. José Luís de Moura Jacinto, O Trabalho e as relações Internacionais, Instituto Superior de
Ciências Sociais e Políticas, Lisboa, 2002, p. 207.
75

É um fenómeno semelhante que se passou na Alemanha. Em todo o caso, na Alemanha,


a existência de sectores da classe operária com uma vontade de revolução social
traduziu-se na própria alteração do sistema partidário, porque em finais de 1920 a
maioria do USPD (esquerda socialista) fundiu-se com o KPD, o partido comunista. E,
em consequência, o Partido Comunista Alemão tornou-se, a partir dos fins de 1920, o
segundo maior partido comunista do mundo, a seguir ao soviético.
Apesar de tudo houve importantes episódios de revolução social na Alemanha, como a
república de conselhos (Raeterepublik) da Baviera. Foi um episódio breve, que durou
cerca de três semanas. Aconteceu de facto em Munique que, na sequência do
assassinato de um líder socialista que de resto nem era especialmente de esquerda, um
líder pacifista com certo prestígio pessoal chamado Kurt Eisner, e da reacção que tal
acontecimento suscitou, constituiu-se em 7 de Abril de 1919 uma república de
conselhos. A esquerda socialista e anarquista, no meio da qual se encontravam
intelectuais significativos como Ernst Toller e Erich Muehsam, tomou o poder, e nos
dias seguintes o movimento estendeu-se a outras cidades da Baviera. Na sequência dos
acontecimentos, foram sobretudo os comunistas, presididos por Eugen Leviné, que
assumiram um papel dirigente Esta república de conselhos da Baviera foi esmagada ao
fim de três semanas por intervenção directa do Exército e dos Freikorps, sob as ordens
do ministro social-democrata Gustav Noske, e muitos dos participantes no movimento
foram executados.
Como é que se explica a pretensão de, numa simples região como a Baviera, constituir
uma república sovietica? Explica-se porque também no resto da Alemanha existiam
ainda conselhos operários e destacamentos das forças armadas simpatizantes do
objectivo socialista, e porque simultaneamente na Hungria, em Março de 1919, se dera
a formação de uma república de conselhos, com a tomada de poder por parte dos
comunistas. Por um breve período de três semanas, em Junho-Julho, houve também
uma república soviética na Eslováquia. Portanto, a ideia de revolução socialista
europeia continuava a estar de pé. Mas a república dos conselhos da Baviera foi
esmagada e o mesmo aconteceu na Hungria poucos meses depois.
O que é que se passa na Europa do pós-guerra em termos políticos? Já vimos que a
Áustria formou-se como pequeno Estado com uma grande capital, que continua a ser
Viena. A capital é socialista na sua maioria, mas está imersa num conjunto
76

predominantemente agrário e não socialista. Também aqui na Áustria os socialistas têm


uma grande influência inicial que vão perder progressivamente. Tanto na Áustria como
na Hungria, existe a tentativa de tomada de poder pela esquerda socialista, mas foi na
Hungria que o movimento assumiu maior expressão. De início, em consequência do fim
do império austro-húngaro, constituiu-se um governo de coligação presidido por uma
velha figura do nacionalismo húngaro, o conde Karolyi. Acontece que, no caso húngaro,
a movimentação social e a influência de um núcleo importante de intelectuais de
orientação socialista se vai combinar com a questão nacional, derivada da perda de
territórios para a Roménia, e em parte também para a Checoslováquia, que a Hungria
tinha sofrido. De maneira que isso fazia com que alguns elementos nem especialmente
socialistas, mas por razões nacionais, pensassem que a única salvação da Hungria era
uma coligação com a Rússia. Daí a extensão que ganhou o apoio ao movimento
revolucionário, que resulta em Março de 1919 na unificação entre os dois partidos
operários: o partido socialista e o partido comunista, e essa unificação dá-se sob a
influência dominante dos comunistas, liderados por Bela Kun.
Este nome tornou-se conhecido no pós-guerra. Era um socialista que tinha sido
prisioneiro de guerra na Rússia, como cadete do exército austro-húngaro. Ficou preso na
Rússia e foi lá que se tornou comunista e depois da revolução de Outubro regressou e
fundou o Partido Comunista Húngaro, que depois se funde com os socialistas. Este
homem acabará por morrer na URSS em 1939, na prisão, vítima da repressão
estalinista. Mas em 1919 foi o chefe do governo soviético da Hungria. Um governo que
durou mais que o da Baviera: 4 meses e 10 dias, tendo ficado conhecido como a
Comuna de Budapeste. Governou entre 21 de Março e 1 de Agosto de 1919. Este
governo contou com a participação de figuras importantes da intelectualidade da época,
não apenas conhecidas na Hungria mas com uma certa influência europeia. O mais
famoso deles foi o filósofo Gyorgy Lukács, uma figura importante da filosofia marxista
do século XX, nomeadamente por duas grandes obras, uma mais tardia, chamada A
Estética, outra de tipo filosófico-político e ainda integrada no contexto destes
acontecimentos e do espírito revolucionário da época: História e consciência de classe,
publicada em 1923. Este homem foi ministro da educação do governo soviético de Bela
Kun. Também um dos pais da psicanálise, o Ferenczi, participou destes acontecimentos
da revolução húngara.
77

A revolução húngara foi derrotada por dois factores essenciais. Por um lado nunca
conseguiu o apoio camponês, em parte por erros de radicalismo, de sectarismo que
levaram ao isolamento da classe operária. Por outro lado, foi derrotada militarmente por
uma intervenção conjunta da Roménia e da Checoslováquia, com o apoio da França
sobretudo. Assim, este governo foi derrotado no verão de 1919. No início pareceu uma
derrota momentânea, mas era o princípio do fim da grande vaga revolucionária do pós-
guerra. Depois de um breve governo social-democrata, que nem durou uma semana, o
poder foi conquistado pelas forças mais reaccionárias, que desenvolveram uma
repressão violentíssima sobre os participantes da república dos conselhos. Foi o
governo do regente Horthy, almirante de um país que deixara de ter Marinha. O
almirante Miklos Horthy, representante da velha classe senhorial, intitulou-se regente,
porque a Hungria voltou a ser uma monarquia, mas ao mesmo tempo recusou o regresso
do herdeiro do trono, porque não estava disposto a abdicar do seu poder pessoal.
Durante a II Guerra mundial o Horthy colaborou com o Hitler e chegou até a ser julgado
no tribunal de Nuremberga, que o absolveu. Depois encontrou acolhimento junto do
Salazar, no Estoril, onde veio a morrer em 1957. Tal como aconteceu com alguns outros
representantes das casas reais europeias que tinham ficado desempregados em resultado
da II Guerra mundial.
Resumindo. Foi num contexto de grandes expectativas de transformação socialista que
se fundou em 1919 o Comintern, ou seja, a Internacional Comunista ou Terceira
Internacional. Aqueles que viram o filme da semana passada, viram lá o Lenine na sua
intervenção no I Congresso do Comintern, dizendo: “não temos dúvidas que a vitória da
revolução soviética mundial esta assegurada”. O Zinoviev, que foi eleito presidente da
Internacional Comunista, faz um discurso dizendo que a vitória do comunismo na
Europa não é uma questão de anos, é uma questão de meses ou de semanas, porque eles
olhavam para o que se passava na Alemanha, onde é certo que a insurreição
espartaquista tinha sido derrotada mas havia a República de conselhos da Baviera,
olhavam ao que se passava na Hungria onde acabava de se impor a República dos
conselhos de Budapeste, olhavam para o que se passava na Itália onde havia um
movimento intenso, não só do operariado mas também de trabalhadores rurais, e um
grande Partido Socialista com um programa bastante radical. A fundação da
Internacional Comunista teve no imediato um eco favorável numa grande parte dos
78

partidos socialistas do mundo, e nomeadamente europeus, justamente porque eles


reflectiam esta expectativa de transformações. Até em Portugal as Juventudes
Socialistas decidem estabelecer contacto com a Internacional Comunista Juvenil,
embora isso não tenha tido concretização prática. Quando se funda o Partido Comunista
Português, dois anos depois, o contexto é já diferente.
Mas mais importante do que o que se passou em Portugal: os grandes partidos
socialistas europeus, quer os Independentes alemães do USPD, quer a SFIO (o Partido
Socialista francês), quer o Partido Socialista Italiano decidem participar no II Congresso
da Internacional Comunista, em Julho de 1920, em Moscovo. Trata-se de grandes
formações de massa, representativas da classe operária europeia ocidental.
Este II congresso da IC efectua-se ao mesmo tempo que decorre a guerra russo-polaca,
com o avanço das tropas russas sobre Varsóvia, o que permite pensar que, se a guerra
for ganha, se a Polónia for conquistada pelo comunismo, isso se vai repercutir na
Alemanha e reanimar aí os movimentos de conselhos. É neste quadro que o II congresso
da IC adopta uma decisão que teve grande alcance histórico para o movimento operário
mundial: a fixação das chamadas 21 condições de admissão na Terceira Internacional,
que obrigavam cada um desses partidos a conformar-se com um modelo que era
essencialmente o do Partido Comunista russo. Um partido centralizado em que as
fracções parlamentares estavam subordinadas à direcção, a imprensa partidária não
tinha autonomia, em suma um partido estritamente centralizado e revolucionário, com a
obrigação de desenvolver acção revolucionária no interior das forças armadas. Estas
condições vão ser recusadas por uma parte dos socialistas que participavam no
congresso, vão assim causar uma divisão definitiva no movimento socialista europeu,
entre aqueles que aderem à Internacional Comunista e que vão dar origem aos Partidos
Comunistas e aqueles que não aderem. Portanto, é a partir daí que se consolida
definitivamente a divisão entre as duas grandes correntes do socialismo, a comunista e a
social-democrata. As consequências práticas variam de país para país: na Alemanha, a
maioria do USPD aceita as 21 condições e funde-se com o KPD, mas no caso italiano a
maioria do PSI irá recusar. Em Itália o Partido Comunista constituiu-se numa base
minoritária. No caso da França, é a maioria do partido socialista francês (SFIO) que se
transforma no Partido Comunista Francês. Globalmente, na maior parte dos países
79

europeus, a corrente social-democrata vai manter, ou recuperar a curto prazo, uma


influência maioritária.
80

Lição 10. A crise da Guerra e do pós-guerra em Itália. O movimento das ocupações


de fábrica. O fascismo: das origens à “marcha sobre Roma”. Formação,
características e impacto internacional do regime fascista.

No contexto da Europa do pós-guerra, a Itália é à primeira vista um caso paradoxal: é


um dos países que conheceram uma maior vaga de mobilizações operárias e socialistas,
mas também aquele onde se consolida, a partir de 1922, um governo de direita dedicado
à liquidação do movimento revolucionário, e que procede a essa liquidação na base de
uma mobilização contra-revolucionária. Quer dizer, aquilo que a Itália traz de novo é
que, contra a ameaça socialista que tinha estado pendente nos primeiros anos do pós-
guerra, opõe métodos que em parte se inspiram da movimentação socialista, só que
mobilizam outras camadas e mobilizam-nas justamente contra o socialismo. E outro
aspecto: não se limita a uma tentativa de reposição da normalidade (como num certo
sentido o movimento reaccionário do Horthy na Hungria era uma reposição da
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normalidade tradicional, isto é, do governo dos grandes proprietários). Aquilo que a


Itália tem de novo é que se apresenta como revolucionária, mas revolucionária de uma
revolução anti-socialista e anti-internacionalista.
Todo este conjunto de acontecimentos, uma vaga revolucionária primeiro, uma vaga
fascista depois, tem uma explicação. E tem raízes: por um lado nos próprios
condicionalismos da formação do Estado unitário italiano, que só se concluiu em 1870.
Tem por outro lado a ver com os problemas decorridos durante a Guerra, porque em
Itália, ao contrário da França ou da Alemanha, a maioria da população era desde início
contra a entrada na Guerra. A oposição não era só do Partido Socialista, era também,
por exemplo, dos meios católicos, que na Itália são uma influência maioritária. A Igreja
estava contra a participação na Guerra. Ao passo que noutros países europeus a
oposição à guerra tinha sido essencialmente um facto de minorias, e mesmo dentro do
movimento socialista a maioria aderia a posições nacionalistas, em Itália não. A
oposição à guerra é muito generalizada, mas por outro lado há desde cedo uma
mobilização nacionalista pela intervenção. Também essa mobilização pela intervenção
teve alguma coisa de específico. Quer dizer, não correspondia a um simples patriotismo
de defesa nacional, como na maior parte dos países: o Império Austro-Húngaro defendia
a sua qualidade de Império que era posta em causa pela Sérvia, a Alemanha defendia o
Império Austro-Húngaro, a França defendia as suas fronteiras. Praticamente todos os
países justificavam a guerra a partir de motivos defensivos, não se davam como
agressores, a própria Inglaterra defendia a neutralidade belga. No caso italiano, o que é
singular é que os intervencionistas desde início proclamam o objectivo de alterar a
situação: para completarem a unificação italiana, conquistando territórios pertencentes
ao Império Austro-Húngaro onde havia populações de língua italiana, mas também mais
amplamente para uma afirmação como grande potência. Há no caso italiano, em parte
com semelhanças com o caso da Alemanha, a pretensão da conquista do lugar ao sol,
isto é, de ser aceite como uma grande potência. É esse o sentido do tratado de Londres e
das condições que nele a Itália procurou garantir para a sua entrada na Guerra.
A guerra correu mal e, embora se concluisse pela vitória, as negociações de Versalhes
vieram desiludir as ambições expansionistas da Itália, o que contribuiu para
desprestigiar o sistema de poder existente. Mas a Itália transformou-se durante a guerra.
Continua dividida entre norte e sul e com um contraste grande entre um norte
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industrializado e um sul agrário mas, sobretudo no norte, há uma transformação


económica, no sentido da concentração, ao mesmo tempo que se formam grandes
fortunas baseadas na especulação e no mercado negro, com o aparecimento dos novos-
ricos. Verifica-se uma maior consolidação da classe patronal, que justamente está na sua
base mais unificada pela existência das grandes indústrias. Toda esta transformação
económica e social acompanhou os grandes custos humanos da Guerra – foi um dos
países que sofreram maior número de vítimas - e as grandes promessas de renovação
feitas para o pós-guerra. Naturalmente, o crescimento industrial traduziu-se num
crescimento do movimento operário que tinha tradições importantes, inicialmente
anarquistas e, desde o fim do século XIX, também uma presença socialista forte,
embora mais localizada no norte do país.
Além disso, o movimento social durante a Guerra registou também mobilizações
espontâneas contra a carestia de vida, do tipo das que também se verificaram em
Portugal: assaltos a estabelecimentos, por exemplo padarias, e a armazéns, com
objectivo de obter directamente o pão e os géneros essenciais. Há ainda uma
mobilização importante dos assalariados rurais, sobretudo na região do vale do Pó, que
atravessa o norte da Itália, e também dos rendeiros do centro, que impõem aos
proprietários contratos mais favoráveis. É muito importante a criação das ligas agrárias,
que conquistam não só salários mais elevados, mas garantias de emprego. Quer dizer, os
proprietários mantêm-se mas são obrigados a dar emprego todo o ano. São movimentos
semelhantes àqueles que tivemos em Portugal, no Alentejo, em 1911/12, a seguir à
implantação da República, com este objectivo de assegurar emprego todo o ano.
Estas ligas agrárias foram bastante eficazes, nomeadamente porque contavam com o
apoio das autarquias socialistas, conjugando-se a acção do movimento sindical com a do
Partido socialista e os êxitos eleitorais que os socialistas tiveram nas eleições de 1919.
O movimento sindical cresceu, passando de menos de meio milhão de sindicalizados
para quatro milhões, metade dos quais agrupados na confederação do trabalho(CGL).
Acresce a isto que o Partido Socialista Italiano, embora dividido em várias correntes,
tem à sua frente Giacinto Menotti Serrati, um líder histórico da chamada ala
maximalista, isto é, da ala esquerda revolucionária, que constitui a maioria. O PSI
conquista um terço dos votos nas eleições parlamentares de 1919. Outro partido com
83

implantação popular, nesta altura, é o partido democrata-cristão, que tem então o nome
de Partido Popular Italiano.
Este partido tem mais de 20% dos votos. É, nesta fase, um partido reformista dirigido
por um precursor do catolicismo de esquerda chamado Luigi Sturzo, que era padre.
Nunca se deu uma coligação entre os socialistas e esta força reformadora porque no
socialismo da época existe um forte peso do anticlericalismo. Além de que os populares
(democratas-cristãos) têm a sua base no campesinato, os socialistas são operários, têm
as ligas agrárias, não querem saber grandemente da questão dos pequenos proprietários.
A verdade é que a situação que se desenvolve em 1919-20 parece confirmar o tal
maximalismo, a ideia de que os socialistas intransigentes por si sós poderão conquistar
uma maioria populacional. No Verão de 1920, em reacção ao lock-out das fábricas da
FIAT de Turim, os operários, organizados em conselhos de fábrica, decidem não só
uma greve, mas uma greve com ocupação das fábricas e continuação da produção. O
que exige já um certo grau de organização. Este é um movimento que não fica
circunscrito a Turim mas se alarga às principais cidades do norte, nomeadamente Milão
e Génova.
Este movimento de ocupações de fábrica gerou uma enorme esperança, um sentimento
de que a revolução estava iminente, tanto mais que nesta acção também participavam
intelectuais que então aderiram ao movimento socialista, alguns dos quais vieram a ser
figuras de certo significado no pensamento político da esquerda do século XX: Antonio
Gramsci, por exemplo, uma figura de grande importância do pensamento político
socialista mas também da sociologia da cultura e da sociologia política em geral, a partir
da obra que vem a escrever em cadernos dispersos, em condições difíceis, na prisão, sob
a ditadura de Mussolini. Foram os famosos Cadernos do Cárcere, que constituem o
essencial da sua obra de maturidade. Na época do movimento dos conselhos de fábrica,
em que era ainda jovem, ele foi um dos organizadores do movimento e um dos seus
ideólogos através de um jornal chamado L’Ordine Nuovo (a ordem nova), de que era o
redactor principal. Outra figura também importante na História e que esteve envolvida
neste movimento foi o homem que depois se tornou o líder do Partido Comunista
Italiano durante mais de trinta anos, Palmiro Togliatti, também ele um intelectual.
O certo é que, apesar de toda a projecção que alcançou, o movimento das ocupações de
fabrica foi uma vaga que se desfez na areia, por assim dizer. Com a habilidade do
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primeiro-ministro Giolitti, uma figura histórica da política italiana. O Giolitti era uma
velha raposa que tinha já um longo passado de governante nos tempos anteriores à
Guerra e desde o século XIX, mas Gioliti tinha sido um opositor da guerra e por isso
estivera um bocado afastado e só regressou ao poder em 1920. Ele apercebeu-se de duas
coisas: primeira, que o movimento podia ser canalizado num sentido puramente
sindical, porque o Partido Socialista tinha ficado passivamente a olhar o que se passava;
segunda, sendo sindical, poderia ser tratado pela via das negociações de trabalho, com
o governo como terceira parte nas negociações entre patrões e operários. Assim,
favoreceu uma solução que garantia aumentos salariais e férias pagas, simultaneamente
adiando (mas sem as negar formalmente) as reivindicações políticas relativas ao
controlo operário. Depois desse acordo o movimento refluiu.
Esta derrota, que se deu já num contexto em que globalmente, a nível europeu, a grande
vaga revolucinária do pós-guerra estava em refluxo, vai acentuar a desmoralização na
esquerda socialista e aprofundar as divisões do Partido Socialista Italiano. Divisões que
vinham de trás, mas que estavam apagadas num período de crescimento e de êxito.
Quando as dificuldades começam, agravam-se as divisões, nomeadamente porque há
uma forte componente reformista do socialismo italiano que procurava uma
participação num governo de coligação e tentava pôr de lado as ideias revolucionárias.
Por outro lado, a ideia da ditadura do proletariado, de que o proletariado se tornaria a
classe governante, não tinha tido qualquer concretização prática. Os maximalistas
dirigiam o Partido mas não o conduziam à conquista do poder. E a direita socialista,
que reflecte a influência de sectores de pequena-burguesia e da intelectualidade,
indispensáveis em instituições como o grupo parlamentar ou o governo das autarquias,
tem um grande peso no partido. Nestas condições, o patronato, que do ponto de vista
socio-económico e até da sua organização patronal se tinha reforçado durante a guerra,
mas que no imediato pós-guerra se encontrou numa posição defensiva, agora anima-se
para resistir mais vigorosamente às greves operárias e às reivindicações operárias em
geral, tanto mais que o começo da crise económica de 1921 é favorável a desencadear o
ataque contra os sindicatos.
Aquilo que em parte torna especial a situação italiana é o ambiente das consequências
da Guerra e das decepções pela chamada vitória mutilada. Os principais animadores do
nacionalismo italiano e do Interventismo (a minoria partidária da entrada na Guerra)
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eram pertencentes à pequena-burguesia intelectual, a camada mais identificada com a


causa do patriotismo, e estiveram contra o pacifismo dos socialistas. No pós-guerra,
numa primeira fase, encaram com simpatia algumas reivindicações operárias. Mas
depois, quando as condições sociais se agravam e o estatuto dessas classes pequeno-
burguesas piora radicalmente com a elevação dos preços que tem lugar - em toda a
parte a classe mais afectada pela alteração das condições da guerra, pela inflação
galopante, é a chamada classe média, que nessa época era em muitos casos a dos
pequenos rentistas, gente que vivia de rendas de títulos da dívida pública, aluguer de
casas, pequenos negócios ou até de pequenas empresas que são devoradas pela inflação
e que vêm crescer as grandes fortunas -, elas tornam-se por vezes anticapitalistas, mas o
seu anticapitalismo é sempre por referência à nostalgia da sua própria situação de
proprietários, da sua autonomia perdida.
Enquanto o movimento operário representou uma alternativa realista, parte dessas
classes médias até encarou com simpatia o socialismo, por hostilidade aos tubarões, aos
muito ricos mas, agora que os operários, depois de terem alcançado algumas conquistas,
estão remetidos à defesa, a classe média reage contra aqueles cuja ascensão ameaça a
sua diferenciação social. Ao mesmo tempo que sectores importantes das classes
trabalhadoras conquistavam aumentos salariais, esta classe média vira o seu estatuto
degradar-se. Assim, a tendência é para se voltar contra o mais fraco. E quem está mais
fraco depois da derrota das ocupações de fabrica é o proletariado, a classe operária
socialista. Esta situação não pode ser vista como mero cálculo de vantagens e de
oportunidades. É preciso perceber que no comportamento da pequena-burguesia e dos
intelectuais em geral existem comportamentos, existem tradições que são
profundamente diferentes das do movimento operário. Num determinado momento
podem ter convergido na hostilidade aos grandes especuladores, aos grandes capitalistas
lucradores da guerra, mas as suas determinantes eram outras. E numa situação de crise
económica o que eles vão valorizar é o nacionalismo, é a causa por que lutaram da
grandeza de Itália, que os socialistas desprezaram. Em muitos casos, até são
ressentimentos de tipo pessoal, alguns deles muito naturais, por exemplo do grande
número de mutilados da guerra que se confrontavam com os socialistas que tinham sido
sempre pacifistas e, por isso, hostilizavam aqueles que tinham feito a propaganda da
guerra e participado nela. A hostilidade entre o pacifismo socialista e a experiência da
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guerra vai pôr estes dois grupos em contradição. Por outro lado, tudo isto não existe
como um mero fenómeno social, mas é trabalhado politicamente. E quem é que vai
trabalhar politicamente e finalmente conduzir com êxito esta reacção antisocialista ? Vai
ser um grupo, e em especial um homem que já antes da Guerra gozava de certo carisma,
chamado Benito Mussolini, com uma carreira estabelecida no Partido Socialista
Italiano, com toda a formação da esquerda italiana anticlerical e antimilitarista, que aos
trinta anos era director do jornal Avanti!. Um líder conhecido da esquerda do socialismo
italiano mas que em 1914, pouco depois da eclosão da Guerra, defende que os
socialistas devem fazer campanha pela intervenção e, como essa sua posição não é
aceite, ele separa-se, cria um novo jornal chamado Il Popolo d’Italia e agrupa em torno
desse jornal um grupo de defensores da intervenção de Itália na Guerra. Em 1915, a
causa dos interventistas impõe-se, isto é, a Itália entra efectivamente na Guerra ao lado
da Entente, portanto contra a sua posição anterior de pertença à Tríplice Aliança.
Mussolini foi então o organizador de um movimento chamado Fasci d’azione
rivoluzionaria. Fascio significa em português feixe, e remete para o símbolo de poder
dos lictores, magistrados da antiga Roma, uma espécie de machado assente num feixe
de varas unidas. Esta ideia do feixe ou fascio significa portanto a união do que estava
disperso. A palavra fascio aparece-nos em diversos movimentos sociais na história
contemporânea de Itália, existem por exemplo fasci operai nas origens do movimento
operário italiano; e nos finais do século XIX houve na Sicília um movimento de
organizações de trabalhadores rurais conhecidas como fasci siciliani.
Os fasci d’azione rivoluzionaria eram organizações do “interventismo”, i.e. dos
partidários da participação na Guerra. Depois da Guerra, Mussolini cria um novo
movimento, os fasci di combattimento, ou seja, os feixes de combate, expressão que
evoca a experiência da guerra e se propõe continuar, na política italiana, os princípios
de solidariedade, dedicação patriótica e chefia de tipo militar, como condição de
salvação nacional. Portanto, transpõe para as novas condições e para a renovação do
país a disciplina militar. Este movimento entra em cena em 1919, inicialmente com um
programa reformador (o Programma di San Sepolcro), que exigia uma assembleia
constituinte e punha a questão da República, além de preconizar o imposto progressivo
e o combate às grandes fortunas. Desde o início se define como fortemente nacionalista
e por isso anti-socialista, na medida em que os socialistas eram internacionalistas.
87

O movimento não se limita a uma critica política e verbal dos socialistas. Uma das
primeiras acções do recém-nascido fascismo é o incêndio da sede do jornal Avanti,
órgão do Partido Socialista Italiano. A seguir, desencadeia um movimento mais amplo
de violências sobre as sedes dos sindicatos e do Partido Socialista em vários lugares.
São verdadeiras expedições punitivas contra as ligas agrárias e os sindicatos, passando
pela destruição de locais, pela prisão, agressão e assassínio de dirigentes, pela violência
sobre os activistas (ficou conhecido o hábito de obrigarem a engolir óleo de rícino,
como método de tortura). Isto perante a passividade da polícia e do exército – muitas
vezes mesmo com a sua colaboração, bem como a dos tribunais - e com o apoio dos
agrários e industriais que vêem nestas acções um óptimo meio de liquidar o movimento
sindical. É preciso ver que partidos e políticos tradicionais, como Giolitti (e até outros
que mais tarde irão ser vítimas do fascismo), nesta fase acham que o fascismo tem um
papel pedagógico, útil para meter na ordem o movimento socialista, e que por isso há
toda a vantagem em favorecer a sua integração política. Esta atitude explica que, em
1921, para derrotar as listas socialistas nas eleições, se constituam as listas do chamado
Bloco Nacional, em que os fascistas entram ao lado de democratas e liberais. Esta
viragem é extremamente importante, porque aquilo que era um agrupamento
minoritário, muito activo em acções de violência, mas isolado, ganha uma legitimação.
Tinham tido votações irrisórias nas eleições de 1919 e 1920, mas em 1921 conseguem
eleger 36 deputados.
A liderança fascista capitaneada por Mussolini adapta-se a esta situação, sugerindo uma
divisão do movimento fascista entre os violentos e os moderados. Mussolini aparenta
oferecer a alternativa civilizada que as instituições têm vantagem em favorecer,
sugerindo que só ele pode disciplinar os violentos. A verdade é que, com este jogo,
consegue utilizar a violência simultaneamente como meio de intimidação e de
negociação política, protegendo também o fascismo da possível intervenção repressiva
do Estado. É neste contexto que se insere a criação, em 1921, do Partido Nacional
Fascista (PNF), como meio de centralização em torno da figura de Mussolini e de
reforço da capacidade de negociação no sistema político. E é também nesta altura que
Mussolini profere declarações formais de aceitação da Monarquia, de reconhecimento
da Igreja e de fé nos valores do capitalismo, declarações que se situam nos antípodas do
Programma di San Sepolcro com que o movimento fora iniciado dois anos antes, mas
88

que são necessárias para abrir o caminho do poder. De notar que a própria ideia de
“partido” era contrária aos princípios afirmados do fascismo, que via nos partidos a raiz
fatídica de divisão da comunidade nacional.
O desenvolvimento do fascismo dá-se num contexto de instabilidade política,
dificuldade de formação de maiorias ao nível parlamentar e carência de apoio popular às
soluções governamentais. O fracasso, no Verão de 1922, de uma “greve pela
legalidade”, convocada por organizações sindicais para protestar contra a cumplicidade
do Estado nas acções fascistas, reforçou aqueles que preconizavam a integração do
fascismo no governo como solução para a crise política.
Sentindo o ambiente favorável, Mussolini e o PNF encenam uma acção revolucionária,
lançando, a partir de uma assembleia realizada em Nápoles em 24 de Outubro, uma
“marcha sobre Roma” para a conquista do poder. Dispunham para tanto da força das
squadre (milícias) fascistas sob o comando de um “quadrunvirato” de militares,
absolutamente insuficiente para se confrontar com o Exército. O governo liberal de
Luigi Facta preparou um decreto de estado de sítio para contrariar a sublevação. Porém,
o rei Vittorio Emmanuele III recusou promulgar o decreto, obrigando Facta à demissão,
e ao mesmo tempo convocou Mussolini (que se encontrava em Milão, pronto a fugir
para a Suiça se o golpe não resultasse), encarregando-o de formar novo governo. É o
que acontece nos dias seguintes, com a participação do PNF, mas também dos Partidos
Popular, Nacionalista e Liberal, bem como de representantes da hierarquia militar, i.e.
uma representação política completa da classe dominante.
O 28 de Outubro de 1922 foi ulteriormente celebrado como data da “marcha sobre
Roma”, revolução que iniciava a Era Fascista. Na verdade, mais decisiva do que a
marcha das milícias fascistas que, não tendo sido contrariada, se transformou numa
parada celebrativa da nomeação, foi a marcha de Mussolini de Milão para Roma, em
carruagem-cama.
Para os contemporâneos do acontecimento, a “marcha sobre Roma” e a chegada de
Mussolini ao poder foram vistos como um episódio da crise política do pós-guerra, a
que atribuíam mais ou menos importância mas que praticamente ninguém interpretou
como uma viragem histórica. Durante uma reunião em Moscovo do IV Congresso da
Internacional Comunista, logo no mês seguinte, Amadeo Bordiga, então secretário-geral
do PCI, considerou mesmo os acontecimentos como “uma remodelação ministerial um
89

pouco movimentada”. E de facto, quer a composição do governo, quer a natureza da


política económica liberal prosseguida pelo ministro De Stefani, sugeriam uma
continuação das políticas tradicionais da classe dominante, num sentido anti-socialista,
mas sem alteração dos fundamentos do regime político. A monarquia italiana continua a
ter por Constituição o “Estatuto Albertino”, de 1848.
Sob as aparências da continuidade, porém, Mussolini introduziu desde cedo algumas
modificações-chave no sentido de uma fusão inédita entre a organização fascista e o
Estado, que prepararam o caminho para o regime de partido único. As primeiras foram a
criação do Grande Conselho do Fascismo como órgão superior, ao mesmo tempo, do
Partido e do Estado, e da Milícia Voluntários da Segurança Nacional, que integraram as
squadre fascistas num corpo único armado, paralelo às Forças Armadas tradicionais.
Logo depois foi introduzida uma nova lei eleitoral, que concedia automaticamente uma
maioria de dois terços no Parlamento ao partido mais votado. Entretanto Mussolini
conseguia que a Igreja fizesse afastar da direcção do Partido Popular o seu líder
histórico, o padre Sturzo, que se opunha às medidas de Mussolini. Por outro lado,
obteve a fusão no PNF da Associação Nacionalista Italiana, que trouxe ao fascismo uma
componente importante da direita tradicionalista, nomeadamente os teóricos do
corporativismo como novo tipo de Estado. A lei eleitoral e as condições de violência em
que decorreram as eleições de 1924 estiveram na origem de uma crise política que pôs
em perigo a continuação de Mussolini. O deputado socialista Matteoti denunciou a
fraude eleitoral. Alguns dias depois apareceu assassinado, e descobriu-se que os
assassinos eram elementos do círculo próximo de Mussolini. Levantou-se então no país
um ambiente de indignação generalizada contra o governo, mas a oposição, bastante
dividida, não foi capaz de aproveitar essas condições. Por outro lado, o rei e várias
figuras proeminentes da camada política tradicional continuaram a apoiar Mussolini, o
que foi decisivo para o salvar. Assim, em 1925 o líder fascista passa ao contra-ataque.
Tomando como pretexto um atentado contra Mussolini, o governo adopta um conjunto
de decretos, conhecidos como “leis fascistíssimas”, que põem termo definitivamente ao
que restava do regime liberal. Data daí a proibição dos partidos políticos (à excepção do
PNF), o fim da liberdade de imprensa com a instituição da Censura, a criação da polícia
política, OVRA (Obra de Vigilância e Repressão do Antifascismo), e de um “Tribunal
Especial de Defesa do Estado”, a deportação por motivos políticos (o “confino”,
90

normalmente nas ilhas de Itália), o estabelecimento da pena de morte. Dissolvida em


1927 a Confederação Geral do Trabalho (CGL), nesse mesmo ano entra em vigor a
Carta del Lavoro, que consagra o corporativismo como doutrina do Estado em matéria
de organização económica e relações de trabalho. Nessa base, a greve é declarada ilegal
e os sindicatos fascistas tornam-se sindicatos únicos, subordinados à disciplina
corporativa.
Seguir-se-á, em 1928, a instituição de um novo modo de eleição do Parlamento por lista
única nacional proposta pelo Grande Conselho do Fascismo (em 1939 o Parlamento é
definitivamente substituído pela Câmara dos Fasci e das Corporações). Toda a
estrutura do Estado foi assim alterada, também a nível local, com o fim da electividade
das Câmaras Municipais e dos prefeitos, que passaram a ter novas designações e a ser
nomeados pelo governo.
Uma das figuras proeminentes do regime fascista foi o filósofo Giovani Gentile,
Ministro da Instrução, que contribuiu para atrair ao fascismo o apoio de uma parte da
intelectualidade, nomeadamente nas universidades. Como ministro, Gentile acabou com
o princípio da laicidade da escola pública e favoreceu as escolas privadas e o ensino
religioso. De facto, um dos aspectos mais importantes da consolidação do fascismo no
poder foi o entendimento com a Igreja Católica. Ultrapassando o conflito histórico
existente entre o Papa e o Estado italiano desde a libertação de Roma em 1870,
Mussolini assinou em 1929 a Concordata entre a Igreja e o reino de Itália.
Assim estruturado, o regime fascista italiano apresenta-se, face à crise económica
mundial de 1929, como uma “terceira via” alternativa ao capitalismo liberal e ao
socialismo. Completa então a sua definição institucional e política (instituição das
corporações, intervencionismo económico do Estado, enquadramento militarista da
juventude, politização da cultura e dos tempos livres, política externa agressiva). É
principalmente nesses anos que exerce maior influência internacional, quer sobre a
evolução de ditaduras de direita já existentes (como as da Hungria, da Polónia, da
Lituânia, da Roménia, da Bulgária e de Portugal), quer sobre o desenvolvimento e
chegada ao poder de forças contra-revolucionárias (Hitler sempre reconheceu no
fascismo italiano um precursor, mas há ainda a considerar o regime de Dolfuss na
Áustria, as ditaduras da Estónia, da Letónia, da Grécia e da Jugoslávia e a vitória de
91

Franco na guerra civil de Espanha), ou ainda sobre movimentos que fracassaram nessa
tentativa (nomeadamente os fascismos franceses).
Segundo Manuel Lucena, não houve regime mais parecido com o fascismo italiano do
que o Estado Novo de Salazar. Apesar do empirismo das soluções práticas, praticamente
todos os elementos definidores do regime de Mussolini, acima referidos, se encontram
reproduzidos em Portugal, nalguns casos com cópia literal das formulações legais. É
típico a esse respeito o Estatuto do Trabalho Nacional (1933), cujos artigos iniciais
constituem tradução quase literal da Carta del Lavoro.
92
93

Lição 11: Da estabilização à crise – a Restauração política e social na Europa


ocidental21.

Abordamos na aula de hoje o ponto 4 do Programa, que tem como título “A


Restauração política e social europeia dos anos vinte”. O termo “Restauração” -
utilizado numa das obras clássicas de História do século XX, o livro de Maurice
Crouzet – é bastante curioso, na medida em que estabelece um certo paralelismo entre
as características deste pós-guerra, que foi também o período pós-revolução russa e pós-
crise revolucionária europeia, os anos vinte, e o regime francês da monarquia dos
Bourbons (1814-1830), instaurado na sequência da derrota de Napoleão e do Congresso
de Viena, e contemporâneo da Santa Aliança. Napoleão representou uma espécie de
prolongamento e de extensão da Revolução Francesa a nível europeu. O derrube de
Napoleão foi para as monarquias que o venceram uma derrota da Revolução, do que
esta representava como quebra intolerável da ordem tradicional das coisas. Restauração
significava, assim, voltar à normalidade. E é o que se verifica na Europa depois de
1918, mais claramente a partir de 1921, quando se começa a sentir que o risco de se
repetirem noutros países fenómenos do tipo da revolução russa estava ultrapassado, ao
mesmo tempo que era ultrapassada a convulsão e a desordem da Guerra. Na
mentalidade dos Europeus os anos antes da Guerra eram a Belle Époque, e passado este
período de crise de alguma forma imaginava-se que se ia regressar à Belle Époque.
Simplesmente não foi assim tão fácil. As classes operárias tinham registado um
crescimento quantitativo que era irreversível, houve também um processo de
organização, nomeadamente no plano sindical. Por outro lado, o intervencionismo do
Estado tinha alcançado dimensões que já não podiam, de forma alguma, ser anuladas.
Um dos primeiros exemplos dessa reacção-Restauração foi o caso italiano. Um país que
tinha vivido uma crise revolucionária no pós-guerra, onde o fascismo se vai impor num
espaço de tempo relativamente curto. E que por sua vez vai ter influência noutros
países.
O caso italiano foi o de uma reacção de tipo moderno, no sentido de que a formação do
regime fascista se baseou inicialmente na mobilização de camadas modernas da

21
Transcrição pela aluna Carla Sofia Carvalho, revista e corrigida pelo docente.
94

sociedade italiana, nomeadamente o vasto grupo dos intelectuais e sectores das classes
médias urbanas.
Na Europa Oriental e na Península Ibérica impuseram-se também regimes de tipo
autoritário, reaccionário, anti-democrata e anti-socialista que assentaram sobretudo no
peso tradicional da propriedade agrária, das relações clientelares e da ligação do
exército com a classe dominante tradicional agrária. Foi o caso, ainda antes do fascismo
italiano, do governo do almirante Horthy na Hungria; na Polónia a partir de 1926 com o
governo de Pilsudski, que impôs a sua ditadura em 1926 e foi quem governou até 1935.
Em Portugal os anos do pós-Guerra são os anos da crise final da Primeira República,
que de certa maneira tinha vivido em crise desde a origem, mas essa crise precipitou-se
durante a Guerra. A primeira experiência ditatorial portuguesa consistente foi, em 1917-
18, a de Sidónio Pais (antes disso houve em 1915 o episódio Pimenta de Castro). A
crise vai desembocar em 1926, depois de outras tentativas, num golpe de estado e na
instauração de uma ditadura militar que depois abre o caminho à edificação do Estado
Novo, a mais prolongada ditadura da Europa, até 1974. O caso espanhol é mais
complexo, mas também em Espanha o pós-guerra foi caracterizado por uma situação de
grande agitação social protagonizada sobretudo pelos anarquistas, com violências de
carácter urbano e rural. Essa crise é temporariamente contida pela instauração do regime
paternalista, ditatorial, predominantemente agrário e militar que é a ditadura de Primo
de Rivera, que vai governar entre 1923 e 1930. Em 1930 demite-se e entra-se numa fase
de evolução da qual vai surgir em 1931 a Segunda República espanhola. Todo esse
período da Segunda República espanhola foi marcado por uma conflitualidade intensa
entre direitas e esquerdas que acaba por desembocar no golpe militar direitista do
general Franco, em 1936. Golpe que, fracassando no imediato, gerou uma guerra civil, a
maior guerra civil da história da Europa ocidental no século XX, que se prolongou
durante quase três anos e acabou pela vitória das forças conservadoras chefiadas por
Franco.
Em suma, pode dizer-se que a estabilização e a reacção política e social coincidiram, e
praticamente só sobrevivem como regimes democráticos na Europa, até 1939, a Grã-
Bretanha e a França. No caso das democracias há a registar um processo de evolução
estudado por vários historiadores e sociólogos, e nomeadamente por um historiador
95

americano chamado Charles Mayer, no livro A refundação da Europa burguesa 22. Este
autor faz uma análise comparativa dos anos vinte na Europa, com especial relevo para
os casos da França, da Alemanha e da Itália. E o que Charles Mayer constata é que,
apesar da manutenção das formas democráticas de regime (realização de eleições,
responsabilidade dos governos perante os parlamentos, subsistência da divisão de
poderes, em suma, aquilo que são as características básicas do Estado liberal) há um
processo crescente de interpenetração entre as instituições políticas e os poderes
económicos, que de facto se dá em desvantagem do trabalho e das potencialidades
socialistas adquiridas no imediato pós-guerra. Evolução que limita e condiciona
crescentemente a genuinidade, a autenticidade das próprias instituições da democracia.
Quer dizer, os parlamentos são soberanos, mas de facto no trabalho dos parlamentos é
essencial a acção de comissões especializadas que funcionam em articulação com os
representantes do poder económico. É o poder económico que mais condiciona o poder
político. O autor designa o conjunto destes processos de interpenetração entre o poder
económico e o político como corporatismo, o que não se deve confundir com
corporativismo (este é uma doutrina e uma forma de organização do Estado que vai ser
adoptada como teoria pelos fascismos). Mas entre os dois conceitos não deixa de haver
uma certa relação, isto é, também o corporativismo (dos fascismos) foi uma teoria e
uma tentativa de resposta a este problema da articulação entre o poder público e o poder
económico. É de assinalar o tratamento que é dado nessa obra ao facto de cada vez mais
os sindicatos estarem dependentes do Estado, a própria contratação colectiva é sujeita a
formas de intervenção e negociação nas quais o Estado intervém. É este conjunto de
arranjos tripartidos, envolvendo o Estado, a representação patronal e os sindicatos, que
acabou por limitar, e em muitos dos casos praticamente anular, aquilo que tinham sido
as conquistas, em matéria de representação e poder operário na fábrica, obtidas no pós-
Guerra, quando em muitos países e nalgumas Constituições foram reconhecidos
oficialmente os conselhos de fábrica.
Vejamos agora os principais acontecimentos políticos nos vários países. Os casos de
maior estabilidade política, no sentido de que os regimes democrático-liberais existentes
foram mantidos, foram o inglês e o francês. Não é por acaso que foram as grandes

22
Charles S. Mayer, Recasting Bourgeois Europe, 1975.
96

potências vencedoras da Guerra. Esse factor teve uma grande importância, na medida
em que as dificuldades económicas eram comparativamente menores e os governos
podiam fazer valer o prestígio da vitória conseguida, no sentido da preservação da
unidade nacional nas condições difíceis, de conflitualidade social e de tensões
internacionais, que marcaram o pós-guerra.
Na Inglaterra, em 1918, a seguir ao termo da Guerra, há uma reforma eleitoral
progressista, que correspondeu praticamente à introdução do sufrágio universal,
abarcando a globalidade da classe operária, e que introduz o sufrágio feminino para as
mulheres acima dos 30 anos. As eleições desse ano dão a vitória à coligação de governo
liberal-conservador, presidida por Lloyd George, o chefe liberal. Embora a votação do
Labour (o partido trabalhista) tenha crescido muito, não teve a expressão parlamentar
correspondente. O Reino Unido no pós-guerra tem um problema essencial pela frente
que é o problema irlandês. Uma questão nacional, no próprio território. Em 1914 tinha
sido reconhecido formalmente o direito da administração própria da Irlanda, essa
legislação ficou suspensa por causa da Guerra, em 1916 houve a chamada insurreição
da Páscoa, que foi uma violenta tentativa de revolução independentista esmagada
também violentamente. Mas, nas eleições de 1918, os independentistas irlandeses
conquistam setenta e três lugares no parlamento britânico e proclamam a independência.
Segue-se um período de lutas violentas, mas em 1921 chega-se a uma primeira
resolução parcial do problema, com o reconhecimento do Estado Livre da Irlanda, com
o estatuto de dominion, entidade política autónoma integrada na Commonwealth. É esse
estatuto que a Irlanda alcança, mas permanece a questão da Irlanda do Norte (o Ulster),
que até hoje é um problema em aberto e que deu ao longo de mais de oitenta anos lugar
a violências tremendas. E só agora parece estar em vias de resolução.
As eleições de Dezembro de1923 levam no ano seguinte ao poder, pela primeira vez na
História inglesa e europeia, um governo chefiado por um socialista, o chefe trabalhista
Ramsay MacDonald. Este governo durou apenas alguns meses, teve como principal
realização o reconhecimento diplomático da União Soviética, em 1924 (no seguimento
deste reconhecimento pela Grã-Bretanha é que a maior parte dos Estados começou a
estabelecer relações diplomáticas com a URSS). O que de resto valeu muita contestação
dos meios conservadores, que pouco depois conseguiram provocar novas eleições. Estas
foram dominadas também por um problema político que tinha a ver com a URSS, e que
97

foi a famosa carta de Zinoviev. Tratava-se de uma carta pretensamente dirigida pelo
então presidente da Internacional Comunista ao Partido Comunista britânico sobre
preparativos de uma revolução em Inglaterra. Parece que terá sido um documento
forjado, mas funcionou como demonstração do perigo do bolchevismo, e nesse sentido
favoreceu a campanha conservadora. O novo Parlamento eleito colocou no poder o líder
conservador Stanley Baldwin, cuja política se caracterizou por uma orientação
marcadamente à direita. A principal expressão dessa política foi o restabelecimento do
padrão-ouro, na base da revalorização da libra inglesa. Era uma medida favorável à
finança, desfavorável à indústria, correspondia à pretensão de manter a Inglaterra como
um centro financeiro essencial no mundo, mesmo correndo o risco de alimentar a
conflitualidade social, porque a valorização da libra significou maiores dificuldades na
concorrência internacional para a indústria inglesa (nomeadamente para a produção
mineira, principalmente do carvão, que defrontava a competição crescente do petróleo e
da electricidade). Isto vai desencadear um dos últimos grandes movimentos sociais da
Europa dos anos 20 que foi a greve dos mineiros e depois, em solidariedade, a greve
geral inglesa de 1926. Também aqui se verifica um fenómeno de mobilização de
elementos da classe média, contra os grevistas. Por exemplo a greve dos transportes,
que tinha nascido em solidariedade com as minas, prolongou-se durante meses. Para
furar a greve mobilizavam-se estudantes e intelectuais como condutores de veículos ou
carteiros, por exemplo. A intransigência do governo e dos patrões, combinada com estas
formas de mobilização, derrotou a greve, e foi uma grande derrota do movimento
operário britânico. Embora os trabalhistas de MacDonald tenham voltado a ganhar as
eleições em 1929, logo a seguir defrontam-se com a situação da crise económica
mundial, que os empurra para medidas de deflação, isto é, de corte da despesa pública,
de restrição aos créditos e de corte nos salários, de que a maioria do próprio Partido
Trabalhista discordava. Isto teve como resultado a ruptura entre MacDonald e o partido
e a formação do chamado governo de “união nacional”, chefiado pelo MacDonald mas
com a participação de conservadores. Governo esse que vai durar até 1935, altura em
que regressa Stanley Baldwin. Dois anos depois, em 1937, torna-se primeiro-ministro
uma figura que vai ficar muito conhecida, por maus motivos, na história diplomática do
período anterior à II Guerra Mundial, Neville Chamberlain, o infausto autor da política
do appeasement, do apaziguamento em relação à Alemanha e ao nazismo, política essa
98

que escancarou as portas à expansão nazi ainda antes da Guerra. Em suma, a orientação
da política inglesa durante os anos vinte e trinta, tirando o primeiro governo
MacDonald, de 1924, foi dominada por uma orientação conservadora, quer no plano
económico-social quer nas relações internacionais.
É um panorama semelhante o que se verifica em França, com a diferença de que na
França o regime político se caracteriza por maior fragmentação partidária,
consequentemente também uma maior instabilidade dos governos. Além disso, em
França o factor nacionalista foi ainda mais pesado, uma vez que a França tinha sido o
país mais atingido em termos de destruições materiais, de número de vítimas de Guerra,
e era também por isso o mais intransigente na exigência de reparações da Alemanha.
Nas eleições realizadas imediatamente a seguir à Guerra vence o chamado Bloco
Nacional, chefiado por Poincaré. Este governo segue uma política económica
deflacionista, virada para o equilíbrio das finanças públicas e os cortes de salários, e
consequentemente a repressão da agitação. Em França no imediato pós-guerra tinha-se
dado uma mobilização social importante. A derrota da grande greve dos ferroviários,
em 1919, marcou o final do período de agitação. A orientação conservadora da política
económica do governo francês não conseguiu impedir a desvalorização constante do
franco, nem resolver as dificuldades das finanças para enfrentarem a reconstrução e o
pagamento das pensões dos inválidos. Havia nesta altura nada menos de dois milhões e
meio de inválidos a quem o Estado pagava pensões. A orientação sistemática da política
francesa, até 1923, foi a reclamação intransigente das indemnizações de Guerra à
Alemanha, que tinha enormes dificuldades em satisfazer as reparações fixadas no
tratado de Versalhes. Em consequência, o governo francês decide recorrer à força,
procedendo, em conjugação com a Bélgica, e apesar da oposição da Inglaterra, à
ocupação militar da região do Ruhr, com o fim de explorar directamente os jazigos
mineiros, nomeadamente as minas de carvão aí localizadas. Essa ocupação vai
desencadear, por seu turno, a resistência passiva dos Alemães, uma crise brutal na
economia alemã e uma complicação internacional tremenda, de que se acabará por sair
através de negociações. A partir de 1924, com o restabelecimento da economia alemã e
um conjunto de iniciativas de carácter económico e depois político que são tomadas,
caminha-se para uma certa pacificação, que culmina nos acordos de Locarno, de 1925.
Essa viragem deve-se em parte a uma mudança de governo, com um sentido semelhante
99

à que tinha havido em Inglaterra (e também à que se verifica em Portugal por esta
altura). Em França é a eleição para o governo do cartel des gauches, a coligação da
esquerda chefiada pelo radical Herriot23. Este governo das esquerdas durou pouco
tempo, porque os seus projectos de reforma fiscal foram hostilizados pelos meios
financeiros, e logo a seguir regressou ao poder o Raymond Poincaré. Depois de 1929
também em França se faz sentir a crise, contudo, de uma maneira mais tardia do que na
generalidade dos países europeus, mas também aí gerando uma certa oscilação entre
governos dos radicais e da direita, que de qualquer modo tiveram no seu conjunto uma
política conservadora perante a crise económica. A crise vai abrir caminho, em 1934, a
uma mobilização de tipo fascista, influenciada pela vitória no ano anterior do nazismo
na Alemanha. É na reacção a essa mobilização, perante essa ameaça ao regime
parlamentar republicano, que se vai de novo dar a aproximação das esquerdas, mas
desta vez envolvendo também o Partido Comunista. E isso vai dar origem àquilo que
fica conhecido, a partir de 1935, como Front Populaire, a Frente Popular, que no ano
seguinte, em 1936, ganha as eleições. Mas mesmo esta Frente Popular francesa vai ser
de curta duração, e a curto prazo vai defrontar-se com uma crise importante.
Também a Espanha elegeu em 1936 um governo de Frente Popular, que foi o governo
legítimo do país durante os quase três anos da guerra civil. Sobre isso falaremos numa
das próximas aulas.

23
O partido radical francês era um partido da classe média anti-clerical, comparável ao Partido
Republicano Português da I República, nada tendo a ver com o sentido extremista correntemente
atribuído à palavra “radical”.
100
101

Lição 12: Da estabilização à crise – a Restauração política e social na Europa


central, oriental e setentrional.24

Vejamos agora a evolução da Europa Central e Oriental.


Há um conjunto de países que acederam à independência em fins de 1918 e que antes da
Guerra integravam os Impérios: o Império Alemão, o Austro-Húngaro, o Russo. Países
em que encontramos um conjunto de características comuns : por um lado, o atraso do
desenvolvimento capitalista, a persistência de uma economia baseada na agricultura
atrasada e latifundiária, marcada por fortes contrastes sociais; por outro, as tensões
étnicas que derivam das consequências do tratado de Versalhes. Apesar da formação de
Estados nacionais, o problema das minorias nacionais persiste, cada Estado tem uma ou
mais minorias nacionais, e em situações de tensão social e de crise económica o
problema étnico é um factor de agravamento suplementar, e é também muitas vezes um
bode expiatório das tensões acumuladas pela situação económica.
Todos estes países experimentaram reformas políticas e nalguns casos revoluções
políticas que acompanharam a sua formação nacional, mas quase todos eles vão
desembocar em ditaduras pessoais, normalmente ligadas ao poder militar ou ao poder de
um monarca.
Todos estes países viveram a Guerra Mundial, participaram nela.
Tal como aconteceu nos países da Europa ocidental envolvidos na Guerra, a cultura de
violência do período da guerra é transportada para os conflitos do pós-guerra. Acontece
que, de uma maneira geral, sendo a situação na Europa Oriental mais grave do ponto de
vista económico, concentrando em si as tensões mais agudas, também os fenómenos de
violência são mais frequentes. Violência que nalguns casos teve carácter de massa,
como acontece nos países que viveram situações de guerra civil, como a Finlândia e a
Hungria (na Hungria à revolução sucedeu o período do terror branco sob a ditadura de
Horthy, que fez muitas vítimas). Noutros casos a violência não tem carácter de massa
mas exprimiu-se em episódios de confronto entre militantes e no assassinato de líderes
políticos, fenómeno que se encontrou muito na Alemanha, na Bulgária, na Croácia.

24
Transcrição pela aluna Carla Sofia Carvalho da aula de 19.11.04, revista e corrigida pelo
docente.
102

A Áustria é um pequeno país que sucedeu a um enorme Império, e cuja estrutura


político-económica e até político-geográfica ficou desde logo marcada por esse facto. A
principal expressão dessa contradição é a existência de uma capital com dois milhões de
habitantes num país de oito milhões. A Áustria deixou de ter problemas étnicos uma vez
que a sua população é quase exclusivamente germânica, mas uma boa parte dessa
população, nomeadamente os socialistas, dominantes em Viena e uma das grandes
forças políticas do país, preconizavam a integração da Áustria na Alemanha.
Simplesmente, essa integração foi proibida pelo tratado de Versalhes. Também na
Áustria houve em 1919 uma breve tentativa insurreccional comunista, coincidente com
os acontecimentos das Repúblicas de conselhos da Baviera e da Hungria, mas que durou
ainda menos tempo, uma semana. O Partido Socialista é um grande partido e que no
final da Guerra começou por ser governo mas, tal como aconteceu na Alemanha, o
regresso à normalidade traduziu-se na consolidação das classes possidentes e no
afastamento dos socialistas do governo. Depois de 1921, quem se torna normalmente o
partido predominante no governo é o partido católico (Partido Social-Cristão), que nos
anos vinte teve como chefe mais importante um padre, Monsenhor Seipel. Era
essencialmente o partido conservador, dominante nos meios rurais que alimentavam
uma hostilidade a Viena. Há na Áustria um contraste entre a província e a capital, sendo
que a capital é vista como a Viena vermelha, a sede dos socialistas. Em 1927 registou-se
um episódio de violência política de certo significado quando, na sequência da
absolvição de fascistas que tinham sido julgados pelo assassinato de operários, se
desenvolveu uma manifestação socialista no decurso da qual incendiaram o edifício do
tribunal. Houve ainda uma greve geral de solidariedade, mas a verdade é que as direitas
saíram vencedoras desse confronto. A greve geral foi anulada e a partir daí acentuou-se
mais a evolução para a direita. Os sociais-cristãos eram um partido político, mas um
outro factor importante da política austríaca é a existência de uma milícia das direitas, a
Heimwehr, crescentemente ligada a esse partido. A existência de milícias, de grupos de
civis armados e organizados, e em geral legalizados, é outra das características do pós-
guerra. Em muitos casos estas milícias nasceram como associações de combatentes da I
Guerra mundial e beneficiavam do prestígio dos combatentes.
A crise mundial de 1929 fez-se sentir desde início na Áustria e teve implicações
imediatas em toda a Europa Central. Havia um grande banco austríaco chamado
103

Kreditanstalt, que centralizava uma boa parte dos créditos fornecidos no âmbito da
ajuda americana à reconstrução europeia e estava por seu turno ligado a bancos alemães.
A falência do Kreditanstalt, em consequência da retirada dos capitais americanos, levou
à falência de outros bancos e empresas, com consequências catastróficas não só na
Áustria mas também na Alemanha (e que estão directamente ligadas às origens do
nazismo). É neste contexto que na Áustria chega ao poder o social-cristão Dolfuss, que
vai governar em conjunto com a Heimwehr e instaurar uma ditadura corporativa, que
ficou conhecida como austro-fascismo. O chanceler Dollfuss foi uma espécie de Salazar
austríaco, com a mesma formação católica conservadora, nacionalista, que de resto o
pôs em choque com os nazis austríacos Em 1934, um ano depois da chegado do Hitler
ao poder, os nazis tentam um golpe de Estado na Áustria, que fracassa, mas no decurso
dessa tentativa de putsch Dollfuss foi assassinado. Ao Engelbert Dollfuss sucedeu o
chanceler Kurt von Schuschnigg. Ainda antes dos acontecimentos do falhado golpe nazi
na Áustria, houve um conflito político-social importante em Fevereiro de 1934, dentro
do quadro de imposição das medidas do Estado corporativo austríaco. Os partidos
políticos foram dissolvidos, mas a milícia do Schutzbund, ligada ao Partido Socialista,
resistiu pelas armas. Foi um episódio de certa forma semelhante ao que aconteceu em
Portugal com o 18 de Janeiro de 1934, quando o governo proibiu os sindicatos livres e
obrigou à sua dissolução, o que gerou movimentos de protesto e uma conhecida
tentativa de tipo insurreccional na Marinha Grande. Na Áustria foi semelhante, foi uma
intervenção militar do governo para a dissolução das organizações socialistas, apenas a
dimensão e as capacidades do movimento operário austríaco eram completamente
diferentes. Aquilo que aqui em Portugal foi debelado em algumas horas, na Áustria
foram combates com tiro de canhão. Foi uma espécie de revolução e contra-revolução,
em que venceu a contra-revolução.
Depois, o destino da Áustria confunde-se com os problemas das relações internacionais
da segunda metade dos anos trinta, sendo que a Áustria é anexada pela Alemanha em
1938.
Quanto ao caso da Bulgária. Foi um dos poucos países que conheceram no pós-Guerra
transformações progressistas sob o governo de Stambolisky, o líder camponês que foi
chefe do governo e realizou uma importante reforma agrária, mas acabou por ser
assassinado, vítima de um golpe militar reaccionário, em 1923. Dá-se depois, em
104

Setembro do mesmo ano, uma tentativa de insurreição do Partido Comunista que é


derrotada, e a que sucede um período de terror branco. Finalmente, o governo
estabilizou em condições ditatoriais sob o governo do monarca Boris III, e foi esse
governo que subsistiu até à Segunda Guerra Mundial.
A Roménia estabeleceu um regime parlamentar. Era um país muito dependente da
França. Mas o parlamentarismo tinha fracas bases sociais, porque a sociedade era
predominantemente rural. A reforma agrária também foi realizada, mas só teve efeito
em relação aos grandes proprietários húngaros da Transilvânia, integrada na Roménia, à
custa da Hungria, pelo tratado de Trianon. O parlamentarismo restrito, de base
clientelar, acaba por ser abolido com o regresso em 1930 do rei Carol II e a instauração
de uma ditadura pessoal. Em 1938/39, em consequência dos acordos de Munique e do
Pacto germano-soviético, a Roménia volta a perder territórios, para a Hungria e para a
URSS. Em 1940 Carol II abdica no filho, Miguel, mas o general Antonescu é quem
assume o poder como líder fascista com o título de “Conducator” (termo equivalente do
“Fuehrer” alemão, do “Duce” italiano, do “Caudillo” espanhol e do “Chefe” português).
Durante a Segunda Guerra Mundial foi aliado de Hitler.
A Jugoslávia nasceu com o nome de Reino dos Sérvios, Eslovenos e Croatas, em 1919.
Com uma estrutura de tipo federal, procurava harmonizar os interesses das várias
nacionalidades, mas este governo federal foi abolido em 1929 por um golpe do próprio
rei Alexandre, que estabeleceu um regime de ditadura pessoal. No entanto, Alexandre é
assassinado em 1934 num atentado em Marselha, onde aliás também foi morto o
ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Barthou. E o assassinato do rei Alexandre
iniciou um período de agudização dos confrontos étnicos, que conduziu à fragmentação
do país, depois ocupado durante a Segunda Guerra Mundial pelos exércitos nazis. Mas
foi também o único país da Europa onde se consolidaram dois importantes movimentos
de resistência de guerrilha contra o ocupante: uma guerrilha monárquica e a outra
comunista, sob a chefia de Tito, que foi quem acabou por vencer e formar o governo a
seguir à Segunda Guerra Mundial, restabelecendo a Jugoslávia.
A Grécia sofreu no imediato pós-guerra uma derrota militar importante por parte da
Turquia. Tinha sido atribuída à Grécia uma parte da Anatólia, a península turca na Ásia,
mas o Kemal Ataturk, o “renovador da Turquia”, que era também o chefe militar e
político, conduziu uma campanha pela expulsão dos Gregos da Anatólia e venceu. Essa
105

derrota militar abriu uma crise política na Grécia, que em 1924 levou à proclamação da
República. Mas esta defrontou-se com uma série de oposições. Em 1935 foi restaurada a
monarquia e instaurada a ditadura militar de Metaxas. Depois, já em 1940, a Grécia é
invadida pela Itália mas resiste, a Itália não consegue impor-se, o que provoca a
intervenção das tropas nazis. Mas também na Grécia durante a Segunda Guerra mundial
se mantêm movimentos de resistência, nomeadamente um importante movimento
dirigido pelo Partido Comunista, que acaba por ser vencido já depois da Segunda
Guerra Mundial pela intervenção da Inglaterra ao lado dos monárquicos, que
conseguem então restabelecer a monarquia (entre 1945 e 1967 voltou a existir a
monarquia, em 1967 houve um golpe de Estado que instaurou a “ditadura dos coronéis”,
derrubada por um movimento democrático em 1974; desde então a Grécia tem um
regime republicano).
Neste quadro de certa violência e instabilidade, e de predomínio das ditaduras nos
países da Europa Oriental, a única excepção positiva é a Checoslováquia, que era
também o país com mais sólidas bases de sociedade moderna. Nas regiões da Boémia e
Morávia havia uma base industrial consistente, havia também um grupo nacional
hegemónico que eram os Checos, foi possível realizar durante algum tempo a união
entre os Checos e os Eslovacos. Havia líderes prestigiados, como Tomas Masaryk, que
governou até 1935, e Benes, que lhe sucedeu. Mas também aqui a crise económica de
1929 se vai fazer sentir num agravamento das tensões étnicas entre Checos e Eslovacos.
O problema maior é porém a questão nacional dos Sudetas, as populações germânicas
na região de fronteira da Checoslováquia com a Alemanha, e essa questão vai ser
precipitada com a chegada de Hitler ao poder, quando ele põe a questão da unificação
de todos os Alemães. Após a anexação da Áustria em 1938, logo a seguir Hitler impõe à
Checoslováquia a integração dos Sudetas na Alemanha. Esta imposição realizou-se com
a conferência de Munique, em Setembro do mesmo ano, que reuniu os chefes de
governo inglês, alemão, italiano e francês, e na qual a Checoslováquia não esteve
representada. Falaremos disso a propósito das origens da II Guerra Mundial. Por agora
basta referir que a anexação dos Sudetas iniciou a desintegração do Estado
checoslovaco, dando-se então também a separação da Eslováquia e, seis meses depois, a
ocupação de Praga pelos exércitos nazis.
106

A Polónia tinha um governo de ditadura militar, desde 1926 chefiado por Pilsudski, um
ex-socialista que foi também uma espécie de herói militar da Polónia na guerra contra a
Rússia de 1920-21, em que a Polónia venceu e conseguiu a anexação de territórios que a
seguir ao tratado de Versalhes tinham sido atribuídos à Rússia: a parte ocidental da
Bielorússia e da Ucrânia, que em consequência da guerra em 1921 foram integradas na
Polónia. O Pilsudski beneficiava desse prestígio de chefe militar, que lhe permitiu tomar
o poder. Também na Polónia a reforma agrária que houve foi em relação a territórios da
parte ocidental da Polónia anteriormente detidos por proprietários alemães. Pilsudski
morreu em 1935. Depois deste governo segue-se o governo dos coronéis, uma sucessão
de governos militares. Mas a Polónia acabaria por ser invadida pela Alemanha, em 1 de
Setembro de 1939, o que foi o primeiro acto da Segunda Guerra mundial. Em
consequência do pacto germano-soviético, a parte oriental do país foi ocupada pela
URSS, que assim recuperou os territórios perdidos na guerra de 1920-21.
Também nos Países Bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia), as únicas reformas agrárias
realizadas foram contra os antigos proprietários alemães. Países pouco populosos,
integrados no Império Russo desde o século XVIII, a sua história tem traços comuns. A
classe dominante tradicional era constituída pelos “barões do Báltico”, de origem alemã.
A seguir à derrota alemã em 1918, houve nos três países tentativas revolucionárias e de
integração na Rússia soviética, que foram derrotadas pelas forças nacionalistas com o
apoio, quer de tropas alemãs, quer dos Aliados. Seguiram-se alguns anos de regimes
parlamentares, mas logo em 1926 dá-se na Lituânia um golpe de Estado que instaura
uma ditadura, o que também acontece, em 1934, na Estónia e na Letónia. Em
consequência do pacto germano-soviético, as repúblicas bálticas foram integradas na
URSS. Invadidos durante a Guerra pela Alemanha, depois de 1945 constituíram
repúblicas da URSS.
Embora integrada no Império Russo desde o princípio do século XIX, a Finlândia
conservou sempre uma certa autonomia. Em resultado das reformas conquistadas pela
revolução russa de 1905, em que os Finlandeses foram participantes activos, a Finlândia
obtém desde 1907 o sufrágio universal de ambos os sexos. Desde os finais do século
XIX que existia um Partido Socialista, com forte apoio da população,
predominantemente composta por camponeses independentes. Na sequência da
proclamação da independência da Finlândia em Dezembro de 1917, gera-se uma guerra
107

civil entre os socialistas (vermelhos), apoiados pela Rússia, e os brancos, apoiados pela
Alemanha, que terminou pela derrota dos vermelhos. Apesar de um período de terror
branco, estabilizou o regime parlamentar, o Partido Socialista manteve forte influência e
formou-se também um partido comunista (com outro nome, por razões legais). À
semelhança dos países escandinavos, também na Finlândia desde os anos trinta foram
introduzidas reformas do tipo Welfare State.
Costuma dizer-se que os países felizes não têm história, e assim quase nada direi da
Escandinávia (Dinamarca, Noruega e Suécia). Definitivamente independentes desde
1905, quando a Noruega se separa da Suécia, são monarquias parlamentares que cedo
adoptam o sufrágio universal, não só masculino mas também feminino. São também dos
primeiros países a adoptar, ainda nos anos vinte, legislações sociais avançadas e
eficazes. Foram países neutrais na I Guerra Mundial e assim continuaram, mas durante a
II Guerra Mundial a Dinamarca e a Noruega foram invadidas pela Alemanha.
Da Alemanha falaremos numa das próximas aulas, a propósito das origens do nazismo.
108
109

Lição 13. Origens da Revolução Russa.25 26.11.2004

Entramos hoje no capítulo dedicado à história da revolução russa, que se pode talvez
considerar o acontecimento singular mais importante da história do século XX. É claro
que as duas Guerras Mundiais não tiveram importância histórica menor, mas aí trata-se
de sucessões de acontecimentos que se prolongaram por vários anos. Por outro lado,
factos históricos como a revolução chinesa ou o processo de descolonização, que
envolveram um número ainda maior de pessoas e com maior projecção no século XXI,
são em muitos aspectos descendentes da revolução russa.
Diz-se muitas vezes que a revolução socialista na Rússia e o seu fracasso na Europa
ocidental são o maior desmentido do marxismo, porque Karl Marx previra o socialismo
como resultado das contradições do modo de produção capitalista levado ao seu
máximo desenvolvimento e, desse ponto de vista, a Rússia era uma sociedade muito
mais atrasada que as do Ocidente. Há sem dúvida nessa observação mais do que um
grão de verdade, mas o que ninguém pode negar é que, pelo menos a partir do último
quartel do século XIX (o que coincide com os últimos anos da vida do Marx, falecido
em 1883), muita gente, e nomeadamente os marxistas, esperava uma revolução na
Rússia, mais cedo ou mais tarde. O próprio Marx se debruçou expressamente sobre essa
questão.
Um facto bastante representativo do atraso das relações capitalistas na Rússia, e que ao
mesmo tempo marca o início de uma viragem histórica, é a data da emancipação dos
servos, 1861, por decreto do czar Alexandre II. Esta reforma é significativa tanto pelo
que realizou como pelos problemas que deixou subsistir. Trata-se de um pressuposto
essencial à existência do mercado capitalista, a livre circulação da força de trabalho, e é
por isso uma medida característica e essencial das transformações anti-feudais, como o
foi na revolução francesa de 1789, nas mudanças realizadas na Europa ocupada por
Napoleão (em alguns casos até por iniciativa dos monarcas que o combatiam), ou nas
revoluções liberais europeias, como a portuguesa. Quer dizer, a abolição da servidão da
gleba realizara-se na Europa ocidental duas ou três gerações antes do momento em que
se realiza na Rússia, e além disso o número de servos era na Rússia incomparavelmente

25
Lição que não foi gravada. O texto desenvolve os tópicos que serviram de base à exposição oral.
110

maior: 47 milhões, numa população total de cerca de 65 milhões de habitantes, são


praticamente três quartos da população26. No caso russo, aliás, o resgate da servidão é
comprado: os antigos proprietários de servos são imediatamente indemnizados pelo
Estado, mas os ex-servos têm que pagar um tributo ao Estado ao longo de 49 anos. Isto
conduzirá a que muitos deles se tenham que endividar enormemente e, não podendo
suportar as dívidas, vêm as suas terras apropriadas pelos camponeses mais ricos. Cria-se
assim uma massa de camponeses sem terra, que nalguns casos aflui às cidades, noutros
se mantém em condições praticamente idênticas às da servidão, sujeita a prestações de
trabalho aos senhores. Ou ainda, que detém pequenos lotes de terra mas subsiste em
condições de extrema miséria. Daqui uma série de situações de fome generalizada,
ligada às crises económicas, como se verificam nos anos 1882-1891.
O desenvolvimento da indústria é nestas condições tardio, em relação aos padrões da
Europa ocidental, mas acelera-se no último terço do século XIX. Na altura do decreto
de emancipação dos servos, o número de operários industriais não chegava ao meio
milhão, mas no fim do século já tinha duplicado; e, se se acrescentar o dos trabalhadores
das minas e dos caminhos de ferro, passa do milhão e meio. A extensão dos caminhos
de ferro é sempre um aspecto essencial do desenvolvimento do capitalismo, e na Rússia
tanto mais quanto se liga com a expansão territorial do Império. Esta só se conclui pelo
final do século XIX, unindo um imenso território que ia da Polónia (inclusive), a
ocidente, ao oceano Pacífico, a oriente, e do Báltico e do Árctico, a norte, ao Cáspio e à
fronteira da China, a sul. A população urbana, no seu conjunto, não era nesta altura mais
do que 13% do total da população do Império, mas em 1900 São Petersburgo e
Moscovo já ultrapassavam o milhão de habitantes. Tanto estas duas capitais históricas
como as outras maiores cidades (Varsóvia, Odessa, Baku, por exemplo), correspondem
a importantes centros industriais. Santarelli – que cita a este propósito Maurice Dobb,
referindo-se a “ilhas” industriais “num vasto mar agrícola” – distingue como principais
regiões de industrialização: a zona mineira dos Urais, de velhas siderurgias; a região de
Moscovo, principal e antigo centro das indústrias têxteis; as minas e metalurgias
modernas da Ucrânia, com grandes fábricas; a região de São Petersburgo e os Países
Bálticos, com indústrias modernas, metalúrgicas, químicas e eléctricas, altamente

26
Enzo Santarelli, Storia Sociale del Mondo Contemporaneo, Feltrinelli, Milão, 1982, p. 130.
111

concentradas; a Polónia, com indústrias têxteis e mecânicas; e as indústrias petrolíferas


do Cáucaso, com Baku como centro principal.27
Característica essencial desta industrialização, além do seu carácter relativamente
tardio, é o facto de ocorrer à sombra da tutela do Estado e ligada às necessidades
militares, e por outro lado dependente do investimento estrangeiro, de início sobretudo
alemão, depois principalmente francês (o que reflecte e condiciona a evolução
diplomática da Rússia no contexto europeu). Tudo isto, aliado ao custo da construção de
infra-estruturas e às necessidades de importação resultantes do desenvolvimento urbano,
se repercute num enorme crescimento da dívida externa, e consequente debilidade do
Estado. A tentativa de compensar este endividamento com o acréscimo da exportação
de cereais e as políticas proteccionistas repercute-se em alta dos preços e agravamento
das condições de vida da maioria da população.
Embora exista na Rússia uma burguesia urbana, ligada quer a antigas actividades
artesanais e comerciais, quer a sectores em expansão das actividades intelectuais e
profissionais urbanas, burguesia que assimila e reflecte a influência do liberalismo e da
cultura ocidental – uma burguesia liberal, em suma -, esta classe é no seu conjunto
numericamente fraca e sobretudo tem pouca ligação orgânica com a classe dominante
propriamente dita. Esta continua a ser composta por um número relativamente pequeno
de grandes proprietários de terras, pelos dignitários da Igreja ortodoxa, por nobres
ligados à Corte ou ocupando funções dirigentes no aparelho de Estado burocrático e
militar, cujos interesses e posições crescentemente se fundem com os do capital
estrangeiro.
Na sequência da abolição da servidão, foram iniciadas algumas reformas políticas
(Alexandre II ganhou o cognome de “Reformador”), com a eleição de organismos
representativos a nível dos centros urbanos (duma) e rurais (zemstvo). Trata-se porém de
eleições de base censitária e indirectas (por graus). Inicia-se também um sistema
judicial moderno (antes de 1861 eram os senhores feudais que detinham também o
poder judicial) e desenvolve-se o sistema escolar. Mas, a partir de meados dos anos 70,
desenvolve-se uma forte reacção, em todos os planos, dos elementos conservadores que
se consideravam prejudicados pelas reformas, nobres, figuras da Igreja, responsáveis

27
Id., ibidem, p.132.
112

político-militares. Alexandre II morre, em 1881, vítima de um atentado revolucionário,


e o reinado seguinte, de Alexandre III (1881-94), decorre sob o signo da reacção anti-
liberal e anti-democrática. É nos anos 80 que é criada a Ocrana, a temível polícia
secreta do czarismo. E os círculos mais reaccionários alimentam o anti-semitismo,
através do qual conseguem canalizar contra os judeus uma parte do descontentamento
popular. São estabelecidas leis que confinam os judeus a zonas residenciais, retomando
de facto a prática do ghetto. Registam-se além disso uma série de pogroms anti-judeus,
incentivados pela polícia ou por bandos nacionalistas, nomeadamente as “centúrias
negras” (os Cem Negros), queArthur Rosenberg refere, no seu estudo sobre as origens
do fascismo, como um antecedente das tropas de choque fascistas28. Agrava-se, de uma
maneira geral, a restrição de direitos das populações não russas em todo o Império. Em
1894, quando Nicolau II sobe ao trono, logo na sua mensagem inaugural faz menção de
reafirmar o princípio sagrado da “autocracia”, quer dizer a recusa de qualquer espécie
de instituições representativas que limitem o seu poder. Não foi por acaso que depressa
ganhou o cognome de “o último”.
Toda esta evolução reaccionária se apresenta como defesa perante o perigo representado
pelo movimento revolucionário.
De facto,desde os meados do século XIX, e com maior continuidade desde os anos
1860, existe na Rússia um movimento revolucionário, que se relaciona com a evolução
das ideias socialistas e anarquistas na Europa ocidental, mas vai gerar um movimento
novo, uma forma russa de socialismo: a ideologia e o pensamento narodnik, que
costuma traduzir-se como “populismo”. Realmente, a palavra russa “narod” significa
“povo”, mas é preciso prestar atenção a que o populismo russo não se confunde com a
acepção pejorativa que muitas vezes é atribuída à palavra na política (e na ciência
política) do século XX, em que normalmente designa movimentos demagógicos
assentes no carisma de um líder e na manipulação de sentimentos primitivos do povo.
Os populistas russos entroncam numa tradição de pensamento e acção revolucionária de
intelectuais, na maior parte dos casos provenientes da própria classe nobre, que teve
como primeira manifestação, na época contemporânea, a chamada insurreição
decabrista, de Dezembro (em russo “dekabr”) de 1825. Os decabristas eram um grupo

28
Arthur Rosenberg, “El fascismo como movimiento de masas”, in AA.VV., Fascismo y
Capitalismo, Martinez Roca, Barcelona, 1972, pp. 93 e sgs (texto 5 do Caderno).
113

de oficiais, que podemos comparar com os conjurados portugueses, dirigidos por


Gomes Freire de Andrade, que em 1817 tentaram pôr fim à monarquia absoluta e ao
domínio inglês em Portugal, e acabaram enforcados: foram no entanto os precursores da
nossa revolução liberal de 1820 e por isso ficaram conhecidos como “mártires da
Pátria” (que é ainda hoje o nome oficial do Campo de Santana, em Lisboa). Tal como
no caso português, os decabristas russos tentaram derrubar o monarca, instaurar uma
república e abolir a servidão, mas acabaram presos e os seus chefes condenados à
morte. Deixaram porém uma marca profunda na história cultural e política russa, como
exemplo de abnegação, voluntarismo e heroísmo, que é de algum modo o arquétipo da
figura do revolucionário russo dos séculos XIX e XX. Os decabristas (que, tal como os
conjurados portugueses, tinham recebido as ideias da Revolução Francesa através do
contacto com as tropas de Napoleão) exprimiam o sentido de indignação de certos
círculos intelectuais com as condições existentes na sociedade e a vontade da sua
modernização e democratização.
A permanência das condições de atraso e repressão na Rússia impelem muitos
intelectuais russos a emigrar. Um deles, que podemos considerar como o pai do
socialismo russo, foi Alexander Herzen, que acabou por se fixar em Londres, onde
editava um jornal em russo (Kolokol, O Sino). Herzen foi um profundo conhecedor das
ideias do socialismo utópico, cuja divulgação combinou com a crítica das condições
russas.
A partir de meados do século XIX, com a extensão do sistema de ensino e o
crescimento do número de universitários, intensifica-se o contacto entre os jovens
intelectuais no interior da Rússia e o movimento político e de ideias no Ocidente
subsequente às revoluções de 1848, nomeadamente com a formação da Associação
Internacional dos Trabalhadores (I Internacional) em 1864.
O movimento narodnik enraíza neste ambiente. Ele nasce com a “ida ao povo”, nos
anos 60, de um conjunto de estudantes, movidos primariamente pela vontade de
conhecer as condições de vida do camponês russo, ainda mal emancipado da servidão, e
de o ajudar na resolução de problemas materiais, nos cuidados de saúde e na
alfabetização. Mas desde início esta acção liga-se com a constituição de organizações
secretas, como a Terra e Liberdade, que progressivamente elaboram uma concepção
socialista própria. No centro desta concepção está a ideia de que é possível tornar em
114

vantagem, na transição para a sociedade socialista, justamente aquilo que era resultado
do atraso da penetração do capitalismo industrial na Rússia. Os populistas defendem
que, dada a importância das tradições comunitárias do campesinato russo – a existência
do mir, a assembleia de aldeia, que periodicamente procede à distribuição de terras -,
uma vez que a sociedade fosse liberta do domínio do czar e dos nobres, se poderia
adoptar uma espécie de auto-gestão agrária comunitarista, evitando-se os males ligados
à formação do capitalismo industrial.
Numa primeira fase, a acção narodnik foi essencialmente doutrinária e propagandística.
Mas as dificuldades encontradas, nomeadamente as reacções de rejeição do mujik, o
camponês russo, em relação a estes jovens intelectuais, que sentiam como
essencialmente estranhos aos hábitos da comunidade, acrescentadas à repressão,
levaram a uma dispersão e diversificação do populismo. Alguns intelectuais populistas
restringem-se a uma actividade literária ou de participação nas instituições existentes,
como os zemstvo. Outros, imbuídos da ideia revolucionária, constituem uma sociedade
secreta virada para a acção violenta, o terrorismo individual contra o czar e as
autoridades vigentes. É a Narodnaia Volia (“A Vontade do Povo”), que em 1881 tem
êxito, ao lançar uma bomba contra a carruagem de Alexandre II, pondo termo à vida do
czar, embora pelo preço da execução dos revolucionários envolvidos. Seis anos depois,
em 1887, um outro grupo, do qual fazia parte o jovem estudante Alexander Ulianov
(filho de um inspector escolar e membro da pequena nobreza), tenta outro atentado
contra Alexandre III, mas falha. Recusando-se, por princípio, a pedir o agraciamento
pelo czar, os conspiradores são também neste caso executados.

Ao centro de pé, Alexandre Ulianov, à direita sentado Vladimir, futuro Lenine.


115

O estudante e revolucionário Alexandre Ulianov era o irmão mais velho de Vladimir


Ilitch Ulianov, então com 16 anos (nascera em 1870), que conhecemos como Lenine
(pseudónimo que adoptou mais tarde). Reza a lenda que, nos dias que se seguiram à
morte do irmão, o adolescente Vladimir Ilitch, procurando consolar a mãe, lhe disse
qualquer coisa como: “eu seguirei um caminho diferente, mais eficaz”.
Seja como for, este episódio é duplamente significativo: por um lado, pela influência
que o exemplo e a tragédia do irmão necessariamente tiveram na formação do jovem
Lenine, criado numa família de burguesia liberal cultivada, mas cedo identificado com o
ideal revolucionário; por outro lado, porque alude ao facto de que, pelo final dos anos
80, nos círculos intelectualizados da Rússia, uma nova geração se começava a inclinar
para ideias diferentes das do populismo. Estas ideias novas eram as do marxismo, que
começara a ser introduzido na Rússia a partir da tradução – curiosamente por Mikail
Bakunin, o grande adversário de Marx na Internacional e fundador do anarquismo -, em
1869, do Manifesto Comunista, a que se seguiram várias edições do Capital. Em 1883,
em Genebra onde estava exilado, o intelectual e ex-populista Giorgi Plekhanov lança a
organização Libertação do Trabalho, a primeira organização política marxista russa. Ao
mesmo tempo, Plekhanov inicia uma série de trabalhos de análise da evolução
económico-social, em polémica com as concepções populistas e em defesa da ideia de
que, tal como na Europa, na Rússia o caminho para o socialismo passa pelo
desenvolvimento e organização da classe operária. Na própria Rússia, uma série de
teóricos (alguns dos quais ficarão na história do pensamento económico, como Tugan-
Baranowski) aprofundam e divulgam a tese da inevitabilidade do desenvolvimento
capitalista, de resto encarada com interesse pelas tendências mais modernizadoras da
burguesia. Desde 1895 existe em São Petersburgo uma União de luta para a libertação
da classe operária, de que faz parte Lenine, então jovem advogado. A actividade dos
círculos de divulgação do marxismo ultrapassa já a esfera dos intelectuais e atrai
operários da capital. Os anos seguintes registam, sucessivamente, o desenvolvimento de
um movimento estudantil anti-czarista, uma série de greves operárias localizadas
(sobretudo em Baku e Odessa) e também movimentos camponeses. É neste ambiente
que é fundado, em 1898, o Partido Operário Social-Democrata da Rússia (POSDR),
membro da II Internacional. Lenine já se encontrava então deportado na Sibéria, depois
de ter estado 15 meses preso. Libertado em 1899, emigra, de início para a Suiça.
116

Permanecerá na emigração os 18 anos seguintes, à excepção de uma breve estadia na


Rússia durante a revolução de 1905.
É só a partir do congresso de fundação que o POSDR se vai dotar de uma organização
clandestina nacional. Mas praticamente desde o seu nascimento o partido é atravessado
por uma série de polémicas sobre questões de organização, de teoria e de estratégia, que
têm um primeiro momento de sistematização no II Congresso, iniciado em Bruxelas e
continuado, por razões de segurança, em Londres, em 1903. Data deste congresso a
famosa divisão do socialismo (ou social-democracia, termos que são nesta época
sinónimos) russo em bolcheviques e mencheviques, divisão que prenuncia e antecipa a
grande divisão que ocorre no socialismo internacional após a I Guerra mundial entre
comunistas e social-democratas (no sentido que esta palavra então adquire de
“socialistas moderados”). É de notar que a divisão entre bolcheviques e mencheviques
só se consuma organicamente em 1912, mas desde 1903 os termos da polémica,
correspondentes a duas visões diferentes da realidade russa e das tarefas do partido
marxista, estão estabelecidos.
Deve notar-se ainda que estes dois grupos do POSDR, bolcheviques e mencheviques,
não esgotam a totalidade do socialismo russo. A tradição populista, mantendo influência
entre o campesinato que constitui a grande maioria da população, também se organiza
no princípio do século XX (1902) num partido, o chamado Partido socialista-
revolucionário.
O que diferencia no essencial os bolcheviques dos mencheviques, e por que é que a
separação entre os dois grupos acabou por ter tão grande alcance histórico?
Note-se que o significado das palavras nada nos diz a esse repeito: “bolchevique”,
derivado de “bolchinstvo”, maioria, significa simplesmente “maioritário”, e a
designação deve-se ao simples facto de que, no final do Congresso, esse grupo se
encontrava em maioria, enquanto o grupo adversário estava em minoria.
Também o motivo concreto da separação – um pormenor da redacção de um artigo dos
estatutos – à primeira vista não faria suspeitar nada de importância dramática. Mas já
aponta para uma diferença. Ao passo que os bolcheviques só reconheciam a qualidade
de militante àqueles que trabalhassem regularmente “numa organização” do partido, os
mencheviques reconheciam a qualidade de membro a todos os que, aceitando o
programa do partido, militassem “sob a direcção” de uma organização partidária.
117

O que aqui está em causa é a diferença entre a concepção ampla do partido socialista
como partido de massas, em que qualquer um se pode filiar aceitando o programa (tese
menchevique), e a ideia do partido como “organização de revolucionários”,
estreitamente unidos pelo trabalho regular e a disciplina de organização, que era a
concepção bolchevique. É evidente nesta última a continuidade, sob outras formas, em
relação à tradição do populismo revolucionário.
Mas a relação com duas outras discussões, uma anterior a 1903, outra que tem lugar
durante a revolução de 1905, permite compreender melhor o que estava em causa nesta
separação e por que ela se tornou duradoura.
O primeiro debate foi em relação à questão do “economismo”, a teoria de que a função
essencial do partido consistia em estimular a organização e as lutas económicas
(sindicais) de fábrica, da qual espontaneamente resultaria a formação da consciência de
classe dos operários, por oposição aos patrões. Contra esta tese, Lenine sustenta que a
consciência de classe, como realidade distinta do mero interesse na melhoria das
condições materiais, só pode adquirir-se através do conhecimento da situação da
sociedade no seu conjunto, i.e., do conhecimento das diversas classes existentes na
sociedade e suas relações, como são organizadas através do poder político do Estado.
Tal consciência exige por isso um trabalho propriamente teorico, que é função do
partido socialista elaborar e difundir. É a célebre tese de que “a consciência vem de
fora” (de fora das relações imediatas na fábrica ou no lugar de exploração), que por isso
mesmo atribui um papel de primeiro plano aos intelectuais revolucionários.
Esta ideia prende-se com uma segunda tese, a de que o partido “deve ir a todas as
classes”. Os conhecimentos necessários à orientação do proletariado na luta pelo
socialismo colhem-se “em todas as classes” e em todos os domínios da vida social
(económico, mas também político, cultural, religioso, etc.) Por outro lado, na medida
em que o objectivo fundamental do partido socialista é a revolução – a conquista do
poder político -, também não lhe podem ser indiferentes os comportamentos, os modos
de pensamento e as acções práticas dos diferentes actores sociais e políticos. Não lhe
podem ser indiferentes, nomeadamente, as formas concretas do Estado, o tipo de poder
político por meio do qual as relações sociais se organizam, a sociedade se estrutura. Em
concreto, na sociedade russa do princípio do século XX existem já relações económicas
capitalistas, mas o tipo de Estado – a autocracia czarista, como forma de poder
118

particularmente repressiva e anti-democrática – constitui por si mesma um obstáculo


poderoso e violento à afirmação dos interesses da classe trabalhadora e à existência das
suas organizações. Lenine e os bolcheviques reconhecem, como todos os outros
socialistas, que o atraso do desenvolvimento histórico da sociedade russa não permite
encarar a sua transformação imediata em sociedade socialista, só possível na base de
muito maior desenvolvimento material e de uma adesão da maioria da população a tal
objectivo. Mas consideram que a conquista da república democrática ofereceria um
quadro muito mais favorável ao desenvolvimento das forças produtivas e, ao mesmo
tempo, à liberdade de acção e defesa dos interesses dos explorados, portanto também à
acção ulterior pelo socialismo. Nesta medida, é função do partido socialista “ir a todas
as classes” no sentido de, entre todas as camadas da população, estimular as disposições
contra o regime existente, pô-las em movimento para a obtenção de objectivos
parcelares, influenciá-las no sentido da revolução democrática.
São estas, em resumo, as ideias essenciais que Lenine sustenta no “Que Fazer?”,
publicado em 1902, nas vésperas do II Congresso do POSDR, e que em grande parte
explicam a defesa da concepção centralista do partido, por causa da qual se dá a ruptura
entre bolcheviques e mencheviques.
O período subsequente ao II Congresso é caracterizado por uma consolidação da
organização e da actividade do POSDR, apesar e mesmo através da intensificação das
polémicas ideológicas, em relação às quais ocorrem também a formação de
agrupamentos, por vezes de curta duração, bem como oscilações e mudanças de campo
de alguns dos principais protagonistas (como por exemplo Trotsky, de início
menchevique, mas que elaborará uma concepção própria do problema da revolução na
Rússia, em torno da qual agrupa um conjunto de partidários). Todas estas polémicas
respeitam a um universo que não ultrapassa , em 1904, os 25 000 membros do POSDR
(parte deles na emigração), num país que então já contava cerca de 120 milhões de
habitantes. Mas trata-se de um movimento teorica e praticamente activo, que começa a
ganhar implantação efectiva nos principais centros industriais.
A crise do regime czarista, agravada com o início da guerra russo-japonesa e a derrota
da Rússia, fornece à acção destes militantes um terreno favorável. A eclosão, em
Janeiro de 1905, da primeira revolução russa, ampliará enormemente a acção dos
119

socialistas russos, assim como aliás a de todas as forças políticas e sociais, contidas pela
pressão repressiva do czarismo, e que entram agora abertamente na cena da história.
No início dos acontecimentos esteve uma manifestação pacífica dos operários de São
Petersburgo. Melhor se diria uma procissão, dirigida por um padre, o pope Gapone,
ligado à organização sindical local mas também à polícia czarista, procissão em que não
faltavam os ícones religiosos e o próprio retrato do czar, e em que participavam
famílias operárias inteiras, incluindo velhos, mulheres e crianças. Na ocasião os
manifestantes endereçaram ao czar uma petição, redigida em termos extrordinariamente
respeitosos, em que simplesmente chamavam a atenção para a necessidade de acudir à
situação de extrema miséria e fome em que viviam. A manifestação, no momento em
que se aproximava do Palácio de Inverno, residência do czar, foi recebida com tiroteio
generalizado, deixando no lugar cerca de um milhar de vítimas. Era o domingo de 22 de
Janeiro de 1905, que passou à História como “Domingo Sangrento”, e foi a chama que
acendeu a revolução.
Nas semanas e meses seguintes, por todo o ano de 1905, sucede-se uma série imensa de
movimentos de praticamente todas as classes, mas com destaque para as greves
operárias: só no primeiro mês são tantas como nos dez anos precedentes. Em Maio, na
região têxtil de Ivanovo-Voznessensk, não longe de Moscovo, forma-se o primeiro
soviete (conselho de representantes das fábricas, tendo como objectivo a coordenação
dos movimentos de greve), criando um exemplo que depois se multiplica e alarga. A
revolução de 1905 abre, neste aspecto, uma página nova na história do movimento
operário, não só russo mas internacional, e não só como experiência prática mas como
fonte teórica. Assinale-se a este propósito que foi com base nos acontecimentos russos,
em que participou pessoalmente, que Rosa Luxemburg escreveu o livro Greve de
massa, partido e sindicatos, que terá profunda influência nos debates do movimento
operário europeu nos anos seguintes.
Mas o movimento de maneira nenhuma se restringiu ao operariado. Também os mais
diversos sectores da burguesia liberal se mobilizam em acções pela liberdade política,
dando nascimento ao partido cadete (constitucional-democrata), que se bate por uma
reforma constitucional e a criação de um Parlamento. Em várias regiões, verificam-se
também movimentos de camponeses, com ataques às autoridades locais e incêndios dos
palácios, mas, no seu conjunto, o movimento camponês não alcança a dimensão
120

necessária a assegurar o triunfo da revolução. No entanto, em particular os populistas do


Partido socialista-revolucionário alargam a sua influência no meio rural e constituem
uma União Panrussa dos Camponeses.
Despertam os movimentos pela autonomia das nacionalidades do Império,
nomeadamente na Polónia, na Finlândia, nos Países Bálticos.
No Verão dá-se a revolta dos marinheiros do couraçado Potemkin, que Eisenstein
imortalizará num filme famoso.
Em Outubro, a greve geral dos ferroviários “paralisa o país inteiro” (E. Santarelli) e é
nessa altura que nasce o soviete de Petrogrado (em que Trotsky desempenha um papel
de primeiro plano), assumindo praticamente as funções de coordenação do conjunto do
movimento.
Naturalmente o czarismo e as forças da reacção conservadora não ficam inactivos. A
combinação da repressão com algumas concessões permite-lhe sobreviver. A repressão
não se limitou, de resto, à normal acção policial ou do Exército. A reacção russa, com o
apoio da polícia e das autoridades, recorre ao pogrom, a mobilização de massas de
elementos desqualificados, não só contra os judeus (que tinham aliás forte presença no
movimento socialista), mas contra todos os considerados subversivos. Arthur
Rosenberg, no seu ensaio já aqui citado, dedica algumas páginas à análise destes
movimentos de massa reaccionários na Rússia de 1905, que considera como precursores
do fascismo, e aponta a organização das “centúrias negras” (os Cem Negros) como o
único caso, na Europa anterior à I Guerra mundial, de uso de tropas de choque, que
serão características dos movimentos fascistas29.Refere ainda que, apenas no Outono de
1905, os Cem–Negros assassinaram, em cem cidades da Rússia, mais de quatro mil
pessoas.
O movimento prosseguiu porém, e em Dezembro, em Moscovo, já sob direcção dos
bolcheviques, desencadeia-se uma insurreição armada, que dominou a cidade durante
dez dias. A partir daí, começa um refluxo, e entretanto a finança internacional,
principalmente francesa, acorre em socorro do regime czarista que, sem diminuir a
repressão, iniciara algumas reformas.

29
Id., ibid., pp. 92-98.
121

Pelo lado das concessões, a principal consistiu no Manifesto de Outubro apresentado


pelo czar perante o auge dos movimentos de protesto, manifesto no qual prometia a
eleição de uma assembleia representativa eleita, a Duma, quer dizer, um Parlamento.
Inicialmente estava previsto que a Duma tivesse apenas funções consultivas, depois foi-
lhe reconhecida capacidade legislativa. Mas o regime eleitoral estava muito longe de
democrático. Apenas aos grandes proprietários era reconhecida a capacidade de eleição
directa dos deputados, para as outras classes da população o sufrágio era indirecto, e
além disso o voto daqueles tinha uma ponderação muito superior na eleição dos
deputados. Apesar de tudo, a partir de Maio de 1906 existiu na Rússia um Parlamento,
com representação dos vários partidos: uma maioria de cadetes, duas dezenas de
socialistas do POSDR (mencheviques e bolcheviques), uma centena de populistas e
meia centena de deputados das direitas czaristas, entre eles o grupo reformador que fica
conhecido como outubrista, por se reclamar do Manifesto de Outubro do czar. Uma tal
assembleia, mesmo com poderes limitados, era demasiado subversiva para o gosto do
czar, que a dissolve e convoca novas eleições: sem obter o resultado pretendido, porque
as novas eleições reforçam a representação socialista. Perante isto, impõe uma nova lei
segundo a qual os votos dos grandes proprietários têm uma ponderação cinquenta vezes
superior aos da burguesia urbana e quinhentas vezes maior que os dos operários.

A experiência da revolução de 1905, como se referiu, contribuiu para aprofundar a


separação doutrinária entre bolcheviques e mencheviques, embora em muitos lugares as
organizações do POSDR tenham continuado a actuar em conjunto. Numa obra
publicada em Genebra em 1905, ainda antes da sua viagem à Rússia, com o título Duas
Tácticas da Social-Democracia na Revolução Democrática, Lenine expõe uma
concepção inovadora do papel do partido socialista na “revolução democrático-
burguesa”, que em parte antecipa aquilo que será, em 1917, a estratégia revolucionária
bolchevique.
Na época, todos os marxistas estavam de acordo (e isso os tinha oposto aos narodnik)
em que uma revolução na Rússia só podia ser uma “revolução burguesa”. Quer dizer,
num país em que a classe operária industrial era uma parte pequena da população, em
que permaneciam relações feudais na agricultura, em que não havia nenhuma espécie de
democracia, o interesse dos socialistas, no sentido de criar as condições de uma
122

passagem posterior para o socialismo, era apoiar uma revolução que, à semelhança da
revolução francesa de 1789, possibilitasse condições de liberdade e de desenvolvimento
económico moderno, capitalistas. Nestas condições é que o proletariado industrial
cresceria quantitativamente e alcançaria a possibilidade de organizar-se e educar-se para
poder posteriormente conquistar o poder e realizar o socialismo.
Na base desta ideia, os mencheviques entendiam que o POSDR não devia pretender
fazer parte de um governo que se formasse em consequência da queda do regime
czarista. A direcção deste governo incumbiria naturalmente a partidos como os cadetes,
representativos da burguesia russa. Os socialistas manter-se-iam na oposição,
dedicando-se a organizar sindicatos, a difundir as ideias socialistas, a exprimir na Duma
ou na imprensa as suas opiniões, sem pretenderem a um papel dirigente no governo
revolucionário.
Lenine e os bolcheviques, pelo contrário, sublinham os aspectos de fraqueza histórica, e
consequentemente política, da burguesia russa, crescida à sombra do czarismo e do
capital estrangeiro e consequentemente incapaz de assumir uma posição decisiva de
ruptura com o czarismo. Para Lenine, o aliado do proletariado na revolução democrática
não é a burguesia, mas sim o campesinato, que aspira à propriedade da terra liberta do
domínio dos grandes senhores e por isso está interessado no derrube da monarquia.
Naturalmente, a distribuição de terras realizada pela revolução criaria uma dinâmica
capitalista. Mas seria um capitalismo democrático, próximo daquilo que ele caracteriza
como a “via americana” do desenvolvimento, que considera progressista.
Em conformidade com este raciocínio, o partido socialista devia desde início aspirar a
um papel dirigente na revolução democrático-burguesa e consequentemente a uma
participação num governo revolucionário. Essa participação dirigente dos socialistas na
revolução democrática é que permititiria realizar de forma mais completa a ruptura com
o czarismo e a tradição feudal, liquidando a propriedade senhorial e o aparelho de
Estado monárquico, desse modo criando também condições mais favoráveis para uma
ulterior transformação socialista (pelo rápido desenvolvimento das forças produtivas,
pelas condições mais favoráveis oferecidas à organização dos trabalhadores por uma
república democrática e pelo impacto que a revolução democrática na Rússia teria no
movimento operário dos países industrializados).
123

Quer dizer, ao passo que, na concepção menchevique, o partido socialista tem


essencialmente uma função de representação política da classe operária, cujo
crescimento depende do desenvolvimento económico, e não pode antecipar-se a ela, na
concepção leninista é mais valorizado o papel dos factores propriamente políticos, e
portanto o papel activo do partido socialista em todas as fases do desenvolvimento
histórico. Não lhe cabe apenas esperar o “amadurecimento” do socialismo, mas tem de
organizar as condições sociais, políticas, ideológicas, da mudança de sociedade. Isto
explica a necessidade de uma organização mais centralizada e a importância atribuída
ao conhecimento teórico, como condição duma intervenção adequada no processo
histórico.
Veremos numa das próximas aulas como, perante as condições mundiais novas abertas
pela I Guerra mundial, a derrota da Rússia e o início, em Fevereiro (Março) de 1917, da
segunda revolução russa, este esquema de raciocínio levou Lenine e o partido
bolchevique – então já organicamente separado dos mencheviques – a considerarem que
podiam e deviam conquistar o poder, apesar de a classe operária constituir uma minoria
na população da Rússia.
Após 1907, a política do czarismo, com vista a conservar o poder, não se limitou a
concessões políticas combinadas com intensificação da repressão. Os círculos mais
esclarecidos da classe dominante compreendiam a necessidade de uma aceleração do
desenvolvimento económico e tiveram um intérprete competente na figura do novo
primeiro-ministro, Stolypin. Este empenhou-se principalmente numa modernização
agrária que tinha em vista favorecer a criação de uma classe de camponeses prósperos
(os kulaks), libertos do peso dos direitos feudais, ao mesmo tempo que liquidava o
comunitarismo agrário que era condição de sobrevivência dos camponeses pobres.
Assim se expulsava uma massa importante de força de trabalho dos campos para as
cidades, que iria servir nas novas indústrias. Deste modo se desfazia defitivamente a
unidade do campesinato e se liquidava a aspiração de terra da grande massa dos
camponeses, ao mesmo tempo que se impulsionava o desenvolvimento industrial (o que
é de novo conseguido por um acréscimo do investimento estrangeiro e do
endividamento do Estado). Esta política suscitou porém muitas resistências no seio dos
grupos dominantes tradicionais da nobreza. Ao mesmo tempo não cessou a oposição das
124

tendências revolucionárias, e Stolypin é morto num atentado de um socialista-


revolucionário, em 1911.
Nas vésperas da I Guerra mundial, o movimento operário encontrava-se de novo em
ascenso. A entrada da Rússia na Guerra obedeceu em parte à mesma lógica que
determinara a guerra russo-japonesa, a de procurar numa afirmação de poder imperial a
compensação e o escape para as dificuldades internas. Desta vez porém o conflito tem
outra dimensão militar e trava-se no próprio território. Após uma primeira ofensiva a
oeste, o Exército russo sofre uma derrota histórica em Tannenberg, na Prússia oriental, e
a partir daí é remetido à defensiva. O aparelho administrativo e logístico revela-se
incapaz de assegurar as condições do esforço militar, e a partir de 1916 as deserções
multiplicam-se. Agravam-se as divisões no seio do poder, sobretudo após a saída de
Nicolau II da capital para assumir o comando das tropas. A figura da czarina, alemã
pelo nascimento, é um factor de desprestígio e de escândalos (caso Rasputine). Com
ligações às próprias embaixadas dos Aliados, começa a preparar-se um golpe de Estado
visando levar Nicolau II a abdicar e propiciar uma transição pacífica no quadro da
monarquia. Quando, em Fevereiro de 1917, a situação dos abastecimentos se torna
insuportável e as massas descem à rua, a ordem do czar para reprimir os manifestantes
não é obedecida. Nicolau II é forçado a abdicar, mas já não terá sucessor.
Era o princípio da segunda revolução russa do século XX.
125
126

Lição 14: A Revolução Russa de 191730.

Em virtude das condições provocadas pela Guerra, da incapacidade do regime czarista


em a conduzir, fruto das suas próprias divisões internas, e da insatisfação existente,
eclode uma revolução, espontaneamente, em Fevereiro31 de 1917. Na prática, as tropas
encarregadas da repressão, recusaram-se a combater e confraternizaram com os
manifestantes. Esta revolução espontânea conduz, a curto prazo, à abdicação do Czar. A
tentativa ainda feita de o substituir não resultou, já que o seu possível sucessor não
aceitou o cargo, em virtude das condições existentes. Forma-se, assim, um governo a
partir da única instituição existente e disponível, a Duma, cuja existência o Czar tinha
sido forçado a conceder em resultado da Revolução de 1905. Era um parlamento com
liberdades muito condicionadas mas que, pelo menos, existia, e nele existiam diversos
partidos, predominantemente burgueses. Eram partidos que se podiam chamar de
liberais, porque se inspiravam no liberalismo ocidental, na monarquia constitucional,
visavam uma certa modernização da sociedade russa e asseguravam a continuação da
guerra em que a Rússia se encontrava comprometida. O governo formado foi presidido
pelo príncipe Lvov e apoiado por dois grupos de monárquicos constitucionais: os
Cadetes e os Outubristas. Um aspecto importante deste governo é que ele não é auto-
suficiente. A sua constituição só foi possível com o acordo de uma instituição
denominada Soviete, ressurgida em 1917 e essa sim representativa dos trabalhadores
revolucionários, das massas populares que tinham participado nas manifestações e
provocado a queda do czarismo. Os sovietes eram conselhos de base popular, formados
por operários, soldados e camponeses, que já tinham existido durante a revolução de
1905 e que ressurgem durante os acontecimentos de Fevereiro de 1917. Decisiva foi a
existência de sovietes de soldados já que, detendo as armas, estas instituições,
reconhecidas e eleitas pelos soldados nos seus aquartelamentos, eram essenciais para
haver algum elemento de ordem e organização, num período em que a autoridade da

30
Transcrição pelo aluno José Carlos Marques, revista e corrigida pelo docente.
31
Março no Ocidente. A Rússia, nesta altura, ainda vivia sob o calendário juliano. Este velho
calendário, cujo nome deriva de Júlio César, apresenta uma diferença de 13 dias para o gregoriano,
calendário utilizado pelos países ocidentais.
Este calendário será adoptado, na Rússia, pelo governo saído da Revolução de Outubro.
127

hierarquia militar era cada vez menos respeitada. Os sovietes de soldados, tal como já
tinha acontecido em 1905, não actuaram isoladamente, tendo-se constituído,
rapidamente, ao nível da cidade de Petrogrado (S. Petersburgo) um soviete conjunto de
representantes dos soldados e dos operários. Surgem, depois, outros sovietes nas mais
diversas localidades, de maneira que, passados dois meses, se realizará um congresso
pan-russo dos sovietes (sovietes de toda a Rússia), assumindo o de Petrogrado um papel
de coordenação e direcção. Desde os primeiros dias de Fevereiro de 1917 existem,
assim, simultaneamente, duas instituições dirigentes: uma emanada da Duma, o
governo, e outra constituída por representantes dos quartéis e das fábricas, o soviete.
Quais foram as relações entre estas duas instituições? A Duma tinha a legitimidade de
uma instituição eleita (apesar de o não ser por sufrágio universal igualitário), de tipo
parlamentar, oficial, com os seus líderes e com a sua história; o soviete era uma
instituição praticamente só socialista. Os elementos do soviete pertenciam aos partidos
socialistas que eram, nessa altura, essencialmente três: dois partidos marxistas
representativos de sectores da classe operária32, os bolcheviques (extrema-esquerda) e
os mencheviques (socialistas moderados), e o Partido Socialista-Revolucionário (os S-
R, como também eram conhecidos, uma derivação dos “narodnik” do século XIX, com
a sua ideia de regeneração da Rússia através da libertação dos camponeses e não a partir
da socialização da indústria, uma ideia de sociedade diferente da dos partidos
marxistas). Para além destes três grupos, há a considerar os anarquistas. Apesar de não
terem uma linha homogénea, são uma realidade e uma tradição na história russa,
devendo ser considerados como uma corrente e não como um partido.
A estabilização da estrutura do poder perante estas condições parece simples, pelo
menos numa primeira fase. A população que adere à revolução não tem um projecto
uniforme, aposta na mudança do governo e espera que os novos tempos tragam uma
resolução para os seus problemas, uma concretização das suas aspirações e um espírito
novo nas relações entre as pessoas. Os liberais da Duma constituem governo e os
sovietes aceitam esta formação. Não têm grandes exigências próprias e apenas um
socialista, a título pessoal, vai integrar o Governo Provisório. Trata-se de Alexandre
Kerensky, um socialista trudovik (quer dizer, “trabalhista”, era aparentado com os

32
Petrogrado era na altura a cidade com maior concentração operária do mundo.
128

socialistas-revolucionários), que irá ocupar o cargo de Ministro da Justiça. Bom orador,


foi visto pelos restantes elementos do governo como um canal de comunicação com as
massas operárias de Petrogrado influenciadas pelos socialistas O governo promete que
um dia reunirá uma Assembleia Constituinte encarregada de redigir uma nova
Constituição, que será adoptada assim que haja condições para tal. Esta nova assembleia
decidirá, também, sobre a forma do novo regime: monarquia constitucional, ou
república. Não é imediatamente adoptada a república, até lá é preciso prosseguir a
defesa nacional na guerra e assegurar as liberdades dos cidadãos. Porque é que os
socialistas não têm mais reivindicações do que estas? Essencialmente porque os
marxistas se baseiam na ideia de que a Rússia não é uma sociedade madura para o
socialismo: a colectivização da economia só poderia ocorrer na base de uma
generalização do modo de produção capitalista na sociedade e da existência, portanto,
de uma maioria proletária. Ora a maioria da sociedade russa é composta por
camponeses, com as suas pequenas parcelas de terra, sujeitos a contribuições, a
prestações de trabalho e de géneros em relação aos grandes proprietários, logo
oprimidos por esses grandes proprietários. Não são uma classe identificada com o
projecto socialista. Esta estrutura social não pode ser socializada. O socialismo, dentro
da teoria marxista, só pode surgir na base da riqueza criada pela expansão do modo de
produção capitalista industrial moderno. É na base deste raciocínio que os socialistas e
os sovietes se abstêm de reivindicar um lugar no governo.
Existe assim ao nível das instituições, desde a Revolução de Fevereiro, aquilo que se
veio a chamar duplo poder. Existia, por um lado, o Governo Provisório, e por outro, o
soviete de Petrogrado e mais globalmente a estrutura dos sovietes, entretanto constituída
a nível nacional. Na medida em que o soviete tem o apoio dos operários e dos soldados,
e tendo estes últimos as armas, naturalmente que nada pode sobreviver sem o apoio do
soviete. Obviamente que os partidos do governo também prometem que melhorarão as
condições de vida angustiosas da população, que os camponeses serão libertos das
prestações para com os grandes proprietários, que os operários terão as suas condições
de vida minimamente asseguradas, nomeadamente melhorias salariais. No entanto
dizem que, para que isso seja possível, o imperativo da hora é prosseguir a guerra e
assegurar a defesa nacional. Por isso, não se pode ir agora pôr em causa os direitos
estabelecidos e a hierarquia das classes, já que isso seria um factor de desorganização,
129

porque ir-se-ia ferir pessoas e entidades essenciais para assegurar o esforço de guerra,
na medida em que muitos dos altos oficiais são, simultaneamente, grandes proprietários,
ou a eles ligados. Pondo-se em causa a grande propriedade, iam-se atingir os interesses
dos que são essenciais para continuar o referido esforço de guerra. O que se aplicava ao
exército, aplicava-se em relação aos outros níveis da estrutura do Estado. Gera-se aqui
um foco de contradição. Na origem da revolução tinha estado o facto de a maioria da
população fugir à guerra e estar farta da mesma. Na Rússia, em função das deficiências
e da ineficácia militar, o movimento das deserções foi muito intenso. A maior parte dos
soldados eram camponeses, portanto fugiam do exército e iam para as suas terras onde
queriam, em primeiro lugar, assegurar a sua sobrevivência. Ora se os soldados já se
tinham rebelado no exército, também começavam, nas suas terras e em contacto com os
seus familiares camponeses, a olhar de outra maneira os grandes proprietários. A
insatisfação e a rebelião no exército vão-se propagar a uma rebelião social mais ampla,
que já se manifestava mesmo antes da Revolução de Fevereiro, e que nas novas
condições abertas com a queda do regime czarista naturalmente se vai ampliar
muitíssimo. No fundo, é como acontece, também, em todas as outras revoluções e como
se passa em Portugal, mesmo na modesta revolução de 5 de Outubro de 191033. Na
Rússia passa-se a uma escala maior em virtude de também serem maiores a intensidade
dos problemas e a opressão anteriormente vivida. É todo um edifício secular de
autoridade, simultaneamente política, religiosa e militar, que se vê desfazer-se com a
queda do czarismo. Apesar do acordo formal do soviete ao Governo Provisório, na base
da sociedade havia todas as condições para que este acordo não pudesse ter tradução
prática, porque as classes que cada uma das instituições representava eram diferentes e a
questão da guerra vai, a curto prazo, pô-las em choque e, nomeadamente, dar origem à
primeira crise do governo, em Abril de 1917. Quando o político cadete, o importante
historiador Pavel Miliukov, Ministro dos Negócios Estrangeiros, declara que a Rússia
mantém todos os seus objectivos de guerra, incluindo a conquista dos Dardanelos e o
acesso ao Mar Negro, estes objectivos não eram meramente defensivos, mas sim de

33
Os primeiros tempos da revolução de 5 de Outubro de 1910, em Portugal, foram sentidos pelo
operariado como um caminho aberto à contestação da autoridade do patrão. Nesse aspecto, a revolução
republicana portuguesa, da qual se diz que nada teve de revolução social (o que em parte é verdade), teve,
pelo menos, esse efeito social de deslegitimar as autoridades sociais vigentes. Cfr. Vasco Pulido Valente,
O Poder e o Povo: a revolução de 1910, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1974, pp. 173 e sgs.
130

alargamento do território em relação àquilo que eram as fronteiras de 1914. Esta


declaração, que significava não só a continuação da guerra, mas uma afirmação de que
esta tinha objectivos de conquista, suscitou uma enorme revolta entre a classe operária e
entre os soldados (especialmente em Petrogrado). As manifestações populares que se
geraram contra Miliukov provocaram a queda do governo. Foi a primeira crise política
aberta em função da questão da guerra e que obrigou a uma mudança de governo, ainda
em Abril de 1917. É também por esta altura que chega à Rússia, vindo da Suíça, um
conhecido político socialista, o líder dos bolcheviques, Vladimir Ilitch Ulianov,
conhecido como Lenine. Desde o princípio do século XX que Lenine vivia na
emigração. No período da Revolução de 1905 esteve temporariamente na Rússia, tendo,
depois, voltado a exilar-se. Pelo menos até à eclosão da I Guerra Mundial, ele não
esperava que se voltassem a repetir a curto prazo acontecimentos como os de 1905.
Contudo, assim que as movimentações de 1917 se desencadearam, começou a preparar
o regresso 34 . Esta chegada de Lenine à Rússia vai ter uma grande influência na
sequência ulterior dos acontecimentos35. Porque razão é importante a chegada do líder
bolchevique à Rússia em Abril de 1917? Até então, e apesar da existência dos já
referidos três partidos socialistas, não existiam grandes divergências políticas. A
importância da chegada de Lenine reside no facto de ele ter trazido teses políticas
próprias sobre aquilo que se estava a passar na Rússia e que ele interpreta como um
processo revolucionário, como a primeira revolução nascida em consequência da guerra
mundial. Uma revolução que ele considera poder e dever ter uma saída socialista. Esta é
a grande novidade do programa das denominadas “Teses de Abril”, conteúdo do
discurso que profere numa assembleia do Partido Bolchevique, na precisa noite em que
chegou a Petrogrado. Estas “Teses de Abril” resultavam de uma investigação e de uma
reflexão amadurecidas, sobretudo em consequência daquilo que ele vira como o

34
Este regresso foi complicado, já que era praticamente impossível transitar, legalmente, na
Europa em guerra, para mais quando a viagem envolvia uma personagem conhecida e com
responsabilidades políticas. Esta passagem acabou por só ser possível através de uma negociação
indirecta com o governo alemão. A este último interessava que fossem para a Rússia elementos que
pudessem ser um factor de complicação politica e de dissolução do Estado num país inimigo. A guerra
contra a Rússia continuava e é nessa base que, através de um processo complicado, Lenine e um conjunto
de dezenas de elementos do Partido Bolchevique acabam por atravessar a Áustria e a Polónia num famoso
vagão blindado.
35
A chegada de Lenine é um acontecimento posto em destaque no filme “Outubro” de Sergei
Eisenstein (1927), um dos principais documentos históricos sobre a Revolução Russa.
131

fracasso da II Internacional perante a eclosão da guerra. Os velhos partidos socialistas


não são capazes de fazer a revolução e essa conclusão aplica-se aos partidos socialistas
e seus líderes que dominam o soviete. Uma outra conclusão diz respeito à interpretação
da guerra como resultado de uma crise geral do capitalismo, e mais concretamente
como o resultado de o capitalismo ter chegado àquilo que ele vê como uma fase nova e
diferente, o imperialismo. Uma exasperação das contradições do modo de produção
capitalista que conduziria, necessariamente, a grandes guerras e que representava o
esgotamento das possibilidades de desenvolvimento histórico do capitalismo. Isto
significava que era possível aproveitar o descontentamento, a revolta das massas contra
as condições criadas e nomeadamente contra a guerra, para as conduzir a uma saída de
carácter internacional, a revolução socialista. A ideia de revolução socialista surge, para
Lenine, na base de um raciocínio sobre as condições mundiais de que a guerra é fruto,
mas que também permite ampliar, já que, ao envolver um conjunto de povos, uma
revolução que se gerasse num país teria, inevitavelmente, de ter repercussão noutros. A
guerra dava uma dimensão mundial aos processos sociais e políticos.
Um terceiro aspecto da análise que Lenine já tinha desenvolvido anteriormente prendia-
-se com o facto de que, ao contrário do que a tradição marxista pensava, o socialismo
não nasceria espontaneamente nos países mais avançados, mas sim como resultado de
revoluções surgidas em consequência da fraqueza de determinados Estados (nos “elos
mais fracos do capitalismo”, segundo a sua imagem). Era a ideia que aquilo que se tinha
passado na Rússia, a revolução, tinha sido uma ruptura da cadeia. Se o todo do
capitalismo forma um sistema, a economia mundial está relacionada em todos os seus
aspectos. Na Rússia, por virtude dos problemas acumulados, resultantes do atraso social
e político, e da diversidade de forças que se opunham ao regime, tinha-se rompido um
elo do sistema. Tinha-se iniciado uma revolução num dos países mais atrasados da
Europa em termos económicos, mas isso não diminuía em nada o alcance mundial dessa
mesma revolução. Lenine interpreta a revolução russa como parte de uma revolução que
pode ter expressão a nível mundial dentro de prazos que são imprevisíveis, mas que se
situariam numa mesma conjuntura, numa mesma sequência. Um outro aspecto da
caracterização da situação é a ideia do “duplo poder”: a par do governo formal
(Governo Provisório), a estrutura dos sovietes oferecia todas as condições de um Estado
alternativo, isto é, de uma nova forma de poder político, democrática, emanada de
132

eleições directas dos operários, dos camponeses e dos soldados, não de uma maneira
abstracta como cidadãos, mas resultante da sua própria vivência (Lenine estabelece
algumas comparações entre o soviete e a Comuna de Paris de 1871). A estrutura dos
sovietes é vista como a verdadeira instituição representativa e que pode vir a ser a base
de um Estado mais democrático, e que nesse sentido permita uma ruptura com o
domínio capitalista e conduza à revolução social. Daqui ressalta uma palavra de ordem,
muito vista em cartazes nas manifestações: “o poder aos sovietes”. Na verdade, o
Partido Bolchevique, minoritário nos sovietes dominados pelos S-R e pelos
mencheviques, acredita que, se for possível forçar o soviete a assumir-se como poder,
será possível dentro dessa estrutura convencer a maioria do povo, convencer as massas
da necessidade de tomar as medidas revolucionárias indispensáveis, correspondentes às
exigências populares sentidas no momento: sair da guerra, resolver a questão agrária
através da distribuição das terras, resolver os direitos sociais básicos dos operários e
dar-lhes poder, não só através da satisfação de reivindicações sociais, mas através do
controlo operário da produção. Não há neste projecto uma ideia de tomada de poder por
um único partido, assim como não há uma ideia de socialização da economia de um dia
para o outro (seria impossível e desfasado da realidade de um país 80% agrário). A ideia
era a de romper a estrutura do Estado existente, constituir um outro Estado na base dos
sovietes e fazer com que eles adoptem as medidas revolucionárias de alteração do poder
social que são apoiadas pela maioria da população. Segundo um historiador, insuspeito
de quaisquer simpatias comunistas, como Marc Ferro, as exigências de Lenine eram
aquelas que se adaptavam ao sentimento das massas, tal como foi expresso em milhares
de mensagens e telegramas endereçados de todas as partes da Rússia ao governo
provisório desde os primeiros dias da revolução (e que M. Ferro compara com os
“cahiers de doléances” da Revolução Francesa): paz, terra, elevações salariais, 8 horas
de trabalho, direitos dos comités de fábrica36.
A partir da queda do primeiro governo provisório, houve sucessivas remodelações
governamentais que procuravam adaptar-se à pressão da base, através de um maior
comprometimento de elementos dos sovietes no governo. Kerensky acaba por tornar-se
Primeiro-ministro em Julho. Outros socialistas entram também no governo, mas as

36
Marc Ferro, La Revolución Rusa, Cuadernos Historia 16, Barcelona 1985, pp.10 e sgs. (Texto 7
do Caderno). Para maior desenvolvimento, ver Id., La Révolution de 1917, Albin Michel, Paris, 1997.
133

medidas fundamentais mantêm-se: continuação da guerra a todo o custo e por isso não é
possível fazer-se a reforma agrária, não se pode pôr em causa a autoridade dos patrões
nas fábricas, nem a dos oficiais nos quartéis (embora ela já o estivesse em virtude da
existência dos sovietes). Há, em suma, uma tentativa de afirmação da autoridade do
Estado, embora os sucessivos governos prometam que, logo que seja possível, fazem as
prometidas eleições para a Assembleia Constituinte, mas a verdade é que as vão
adiando sucessivamente. Kerensky, em Agosto, numa mera declaração formal, chegou a
proclamar a república. O Ministro da Agricultura, Tchernov, que era também um
socialista, nada faz pela reforma agrária, pelo contrário procura reprimi-la, isto numa
fase em que o campesinato, por toda a Rússia, tinha passado à acção directa
apoderando-se de instrumentos de trabalho, de terras e de colheitas, assaltando palácios,
numa verdadeira insurreição camponesa de tipo tradicional, num acto de levantamento
contra os senhores locais, mas defrontando-se, em muitos casos, com a intervenção
governamental contra estes movimentos. Para realizar tudo isto, os governos provisórios
procuram fortalecer o aparelho de Estado de que dispõem, o que significa também, no
exército, irem reforçar os velhos chefes militares, e nomeadamente o Chefe supremo
das Forças Armadas Russas, Kornilov, nomeado então “Generalíssimo”. Kerensky
chega a convocar uma Conferência de Estado, que seria uma representação o mais vasta
possível de todas as forças, com representantes dos sovietes, dos patrões da indústria,
dos interesses agrícolas e do exército, acabando por dar uma grande projecção a
Kornilov nessa Conferência. Kerensky, ao fazer isto, queria entronizar-se como uma
espécie de Napoleão acima das partes, num papel quase monárquico37. Mas se, para
fazer isso, tinha de dar autoridade a um Kornilov, e quem diz ao Kornilov diz à
hierarquia militar por ele chefiada, então o próprio Kornilov achava que o melhor era
ser ele o beneficiário dessa concentração de autoridade que lhe era dada, aproveitando
para a impor. As forças sociais ameaçadas pelo movimento revolucionário, por aquilo
que se passa nas fábricas, nos campos e nos quartéis, vêem em instituições como esta
Conferência uma legitimação e vêem que o próprio Kerensky, como representante do
governo e do soviete, apela à autoridade de Kornilov, tendem, então, a reclamarem para
si a autoridade efectiva. É nesta base que, em Setembro, Kornilov vai tentar um golpe

37
A melhor descrição que conheço desta Conferência de Estado e do seu papel na crise
revolucionária é a dada por Trotsky na sua obra clássica A Revolução Russa.
134

de estado para derrubar o governo de Kerensky, iniciativa tomada num contexto


favorável, após as grandes manifestações ocorridas em Julho, em Petrogrado, com a
participação dos bolcheviques, que foram apresentadas como tentativa de tomada de
poder. Desenvolveu-se, assim, um ambiente de repressão contra-revolucionária que,
com o derrube de Kerensky, abriria caminho ao restabelecimento da monarquia. Só que
as grandes massas da população não estavam dispostas nem a aceitar a continuação da
guerra, nem o restabelecimento da velha autoridade. É neste contexto que,
nomeadamente, os bolcheviques vão ter um papel eficaz e influente de mobilização dos
seus apoiantes e da população em geral, contra a tentativa de golpe. Não pretendem de
momento tomar o poder, não põem em questão Kerensky, apenas pretendem a derrota
do Kornilov, a derrota da ameaça às liberdades conquistadas em Fevereiro/Março. A
derrota de Kornilov significou uma deslocação da maioria dos sovietes para as posições
que os bolcheviques representavam, cuja tradução é evidente no aumento da influência
que tiveram nas eleições seguintes. É neste quadro que, perante uma situação de
impasse do regime, em que o governo de Kerensky se encontrava desprestigiado e
ameaçado pela extrema-direita (Kornilov e a reacção monárquica), em que a ofensiva
alemã prosseguia e a fraqueza do governo podia significar a ocupação da capital,
Petrogrado, por parte dos Alemães, pondo termo à revolução e aos direitos
conquistados, a crescente influência do Partido Bolchevique, inspirado por Lenine,
conduz à preparação da insurreição para a tomada de poder. Aqui sim, a partir de
Setembro, trata-se de uma preparação para a conquista do poder no sentido mais
clássico da palavra, isto é, da organização, sob a orientação de um partido, de um
conjunto de destacamentos militares destinados a ocuparem as posições estratégicas da
cidade, expulsar o governo em funções e constituir um novo. É isto que vai ser
preparado sob a direcção de um homem que não era um bolchevique histórico, era um
socialista que já tinha tido um papel de grande influência nos acontecimentos de 1905,
que fora durante algum tempo menchevique, e que adere ao Partido Bolchevique
durante as jornadas de Julho de 1917, de seu nome Leão Trotsky. Agora, na qualidade
de Presidente do soviete de Petrogrado, vai encabeçar e preparar esta acção de
insurreição e derrube do governo, coincidente com a reunião do II Congresso Pan-russo
dos Sovietes, marcado para o dia 7 de Novembro de 1917, segundo o nosso calendário,
dia 25 de Outubro segundo o calendário juliano. Essa operação é realizada com êxito
135

durante a madrugada, tendo Lenine, como líder dos bolcheviques, apresentado ainda na
noite do mesmo dia, no Congresso dos sovietes, um manifesto que declarava que o
Governo Provisório tinha sido derrubado e que o Congresso assumia o poder. Na noite
de 25 para 26 é tomado o Palácio de Inverno e são presos os ministros (Kerensky fugira,
disfarçado de enfermeira, para tentar organizar a resistência). Na sessão do congresso de
dia 26 é eleito o governo (“Conselho de Comissários do Povo”) bolchevique, presidido
por Lenine. Os mencheviques e a fracção de direita dos socialistas-revolucionários (que
entretanto se tinham dividido) tinham abandonado o congresso, em protesto contra o
derrube do governo, logo no primeiro dia. Na sessão de dia 26 são aprovados os dois
primeiros e já anteriormente referidos decretos do poder soviético, o Decreto sobre a
Paz e o Decreto sobre a Terra.
É nisto, em suma, que consiste a Revolução de Outubro, uma revolução realizada por
um único partido, um partido inicialmente minoritário, mas que, ao longo do ano, e
particularmente na luta contra o golpe de Kornilov conquistara, não só o soviete de
Petrogrado e a duma municipal de Moscovo, mas também os sovietes dos pricipais
centros industriais: no II Congresso dos Sovietes eram assim 300 dos 670 delegados, e o
apoio de cerca de uma centena de socialistas-revolucionários de esquerda e outros
socialistas permitiu-lhes a maioria. O problema é como se compatibiliza este governo de
um partido fundamentalmente da classe operária com um país maioritariamente de
camponeses, entre os quais a tradição mais influente é a dos socialistas revolucionários
e onde existem, além disso, um conjunto de outras forças opostas: mencheviques,
cadetes e em suma o conjunto das forças que suportaram, quer o czarismo, quer os
governos provisórios que se lhe seguiram. O Partido Bolchevique era, como vimos, um
partido altamente organizado, com uma concepção própria da revolução que estava a
realizar. Os bolcheviques tinham denunciado, ao longo destes meses, as
inconsequências e as hesitações dos governos provisórios e um dos aspectos que tinham
criticado era o adiamento sucessivo das eleições para a Assembleia Constituinte.
Finalmente, nas vésperas da Revolução de Outubro, o governo Kerensky tinha resolvido
realizar as eleições para a Assembleia Constituinte, de maneira que elas acabaram por se
realizar já alguns dias após a revolução (a 12 de Novembro, com a participação de
menos de metade dos eleitores inscritos). Os resultados darão cerca de um quarto dos
votos aos bolcheviques, apenas 3% aos mencheviques e a maioria aos S-R de direita
136

(havia ainda uma minoria de s-r de esquerda, alguns cadetes e representantes de partidos
das nacionalidades). Esta assembleia não correspondia à natureza do poder que se tinha
criado sob a direcção do Partido Bolchevique, pondo-se o problema de que a maioria
poderia derrubar o governo revolucionário. O resultado disto é naturalmente um choque,
e a decisão dos bolcheviques, acompanhados pelos S-R de esquerda, é rápida em
dissolver, pela força, a Assembleia Constituinte, não chegando a haver sessão. O
destacamento militar enviado para assegurar esta decisão não encontrou resistência de
maior. As justificações para esta medida, aparentemente anti-democrática e violadora
dos princípios de expressão popular, são referidas por Lenine como sendo, por um lado,
o facto de os sovietes serem uma forma de expressão popular mais autêntica do que a
democracia dos partidos, por outro lado, o facto de que entre a formação das listas, em
Outubro, e a realização das eleições a 12 de Novembro, tinha havido uma divisão do
PS-R . Já em Dezembro de 1917 se tinha formado um governo de coligação entre os
bolcheviques e os S-R de esquerda, muito identificados com os objectivos constantes no
“Decreto da terra” (uma socialização do solo, com a entrega da exploração da terra em
propriedade pessoal e familiar aos camponeses). O episódio da dissolução da
Assembleia Constituinte foi, segundo a interpretação de alguns autores, prenunciador do
carácter anti-democrático do bolchevismo e de outras violações dos direitos e liberdades
democráticas.
O segundo problema com que o governo se vai defrontar é o da guerra. Como vimos, os
bolcheviques tinham feito o Decreto da paz logo que tomaram o poder. Era,
simultaneamente, uma proposta diplomática de negociação aos governos, para que se
reunissem e estabelecessem uma paz sem indemnizações nem anexações, e um apelo à
sublevação dos povos, caso os respectivos governos não concordassem em concluir a
paz. Nem um coisa nem outra resultaram nos primeiros meses. O exército russo
continuava a desfazer-se perante o contínuo avanço das tropas alemãs. Nesta
conjuntura, houve dirigentes bolcheviques que defenderam que o que havia a fazer era
continuar a guerra e, se a capital fosse ocupada, dever-se-ia passar a uma guerra de
guerrilha. Argumentavam que, assim como assim, revoluções noutros países era
inevitável que ocorressem, a revolução renasceria mesmo contra os exércitos alemães
ocupantes. O raciocínio de Lenine não foi este, mas sim o de que “vale mais um pássaro
na mão do que dois a voar”: achava que mais valia um território revolucionário
137

conquistado do que várias revoluções só existentes como hipóteses, e assim sendo era
preciso concluir a paz a todo o custo. Para impor esta posição, chegou a ter de ameaçar
a sua própria demissão de chefe do governo e de líder do Partido Bolchevique. A sua
opinião acabou por prevalecer e, com a participação contrariada de Trotsky, conduziu
em Março de 1918 ao tratado de Brest-Litovsk. Tratado esse que teve como
consequência a retirada ao governo russo de todo o território que nesse momento estava
ocupado pelos Alemães ou pelos seus aliados (toda a Polónia russa, a Ucrânia, a
Geórgia, os Países Bálticos e a Finlândia, que entretanto tinha obtido a independência; o
que correspondia a 1/3 da terra arável, 1/4 da população, 2/3 das minas de carvão e 50%
da indústria pesada).
Pouco depois da conclusão da paz, em Junho, há um novo levantamento contra o
governo bolchevique levado a cabo por prisioneiros de guerra checos, prontamente
aproveitado para uma intervenção estrangeira. Foi o início da guerra civil, que se
prolongaria por quase três anos.
138

Lição 15: A Rússia soviética. Guerra civil e comunismo de guerra. A NEP. A morte
de Lenine e a crise de direcção. 38

A guerra civil iniciou-se com a revolta da chamada “legião checa”, um grupo de ex-
prisioneiros de guerra checoslovacos que, em Junho de 1918, derrubou o poder
soviético em Samara e, na sequência, organizou um “comité para a convocação da
assembleia constituinte”, essencialmente animado por políticos dos partidos cadete e S-
R de direita. Pouco depois, desembarcam em Arcangel (Mar Branco), no norte do país,
tropas francesas e inglesas, ao que se segue o desembarque de tropas americanas e
japonesas em Vladivostok, no extremo-oriente (cerca de 80 000 homens,
maioritariamente japoneses). No Sul, a partir da fronteira turca no Cáucaso e da
Ucrânia, entram tropas francesas e inglesas que se vão ligar a chefes do exército czarista
mantidos em funções durante os governos provisórios, chefes militares esses que, em
vários pontos do território, vão estabelecer uma espécie de reinos próprios, os seus
domínios. O czar continuava preso e ainda em 1918, no decurso da guerra, e por receio
de que ele ou qualquer membro da família pudesse ser utilizado como instrumento
político de restauração, ele e a sua família foram dizimados, ficando este como um dos
episódios de terror vermelho que mais chocaram a opinião pública. Até ao princípio de
1920, com um ressurgimento no final desse ano e princípios de 1921, a Rússia é
atravessada por uma guerra civil de extrema violência e barbaridade, que opôs os
Vermelhos, apoiantes dos Bolcheviques, e os Brancos, constituídos por diversos
reaccionários liderados pelos sectores czaristas. Nesta guerra, em que há avanços e
recuos das tropas, a resistência do governo bolchevique foi conseguida, por um lado,
pelo apoio social que tinha da classe operária mas também, maioritariamente – e apesar
de muitas contradições e oscilações -, dos camponeses. O erro fatídico dos Brancos foi
a restituição das propriedades, nas regiões que ocupavam, aos antigos senhores,
entrando assim em choque com as massas camponesas que tinham conquistado a posse
das terras em resultado dos decretos de Outubro. Para além disto, a vitória bolchevique
foi alcançada pela eficácia militar, na base da disciplina mais estrita, assegurada pela
chefia de Trotsky, o Comissário da Guerra (depois de ter sido Comissário dos Negócios

38
Aula do dia 3 de Dezembro de 2004 (cont.) Tran scrição pelo aluno José Carlos Marques, revista
e corrigida pelo docente.
139

Estrangeiros no primeiro governo após Outubro) o qual, com o papel que desempenha
na guerra civil, ganha um enorme prestígio, só ultrapassado, nesta fase, pelo de Lenine.
As suas medidas de organização incluíram a utilização de uma boa parte de oficiais
czaristas reconvertidos, controlados por comissários políticos do partido bolchevique
(que em finais de 1918 adopta oficialmente o nome de Partido Comunista, PCbR).
Nestas condições a revolução pôde vencer, o que não era um dado garantido à partida,
contando-se até que Lenine, quando constatou que o governo revolucionário já durava
há mais tempo do que a Comuna de Paris, ficou tão contente que se rebolou na neve.
Ainda em 1920 houve um ressurgir da guerra, neste caso pela invasão do exército
polaco com o apoio da França, curiosamente com a participação, como conselheiro
militar, de um jovem oficial francês de nome Charles de Gaulle39. Foi um momento
muito interessante da história mundial porque, se o Exército Vermelho tivesse vencido,
o que em certo momento esteve perto de acontecer, isso teria tido na conjuntura de 1920
um efeito extraordinário na Alemanha, e se calhar em toda a Europa. Os bolcheviques
acreditaram que isso ia acontecer e que a revolução mundial ia ser empurrada pela
mudança de poder na Polónia, mas não foi o que sucedeu, o Exército Vermelho acabou
por ser obrigado a recuar. Esta situação provocou um reacender localizado da guerra
civil, que foi depois completamente ultrapassada na Primavera de 1921.
A situação do país era absolutamente catastrófica porque, se já era crítica em 1917, a
guerra civil criou, para além do mais, uma situação económica terrível. Em 1921 a
Rússia vai sofrer a mais terrível fome da sua história, com milhões de vítimas. A
produção industrial em 1921 era 1/5 da de 1913, nas vésperas da Guerra. Depois, a
política económica adoptada pelos bolcheviques, embora não pretendesse a estatização
generalizada da economia, implicou uma extrema concentração de recursos, que
correspondeu àquilo a que se chama Comunismo de guerra: sendo a economia
predominantemente agrícola, aos camponeses era-lhes permitido possuírem e
cultivarem a terra, mas entregavam obrigatoriamente o excedente, tudo aquilo que não
era indispensável para a sua subsistência, ao Estado, que com essas requisições
alimentava as cidades e fornecia as matérias-primas para a indústria. Este sistema é a
modalidade mais simples de economia e praticamente suprimia a moeda, porque não

39
Mais tarde líder da Resistência à ocupação da França pela Alemanha nazi (1939-44), chefe do
governo (1944-46) e Presidente da República (1958-68).
140

havia lugar a negócio. Por maior que fosse a simpatia obtida dos camponeses pela
distribuição de terras, as condições materiais existentes, a falta de contrapartidas, a
desorganização administrativa e as destruições da guerra não lhes permitiam produzir
grande coisa. Com a impossibilidade de realizarem negócio, começaram a reagir
destruindo colheitas, recusando nalguns casos as sementeiras. Gera-se assim, no final da
guerra civil, uma situação de carência extrema, com efeitos, inclusive, sobre a
população urbana que mais apoiava os bolcheviques. Isto teve como consequência,
nomeadamente, greves em Petrogrado e a famosa revolta dos marinheiros de Kronstadt,
que anteriormente tinham sido dos maiores defensores dos bolcheviques. O
esmagamento desta revolta pela força (com Trotsky a assumir um papel determinante na
condução das operações), muitas vezes apresentado como exemplo do despotismo
comunista contra o povo, foi indispensável para a sobrevivência do poder soviético. Ao
mesmo tempo que adoptavam esta medida, os bolcheviques, e nomeadamente Lenine,
perceberam que o sistema económico tinha de ser mudado, que as condições do
comunismo de guerra não eram sustentáveis indefinidamente. Essas condições eram
essencialmente a expectativa da revolução europeia e a grande utopia (aliás com
realizações) de igualitarismo social. A constatação a que Lenine vai chegar, e que
depois é ponto de partida para uma reelaboração política mais ampla, é a de que é
preciso, em primeiro lugar, aliviar a situação da agricultura, satisfazer a maioria da
população camponesa permitindo-lhe respirar, permitindo-lhe fazer aquilo que
pretendia, que era produzir para vender, ou seja, realizar lucro. O fim do sistema das
requisições e a sua substituição por um imposto em espécie, e posteriormente em moeda
(o que significou restaurar as relações monetárias), foi o primeiro passo da chamada
Nova Política Económica (NEP) , traduzida na possibilidade, por parte dos camponeses,
de comprar e vender no mercado. Ulteriormente, foi mesmo introduzida a possibilidade
de utilização de força de trabalho assalariada, continuando impedida a reconstituição da
grande propriedade. Isto permitiu reanimar o fornecimento de géneros à população e de
matérias-primas à indústria. A grande indústria mantém-se nas mãos do Estado, a
empresa artesanal privada é também restabelecida e reanimada, mantendo o Estado o
controlo supremo da economia, nomeadamente no que diz respeito ao comércio externo.
A NEP foi aprovada no X Congresso do Partido, em 1921, como um recuo necessário
nas ambições de socialização e no espírito igualitário, mas aceite. Ao mesmo tempo que
141

se estabelecia esta liberalização económica, reforçou-se a disciplina do partido com o


fim da possibilidade de fracções. Isto é também muitas vezes apontado como um novo
passo na formação de um regime autoritário ou totalitário, já que antes havia correntes
diversas dentro do Partido Bolchevique. Agora impedia-se a existência de correntes
organizadas porque, numa situação em que aumentava o pluralismo social e a
diversidade de interesses, era preciso assegurar a sobrevivência do poder socialista e
isso fazia-se por uma maior concentração, uma maior disciplina do poder. Era esta a
base da NEP, que Lenine caracterizou também como “Capitalismo de Estado”, no
sentido de um capitalismo que é controlado, moderado, compensado pela intervenção
do Estado socialista. Era visto como um recuo temporário, porque não correspondia a
abdicar da perspectiva histórica de que o futuro seria socialista. Simplesmente
reconhecia-se, tal como os bolcheviques tinham pensado em 1917, que o socialismo só
seria possível na base de uma indústria desenvolvida e da cooperação de vários países.
De certa maneira, a NEP era retomar as ideias da revolução democrática e do controlo
operário, que constavam das Teses de Abril de 1917. A situação de guerra civil é que
obrigara a avançar para uma muito maior estatização da economia.
A ideia que Lenine desenvolve, nos últimos tempos de vida, é a de que, a longo prazo, a
Rússia tem de ganhar os outros povos do mundo que ainda estão sujeitos ao domínio
imperialista, as colónias e semi-colónias, nomeadamente da Ásia (Índia, China, etc.)
onde existem já movimentos independentistas. O socialismo seria “a electrificação,
mais os sovietes”, isto é, os objectivos centrais seriam modernizar o país através da
electrificação, consolidar o poder dos sovietes, e incentivar os camponeses a formas de
cooperação que caminhariam num sentido socialista, sem que isso significasse
estatização. A viabilidade deste esquema implicava que a Rússia consolidasse a sua
posição internacional, a sua economia e a sua própria inserção no circuito económico
internacional, através de relações com todos os países. A ideia da revolução mundial
tende a esfumar-se, a última tentativa é a fracassada revolução alemã de 1923. Lenine
desenha uma perspectiva de uma evolução a longo prazo, que tende a acentuar a relação
da Rússia, como país camponês, com os movimentos anti-imperialistas no mundo. Tudo
isto fica num estado um pouco embrionário, até do ponto de vista da elaboração teórica,
porque Lenine sofre, em 1922, o primeiro acidente vascular cerebral, em 1923 outros,
acabando por morrer em Janeiro de 1924.
142

No PCbR tinha sido nomeado secretário-geral um homem que não era um dos dirigentes
de primeiro plano, embora fosse um dirigente importante, Josif Stalin. Esta função de
secretário-geral, de início essencialmente administrativa, vai tornar-se de grande
importância num contexto de reorganização, porque muitos dos quadros do partido
tinham morrido durante a guerra civil. Com a morte de Lenine, a questão da sucessão,
que já se vinha pondo, vai dominar o partido. Nos últimos tempos de vida, Lenine ditou
um documento (em dois momentos diferentes), a que depois se chamou o
“Testamento”, onde constavam reflexões sobre como assegurar a coesão do partido a
nível dirigente. No primeiro texto, observando em primeiro lugar que “o nosso partido
apoia-se sobre duas classes, portanto a sua desagregação seria possível e a sua queda
inevitável se fosse impossível o acordo entre estas duas classes”, fazia depois uma
apreciação das qualidades e defeitos de vários dirigentes, entre eles, Trotsky, Stalin,
Bukarin, Kamenev e Zinoviev. Acerca de Stalin, reconhecendo-lhe grandes
capacidades, referia que acumulou “um poder ilimitado” e que não é seguro que esteja
em condições de o administrar com razoabilidade O segundo texto era muito conciso e
directo. Começava pela frase “Stalin é demasiado brutal” e dizia que era indispensável
afastá-lo das funções de Secretário-geral. Tem muitas qualidades, afirma, mas é preciso
substituí-lo por alguém que seja “mais tolerante, mais leal, mais civilizado, e mais
atento para com os camaradas, de humor menos caprichoso, etc.”40 Esta carta foi
conhecida pelo Comité Central, mas foi mantida em segredo. Ainda antes da morte de
Lenine, estabeleceu-se um primeiro conflito teórico e político entre os principais
dirigentes, que deixou Trotsky isolado perante uma “troika” dirigente formada por
Stalin, Zinoviev e Kamenev. Com a morte de Lenine, a questão que se abre não é só a
de saber se haverá um dirigente com uma função liderante comparável à que ele tinha, é
também a questão de saber se a NEP é um expediente temporário, ou se é uma política
de longo prazo. Bukarin virá defender a ideia, com o apoio temporário de Stalin, de que
a NEP se deve prolongar durante muitos anos, que é uma condição da aliança operária-
camponesa e que, numa conjuntura em que não ocorrem revoluções socialistas noutros
países, será necessário mantê-la. Os apoiantes de Trotsky e, a partir de certa altura,
também Zinoviev e Kamenev, contradizem esta ideia, e defendem que manter a NEP

40
“Lettre au Congrès”, in V. Lénine, Oeuvres choisies en trois volumes,vol. 3, Éditions du
Progrès, Moscovo 1968, pp. 749-751.
143

indefinidamente é trair os objectivos socialistas da revolução. Sustentam que é preciso


modernizar e colectivizar a economia e que isso só pode ser feito à custa do
campesinato, sujeitando os camponeses a uma exploração que permita reunir recursos
para fortalecer a indústria, porque só na base da indústria é que se pode criar um país
socialista. Este país socialista não pode existir isoladamente e, também por isso, a
URSS não pode pensar que vai sobreviver num universo capitalista, deve procurar
influenciar e fomentar revoluções noutros países. Neste sentido, Trotsky é mais fiel,
literalmente, às ideias iniciais da Revolução de Outubro, porque continua convencido
que é possível provocar novas revoluções em países da Europa industrializada.
144

Lição 16: Socialismo num só país e estalinismo. 41


A divisão no Partido e a crise da NEP. A derrota das oposições de esquerda e de direita.
Colectivização e industrialização aceleradas. Os Planos Quinquenais. A revolução
social e cultural. Concentração do poder e repressão. O Grande Terror.

Como vimos, poucos anos antes da morte de Lenine, a URSS tinha adoptado a NEP
(Nova Politica Económica), que correspondeu a uma solução de compromisso entre
uma direcção estatal da economia – mantendo o Estado o objectivo socialista - e a
permanência de um sector privado indispensável para o renascimento da agricultura e
da economia em geral. A política da NEP foi bem sucedida e traduziu-se numa retoma
do equilíbrio, passados os anos terríveis, do ponto de vista material, que tinham sido os
da guerra mundial e da guerra civil. No entanto, essa política punha problemas para uma
revolução que tinha sido feita em nome do socialismo e dirigida por um partido que, em
fins de 1918, adoptara o nome de Partido Comunista. O objectivo do Comunismo,
pressupondo a socialização económica, estava presente e não era qualquer coisa que
pudesse ser arredada.
A situação complexa da sobrevivência da URSS e do seu futuro como regime socialista,
sobretudo depois de 1923, quando fracassou a última tentativa na Alemanha de tomada
revolucionária do poder, torna-se ainda mais preocupante por causa da doença de
Lenine, o dirigente incontestável da revolução e do Partido. Em 1919 tinha havido um
atentado contra a sua vida, que não teve consequências imediatas graves mas se
repercutiu no seu estado de saúde. Em 1922 sofre um primeiro acidente vascular
cerebral de que se restabelece, mas em 1923 sofre por duas vezes novos AVCs, que o
deixam numa situação de inválido. Coloca-se portanto o problema de saber quem será o
dirigente ou o conjunto de dirigentes que orientarão a Rússia no futuro próximo. Em
função disso, já antes da morte de Lenine tinha começado uma certa polémica, que
ficou conhecida como “polémica literária”, porque aparentemente não tinha que ver
com questões políticas imediatas. Na dita polémica literária tinham-se claramente

41
Aula do dia 10 de Dezembro de 2004. Transcrição da lição pela aluna Rosa Idalina Santo, revista
e corrigida pelo docente.
145

separado dois grupos: um, composto por Stalin, Zinoviev e Kamenev, o outro
representado essencialmente por Trotsky. Os primeiros eram quem já de facto
controlava o poder: Stalin como secretário-geral do partido, Zinoviev como
responsável pela organização de Leninegrado (o novo nome de São Petersburgo),
Kamenev como responsável pela organização de Moscovo. Os três marginalizaram
Trotsky, até então a segunda figura da Revolução russa, que é colocado numa situação
de oposição. Porquê? Essencialmente pelo facto de Trotsky ser na altura o comissário
do povo para a Guerra, ou seja o ministro da Defesa. O facto de Trotsky ter um percurso
de vida em que durante muito tempo esteve separado dos bolcheviques (partido a que só
aderiu em Julho de 1917) afastava-o dos outros líderes e criava receios de que pudesse
protagonizar qualquer forma de bonapartismo, quer dizer, que a partir da sua posição de
chefia do Exército pudesse instaurar uma ditadura militar.
Lenine morre em Janeiro de 1924. Na troika dirigente, composta por Stalin, Zinoviev e
Kamenev, o primeiro dispõe da vantagem do controle do aparelho, a partir da posição
de secretário-geral. Nos meses seguintes, vai-se aprofundar ao nível dos órgãos
dirigentes do Partido um debate sobre o futuro da NEP. Esse debate é inicialmente
dominado pelas teses da esquerda, que considera que a NEP está a agravar as
diferenciações sociais no país, a reconstituir uma burguesia, e que não foi para isso que
a revolução foi feita. A revolução não pode renegar os seus objectivos socialistas. E
para não renegar os objectivos socialistas também não pode renunciar ao projecto de
revolução mundial. A expressão Revolução mundial tinha sido absolutamente central
nos programas bolcheviques no período da revolução de Outubro e da formação da
Internacional Comunista. Na realidade não se tinha verificado revolução mundial
nenhuma, ou antes, as revoluções socialistas que efectivamente se iniciaram na Europa
ocidental foram derrotadas. Mas uma parte dos dirigentes bolcheviques sustenta que não
é possível renunciar a essa ideia: é certo que a URSS deve manter relações diplomáticas
com outros países, pois teria que sobreviver temporariamente num mundo hostil, mas ao
mesmo tempo é preciso apontar para o estímulo aos movimentos revolucionários dos
outros países, porque só na medida em que se tornar mundial é que o socialismo pode a
longo prazo realizar-se. Esta é a concepção da esquerda, da qual Trotsky, cada vez mais,
aparece como o líder.
146

Em oposição a isto, Stalin, partindo de um conjunto de conferências que faz ainda em


1924, logo a seguir publicadas sob o título Princípios do Leninismo, desenvolve uma
ideia que era de certa maneira original mas que ele apresenta como situando-se na
continuidade do pensamento de Lenine. Lenine tinha defendido a ideia de que, nas
condições abertas pela guerra mundial, uma revolução podia a qualquer momento
eclodir, não no país mais desenvolvido, mas num país atrasado que atravessasse uma
crise social e política. Stalin pega nesta ideia para sustentar que o próprio Lenine
admitia o triunfo e a consolidação do socialismo num só país. Esta ideia, que depois vai
ser divulgada de mil e uma maneiras e resumida no slogan socialismo num só país,
constitui a tese política principal de Stalin e de Bukarin, uma das cabeças teóricas do
partido, e que é quem lhe vai dar uma sistematização mais aprofundada. Bukarin
defende e desenvolve as teses que o próprio Lenine tinha elaborado nos últimos anos de
vida acerca da NEP, dentro da ideia de que importava consolidar a aliança entre os
operários e os camponeses, só possível na medida em que o campesinato aderisse ao
regime. Neste sentido, o Estado podia e devia favorecer iniciativas do tipo cooperativo,
mas abstendo-se de forçar qualquer espécie de socialização que pusesse em causa os
interesses dos camponeses. Portanto, se a mentalidade dos camponeses, os seus hábitos
e interesses os impeliam para manter formas de economia privada, isto é, de um certo
capitalismo, na tese de Bukarin esse capitalismo deveria mantido durante um período
histórico mais ou menos longo. Um capitalismo controlado pelo Estado socialista, o
qual domina os centros económicos vitais: a banca, o comércio externo, as indústrias de
maior importância ou ligadas à Defesa nacional, mas que, fora isso, admite formas de
economia privada. Na opinião de Bukarin (e de Lenine) essa era a via de expansão do
exemplo da Revolução russa pois, se a maioria da população do mundo era camponesa,
o exemplo do sucesso russo não poderia deixar de ter enormes repercussões em todo o
mundo, nomeadamente nos países em luta contra o imperialismo e o colonialismo,
países que caminham para a sua libertação política e que contariam com a União
Soviética como aliada, podendo ver nela o modelo de soluções futuras. Foi dentro deste
esquema que a URSS cooperou muito com o movimento nacionalista do Guomindang
na China, levando o próprio Partido Comunista Chinês a integrar-se nesse partido
nacionalista, para a revolução nacional democrático-burguesa da China. Nos anos vinte
147

a URSS não procurou promover nenhuma revolução socialista na China, mas sim a
revolução democrático-burguesa.
Foi essencialmente esta concepção que, no imediato, prevaleceu, e orientou a política
económica da URSS no período a seguir à morte de Lenine. Mas Bukarin era
essencialmente um teórico, ao passo que o dirigente que efectivamente ocupava um
lugar de maior peso político no funcionamento do aparelho do partido, e portanto no
controlo do Estado, não é Bukarin mas sim Stalin, já desde 1922 secretário-geral do
PCbR. Homem do qual já foi mencionado o mau carácter, a propósito do testamento de
Lenine, que recomendava o seu afastamento, caracterizando-o como um indivíduo
demasiado rude e temperamental, o que o tornava perigoso pelas funções que exercia.
De resto, entre Lenine e Stalin chegou a haver um conflito, em 1922, quando se tratou
da formação da URSS como Estado federal, por causa da concepção demasiado
centralista e russificadora que, na opinião de Lenine, era a de Stalin. No período da
doença de Lenine, estiveram mesmo à beira do corte de relações pessoais, nesse caso
por motivo da rudeza de atitude de Stalin para com a mulher de Lenine, Nadezda
Krupskaia.
148

Os dirigentes do Politburo do Partido bolchevique em 1917.

Stalin era um georgiano de origem extremamente pobre, o pai era sapateiro. Formou-se
no seminário, de resto um aspecto da sua formação que tem uma influência não pequena
no seu modo de pensar e argumentar, como podemos ver nos textos de sua autoria. O
pseudónimo que adoptou, Stalin (de stal, que significa aço), também diz alguma coisa
sobre a sua personalidade.
A partir da posição de secretário-geral, Stalin conseguiu o domínio do aparelho e
consequentemente da composição dos congressos partidários, onde as orientações
fundamentais eram adoptadas. E é assim que, progressivamente, anteriores dirigentes
149

são marginalizados das posições que ocupavam. Trotsky, comissário da Guerra, é


afastado desse posto em 1925, e depois expulso do partido em 1927. Zinoviev,
presidente do Comintern, é afastado do cargo em 1926.
De qualquer maneira, quando se realiza o XV Congresso do Partido, em Dezembro de
1927 (justamente na altura em que Trotsky é enviado para uma espécie de exílio
interno, em Alma Ata, no Cazaquistão), a situação parecia relativamente estabilizada e a
NEP continuava a produzir resultados positivos. 1927 é o ano em que se atingem os
níveis económicos de 1913, antes de começar a grande catástrofe da Guerra mundial.
Tinha-se recuperado uma espécie de normalidade. Mas, ao mesmo tempo, desenhava-se
claramente um problema económico grave, que ficou conhecido como a “crise das
tesouras”. As tesouras simbolizam o afastamento dos preços dos produtos agrícolas e
dos produtos industriais. Por virtude da reanimação da economia agrária conseguida no
período da NEP, os preços agrícolas baixaram, aliás, num contexto internacional em que
os preços das matérias-primas em geral desde o princípio da década de 20 se
encontravam em queda, o que é favorável para a população urbana, para a indústria e
para o Estado, que comprava os produtos primários aos camponeses. O problema é que
a reanimação da indústria não era suficiente para fornecer produtos industriais à
agricultura a preços convenientes. Portanto, os camponeses mais prósperos, aqueles que
prosperaram mais à sombra da NEP (em 1925 fora introduzida a possibilidade de uso da
força de trabalho assalariada na agricultura, embora com algumas restrições)
confrontavam-se com o problema de não haver uma indústria que os abastecesse e os
estimulasse a produzir mais e a continuar a oferecer os seus produtos a preços baixos.
Por outro lado, esse sector mais próspero do campesinato permanece apegado a uma
mentalidade individualista, está preocupado em fazer lucro, como qualquer capitalista.
E não vive isolado: durante a NEP, consolidaram-se, ao nível do aparelho
administrativo do Estado, do aparelho de direcção económica e gestão industrial, do
aparelho de ensino, os chamados especialistas (spez, na expressão russa). Assim como,
durante a guerra civil, tinha havido a preocupação de recuperar oficiais czaristas para os
colocar ao serviço do Exército Vermelho, em função das suas capacidades técnicas, a
mesma coisa se fez durante a NEP em relação aos especialistas. Naturalmente todos eles
de origem burguesa, porque eram as competências que havia. Claro que existiram
sectores da intelectualidade identificados com o comunismo, grandes nomes de
150

escritores e de artistas que se integraram entusiasticamente no ambiente da revolução


soviética. Mas, na sua massa, os intelectuais e técnicos não eram socialistas, ou então
não simpatizavam com as ideias comunistas; por exemplo, entre os economistas, a
tradição do populismo mantinha uma certa influência. Em geral, identificavam-se mais
com uma ideia de crescimento económico orientado para o lucro e inserido na economia
mundial. O estabelecimento das relações económicas e diplomáticas da URSS com os
países capitalistas, que se verifica generalizadamente a partir de 1924, dá uma certa
perspectiva de credibilidade às ideias que propõem: por exemplo, a ideia de que é
vantajosa a inserção plena da URSS na economia mundial, pela liberalização do
comércio externo. Existem portanto pressões neste sentido.
Não é difícil adivinhar que tais posições entram em choque com a base do partido
bolchevique, com os quadros formados nos anos da revolução e da guerra civil, ou
mesmo depois. Logo após a morte de Lenine tinha-se realizado uma grande operação de
recrutamento e promoção de novos quadros, essencialmente de origem operária. Para
estes militantes, profundamente identificados com a ideia socialista, as desigualdades
sociais crescentes geradas pela NEP são inaceitáveis. É igualmente inaceitável que os
sectores ricos do campesinato pretendessem condicionar o abastecimento às cidades,
pressionando o Estado, reduzindo os fornecimentos, pondo as suas condições, forçando
elevações de preços, que dificultam a consolidação da indústria. No fundo, este
problema que os quadros bolcheviques põem é o mesmo que os partidários de Trotsky e
Zinoviev, boa parte deles pertencente à velha guarda bolchevique, três ou quatro anos
antes começara a pôr. Para consolidar a indústria, única base possível de um país
moderno, era necessário submeter o campesinato. Em 1923/24 Stalin rejeitara essa ideia
porque lhe parecia aventureirista, incompatível com a situação real, interna e externa, da
sociedade soviética. Nos anos passados entretanto, a NEP continuou a expandir-se, mas,
em consequência, essa pressão exercida pelos sectores mais prósperos do campesinato
fazia-se sentir mais agudamente.
Acresce que as condições internacionais, nos finais do anos vinte, evoluíam no sentido
de agravamento de tendências nacionalistas e do despertar do receio de uma nova
guerra. Na China, que a URSS considerava um aliado e com a qual durante vários anos,
até a morte de Sun Yat Sen em 1925, cooperara estreitamente, a situação muda e, com a
ascensão de Tchang Kai Tchek, vão-se acentuar as posições anticomunistas. Em 1927
151

dá-se o massacre dos comunistas chineses pelas tropas do Guomindang, chefiado por
Tchang Kai Tchek.
No que respeita às relações com as principais potências europeias, também houve
problemas sérios, sobretudo nas relações com a Inglaterra, problemas que se iniciaram
com a greve geral inglesa em 1926 e o apoio que lhe foi prestado pelos sindicatos
soviéticos. Em 1927 dá-se o assalto, em Londres, da polícia inglesa à sede da sociedade
comercial anglo-russa (ARCOS), tendo sido descobertos documentos que
demonstravam espionagem soviética. Com este pretexto, o governo britânico decide o
corte de relações diplomáticas com a URSS
Na Polónia, o embaixador soviético é assassinado.
Este conjunto de elementos faz agravar, no seio da direcção do partido e do Estado
soviético, o sentimento de isolamento e os receios de se vir a recair numa situação
semelhante à verificada durante a guerra civil, quando tropas de catorze países
estrangeiros tinham estado envolvidas na luta contra a revolução.
Além disso, os prognósticos da economia mundial, a partir de 1928, apontam para a
possibilidade de eclosão de uma nova grande crise económica e, portanto, do reacender
de tensões sociais que, por um lado, podiam agravar as tendências de guerra e, por outro
lado, agudizavam a luta de classes nos países capitalistas.
Em função de tudo isto, Stalin, que a partir de certa altura marcara uma posição de certa
distanciação em relação à tese bukariniana da conciliação entre o poder socialista e os
interesses dos camponeses, separa-se claramente deste tipo de perspectiva e defende,
após o XV Congresso do PCbR (Dezembro de 1927), que é necessário tomar certas
medidas de coerção sobre o campesinato proprietário para o obrigar à entrega dos
produtos, sob pena de se gerarem situações complicadas de carência de abastecimento
nas cidades. Na prática, é o regresso às requisições praticadas no comunismo de guerra
e abandonadas durante a NEP. Stalin sustenta que a URSS só se pode consolidar como
Estado na medida em que se torne uma potência industrial, um país moderno e em
condições de resistir a qualquer ataque. Esta ideia da independência política nacional e
da criação de uma forte infra-estrutura industrial, como condição da capacidade militar,
vai ser absolutamente determinante das opções de política económica e de política geral
assumidas a partir daqui. Este é um problema que a tese do “desenvolvimento socialista
a passo de tartaruga” preconizado por Bukarin (segundo a sua própria expressão) não
152

resolvia, ou melhor, só resolvia se se mantivesse um longo período de paz e a URSS


não fosse hostilizada por outros países.
A tese de Stalin, reflectindo o estado de espírito de uma parte importante da base do
partido, era a de que o rebentamento da crise económica mundial – prevista no VI
Congresso da Internacional Comunista em 1928, e que de facto se irá verificar com o
crash da bolsa de Nova Iorque em Outubro de 1929 - causaria o agravamento das
relações dos países capitalistas com a URSS, o renascer de tendências belicistas, e que a
União Soviética só podia sobreviver equipando-se militarmente em vista desse perigo.
Stalin defende o desenvolvimento industrial tendo por base uma economia planificada.
Não poderia ser uma economia de mercado, mas uma economia que no seu
desenvolvimento obedecesse a critérios e objectivos estabelecidos duma maneira
centralizada. É esta a ideia que está na base do Plano Quinquenal (a piatletka). A ideia
inicial do plano quinquenal era a de colectivização apenas das terras dos camponeses
ricos, os kulaks. Neste ponto é importante referir que a estrutura agrária russa se
compunha de kulak, os grandes proprietários, sredniak, os camponeses médios, e
bedniak, os camponeses pobres.
Assim, o que estava em causa, numa primeira fase, não era uma colectivização das
explorações agrícolas no seu conjunto mas apenas das maiores, correspondendo a cerca
de 14% das herdades existentes, concretamente as que empregavam força de trabalho
assalariada. O problema é que esta iniciativa vai deparar com uma fortíssima
resistência, não só dos kulaks, mas do mundo rural no seu conjunto. Quer dizer, as
comunidades rurais, independentemente da diferenciação de classes que existia, reagem
negativamente à colectivização e, apesar da tentativa de organizar os camponeses
pobres em comités próprios contra os kulaks, essencialmente a colectivização vai ser
conduzida por destacamentos político-militares, e nomeadamente da polícia política
armada. É certo que há também nesta colectivização uma participação popular intensa,
mas urbana, de quadros jovens do partido, motivados por um idealismo comunista e
simultaneamente de modernização da Rússia, e inspirados pelas ideias da Revolução de
Outubro, pelo mito da própria revolução, assim como pela experiência do comunismo
de guerra, talvez o aspecto que acabou por ter maior influência a longo prazo.
Para se perceber a estrutura do Estado soviético e a mentalidade dos líderes soviéticos,
não podemos nunca esquecer a importância da experiência do comunismo de guerra na
153

formação destes quadros, porque ele fundiu o tipo de organização política próprio do
bolchevismo com a experiência militar e com o modelo hierárquico de comando militar.
A URSS, mesmo depois de terminada a guerra civil, continua a viver numa espécie de
estado de emergência, ameaçada pela pressão externa, ameaçada pelos interesses do
campesinato que não era socialista, e a única maneira de compensar isso era a existência
de uma estrutura centralizada e de tipo militar que governava o partido e o Estado. Para
além de uma estrutura hierárquica de organização, esta é também a maneira de
perpetuar o espírito da vitória na guerra civil, de abnegação e sacrifício na luta pelo
socialismo e contra os brancos, o imperialismo, a restauração capitalista. A
colectivização situa-se nesta continuidade: trata-se da defesa da URSS, trata-se de
consolidar uma economia moderna em bases socialistas e, para tal, seria necessário
enfrentar uma oposição intensa com os meios necessários.
Nesta sequência, a colectivização vai muito para além do que fora planeado no seu
início, porque justamente as reacções com que se defronta são mais fortes que o
previsto. E portanto já não são só aqueles 14% de terras pertencentes aos kulaks a serem
afectados, mas também muitos camponeses médios, a maior parte da população
camponesa, que é obrigada a entrar nas explorações colectivas, os Kolkoz e Sovkoz.
Este desenvolvimento da colectivização correspondeu não apenas a uma decisão
política e administrativa do aparelho político centralizado que existia, mas foi
simultaneamente um grande movimento de massa. Provocou também um grande choque
social entre grupos sociais distintos: de um lado o partido e o Estado com os
correspondentes meios repressivos, bem como com o apoio da classe operária urbana e
dos destacamentos especiais de jovens das novas gerações integrados no partido, do
outro os kulaks. Aqueles eram animados por um ideal de colectivismo comunista e de
modernização da Rússia, que fez parte, de resto, de um movimento mais amplo, também
com características culturais, que em muitos aspectos retomava os temas e o espírito da
revolução de Outubro e dos movimentos mais revolucionários dos anos 20, por exemplo
no plano literário, das transformações da cultura, ou da luta anti-religiosa.
No aspecto da cultura, o resultado disto vai ser a consolidação de uma espécie de
ortodoxia artística, o realismo socialista, adoptado pelo I Congresso dos Escritores
Soviéticos em 1934. Teve na sua origem movimentos de ideias revolucionárias que
defendiam, desde os anos 20, que o objectivo da literatura e da arte não era o simples
154

deleite estético, mas sim o serviço ao povo, pôr os instrumentos de comunicação


artística ao serviço da revolução social.
Um outro plano é o da luta anti-religiosa. Que se traduziu em violências, destruições de
monumentos religiosos, como por exemplo a destruição da igreja do Cristo Salvador em
Moscovo em princípios dos anos trinta, que recentemente, já no tempo do Ieltsin, foi
reconstruída. O local tinha sido projectado para a construção de um grande edifício,
sede de um complexo estatal, mas depois verificou-se que os terrenos não suportavam
uma construção tão volumosa, pelo que, em lugar desse edifício, foi construída uma
grande piscina.
Em suma, o processo de colectivização envolveu coacção e violências, mas parte de um
movimento social que abarcou todos os aspectos da vida da sociedade russa e do
conjunto da União Soviética.
O aspecto central dessa revolução foi a realização do Plano Quinquenal, com os seus
objectivos de industrialização acelerada, que foi levada a cabo num espírito de
extraordinária mobilização e voluntarismo, pela construção de uma sociedade nova e
diferente. Encontra-se aqui presente, como referimos, o espírito de comunismo de
guerra, expresso na frase “não há fortalezas que um comunista não possa conquistar”.
Se tinham sido conquistadas fortalezas durante a guerra civil, agora as novas fortalezas
seriam as grandes fábricas. Este plano de industrialização, baseado na indústria pesada e
sacrificando a produção de bens de consumo em relação à produção de meios de
produção (equipamentos, máquinas), traduziu-se em resultados realmente
extraordinários. Basta dizer que, entre 1928 e 1937, a produção industrial pesada
aumentou cinco a seis vezes. Como escreveu o principal biógrafo de Bukarin e grande
conhecedor da história soviética, o americano Stephen Cohen, este voluntarismo “foi
uma mistura de coerções brutais e de heroísmo memorável, de loucura desastrosa e de
resultados espectaculares”. O voluntarismo exprimiu-se também na rapidez de
execução, ao ponto de o Plano Quinquenal ser realizados em quatro anos: os objectivos
fixados no plano de 1929, que deveriam estar cumpridos cinco anos depois (1934),
foram antecipados para 1933.
Este conjunto de transformações, traduzido na construção num rápido prazo das grandes
barragens e centrais hidroeléctricas, de grandes complexos petrolíferos, no surgimento
de novas cidades industriais – a população urbana mais do que duplica entre 1928 e
155

1939, passando de 16% para 33% -, esteve ligado também a uma estrita disciplina de
trabalho e à criação de um novo modelo de trabalhador que teve como símbolo e mito o
mineiro Stakanov, que num só dia conseguiu ultrapassar em 14 vezes a norma de
produção estabelecida, retirando mais de uma tonelada de carvão da mina. Esta proeza,
tomada como exemplo, foi o ponto de partida da ideologia e do movimento dos
stakanovistas, trabalhadores de vanguarda que se destacavam justamente pela sua
dedicação e capacidade excepcionais.
A criação deste tipo de modelos explorou o estado de espírito revolucionário, mas foi
também sustentada num modelo de organização do trabalho associado a valorizações
materiais muito concretas. Foi reintroduzido o salário à peça, o que teve como
consequência o agravamento claro das desigualdades no seio da classe operária. Deste
modo, a industrialização acelerada esteve ligada a grandes oportunidades de promoção
social, mas ao mesmo tempo consolidou um novo tipo de diferenciação social. Por um
lado, no seio do próprio operariado, através da diferenciação de rendimentos
correspondente às diferenças de produtividade. Por outro lado, por outros dois
mecanismos essenciais: um, que é a promoção de elementos da classe operária para o
aparelho do Estado e do partido, ou seja, a transformação daqueles que se distinguiam
na prática produtiva para lugares de responsabilidade política; outro, a possibilidade de
ascensão social aberta pela revolução no ensino. Não só se realiza radicalmente a
supressão do analfabetismo, como se criam novas universidades e se promove um novo
acesso em massa às universidades, e com isso a criação de uma nova intelectualidade
vinda na sua maioria da classe operária, designadamente nos ramos técnicos. Em 1913
havia 8 milhões de estudantes, em 1940 eram 35,5 milhões. O crescimento maior é nos
cursos de engenharia, com a formação de uma classe relativamente ampla de
engenheiros que tinham uma instrução média, acrescentada de uma instrução
universitária dirigida para os objectivos da produção, e portanto, com um perfil que se
distingue daquilo que eram os engenheiros na Europa ocidental dessa época. Tratou-se
de uma verdadeira revolução social que alguns autores consideram mais importante que
a própria Revolução de Outubro, com efeitos sociais mais amplos, mas que se traduziu
numa tremenda violência sobre uma grande parte da população camponesa, e que
conformou, a partir daqui, um determinado modelo de aparelho político-administrativo
altamente centralizado e coercivo, em que o partido se identificava com o Estado.
156

Como referi, a colectivização iniciou-se com objectivos limitados, que punham em


causa apenas os kulaks, mas acabou, pela força da dinâmica e das resistências com que
se defrontou, por ser mais ampla, ao ponto de o próprio Stalin, em 1930, fazer um
discurso contra a “vertigem do sucesso”, no qual apontava para a necessidade de evitar
exageros na colectivização. Já nesta altura Stalin tinha uma posição de autoridade
extremamente forte. Este discurso teve realmente o efeito de parar e reduzir durante
algum tempo o movimento da colectivização. Mas ele foi retomado pouco depois
porque, na base dessa contenção, os camponeses recusavam a entrega das colheitas. Em
1931/32 regista-se então uma fome terrível, sobretudo na Ucrânia, que fez milhões de
vítimas. Na história russa desde o tempo czarista houve fomes extremamente mortíferas,
a fome de 1921, após a guerra civil, foi também terrível, mas esta de 1931/32 esteve
associada a condições políticas: por um lado, a carestia dos produtos que resultou da
resistência dos camponeses a fazerem as colheitas, por outro lado as situações que
poderiam ser socorridas pelo Estado não o foram porque, dentro do espírito de luta que
havia entre a cidade e o campo, entre os revolucionários e os camponeses, estes foram
abandonados a si próprios.
Um outro aspecto da repressão que vai marcar duradouramente o sistema administrativo
e repressivo soviético é o GULag (Direcção Estatal dos Campos de Trabalho), para
onde eram enviados em massa – principalmente para a Sibéria – aqueles que resistiam à
colectivização. Já no final da vida de Stalin, em 1953, havia 2 milhões e meio de
pessoas no GULag, é certo que em situações diferentes, umas de prisão estrita, outras
com mais liberdade de movimentos. É um sistema repressivo que havia de marcar
profundamente a sociedade soviética.
Passada a pausa de 1930, com a retoma da colectivização, praticamente toda a estrutura
agrária russa foi organizada em Kolkoz e Sovkoz, sendo os primeiros uma espécie de
cooperativas e os segundos herdades do Estado. Mas mesmo essas cooperativas são
unidades colectivas que não podem negociar livremente, pois aquilo que recebem e
aquilo que vendem tem de se integrar no Plano Quinquenal. Esta estrutura de Kolkozes e
Sovkozes subsistiu até ao fim da União Soviética. O Kolkoz tem autonomia de gestão,
mas as suas produções e remunerações são fixadas pelo plano. A diferença é que no
Kolkoz cada família tem um lote de terreno de exploração privada, ao passo que o
157

Sovkoz é simplesmente uma herdade agrícola estatal, em que os trabalhadores são


assalariados. A maioria das herdades eram do tipo Kolkoz.
A par desta transformação, e no quadro de reforço da repressão, é importante referir os
processos judiciais que têm lugar desde o princípio dos anos trinta. Em 1931 é o
chamado processo do Partido Industrial (processo de Shakty), em que são condenados
à morte, por espionagem e sabotagem, não só responsáveis soviéticos, mas também
técnicos estrangeiros que colaboravam nas minas e explorações mineiras dessa região
de Shakty, perto de Estalinegrado. As condenações acabaram, neste caso, por ser
comutadas em penas de prisão.
Uma escala muito maior e mais grave é a que vai assumir a repressão de massa na
segunda metade dos anos trinta. Essa repressão teve como episódios mais
espectaculares e mais conhecidos os três famosos Processos de Moscovo de 1936 e
1938, mas atingiu muito mais pessoas do que aquelas que foram julgadas publicamente.
A realização do primeiro plano quinquenal mostrou uma transformação rápida de um
país agrário e atrasadíssimo numa grande potência industrial – desse ponto de vista foi
um êxito, que impressionou a opinião pública mundial. Mas teve custos humanos, e em
parte também económicos, que são imensuráveis.
Estes anos de instauração daquilo a que se costuma chamar o estalinismo, isto é, um
regime altamente centralizado, repressivo e voltado para um esforço modernizador e
industrializador, foram os de maior prestígio da URSS no Ocidente. Houve muitos
intelectuais convidados a visitar a URSS e que escreveram sobre os grandes progressos
que constatavam. Foram anos em que esta transformação contrastava com a profunda
crise económica e social que se vivia em todos os grandes países capitalistas em
consequência da crise mundial de 1929, durante a qual o desemprego na Alemanha
chegou a atingir perto de um terço da força de trabalho. Praticamente todos os países
capitalistas foram brutalmente atingidos pela crise e pelo desemprego, ao passo que a
URSS crescia, não havendo desemprego, pelo contrário, ela procurava atrair a
imigração de outros países.
O conjunto destas transformações permitiu que em 1934 se realizasse o XVII Congresso
do PCbR, que ficou conhecido como “Congresso dos Vencedores” e foi celebrado num
ambiente de triunfo, já que os grandes objectivos de transformação social,
modernização e industrialização da Rússia tinham sido alcançados. Nesse ano realizam-
158

se outros congressos, nomeadamente o I Congresso dos Escritores Soviéticos que, como


já referido, consagrou o realismo socialista. Simultaneamente, este congresso mostrou
uma recuperação de alguns escritores da antiga intelectualidade que não tinham
emigrado, ou que depois de terem vivido na emigração tinham regressado à URSS e
aderido ao regime socialista, dos quais a figura emblemática foi Máximo Gorki. Este já
era um grande escritor no tempo do czar, tendo vivido a maior parte do tempo na
emigração. Foi depois um crítico do bolchevismo, a seguir à revolução de Outubro, mas
manteve relações de amizade pessoal com Lenine. Emigrou de novo em 1921 e viveu
quase toda a década de vinte em Itália, donde regressou em 1932.
No XVII Congresso do Partido domina o espírito de celebração, por se ter ultrapassado
o conjunto de provações tremendas que tinham sido a revolução, a guerra civil com a
intervenção estrangeira, e depois o processo da colectivização, também extremamente
violento.
Tal como aconteceu no Congresso dos Escritores, participaram no XVII Congresso
elementos que tinham sido dirigentes das oposições trotskista e bukarinista. Bukarin
fora vencido em 1929. Quando se iniciou a colectivização, ele opôs-se claramente aos
objectivos, que julgava irrealistas e delirantes, fixados para o primeiro Plano
Quinquenal, por os considerar a negação da aliança operária-camponesa que
preconizava. Foi então transferido para funções de direcção na Academia das Ciências,
sem responsabilidades políticas. Ao contrário dos bukarinistas, muitos trotskistas
tinham-se convertido à colectivização e industrialização, porque estas iam ao encontro
da sua ideia de que a Rússia tinha de ser transformada em potência industrial moderna à
custa dos camponeses.
Há assim, por volta de 1934, um certo ambiente de pacificação, de estabilização, de
calma aparente, que depois se verifica que precedia a pior tempestade, a que se veio a
desenvolver após 1935.
Esta mudança tem aspectos que ainda hoje são difíceis de explicar, e tanto mais quanto,
por volta de 1934/35, a situação internacional da URSS tinha estabilizado: em
Setembro de 1934 é a entrada da União Soviética na SDN, um facto que marca uma
mudança enorme se pensarmos no isolamento do primeiro pós-guerra, em Maio de 1935
é a conclusão de pactos militares de assistência mútua com a Checoslováquia e com a
França, acontecimento impensável alguns anos antes. Ao mesmo tempo, a
159

Internacional Comunista lança as políticas da frente popular, visando unir os partidos


comunistas com outras forças democráticas, contra o perigo fascista.
A verdade é que havia simultaneamente uma situação internacional inquietante,
nomeadamente desde a entrada do Hitler para chefe do governo da Alemanha, em 30 de
Janeiro de 1933. Esse facto culminou um longo processo de evolução para a direita e
teve como consequência a orientação, ao princípio disfarçada, depois cada vez mais
clara, para uma política nacionalista e revanchista, em suma imperialista, da Alemanha.
Ao mesmo tempo consolidavam-se os fascismos, regimes simultaneamente
nacionalistas, belicistas e anti-socialistas, numa série de países europeus. O fascismo
italiano, após 1935, caminha para a aliança com Hitler. Os países da Europa de leste
tinham regimes mais ou menos fascistas, em Portugal existia um regime também de tipo
fascista estabilizado desde cerca de 1932-33, e em Espanha desencadeia-se, em Julho de
1936, um golpe contra o governo de frente popular.
A 1 de Dezembro de 1934 ocorre um atentado terrorista, o assassinato do líder da
organização do partido de Leninegrado, Kirov. Kirov era um estalinista, uma figura em
destaque no XVII Congresso do Partido, um apoiante activo do movimento da
colectivização. Era tão popular que, na eleição dos órgãos dirigentes no Congresso,
parece que terá tido mais votos que o próprio Stalin (este resultado foi abafado), e
houve quem estabelecesse relação entre tal episódio e o seu assassinato. O motivo real
do homicídio, segundo a maior parte da historiografia actual, era simplesmente uma
questão de saias, Kirov foi vítima do marido enganado.
O certo é que este acontecimento deu origem a um decreto do próprio Stalin que alargou
drasticamente a esfera de acção do NKVD (Comissariado do Povo para os Assuntos
Internos, a polícia política), com a possibilidade de decisão sem recurso de sentenças de
morte. Essas sentenças foram logo aplicadas ao assassino e a indivíduos que já estavam
presos anteriormente. O assassinato foi interpretado como resultado de uma conspiração
que envolvia uma série de políticos, figuras de destaque do partido, que tinham em anos
anteriores sido opositores: homens como Zinoviev e Kamenev, que foram presos e
inicialmente condenados a penas de 5 e 10 anos por responsabilidade em “criarem o
ambiente” no qual tinha sido possível o assassinato de Kirov.
Na sequência disto, organiza-se em 1936 o primeiro dos processos de Moscovo, em que
muitos dos membros da velha guarda bolchevique, que tinham estado associados a
160

posições trotskistas e da oposição de esquerda, como os mencionados Zinoviev e


Kamenev, julgados de novo, são condenados à morte.
Mais grave ainda é que, logo depois, sai um decreto que responsabiliza por actos de
espionagem e traição, não só aqueles que concretamente estejam comprometidos nesses
actos, mas também aqueles que, conhecendo-os, não os denunciem. Isto num país que
vive ainda o ambiente da luta desenvolvida em anos anteriores: a experiência da guerra
civil e da colectivização, a ideia de uma conspiração internacional contra a URSS, e
concretamente da ameaça de guerra representada pela Alemanha nazi. Risco portanto de
uma guerra que poderia fazer convergir todo o mundo capitalista contra a URSS, como
tinha acontecido durante a guerra civil.
Entretanto, a figura de Stalin era objecto de um culto que não era só artificialmente
provocado, mas tinha uma base social nas transformações realizadas, nas conquistas
obtidas por uma grande parte dos trabalhadores, na adesão dos que se tinham
promovido socialmente graças ao novo Estado, realizações a que por seu turno a
ideologia comunista dava confirmação e ampliação.
Neste contexto duma difícil situação internacional, em que é cultivada a ideia do cerco
imperialista à URSS, em que é mitificada a autoridade de Stalin e a necessidade de
manter a unidade do país sob a sua direcção, um decreto como o referido gera
facilmente uma situação em que qualquer anedota insignificante pode ser interpretada
como acção que põe em causa a unidade do Estado e o seu prestígio ou que visa
desmoralizar a população e virá-la contra o governo. A mania de espionagem e delação
que se vai propagar na sociedade russa conduz a uma acção repressiva generalizada do
NKVD, que ficou conhecida como Grande Terror. Entre 1936 e 1938 foram fuziladas
681 692 pessoas. Muitas mais passaram pelas prisões e campos do GULag, onde muitas
morreram.
161

Lição 17: De Weimar a Hitler (1) 42.

Vamos hoje falar do nazismo, um dos fenómenos centrais da história do século XX e o símbolo
maior do desmentido que o século XX trouxe aos prognósticos optimistas que, no final do século
XIX, muitos faziam acerca do século próximo. Fenómeno que, por um lado, tem raízes
profundas na história alemã e que, sobretudo no período da II Guerra mundial, foi muitas vezes
caricaturado como expressão de algo essencialmente negativo na cultura alemã e visto como o
fruto directo de uma anomalia da história alemã, quando na verdade foi também a versão mais
exacerbada do fenómeno internacional que foi o fascismo. Não há dúvida de que, na dimensão
das barbaridades que causou, quer pelas responsabilidades directas que teve na II Guerra
Mundial, da qual se pode dizer que foi o autor, quer pelo genocídio dos Judeus, foi um caso
extremo, e que alguns historiadores consideram um caso aparte, incomparável com tudo o resto.
Pode ser um caso aparte nos resultados, mas nem por isso deixou de ser, na sua raiz e nos seus
moldes de organização e em muitas das suas teses centrais, uma variante do fenómeno genérico
que foi o fascismo, mesmo que hoje se tenda, e também há razão para isso, a usar mais a
expressão fascismos, no plural, para indicar que são diferentes uns dos outros, o que me parece
justo. No entanto o substantivo é só um, usado no singular ou no plural.
Falar do nazismo implica também falar de uma realidade socio-política que é muitas vezes
celebrada, e com algumas razões para isso, como um dos momentos, senão mais felizes, em
qualquer caso mais progressistas e mais antecipadores, da história social, política e cultural do
período de entre-guerras, que foi a República de Weimar. Quando se fala de Weimar, evoca-se,
por um lado, um período de crises, mas também, em parte, de prosperidade económica, um
período de democracia política situado entre dois regimes não democráticos, o Império e o III
Reich. Mas sobretudo fala-se e escreve-se muito sobre Weimar porque esse período está ligado
ao dinamismo cultural dos anos vinte, a uma série de correntes novas na literatura, na filosofia e
até por exemplo na arquitectura, com a Bauhaus. Como a Alemanha geograficamente se situava,
por assim dizer, no centro do centro da Europa e, em resultado de todos os fenómenos de
emigração que tinha havido depois da I Guerra mundial e da Revolução russa – emigração da
Rússia e de países anteriormente integrados no Império austro-húngaro, emigração de

42
Aula do dia 14/12/2004. Transcrição pelo aluno Ricardo Monteiro, revista e corrigida pelo docente.
162

populações e, em particular, emigração de intelectuais – a Berlim do tempo da República de


Weimar foi um lugar de cruzamento de influências culturais que, sob certos aspectos, sucede ao
papel que Viena tinha desempenhado na cultura europeia anterior à Guerra. Mas a República de
Weimar foi também uma realização que antecipou o Estado-providência e, por outro lado,
concretizou como organização política um dos regimes mais democráticos da Europa da época.
Em confronto com uma Inglaterra onde os Lordes e a Câmara dos Lordes ainda tinham um certo
peso, em confronto com uma França onde a política era condicionada por fenómenos de
localismo e por um peso grande da população rural, do ponto de vista da organização política do
Estado, a Constituição de Weimar era muito democrática. A própria Constituição Portuguesa de
1976, nascida do 25 de Abril, e que é a actual, uma das influências indirectas que registou na sua
concepção foi a da Constituição de Weimar, por exemplo no tipo de sistema eleitoral, que
condiciona também o sistema partidário.
Numa versão tradicional, e muito difundida nos anos após a II Guerra Mundial, o nazismo
aparecia como qualquer coisa de inexplicável, ou, o que vem a dar no mesmo, explicada pelo
génio maligno de Adolph Hitler. Nesta versão, a relação entre o nazismo e a história da república
de Weimar, que o precede, era apenas de contraste e de ruptura. As coisas são um bocado mais
complicadas. O regime do “Terceiro Reich”, nascido a partir da nomeação de Hitler como chefe
do governo, é decerto um contraste e uma ruptura com Weimar, mas as condições em que se
formou não são alheias àquelas em que a república de Weimar se constituiu: às condições em
que se deu a revolução alemã e sobretudo àquilo em que a revolução alemã não se deu, i.e. teve a
sua realização interrompida.
Como escreve Paul Preston, a República de Weimar implantou-se sem dificuldades de maior
porque pareceu, para a direita, para a classe dominante e para o aparelho político em funções,
“um pequeno preço a pagar pela própria sobrevivência e pelo abafamento da revolução”43. A
revolução, como vimos, começara por ser uma revolução popular, de marinheiros e de soldados
mas também de operários, dando lugar à formação de conselhos de operários, mas essa revolução
foi canalizada pelos partidos, nomeadamente pelo SPD, o partido social-democrata maioritário,
para a formação da Assembleia Constituinte e a criação de um sistema de partidos, que permitiu

43
Paul Preston, "The Great Civil War:European Politics 1914-1945", in T.C.W.Blanning (ed.), The Oxford
Illustrated History of Modern Europe, Oxford University Press, Oxford e Nova Iorque, 1996, p. 158 (texto 5 do
Caderno).
163

a continuidade das forças políticas anteriormente existentes. Há uma grande continuidade entre
os partidos da República de Weimar e os partidos do tempo de Guilherme II.
O sistema partidário, que se vai estabilizar a partir de 1920, é essencialmente composto, da
esquerda para a direita, por: partido comunista (KPD), partido social-democrata (SPD), partido
democrático (DDP), partido centrista católico (Zentrum), partido popular (ou populista, DVP),
partido nacional-alemão, apoiante da monarquia (DNVP) e partido nacional-socialista (nazi,
NSDAP). Há outras pequenas formações de maior ou menor duração, que não vale a pena
mencionar. Quando se reúne a assembleia constituinte em Weimar, em 1919, a esquerda exerce
uma influência dominante, como é normal na sequência de qualquer revolução. Nessa altura, e
até 1922, existia ainda o USPD, partido social-democrata independente, que correspondia aos
socialistas de esquerda (em Outubro de 1920 a sua maioria funde-se no partido comunista, os
restantes acabam por regressar ao SPD em 1922). Começou por se formar um governo de
coligação SPD-DDP-Zentrum. Este predomínio da esquerda resultou na conquista de direitos que
ficaram fixados na legislação então estabelecida: entre outras medidas, instituiu-se, o que era
inovador na Europa da época, o subsídio de desemprego, os conselhos de fábrica que permitiam
a participação dos operários no controle de gestão, o sistema de voto proporcional que favorece a
diversidade dos partidos (semelhante ao que temos em Portugal). Criaram-se as comissões de
socialização que deviam preparar, nos anos seguintes, a socialização de alguns ramos
fundamentais da economia, por exemplo, das minas. Estas comissões de socialização e, em geral,
as medidas de socialização previstas – também aqui vemos um certo paralelo com a história
portuguesa recente -, na medida em que a esquerda progressivamente foi perdendo influência,
foram postas na prateleira e sendo esquecidas. As comissões reuniam, não chegavam a acordo, as
reuniões eram adiadas e acabavam por cair no esquecimento. A partir de meados dos anos 20, já
ninguém falava na socialização das minas nem de coisa nenhuma.
Também é de salientar que, apesar do carácter democrático da organização política, a
Constituição enfermava desde o início de dois problemas que se vieram a reflectir na própria
subsistência do regime. Estes problemas foram, por um lado, a independência do exército que,
por força do Tratado de Versalhes, não era baseado no serviço militar obrigatório mas sim um
exército profissional, o que por si mesmo acentuava as características de casta, cultivadas e
enraizadas na história do militarismo alemão. As Forças Armadas gozavam dum alto grau de
independência em relação ao poder civil. Outro aspecto da Constituição que limita o
funcionamento democrático da república é o famoso artigo 48º, relativo aos poderes
164

presidenciais. Este artigo dizia que,”quando no território da Alemanha a segurança e a ordem


estiverem consideravelmente perturbadas ou ameaçadas, o Presidente pode decidir as medidas
necessárias à reposição da segurança e da ordem públicas, se necessário recorrendo à força
armada.” Isto, combinado com o poder presidencial de dissolução do Parlamento, acabou por ser
interpretado no sentido de o Presidente da República poder nomear ou manter em funções um
governo mesmo contra o voto adverso do Parlamento. A partir de 1930, é através do uso e abuso
desta prerrogativa que, de facto, o sistema democrático deixa de funcionar. É um aspecto que
deve ser sublinhado, porque muitas vezes apresenta-se a ascensão de Hitler como uma revolução,
o que é falso. Hitler foi nomeado chefe do governo, e a este respeito vale a pena ler o artigo do
AJP Taylor, que desmistifica completamente a ideia da “tomada do poder” por Hitler44. A
instauração da ditadura hitleriana só é compreensível se se tiver em conta este aspecto
constitucional, que condiciona e limita a democracia de Weimar.
A Constituição, e portanto o sistema político democrático, entra em vigor em 1919, mas desde
início as forças ligadas ao antigo regime – que de resto tinha uma base de massa que não deve
ser esquecida, porque a Alemanha não poderia ter aguentado a Guerra durante tanto tempo se
não existisse um nacionalismo enraizado e organizado - continuam a exercer a sua influência em
todos os domínios, na política, na economia, na educação. Os sentimentos e as ideologias pró-
imperialistas e monárquicos não se ocultavam. As universidades continuam, de uma maneira
geral, a ser alfobres da reacção, a maioria dos Professores compõe-se, como antes, de adeptos do
regime imperial. No próprio sistema partidário, como partidos republicanos identificamos
apenas o KPD, o SPD, o DDP e, apenas em certa medida, o Zentrum, neutral em questões de
regime, como o era a generalidade dos partidos católicos na época. Os nacionalistas do DNVP
era adeptos explícitos do sistema imperial. Quanto aos chamados “populares” do DVP, com a
figura de proa que foi Gustav Stresemann desde 1923 até à sua morte em 1929, eram o que se
designou de Vernunftrepublikaner, republicanos pela razão (não pelo coração), i.e. aderiam à
república porque era necessário, não porque ideologicamente se identificassem com ela. Quanto
ao nazismo, que só irá tornar-se num grande partido a partir de 1930, sempre foi abertamente
anti-república de Weimar, contra o que designava como “o sistema”.
A tradição conservadora e imperial desde cedo alimentou o mito de que a Alemanha tinha sido
vítima de uma facada pelas costas, derrotada pela traição do inimigo interior. É esse o teor da

44
A.J.P. Taylor, “Hitler’s seizure of power”, Europe: Grandeur and Decline, Penguin Books,
1967, pp. 204-219 (texto 11 do Caderno).
165

“lenda da punhalada” (Dolchstosslegende) e um dos temas que vão ter mais influência e
condicionar o comportamento da população alemã, sobretudo nos primeiros anos da República,
porque ela vai sofrer terrivelmente os efeitos da derrota e da crise económica do pós-guerra,
pelos quais o Tratado de Versalhes, com a sua imposição de pesadas reparações, é considerado
responsável.
Os efeitos da derrota repercutem-se, materialmente e não só, sobre vastíssimas camadas da
população. Uma parte delas, sobretudo na classe operária, adere a posições radicais de esquerda,
e por isso o Partido Comunista Alemão (KPD) torna-se rapidamente uma formação importante.
Outros sectores do operariado constituíam a base do Partido Social-Democrata (SPD) que, até
1932, é o maior partido em termos eleitorais. Todavia, outros sectores em situação de miséria
não é no movimento operário e nas ideias socialistas que buscam a solução, mas sim na nostalgia
da reposição dum regime de ordem e autoridade, ao qual associavam uma certa estabilidade
económico-social para a pequena-burguesia e a classe média, como o existente no tempo de
Guilherme II.
Os primeiros anos da República de Weimar são dominados pela questão das responsabilidades
da derrota na guerra e, nesse aspecto, a direita cultiva a ideia de responsabilidade da esquerda
pela “punhalada nas costas”, quer dizer pela revolução de Novembro de 1918, que tinha posto
termo ao Império e à possibilidade de continuação da guerra. Era uma pura lenda, porque o fim
da Guerra já estava decidido anteriormente. É evidente que, com a revolução, o fim foi
precipitado, mas a derrota já tinha sido reconhecida anteriormente e a mudança de governo que
se deu pouco antes da revolução, em Setembro de 1918, com a formação do governo de Max von
Baden, visava justamente preparar a rendição da Alemanha. Aliás essa mudança de governo não
foi inocente, ela visava colocar no governo elementos da esquerda, inclusive do SPD, para serem
eles os responsáveis por aquilo que já se sabia que seriam os resultados inevitáveis da derrota.
A mobilização da direita contra a esquerda não se deu só de forma política e ideológica, mas
também passou por confrontos armados. Durante toda a vigência da República de Weimar
existiram milícias armadas. Nos primeiros anos da república existem as brigadas de combatentes
recém-desmobilizados da Guerra, os Freikorps. Mas, mesmo depois de passado o período
revolucionário, todas as grandes forças políticas possuem as suas milícias, legalmente
reconhecidas, que teoricamente não podem fazer uso das armas. Mas, num contexto de
conflitualidade elevada como é em geral o da época de Weimar, essas milícias vão ser um factor
importante na violência política.
166

Em relação aos Freikorps («corpos-francos»), antigos militares nacionalistas, vimos já como o


próprio governo social-democrata, ainda no período pré-constitucional, os utilizou na repressão à
esquerda revolucionária.
Muitos dos episódios de violência brutal que associamos à história do nazismo foram, por assim
dizer, já antecipados pelos comportamentos destas brigadas na repressão ao movimento
revolucionário de 1918/19. Toda esta violência e repressão política funcionam quase como uma
antevisão daquilo que o nazismo trará à cena político-social alemã. Outro aspecto da continuação
da violência da direita reside na série de assassinatos políticos que ocorreram nos primeiros anos
de Weimar e que atingiram, não só dirigentes do movimento operário como os já mencionados
Kurt Eisner, Rosa Luxemburg, Karl Liebknecht, Leo Jogisches e dezenas de outros, mas também
figuras integradas na política estabelecida, como o membro da comissão alemã de armistício,
Mathias Erzberger, político do Zentrum, ou o grande industrial e ministro dos Negócios
Estrangeiros, Walter Rathenau, entre outras personalidades.
Logo em 1920, há uma tentativa de golpe militar, o chamado putsch de Kapp, um político
nacionalista ligado aos meios dos corpos-francos, que tentou derrubar a república e instaurar uma
ditadura. Este golpe foi derrotado por uma greve geral, que contou com o apoio de todos os
sindicatos e de toda a esquerda política. Todavia, essa derrota da direita, que teria sido uma
oportunidade de consolidação das forças políticas de esquerda, não o foi. E não o foi, em grande
parte, porque um dos fenómenos que marcaram profundamente a República de Weimar, e que
condicionaram o seu destino ulterior, é a profunda separação e hostilidade entre o partido
comunista e o partido social-democrata, ambos partidos de massas e com relevância eleitoral.
Divididos pelos acontecimentos da Revolução de Novembro e posteriores, nomeadamente a
revolta de Spartakus e o assassinato de Luxemburg e Liebknecht, divididos pelas posições
opostas em relação à Revolução de Outubro e à URSS, divididos essencialmente pela questão de
querer ou não querer uma revolução socialista na Alemanha. Mas estas divisões não eram
apenas no campo político ou ideológico, correspondiam também a raízes sociais diferenciadas,
embora ambos os partidos tivessem implantação na classe operária. Ao passo que o KPD tinha
um maior apoio nos sectores mais pobres e menos qualificados do operariado,
predominantemente em pequenas e médias empresas, o SPD beneficiava do apoio dos sectores
mais prósperos e mais qualificados. Esta diferença reporta-se também às zonas de habitação, aos
bairros em que cada um dos partidos predominava, é portanto uma diferença de meios sócio-
167

culturais e, consequentemente, políticos, além de uma diferença de gerações – os militantes


comunistas eram em geral mais jovens do que os do partido social-democrata 45.
Nestas circunstâncias, a partir de 1920, e sobretudo de meados da década de vinte, a influência
política e social da direita, traduzida nos resultados eleitorais, é crescente46.
Já em 1922, o governo é uma coligação de centro-direita, sem os social-democratas, presidida
por W. Cuno, o director-geral de um grande cartel económico. É este governo que vai levantar
novamente a oposição ao Tratado de Versalhes, recusando continuar o pagamento das reparações
fixadas. Em resposta a esta situação, os governos francês e belga, também dominados por
partidos bastantes nacionalistas, decidem a ocupação do Ruhr, um região rica em carvão, com o
objectivo de, através da exploração das minas, se ressarcirem daquilo que a Alemanha não
pagava. O governo reage a esta ocupação militar decretando a resistência passiva, ou seja, a não
colaboração com as autoridades ocupantes, o que vai causar um verdadeiro caos económico,
com a maior inflação conhecida na História. Conta-se que um turista americano que pedisse uma
refeição por um dólar, ao acabar de comer era servido de novo almoço, porque em vinte minutos
o marco se tinha desvalorizado em 50%. Este era o lado cómico de uma situação que, para a
maioria, foi trágica, e não só para os operários, cujos salários reais desceram para metade do que
eram antes da Guerra, mas também para muitos pequenos comerciantes, lojistas, artesãos, que se
viram de repente arruinados. Nesta situação de crise, renascem as perspectivas de soluções
revolucionárias, que são formuladas, quer pela esquerda, nomeadamente pelo KPD (partido
comunista alemão), quer pela extrema-direita. Estas condições dramáticas, juntas ao facto de que
neste período os social-democratas (SPD) estavam afastado do poder, impelem o partido
comunista e sectores da esquerda do SPD para uma aproximação. É nesta base, na base da
política de frente única, que se constituem governos regionais, por acordo local entre os partidos
comunista e socialista, na Turíngia e na Saxónia, de coligação socialista-comunista. Esses
governos regionais vão ser demitidos pelo governo central, que mobiliza o Exército obrigando
pela força à respectiva demissão. É nestas condições, durante as semanas entre a criação destes
governos regionais e a intervenção militar do governo central, que o KPD chega a preparar um
projecto de insurreição, que será posteriormente desmobilizado por não contar com suficiente

45
Geary, Dick, European Labor Politics from 1900 To The Depression, MacMillan, Londres,
1991, p.69; Rosenhaft, Eve, Beating the Fascists? The German Communists and Political Violence 1929-
1933, Cambridge University Press, Cambridge, 1983.
46
Arthur Rosenberg, "El fascismo como movimiento de masas", pp. 123 e sgs.
168

apoio. A ideia assentava numa greve geral, que não teve o apoio previsto dos socialistas. A
insurreição, prevista para Outubro de 1923, foi desmarcada; mas em Hamburgo a anulação não
foi comunicada a tempo, de maneira que chegou aí a haver combates de rua, com a tentativa de
tomada de esquadras da polícia, rapidamente liquidada. Foi, pode dizer-se, o último episódio da
crise revolucionária do imediato pós-guerra.
Logo pouco depois, em Novembro, há uma tentativa contra-revolucionária de direita, em que
surge já como protagonista central o ex-cabo do Exército Adolf Hitler, chefe do partido nazi
(NSDAP, Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores), a promover uma revolução a
partir de Munique, capital da Baviera, que deveria culminar numa marcha sobre Berlim, à
imagem da “marcha sobre Roma” que Mussolini encenara com sucesso um ano antes. O
exemplo italiano era naturalmente conhecido na Alemanha, e deve dizer-se que Hitler sempre
reconheceu em Mussolini e no fascismo italiano um precursor. Esta tentativa de revolta, que
ficou para a História como o “Putsch da cervejaria” (Buergerbraukellerputsch) é interessante, em
especial porque envolveu também um personagem extraordinariamente importante e poderoso
durante o Império, o General Ludendorff, considerado o ditador militar da Alemanha entre os
anos de 1916 e 1918 e companheiro, na chefia dos Exércitos, do marechal Hindenburg.
Como é que foi possível uma iniciativa destas? É certo que ela surgiu ao cabo de um meeting na
cervejaria, com os espíritos emocionados e depois de um daqueles discursos exaltados que
Hitler fazia, mas não foi um simples fruto do álcool. O ambiente da Baviera era favorável. O
putsch de Kapp de 1920, que fracassou como tentativa de tomada do poder em Berlim, tinha tido
o seu relativo êxito na Baviera, conseguindo aí mudar as autoridades político-militares. Além
disso, Munique e a Baviera foram o ninho do partido nazi. O NSDAP não teria podido
estabelecer-se e prosperar sem o apoio de que, sobretudo nos primeiros anos, gozou da parte das
autoridades da Baviera, nomeadamente através do capitão Ernst Roehm, o depois famoso chefe
e organizador das SA (“secções de assalto”), as milícias do partido nazi.
Ultrapassada esta crise, a república entra numa fase de estabilização, entre os anos de 1924 e de
1928. Na análise dos comunistas, falava-se do período de «estabilização relativa», porque havia a
ideia de que a crise só seria resolvida pela superação do capitalismo. Mas, de facto, essa
estabilização era relativa, porque a partir de 1929 a Alemanha entra de novo numa grande crise.
Contudo, estes quatro anos foram tão contrastantes, quer com o período anterior, quer com a
crise que lhe sucedeu, que ficaram conhecidos como «Dourados Anos Vinte» (Golden Twenties,
Goldene Zwanziger, etc.)
169

Como se dá esta mudança, e que consequências tem?


Do ponto de vista político, a mudança foi possível devido à entrada em cena de um grupo, e
mesmo em particular de um líder político, proveniente dos “populares” da direita (DVP),
chamado Gustav Stresemann, um típico “Vernunftrepublikaner” (republicano pela razão, não de
coração). Stresemann considerava que, para conciliar, no plano externo, as potências vencedoras
da Guerra e, no plano interno, a classe operária, era preciso aceitar as instituições da República.
Ele forma um novo governo, contando para isso com o apoio do Partido Social-Democrata. A
sua política consiste em conter os extremos do espectro político e, sobretudo, em encetar um
relacionamento diferente com os vencedores da Guerra, procurando envolver numa solução os
EUA e a Inglaterra, e por esta via subalternizar a França, que tinha uma posição mais vindicativa
em relação à Alemanha. No aspecto económico, a solução é encontrada, em primeiro lugar,
numa reforma monetária, com a substituição do marco desvalorizado por uma nova unidade
monetária, o Reichsmark, vinculado ao ouro. Através de negociações, conseguiu garantir o apoio
internacional para a recuperação da economia alemã. Esse acordo traduziu-se no chamado plano
Dawes, do nome do banqueiro americano Charles Dawes, que presidiu à comissão técnica
nomeada por uma conferência em Londres. O plano consistia numa injecção de dinheiros
públicos e privados americanos na Alemanha, quer em investimentos directos, quer através de
empréstimos. Com esta injecção de créditos e investimentos, a Alemanha estaria em condições
de voltar a dinamizar as suas exportações, de consolidar as suas finanças e pagar as reparações
estabelecidas pelo Tratado de Versalhes. Isto era também do interesse directo dos EUA, porque o
recebimento das reparações alemãs permitiria aos Aliados, nomeadamente à França e à
Inglaterra, pagarem as suas próprias dívidas de guerra à América.
Simultaneamente foram fixados os montantes de reparações, progressivamente crescentes, que a
Alemanha deveria pagar nos anos seguintes, bem como os mecanismos para garantir o
pagamento. Com o plano Dawes inicia-se a “política de cumprimento” (Erfuellungspolitik), quer
dizer, a aceitação de que a Alemanha paga indemnizações, garantindo para tanto a cooperação
necessária. Isto marca a entrada num período de relativa prosperidade e de normalização
diplomática, que conduz, em 1925, à Conferência de Locarno e, no ano seguinte, à admissão da
Alemanha na SDN. Levou também a uma grande crença de que se entrara na época da paz
perpétua, crença que não levou muito tempo a ser desmentida.
A estabilização permitida pelo plano Dawes permitiu, sem dúvida, um acréscimo da
prosperidade e, sobretudo, uma modernização económica ligada à racionalização; é a época da
170

implementação da organização científica do trabalho (OCT), com origens anteriores à Grande


Guerra, mas que agora ganha aplicação mais generalizada. A OCT e, em geral, a racionalização,
significa uma intensificação e o acréscimo da produtividade do trabalho. Trouxe a subida dos
níveis médios de vida, mas implicou também um aprofundamento das diferenças sociais,
nomeadamente no seio da classe operária. Não contribuiu, portanto, para superar a grande
separação que havia, na esquerda, entre social-democratas e comunistas, embora nestes anos
tenha havido algumas iniciativas conjuntas dos dois partidos – a mais conhecida foi a petição
popular e o referendo para a expropriação sem indemnização dos príncipes (i.e., das casas
senhoriais abolidas pela revolução de Novembro), que esteve perto de alcançar êxito. Mas
permaneceu sempre uma diferença de universos de implantação, que em certos aspectos até se
aprofundou, porque foram os sectores mais qualificados da classe operária aqueles que mais
beneficiaram com a racionalização, ao mesmo tempo que, na própria prosperidade, se gerou o
chamado desemprego estrutural, resultante da modernização técnica e que se mantém em
período de crescimento.
Por consequência, a estabilização não correspondeu propriamente a uma democratização da
sociedade alemã. É certo que o regime republicano democrático manteve-se e consolidou-se
temporariamente, mas as forças sociais dominantes não foram minimamente afectadas nas suas
posições de poder, e até se reforçaram numa situação de crescimento económico e concentração.
Nesse aspecto, a estabilização não alterou, mas pelo contrário acentuou transformações que se
tinham operado durante a crise, período em que muitos se arruinaram mas alguns fizeram
enormes fortunas. Esta consolidação do capitalismo, incluindo a aristocracia agrária, interfere
também na vida política, e verifica-se uma consolidação política destas elites. A manifestação
mais visível disto será a eleição para Presidente da República, em substituição do social-
democrata Friedrich Ebert que morre em 1925, do Marechal Paul von Hindenburg, que fora o
chefe militar supremo durante a Guerra. Quanto ao NSDAP, que ao princípio era apenas um dos
muitos partidos da constelação “voelkisch” (extremismo nacionalista), vai consolidar a sua
posição nestes anos. Após o fracasso do putsch da cervejaria, em 1923, Hitler é condenado a
prisão em regime de fortaleza, que era o regime de prisão mais benigno e lhe permitia manter
muita actividade, aliás acabou por apenas cumprir nove meses. Aproveitou o tempo para
aprofundar os seus contactos, porque podia receber visitas, e sobretudo para escrever a primeira
parte do Mein Kampf (“A minha luta”), simultaneamente autobiografia e tratado político, onde se
encontram já traçadas todas as directrizes fundamentais que guiarão o movimento nazi, incluindo
171

a intenção de extermínio dos Judeus, a erradicação do bolchevismo, a expansão da Alemanha


para leste pela conquista militar, submetendo os povos eslavos, considerados inferiores. É além
disso neste período que Hitler equaciona uma viragem fundamental da táctica do NSDAP: a
renúncia a qualquer nova tentativa revolucionária e a opção por uma via legal de acesso ao
poder. Ele percebeu que era possível, ao nível das instituições e dos poderes estabelecidos,
conquistar apoios que, combinados com demagogia e a mobilização de massa, o podiam
conduzir ao poder.
172

Lição 18: De Weimar a Hitler (2).

Como vimos, a derrota do “putsch” nazi de Hitler em Munique ocorreu no final do período de
crise social e política, que durou até 1923. Cerca de um ano depois, no princípio de 1925,
ocorre a morte de Friedrich Ebert e, pela mesma altura, a passagem dos governos da República
de Weimar a uma nova atitude nas relações internacionais, traduzida pelo entendimento com
os vencedores da guerra, ou seja, à chamada “política de cumprimento” (Erfuellungspolitik),
que foi simbolizada pelo Chanceler (durante um curto período) e depois Ministro dos Negócios
Estrangeiros, Gustav Stresemann, o homem politicamente mais representativo dos chamados
anos dourados da República de Weimar (1924-28). Nesse quadro, dá-se, primeiro, a adopção
dum plano económico concertado com a Inglaterra, a França e os Estados Unidos, de apoios
económicos à Alemanha, o chamado Plano Dawes, que possibilitou o fornecimento dum
grande empréstimo público estrangeiro e, na sequência, de uma série de empréstimos a
entidades como os governos locais e regionais e municípios. E, nessa base, do saneamento das
finanças alemãs, foi possível afluir o investimento estrangeiro, em particular os capitais
americanos, duma América que estava num período exuberante de expansão económica e que,
cada vez mais, se afirmava como a grande potência económica mundial.
O território dos EUA e mesmo a sua zona de influência na América Latina já não eram
suficientes, os capitais americanos procuravam outros terrenos, e foram investir na Alemanha
que oferecia condições favoráveis em muitos aspectos, até porque não tinha sofrido
destruições de guerra. E havia, por outro lado, uma mão de obra educada, instruída, com boa
formação profissional e um aparelho industrial, moderno, que se reconverteu das indústrias de
guerra para a paz, e que respondeu às novas possibilidades oferecidas pelo investimento
estrangeiro. É isso que explica este ambiente de euforia que vemos em muitos filmes sobre este
período, como por exemplo “Cabaret, adeus Berlim”. Isto traduziu-se numa quantidade de
fenómenos de desenvolvimento artístico e cultural. A época de Weimar é conhecida como um
período de grande criatividade em todos os domínios, desde a pintura ao cinema, passando pela
arquitectura, pelo music- hall, o teatro, a música, a literatura, etc.
Para além deste aspecto de desenvolvimento cultural, houve uma certa euforia económica que,
no entanto, esteve muito longe de beneficiar todos por igual. Em muitos aspectos, a
prosperidade dos anos vinte consolidou diferenças estruturais entre os sectores que
prosperaram e os sectores mais pobres da população. É característico deste período o
173

desemprego estrutural, quer dizer, mesmo em condições de expansão mantém-se uma certa
taxa de desemprego relativamente estável. O que, por seu turno, não é alheio a a realidades
políticas, como a conflitualidade entre socialistas e comunistas, a divisão da esquerda que
muitas vezes se aponta, e com razão, como uma das causas principais do fracasso da República
de Weimar e da democracia alemã. Essa conflitualidade não era simplesmente um fenómeno
ideológico, porque uns tinham resolvido pactuar com o capitalismo e os outros queriam uma
revolução copiada da Rússia. É evidente que esses fenómenos ideológicos também existiam e
tiveram o seu peso. Mas tinham uma base material, que era a própria diferença de condições de
vida, de trabalho e de salário, de lugares e condições de habitação, de condições de
socialização em suma.
Temos portanto, após 1924, a entrada numa nova fase de relativa prosperidade que, no entanto,
era uma prosperidade inteiramente dependente do contexto externo e, em especial, dos créditos
americanos.
Essa dependência estrutural vai ter consequências importantes e graves.
Como vimos, os primeiros anos da República de Weimar tinham sido caracterizados pelo facto
de que a mudança do quadro das instituições politicas formais não foi acompanhada por uma
mudança da natureza e da composição social das instituições. Quer dizer, quem mandava nas
várias instâncias do aparelho do Estado, do aparelho judiciário, militar, da cultura, das
Universidades, era no essencial a mesma gente. Por exemplo: ao longo de toda a história da
República de Weimar não houve um único “professor ordinário” (o correspondente ao nosso
catedrático) comunista.
Verificou-se portanto uma marginalização da esquerda das posições de poder, e um símbolo
disso vai ser a chegada à posição de Presidente da República, nas eleições de 1925, do
marechal Hindenburg, exactamente o mesmo Hindenburg de que já tínhamos falado aqui a
propósito da guerra de 1914-18 e que nessa época era o comandante supremo do Exército
alemão, ao serviço do Kaiser.
Esse homem, que de resto se mantinha monárquico, e que nesta altura já tem quase 80 anos, foi
então eleito Presidente da República, à segunda volta. De resto ele só aceitou candidatar-se
depois de se informar de que o Kaiser não punha objecção. É de registar que o que abriu
caminho a essa eleição foi a divisão da esquerda porque, se tivesse havido um candidato
comum, de comunistas e socialistas, ou que abarcasse também, digamos, sectores como o
Partido Democrata, por exemplo, o resultado teria sido diferente.
174

Quer dizer, na segunda metade dos anos vinte, ao mesmo tempo que a República de Weimar
parece uma democracia exemplar - com um regime de partidos, a representação proporcional
no Parlamento, e até medidas sociais avançadas, como o subsídio de desemprego que, na maior
parte dos países europeus não existia nesta época e na Alemanha já existe -, numa instituição
tão importante como a Presidência da República, o homem que a detém é um monárquico, e
portanto um homem de maneira nenhuma identificado com princípios democráticos.

Deve dizer-se ainda alguma coisa sobre a extrema-direita, e em particular o nazismo, nos anos
da estabilidade.
É certo que o Partido nazi tinha sido derrotado na sua tentativa de tomada do poder e é certo
que, ainda em 1928, nas eleições gerais, tem apenas 2,6% dos votos. Mas isso não significa que
fosse uma força insignificante ao longo destes anos, ou que este período seja uma página em
branco na existência do nazismo.
Naturalmente, num contexto de refluxo e em que Hitler esteve limitado pelo facto de ter
estado preso e de, durante uns anos, ter sido proibido de falar em público, surgiram, até,
divisões no Partido, e nomeadamente uma espécie de ala esquerda, dirigida pelos irmãos
Gregor e Otto Strasser, homens que, de alguma maneira, acreditavam no Programa dos 25
pontos, o programa oficial do Partido e, em certa medida, acreditavam num certo “socialismo”,
que fazia aliás parte do nome do Partido. O programa chegava a prever a nacionalização dos
monopólios e estes homens imaginaram que efectivamente, uma revolução nazi se traduziria
numa chegada ao poder dum novo grupo social e político, quer dizer, se traduziria numa
substituição das elites e em medidas sociais moralizadoras contra os especuladores, medidas
fiscais e outras favoráveis às classes pobres. E, portanto, medidas anti-capitalistas. Eles
animaram uma tendência nesse sentido, que Hitler teve algum trabalho em disciplinar (o Otto
Strasser foi até expulso do partido). Estes anos foram assim fundamentais, também, para a
estruturação interna do Partido nazi e a consolidação da autoridade pessoal de Hitler. O Gregor
Strasser ainda se manteve, mas será marginalizado, e aliás liquidado fisicamente mais tarde.

Voltando à questão das instituições de Weimar. Porque é que o lugar de Presidente da


República pode ser tão importante numa democracia aparentemente e, fundamentalmente,
parlamentar ?
175

Porque os artigos que se referem aos poderes do Presidente da República estabelecem que, em
caso de perturbação grave da ordem pública, ele tem o poder de aprovar decretos à margem do
Parlamento e de os fazer aplicar. Ou seja, o artigo 48 da Constituição de Weimar, combinado
com o poder de dissolução em relação ao Parlamento, torna possível que, invocando uma
situação de anormalidade e perigo para a ordem pública, o Presidente governe ditatorialmente.
Hindenburg não utilizou este instrumento enquanto o Parlamento funcionou normalmente. Até
1929, as instituições funcionavam e havia uma relativa prosperidade económica.
O problema é que a partir de 1929 tudo muda, e muda muito bruscamente a partir do colapso
das acções na Bolsa de Nova Iorque.
Já antes disso, tinha começado a diminuir o fluxo de investimentos americanos, porque
justamente era mais lucrativo investir na América mas, quando se dá a grande crise na
América, os capitais americanos retiram-se da Europa. E isso vai em primeiro lugar afectar a
banca. Atrás da crise bancária, vem a de uma quantidade de empresas que estavam endividadas
em relação aos bancos e agora impossibilitadas de obter novos empréstimos.
E, portanto, há, a partir de 1930, um movimento em cadeia em que a crise de alguns bancos -
começa com um um grande banco austríaco e depois dois grandes bancos alemães, que eram
por assim dizer uma plataforma do investimento estrangeiro na Alemanha - gera crise na
indústria, com encerramento de fábricas, desemprego e corrida aos depósitos. Quer dizer,
aqueles que tinham depósitos e receavam que os bancos não estivessem em condições de os
devolver, procuraram levantar o que tinham o mais depressa possível, o que levou de novo uma
série de bancos à falência.
Com a crise industrial alarga-se o desemprego e, na sequência disto, vem a crise financeira do
Estado, porque, tanto em relação aos lucros como aos salários, se tinha restringido
drasticamente a matéria colectável. Resultado: no plano político, perante esta crise, o governo
entra num impasse. Desde as eleições de 1928 estava em funções um Governo de grande
coligação, em que participavam também partidos do centro e do centro-direita, presidido por
um socialista, Hermann Mueller. Esses partidos votam contra a proposta socialista de um
imposto sobre o capital e decidem cortes no subsídio de desemprego. Os socialistas de início
ainda quiseram aceitar uma solução de compromisso, mas a base do SPD recusou, porque
aceitar os cortes no subsídio de desemprego significava anular a Segurança Social justamente
numa altura em que ela era mais necessária do que nunca. E, portanto, não aceitam a solução
176

adoptada pela maioria do governo, o que leva à demissão do chanceler socialista, ou seja, à
queda deste governo.
Não havendo uma solução de alternativa e continuando o SPD a ser o principal partido no
Parlamento, o que o Presidente Hindenburg vai fazer é escolher ele, à margem do Parlamento,
um político da direita do Zentrum, ou seja, do Partido Católico, Heinrich Bruening. Nomeia
então Bruening como chanceler e permite-lhe governar à margem do Parlamento, apoiando-se
justamente no tal artigo 48 que dava ao Presidente o poder de legislar numa situação de
emergência. Ou seja, uma disposição que tinha sido prevista para situações do tipo guerra civil
é aplicada numa situação muito diferente, de crise económica e impasse político, o que é já um
abuso. Na realidade, a partir da nomeação do governo Bruening, o regime democrático, o
regime da Constituição de Weimar, está, por assim dizer, suspenso, porque não é o Parlamento
que elege o Governo, e as medidas adoptadas em todos os planos, económico, social e até de
ordem pública, são-no em virtude dos poderes ditatoriais do Presidente da República. Entra-se
de facto numa situação de semi-ditadura.
É muitas vezes assim que se formam as ditaduras. Quer dizer, não é o golpe brusco, não é por
exemplo um golpe de estado militar, é uma transição para uma situação considerada de
excepção, e que é aceite justamente por ser vista como excepcional, mas que se vai
prolongando e de facto instaura um regime que já não é um regime democrático.
Portanto, a partir de Março de 1930 entra em funções o governo do Chanceler Bruening, que
não dispõe de maioria parlamentar e governa com base no apoio do Presidente da República.
Qual é o conteúdo essencial da política de Bruening?
Isto tem interesse também pelas similitudes que se podem encontrar com as políticas actuais
dos governos em situações de crise económica e financeira.
A política económica de Bruening é centrada na defesa da moeda e no equilíbrio do orçamento.
A ideia é a de que, primeiro que tudo, é preciso ter a confiança do capital e nomeadamente, na
medida do possível, atrair o capital estrangeiro. E para isso é preciso manter o valor da moeda
(o que aliás não é conseguido). E para tanto é preciso reduzir as despesas, logo cortar os
vencimentos dos funcionários públicos, cortar os subsídios de desemprego e baixar o nível
geral dos salários.
Isto gerava, naturalmente, impopularidade, que o governo vai procurar compensar com uma
afirmação no plano externo. É significativa a relação entre uma política social conservadora,
anti-democrática, e a aposta no nacionalismo, na afirmação no plano internacional. Sugere-se
177

que os cidadãos estão a fazer sacrifícios mas o país beneficia e que, portanto, todos, directa ou
indirectamente, beneficiam. Essa ligação é fundamental, simplesmente, no seu
desenvolvimento, ela tem como consequência que vão ser as forças mais extremistas, do ponto
de vista nacionalista, que assim se vêm legitimadas e colhem os correspondentes louros
políticos. Temos assim um governo que se pode considerar do centro-direita que, pelo
conteúdo das suas políticas, vai estimular os descontentamentos sociais expressos pelas
oposições de esquerda e de direita – nomeadamente, pelo Partido Comunista, por um lado, e
pelo nazismo, pelo outro. Simplesmente, o contexto político e social em que estas medidas são
implementadas e o discurso nacionalista que as acompanha operam um efeito de legitimação
das posições e doutrinas mais radicais da direita, quer dizer, neste caso, em especial do
nazismo.
O Partido nazi vai explorar ao máximo, e com grande eficácia, este paradoxo que resulta duma
política de direita aplicada por um governo que, formalmente, pertence ao sistema
democrático. Toda a sua propaganda aponta os resultados sociais da política de deflação –
redução de salários e prestações sociais, aumento das taxas de juro - como resultado da
existência do regime democrático. E, num contexto em que o nacionalismo se impõe como
princípio supremo – todos os males são vistos como fruto da derrota alemã na guerra e das
imposições de Versalhes - , estabelece-se uma espécie de competição entre os partidos pelo
máximo de nacionalismo. Não é difícil aos nazis apresentarem-se como os nacionalistas mais
consequentes, como a força que estaria disposta a defrontar os inimigos externos começando
por eliminar os que prejudicam, pela diferença étnica ou política, a unidade interna:
nomeadamente, judeus, comunistas e socialistas.
Por exemplo, Bruening tentou realizar a união aduaneira com a Áustria, que seria o princípio
dum processo que podia levar à unificação dos dois Estados de população germânica. Esta era
uma questão que interessava muito os Alemães, desde o século XIX e a formação do Império.
O projecto da união aduaneira falhou, porque o Tribunal Internacional da Haia a impediu,
como contrária à disposição do tratado de Versalhes que proibia a união da Alemanha com a
Áustria. Bruening iniciou também, no âmbito da Sociedade das Nações e da preparação da
Conferência Mundial de Desarmamento, uma campanha pela paridade de direitos da Alemanha
em matéria de armamento, e não teve inteiro sucesso.
178

Perante isto os nazis vinham dizer que, se fossem eles a estar no poder, não iam perguntar ao
Tribunal da Haia para fazer a união com a Áustria, nem à SDN quanto à paridade dos
armamentos, mas tratariam simplesmente de as levar à prática.
Quer dizer, uma política inspirada no nacionalismo de direita, por um governo do sistema
democrático, procurando em teoria evitar a polarização dos extremos, na prática vai é favorecer
o partido que, duma forma mais aberta e extrema, assume tais objectivos nacionalistas.
Daí o fracasso do Bruening, desde logo no plano eleitoral, quando convoca as eleições em
Setembro de 1930, com o objectivo de obter uma maioria parlamentar que o apoiasse.
Justamente estas eleições vão registar o crescimento exponencial do Partido Nazi, com a
passagem de 2,6 % dos votos para mais de 18% e, no Parlamento, de 12 para 107 deputados.
Este período do governo de Bruening foi marcado não só pelo crescimento da oposição de
extrema-direita do Partido Nazi mas, além disso, por uma consolidação do bloco das direitas
anti-democráticas.
E isso é muito importante na legitimação do nazismo. Legitimação no sentido de que se
tornaram uma força credível perante um eleitorado que não lhes estava adquirido e que, à
partida, aceitava a democracia.
Este processo de inserção e legitimação iniciou-se aliás ainda antes, com a campanha contra o
Plano Young, em 1928. O Plano Young era uma actualização do Plano Dawes no respeitante
ao pagamento das reparações de guerra alemãs. Foi assim chamado do nome do americano
Owen Young, o qual presidiu à conferência internacional que reescalonou os prazos de
pagamento, para 59 anos. Quer dizer, o pagamento só terminaria em 1988. Os nazis
desenvolveram uma campanha de ridicularização, de escândalo e de protesto, porque o Plano
seria a condenação dos alemães, até à terceira geração posterior aos combatentes, como
culpados da 1ª Guerra mundial.
Depois, já em 1931, há a constituição da chamada Frente de Harzburg, que foi uma grande
concentração, uma grande manifestação em que também participaram as milícias nacionalistas,
os dirigentes dos partidos de direita e até gente ligada por laços de família ao Kaiser. Era não
só uma manifestação de oposição ao governo, mas sobretudo de oposição à República, ao
“sistema de Weimar”, que era já abertamente posto em causa.
Neste contexto, o próprio chanceler Bruening perde a confiança das direitas radicais, não
apenas do NSDAP (o partido nazi), mas dos nacionalistas do Partido nacional-alemão (DNVP)
que, até 1930, eram o grande partido da direita tradicionalista.
179

De algum modo ele reage a isso, procurando consolidar o apoio da social-democracia. O SPD,
que apesar do discurso teórico marxista tinha uma atitude fundamentalmente institucional,
empenhou-se nesta época na chamada “política de tolerância” em relação ao governo de
Bruening, visto como o mal menor em relação à ameaça do nazismo. Na prática, a social-
democracia renunciou a uma efectiva mobilização contra a política anti-social do governo. Este
foi aliás um dos factores que mais contribuíram para a hostilização dos socialistas pelos
comunistas (que os acusavam de “social-fascistas”), para a divisão do movimento operário e
para a difusão duma atitude de passividade e resignação perante o progressivo
desmantelamento da democracia social e política. A “política de tolerância” – na prática, de
colaboração – culminou no apoio socialista à candidatura a Presidente da República de
Hindenburg, então com 84 anos e cada vez mais susceptível às pressões do círculo militar e
aristocrático que o rodeava. Em Abril de 1932, Hindenburg é reeleito, à segunda volta, contra
Hitler, que no entanto averba já aqui o apoio de mais de treze milhões de eleitores (36,8%). O
slogan comunista nestas eleições viria a revelar-se premonitório: “Quem vota Hindenburg,
escolhe Hitler, quem escolhe Hitler, vota pela guerra!”
O certo é que, pouco depois, Bruening tenta empreender medidas moderadas de reforma
agrária, a partir de uma investigação acerca dos dinheiros da ajuda pública às regiões do leste
da Alemanha, particularmente atingidas pela crise agrária. Quer dizer, tinha havido uma
distribuição de dinheiros para o saneamento de propriedades rurais endividadas, houve desvios
de fundos por alguns grandes proprietários e ele, que era um conservador, mas ao mesmo
tempo um moralista, pretendeu mostrar que actuava de acordo com o bem público e que ia
punir os junkers, os grandes agrários da Prússia Oriental, comprometidos nesses desvios.
O resultado foi que se criou uma verdadeira conspiração contra o Bruening, que levou, em
Maio, à sua demissão.
E, para o lugar de chanceler (primeiro-ministro), é então nomeado um aristocrata de nome
Franz von Papen, que forma um novo governo composto de gente da elite social, a tal ponto
que ficou conhecido por Governo dos barões, um governo baseado no seu círculo de amigos.
O governo de von Papen é tal, como era o do Bruening, um governo semi-ditatorial que
funciona apoiado nos decretos presidenciais, e que procura realizar, duma forma ainda mais
radical, a mesma política conservadora, de cortes na despesa pública, acrescentados, já neste
caso do von Papen, de um autoritarismo de Estado, no aspecto da repressão, nomeadamente
contra os comunistas.
180

Ao passo que o Bruening tinha tentado manter uma posição de equidistância em relação aos
chamados extremismos, chegando a proibir as SA, uma das primeiras medidas políticas do
governo von Papen vai ser a relegalização das SA, ou seja, das milícias nazis.Em termos
concretos o resultado desta medida foi que, nas seis semanas seguintes, e apenas na Prússia,
morreram 82 pessoas e 400 ficaram seriamente feridas em confrontos entre nazis e activistas da
esquerda,.
O problema com que o von Papen se depara é substancialmente o mesmo do Bruening, ou seja,
tem o apoio presidencial mas não tem apoio parlamentar e, entretanto, o que se vê, é crescerem
as oposições. Nomeadamente a oposição comunista que, no princípio da crise, tinha uma
expressão eleitoral da ordem dos 10%, e que em Novembro de 1932 já atinge os 16,9%. E,
sobretudo, a oposição da extrema-direita nazi que, por muito que substancialmente esteja
identificada com o sentido das medidas autoritárias que estão a ser tomadas, e que até a
beneficiam, como foi o caso da relegalização das SA, não dá quartel enquanto não conquista
elas própria o governo.
Aliás nesse aspecto o discurso de Hitler era significativo. «Acusam-nos de querer o Governo só
para nós, pois é isso mesmo que queremos e prometemos que acabaremos com os outros
partidos quando lá chegarmos», diz ele.
O von Papen vai tentar responder, como o Bruening tinha feito, convocando novas eleições em
Julho de 1932.
Simplesmente o resultado, do ponto de vista dos objectivos que ele pretendia, é uma decepção
absoluta, ou seja, os nazis obtêm o maior resultado de sempre na sua história, 37,3% dos votos,
mais de um terço, e tornam-se o maior partido no Parlamento.
É importante também referir que, entretanto, a divisão na esquerda se aprofundou.
Os comunistas vêm a crise como uma possibilidade revolucionária. Há de facto uma massa de
desempregados, crescente, que espera, deseja e está disposta a lutar por uma revolução, mas,
justamente, o facto de essa massa ser predominantemente composta por desempregados
significa que tem muito pouca força, até em termos de conflitos laborais. Os desempregados,
por definição, não fazem greves. E a diferença social já anteriormente existente entre as bases
comunistas e social-democratas tende a aprofundar-se.
A impotência do movimento operário perante o desenvolvimento em curso viria a patentear-se,
ainda em Julho de 1932, quando o governo von Papen decide ilegalmente substituir o governo
regional da Prússia, encabeçado pelos social-democratas, e que desde o princípio da República
181

representava um baluarte da esquerda. O SPD acata a demissão imposta pela força, reservando-
se para um recurso aos tribunais. De um golpe, era anulada uma força potencial de resistência à
instauração duma ditadura que, até aí, podia dispôr de um corpo de polícia de 50 mil homens.

Uma pergunta que muitas vezes se põe, é: no fundo, quem é que apoiava Hitler e o nazismo?
Foi ou não foi um movimento do povo alemão?
O nazismo tinha não só contactos, como apoios, alguns mais recentes, outros que vinham de
longe, da própria formação do Partido Nazi, de sectores do grande capital.
Um dos grandes magnatas da indústria alemã, Fritz Thyssen, mais tarde escreveu um livro
significativamente intitulado “I paid Hitler”.
Mas isso não chega para explicar o apoio de mais de 1/3 dos eleitores.
Sendo certo que o nazismo também tinha bons resultados eleitorais nas zonas residenciais da
classe superior, a sua base era essencialmente pequeno-burguesa, tanto a composição dos
activistas, como a base eleitoral. E era predominantemente rural.
Uma das grandes fracturas da República de Weimar é que ela é, por assim dizer, um fenómeno
urbano. O pessoal político era das cidades, eram intelectuais, políticos de profissão, ou
industriais, ou dirigentes socialistas.
O mundo rural, de certa maneira, nunca se identificou com este sistema. Portanto, há uma base
de pequenos camponeses, em graves dificuldades económicas, que historicamente se tinham
identificado com a ideia de grandeza da Alemanha, com a própria figura do Kaiser, com a
influência da religião (não tanto da religião católica, porque o eleitorado católico, duma
maneira geral, foi pouco permeável à influência do nazismo). Ou seja, o Partido do Zentrum,
que é o Partido Católico, manteve uma considerável estabilidade. Mas já nas regiões rurais
protestantes do norte e leste se deu uma grande deslocação de votos, sobretudo dos partidos do
centro e da direita, principalmente do Partido Nacional Alemão (DNVP), que era o Partido
conservador tradicional. Esse eleitorado desloca-se para o nazismo.
Portanto, pequenos agricultores, pequenos comerciantes, pequenos empregados e funcionários
que sofriam com a política de baixos salários e restrições do crédito mas que não se
identificavam com o movimento socialista, porque se agarram muito à sua diferença de
estatuto em relação ao operariado industrial, e que portanto não se identificam com a ideia de
uma revolução social, mas sim com uma ideia nacionalista.
182

É portanto esta a base principal, embora haja a considerar que também na própria classe
operária - na medida em que há uma taxa brutal de desemprego, que chega a mais de 30%, um
terço da força de trabalho em 1932 (e além dos desempregados completos, há os semi-
desempregados, aqueles que têm trabalho apenas a tempo parcial) -, existe uma massa
desenraizada, sobretudo entre os jovens, desmoralizada pela própria perda dos vínculos sociais
e do reconhecimento ligados ao trabalho, afastada de quaisquer solidariedades de classe, e
praticamente afastada da vida dos sindicatos, que também forneceu gente para o nazismo, em
particular para as SA.
Já referi há pouco que as relações políticas que o Partido nazi e o Hitler, pessoalmente, foram
estabelecendo, foram essenciais para se tornar uma força capaz de se inserir na negociação
política. Quer dizer, o nazismo consegue ter os lucros da contestação absoluta, de quem diz que
vai destruir os mais de 30 partidos existentes, e ser ao mesmo tempo uma força de que os
outros precisam e com quem negoceiam.
E é precisamente isto que acontece, nomeadamente com o governo de von Papen, que falha na
sua tentativa de obter apoio eleitoral e vai tentar integrar o Hitler numa solução de governo.
Quer dizer, conseguir uma solução em que mantenha o poder, mas possa gozar do apoio dessa
grande força social e eleitoral que era o nazismo.
É também nesta altura, depois das eleições de Julho de 1932, que se dá a primeira entrevista de
Hitler com Hindenburg, o Presidente da República. Que começou por o detestar, e por o
encarar de uma forma até despreziva, falando dele como o “cabo da Baviera”, porque Hitler
tinha sido cabo durante a I Guerra Mundial, enquanto que ele, Hindenburg, era Marechal de
campo (Feldmarschall), o lugar máximo da hierarquia militar.
O conflito gera-se em torno do facto de Hitler não aceitar nenhum cargo que não seja o de
chefe do governo. E esse será sempre um dos temas centrais de negociação.
Por sinal, aconteceu o mesmo com a chegada do fascismo ao poder em Itália, dez anos antes.
Nos movimentos fascistas o culto do líder é uma força agregadora fundamental.
Consequentemente, a questão da chefia do governo era um ponto essencial.
Deste modo, a negociação fracassa e von Papen vai fazer duas coisas: uma, é tentar uma nova
eleição que vai ter lugar em Novembro de 1932, esperando que essa eleição se traduza numa
diminuição de votos em Hitler, que lhe permita, como ele dizia, domá-lo. Quer dizer, forçá-lo à
tal solução de conciliação em que os nazis teriam um papel subalterno no governo.
183

De facto uma parte das expectativas realizou-se, porque nestas eleições de Novembro de 1932,
o Partido nazi registou um importante declínio eleitoral, passou de 37,2 para 33% dos votos:
ainda é o maior partido, mas isto revela, num espaço de tempo curto, uma drástica quebra de
votações que em algumas regiões, aliás, era ainda muito maior. E significava (os próprios nazis
tiveram a percepção disso, como se pode ver nas anotações do diário de Goebbels) que, se não
chegassem rapidamente a uma situação de poder, podiam perder a confiança do eleitorado tão
depressa quanto a tinham ganho. Tanto mais que a crise económica, que em 1932 atingiu o seu
ponto mais profundo, tende a atenuar-se. E de facto será ultrapassada a partir de 1933.
Portanto, essa parte da previsão realizou-se, mas nem por isso o Parlamento era mais favorável
ao von Papen, tanto mais que outro dado muito importante das eleições de Novembro de 1932
é o crescimento dos comunistas, que começa a ser sério, que atinge os 16,9 % dos votos e se
aproxima já do Partido Social-Democrata.
Portanto a perspectiva de uma força que tinha sido muito importante ao longo de toda a história
da República de Weimar, como era o movimento operário e sindical, passar a ter como
componente mais importante um Partido Comunista revolucionário, era qualquer coisa que
preocupava e que faz com que o próprio von Papen tenha dificuldade em encontrar apoios nos
meios da classe dominante, dos grandes interesses económicos. Os quais estão empenhados,
cada vez mais, numa integração do nazismo numa solução de governo.
Von Papen faz uma última tentativa de manutenção do poder através dum plano abertamente
ditatorial.
Como vimos, até aqui governava-se em regime de semi-ditadura. A transição para esse regime
tinha começado dois anos antes, com o Bruening, paulatinamente. As eleições de Novembro de
1932 já tinham sido provocadas pela expectativa de que o Parlamento tomaria posição contra o
Governo. As coisas já estavam neste ponto. Não só se recorria aos decretos presidenciais para
governar contra o Parlamento, como se provocavam eleições para prevenir que o Parlamento
pudesse tomar qualquer atitude contra o Governo. Era já uma situação semi-ditatorial que o
von Papen tenta transformar em ditadura, curiosamente com o nome de “Estado Novo” (Neuer
Staat). Aliás com todo um projecto corporativo de representação que, por sinal, é
contemporâneo do projecto de Constituição do Estado Novo português, apresentado por
Salazar. Não é uma cópia, mas havia uma circulação internacional de ideias, havia tendências
gerais e até fórmulas, como Estado Novo, que são idênticas.
184

Simplesmente esta ditadura, este Estado Novo, não tinha bases em que se apoiar, e é aí que o
próprio Ministro da Defesa, o general Schleicher, um homem que era um grande intriguista
político, que estabelecia a relação entre o exército e os governos e que tinha sido ele próprio o
“criador” do Governo de von Papen, é ele mesmo quem lhe tira o tapete. E faz realizar um
exercício militar, no qual se demonstra que, se a tal ditadura fosse instaurada, suscitava
naturalmente reacções da esquerda e dos nazis, e que o Exército não estava em condições de
conter essa soma de oposições.
Schleicher vai então, em Dezembro de 1932, ganhar o Governo. Convence de facto
Hindenburg a demitir von Papen e a nomeá-lo a ele como chanceler, com a ideia de que
conseguiria atrair um sector dos nazis (aquilo a que se pode chamar a esquerda nazi, com o já
mencionado Gregor Strasser), juntá-los com os sindicatos socialistas que também estavam cada
vez mais independentes do SPD e apoiavam esta ideia, porque a viam como uma alternativa a
Hitler.
Portanto a tentativa de Schleicher é forçar o apoio dos nazis, ou de uma parte deles, e também
dos sindicatos. Aliás, ele chegou a ter um projecto de política económica que era de certo
modo mais favorável aos trabalhadores, na medida em que previa investimentos do Estado para
absorver o desemprego. Mas continuava a ser um projecto ditatorial.
Mas também esta tentativa se revelou fantasiosa, utópica, não tinha apoio suficiente, tanto mais
que os meios dirigentes da economia não acharam graça nenhuma à ideia de associar os
sindicatos à governação. Pelo contrário, o que eles queriam era aproveitar a situação de crise
para acabar com os sindicatos. E aquilo por que eles se interessavam cada vez mais era por
uma integração do nazismo no governo.
Nesta situação foram decisivas duas coisas. Já anteriormente, em Janeiro de 1932, Hitler tivera
um encontro com alguns grandes industriais, no Clube dos Industriais de Duesseldorf, onde
explanou o seu programa para uma Nova Alemanha que consistia essencialmente na liquidação
do sistema de partidos, na liquidação dos sindicatos, «a libertação da Alemanha do marxismo»,
como ele dizia, no repúdio do tratado de Versalhes e na preparação militar da Alemanha para a
conquista do “espaço vital”.
Em Novembro de 1932 há uma nova iniciativa de alguns industriais - é o “memorando dos
industriais”, subscrito pelo ex-Presidente do Banco Nacional, e outros, como o referido
Thyssen, que propõem ao Presidente da República a integração do NSDAP no Governo e a
nomeação de Hitler como Chanceler.
185

Entretanto, von Papen, que tinha ficado com dor de cotovelo por se ver ultrapassado pelo
General Schleicher, seu ministro, vai conspirar com Hitler e acaba por acordar com ele - numa
série de reuniões que começam, aliás, na residência de Colónia de um grande banqueiro
alemão, que patrocina o entendimento - que Hitler será chefe do Governo sob condição de
Papen ser vice primeiro-ministro. O líder do partido nacional-alemão, Hugenberg, seria o
Ministro da Economia, um chefe militar o Ministro da Guerra e os nazis teriam, além de Hitler,
apenas dois ministros no Governo.
Os bons contactos de von Papen junto do Presidente Hindenburg, através do filho deste,
acabaram por convencer o Hindenburg a abandonar as suas reservas iniciais e a nomear Hitler
como chefe de um governo de coligação, que toma posse ao fim da manhã de 30 de Janeiro de
1933.
Simplesmente o movimento nazi tinha o seu plano próprio que era, como o próprio Hitler tinha
explicado, o monopólio do poder.
E, a partir dessa posição, explorando a mobilização das SA, que agora são não só legais, mas
são transformadas numa força auxiliar de polícia, logo a partir de 30 de Janeiro de 1933
desencadeia-se uma vaga terrorista, ao mesmo tempo que Hitler obtém de Hindenburg a
convocação de eleições, com o objectivo de obter para o NSDAP a maioria absoluta e
consagrar o monopólio do poder.
Na noite de 27-28 de Fevereiro dá-se o incêndio do Reichstag (o edifício do Parlamento),
provavelmente desencadeado pelos próprios nazis, mas que é apresentado como sinal de uma
revolução comunista em preparação. Com este pretexto, é publicado um “decreto de protecção
do povo e do Estado”, com base no qual são criados os primeiros campos de concentração e
presos cerca de uma dezena de milhares de comunistas, socialistas e outros opositores de
esquerda. É neste quadro de supressão das liberdades políticas que as eleições têm lugar mas,
mesmo assim, não produziram os 50% de votos nazis que Hitler ambicionava.
Porém, com a anulação dos votos do KPD, os comunistas foram proibidos de entrar sequer no
Parlamento, portanto dessa maneira já foram obtidos os 50%. E pouco depois é feita votar uma
lei de outorga dos plenos poderes a Hitler. Assim termina a República de Weimar e se entra
numa ditadura totalitária. A morte, um ano depois, de Hindenburg, permitirá a Hitler acumular
os poderes de chanceler e de chefe do partido único (entretanto todos os restantes partidos
tinham sido proibidos ou levados a dissolver-se) com os de Presidente. Passa então, de
“Fuehrer” do partido, a “Fuehrer do povo alemão”. A Constituição de Weimar nunca foi
186

formalmente abolida. Deixou de ser reconhecida e os próprios tribunais vieram a consagrar a


fórmula segundo a qual a palavra do Fuhrer é lei. Aquilo que Hitler dizia nos seus discursos ou
comunicava por qualquer modo passava a ser lei.

O governo de Hitler, a seguir à tomada de posse, 30.1.1933. Da esquerda para a direita


sentados Hermann Goering, Adolf Hitler e Franz von Papen, à direita de pé Alfred
Hugenberg, chefe do DNVP (partido nacional-alemão).
187

Lição 19: As relações internacionais após Locarno e as origens da II Guerra


mundial47.

Vamos hoje falar sobre as origens da segunda guerra mundial. Já vimos anteriormente
que os primeiros anos vinte foram marcados por tensões graves nas relações
internacionais, nomeadamente pelo desenvolvimento na Alemanha de um ambiente de
nacionalismo revanchista. Foi neste ambiente que Hitler se afirmou como dirigente
político. Um primeiro culminar das tensões relacionadas com a derrota na guerra
ocorreu, em 1923, com a ocupação do Ruhr e a resistência na Alemanha a essa
ocupação.

De uma maneira que pode parecer inexplicável, pela rapidez com que a mudança se deu,
os anos imediatamente seguintes foram caracterizados por um ambiente de pacificação.
A agressividade e os rancores do princípio da década de vinte deram lugar a uma certa
crença de que a paz estava garantida duradouramente. Essa alteração teve fundamento
principalmente na mudança das condições económicas, na superação da crise aguda do
pós-guerra e das ameaças revolucionárias, com as tentativas de revolução vencidas e a
Rússia remetida para o isolamento. Entrou-se naquilo que alguns historiadores chamam
Restauração, um período marcado pela convicção de que, de algum modo, se iria
regressar à normalidade perdida em 1914. O certo é que a primeira Guerra Mundial fora
um choque e uma ruptura brutal. É óbvio que nos anos vinte não se recupera a belle
époque mas, para alguns, chegou a existir essa ilusão.
No que diz respeito aos problemas das relações internacionais, a normalização foi
conseguida através da reconstituição económica da Alemanha, com o famoso Plano
Dawes, e logo a seguir com a conferência e o tratado de Locarno, que garantiu como
permanentes as fronteiras ocidentais da Alemanha com a França e a Bélgica tais como
estavam no Tratado de Versalhes, garantia essa patrocinada pela Grã-Bretanha e pela
Itália. Esta conferência inaugurou um período de ambiente pacífico. O ministro dos
Negócios Estrangeiros francês, Aristide Briand, ganhou grande popularidade. É neste
espírito que se insere o pacifismo e a iniciativa do chamado pacto Briand-Kellogg,

47
Aula do dia 17 de Dezembro de 2004.Transcrição da lição pelo aluno Rui Lopes, revista e
corrigida pelo docente.
188

negociado entre o ministro dos Negócios Estrangeiros francês e o Secretário de Estado


americano e que lhes valeu em conjunto o Prémio Nobel da Paz. Começou por ser um
projecto de acordo entre os dois países, com que Briand pretendia que os EUA
garantissem a segurança da França, mas os Americanos, que cultivavam o
isolacionismo, não quiseram comprometer-se bilateralmente e preferiram que o acordo
se transformasse numa declaração aberta à assinatura de todos os países. A ideia central
era a renúncia definitiva ao uso da força nas relações internacionais, excepto como
sanção pelo desrespeito do Pacto da SDN ou do Tratado de Locarno. Quase todos os
Estados do mundo, incluindo a URSS, a China e o Japão, assinaram, em 1928, o que
ficou oficialmente designado por tratado de Paris. Em 1927 abriram em Genebra os
trabalhos preparatórios da Conferência do Desarmamento, conferência que levou 5 anos
até formalmente reunir e, quando finalmente reuniu, não deu resultado nenhum. No
entanto, os próprios trabalhos de preparação deram lugar à apresentação de propostas e,
nesse sentido, tiveram algum interesse. A União Soviética participou na conferência e
tentou apresentar uma proposta de desarmamento geral mas, como essa não pegou,
apresentou uma segunda proposta, curiosa, a de que cada exército não pudesse ter como
armamento senão aquele que cada soldado individualmente podia transportar.

Estas propostas não tiveram nenhuma consequência prática e entretanto, a partir de


1929, o ambiente mudou, por várias razões. Em primeiro lugar porque, com a eclosão
da crise económica mundial, os países tenderam a adoptar políticas proteccionistas e
autárcicas. Isto é, numa situação em que as indústrias nacionais estavam em crise,
defendiam-se da importação de produtos estrangeiros, para proteger o trabalho e o
mercado nacionais. Além isso, alguns aproveitam para uma política agressiva de
exportações (dumping). As relações económicas tornam-se mais difíceis. A relação
entre livre-câmbio e paz, que constituía um dos pilares do quadro ideológico do pós-
guerra expresso por Wilson, foi directamente posta em causa. Foi suprimido o livre-
câmbio, pois cada um cuidava dos seus interesses, e isso tendeu naturalmente a acentuar
rivalidades, que por seu turno não se restringiram aos interesses materiais e económicos.
A multiplicação das rivalidades é natural num ambiente de dificuldades em que as
filosofias nacionalistas se exasperam, nutrindo-se do suplemento de carácter ideológico
propiciado pela crise social e pela mobilização de massas que se desencadeia,
189

nomeadamente quando esta mobilização e as correspondentes paixões são organizadas e


sustentadas por partidos fascistas, como é o caso na Alemanha do início da década de
trinta.

A Alemanha, ainda durante o primeiro governo de Brüning, vira proibida pela


Sociedade das Nações uma iniciativa com vista à melhoria da sua situação económica,
um projecto de união aduaneira com a Áustria. Este episódio acentuou as tensões
nacionalistas na Alemanha e a hostilidade às potências dominantes. Conjugou-se com a
dinâmica da ascensão nacionalista, da qual faziam parte, não apenas o partido nazi
(NSDAP), mas também outros partidos da direita conservadora, nomeadamente os
nacionalistas de Hugenberg (DNVP). A preceder a ascensão do NSDAP, já tinha
havido, em 1928, a campanha contra o plano Young. Este plano era uma actualização
do plano Dawes e visava fixar definitivamente o montante de reparações de guerra da
Alemanha, ao mesmo tempo que se definia um prazo muito largo de pagamento (estava
previsto só terminar em 1988). Deu azo a uma grande vaga de mobilização nacionalista
contra Versalhes, um dos terrenos de agitação que favoreceram o caldo de cultura e o
crescimento do nazismo. Entretanto, na Conferência de Desarmamento, a Alemanha,
ainda sob o governo de Bruening, começou a colocar a questão da paridade de direitos
em matéria de armamento, que é a princípio recusada, mas é posteriormente conseguida,
em 1932, por pressão inglesa. Os nazis não se contentaram com a paridade e, logo após
chegarem ao poder, abandonaram a Conferência do Desarmamento e a Sociedade das
Nações (Outubro de 1933). Apesar das declarações pacíficas que Hitler multiplicou nos
primeiros tempos do seu governo, na realidade iniciou logo as medidas no sentido do
rearmamento.

Em 1931, agravou-se também a situação no Oriente. O Japão era já uma potência


moderna, um país cujo ascenso económico foi perfeitamente claro desde os finais do
séc. XIX. Na Primeira Guerra Mundial, o Japão pertenceu ao conjunto dos países
vencedores e, em consequência, obteve uma série de concessões que a Alemanha
anteriormente detinha nas ilhas do Pacífico e na China. Isto motivou, na China, em
1919, uma vaga de protestos (o “movimento de 4 de Maio”) que teve importância
decisiva no desenvolvimento do movimento revolucionário e na génese do próprio
comunismo chinês. A verdade é que, apesar da revolução republicana que tinha havido
190

em 1911-12, a China dos anos seguintes foi um país em crise, vivendo uma situação de
fragmentação política. A seguir à I Guerra Mundial começou a expandir-se o
movimento nacionalista do Guomindang, que contava com o apoio dos comunistas
chineses. Seguiu-se uma guerra civil que opôs os comunistas e o Guomindang contra os
senhores da guerra, chefes político-militares que dominavam grande parte da China.
Depois de 1927, iniciou-se outra guerra civil, desta vez entre o Partido Comunista
Chinês e o Guomindang. Assim, entre o princípio dos anos vinte e 1949, a China foi
quase ininterruptamente um país em guerra civil, portanto fragilizado. Por outro lado, o
Japão era uma grande potência, em que o Imperador era considerado Deus, o
nacionalismo e o exército eram muito fortes e onde o tipo de regime político era
comparável aos fascismos europeus (embora a classificação seja discutível para muitos
historiadores). A principal diferença em relação aos regimes fascistas era a ausência de
um partido único com um papel tão importante. Mas, em termos de culto da
personalidade, neste caso do Imperador, de defesa de uma filosofia semelhante ao
corporativismo, de recusa do socialismo, da democracia e da luta de classes, era
idêntico ao fascismo. Esse regime continuou as tradições expansionistas japonesas e em
1931 ocupou a Manchúria, que pertencia à China e fazia fronteira com a União
Soviética. O Japão criou aí uma monarquia, o Manchukuo, um Estado-satélite, tendo
como chefe oficial o imperador chinês Pu Yi, que havia sido deposto em 1912, quando
tinha 5 ou 6 anos. Esta ocupação foi importante também pela ameaça que representava
sobre a União Soviética. A SDN condenou formalmente, mas não tomou medidas
práticas. Este é por vezes considerado o primeiro episódio da Segunda Guerra Mundial.
O processo de expansão japonesa teve como fase seguinte, em 1937, a invasão da
China, inserindo-se na tentativa de domínio imperial de todo o extremo-oriente, que
acabaria por conduzir à guerra com os EUA.

Outro episódio que marca a evolução para um ambiente de guerra relaciona-se com o
fascismo italiano, que durante os anos vinte esteve relativamente sossegado,
confundindo-se com outras ditaduras instauradas na época, até por ser economicamente
livre-cambista. Nos anos trinta, no entanto, perante a crise, o fascismo italiano acentuou
os traços nacionalistas e autárcicos da sua política económica. Nesse quadro, completou
a realização do projecto corporativo, que até então praticamente só existia nos livros e
191

no aspecto dos sindicatos fascistas. O corporativismo passou a assumir-se como um


novo sistema político-económico-social, tendente a superar o liberalismo e o
comunismo e associado a uma ideia de grandeza nacional e de afirmação da Itália no
mundo. A Itália era uma pequena potência colonial. No final do séc. XIX tinha-se
expandido no Corno de África, conseguindo conquistar a Eritreia e parte da Somália,
que converteu em colónias, e chegando a deter o protectorado da Abissínia. Teve porém
que se haver com uma forte resistência dos abexins e, após a histórica derrota de Adua
(1896), viu-se obrigada a renunciar ao protectorado e a reconhecer a independência da
Abissínia (Etiópia). Em 1912 conquistou a Líbia. Nos anos trinta, a Itália retomou o
projecto imperial, justamente decidindo invadir a Etiópia, o último país africano
independente (aparte a Libéria). Foi o primeiro episódio, após a Primeira Guerra
Mundial, de aberta violação das fronteiras e alteração do quadro territorial existente.
Embora fosse uma iniciativa em África e se procurasse legitimar com uma vocação
colonial, na época o colonialismo já não era aceite como uma evidência e a SDN
decretou sanções económicas contra a invasão. Estas sanções foram aplicadas com
grande timidez, porque a Inglaterra e a França quiseram sossegar a Itália o mais
possível, para esta não mudar o seu alinhamento com os vencedores de Versalhes, que
continuava a opô-la à Alemanha. As sanções, apesar da falta de severidade e de rigor, e
portanto de eficácia, foram suficientes para irritar Mussolini e para propiciar a
aproximação à Alemanha. Criou-se o famoso eixo Roma-Berlim, uma união diplomática
entre os dois Estados, sustentada na identidade ideológica dos fascismos. Hitler subira
ao poder dois anos antes, mas não tinha havido logo uma aproximação entre a Itália e a
Alemanha, em grande parte por causa da questão austríaca. O interesse alemão na
anexação da Áustria e o interesse italiano em mantê-la independente levaram, como
vimos, a um princípio de conflito, em 1934, aquando da tentativa de golpe nazi na
Áustria, que foi sustida pela mobilização de tropas italianas para a fronteira. Em 1935
houve ainda uma crise, determinada pela reintrodução na Alemanha do serviço militar
obrigatório. Esta violação do tratado de Versalhes conduziu a uma das poucas
iniciativas, por parte dos Aliados, de contrariar o rearmamento alemão: o encontro, na
cidade italiana de Stresa, entre os chefes de governo inglês, francês e italiano. Chegou-
se a falar numa frente de Stresa, no sentido da oposição à Alemanha nazi, mas a
iniciativa não teve continuidade.
192

Outro aspecto essencial das relações internacionais dos anos trinta é o que se prende
com a União Soviética. O contexto do pós-guerra foi marcado essencialmente pela
hostilidade das potências vencedoras em relação à URSS, ilustrada pela intervenção
destas na guerra civil russa, pela marginalização da URSS da conferência de Versalhes
e pela formação do chamado cordão sanitário, quer dizer, o apoio ao anticomunismo e
antisovietismo das potências limítrofes da União Soviética, desde os Países Bálticos à
Polónia e à Roménia. Também as tentativas soviéticas, no período da NEP, de incentivo
às relações económicas com os países ocidentais tiveram muito pouca receptividade.
Mesmo assim, desde 1924 a União Soviética conseguiu estabelecer relações
diplomáticas com a maior parte dos países, e finalmente até com os EUA, em 1933.
Com a entrada nos Planos Quinquenais, a partir de 1929, período que correspondeu à
grande crise económica mundial no ocidente, as clivagens entre os países capitalistas e a
URSS acentuaram-se ainda mais. Todo este período foi marcado por uma ideologia de
contraposição entre o socialismo e o capitalismo. A propaganda comunista acentuava o
contraste entre o desenvolvimento soviético e a crise no Ocidente, apontada como um
sintoma do declínio do capitalismo.
Embora o peso do Partido Comunista soviético fosse decisivo na Internacional
Comunista, é preciso distinguir a política externa da URSS da política do Comintern.
Muitos autores referem-se à política dos comunistas alemães como tendo favorecido a
ascensão do nazismo. A apresentação da social-democracia como “social-fascismo”, por
exemplo, reflectiria a posição comunista perante as tendências de evolução política do
mundo ocidental, que seria a do “quanto pior, melhor”. Este retrato, no entanto, é
caricatural. A verdade é que o problema do fascismo foi desde bastante cedo
equacionado pelos partidos comunistas e nas publicações e debates da Internacional
Comunista como uma séria ameaça para o movimento operário. Em particular, a partir
de 1932, mesmo no quadro da política de “classe contra classe” e da crítica do “social-
fascismo”, houve uma série de iniciativas antifascistas impulsionadas por Partidos
Comunistas, quer no interior dos vários países, quer a nível internacional. Na
Alemanha, em 1932, foi criado um movimento chamado Acção Antifascista. No mesmo
ano, foi organizado o Congresso Mundial de Amesterdão contra a Guerra, iniciativa
essencialmente dos partidos comunistas e que juntou uma série de figuras influentes da
intelectualidade de vários países, como Albert Einstein, os escritores Henri Barbusse,
193

Máximo Gorki, Heinrich Mann, John dos Passos, Romain Rolland. Aproveitando uma
certa simpatia da intelectualidade para com a União Soviética, procurou-se uma
mobilização suprapartidária contra o fascismo e a guerra. É no entanto verdade que
houve uma grave subestimação, por parte do movimento comunista e da URSS, do
problema do fascismo, por várias razões. Estava-se numa época em que reinava a
convicção de que a crise conduziria à revolução, de que as soluções intermediárias,
como a social-democracia, constituíam um obstáculo no caminho da revolução social e
de que a vitória dos fascismos seria transitória, pois a influência do fascismo baseava-se
na ilusão e na mistificação, era uma versão exasperada mas pervertida do conflito
social, que, uma vez ultrapassada, conduziria à solução revolucionária socialista.
Há diferenças entre este quadro de pensamento da Internacional Comunista e a política
da União Soviética. Embora a URSS também não aceitasse com leviandade o
renascimento dos nacionalismos, e em particular a agressividade do nacionalismo
alemão, uma boa parte da sua política tinha-se desde sempre baseado na exploração das
contradições do mundo capitalista, concretamente entre os vencedores e os vencidos da
Primeira Guerra Mundial. Nesse sentido, ao longo dos anos vinte, a URSS teve relações
privilegiadas com a Alemanha, até no domínio militar. Houve uma série de acções e
experiências, proibidas pelo Tratado de Versalhes, que o exército alemão conseguiu
realizar através da cooperação com o exército soviético. Na política soviética havia uma
preocupação clara de distinção entre os aspectos ideológico-políticos e as relações de
Estado – a URSS teve durante anos, por exemplo, boas relações com a Itália, apesar do
regime fascista. Depois da chegada ao poder de Hitler, houve também um discurso de
Stalin exprimindo essa posição. No entanto, existia obviamente uma preocupação com
as potenciais dinâmicas de expansionismo militar e com o fanatismo anticomunista
nazi, expresso no Mein Kampf. Consequentemente, desde as primeiras iniciativas
alemãs de rearmamento, após o abandono pela Alemanha da Sociedade das Nações,
delineou-se na política soviética, sob a direcção do Comissário do Povo dos Negócios
Estrangeiros, Maxim Litvinov, uma nova política, a chamada segurança colectiva. Esta
política assentava na ideia de que era preciso evitar uma nova guerra mundial e que por
conseguinte se devia distinguir entre as potências que contribuíam para a estabilidade
das relações internacionais e aquelas que visavam perturbar essa estabilidade. Logo
após a Alemanha abandonar a SDN, a URSS deu o primeiro passo nesta política,
194

ingressando, em 1934, na Sociedade das Nações. Deixando de lado a sua anterior


hostilidade ao sistema de Versalhes, a União Soviética afirmou o princípio do respeito
pelos tratados em vigor, defendendo que as alterações aos tratados deviam ser feitas no
quadro da SDN e que as violações dos tratados deviam ser punidas por sanções
adoptadas colectivamente. Esta política levou a uma aproximação progressiva entre a
Rússia e a França, aproximação que tinha raízes históricas. Foram concluídos uma série
de acordos, inclusive, em 1935, um pacto de defesa, tendo Stalin então expresso o seu
apoio ao direito da França de se rearmar e defender (declaração que, aliás, causou então
uma certa perturbação nas fileiras do PCF, por ir ao arrepio da tradição anti-militarista
dos comunistas).
Nos anos 1933/34, alguns outros acontecimentos contribuíram para esta aproximação da
URSS às potências ocidentais e, simultaneamente, para uma alteração das relações entre
socialistas e comunistas. Logo após a chegada ao poder de Hitler, houve uma primeira
troca de mensagens entre os dirigentes da Internacional Comunista e os da Internacional
Socialista, que no imediato não teve continuidade. Pouco depois, deu-se o episódio do
incêndio do Reichstag, provavelmente desencadeado pelos próprios nazis, e que deu
origem à primeira grande vaga de repressão, na Alemanha, sobre os comunistas e alguns
socialistas. O responsável da Internacional Comunista na Alemanha, o búlgaro Georgi
Dimitrov, foi preso, julgado e finalmente absolvido. A sua intervenção em tribunal teve
um grande impacto mundial e notava-se já que o teor do seu discurso era no sentido da
aproximação aos socialistas e da unidade do movimento operário. Depois da sua
libertação (conseguida pela intervenção diplomática da URSS, após a absolvição),
Dimitrov tornou-se o novo secretário-geral da Internacional Comunista. Em 1934, uma
série de acontecimentos na política interna de vários países tiveram repercussões
internacionais e acentuaram o espírito de união antifascista. Em Fevereiro, na Áustria, o
governo de Dollfuss decidiu demitir a administração socialista de Viena e dissolver a
milícia do Schutzbund, pela força. Houve tiroteio de artilharia sobre sedes sindicais e
violentos combates de rua, que fizeram centenas de vítimas. Ainda em Fevereiro de
1934, em França, registou-se uma tentativa de assalto ao Parlamento pelo grupo de
extrema-direita dos Croix de Feu, o equivalente francês dos fascistas. Em resposta,
realizaram-se, pela primeira vez, uma greve geral e manifestações em que convergiram
socialistas e comunistas. Em Espanha, nas Astúrias, em Outubro do mesmo ano, houve
195

uma grande revolta dos mineiros contra a entrada no governo do partido de extrema-
direita, a CEDA (Confederação Espanhola de Direitas Autónomas).

Todos estes acontecimentos favorecem o ambiente antifascista a nível internacional.


Paralelamente, começa a dissipar-se a ilusão dos partidos comunistas e do governo
soviético quanto a uma suposta instabilidade e precariedade do regime hitleriano.
Nomeadamente, o famoso episódio da “noite das facas longas” de 30 de Junho de 1934,
durante a qual Hitler fez exterminar as SA e aproveitou para liquidar fisicamente outros
rivais e potenciais adversários políticos, deu bem a imagem da força do governo nazi.
Na Primavera de 1935 constitui-se em França o Rassemblement Populaire (depois
chamado Front Populaire, a Frente Popular), que realiza uma grande manifestação
unitária na celebração do 14 de Julho (aniversário da tomada da Bastilha, o episódio
simbólico da Revolução Francesa de 1789). A Frente Popular sustentava-se não só num
acordo entre Partido Comunista e Partido Socialista, mas também na adesão do
chamado Partido Radical, um partido pequeno-burguês de cariz laico. Em Julho-Agosto
de 1935, realiza-se o VII congresso da Internacional Comunista, que consagra as frentes
populares, como orientação para a máxima convergência de forças e partidos no sentido
do combate ao fascismo, da defesa da democracia, e mesmo de plataformas de possível
evolução dos regimes democráticos para o socialismo. Concepções do tipo “quanto pior,
melhor” e expressões como “social-fascismo” foram arredadas. A formação de
governos de Frente Popular aconteceu através de vitórias nas eleições em Espanha (cuja
Frente Popular incluía também os anarquistas), em Fevereiro de 1936, e em França, em
Maio do mesmo ano.

A Espanha vivera, desde o período da Grande Guerra, uma intensa crise social. Em
1917 houve movimentos de tipo insurreccional. Entre 1923 e 1930, dominou uma
ditadura tradicionalista conservadora, com aspectos próximos do fascismo italiano, o
governo do general Primo de Rivera. Esta ditadura entrou em crise em consequência
dos efeitos da crise económica mundial e Primo de Rivera foi forçado a demitir-se.
Pouco depois, em resultado das eleições autárquicas de 1931, que deram a vitória aos
republicanos, o próprio Rei Afonso XIII abdica. Entra-se na II República (a primeira
fora a de 1873-74). Nos dois anos seguintes, com um governo de esquerda hesitante, de
republicanos e socialistas, vive-se um período revolucionário e de avanço social, em
196

que foram tomadas algumas medidas progressistas, por exemplo o reconhecimento do


estatuto autonómico da Catalunha e o confisco dos bens da Igreja. Em 1933, a direita
ganhou as eleições e, em 1934, a CEDA, partido de extrema-direita, entra para o
governo. Foi em protesto contra isto que se desencadeou a já mencionada insurreição
dos mineiros das Astúrias, predominantemente socialistas, insurreição que foi
violentamente esmagada. Em reacção à repressão desta revolta formou-se em Espanha
uma Frente Popular, que ganhou as eleições de Fevereiro de 1936. O novo governo de
esquerda tentou não repetir os erros e hesitações do primeiro governo republicano e
iniciou algumas medidas de tipo socializante (nomeadamente a aplicação da lei de
reforma agrária, já formalmente aprovada em 1932), mas deparou-se muito cedo com
uma oposição organizada a partir do exército, que a 17 de Julho de 1936 desencadeou
um golpe de estado. Os revoltosos, chefiados pelo general Francisco Franco, embora
tenham conseguido vencer numa parte do território espanhol, não o conseguiram nas
principais cidades. Tinham a sua base em Marrocos, onde dispunham de tropas árabes
integradas no exército espanhol, mas existia o problema de as transportar para o
continente, o que só foi possível com o apoio da aviação italiana e alemã. Em Madrid e
noutras cidades espanholas a população reagiu imediatamente e o putsch transformou-se
numa guerra civil violentíssima, que se prolongou por quase três anos.

É importante destacar o apoio da retaguarda portuguesa aos franquistas durante a guerra


civil, bem como o facto de esta guerra ter sido um terreno de consolidação da aliança
dos fascismos. Para a Alemanha, a Espanha serviu também de terreno de ensaio militar,
nomeadamente no aspecto do bombardeamento de populações civis, técnica inaugurada
pelo bombardeamento da aldeia de Guernica. Do lado republicano, a defesa do governo
foi muito conturbada. Apesar da existência da Frente Popular, existiam divisões que
chegaram até a resultar em conflitos armados no seio dos republicanos. Além disso, o
campo republicano viu-se privado de apoios internacionais, com a excepção dos apoios
da URSS, do México e das Brigadas Internacionais, em cujas fileiras combateram
antifascistas de todo o mundo. Um dos factores essenciais do isolamento do governo
espanhol de Frente Popular foi a chamada “política de não intervenção”, decretada pelo
governo francês, por pressão do governo inglês. Ao contrário do que seria natural, a
França recusou apoio ao governo espanhol, o que foi fundamentado pelo primeiro-
197

ministro Léon Blum como um modo de evitar uma extensão da guerra ao território
francês, onde também havia oposições ao governo de Frente Popular. A “não-
intervenção” foi depois consagrada num acordo internacional, a que a União Soviética
também aderiu inicialmente, mas na prática significou que não havia ajuda estrangeira a
favor dos republicanos, ao mesmo tempo que continuava a intervenção alemã, italiana e
portuguesa a favor dos fascistas. As tropas franquistas conquistaram Madrid em Março
de 1939, ganhando a guerra. Este êxito do fascismo num país vizinho da França
consolidou a posição internacional do Eixo Roma-Berlim e reforçou os laços entre a
Alemanha e a Itália. Ainda em 1936, a Alemanha conclui com o Japão o Pacto
Antikomintern – dirigido contra a URSS -, a que a Itália adere no ano seguinte.

A “não-intervenção” inseria-se numa política global, particularmente característica da


Inglaterra a partir de 1935, que ficou celebrizada pela palavra appeasement
(apaziguamento). Embora o nazismo se distinguisse de qualquer outro regime
tradicional pela sua dinâmica ideológico-política expansionista, os políticos ingleses
foram bastante longe em tratar a Alemanha nazi como uma potência com direitos que
deviam ser considerados e reconhecidos. O appeasement baseava-se num sentimento
muito compreensível e muito comum na opinião política francesa e inglesa, o de que era
inconcebível poder repetir-se uma Guerra Mundial e de que tudo devia ser feito para a
evitar. O resultado foi a sucessiva concessão a Hitler das reivindicações que formulava.
Desde que Hitler inicia as violações do tratado de Versalhes, a partir de 1935, de cada
vez afirma que a alteração a obter seguidamente constitui a última das pretensões
alemãs. Nesse ano – e após o grande sucesso obtido, pelas vias legais, com o resultado
do referendo do Sarre, que reintegrou este território na Alemanha - foi anulada a
proibição do serviço militar obrigatório, sendo constituído um exército regular de
milhões de homens (em lugar dos cem mil a que o Exército profissional tinha sido
limitado pelo tratado de Versalhes). Ainda no mesmo ano, Hitler conseguiu obter da
Inglaterra um acordo naval que fixava uma proporção de um para três nas capacidades
militares-navais da Alemanha em relação à Inglaterra (em seguida, também este limite é
ignorado). Em 1936, foi ocupada militarmente a Renânia, em violação aberta das
disposições sobre desmilitarização dessa região, sem qualquer reacção por parte dos
Aliados. Em 1938, as coisas foram ainda mais longe, com a anexação da Áustria. Como
198

vimos, já em 1934 a Alemanha tinha tentado suscitar uma tomada de poder pelos nazis
austríacos, que fracassou. Em 1938, utilizando também a agitação nazi local, Hitler
forçou a presença dos nazis no governo da Áustria e, a seguir, a demissão do primeiro-
ministro, Schuschnigg, quando este propôs que a independência da Áustria fosse
referendada. Em Março de 1938, as tropas alemãs invadiram a Áustria. Foi o chamado
Anschluss – a junção da Áustria à Alemanha. Foi uma conquista pela força, mas contou
com o apoio de grande parte da população austríaca. Logo a seguir, o governo nazi
suscita uma nova questão, a dos limites das fronteiras checas e da presença da
população germânica em território checo, exigindo a integração dos Sudetas na
Alemanha. Tratar-se-ia, portanto, de desfazer a Checoslováquia. Perante isto, os Checos
prepararam-se para resistir. A própria União Soviética exprimiu a disposição de intervir,
caso a França também interviesse (ao abrigo do tratado de segurança que a
Checoslováquia tinha concluído com a França e a URSS), mas a França recusou. Em
lugar disso, a França acede à proposta de Mussolini, a que o governo inglês também
adere imediatamente, de uma conferência internacional para a resolução da questão
checa. Começou por haver um encontro do primeiro-ministro inglês Neville
Chamberlain com Hitler, na casa de campo do último, em Berchtesgaden. Passados
alguns dias, reuniram então em Munique os quatro chefes de governo: Chamberlain, o
francês Edouard Daladier, Mussolini e Hitler. O resultado desta reunião traduziu-se
numa cedência completa às reivindicações alemãs sobre a questão dos Sudetas. A
Checoslováquia foi excluída da conferência, e a União Soviética nem sequer foi
informada. Em complemento da conferência, a França e a Grã-Bretanha concluem
pactos de não-agressão com a Alemanha.

Uma larga parte do território checo foi integrada na Alemanha, mas a Checoslováquia –
que, com a perda dos Sudetas, perdera também as suas fortificações e defesas naturais a
oeste - foi ainda obrigada a entregar outras partes do seu território, nomeadamente uma
parte reclamada pela Hungria, aliada da Alemanha. Durante alguns meses, subsistiu um
resto de Checoslováquia, mas entretanto a Eslováquia torna-se independente, com um
governo de extrema-direita aliado de Hitler, e em Março de 1939 a Alemanha pura e
simplesmente invade o que restava da Checoslováquia, transformando-a no
“protectorado da Boémia-Morávia”. Neste caso, já não havia nenhuma espécie de
199

justificação de tipo nacional, era um puro acto de expansionismo. Em Abril, a


Alemanha anexa a cidade portuária de Memel, tirada à Lituânia, ao mesmo tempo que a
Itália conquista a Albânia. Em Maio, as duas potências celebram o Pacto de Aço, um
tratado em que se exaltava a comunidade ideológica entre os dois Estados fascistas e se
estabelecia que, no caso de entrada em guerra de um deles, o outro interviria
imediatamente em seu auxílio. Para a Alemanha, era já a preparação da guerra a curto
prazo.

Em seguida, a Alemanha suscita a questão do porto de Dantzig e da existência do


corredor polaco. Nesta situação, os governos francês e inglês, que se tinham visto
ridicularizados e humilhados pelo facto de, depois do acordo de Munique, a Alemanha
ter invadido a Checoslováquia, proclamaram-se garantes da independência da Polónia,
afirmando que não admitiam mais actos de agressão. Pouco depois, declararam que
apenas garantiam a independência da Polónia, mas não necessariamente a sua
integridade, o que poderia abrir caminho para um novo compromisso. De qualquer
modo, perante a iminência de um novo avanço alemão, a França e a Inglaterra acedem
finalmente à proposta soviética de negociações para um pacto de defesa. Mas
entretanto, perante as cedências ocidentais a Hitler, a própria política soviética tinha
sofrido uma reorientação, com a demissão de Litvinov do posto de Comissário dos
Negócios Estrangeiros e a sua substituição por Molotov. As negociações com a França e
a Inglaterra iniciaram-se, mas as reivindicações soviéticas quanto ao direito de entrada
das suas tropas na Polónia e na Roménia, indispensável para poder dar combate eficaz a
um avanço alemão para leste desde o seu início, não foram aceites. Isto dificultou
tremendamente as negociações, que de resto foram sempre encaradas por ingleses e
franceses com displiscência (a missão franco-inglesa às negociações em Moscovo
deslocava-se de barco e era composta por oficiais de patente intermédia, sem poderes
para resolver.)

Em consequência, os soviéticos jogam a carta alternativa, que era a que lhes permitia
manterem-se por algum tempo fora de uma guerra mundial vista já como inevitável e
para que se não achavam preparados. A 23 de Agosto de 1939, concluem o pacto de
não-agressão germano-soviético, que ficou também conhecido como pacto Molotov-
Ribbentrop, do nome dos ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois Estados, que o
200

assinaram. Um protocolo secreto anexo permitia à URSS ocupar uma parte da Polónia
oriental, recuperando os territórios perdidos na guerra russo-polaca de 1920, e à
Alemanha ocupar o resto da Polónia. Incluía ainda negociações sobre os Países
Bálticos, que acabaram por ser anexados pela URSS, em 1940, tal como aconteceu à
Bessarábia, retirada à Roménia.

Assim, sem ter de se preocupar com a URSS, a 1 de Setembro a Alemanha invade a


Polónia. Na sequência desta invasão, a Inglaterra e a França declaram guerra à
Alemanha.

Foi o começo da II Guerra Mundial.


201

Lição 20: A Segunda Guerra Mundial

A 2ª Guerra Mundial é a origem próxima do mundo contemporâneo. Sem dúvida


um dos maiores acontecimentos da história da humanidade, a 2ª Guerra Mundial foi a
maior guerra e a mais destrutiva, envolvendo 72 Estados, 110 milhões de combatentes e
mais de 50 milhões de vítimas mortais. Por estas características, e nomeadamente
porque na sua conclusão foi utilizada a bomba atómica, a 2ª Guerra Mundial é
incomparável a tudo o que anteriormente se produziu na história militar.
No entanto, a 2ª Guerra Mundial foi também em muitos aspectos, e
nomeadamente na sua eclosão, uma continuação da 1ª Guerra Mundial. Entre as duas
guerras há uma continuidade de problemas, e os protagonistas são em grande medida os
mesmos, a começar pelo próprio Hitler, que alguns autores apontam como a causa
principal da 2ª Guerra Mundial. Hitler era um combatente da 1ª Guerra e é indiscutível
que na sua psicologia a experiência da guerra foi determinante.
Como já foi visto, a eclosão da guerra deveu-se à invasão da Polónia pelas tropas
alemãs a 1 de Setembro de 1939, invasão que se situou na sequência de um processo
relativamente rápido, mas escalonado, da expansão da Alemanha nazi. Este processo de
expansão começou ainda dentro das próprias fronteiras alemãs, com a remilitarização da
Renânia, em 1936, em violação do Tratado de Versalhes, e teve a sua primeira
expressão, em termos de alargamento territorial, com a anexação da Áustria, em 1938,
seguida da anexação de uma parte da Checoslováquia. Em cada uma destas fases, o
governo de Hitler declarava que não tinha mais reivindicações, e com essa declaração
de intenções pacíficas conseguiu o consentimento da Grã-Bretanha e da França às suas
iniciativas. No entanto, as reivindicações relativas à Polónia – a anexação de Dantzig e
do corredor polaco - já tinham suscitado a oposição explícita da Inglaterra e da França,
que emitiram declarações de garantia das fronteiras polacas. Dois dias depois da invasão
da Polónia pela Wehrmacht, a 3 de Setembro de 1939, a Grã-Bretanha e a França
declaram guerra à Alemanha: é o início da 2ª Guerra Mundial.
Para criar a aparência de uma acção defensiva, a Alemanha ainda encenou um
ataque polaco, de forma a que a invasão parecesse uma retaliação alemã a esse ataque.
Organizou um destacamento de prisioneiros que, usando fardas do exército polaco,
dispararam sobre as tropas alemãs na fronteira. No seu primeiro discurso a seguir à
202

invasão, Hitler declarou que o Exército alemão tinha “ripostado”


(“zurueckgeschossen”), mas não convenceu ninguém.
Nas semanas seguintes, a ocupação da Polónia é conseguida sem grande esforço,
embora desde logo com uma violência assinalável, nomeadamente pela realização,
desde o primeiro dia, de bombardeamentos de várias cidades, nomeadamente Varsóvia.
Era a Blitzkrieg, a guerra-relâmpago. A Polónia gabava-se muito da sua cavalaria, mas
nesta guerra nada pôde fazer contra os tanques alemães e foi rapidamente derrotada. Ao
longo das 4 semanas que durou a invasão da Polónia e nos meses seguintes, a Inglaterra
e a França nada fizeram em termos de acção militar, alegando que o ataque os tinha
surpreendido e que o exército francês não estava preparado para reagir imediatamente.
Entrou-se na drôle de guerre, uma situação de guerra declarada sem acção militar
efectiva.
O dispositivo militar francês era essencialmente defensivo e baseava-se na
famosa Linha Maginot, um conjunto de fortificações e barreiras que atravessava uma
grande extensão da fronteira da França com a Alemanha, deixando a descoberto apenas
a zona das Ardenas, considerada intransitável para os tanques devido ao tipo de
vegetação aí existente.
Na verdade, esta passividade da França e da Inglaterra não é dissociável de uma
continuação em novos moldes daquilo que tinha sido a política anglo-francesa do
appeasement. Apesar da declaração de guerra, a ideia de que seria ainda possível
negociar um compromisso continuou presente na orientação destes governos.
Em conformidade com o pacto germano-soviético, e depois da entrada dos
Alemães na Polónia, a URSS ocupou a parte da Polónia a leste do Vístula, que lhe tinha
sido atribuída nas cláusulas secretas do pacto, e na sequência ocupou também a Estónia,
a Letónia e a Lituânia, que inicialmente não estava atribuída à União Soviética, mas que
acabou por ficar na sua esfera. Por outro lado, a URSS pretendia, com vista a reforçar as
capacidades defensivas na periferia de Leninegrado, que a Finlândia lhe cedesse bases
militares no seu território. Perante a recusa finlandesa, desencadeia um ataque militar e
chega a promover a formação de um “governo soviético” da Finlândia, mas defronta-se
com uma forte resistência. Finalmente, em Março de 1940, a Finlândia concorda em
ceder uma parte dos territórios da Carélia finlandesa.
203

Até Abril de 1940, não houve outros acontecimentos militares significativos.


Realizada a ocupação da Polónia, os Alemães puderam tranquilamente transferir tropas
para a sua fronteira ocidental, preparando o ataque a ocidente.
A política inglesa do appeasement era cada vez mais posta em causa. A oposição
exprimia-se por um lado nas fileiras do Partido Trabalhista, porque as esquerdas eram
predominantemente contra o appeasement, ao passo que as forças conservadoras eram
maioritariamente a favor. Mas o mais decisivo na mudança da política inglesa é o facto
de um dos seus grandes opositores ser Winston Churchill (já desde Setembro ministro
da Marinha), velho político conservador que desde muito cedo tinha denunciado os
projectos expansionistas de Hitler e era um crítico implacável da política de Munique.
Em 1940, o governo de Chamberlain foi finalmente posto em xeque no Parlamento e,
em Maio, acabou por se formar um novo governo de união nacional, presidido por
Churchill.
Contando com que a declaração de guerra inglesa começasse a ter eficácia
prática, a Alemanha, depois da ocupação da Polónia, decidiu-se em Abril de 1940 por
invadir a Dinamarca e a Noruega, que representavam posições estratégicas muito
importantes, nomeadamente devido ao acesso ao minério de ferro sueco, vital para a
Alemanha e para o seu plano de guerra.
Estas foram as primeiras fases das ofensivas alemãs na Europa: a Polónia em
Setembro de 1939, a Dinamarca e a Noruega de Abril a Junho de 1940. A ocupação da
Dinamarca não deparou com resistência. A Noruega capitulou em Junho, depois da
saída das tropas aliadas. Na Dinamarca, os Alemães seguiram uma política muito
flexível, e até 1943 deixaram em funções o governo parlamentar. Na Noruega,
colocaram no poder um líder fascista nativo, Vidkun Quisling (a palavra “quisling” foi
depois usada, em sentido pejorativo, como nome comum e símbolo de traição nacional e
colaboração com o ocupante).
Dando execução ao seu projecto de conquista europeia, a Alemanha, depois de
ocupar a Dinamarca e Noruega, ocupou a Holanda, a Bélgica e o Luxemburgo. Seguiu-
se, em Maio de 1940, a invasão da França, que tornou ridícula a Linha Maginot. A
Linha Maginot foi pura e simplesmente evitada pelo avanço de blindados e infantaria
pelas Ardenas, uma operação que parecia tecnicamente difícil, mas que foi feita
rapidamente e perante a qual o exército francês se demonstrou incapaz de reagir. Esta
204

incapacidade tinha uma história antiga na própria sociedade francesa, no facto de, desde
a experiência da Frente Popular, o lema das direitas francesas ser a frase “Mieux vaut
Hitler que Blum” (“Mais vale Hitler do que Blum”; Léon Blum tinha sido o líder
socialista e chefe do governo da Frente Popular em 1936-38). Isto reflectiu-se ao nível
da direcção militar e explica em parte a rápida derrota francesa
A Inglaterra ainda enviou tropas para França para ajudarem na defesa mas, com
a derrota, essas tropas foram evacuadas através do porto de Dunquerque. É para muitos
intrigante o facto das tropas inglesas terem regressado – é certo que muitas foram
capturadas ou alvo de bombardeamentos, mas uma grande parte conseguiu regressar, o
que teria sido possível os Alemães impedirem. A explicação parece ser a de que isto era
um sinal à Inglaterra de que, se se portasse bem, não seria hostilizada. Ou seja, seria
uma tentativa por parte de Hitler de prosseguir durante mais algum tempo o
appeasement em relação à Inglaterra, mas isso, com o novo governo de Churchill, não
foi possível.
Em França, a maioria do Parlamento decidiu a capitulação e o governo Paul
Reynaud, que era favorável à continuação da resistência, demitiu-se. A Assembleia, por
maioria, depositou plenos poderes nas mãos do Marechal Pétain, considerado um herói
da Primeira Guerra Mundial e favorável à capitulação. Pétain tornou-se no chefe do
governo e do Estado e presidiu ao armistício. O armistício foi assinado, a 14 de Junho,
na mesma carruagem do comboio e no mesmo lugar (Rethondes) onde, a 11 de
Novembro de 1918, tinha sido assinada a capitulação pela Alemanha. Isto significa que
houve uma vontade deliberada de Hitler e dos Alemães de marcarem simbolicamente a
revanche em relação à derrota de 1918.
O acordo que a seguir se estabeleceu, ainda em Junho de 1940, entre o novo
governo francês e os ocupantes, previa a divisão da França em duas zonas, uma zona de
ocupação directa das autoridades alemãs, que incluía a capital Paris, e uma zona sul em
que a França se mantinha como Estado formalmente independente, cuja capital era
Vichy. Este entendimento durou até fins de 1942, depois as tropas alemãs ocuparam
todo o território francês, mas até 1944 continuou a existir o regime de Vichy, com Pétain
como chefe. Era com Vichy que os Estados estrangeiros que não estavam em guerra
tinham relações – é o caso dos Estados Unidos, que nesta altura não estavam envolvidos
205

na Guerra, mas que mesmo depois da sua entrada na Guerra, em Dezembro de 1941,
continuaram a manter relações com este governo.

Numa primeira fase, o governo de Vichy foi aceite por muita gente em França,
inclusivamente por muitas pessoas que mais tarde seriam opositores e resistentes ao
nazismo, como o jovem político e futuro líder socialista François Mitterand, Presidente
da República em tempos recentes (1981-95). No entanto, houve quem desde o primeiro
momento iniciasse a resistência à ocupação alemã. A figura que ficou historicamente
mais conhecida como símbolo dessa resistência foi o jovem general Charles de Gaulle,
que conseguiu no último momento evadir-se para Inglaterra e, a partir da BBC de
Londres, emitir, no dia 18 de Junho de 1940, um apelo à resistência dos Franceses. A
resistência não teve nos primeiros meses bases efectivas mas, no decorrer da ocupação,
De Gaulle impor-se-ia como efectivo chefe da Resistência, inclusivamente da
resistência armada no interior da França, protagonizada principalmente pelos
comunistas.

Em menos de um ano passado sobre o princípio da guerra, a Alemanha nazi


dominava a Europa. A rapidez com que as operações foram realizadas impressionou
toda a gente e nesse sentido reforçou as bases de Hitler e do nazismo na população
alemã e na própria elite, porque nomeadamente entre os militares tinha havido até à
altura de Munique oposições aos planos de Hitler e ao desencadear da guerra, isto
mesmo ao nível das altas esferas. Mas a rapidez desta ocupação europeia, simbolizada
sobretudo pela facilidade da vitória sobre a França, que tinha o maior exército europeu,
parecia confirmar inteiramente a justeza das convicções e das iniciativas de Hitler.
A Espanha era dominada por um regime simpatizante da Alemanha nazi e ainda
em 1940, depois da ocupação da França, Hitler e Franco encontraram-se na fronteira,
em Hendaia, para discutir as condições da entrada da Espanha na guerra ao lado da
Alemanha. Mas a conversação não resultou, porque o General Franco tinha
reivindicações relativas ao norte de África que Hitler não queria satisfazer e o controlo
directo da Península Ibérica, do ponto de vista estratégico, nesta fase, em que os Estados
Unidos continuavam fora da guerra, não parecia essencial. De qualquer maneira, a
Espanha era um regime simpatizante e claramente colaborante, como aliás o próprio
regime português, que tinha relações económicas intensas com a Alemanha, embora
206

mais condicionado pela Aliança Inglesa. A Alemanha contava ainda com aliados como
a Hungria de Horthy, a Eslováquia, a Roménia a Bulgária, também governados por
regimes ditatoriais.
Logo a seguir à invasão da França, a Itália, que até então tinha estado na posição
de neutral, declarou a sua entrada na Guerra. A Itália concluíra em 1939 o Pacto de Aço
com a Alemanha, que previa a entrada automática em guerra de cada um dos aliados
quando o outro estivesse nela envolvido, mas a previsão italiana era de a guerra só
começar em 1943. A Itália não estava preparada para entrar mais cedo, mas em 1940
convenceu-se de que ia simplesmente partilhar os benefícios da vitória e que o triunfo
de Hitler na Europa era um facto definitivo. A Itália tinha ambições e objectivos
específicos e utilizou a situação para procurar afirmar-se na região balcânica e em
África, consolidando as posições que já tinha na Etiópia e na Líbia e alargando-as.
Pouco depois da entrada em guerra, a Itália desencadeou um ataque à Somália inglesa e
ao Egipto. Começaram assim as hostilidades em África, que correram bastante mal às
tropas italianas e criaram problemas para a Alemanha, assim forçada a transferir tropas
em apoio da Itália para África, que acabou por ser um dos principais palcos da Segunda
Guerra Mundial. A Itália, ainda em 1940, desencadeou um ataque à Grécia, onde
também se deparou com forte resistência, o que levou a Alemanha a invadir a
Jugoslávia (onde entretanto se dera um golpe de Estado pró-aliado) e a Grécia, em
socorro da Itália.
Mas a prioridade militar alemã, na segunda metade de 1940, era a conquista e
ocupação da Inglaterra. Com a URSS neutralizada pelo pacto, com a Suíça e a Suécia
neutrais e com a Península Ibérica numa posição simpatizante, a única coisa que faltava,
para a Alemanha conquistar a Europa, era submeter a Inglaterra e pôr fim ao domínio
dos mares que a frota inglesa continuava a ter. Foi então concebida uma operação de
desembarque em Inglaterra. chamada de “Leão Marinho” (Seeloewe), mas que se
verificou não ser possível, justamente porque a superioridade dos meios navais ingleses
a inviabilizava. Em consequência disso, a Alemanha recorreu a outro instrumento de
pressão que já tinha sido usado em Espanha, o bombardeamento de populações civis.
Durante várias semanas foram bombardeados sistematicamente locais de Londres,
Coventry e outras cidades inglesas. Também este combate acabou por se revelar mais
difícil do que o previsto. Teve muita importância nisso, por um lado, o facto de a
207

população civil, apesar da catástrofe que os bombardeamentos eram, continuar a resistir,


e por outro lado a invenção do radar, que permitia detectar a aproximação dos aviões
alemães e fazer actuar os caças e a artilharia anti-aérea, e portanto infligir aos atacantes
um número de baixas inicialmente não esperado.
A ocupação da Europa teve como pressuposto que, enquanto desenvolvia as suas
operações no Ocidente, a Alemanha não tinha que se preocupar a Leste. Mas a natureza
do regime nazi e o seu complexo de ideias não tinha mudado com o pacto germano-
soviético. Hitler tinha um plano, uma concepção estratégica que exprimira
relativamente cedo e em termos bastante claros no Mein Kampf. Dentro desta concepção
estratégica era perfeitamente concebível, pelo menos temporariamente, uma espécie de
bipartição do mundo com o Império Britânico, pelo qual Hitler, dentro da tradição
conservadora alemã, tinha muito respeito, mas não era concebível uma coexistência a
longo prazo com a Rússia soviética. Desde o Mein Kampf que o projecto de colonização
e subjugação dos povos do leste da Europa, incluindo da Rússia, estava claramente
definido como um objectivo estratégico para o “povo sem espaço” (Volk ohne Raum)
que na definição dos nazis a Alemanha era. Isto é, dentro da visão do mundo racista que
era a do nazismo, os povos do Leste da Europa eram povos inferiores: em parte judeus
(havia no leste europeu uma proporção maior de judeus do que no ocidente), e os judeus
deviam ser dizimados e irradiados da face da Terra; mas também os eslavos eram no seu
conjunto vistos como uma espécie inferior.
Isto não significa que o projecto de aniquilação física dos judeus existisse
conscientemente e planificadamente desde o primeiro momento no espírito de Hitler
como intenção. A concretização do plano de extermínio dos judeus desencadeou-se
numa determinada fase da Segunda Guerra Mundial, depois de ultrapassados outros
projectos que chegaram a existir de deportação em massa, etc., e desenvolveu-se em
relação com a marcha da guerra. Mas a visão que Hitler tinha, em 1924, quando
escreveu o Mein Kampf, da questão judaica, já apontava para a possibilidade e a
necessidade de a longo prazo o povo judeu ser extinto. Em relação a outros povos,
nomeadamente à generalidade dos eslavos, Hitler punha-os um pouco acima dos judeus.
Não se destinavam a ser extintos, mas sim a serem usados como mão-de-obra escrava
para a colonização alemã do leste da Europa.
208

A componente propriamente ideológica nunca foi subalterna na visão do mundo


e nos projectos políticos de Hitler e a questão da destruição do comunismo, e
consequentemente da Rússia comunista, era um dos objectivos centrais. Portanto, a
invasão da Rússia era uma questão de tempo, e ambos os contraentes do pacto germano-
soviético sabiam isso. A União Soviética sabia que tinha ganho apenas algum tempo e
que Hitler não tinha desistido de invadir a URSS, simplesmente convenceu-se de que
ganhara mais tempo do que foi de facto o caso. Havia razões para isso, porque a lógica
mandava que os alemães resolvessem o problema inglês antes de qualquer iniciativa a
Leste, sobretudo tendo em conta a experiência da 1ª Guerra Mundial, em que fora
fatídico para a Alemanha não ter conseguido liquidar a França antes de iniciar a guerra
com a Rússia. Mas uma coisa é a lógica objectiva das situações, outra é o facto de a
política ser feita por protagonistas humanos com a sua psicologia pessoal, e para
percebermos o princípio da guerra a Leste é preciso ver que o Hitler de 1940 se sentia
não só como senhor da Europa ocidental, mas também como um génio guiado pela
Providência.
A convicção de genialidade tinha sido cultivada conscientemente e era de certo
modo inerente ao próprio Führerprinzip, que estruturava o Partido Nazi. A psicologia
de Hitler prestava-se a isso, e em 1940 não eram só ele e os que lhe estavam mais
próximos a estarem convencidos de que ele era um génio, mas eram também muitos
generais e aristocratas que tinham encarado o nazismo como um mal necessário e
temporário, mas que em função dos êxitos obtidos tinham renunciado às suas objecções
à liderança de Hitler. Foi neste contexto, e dispondo de meios militares inauditos e que
pouco tinham sido usados nos combates a ocidente, porque no fundo só a Inglaterra é
que tinha oferecido uma resistência efectiva, que Hitler tomou cada vez mais decisões
pessoalmente. Decidiu que, mesmo sem ter o problema da Inglaterra resolvido, era
altura de iniciar a invasão da URSS (Operação Barbarossa). Esta é fixada para meados
de Maio de 1941 e concebida como uma nova Blitzkrieg. Mas o tempo gasto na
ocupação da Jugoslávia e da Grécia atrasou o desencadear das operações, uma vez que
as tropas alemãs tiveram aí de se defrontar com uma resistência de guerrilhas, sobretudo
protagonizada pelos comunistas.
Esse envolvimento nos Balcãs e em África implicou um atraso nas operações de
invasão da Rússia que, em vez de se iniciar a 15 de Maio, se iniciou a 22 de Junho, o
209

que teve grandes consequências. Um exército de 3 600 000 homens, 2 700 aviões e
3600 tanques avançou sobre a URSS. A frente ia de Leninegrado ao Cáucaso e os
objectivos centrais eram a conquista de Leninegrado, de Moscovo e o controlo do
Cáucaso, devido à importância dos jazigos de petróleo aí situados. Tal como as acções
militares anteriores, a invasão foi realizada sem declaração de guerra prévia, estando
ainda em vigor o pacto germano-soviético.
A invasão iniciou-se com o bombardeamento dos aeroportos militares
soviéticos. A maior parte da aviação soviética, cerca de mil aviões, foram destruídos
antes de levantarem voo. Várias cidades sofreram também bombardeamentos maciços,
com o intuito de aterrorizar a população. Depois deu-se, a partir da Polónia e da
Roménia, o avanço das tropas, que de resto, na Ucrânia, foram de início acolhidas
favoravelmente. Depressa porém se afirmaram as características de guerra de
extermínio, contra a qual se desenvolverá uma forte resistência nos territórios ocupados.
De início o avanço foi rápido. Em três meses o Exército alemão fez dois milhões de
prisioneiros - entre eles um dos filhos de Stalin, depois assassinado - e no Inverno já
tinha chegado a menos de 100 km de Moscovo. Esta campanha não tinha apenas atrás
de si as capacidades militares e os recursos de quase todo o continente, como até do
ponto de vista ideológico era encarada favoravelmente por muita gente na Europa. Os
exércitos alemães davam-se como representantes do Ocidente cristão contra os bárbaros
comunistas. A Espanha, embora teoricamente neutral, enviaria uma divisão para
combater, a Divisão Azul, e também Portugal enviou uma “missão de observação” de
que fazia parte o jovem oficial de cavalaria António de Spínola. Um famoso apologeta
do salazarismo, o historiador João Ameal, chegou a escrever que na Rússia a cruz
gamada das tropas hitlerianas também representava “as cinco chagas de Cristo”
(presentes na simbologia da bandeira portuguesa).
Esta guerra obedeceu desde o início a directivas claras de guerra de erradicação,
isto é, de liquidação de toda e qualquer resistência, sem a preocupação de fazer
prisioneiros, e especificamente com a directiva de liquidação de todos os responsáveis
comunistas, nomeadamente dos comissários políticos do exército soviético
(Komissarenbefehl). É também nesta fase que começa a liquidação sistemática dos
judeus, ainda não com as câmaras de gás, mas por fuzilamento. Isto é interessante
porque é muito diferente daquilo que se passou a ocidente, onde houve a preocupação
210

de diversas formas de compromisso, como foi o caso do regime de Vichy ou da


Dinamarca, onde até 1943 continuou a haver eleições e partidos. A guerra a Leste foi
completamente diferente.
Se no momento de invasão a Rússia não estava preparada, numa segunda fase a
decisão de resistir foi eficaz. Muitas pessoas e até indústrias foram evacuadas para lá
dos Urais, mas o governo manteve-se em Moscovo, assim como o próprio Stalin, que
apesar das sugestões para abandonar a cidade decidiu permanecer. Moscovo, que era
vista como o objectivo central, não foi conquistada. Entrou-se numa fase de guerra de
posições, em que começou a ser decisivo o factor a que o Napoleão chamara “o General
Inverno”. As tropas alemãs não estavam preparadas para as condições do Inverno russo
e os blindados começaram a ficar atascados, primeiro com as chuvas, nos pântanos, na
lama, depois na neve, e as próprias tropas não conseguiam suportar o rigor do frio. Por
outro lado, Moscovo estava já a uma distância enorme do ponto de partida e das bases
alemãs, por isso havia problemas logísticos e de abastecimento muito difíceis de
resolver.
A guerra tinha sido concebida como uma guerra-relâmpago para estar concluída
antes do final do ano de 1941 e esse objectivo falhou. No final de 1941, a maior parte
dos europeus continuava a pensar que a Alemanha estava a triunfar, mas não há dúvida
que a batalha de Moscovo marcou uma primeira travagem na ofensiva da Alemanha
nazi. Uma nova ofensiva foi planeada para a Primavera de 1942 e teve como objectivo
não só Moscovo, mas também Leninegrado e Estalinegrado. Estalinegrado tinha muita
importância, por um lado simbólica, uma vez que era a cidade de Stalin, mas também
por ser um ponto estratégico muito importante para o acesso ao Cáucaso. Em relação a
Leninegrado, foi feito um cerco que durou 900 dias, durante os quais morreu um quarto
da população desta cidade, ou seja, cerca de 600.000 pessoas. Mas foi em Estalinegrado
que, na segunda metade de 1942, foram travadas as maiores batalhas da guerra. Uma
ofensiva deu-se em Julho de 1942 e, entre esse mês e Novembro, só nessa batalha, a
Alemanha perdeu 180 000 homens. Os exércitos soviéticos não capitularam nem
deixaram que o inimigo entrasse na cidade e, em Novembro, desencadearam uma
contra-ofensiva que colocou as tropas alemãs em grandes dificuldades.
Recomeçaram a partir desta altura os problemas entre alguns generais do
exército alemão e Hitler, porque alguns militares perceberam, desde o fracasso da
211

ofensiva de 1942, que a guerra estava perdida para a Alemanha. Foram poucos a
perceber isto com clareza, mas mesmo quem não a achava perdida, achava que se
deviam realizar operações tácticas de retirada que permitissem uma ofensiva noutra
altura. Mas, por maior que fosse a derrota, era maior o peso que tinham os factores
pessoais da liderança de Hitler e a sua convicção de que era um génio militar. Ele
acompanhava diariamente as operações e tomava as decisões. A batalha de
Estalinegrado fê-lo dar a ordem de não retirada e, quando os exércitos alemães foram
cercados pelos soviéticos, a ordem de Hitler foi para resistir até ao fim, ainda que não
pudessem sair dali vivos, porque isso era politicamente mais importante do que as
vantagens militares da retirada. Hitler promove então o general von Paulus, que era o
comandante supremo das tropas, a marechal de campo (Feldmarschall). Porém, com as
tropas cercadas pelos soviéticos, sujeitas a fogo de artilharia e sem escapatória possível,
von Paulus nada podia fazer e, em Fevereiro de 1943, capitula. Dá-se assim a derrota
alemã em Estalinegrado e a viragem mais decisiva no desenvolvimento da Guerra.
Seguiu-se a batalha de Kursk, que ficou famosa como a maior batalha de tanques da
história e que pertence já ao princípio da retirada alemã.
A partir de 1943, a guerra estava objectivamente decidida, quer dizer, pelas
características que tinha, os factores de potencial económico, político e militar estavam
agora nas mãos da coligação anti-fascista, como ficou conhecida a aliança entre a
Inglaterra, os Estados Unidos e a União Soviética que se estabeleceu a partir de 1941. O
estabelecimento desta coligação resultou da entrada em guerra, em 1941, da URSS e
também, no final desse ano, dos E.U.A.
Desde a Primeira Guerra Mundial, a política americana tinha sido
profundamente marcada pelo chamado isolacionismo. Ao longo das várias crises
europeias, da guerra civil de Espanha, da crise de Munique, etc., os E.U.A. sempre
afirmaram a sua posição de neutralidade. No entanto, os E.U.A. não eram
desinteressados da guerra, porque a expansão alemã situava-se ideologicamente em
contradição com as ideias do liberalismo americano e o seu controlo da Europa e as
ambições de domínio mundial podiam vir a constituir um problema. O que determinou a
entrada dos E.U.A. na guerra não foi directamente a Alemanha, mas sim o Japão, que
fazia parte do Pacto Anti-Comintern, uma aliança política com a Alemanha e com a
Itália.
212

O Japão tinha iniciado desde 1931 um projecto de expansão em toda a área do


Pacífico. Esta expansão obedecia a planos e projectos dentro de uma ideologia de
expansão asiática e de reivindicação da Ásia para os asiáticos, na qual o Japão se
atribuía a si próprio uma posição de liderança. A expansão japonesa tinha tido como
primeira manifestação a ocupação da Manchúria e a construção do Estado Manchukuo
em 1931. Tinha prosseguido em 1937 com a ocupação da China, onde ocupou uma
grande faixa do litoral e uma parte do interior. O objectivo era a constituição do que
chamavam a “zona de prosperidade do sudeste asiático”. Este objectivo de constituição
de uma zona de hegemonia japonesa contradizia o interesse americano no livre-câmbio
e portanto havia uma ideia, entre os políticos e os militares japoneses, de que mais cedo
ou mais tarde era inevitável o conflito com os E.U.A., e que do ponto de vista militar o
mais vantajoso seria tomar a iniciativa de o iniciar.
Na política japonesa, em 1941 teve lugar uma viragem de certo modo
significativa, com a passagem do general Tojo, um nacionalista extremista, a chefe do
governo. Foi sob a chefia deste general e com a liderança desse grupo militar extremista
e expansionista que o Japão decidiu, ainda nesse ano, atacar a esquadra americana
sediada em Pearl Harbor, no Hawai. Era uma posição estratégica importante e sobretudo
uma oportunidade de liquidar os meios militares americanos, visto que esta esquadra
tinha um grande número de porta-aviões. Por azar, na altura do ataque, e embora ele
tenha sido muito destrutivo, a maioria dos porta-aviões não estava no porto,. De
qualquer maneira foi uma agressão deliberada e que foi imediatamente usada pelo
Presidente Roosevelt para decidir a entrada dos E.U.A. na Guerra.
Já em Agosto de 1941 o Presidente Roosevelt e o primeiro-ministro inglês,
Churchill, tinham subscrito a Carta do Atlântico, após um encontro num barco ao largo
da Terra Nova (Canadá), ou seja, quatro meses antes da entrada dos E.U.A. no conflito.
Este acordo dizia respeito à ordem mundial depois da Guerra, o que é muito importante,
porque em 1941 já havia a noção de que a Guerra ia decidir sobre a ordem mundial a
longo prazo. O texto faz claras referências à tirania hitleriana e inspira-se nos princípios
do wilsonismo da 1ª Guerra Mundial para definir a ideia de que a nova ordem do mundo
depois da guerra deveria guiar-se pelos princípios de auto-determinação (o que
representava um importante sacrifício para o Império Britânico) e do livre comércio, em
suma, do liberalismo e da democracia.
213

De facto, já havia, antes da entrada em guerra, um acordo entre os E.U.A. e a


Inglaterra e nomeadamente tinha sido já aprovada uma lei “cash and carry”, que
permitia à Inglaterra comprar material bélico nos E.U.A.
214

Lição 21: A Segunda Guerra Mundial (continuação).

Vimos na aula anterior as linhas gerais das duas primeiras fases da 2ª Guerra
Mundial. A primeira vai da invasão da Polónia em 1 de Setembro de 1939 à invasão da
URSS em 22 de Junho de 1941. A segunda fase da guerra vai do segundo semestre de
1941 até aos primeiros meses de 1943. O que marca esta etapa do conflito é a efectiva
mundialização da guerra, com a entrada em cena da União Soviética, do Japão e dos
Estados Unidos da América. Nesta fase ainda é visível o predomínio militar e político
das forças do Eixo.
A passagem à terceira fase da guerra dá-se com a vitória soviética em
Estalinegrado em Fevereiro de 1943, o que coincide com a inversão da situação no
extremo-oriente a favor dos EUA. O final de 1942 e o principio de 1943 correspondem
também à inversão dos acontecimentos no Mediterrâneo, ou seja, à derrota alemã no
Norte de África e à preparação da invasão da Itália. A terceira fase da guerra, o mais
destrutivo e mortífero período do conflito mundial, é marcada pelo peso crescente dos
EUA e da União Soviética no plano militar e político. Este fenómeno concentra e dá
relevo a tendências de ascensão dos dois países, facto que já vinha do primeiro pós-
guerra. A importância da última etapa do conflito é o facto de prenunciar o quadro no
qual se estruturará a paz, isto é, o quadro político-militar que vigorará até quase ao final
do século XX.
A hegemonia mundial político-militar americana, que marcará de forma decisiva
a segunda metade do século XX, é especialmente surpreendente se notarmos que o
exército americano em 1940 era aproximadamente do tamanho do exército belga. Para
além do reduzido exército, a política tradicional americana é fortemente marcada pelo
isolacionismo. Mesmo depois do início da Guerra na Europa, Roosevelt afirma que os
EUA permanecerão neutrais.
Depois do rápido sucesso nazi na Europa, a política isolacionista americana
começa a romper-se e a possibilidade de intervenção a definir-se. Como vimos, a
aprovação pelo Senado americano da lei cash and carry, que permitia ao executivo
vender armamento à Inglaterra, desde que fosse pago a pronto, é um ponto de viragem
na diplomacia americana, tal como o é o encontro entre Churchill e Roosevelt em
215

Agosto de 1941, do qual resulta a Carta do Atlântico. Na sequência da Carta do


Atlântico e a seguir ao ataque japonês a Pearl Harbour, portanto já com os EUA na
guerra, é publicada a 1 de Janeiro de 1942 a Declaração das Nações Unidas. Não existe
ainda nenhuma organização internacional de Estados (a SDN deixara de existir na
prática). Esta Declaração visa afirmar os princípios de uma ordem internacional pacífica
no pós-guerra. A expressão Nações Unidas por si mesma dá uma ideia de harmonia
universal, mas tem na sua origem o significado preciso de uma união de países
coligados militarmente contra as potências do Eixo. Consequentemente, em 1944,
quando se funda a Organização das Nações Unidas (ONU), uma das condições para se
pertencer a ela é ter declarado guerra às forças do Eixo, Alemanha, Itália e Japão.
A partir do momento em que as três grandes potências, incluindo a União
Soviética, estão unidas contra inimigos comuns, põe-se a questão de uma condução
conjugada da Guerra. A frente do Pacífico é assegurada pelos Americanos e, apesar da
participação britânica em resposta ao ataque nipónico à Birmânia e da participação
holandesa em resposta ao ataque à Indonésia, são eles que mais esforço de guerra
dispendem nessa zona. Na Europa, fracassada a resistência inicial da França, põe-se o
problema da intervenção no teatro europeu, uma vez que a União Soviética suporta
todo o peso dos exércitos alemães. Sobre a questão de onde intervir na Europa, desde
cedo se abre uma discussão entre americanos, ingleses e soviéticos. Para a Inglaterra a
prioridade era a defesa das suas áreas de influência tradicionais, Mediterrâneo e região
balcânica. Esta opção demonstra-se militarmente duvidosa. Americanos e Soviéticos
concordam na necessidade de abertura de uma frente de batalha na Europa ocidental, na
costa francesa do Atlântico. Para a União Soviética a possibilidade de ofensiva aliada
sobre a França é vital, pois obrigaria a Alemanha a retirar efectivos da frente leste.
Robert Paxton refere-se à história da segunda frente na Europa como uma
gradual evolução para a concepção estratégica americana, em correspondência com a
sua cada vez mais preponderante capacidade industrial48. No entanto, os anos de 1942 e
1943 são ainda ocupados com os combates no Norte de África, que têm como efeito
principal o abrir caminho para a conquista da Itália. Os combates na Tunísia têm fim

48
Europe in the Twentieth Century, p. 481.
216

em Maio de 1943, com a capitulação alemã na região, e em Julho do mesmo ano inicia-
se a invasão da Itália através da Sicília, por via naval.
A invasão da Itália tem uma consequência importante no próprio governo
italiano. Na noite de 24 para 25 de Julho de 1943, um golpe de Estado no seio do
regime fascista derruba Benito Mussolini, sendo um dos conspiradores o genro do
próprio Mussolini, conde Ciano, ministro dos Negócios Estrangeiros. A reunião do
Grande Conselho do Fascismo, órgão supremo do regime, pronuncia-se
maioritariamente contra Mussolini, e em consequência o rei decide a demissão do Duce
e ordena a sua prisão. Em sua substituição é nomeado chefe do governo o marechal
Badoglio. Este marechal era uma figura importante do regime fascista, tendo sido o
comandante das operações de conquista da Etiópia em 1935. A 12 de Setembro,
Mussolini é resgatado da prisão, através de uma operação efectuada por um regimento
de comandos e pára-quedistas alemães, e posteriormente levado para o norte de Itália,
onde em 23 de Setembro proclama, em Salò, a República Social Italiana, na qual chefia
um governo sob supervisão nazi. A Itália fica então dividida: a República de Salò é um
regime de ocupação directa alemã, no sul estão as tropas aliadas e em Roma mantém-se
o governo de Badoglio. Este demora na declaração do armistício e, quando o declara
oficialmente, a 8 de Setembro de 1943, não toma qualquer tipo de medidas para resistir
à inevitável reacção germânica. O exército italiano é abandonado, ou seja, fica sem
direcção, e a Itália está, tanto a norte como no centro, incluindo Roma, ocupada pelas
forças alemãs. O exército nazi, apoiado por voluntários fascistas italianos, resiste ainda
por mais algum tempo, ajudado também por factores naturais – a cadeia montanhosa
dos Apeninos, que atravessa a Itália, constituiu um elemento favorável à defesa alemã
contra as tropas aliadas. Entre os italianos organiza-se o movimento de libertação,
dinamizado pelos partidos antifascistas e sobretudo pelo Partido Comunista. O
movimento consegue estabelecer-se em algumas zonas do território e desencadear
acções armadas contra os ocupantes alemães. A resistência antifascista italiana
fortalece-se sobretudo depois de 1943 e contribuiu muito para o processo de libertação
da Itália.
O problema da abertura da segunda frente na Europa é resolvido com o
desembarque das forças aliadas na Normandia, em 6 de Junho de 1944. Este episódio
decisivo da Segunda Guerra é relembrado como a maior operação de transporte de
217

tropas da história militar. O desembarque no norte da França, conhecido como


Operação Overlord, tem a direcção do general norte-americano Eisenhower. Conta com
um efectivo de 2 200 000 homens, com mais de 450 000 veículos, desde tanques a
veículos de transporte. É em Inglaterra que se concentra todo o aparelho militar que
realiza a Operação.
Antes do desembarque na Normandia, quem suporta o peso essencial da guerra é
a União Soviética que, a partir da capitulação alemã de Fevereiro de 1943 em
Estalinegrado, avança para ocidente. A força que a União Soviética alcança surpreende
o mundo, pois no início da ofensiva nazi era esperado o colapso da URSS a curto prazo.
O regime soviético revela-se assim eficaz, tendo conseguido realizar transferências
maciças de mão de obra e de equipamentos, ou seja, preservara uma elevada
capacidade industrial e de reorganização das tropas. Conquista ainda a adesão popular,
aspecto este que está em ligação com uma certa transformação, no sentido do reforço do
discurso patriótico na propaganda e na ideologia da defesa. Toda a tradição militar russa
é invocada, o próprio hino da URSS, que até aí era a Internacional, hino do movimento
operário, é substituído por um novo hino nacional. A resistência soviética é bem
sucedida também devido ao apoio externo transportado pelo Mar de Barents e pelo Irão
e que, segundo Paxton, terá correspondido a perto de 10% dos gastos militares. O
avanço das tropas soviéticas permite, na Primavera de 1944, a libertação dos Estados
Bálticos e da Polónia e, até ao fim do ano, a da totalidade da região balcânica.
A abertura tardia da segunda frente na Europa, com o desembarque da
Normandia, foi benéfica para os exércitos ocidentais, em termos de poupança de vidas,
e prejudicial para os Soviéticos. A consequência é naturalmente que os ganhos das
forças soviéticas no leste vão ganhando uma grande dimensão. O número de baixas
reflecte a situação: a URSS perde mais de 20 milhões de vidas durante a guerra,
enquanto os EUA perdem 406 mil homens. As conferências dos Três Grandes vão
reflectir nos seus resultados políticos a situação no terreno e o ascendente militar que a
URSS, com pesados custos, conseguira alcançar.
A primeira das grandes conferências durante a guerra, a conferência de
Casablanca, com Churchill, Roosevelt, de Gaulle e Giraud (que nesta altura ainda
disputava a de Gaulle o reconhecimento dos Aliados), em Janeiro de 1943, não conta
com a participação de Stalin. Este não está presente, porque a batalha de Estalinegrado
218

está numa fase crucial, o que obviamente impede a sua saída do país. A reunião de
líderes em Casablanca é importante pelo facto de estabelecer o princípio da rendição
incondicional das potências do Eixo e da colaboração recíproca na administração dos
territórios libertados. Ainda em 1943, tem lugar uma conferência de ministros dos
Negócios Estrangeiros em Moscovo, que também tem importância política. Esta reunião
consolida a ideia da criação da Organização das Nações Unidas, apresentando-se os
primeiros projectos concretos para a sua formação. Durante a conferência ainda se
acorda a futura desnazificação da Alemanha.
No dia 28 de Novembro de 1943 tem início a primeira conferência dos Três
Grandes, Roosevelt, Churchill e Stalin, em Teerão. A escolha do local não é casual, é
de Teerão que segue para a URSS o armamento americano e inglês para as tropas
soviéticas. Desta conferência sai o acordo acerca da fronteira russo-polaca, aceita-se a
manutenção das fronteiras estabelecidas no pacto germano-soviético. Durante os três
dias da conferência, os Aliados, perante os insistentes pedidos do líder soviético,
decidem o arranque das operações na Normandia com a maior celeridade possível.
Stalin, em troca, compromete-se a prestar apoio na luta contra o Japão, depois de
derrotado definitivamente o III Reich.
Em Agosto de 1944, a URSS consegue ocupar definitivamente a Roménia, a
Bulgária e a Hungria, ou seja o controlo da região balcânica. Em Outubro de 1944
Churchill e Stalin reúnem-se em Moscovo e debatem a repartição das esferas de
influência nos Estados libertados. No quadro do final da guerra o ambiente que existe é
de colaboração entre os vencedores e o compromisso de criação de instituições
democráticas é assumido. Este último aspecto é um dos grandes temas da segunda
conferência dos Três Grandes, que se realiza em Ialta entre 4 e 11 de Fevereiro de 1945.
Apesar das divergências ideológicas, o clima de cooperação, cordialidade e confiança
que se faz sentir entre os Aliados permite o acordo sobre algumas questões importantes.
Acorda-se a criação de um conjunto de instituições internacionais. Decide-se a reunião,
num futuro próximo, da conferência preparatória da Organização das Nações Unidas.
Produzem-se acordos em matéria económica, como o estabelecimento do Fundo
Monetário Internacional. Resulta também de Ialta o compromisso dos participantes de
realizar eleições democráticas nas áreas que cada potência ocupa.. A desnazificação da
Alemanha também é debatida na conferência, assim como a divisão provisória da
219

Alemanha em quatro áreas de ocupação, geridas pelas três potências conferencistas e


pela França, sob a coordenação de um conselho interaliado. Na Polónia o novo governo,
depois da libertação efectuada pelos soviéticos, é dominado por comunistas polacos
apoiados pela URSS. Os três líderes em Ialta legitimam este governo, mas Roosevelt e
Churchill conseguem que fique acordada a entrada nele de membros do governo de
1939, que nunca se demitira e estava exilado em Londres. Quanto ao estabelecimento da
ONU, decide-se a constituição de um Conselho de Segurança com cinco membros
permanentes com direito de veto – Inglaterra, EUA, URSS, França (apesar de ter sido
vencida, é-lhe reconhecida uma posição de vencedora graças ao movimento de
resistência e ao prestígio de de Gaulle como chefe dessa resistência, bem como devido
à participação das tropas francesas no desembarque na Normandia) e China (apesar da
sua situação interna, onde nacionalistas e comunistas se opunham fortemente, o Estado
chinês oficialmente estava unido).
Roosevelt é hoje frequentemente criticado por ter transigido demasiado nas
negociações com a URSS, mas a grande maioria dos historiadores considera que os
EUA, na conferência de Ialta, necessitavam do apoio soviético. Ainda prosseguiam os
combates no Pacífico e, apesar do claro avanço americano, os Japoneses começam a
utilizar uma resistência desesperada e radical, de que são exemplo paradigmático os
kamikazes, pilotos suicidas que utilizam os aviões para se despenharem contra os porta-
aviões americanos. Por outro lado, os EUA têm um empenho especial no
estabelecimento da ONU e no estabelecimento de acordos económicos internacionais
que permitam realizar o grande desígnio americano de um mundo aberto de livre
comércio e estável. A nova ordem internacional preconizada pelos EUA só era possível
com a aderência da URSS.
A terceira grande conferência tem lugar em Potsdam, nos arredores de Berlim,
entre 17 de Julho e 1 de Agosto de 1945, depois da capitulação alemã em 8 e 9 de Maio.
Os protagonistas da conferência de Potsdam são diferentes da cimeira anterior.
Churchill abandona a conferência em virtude da derrota eleitoral face aos trabalhistas,
liderados por Clement Atlee. A derrota de Churchill na Inglaterra, apesar de
surpreendente para muitos, corresponde a uma viragem à esquerda das opiniões
públicas praticamente em toda a Europa. O representante americano também mudou.
Roosevelt, que exerceu a presidência dos EUA durante 12 anos e três mandatos, falece
220

em Abril de 1945 e é substituído pelo vice-presidente, Harry Truman. Apenas Stalin se


manteve em Ialta e Potsdam. Segundo todos os relatos, e como escreve o Paxton, em
Potsdam o clima entre os Três Grandes é bem mais tenso do que em Ialta. A
desconfiança entre os líderes mundiais é inevitável. O clima cordial e de boa
convivência que marcou as anteriores conferências não se volta a manifestar. Os ensaios
da bomba atómica realizados no deserto no Novo México, um dia antes do início da
cimeira de Potsdam, são bem sucedidos e os EUA em Julho de 1945 detêm a tão
desejada arma nuclear. Durante a conferência Truman dá a notícia a Stalin, que
responde com um “obrigado pela informação” (na verdade ele já estava certamente a
par do facto, através da espionagem). É de qualquer modo um evento decisivo na
mudança da conjuntura militar e das relações entre as potências vencedoras. No decurso
da conferência, Stalin informou sobre os contactos diplomáticos feitos pelo Japão junto
do governo soviético no sentido de negociar o fim da guerra, mas Truman não se
mostrou interessado. Os EUA também já não necessitam do apoio soviético para a
guerra do Pacífico. A bomba atómica, além de resolver a guerra, também ajuda a
diplomacia americana a ser mais intransigente para com a União Soviética.
A conferência de Potsdam não tem a importância de Ialta em termos de definição do
pós-guerra. Uma das poucas decisões de Potsdam é a criação de um Tribunal
Internacional para julgamento dos crimes de guerra, em Nuremberga, cidade símbolo do
regime nazi. Um dos pontos debatidos na cimeira que gera desacordo é a questão das
reparações de guerra pela Alemanha, repetidamente reivindicadas pela URSS. EUA e
Inglaterra vetam parte das pretensões soviéticas, limitando-se a aceitar que a URSS teria
direito a obter reparações na sua zona de ocupação e a um montante mal definido (25%
do equipamento “desnecessário”) das zonas ocidentais . A conferência encerra sem
gerar muitos consensos, limita-se praticamente a ratificar os acordos de Ialta.
.
Voltando ao curso da guerra na Europa. Após o desembarque da Normandia (a que se
seguiu em Julho de 1944 outro desembarque no sul de França), as tropas aliadas atacam
as forças do Eixo em três frentes, uma frente a partir da costa atlântica em direcção a
Paris (que é libertada em Agosto, com a participação activa dos resistentes e da
população civil numa insurreição) e depois Berlim, outra a partir de Itália (libertada a 25
de Abril de 1945), sendo a terceira frente a soviética, que avança do leste. Em fins de
221

1944 os Alemães ainda reagem com uma ofensiva nas Ardenas, que gera fortes
combates, embora a situação para a Alemanha seja de desespero. A 25 de Abril de
1945, dá-se o encontro das forças americanas e soviéticas em Torgau, nas margens do
rio Elba, a 30 de Abril Hitler suicida-se, finalmente é a dupla capitulação alemã, a 8 de
Maio em Reims, perante as tropas anglo-americanas, a 9 de Maio em Berlim, perante o
Exército soviético.
Os custos humanos foram dramáticos. Entre soldados e civis a União Soviética
foi o país que mais vidas perdeu, mais de 20 milhões. A Polónia registou seis milhões
de perdas humanas e a Alemanha 4,2 milhões. Os EUA cifraram 406 000 mortes
durante os combates. O continente europeu ficou devastado pelos quase seis anos de
guerra.
No que diz respeito à guerra do Pacífico, em Junho de 1945 os Americanos já
se encontravam em solo japonês, com a ocupação de Okinawa, após a custosa e
prolongada luta pela reconquista do domínio do Sueste asiático e das ilhas do Pacífico.
A estrutura em arquipélago do território japonês, a intransigência dos círculos político-
militares governantes e o fanatismo do culto do Imperador tornavam porém difícil o
avanço das tropas, ao passo que era muito mais económico, do ponto de vista dos custos
humanos e materiais americanos, proceder, a partir das posições conquistadas, a
bombardeamentos em massa sobre as cidades japonesas. Tal acontecera já em Tóquio,
onde um bombardeamento com meios convencionais (nomeadamente bombas
incendiárias), ao longo de uma noite, causou a morte de cem mil civis. Idêntico grau de
destruição é obtido, instantaneamente, com o lançamento, em 6 de Agosto, da bomba
atómica sobre Hiroxima e, três dias depois, sobre Nagasaki (o resultado conjunto das
duas explosões é estimado em 280 000 mortos, incluindo as vítimas do efeito a longo
prazo das radiações). A 14 de Agosto o imperador anuncia a capitulação incondicional,
que será assinada a 2 de Setembro. Assim terminou a Segunda Guerra Mundial.
222

Lição 22: O genocídio dos judeus e de outros povos


por Irene Pimentel

Na historiografia, sobretudo na Alemanha, os estudos sobre a vida quotidiana


têm posto em causa o modelo totalitário de um Estado nazi que, pretensamente, se
impunha sobre todos os seus cidadãos através do terror. Foram detectados espaços de
vida normal, no decurso da “guerra total” e do extermínio nos campos nazis. Conclui-se
assim, de forma incómoda, que o dia-a-dia decorreu em normalidade para vários
alemães, muitos dos quais colaboraram activa ou passivamente com a Gestapo e o
regime, o qual por seu turno utilizou tanto o “pau” como a “cenoura”, tanto a repressão
como a coesão, para lidar com a população. Ao lado de um grupo pequeno de
criminosos, surgiram também inúmeros cúmplices, voluntários ou involuntários. Como
diz o historiador Ian Kershaw, “o holocausto só foi possível porque o caminho para
tamanho crime foi pavimentado pela indiferença”.
O conhecimento sobre como foi possível a normalidade decorrer em simultâneo
com a tragédia, e como foi possível que, num país de civilização europeia, essa política
criminosa se desenvolvesse e passasse ao acto, passou a marcar a agenda. A pergunta é
de difícil resposta, mas é crucial e não deve ser colocada apenas aos alemães, mas a
toda a humanidade. O historiador francês Philippe Burrin, que utilizou o termo
“acomodação” ao analisar a opinião pública francesa durante o regime de Vichy,
considerou também que o regime nazi, como todo o regime de tipo totalitário, procurou
suscitar a adesão e reforçar a coesão e não o fez recorrendo unicamente às suas forças.
Entre outros meios de coesão, contaram-se o enquadramento em organizações (por
exemplo, em organizações de juventude), a propaganda e o encontro de certos aspectos
da política nazi com as aspirações da sociedade.
Evidentemente também existiu a violência, na qual Burrin distinguiu
analiticamente três lógicas. A inicial foi a lógica da repressão política – tratava-se de
neutralizar os adversários do regime no Reich e nos territórios ocupados. Da luta contra
adversários activos, foi-se passando gradualmente também à criminalização crescente,
ao longo dos anos, de numerosos comportamentos e atitudes provenientes do regime
liberal, ou da esfera privada e dos direitos individuais. Em segundo lugar, houve uma
lógica de reforma social – a população referida como alemã “pura” teria que ser
223

doutrinada, vigiada, punida e os seus costumes policiados. A terceira lógica, a mais


importante, de total exclusão, era de tipo racista e comportava o saneamento do povo
alemão e as populações dos territórios sob controlo nazi.
O historiador Detlev Peukert, que estudou a vida quotidiana e a opinião pública
durante o Terceiro Reich, considera que a noção de normalidade se inscreve numa teoria
da patologia da modernidade, ao mostrar como a vida do dia-a-dia e a barbárie estão
indissociavelmente ligadas nas sociedades modernas. Ian Kershaw, por seu turno,
chama a atenção para a necessidade de se analisar de um modo crítico a continuidade
que vai da normalidade à barbárie e ao genocídio, para melhor apreender o contexto
social e político onde as ideologias monstruosas se concretizam em políticas
desumanas. Inscrever-se-ia assim nessa análise crítica o que ele qualifica de “civilização
moderna e normalidade” e, segundo o autor, nenhuma sociedade civilizada
contemporânea está fora do perigo de cair neste tipo de barbárie.
Para outro historiador, Norbert Frei, o nazismo soube responder à necessidade de
integração social, com uma mobilização permanente, que transcendeu as barreiras de
classe, e com o abandono da normalidade política, colocando a sociedade num estado de
urgência permanente. Ao analisar os alemães em geral que aceitaram as ideias de Hitler
de que inteiras categorias de seres humanos deveriam desaparecer, este historiador
concluiu que o nazismo não constituiu uma monstruosa excrescência, mas revelou-se
pelo contrário enraizado no mais profundo das estruturas sociais, mentais e culturais do
país.

As etapas que levaram ao extermínio


É hoje pacífico entre os vários investigadores que o mecanismo de destruição e
de genocídio procedeu por graus. Em primeiro lugar, os nazis definiram a categoria de
“judeus”. Em segundo lugar, proibiram certas actividades e profissões aos judeus. Em
terceiro lugar, expropriaram-nos das suas propriedades. Depois concentraram os judeus
e fecharam-nos em guetos. Deportaram-nos a seguir para os campos de concentração e
de extermínio e finalmente mataram-nos, nestes últimos.
Para muitos historiadores, a destruição física dos judeus não foi planificada de
antemão e surgiu em 1941 como uma solução circunstancial, em resposta às
dificuldades do regime. Quando a emigração dos judeus se tornou impossível, começou
224

a deportação para leste. Como os meios de transporte eram insuficientes, os nazis


começaram a executar os judeus no local. Mais tarde, no Outono de 1941, o fracasso da
ofensiva alemã na URSS criou dificuldades aos oficiais das SS nos territórios ocupados,
especialmente na Polónia, os quais tomaram iniciativa do assassinato em massa, ainda
localizado. Este assassinato em massa transformou-se num programa de conjunto de
extermínio, progressivamente com carácter institucional a partir da Primavera de 1942,
depois da construção dos campos de extermínio, quase todos na Polónia.
O historiador alemão Hans Mommsen explica a solução final como um
mecanismo fragmentado das tomadas de decisão do Terceiro Reich, que originou
iniciativas improvisadas e depois dinamizadas por uma radicalização imparável. De
facto, não se conhecem ordens directas do Führer até à primavera de 1941, quando
ordenou a chamada “ordem dos comissários”, que esteve na origem do massacre dos
judeus russos. Este massacre, no entanto, não deve ainda ser confundido com a chamada
“solução final”.
Com o começo da guerra a leste, reuniram-se todas as condições de genocídio.
Num sistema em que a autoridade do Führer substituía qualquer regra ou qualquer
norma e em que só contava o acesso directo dos seus subordinados a Hitler, estes
começaram a aplicar a visão do mundo que, segundo eles, era a do ditador. Na opinião
de Ian Kershaw, Hitler não teve mais do que comunicar o objectivo último – acabar
com os judeus – e, a partir de 1933, expulsá-los do solo alemão e depois dar o aval a
medidas dispersas e cada vez mais radicais tomadas por diferentes organismos no seio
do estado nazi. A política anti-semita teve assim um carácter cumulativo, através de
uma progressão, desde a discriminação profissional dos judeus, até ao extermínio, por
etapas, sem possibilidade de retorno. Constatar esta intencionalidade não é a mesma
coisa que dizer que a solução final foi produto de um plano a priori, pois o holocausto
podia não ter acontecido e a sua aplicação implicou como condição fulcral a “guerra
total”, nomeadamente na URSS.
Vejamos então as sucessivas etapas. Entre 1933 e 1935, vários organismos nazis
tentaram obter, para eles, vantagens económicas e institucionais, em competição com
outros órgãos do poder, manifestando-se através de uma radicalização cada vez maior.
A primeira etapa teve início a 1 de abril de 1933, com o boicote ao comércio judeu.
Seguiu-se a legislação de exclusão dos judeus das profissões liberais e função pública.
225

As medidas eugénicas de esterilização, aborto forçado, estatalmente impostos, e a


defesa da pureza da raça começaram a ser postas em prática. A esterilização, desde
1933, o aborto eugénico desde 1935 e a eutanásia estatal, desde 1938/39. Em 1935,
ocorreu algo importante: as SS ficaram com a direcção de todos os campos de
concentração e acabaram por derrotar o aparelho judicial, instaurando a arbitrariedade
total. Por exemplo, se os tribunais nazis absolviam alguém e a Gestapo não
concordasse, esta polícia ia prendê-lo, de novo, e encerrava-o num campo de
concentração. O ano de 1935 é também o das leis de Nuremberga, que distinguiam o
cidadão alemão. Entre 1933 e 1938, pode-se dizer que a principal discriminação
relativamente aos judeus consistia na expulsão da função pública e na espoliação. Hitler
não teve que impor a violência. A violência não foi imposta de cima para baixo.
Em 1938, o ano da “Noite de Cristal” (Novembro), deu-se uma sincronia entre a
repressão anti-semita, com vista a acelerar a emigração, e a deterioração da situação
internacional. É também o ano da anexação da Áustria e da Conferência de Evian, onde
os países europeus discutiram como é que haviam de lidar com a onda de migrantes
judeus, que começaram a procurá-los. Entre 1938 e 1941, a escolha da emigração
forçada testemunha a procura, pelos nazis, de uma solução territorial da questão judaica,
pela deportação massiva, antes de ser tomada a opção pelo genocídio. A pretexto da
conquista da Polónia e da URSS, os nazis ainda tinham no início a convicção de que a
regularização da questão judaica se faria pela expulsão. Mas a própria guerra dificultou
esta expulsão dos judeus e a Alemanha ainda por cima ficou com mais três milhões de
judeus (da Áustria e dos países ocupados). A emigração tornou-se assim impossível e
foi necessário procurar a tal solução extra-territorial: foi proposto inicialmente o envio
para Madagáscar dos judeus e a esterilização de quatro mil por dia.
Como já não era necessário os alemães preocuparem-se com a opinião pública
internacional, o processo de radicalização acelerou-se entre 1939 e 1941. A 21 de
Setembro de 1939, Heydrich, chefe dos serviços de segurança e espionagem da
Gestapo, estabeleceu a distinção entre “medidas de conjunto” e “medidas preliminares”.
As “medidas preliminares” consistiam no reagrupamento provisório dos judeus nas
grandes cidades, na proximidade dos nós rodoviários, para transferência ulterior. A 30
de Outubro de 1939, houve uma ordem do chefe máximo das SS e da Gestapo,
226

Himmler, para a deportação de todos os judeus da Polónia. Começou a “guetização”:


fecho dos judeus em guetos
Em 1941, a invasão da União Soviética, pelos alemães, levou a um radicalização
da política anti-judaica e a execuções em massa de judeus russos pelos Einsatzgruppen,
brigadas que vinham atrás das tropas alemãs e matavam civis, responsáveis por pelo
menos dois milhões de mortes. A partir de então a guerra e a “missão” de destruição dos
judeus iriam juntar-se para dar nascimento ao conceito de uma guerra de aniquilamento
total contra a URSS. Os eslavos eram considerados de raça inferior, o que explica a
transgressão da ética militar na frente de leste pelos próprios exércitos e não apenas
pelos nazis mais puros e duros. É hoje admitido que as instruções dadas aos
Einsatzgruppen antes da invasão da URSS representaram uma etapa decisiva do
genocídio, que se transformou em ordem global de extermínio por volta de Agosto de
1941.
Antes disso, a 20 de Maio, o célebre Eichmann enviou uma circular com a
decisão de Göring de proibir a emigração de judeus da França e da Bélgica. A 6 de
Junho foi dada a já referida “ordem dos comissários”: execução, pelo Exército alemão e
as brigadas, de todos os que eram considerados comissários políticos “comunistas”,
incluindo-se, neste número, os “judeus”, a princípio os homens, e, depois, mulheres,
velhos e crianças, ou seja, civis. Nesse mesmo mês de Junho, começou a haver uma
série de iniciativas locais em matéria de massacres e de genocídio. Göring assinou um
texto de preparação daquilo a que chamou “a solução definitiva da questão judaica na
zona de influência alemã, tanto a oriente como a ocidente”. Em Agosto de 1941, os
fuzilamentos foram estendidos às crianças, na URSS. A 23 de Outubro Himmler proibiu
a emigração dos judeus de qualquer território ocupado pelos alemãees. Em poucos
meses, os Einsatzgruppen eliminaram comunidades inteiras na URSS.
Em suma, entre Outubro de 1939, depois do início da 2a Guerra, e 1941, a
deportação massiva foi um meio brutal para erradicar judeus sem ainda se pensar em
eliminá-los. Os nazis pretendiam conquistar os territórios do chamado “espaço vital” e
germanizá-los. Depois, os planificadores das SS tinham o fim de os reorganizar espacial
e racialmente e apresentá-los como pátria dos alemães. Após esta primeira fase, veio
uma segunda, de Dezembro de 1941 a Fevereiro de 1942, a fase de centralização das
iniciativas de massacre locais. Os órgãos centrais tomaram conhecimento dos primeiros
227

balanços dos massacres e decidiram exterminar sistematicamente as comunidades


judaicas da Europa de leste.
Muitos acham hoje que Hitler tomou a decisão de exterminar os judeus da
Europa, na segunda semana de Dezembro de 1941, depois da declaração de guerra dos
EUA, a 11 de Dezembro, e que tornou essa decisão pública numa reunião com Himmler
e Heydrich. Este convocou para 20 de Janeiro de 1942 a célebre Conferência de
Wannsee, perto de Berlim, onde o princípio de extermínio dos judeus da Europa foi
aprovado. Foram dissolvidos os guetos da Polónia e deportados os seus habitantes.
Houve fuzilamentos sistemáticos na Bielorússia. Foram transportados para o campo de
Auschwitz, que entretanto tinha sido construído, judeus da França, Grécia e Holanda.
Os motores diesel foram substituídos pelo gás Zyklon B, que permitiu a
“industrialização da morte”.
Pelos números de Raoul Hillberg, os nazis assassinaram cerca de cem mil
judeus, no período entre a tomada do poder, em 1933, e o ano de 1941. Nesse ano,
foram assassinados um milhão e cem mil, em resultado da guetização e dos massacres
periódicos na Polónia. Em 1942 foram assassinados dois milhões e setecentos mil
judeus e, no ano seguinte, em que foram encerrados os guetos de leste, morreram cerca
quinhentos mil judeus. A 15 de Março de 1943, na véspera da derrota de Estalinegrado,
Hitler disse ao seu Ministro da Propaganda Goebbels que não pararia enquanto existisse
ainda um judeu na Alemanha e nos territórios ocupados. Chegou então o momento de
aumentar a deportação dos judeus dos países da Europa ocidental ocupados pelo
Terceiro Reich. Mesmo após as sucessivas derrotas da Alemanha e da falta de meios
para os transportes militares, os comboios com deportados continuaram a chegar aos
campos. Em 1944, foi a vez de serem deportados para Auschwitz judeus gregos e
húngaros. Seiscentos mil judeus húngaros foram liquidados, a uma média de dez mil por
dia.
A 24 de Junho de 1944, o campo de Majdanek foi libertado. A 1 de Novembro
de 1944, Himmler ordenou o fim do extermínio em Auschwitz, e os SS iniciaram as
“marchas da morte”, para oeste, com os prisioneiros que ainda conseguiam andar. Os
exércitos aliados detiveram a máquina assassina, contudo os judeus ainda continuaram a
morrer em grande número. Mais de cem mil encontraram a morte no caos dos campos
no final da guerra.
228

Lição 23. As Resistências antifascistas.

Na Ásia
No programa, fala-se em “resistências antifascistas na Europa”, mas de facto não faria
sentido restringirmo-nos, na análise dos movimentos de Resistência durante a II Guerra
mundial, ao que se passou na Europa. No teatro asiático, o Império japonês chegou a ter
sob o seu domínio 450 milhões de pessoas. As Resistências anti-nipónicas na Ásia
talvez sejam ainda mais heterogéneas que as Resistências europeias ao nazismo e aos
fascismos, mas não foram menos importantes, se pensarmos que condicionaram
decisivamente o grande fenómeno da Ásia e do mundo depois de 1945 que foi a
descolonização.
É certo que se pode questionar se os movimentos de oposição ao domínio imperial
japonês cabem na categoria do antifascismo, que caracteriza as Resistências europeias.
O regime imperial nipónico partilhava com o nazismo e com o fascismo italiano uma
série de características: o racismo, o ódio à democracia, ao liberalismo e ao comunismo,
a concepção organicista e hierárquica da sociedade, o militarismo, a ideologia imperial
e a prática correspondente. É de resto característico que a aliança político-militar entre a
Alemanha e o Japão se tenha estabelecido na base do Pacto Antikomintern, de 1936, a
que depois aderiram a Itália, a Espanha franquista e outros regimes ditatoriais49.
Um elemento fundamental, no entanto, distingue a guerra e a ocupação japonesa na
Ásia da ocupação hitleriana. É que, ao decidir, em 1941/42, na sequência do ataque a
Pearl Harbour, passar à conquista da Birmânia, das Filipinas, de Hong-Kong, da
Malásia, da Indonésia (Índias orientais holandesas), e alargar o seu domínio dos
arquipélagos do Pacífico, o Japão estava a atacar sólidas posições coloniais da
Inglaterra, da Holanda e dos EUA. Não atacou directamente a França: preferiu entender-
se com o regime de Vichy, que continuava a dominar a Indochina (actual Vietnam, Laos
e Cambodja), obtendo aí posições de privilégio económico e político. Atacando as
potências coloniais europeias, o Japão suscitou de início uma vaga de entusiasmo entre
os povos até aí subjugados pelos europeus, povos que já antes olhavam para o exemplo
japonês de modernização e afirmação de potência militar contra o “domínio branco”. Na

49
Cfr. Francesco Gatti, “Una grande rimozione: il fascismo giapponese”, in Enzo Collotti (a cura
di), Fascismo e antifascismo. Rimozioni, revisioni, negazioni, Laterza, Roma-Bari, 2000, pp. 193-218.
229

ocupação destes territórios, o Japão explorou politica e ideologicamente o sentimento


anti-ocidental. Prometeu uma “esfera de prosperidade comum da Ásia oriental”, assente
numa complementaridade entre as economias da região, deixou pairar a ideia de
reconhecer as independências depois do fim da Guerra e nalguns casos conseguiu
inicialmente cativar, para a colaboração na gestão dos territórios, elementos ligados às
causas independentistas. O caso mais conhecido destes colaboracionistas foi o de
Sukarno, o pai da independência da Indonésia e líder do país até ao golpe militar de
1966 (e por sinal pai da Presidente da Indonésia entre 2001 e 2004, Megawati
Sukarnoputri). Porém, com a continuação das ocupações e a brutalidade do regime
imperial japonês, que se acentuou com as dificuldades crescentes - quer no aspecto
político, quer no económico - resultantes da continuação da guerra e da derrota, o
descontentamento das populações dos países ocupados aumentou. As promessas de
“prosperidade comum” não tiveram concretização. Em lugar dela, o que houve foi a
realidade de uma exploração colonial não menos violenta que a das potências coloniais
europeias, acrescida de movimentos forçados de população para servir as necessidades
da indústria japonesa. Neste quadro (e tal como aconteceu na Europa), são as reacções
das massas populares, traduzidas em greves económicas, movimentos contra a
requisição das produções, fugas ao trabalho forçado, deserções, que fornecem a base da
afirmação de movimentos independentistas. Nalguns casos, ela assenta na existência
prévia de partidos e exércitos nacionalistas (como o Guomindang na China) ou
comunistas (como é o caso na Coreia e também na China, com o Exército Popular do
Partido Comunista chefiado por Maozedong, ou no Vietnam, com o Vietminh e a Liga
de Independência do Vietnam liderados por Ho-Chi-Minh, ou ainda na Malásia e nas
Filipinas). Noutros, como o já referido da Indonésia, ou ainda na Birmânia, é a partir de
associações aceites pelos japoneses que se desenvolve a luta que desembocará, ao final
da guerra, na libertação nacional.
Um caso particular é o da Índia, onde durante a Guerra o movimento pela
independência registou um forte crescimento. Ao passo que o Congresso Nacional
Indiano, liderado por Gandhi e inspirado por uma ideologia democrática, recusou
qualquer contacto com os japoneses, um grupo liderado por Chandra Bose procurou o
230

contacto com as potências do Eixo na sua luta contra a Inglaterra e chegou a


estabelecer, com o apoio do Japão, um governo no exílio em Singapura.50

Na Europa
Com a expressão Resistência ou Resistência antifascista evocamos, em primeiro lugar,
o conjunto das formas de luta política e militar contra o domínio nazi-fascista nos países
europeus ocupados pela Alemanha nazi ou administrados pelos governos dela aliados.
Ulteriormente a expressão ganhou um sentido mais amplo. Fala-se por exemplo da
Resistência à ditadura em Portugal durante os quase 50 anos que vão de 1926 a 1974,
aliás o preâmbulo da Constituição portuguesa refere, logo no seu primeiro parágrafo, a
“longa resistência do povo português”. Mas a expressão nasceu nos anos da Guerra, e
por identificação com as Resistências dos países ocupados.
As Resistências não têm com a II Guerra mundial um nexo fortuito de coincidência
cronológica. São antes, como escrevia Enzo Santarelli, “a outra face do II conflito
mundial, da sua globalidade e totalidade”51. Ou ainda, na expressão de Henri Michel,
elas ilustram “o duplo carácter do conflito: rivalidade das potências, guerra civil
internacional.”52 A definição anti-fascista é essencial na constituição deste nexo. Se,
como vimos, o Eixo Berlim-Roma-Tóquio comportava uma reorganização mundial
baseada na ideia de Império e associada a uma concepção hierárquica de relações
raciais, pelo lado dos Aliados existe, desde a Carta do Atlântico de Agosto de 1941 (a
que a URSS adere no mês seguinte) a proclamação de princípios de autodeterminação
das nações, liberdade de comunicações, progresso social e procura do desarmamento,
em que se baseará, pouco depois, a primeira Declaração das Nações Unidas, subscrita
em Janeiro de 1942 pelos 26 países que entretanto se encontravam em guerra com o
Eixo.

50
Vide Maurice Crouzet, L'Époque Contemporaine, Quadrige/PUF, Paris, 1994 (1ª ed.1957), pp.
377-381; Enzo Santarelli, Storia Sociale del Mondo Contemporaneo, Feltrinelli, Milão, 1982, pp. 415-
421.
51
Santarelli, Storia Sociale, p. 415.
52
Henri Michel, Les Mouvements Clandestins, PUF (que sais-je? nº946), Paris, 1961, p.123.No
mesmo sentido, Enzo Colotti, “Resistenza”, in Aldo Agosti (dir.) Enciclopedia della Sinistra Europea nel
XX Secolo, Editori Riuniti, Roma,2000, p. 727; Franco de Felice, “Introduzione”, in Franco de Felice
(dir.), Antifascismi e Resistenze, Annali Fondazione Istituto Gramsci, Roma,1997, p. 13.
231

Pode afirmar-se, com Henri Michel, que em alguns países “a Resistência começou antes
da guerra: em 1922 em Itália e desde a chegada do partido nazi ao poder na
Alemanha”53. No entanto, “sem as circunstâncias novas criadas pela II Guerra mundial
e os caracteres que assumiram as ocupações das potências do Eixo, como prefiguração
de uma nova ordem europeia fundada numa pesada hierarquização nacional, racial,
económica e social dos povos, não se teriam criado as condições do processo de radical
contraposição à dominação fascista e nazi que teve expressão na Resistência.”54

Diversidade das Ocupações e das Resistências


A realidade das acções e movimentos de Resistência é tão diversificada como a das
formas de ocupação, assim como foram diversificados os graus e as formas do
colaboracionismo com o domínio nazi-fascista. Embora as condições da guerra
acabassem por gerar respostas contraditórias, os nazis tinham planeado modalidades
diversas de ocupação e de relacionamento com os governos e populações dos países que
conquistavam, partindo de uma primacial distinção de tipo racial. O próprio Hitler
estabeleceu, numa directiva militar de 1941, a diferença entre a guerra a ocidente e a
guerra a leste, definindo esta como guerra de extermínio. A Rússia e os territórios de
leste em geral estavam destinados a ser uma reserva de colonização agrícola, cultivada
por “povos inferiores” (os eslavos). A Polónia foi o primeiro país a sofrer os efeitos
desta concepção, não só na perseguição aos judeus do país, que foram quase
completamente exterminados, como pela expulsão massiva de mais de um milhão de
polacos da zona ocidental da Polónia, que foi integrada na Alemanha.55 Noutros países
da Europa oriental, como a Eslováquia, a Roménia e a Hungria, a Alemanha apoiou-se
nos regimes ditatoriais anteriores à guerra e explorou os existentes antagonismos de
nacionalidades.
Mesmo entre os países da Europa ocidental, há diferenças importantes. Os habitantes do
Norte do continente eram considerados “arianos puros” e portanto racialmente ao nível
dos Alemães. Mas, ao passo que a Holanda e a Noruega foram sujeitas a ocupação, com
a participação no governo de líderes fascistas locais, o rei e o governo da Dinamarca

53
Michel, Mouvements, p. 11.
54
Collotti, “Resistenza”, p. 728.
55
Crouzet, p. 348.
232

puderam manter as instituições e ainda em 1943 se realizaram eleições, que aliás deram
a maioria ao partido socialista. No caso da França, como já foi referido noutra lição,
houve a divisão do território em duas zonas, uma de ocupação político-militar directa,
outra administrada pelo regime de Vichy.
No conceito de Resistência englobamos comportamentos diversos, que vão desde as
mais simples manifestações de inconformismo ou de recusa de colaboração
(nomeadamente na perseguição aos judeus) até à luta de guerrilha culminando na
insurreição armada, passando pela ajuda a perseguidos políticos ou raciais, a audição
das notícias da BBC ou da Rádio Moscovo (sujeita à pena de morte), a impressão e
distribuição de panfletos, a criação de estruturas de ligação para recolha de informações
de interesse político ou militar, o envio de mensagens rádio, as acções de sabotagem
económica ou militar, a fuga ao serviço de trabalho obrigatório na Alemanha, a
organização de greves, os atentados contra as forças ocupantes, etc.
As Resistências incluem tudo isto. No entanto há um processo em desenvolvimento, em
que é possível discernir diversas fases, estreitamente relacionadas com o decurso da
Guerra. No período imediato às invasões, sob o efeito da derrota militar, das divisões
políticas e da desmoralização geral, as acções de Resistência são escassas. A partir de
1941, com o impasse na tentativa alemã de esmagar a Grã-Bretanha, o início do ataque
à URSS em Junho, e sobretudo, em Dezembro, a contenção pelos soviéticos do avanço
hitleriano sobre Moscovo e a entrada em guerra dos EUA, alarga-se o envolvimento na
Resistência e iniciam-se as acções armadas. Mas só em 1943, com a decisiva viragem
na Guerra após Estalinegrado, as Resistências adquirem coordenação política,
unificação de objectivos e formas de acção militar sistemática, em ligação com largos
movimentos de massa, ao mesmo tempo que a contraposição colaboração/resistência
tende a definir-se como disjuntiva política e moral absoluta.

Os Partidos Comunistas nas Resistências


Entre as forças políticas envolvidas nas Resistências, um lugar de especial importância
vem a ser assumido pelos Partidos Comunistas, quer em termos de organização e
continuidade de acção, quer pela marca programática que imprimirão aos planos
políticos e de preparação do pós-guerra. E no entanto o início da guerra surpreendeu os
Partidos Comunistas numa situação de desorientação, resultante das crises internas
233

provocadas pelo pacto germano-soviético. Na sequência, veio a denúncia da guerra


como “imperialista de ambos os lados” e, nalguns casos, nomeamente em França, na
Bélgica e na Holanda, a tentativa de prosseguir a publicação dos seus órgãos de
imprensa com a autorização dos ocupantes56. Porém, já em 22 de Junho de 1940, no
mesmo dia em que o governo de Pétain assinava a capitulação, um telegrama de
Moscovo para o Partido Comunista Francês, assinado por Dimitrov, secretário-geral da
Internacional Comunista e Maurice Thorez, secretário-geral do PCF, afirmava
“indispensável apoiar e organizar a resistência das massas contra as medidas de
violência, as espoliações, a arbitrariedade para com o povo da parte dos invasores”. Ao
mesmo tempo que se recomenda “utilizar a menor possibilidade favorável para fazer
sair jornais sindicais, locais, eventualmente o Humanité”, insiste-se em que “estes
jornais se mantenham na linha de defesa dos interesses sociais e nacionais do povo e
não dêem qualquer impressão de solidariedade com os invasores ou sua aprovação.”57
Na sequência, a IC emite outras directivas no sentido da manutenção dos quadros no
interior dos países ocupados para a prossecução da luta. Em fins de 1940, o jornal inglês
Daily Telegraph relatava, na sua edição de 20 de Dezembro:”O único partido existente,
embora ilegal, é o partido comunista, e mais de mil dos seus militantes foram presos no
mês passado. Eles distribuem panfletos anti-alemães, que apelam ao sentimento
patriótico dos franceses.”58 Sob a palavra de ordem de “paz pela revolução social”, os
Partidos Comunistas tornam-se os principais impulsionadores das acções reivindicativas
– contrastando aliás com os Partidos Socialistas, divididos e paralizados, e em vários
casos comprometidos na Colaboração com os ocupantes. Nos primeiros meses de 1941,
desencadeiam-se importantes greves na Holanda, contra as perseguições aos judeus, e
em seguida na Bélgica e no Norte de França, entre os mineiros e metalúrgicos, por
reivindicações económicas, greve esta que “implanta definitivamente uma imagem
combativa e heróica do PCF na região.”59
O papel dos partidos Comunistas nas Resistências é indissociável do protagonismo
principal da classe operária, não só pelo contributo individual que os militantes

56
José Gotovitch et alii, L’Europe des Communistes, Complexe, Bruxelas, 1992, pp.139-140.
57
Bernard Bayerlein et alii, Moscou-Paris-Berlin. Télégrammes chiffrés du Komintern (1939-
1941), Tallandier, Paris, 2003, pp.241-242.
58
Citado in Maurice Thorez, Fils du Peuple, Éditions Sociales, Paris, 1970, p. 200.
59
Gotovitch et alii, L’Europe des Communistes, p.144.
234

operários forneceram às organizações de Resistência, como através dos movimentos


reivindicativos – que, nas condições da repressão nazi, adquiriam um significado
directamente político. Processo aliás também constatado em Itália, a propósito das
greves de Turim, Milão e Génova que, em 1943, precederam a deposição de Mussolini:
“A defesa das condições materiais de trabalho e de existência ligava-se aqui
indissoluvelmente, à medida que se delineava a crise final do regime, a um
compromisso e a uma identidade antifascista que constituiriam uma componente
essencial do movimento da Resistência e da vida política e social da Itália
republicana”60. Greves e acções de sabotagem criaram sérias dificuldades à organização
da economia de guerra. “Particularmente forte foi em quase toda a parte a luta contra as
razias de mão de obra da parte dos ocupantes para substituir nas fábricas e na
agricultura do Reich a força de trabalho enviada para as frentes de combate.”61
O papel dirigente que os Partidos Comunistas tiveram na maior parte das Resistências
tem a ver com a natureza da ideologia e do tipo de organização e de práticas
característicos do movimento comunista: partidos nascidos para confrontar uma “guerra
civil internacional” acerca de cujas formas e prazos de desenvolvimento muitos erros de
previsão haviam sido cometidos, mas de que a II Guerra mundial e os confrontos no
seio de cada país eram concretizações diferidas. Partidos organizados segundo um
modelo de centralização e disciplina militar que eram os mais adequados a enfrentar a
repressão, e ao mesmo tempo animados por uma convicção histórica capaz de ver para
além das realidades imediatas da derrota e da esmagadora superioridade de meios dos
ocupantes.
Não menos decisiva é a orientação estratégica impressa pelos PCs à Resistência, que
retoma, actualiza e dá uma expansão inédita às políticas de Frente Popular. Se, apesar
de êxitos parcelares e da sua importância prática na guerra civil de Espanha, as Frentes
Populares se tinham, nos anos trinta, saldado por um fracasso histórico dos objectivos
de transformação político-social e defesa da Paz, é no quadro das Resistências que, com
nomes diversos – “união patriótica”, “frente democrática”, etc. – a ideia inspiradora de
conjugação de forças de proveniências diversas para o objectivo central de derrota do
imperialismo nazi-fascista e libertação nacional, ligada a um objectivo de

60
Claudio Natoli, Fascismo, Democrazia, Socialismo, Franco Angeli, Milão, 2000, p. 302.
61
Collotti, “Resistenza”, p. 734.
235

democratização política e social, ganha eficácia e vence historicamente62. “Por toda a


parte as frentes constituem o lugar pelo qual os PC se identificam com a luta pela
libertação e casam a bandeira vermelha com as cores nacionais. Através destas frentes, e
por vezes confundindo-se com elas, os PC conduzem manifestações de rua, propaganda
activa contra a repressão, solidariedade para com as vítimas, educação patriótica e luta
contra a colaboração, preparação do levantamento nacional, greves e sabotagens e,
através dos seus movimentos armados, liquidações dos colaboradores, sabotagens de
envergadura e finalmente confrontos com o ocupante.”63
Não foram porém apenas os comunistas a integrar os movimentos de Resistência e, por
outro lado, nem sempre a participação comunista teve o efeito de suscitar as amplas
formas de aliança patriótica descritas. Não sendo possível percorrer aqui os casos
concretos de cada país, alguns há que devem ser mencionados. E desde logo a
resistência desenvolvida pelos povos da União Soviética, nas regiões ocupadas da
URSS, portanto na rectaguarda das linhas inimigas, perante condições de extraordinária
brutalidade repressiva. É uma acção política e militar que envolveu centenas de milhar
de pessoas, em coordenação com o Exército Vermelho, e cuja direcção era assegurada
pelo Partido Comunista soviético64.

A Resistência na Polónia
Um país onde o Partido Comunista teve papel minoritário, embora activo, na
Resistência, foi a Polónia. Um aspecto significativo, e até impressionante, da
Resistência polaca, foi a manutenção, durante todo o período da guerra, de um sistema
de ensino a todos os níveis, incluindo o universitário, com que os Polacos reagiram à
tentativa nazi de reduzir os eslavos, como raça inferior, aos graus elementares de
ensino. A componente maioritária da resistência polaca teve a dirigi-la o governo
exilado em Londres. A tradicional hostilidade anti-russa, agravada pelos efeitos da
ocupação pela URSS dos territórios do leste na sequência do pacto germano-soviético e
pelo anticomunismo do governo de Londres, determinaram a existência de dois
movimentos de Resistência armada, a Armia Krajowa, fiel ao governo de Londres, e a

62
Cfr. Geoff Eley, Forjando a Democracia. A história da esquerda na Europa 1850-2000,
Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005, pp.330 e sgs.
63
Gotovitch, p. 148.
64
Giuliano Procacci, Storia del XX Secolo, Bruno Mondadori, Milão, 2000, p. 268.
236

Armia Ludowa, de orientação comunista. Na preocupação de conseguir libertar o


território pelos seus próprios meios antes da chegada do Exército Vermelho, a primeira
desencadeou, a 1 de Agosto de 1944, a insurreição de Varsóvia. Já em 1943 tivera lugar
a insurreição do ghetto judeu da cidade, dizimada pela artilharia, e após a qual os
sobreviventes foram deportados para os campos de extermínio.
A insurreição de 1944 foi também violentamente esmagada, com milhares de vítimas, e
Varsóvia arrasada pelas tropas alemãs. As tropas do Exército Vermelho, que se
encontravam do outro lado do Vístula e tinham o seu próprio plano de operações, não
prestaram a tempo auxílio aos insurrectos.
Ulteriormente, com o avanço do Exército Vermelho sobre a Polónia, a URSS favoreceu
a constituição de um governo a partir do Comité de Lublin, dominado pelo Partido
Comunista, remetendo para posição subalterna, e depois marginalizando, os
representantes do governo exilado em Londres, que representava a continuidade com o
Estado polaco existente antes da Guerra.

A Resistência na Jugoslávia
Na Jugoslávia a resistência armada iniciou-se cedo, em 1941, em reacção à intervenção
alemã contra um golpe de Estado pró-aliado. As possibilidades da luta de guerrilha
eram favorecidas pela orografia da região balcânica, mas a Resistência esteve dividida
em dois movimentos, ambos em luta contra os Exércitos nazis e os seus aliados fascistas
da Croácia, os ustachas. Havia por um lado a guerrilha nacionalista sérvia, os tchetniks
liderados por Mihailovitch, por outro o Exército comunista liderado por Josip Broz Tito.
Separava-os não só a orientação conservadora e monárquica de Mihailovitch, mas
sobretudo o seu nacionalismo sérvio e anti-croata, contrário à orientação de Tito, ele
próprio croata e favorável a um renascimento da Jugoslávia como república federal.
Apesar das directivas soviéticas no sentido do entendimento dos dois movimentos e da
aceitação da solução monárquica, tal não se verificou, acabando os nacionalistas
tchetniks, por hostilidade aos comunistas, a colaborar com as tropas de ocupação alemãs
e italianas. Em resultado disto, e da capacidade militar superior evidenciada pela
guerrilha comunista, o próprio governo inglês de Churchill decidiu apoiá-la e fornecer-
lhe auxílio em material de guerra. Em 1945, a Jugoslávia e a Albânia acabaram por ser
237

os únicos países da Europa de leste a libertar-se pelas suas próprias forças, por acção da
guerrilha dirigida pelos Partidos Comunistas.

Resistência e guerra civil na Grécia


Aspectos semelhantes e problemas comparáveis, mas com um desfecho diferente, teve a
Resistência armada na Grécia. Aqui foi inicialmente a Itália, dentro do seu desígnio de
expansão no Mediterrâneo, a potência invasora, mas as dificuldades com que se
defrontou o Exército italiano determinaram Hitler a mandar tropas em seu socorro. Ao
passo que o governo monárquico se exilou no Egipto, a força realmente eficaz no
estabelecimento de uma aliança da esquerda e na direcção de uma força de guerrilha (o
ELAS) foi o Partido Comunista Grego. Quando em 1944 as tropas britânicas entram na
Grécia, era o ELAS quem controlava a maior parte do território e contava com genuíno
apoio popular. Os ingleses obrigam porém ao seu desarmamento e apoiam os
monárquicos, entretanto coligados com as direitas anteriormente envolvidas na
colaboração pró-alemã. Em Dezembro de 1944, em reacção a esta situação, desenvolve-
se a insurreição de Atenas, que se prolongou por quase um mês, e foi esmagada,
fazendo muitas vítimas. O acordo de Varkhiza, assinado a seguir, e que tinha em vista a
realização de um referendo sobre o regime e a realização de eleições livres, não foi
respeitado. Em 1946 recomeça a guerra civil, que dura até 1949 e se salda pela derrota
da esquerda. O facto de, na divisão de esferas de influência acordada entre Stalin e
Churchill, a Grécia ficar na esfera ocidental, nas condições da guerra fria (em 1947 a
presença militar inglesa é substituída pela americana) foi determinante para esta
derrota65. Só em 1974 a democracia será instaurada na Grécia.

A Resistência em França
Em França e em Itália os partidos comunistas foram as principais forças dirigentes de
organizações militares de Resistência, mas aceitaram integrar-se em comités presididos
por figuras conservadoras anti-fascistas. Foi o caso, em França, do Comité Nacional da
Resistência chefiado por De Gaulle, que em 1944 estabeleceu em Argel um governo

65
Lidia Santarelli, “La guerra civile greca”, in Agosti (dir.), Enciclopedia, pp. 735-741; Ilios
Yannakakis, “Le parti communiste grec dans la résistance et la guerre civile. Témoignage de Dimitris
Vlandas”, Communisme nº2, 1982, pp. 73-91.
238

provisório com representação dos diversos partidos. Após o desembarque da


Normandia, em Junho, as forças da Resistência (o “maquis”) cooperaram estreitamente
com os exércitos aliados, conseguindo desencadear em Agosto de 1944 a insurreição
vitoriosa em Paris e noutras cidades. O PCF registou, neste contexto, um crescimento
muito forte, conseguindo obter sólidas posições ao nível do poder local, apoiadas nas
Milícias patrióticas formadas a partir da organização armada da Resistência (os FTP,
Franc Tireurs Partisans), e desenvolvendo uma enérgica acção de depuração dos
elementos envolvidos na Colaboração com o ocupante. Em 1944, durante algum tempo,
pareceu desenhar-se em França uma situação de tipo soviético. Após o regresso a
França de Maurice Thorez, em Outubro desse ano, a prioridade atribuída à consolidação
das instituições, no quadro da política de unidade democrática e de aceitação da
liderança do general De Gaulle, dissipou essa hipótese, aliás inviável no quadro da
presença dos Exércitos anglo-americanos. No entanto, o governo de coligação
(socialista, comunista e democrata-cristã) formado no final da guerra aplica o programa
do Conselho Nacional da Resistência: introdução da segurança social, combate ao
desemprego, planeamento económico, depuração dos colaboracionistas da função
pública e do poder económico (a Renault foi nacionalizada por esse motivo),
restauração da semana de 40 horas, dos direitos sindicais e das comissões de
trabalhadores, nacionalização da banca e das indústrias de base. Nas eleições
constituintes de 1945 e nas legislativas do ano seguinte o PCF, que disfruta do prestígio
da sua contribuição para a Resistência – “o partido dos fuzilados” - afirma-se como a
principal força (28,8% em 1946)66.

A Resistência em Itália
Situação parcialmente semelhante, mas especialmente complexa, foi a que caracterizou
a libertação da Itália, onde em Julho de 1943 se deu a queda de Mussolini por iniciativa
do rei e do próprio Grande Conselho fascista. Porém, o governo do Marechal Badoglio,
que sucedeu a Mussolini, não define uma posição clara na guerra. Perante a invasão
aliada do Sul de Itália e a consequente ocupação de Roma e do Norte de Itália pelas
tropas alemãs, o rei e o governo fogem de Roma, abandonando as tropas sem direcção.

66
Cfr. Geoff Eley, Forjando a Democracia, pp.337-339.
239

Só ulteriormente o governo de Badoglio toma posição oficial a favor dos Aliados e


declara guerra à Alemanha, constituindo-se então no Sul, com sede em Salerno, um
governo com a participação das forças democráticas. É neste período que, na Itália do
Norte, onde funcionava a “república de Saló” de Mussolini, sob ocupação alemã, se vai
desenvolver um vasto movimento de Resistência, assente em formações de guerrilha,
mas contando também com a acção, pacífica e armada, nas cidades, de militantes,
principalmente comunistas, socialistas e azionisti, quer dizer, dos partidos da esquerda.
Também em Itália o Partido Comunista regista neste período um crescimento
impressionante, o que se explica em grande parte pelo facto de, apesar da sua debilidade
organizativa nos anos anteriores à queda de Mussolini, ter sido a única força que sob o
fascismo desenvolveu uma oposição continuada. Mas a acção do PCI integrou-se
disciplinadamente na da coligação partidária que constituía o governo no sul, e cuja
autoridade o Comité Nacional de Libertação da Alta Itália, no Norte, embora composto
essencialmente por comunistas e socialistas de esquerda, acatava. Em 1944 os
comunistas integram o governo de Badoglio (conjuntamente com os socialistas, o
Partito d’Azione e a democracia-cristã), contribuindo para superar a discussão em torno
da subsistência da Monarquia (esta só virá a terminar depois da Guerra, em 1946, por
referendo, do qual nasceu a República). Afastando decididamente as tendências no
sentido de utilizar as posições militares alcançadas para a instauração de um regime
socialista, o líder do PCI, Palmiro Togliatti, apostou tudo na transformação, alcançada
com êxito, do PCI num grande partido de massa, e na capacidade deste de promover,
em aliança com os outros partidos democráticos (incluindo a democracia-cristã,
influente na larga massa do campesinato) um vasto processo de reforma da sociedade
italiana67.

A Resistência nos países da Europa de leste


Também na Bulgária, na Roménia, na Hungria, na Checoslováquia, países libertados
pelo Exército Vermelho, se constituiram frentes de unidade entre os partidos
comunistas, socialistas e camponeses existentes em cada país. A influência dos Partidos
Comunistas era muito variável. Era grande na Bulgária, onde sustentou um movimento

67
Aldo Agosti, Bandiere Rosse. Un profilo storico dei comunismi europei, Editori Riuniti, Roma,
1999, pp.135-140.
240

de resistência armada importante, e também na Checoslováquia. Na Eslováquia, em


Agosto de 1944, a insurreição contra o regime clerical-fascista de Monsenhor Tizso,
aliado de Hitler, foi derrotada. Após a insurreição de Praga, de 5 de Maio de 1945, com
a libertação, dá-se a reunificação da Checoslováquia. O Partido Comunista é o maior
partido nas eleições de Maio de 1946 (38% dos votos).
A influência comunista era pequena na Roménia (onde o ditador Antonescu foi
derrubado por um golpe de Estado semelhante ao ocorrido em Itália). Era também
minoritária na Hungria, embora aqui pudesse reatar com fortes tradições de mobilização
operária e da intelectualidade, que remontavam à República dos Conselhos de 1919.

A Resistência na Alemanha
O panorama das Resistências europeias ao fascismo hitleriano não pode dispensar a
referência aos movimentos de oposição desenvolvidos, com pesado tributo de sangue,
dentro da própria Alemanha e pelos alemães no exílio. É um aspecto que importa tanto
mais sublinhar quanto, ao colocar-se o problema da responsabilidade histórica pelos
crimes de guerra e o genocídio, esta é por vezes com demasiada facilidade atribuída aos
“Alemães” em geral, retribuindo um tipo de exclusão próprio das categorizações do
fascismo. Atitude compreensível no contexto da Guerra e do imediato pós-guerra e que
suscitou até panfletos históricos originais68, ela foi reactivada em anos recentes pelo
impacto da obra do historiador americano Daniel J. Goldhagen69.
Importa em primeiro lugar ter presentes os custos humanos suportados pelos opositores
alemães do nazismo, quer antes da chegada de Hitler ao poder, quer depois. Já em 1939,
nas vésperas da Guerra, cerca de 190 mil alemães estavam ou tinham passado pelas
prisões e campos de concentração, 12 mil tinham sido condenados à morte por “alta
traição” e 40 mil tinham fugido do país por motivos políticos. Durante a Guerra, outros
15 mil foram condenados à morte70. A grande maioria eram operários.
A investigação acerca da Resistência na Alemanha esteve durante muito tempo
prejudicada, não só pelos preconceitos mencionados, mas também, na historiografia

68
A.J.P.Taylor, The Course of german History (1ª ed. 1945).
69
Os Carrascos Voluntários de Hitler. O povo alemão e o holocausto, Editorial Notícias, Lisboa,
1999.
70
Ian Kershaw, Qu’est-ce que le nazisme? Problèmes et perspectives d’interprétation, Gallimard,
Paris, 1997, p. 321.
241

alemã, pelos efeitos da divisão em dois Estados (RFA e RDA), que durou até 1989, e do
ambiente político e cultural da “guerra fria”. A historiografia da RDA quase só fazia
menção do Partido Comunista Alemão (KPD) na clandestinidade, ao passo que a
historiografia da Alemanha ocidental se interessava essencialmente pela acção do
grupo, de extracção social burguesa e aristocrática, ligado ao coronel conde Claus von
Stauffenberg, que em 1944 levou a cabo a mais espectacular e conhecida das iniciativas
tendentes a derrubar o regime: o atentado falhado de 20 de Julho de 1944 contra Hitler.
A historiografia desenvolvida a partir dos anos 70 não só alargou o espectro das
organizações e movimentos a considerar e afinou a respectiva periodização como, sob o
influxo das investigações de história social e de história da vida quotidiana, ampliou o
próprio conceito de “resistência”.
Nos primeiros anos de existência da ditadura hitleriana, até 1935, a organização
efectivamente empenhada numa intensa actividade de organização e propaganda ilegal,
apesar da perseguição terrorista a que foi sujeita, foi o partido comunista, KPD (até
1933 o segundo maior do mundo, depois do soviético). O partido social-democrata
cessou a actividade (apenas uma parte dos seus dirigentes a continuou a partir do
exílio). A acção comunista era animada pela convicção de que o nazismo, como
ditadura terrorista, representava o estertor do domínio burguês, a que inevitavelmente
sucederia a revolução proletária. Após 1935, também o KPD regista uma evolução, em
resultado dos golpes sofridos e da aplicação da política de Frente Popular, mais sóbria
na apreciação da situação existente e mais preocupada com a aproximação aos social-
democratas e, em geral, às preocupações da população com o custo de vida e o perigo
de guerra. Foi uma tentativa praticamente sem resultados, porque justamente nestes
anos a saída da situação de crise económica e os sucessos de Hitler em política externa
consolidam o prestígio do regime entre a maioria da população, inclusive na classe
operária. De registar, no entanto, a constiuição, no exílio, de um “comité de preparação
da Frente Popular alemã”, a que também aderiram alguns social-democratas e figuras
intelectuais de relevo. Importante ainda mencionar a participação, como combatentes
das Brigadas Internacionais na guerra civil de Espanha, de 5 mil antifascistas alemães
(predominantemente comunistas), dos quais 3 mil caíram em combate.
A partir de 1937 desenha-se a emergência, entre sectores da hierarquia militar e das
cúpulas sociais e do Estado, que anteriormente tinham apoiado a política de
242

remilitarização e afirmação nacionalista de Hitler, de uma preocupação com a


orientação deliberada para a preparação da guerra. Nas vésperas da conferência de
Munique, tendia a formar-se uma oposição militar a Hitler em torno do general Ludwig
Beck, até então chefe do Estado-Maior, e coincidindo com o grupo civil em torno de
Carl Goerdeler, que em 1937 se demitiu de burgomestre de Leipzig. Mas o
extraordinário sucesso diplomático conseguido por Hitler em Munique, aumentado
pelos extraordinários êxitos militares da primeira fase da guerra, conteve o
desenvolvimento deste processo.
A entrada em guerra agrava dramaticamente as possibilidades de qualquer tipo de
oposição, sujeita à acusação de “traição à pátria” e consequente condenação à morte.
Não se trata apenas da perseguição movida pelos órgãos oficiais da repressão, mas do
facto de que a grande maioria da população aceitou e se identificou com a política de
Hitler. Para isso contribuiram os efeitos da destruição e do descrédito do sistema
democrático de Weimar, a quebra dos laços de solidariedade sindical ou política
resultante da liquidação das organizações, a exaltação nacionalista, as vantagens
económicas retiradas do domínio do continente e do saque dos países ocupados e, com a
continuação da guerra, a própria consciência dos crimes cometidos e o medo das
consequências da vitória aliada.
No entanto, mesmo nestas condições, alguns ousam manter ou reatar uma actividade de
oposição.
De iniciativa comunista, constitui-se, em Berlim o grupo, composto maioritariamente
por intelectuais jovens, em torno de Arvid Harnack, funcionário do Ministério da
Economia, e Harro Schulze-Boysen, que desenvolveu actividade de agitação,
sabotagem económica e de informação a favor da URSS. O grupo é desmantelado pela
Gestapo e 78 dos seus membros (50 comunistas, 7 social-democratas e 20 sem partido)
executados.Entre eles 19 eram mulheres. Deriva da Gestapo a designação (que ficou
famosa) deste grupo como parte da Orquestra Vermelha, mas esta correspondia a um
conjunto mais diverso de organizações, não só alemãs, ligadas à espionagem militar
soviética71.

71
Werner Roehr, “Deutsche Widerstandsforschung 1994/95: Fragen und Probleme”, Bulletin-
Berliner Gesellschaft fuer Faschismus-und Weltkriegsforschung, nº 8, 1997, pp.51 sgs.
243

Outros grupos de base, predominantemente comunistas, nalguns casos em conjunto com


social-democratas, mantiveram-se em contacto até praticamente ao final da guerra,
dedicando-se à recolha de informação e à audição das rádios estrangeiras, mas
crescentemente isolados do exterior.
Em Munique constituiu-se, em volta dos irmãos Hans e Sophie Scholl, estudantes da
Universidade, o grupo de inspiração cristã da Rosa Branca, que desenvolveu intensa
actividade de agitação e denúncia dos crimes de guerra. Ambos os irmãos, assim como
um terceiro membro do grupo e um professor, foram executados72.
Desde 1940 que um grupo de composição burguesa e aristocrática, o círculo de Kreisau,
também com a participação de personalidades oriundas da social-democracia,
equacionava planos, de inspiração socialista cristã, acerca do futuro da Alemanha liberta
de Hitler. É da convergência entre elementos deste círculo e um grupo de oficiais da
Reichswehr, alguns deles ainda com importantes posições militares, que vai nascer,
após a derrota de Estalinegrado, a conspiração para uma acção militar com vista à
supressão de Hitler e à mudança de governo. A orientação inicial deste grupo era
acentuadamente conservadora, mas evolui, integrando no plano a colaboração de
elementos anteriormente ligados aos sindicatos social-democratas. A coordenação da
acção (“Operação Valquíria”) vem a ser assegurada pelo coronel do Estado-Maior Claus
von Stauffenberg, que assumiu também a realização do aspecto essencial que era o
atentado contra Hitler. O atentado falha, e a repressão subsequente faz 5 mil vítimas.
Segundo Hans Mommsen, “as cerca de 7 mil personalidades apontadas pela Gestapo em
relação com o 20 de Julho estão longe de representar a totalidade dasqueles que, directa
ou indirectamente, estiveram envolvidos.”73
Embora tanto a Igreja católica como a evangélica mantivessem uma atitude
essencialmente de conformidade com o Estado, deve ser mencionada a atitude de
figuras como o arcebispo de Muenster, que tomou posição pública contra o programa de
eutanásia dos incapacitados, contribuindo para a sua anulação, e ainda a participação
individual na Resistência, motivados pelas suas convicções, de milhares de crentes,

72
Merece referência o filme de Marc Rothemund, Sophie Scholl. Os últimos dias, 2005.
73
A resistência alemã a Hitler 1933-1945. Exposição informativa e documental da República
Federal da Alemanha, 1986, p. 11.
244

entre eles os pastores protestantes Martin Niemoeller e Dietrich Bonhoeffer, que


pagaram com a vida a sua atitude corajosa.74

Amplitude e diversidade da resistência


Como se referiu, na historiografia da resistência alemã teve uma importância decisiva a
história social, sistematicamente desenvolvida a partir do projecto iniciado em 1973
pelo Instituto de História Contemporânea da Munique, sob a direcção de Martin
Broszat, do qual nasceriam nos anos seguintes seis volumes sobre “Resistência e
perseguição na Baviera”. Aí se encontravam, além de estudos sobre os grupos políticos
organizados, a descrição de episódios sem conotação política explícita (como os
incidentes gerados pela continuação de relações dos camponeses com os fornecedores
de gado judeus, ou com os trabalhadores estrangeiros). Na continuidade deste estudo,
M. Broszat viria a defender a necessidade de introduzir um novo conceito (Resistenz)
para considerar a multiplicidade de comportamentos que, sem intenção política directa,
de algum modo tinham restringido o arbítrio do poder nazi ou limitado a sua eficácia,
mas se distinguiam da oposição organizada (em alemão, Widerstand) - comportamentos
como a recusa da saudação hitleriana, a manutenção de relações com social-democratas
ou com judeus, a defesa da autonomia de instituições ou ideias em qualquer domínio75.
Como nota, no mesmo sentido, Hans Mommsen, “a linha que separa a resistência
organizada, tendente à superação do sistema, dos actos isolados de oposição, não passa
de uma fronteira artificial”76. Dar acolhimento a judeus ou proporcionar-lhes meios de
fuga, ajudar os prisioneiros de guerra, oferecer senhas de racionamento a perseguidos
ou recusar a execução de ordens criminosas, eram formas de resistência. O
conhecimento destes diversos comportamentos é também essencial para a história da
resistência política que, nas suas realizações como nos seus limites, nunca foi
independente do ambiente social que a envolvia.
Apesar das controvérsias que a rodearam, a orientação preconizada por estas
investigações tem um alcance que ultrapassa o estudo da história da resistência alemã.
Já há muito que Henri Michel sublinhava como a Resistência tem muitos graus e

74
Claudio Natoli, “Opposizione antinazista”, in Aldo Agosti (dir.), Enciclopedia, pp. 512-520.
75
Kershaw, Qu’est-ce que le nazisme?, pp.296 e sgs.
76
A resistência alemã a Hitler, p.8.
245

motivações, que por vezes a fronteira entre colaboração e resistência era difusa77. Por
seu lado, Leonardo Rapone, reclamando “libertar o antifascismo como objecto
historiográfico da sua dimensão social e reinseri-lo na história da Itália”, sublinha que
“nos diversos meios sociais, há contiguidade ente o antifascismo e estas formas
ambíguas e parciais de resistência à mobilização fascista: muitas vezes a opção
antifascista militante amadurece porque, na experiência dos indivíduos, a anterior
estratégia de convivência com o regime, e de contenção das suas pretensões de domínio
das consciências, chegou a um ponto de ruptura; e muitas vezes o militante antifascista
permanece em contacto com aquele mundo, a sua experiência não se esgota na
dimensão conspirativa e clandestina (…) o antifascismo podia também nascer da
aspiração a uma vida normal.”78

O legado da Resistência
As formas da Resistência são assim muito diversas nas suas origens, expressões e
intensidades. Isso não impede que se possa considerar nelas “a existência de um núcleo
e de elementos comuns: não só obviamente a oposição ao fascismo, mas também a
aspiração a algum tipo de ‘ordem nova’ que rompesse definitivamente com um passado
próximo feito de guerras, de instabilidade e de desemprego”79.
François Furet, que se empenhou em denunciar o antifascismo como “a grande ilusão da
época“ e um subproduto da “ilusão comunista”, notou agudamente que, em contraste
com os resultados da I Guerra mundial, no final da Segunda, “a interpretação da vitória
não é contestada por ninguém, nem sequer pelos vencidos”, acrescentando noutra
passagem que o fim da guerra confirmava a tese marxista segundo a qual a derrota do
fascismo punha em causa o capitalismo80. A partir de pressupostos diferentes, E.J.
Hobsbawm caracteriza a aliança antifascista da Guerra e das resistências como
“simultaneamente pela regeneração social. Porque a II Guerra mundial era, para o lado
vencedor, não apenas uma luta pela vitória militar, mas – mesmo na Grã-Bretanha e nos
EUA – por uma sociedade melhor. Ninguém sonhava com um regresso no pós-guerra a
77
Michel, Les Mouvements, pp. 11-23.
78
L. Rapone “Antifascismo e storia d’Italia” in Enzo Collotti (a cura di), Fascismo e antifascismo,
pp.233-235.
79
Procacci, Storia, p. 274.
80
François Furet, Le Passé d’une Illusion. Essai sur l’idée communiste au XX. Siècle,
Laffont/Calmann Lévy, Paris, 1995, pp. 407, 412.
246

1939 – ou mesmo a 1928 ou 1918, como após a I Guerra mundial os estadistas tinham
sonhado com um regresso ao mundo de 1913.”81
Como Hobsbawm também sublinha, em resultado da Libertação, formaram-se governos
do mesmo tipo, tanto na Europa ocidental como na Europa de leste, baseados em
coligações de esquerda que retomavam a ideia da Frente Popular. Também as medidas
levadas a cabo por estes governos foram essencialmente do mesmo tipo: reformas
agrárias, nacionalização dos sectores-chave da economia, afastamento dos fascistas e
proibição das suas organizações, política social favorável aos trabalhadores. Por toda a
parte “a lógica da guerra antifascista impelia para a esquerda”82.
Na Europa e no mundo, 1945 foi um período de projecção máxima dos partidos e da
ideologia comunista, devido não só às vitórias do Exército Vermelho como à
participação comunista nas resistências83. Esta relação não se desenvolveu em sentido
único. Como escreve G. Elley, “as condições peculiares da guerra criaram o espaço em
que surgiu um tipo diferente de comunismo, baseado na Resistência e nas tradições
progressivas de cada sociedade.” 84 Foi um momento de abertura de possibilidades
históricas que Elley compara às de 1918/19, mas cujos efeitos foram mais consistentes e
duradouros. Um aspecto não secundário da experiência da Guerra, da resistência e da
libertação, foi a massiva deslocação do campo intelectual para a esquerda, que se
prolongou até aos anos 80. Não só em Itália e França, onde os partidos comunistas eram
grandes formações políticas, mas também num país como Portugal, onde a ditadura se
manteve, o marxismo tornou-se a corrente dominante entre os intelectuais85.
A emergência da “guerra fria”, mudando as relações entre as potências participantes da
coligação antifascista, alterou o quadro em que as transformações democráticas tinham
sido possíveis, mas não as anulou. Os princípios de garantia dos direitos políticos e
sociais consagrados pela Carta da ONU, pelas novas Constituições de muitos Estados
europeus e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) influenciarão a
construção, no contexto do intenso desenvolvimento económico verificado no pós-
81
Eric Hobsbawm, Age of Extremes.The short twentieth century, Michael Joseph, Londres, 1994,
p. 161.
82
Id., ibidem, p. 163.
83
V. Stéphane Courtois, “L’année du triomphe du communisme”, in AA. VV., L’État du Monde
en 1945, La Découverte, Paris, 2005, pp. 72-79
84
Elley, Forjando a Democracia, p. 335.
85
V. Daniel Lindenberg, “L’apogée du philocommunisme des intelectuels occidentaux”, in AA.
VV., L’État du Monde en 1945, pp. 222-227.
247

guerra, do Welfare State. Também esses princípios e essa herança cultural marcam a
resistência antifascista e a instauração em Portugal, com trinta anos de atraso, do regime
democrático. Em 1974, porém, começavam já a notar-se os primeiros sinais da crise do
Welfare State e dos ventos da globalização capitalista que, com a crise dos Estados
socialistas europeus, trariam no final do século uma reacção, hoje em pleno
desenvolvimento, que ameaça destruir as aquisições de civilização com tanto custo
alcançadas pelos sacrifícios da Guerra e das Resistências antifascistas.
248

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261

LIVRO II

A EUROPA E O MUNDO
DEPOIS DE 1945

Lições ao 3º ano do curso de História do ISCTE no 2º semestre do ano lectivo 2007/08.


Transcrição por dra. Maria Augusta Seixas e aluna Lígia Correia, revista pelo docente.
Índice
262

1. Introdução………………………………………………………………………...264
2. Os inícios da guerra fria: 1945-47……………………………………………….280
3. O pós-guerra e a primeira fase da descolonização……………………………..294
4. Guerra fria. Da revolução chinesa à guerra da Coreia.O Maccartismo.
A repressão na URSS e na Europa de leste………………………………………..305
5. O período da guerra fria nos EUA e na Europa ……………………………….317
6. A crise do Suez. A Conferência de Bandung. As independências africanas….332
7. Os anos do desenvolvimento 1950 – 1973……………………………………….346
8. A coexistência pacífica. As crises de Berlim e de Cuba. A Igreja Católica do
Vaticano II à Teologia da Libertação. O conflito sino-soviético. A Guerra do
Vietname…………………………………………………………………………….367
9. O terceiro mundo. O Médio Oriente: a “guerra dos seis dias”. A América latina
e o impacto da revolução cubana. …………………………………………………388
10.Dos movimentos de protesto na América ao Maio de 68. O conflito sino-
soviético e a revolução cultural na China. Das negociações SALT à Conferência de
Helsínquia. O conflito israelo-árabe: a guerra do Yom Kippur…………………402
11. A crise dos anos 70. A revolução iraniana…………………………………….420
12. O fim do mundo bipolar. Da crise do bloco de leste ao fim da URSS.
A Perestroika e o fim da “guerra fria”……………………………………………..434
Bibliografia…………………………………………………………………………..459

Nota: o mapa da página 284 é tirado de Norman Lowe, Mastering modern world
History, MacMillan, Basingstoke, 3ª edição, 1997, p. 125.
263

Nota prévia

Este texto reproduz, mantendo em larga medida a expressão oral, as lições dadas em
2008 na cadeira A Europa e o Mundo depois de 1945 da licenciatura em História do
ISCTE. É o resultado, por natureza provisório, da prática de alguns anos de ensino da
disciplina, iniciada há dez anos sob a designação, que se manteve até há pouco, de
História Contemporânea Geral IV.
Tem sido um trabalho muito interessante mas não fácil, dado que sempre realizado em
simultâneo com outros encargos de leccionação. Nestas condições, nunca foi possível a
dedicação suficientemente concentrada a este domínio, o da História mundial recente
(como disciplina científica já parcialmente distinta da História Contemporânea no
sentido convencional), que seria necessária para elaborar um texto com a desejável
autonomia e coerência de perspectiva (que, até certo ponto, julgo ter conseguido nas
lições A Europa e o Mundo entre Guerras).
O curso foi sendo construído à medida que o permitia o avanço nas leituras da
bibliografia, também ela em rápida renovação. Foram de grande auxílio em particular as
obras de Massimo Salvadori e T. E. Vadney citadas. Mas o livro de Scipione
Guarracino, Storia degli ultimi sessanta anni, publicado em 2004 (que actualiza e
desenvolve consideravelmente a sua anterior Storia degli ultimi cinquant’ anni) é que
nos forneceu, não só muitas das informações mas, em grande medida, a arquitectura do
curso na versão aqui apresentada. Algumas das lições, como em cada caso assinalo, não
são mais do que resumos do que se encontra nessa obra.
Muito haverá portanto de futuro a alterar e acrescentar neste texto. Assinala-se como
lacuna maior a que respeita às origens do conflito israelo-árabe, de tanta importância na
actualidade, abordadas na aula através de um filme documental.
Os limites de tempo do semestre lectivo (e não uma opção metodológica) obrigaram-
nos a terminar em 1991, termo do “breve século XX” segundo uma concepção em voga.
Resta dizer que, obviamente, todos os defeitos e eventuais erros, além de recordações e
opiniões pessoais, são apenas da minha responsabilidade.
264

A EUROPA E O MUNDO DEPOIS DE 1945

Lição 1. Introdução.

Terminámos o semestre passado pela história da II Guerra Mundial. É oportuno


sublinhar, no limiar do período que se inicia em 1945, a importância que a II Guerra
Mundial tem como cesura histórica.
A II Guerra Mundial, que se prolongou por mais de 6 anos, começou como um
conflito europeu por uma questão que em si podia parecer irrisória, a questão do acesso
a Dantzig reivindicado pela Alemanha, mas ao cabo de dois anos transformou-se numa
guerra efectivamente mundial, que envolveu a maior parte dos Estados do Mundo,
todos os continentes, e que causou um número de vítimas sem nenhuma comparação
com nada de conhecido até então. E, pelos seus resultados, marcou, de facto, uma
alteração fundamental das estruturas do mundo e o fim definitivo do predomínio
europeu.
No princípio do semestre passado, referi a época à volta de 1900, i.e., o começo
cronológico do século XX, como o apogeu da influência europeia no Mundo. Nesse
princípio do séc. XX o número de europeus, na população mundial, era da ordem dos
25%, uma proporção superior a qualquer outra até então. O aspecto demográfico era
apenas um dos muitos aspectos da “superioridade” europeia, porque também do ponto
de vista económico, da dominação política directa e indirecta, e do ponto de vista
cultural, das ideias, a influência europeia era esmagadoramente dominante nessa época.
Ora o período depois da II Guerra Mundial vai precisamente ser marcado pelo
desaparecimento definitivo, ou pelos menos definitivo até agora e certamente a muito
longo prazo, desse predomínio europeu. Hoje em dia a população europeia representa
cerca de 9% da população mundial e, sobretudo, a segunda metade do séc. XX é
marcada por uma estrutura bipolar das relações internacionais, em que ambos os pólos
são potências não europeias, os Estados Unidos da América por um lado e, por outro, a
União Soviética, que só parcialmente era uma potência europeia, porque a maior parte
265

do seu território era na Ásia. Ainda na primeira metade do século dá-se a independência
da Índia, em 1947.
A segunda metade do séc. XX foi marcada pelo fim do colonialismo, e por
consequência da dominação directa dos países europeus nas colónias.

Scipione Guarraccino86, o autor que vou seguir predominantemente neste curso,


fala, em relação à II Guerra mundial, da passagem do conflito europeu ao conflito
mundial. De certa maneira, essa viragem mundial, no entanto, estava pressuposta ou
existia potencialmente no carácter mundial de alguns dos grandes fenómenos politico-
sociais, de que falámos em relação à primeira metade do século XX.
Ou seja, os imperialismos que se defrontaram na I Guerra Mundial (1914-18),
correspondiam a conflitos em torno duma dominação mundial, não eram apenas
conflitos em torno de problemas territoriais europeus, eram conflitos de hegemonia
mundial. E grandes movimentos ideológicos como o comunismo, que teve uma
importância decisiva, era um movimento nascido da revolução na Rússia mas que, à
partida, se definia como mundial e tinha um projecto de carácter mundial.
Simetricamente quanto aos fascismos, embora fossem nacionalistas. Se
imaginarmos uma vitória hipotética da Alemanha nazi na II Guerra Mundial, ela ter-se-
ia traduzido numa dominação de tipo nacional, racial, e numa organização muito
hierarquizada do mundo, segundo esse princípio. No entanto, também o nazismo e os
restantes fascismos, apesar de nacionalistas, se consideravam portadores de princípios
de validade universal. A própria teoria racista era vista como um princípio de
organização ou de reorganização da hierarquia das relações sociais e políticas no
Mundo.
Estas são algumas das razões que fazem da II Guerra Mundial um momento de
viragem histórica de enorme alcance.
Mas também do ponto de vista económico e civilizacional a II Guerra Mundial
foi decisiva porque, com a afirmação, a partir daí, da hegemonia dos Estados Unidos,
foi a entrada num ciclo de desenvolvimento económico propulsionado pela hegemonia
americana.

86
Scipione Guarraccino, Storia degli ultimi sessant’anni. Dalla guerra mondiale al conflito globale,
Bruno Mondadori, Milão, 2004, XIV+383 pp.
266

Um ciclo de desenvolvimento económico com ritmos superiores a tudo o que


até então era conhecido – fala-se a esse respeito das “três décadas gloriosas” que se
situam aproximadamente entre 1945-75, portanto entre o fim da segunda Guerra
Mundial e meados dos anos 70, que foram, não só na Europa, e não só no mundo
capitalista, mas também no mundo socialista, 30 anos de ritmos de crescimento
económico, com taxas da ordem dos 5-6%. Ou seja, taxas médias excepcionalmente
elevadas e que se associaram no mundo desenvolvido, quer dizer, nos países europeus
capitalistas, nos EUA e, em certa medida, nos países socialistas europeus, à realização
do modelo consumista. Isto é, da economia propulsionada pela produção de bens de
consumo, com consequências enormes também do ponto de vista sociológico, pela
importância que ganha a cultura de massas e pela alteração do papel das mulheres.
Alteração que se tinha iniciado no princípio do século e alargado durante a I Guerra
Mundial, mas que depois se generalizou, com a generalização do trabalho feminino.
Esse crescimento económico baseado no consumo está também associado a um
modelo de organização familiar – de família que deixa de ser a família ampla para
serem núcleos familiares mais pequenos – e a uma tendência para o decréscimo
demográfico nos países desenvolvidos e, ligado a ela, a acentuação do individualismo.
Toda esta grande mudança histórica veio no final duma guerra que foi a mais
destrutiva de sempre na História da Humanidade, com 55 milhões de mortos - na sua
maior parte civis, o que aconteceu pela primeira vez na História. Um número enorme,
se tivermos em conta que a população mundial em 1945 não chegava aos 2 mil milhões
de pessoas. Este número enorme deveu-se em parte ao potencial destrutivo
extraordinário dos armamentos, mas também à violência associada às ideologias em
confronto e às características da condução da guerra, nomeadamente, pelos fascismos
alemão e japonês. Uma parte importante destas vítimas são vítimas de genocídios, o
genocídio dos judeus que fez para cima de 5 milhões de mortos, mas também o dos
ciganos (meio milhão), o genocídio de prisioneiros de guerra, sobretudo soviéticos, em
consequência das condições de detenção e, em muitos casos, do massacre sistemático,
como aconteceu em relação aos oficiais soviéticos, e ainda os massacres realizados pelo
Japão na ocupação da China. A China foi um dos países com maior número de vítimas
da guerra, 15 milhões - ficou célebre o massacre de Nanquim, realizado pelos
japoneses.
267

Um aspecto ainda da violência destrutiva da guerra, foi o bombardeamento das


cidades, iniciado logo com a invasão alemã de Varsóvia, e depois continuado com os
bombardeamentos das cidades inglesas, destinados a aterrorizar a população civil e com
isso provocar mais depressa a capitulação. Depois replicados na ofensiva aliada sobre a
Alemanha que se traduziu também em bombardeamentos tremendos, como o que teve
lugar em Dresden e destruiu a cidade, e que fez talvez cerca de 30.000 mortos. Mais
tarde, os bombardeamentos de Berlim, também dos mais destrutivos, e finalmente os
bombardeamentos sobre o Japão, nomeadamente o de Tóquio e as bombas atómicas
lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki.
Além do aspecto genocida, a guerra traduziu-se em grandes deslocações de
massa, directa ou indirectamente forçadas, a começar pela expulsão dos polacos da
região anexada pela Alemanha logo no princípio da guerra. Depois as fugas perante a
invasão alemã do território soviético, as deportações de povos que tiveram lugar na
União Soviética e, na última parte da guerra, as fugas de alemães da Prússia Oriental
perante o avanço soviético, assim como, depois, as expulsões de alemães da
Checoslováquia.
Estas destruições e deslocações humanas significaram também destruições
materiais que afectam radicalmente a situação de todas as potências envolvidas e
causam uma diminuição radical do rendimento nacional dos países envolvidos na
guerra. Obviamente foi assim no caso da União Soviética, como no da Inglaterra, da
França, da Itália, praticamente todos os países envolvidos na guerra, porque todos os
recursos eram investidos no esforço de guerra. Nomeadamente a Inglaterra, para
continuar a resistir, endividou-se muitíssimo em relação aos Estados Unidos e teve de
liquidar quase completamente as suas reservas de ouro, teve de liquidar muitos dos seus
investimentos coloniais, para os investir no esforço de guerra.
Muitas das infra-estruturas essenciais de transportes e comunicações, como
portos e caminhos de ferro, por exemplo, além das próprias fábricas, foram destruídas
por efeito dos bombardeamentos,
Em todos os países europeus envolvidos, o esforço de guerra implicava
aumentar a circulação de moeda para que não havia correspondência em produções que
não fossem o próprio material de guerra – por definição destinado a ser usado e
destruído, o que vai gerar crises inflacionistas agudas no final da guerra. E em resposta
268

à inflação o racionamento, o que dá ocasião ao mercado negro, que, por seu turno,
como já tinha acontecido na I Guerra Mundial, agrava as disparidades sociais e gera
situações de miséria extrema. Atrás da miséria, como veremos também no filme, vem a
falta de alimentação e doenças de toda a espécie.
Por contraste, os Estados Unidos conheceram, durante a 2ª Guerra Mundial, um
extraordinário desenvolvimento produtivo.
A depressão económica tinha atingido fortemente os Estados Unidos nos
primeiros anos da década de 30, sendo defrontada com as políticas do New Deal, de
investimento na base de intervenção directa do Estado na economia. Mas, até à II
Guerra Mundial, a economia americana viveu uma situação de tipo depressão, de que
sai com a Guerra. Mesmo antes da própria intervenção americana directa na Guerra,
porque o auxílio material e financeiro à Inglaterra, e depois também à Rússia, é um
enorme propulsionador da economia americana. Quer dizer, as encomendas de material
de guerra aos Estados Unidos vão ser um grande dinamizador económico e, ao mesmo
tempo, um meio através do qual o tesouro americano se enriquece. Sobretudo na
primeira fase da guerra, quem comprava tinha de pagar a pronto e, portanto, isso
significou uma grande introdução de ouro e divisas no tesouro americano. No final da
guerra e no pós-guerra, a produção americana é consumida por todo o mundo. As
reservas de ouro dos Estados Unidos, em 1948, chegam a ser três quartos das reservas
mundiais de ouro.
Mas para além disto a produção industrial no período da guerra duplicou nos
Estados Unidos e o potencial produtivo quadruplicou. O desemprego, que tinha sido
uma das chagas dos anos 30, desapareceu completamente. Foi substituído por uma
situação de pleno emprego.
Portanto este é o primeiro dado que vai condicionar fortemente a estrutura das
relações internacionais no pós-guerra: o potencial militar dos Estados Unidos, mas
também a superioridade económica e financeira dos Estados Unidos no plano mundial.

Em consequência da II Guerra Mundial, a Europa estava portanto destruída


materialmente e arruinada economicamente, ao passo que os Estados Unidos, embora
tendo tido uma participação material e humana absolutamente fundamental no conflito,
269

do ponto de vista económico beneficiaram com ele: a guerra constituiu um estimulante


decisivo da economia americana.
Com os fornecimentos à Inglaterra e depois à Rússia, e os empréstimos
concedidos, a América tornou-se, aliás como também tinha acontecido na I Guerra
Mundial, no grande credor mundial. De resto, na fase anterior a Dezembro de 1941 não
era propriamente credor. Recebia em cash o pagamento do armamento, e de todo o tipo
de auxílios materiais que forneceu à Inglaterra e à Rússia.
A preocupação dominante dos Estados Unidos no final da Guerra, e no decurso
das negociações durante a Guerra, é a de assegurar que não se voltem a repetir as
situações de crise, de depressão económica, de contracção dos mercados que tinham
sido vividas nos anos 30, e que tinham sido o factor decisivo dos nacionalismos
económicos e políticos que desembocaram na Guerra. Para evitar isso, terão de dar uma
plena utilização ao seu potencial económico, que está visto só poder realizar-se no
âmbito mundial.
Quer dizer, de certa maneira os projectos americanos do período da guerra e do
pós-guerra retomam aquilo que eram os projectos de organização mundial do
Presidente Wilson ligados ao nascimento da Sociedade das Nações, só que agora numa
condição diferente e muito mais forte dos Estados Unidos, quer do ponto de vista
militar, quer do ponto de vista económico e financeiro. Ou seja, esta posição americana,
assumida conscientemente, é um projecto, em especial do Presidente Roosevelt, que
considera que é preciso superar, definitivamente, aquilo que tinham sido as orientações
isolacionistas da América no plano da política externa, que tinham feito os EUA
absterem-se de participar na Sociedade das Nações.
Roosevelt considera que é necessário criar uma organização que se substitua ao
fracasso da Sociedade das Nações e, ao mesmo tempo, dar a essa organização, que vem
a ser a ONU, meios políticos, económicos e militares de eficácia, que a Sociedade das
Nações não tinha tido.
No plano económico, é importante chamar a atenção para as resoluções que são
adoptadas no período final da Guerra e que vão estabelecer as bases do sistema
económico internacional que vai vigorar no pós-guerra e a longo prazo, essencialmente
até aos anos 70. E que, justamente, procuram utilizar essa capacidade financeira dos
270

Estados Unidos para, com base nela, criar um sistema que assegure o equilíbrio da
economia mundial.
O problema de base era idêntico àquele que se tinha posto já nos anos 20 e que
não tinha sido resolvido, ou seja, o de encontrar um termo de referência relativamente
objectivo das trocas internacionais, um valor sólido idêntico àquilo que tinha sido, antes
da I Guerra Mundial, o padrão-ouro (quando todos os Estados estavam obrigados a
converter as respectivas moedas em ouro sempre que isso fosse pedido). Antes de 1914,
a regra era essa, mesmo no plano das relações internas. Quer dizer, um cidadão ia ao
banco e pedia o que lá tinha, em ouro. E mais ainda, nas relações entre os Estados. A
convertibilidade em ouro era o critério da fiabilidade nas relações económicas
internacionais.
Nos anos 20, alguns países tinham regressado ao padrão-ouro, mas as situações
de crise económica tinham posto em causa a convertibilidade. A própria libra teve que
desvalorizar e a certa altura abandonar o padrão-ouro. No final da II Guerra Mundial,
em 1944-45, tinha-se alcançado uma situação em que a moeda americana era de tal
maneira decisiva, a capacidade económica e financeira americana era de tal maneira
decisiva, que o dólar estava em posição de se impor como o novo padrão. E, ao mesmo
tempo, em posição de aceitar a respectiva convertibilidade, quer dizer, a
convertibilidade do dólar, em ouro.
Portanto foi um novo padrão de câmbio, um novo padrão de referência do valor
da moeda, que se estabeleceu na Conferência de Bretton Woods. Bretton Woods é uma
cidade americana e esta Conferência de Bretton Woods é de grande importância pelas
decisões que tomou em matéria económico-financeira, porque o sistema que aqui foi
adoptado vigorará até aos anos 70, e foi decisivo para a reconstrução da economia
mundial no pós-guerra. Nesta Conferência aliás, ainda participou a União Soviética.
Estamos no final da Guerra, em pleno período da aliança mundial anti-fascista,
da coligação anti-hitleriana. Em princípio, a própria Rússia não está à margem dos
planos de uma reconstrução integrada, quer dizer concertada, da economia mundial. De
qualquer maneira, o papel decisivo, nesta Conferência de Bretton Woods, é dos EUA e,
em certa medida, também da Inglaterra, até pelo papel que pessoalmente nela
desempenha um economista que já era conhecido anteriormente, mas que nesta época
alcança o máximo do seu prestígio, que é o Lord Keynes, John Maynard Keynes.
271

Keynes foi um dos participantes na delegação inglesa à Conferência de Bretton Woods


e um dos pais do sistema chamado do Gold Exchange Standard, que se costuma
traduzir como padrão câmbio-ouro, ou seja, na prática, o padrão dólar/ouro.
É um sistema que assenta na estabilidade da relação entre as moedas, quer dizer,
na proibição de desvalorizações competitivas. Aquilo que tinha sido uma das causas
principais do aprofundamento da crise económica e da depressão posterior a 1929, fora
o facto de as economias em dificuldades, para se defenderem das importações e,
reciprocamente, facilitarem as próprias exportações para o estrangeiro, começarem a
desvalorizar as moedas. Desvalorizando, aquilo que compram ao estrangeiro passa a ser
mais caro e inversamente aquilo que vendem passa a ser mais barato para o estrangeiro.
É isso a desvalorização competitiva, que é uma forma de nacionalismo económico, que
depois foi ainda acrescentada com as tarifas aduaneiras elevadas, de proteccionismo
contra as importações. Às vezes com o recurso aos preços de dumping para o mercado
externo, etc. A desvalorização foi o ponto de partida para o nacionalismo económico.
Gerando reacções em cadeia, dificultou o comércio internacional e contraiu os
mercados. Portanto foi um factor suplementar, mas decisivo, do agravamento e do
prolongamento da crise.
Em Bretton Woods, a ideia é impedir os Estados, como condição para estarem
integrados no sistema económico internacional e poderem beneficiar de todas as
garantias do comércio internacional, e também dos apoios das instituições que então
são criadas, de realizarem desvalorizações competitivas. É o regime dos câmbios fixos.
A margem das desvalorizações consentidas é limitada a 1%, uma percentagem quase
insignificante.
A estabilidade dos câmbios funciona por referência ao dólar. Cada banco
nacional está obrigado a trocar a respectiva moeda, se tal lhe for solicitado, por dólares.
E a Reserva Federal Americana, i.e., o Banco Central dos Estados Unidos, está
obrigado, não nas relações com particulares mas nas relações com os outros Estados, a
trocar os dólares por ouro. Portanto, indirectamente, é uma espécie de padrão-ouro que
é estabelecido.
Este sistema não vai entrar em vigor imediatamente e os países europeus só o
aceitam completamente já no final dos anos 50. A adesão não é imediata.
272

O sistema é completado com a criação de duas instituições financeiras que ainda


hoje têm uma grande importância e que são o Fundo Monetário Internacional (o famoso
FMI) e o Banco Mundial .
O FMI era concebido como uma instituição mundial para a concessão de
empréstimos de curto prazo destinados a socorrer dificuldades de tesouraria (i.e.,
dificuldades de meios de pagamento, dificuldades de balança de pagamentos dos
Estados) e ao mesmo tempo controlar a maneira como essas dificuldades eram
resolvidas. Na medida em que o FMI era a entidade capaz de “resolver aflições”,
obviamente que estava em posição de impor controlos sobre o conjunto da gestão
financeira dos estados.
Por outro lado, o Banco Mundial, que tem o nome oficial de Banco
Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, era uma instituição para promover o
desenvolvimento económico geral, uma certa harmonização das condições a nível
mundial, através de empréstimos de longo prazo.
Mas tudo isto, ao mesmo tempo que constituía um sistema de pretensão
universal, de criação de uma ordem económica mundial, tinha no seu centro o peso
específico e o poder económico dos Estados Unidos, porque o voto no Conselho de
Administração das instituições era - e é - proporcional à participação no capital, e desde
o início, logo na altura da sua criação em 1944, os Estados Unidos dispunham de 37 %
do conjunto do capital, o que significava por si só uma capacidade absolutamente
decisiva de condicionamento e de influência, sem paralelo com nenhum outro país.
Estas instituições financeiras eram parte de um projecto mais amplo de reformas
do sistema internacional, de que também o presidente Roosevelt foi o principal arauto e
em certa medida inspirador, feito com o objectivo de superar o isolacionismo e, nesse
sentido, assegurar condições de estabilidade mundial.
A peça essencial desse projecto é a ONU- Organização das Nações Unidas, ou
UN (como se diz em inglês), que pretendia ser um ponto de partida duma espécie de
governo mundial, ideia de que nesta época se começa a falar como uma necessidade.
A ONU tinha alguns antecedentes na maneira como os Aliados conceberam os
objectivos da luta contra o projecto nazi-fascista. Há quem veja na Carta do Atlântico
de 1941 o primeiro dos documentos onde esse esboço de concepção se exprimiu, esse
273

esboço de concepção alternativa aos fascismos (porque os fascismos tinham também o


seu projecto de organização e de hierarquia mundial de base racista).
O encontro na Terra Nova, do qual saiu a Carta do Atlântico subscrita por
Churchill e Roosevelt, realizou-se aliás ainda antes da entrada dos Estados Unidos na
guerra, mas numa fase em que já se adivinhava essa possibilidade e havia já uma
colaboração estreita dos EUA com a Inglaterra. Os dois homens estabelecem “certos
princípios comuns nas políticas nacionais dos seus respectivos países sobre os quais
baseiam as suas esperanças para um melhor futuro do mundo”87
No ponto 1 afirma-se a recusa de objectivos de engrandecimento territorial, e no
2 o princípio de que quaisquer modificações territoriais devem processar-se de acordo
com os desejos dos povos.
O ponto 3 afirma o respeito pelo “direito de todos os povos a escolher a forma
de governo sob que desejam viver”, quer dizer, o direito à auto-determinação. É uma
afirmação que vai suscitar alguns problemas à Inglaterra, visto que a Inglaterra era
ainda a cabeça do Império Britânico. E depois há esclarecimentos do Governo britânico
a dizer que isto não diz respeito ao Império britânico. De qualquer maneira está aqui
formulado um princípio democrático e com uma direcção anti-colonial que, de facto,
vai influenciar o pós-guerra.
O acesso de “todos os Estados, grandes ou pequenos, vencedores ou vencidos,
em termos iguais, ao comércio e matérias -primas do mundo que sejam necessários para
a sua prosperidade económica”, portanto, a liberdade de comércio mundial, é outro dos
princípios enunciados na Carta do Atlântico.
“A mais completa colaboração entre todas as nações no campo económico, com
o objecto de assegurar para todas melhores padrões de trabalho, avanço económico e
segurança social” (ponto 5) entrará também nos objectivos da ONU e é importante para
o contexto do pós-guerra. Quer dizer, a ideia de que os Estados têm uma obrigação para
com os seus cidadãos de impedir que se verifiquem situações de miséria ou de carência
extrema, como as que tinham caracterizado a grande crise de 1929-33 e conduzido a
catástrofes sociais e políticas. Ideia que é uma antecipação daquilo que depois se chama
o Welfare State, o Estado-Providência. Aliás, a ideia do Welfare State é formalizada um

87
“O Presidente dos Estados Unidos da América e o governo de sua Majestade no Reino Unido
declaram…”, A Guerra Ilustrada, nº 17, Novembro de 1941 (Suplemento).
274

ano depois da Carta do Atlântico, quando em Inglaterra é publicado o Plano Beveridge,


que é o primeiro grande documento oficial do Governo inglês com um projecto de
reforma económica e social para o pós-guerra.
No ponto 6, “depois da destruição final da tirania nazi, esperam ver estabelecida
uma paz que dê a todas as nações os meios de viver em segurança dentro das suas
próprias fronteiras, e a qual garanta que todos os homens em todas as terras possam
viver livres de receio e de miséria”. A mesma ideia de algum modo ligada ao bem-estar
social.
E de novo a liberdade de circulação no número 7 e finalmente no ponto 8 “o
abandono do emprego da força” e o desarmamento dos países que perturbam a paz. Ou
seja, é essencial o desarmamento das nações que ponham em causa a manutenção da
paz e iniciar um processo de diminuição dos armamentos. Aliás, nisto repete o que
eram já intenções expressas na época da Sociedade das Nações.
Depois da Carta do Atlântico, há a Declaração das Nações Unidas, ou
Declaração de Washington, quando o conjunto dos países que declararam guerra às
forças do Eixo se comprometem com objectivos que retomavam estas ideias, dando
sequência aos encontros dos Três Grandes, Stalin, Roosevelt e Churchill.
O primeiro encontro dos Três Grandes foi a Conferência de Teerão, em
Novembro de 1943. Pouco depois, em Agosto-Outubro de1944, reúne-se a Conferência
de Dumbarton Oaks. É uma localidade nos Estados Unidos onde decorrem as
negociações na sequência das quais é criada a Organização das Nações Unidas, que é
depois inaugurada numa altura em que a guerra na Europa já estava concluída, mas
ainda não estava concluída no Japão.
A Conferência Inaugural da Nações Unidas tem lugar em São Francisco da
Califórnia em 25 de Junho de 1945. Esta Conferência de São Francisco é que adopta a
Carta da ONU, que define por um lado os seus objectivos de garantia da Paz Mundial, e
por outro lado estabelece a estrutura da própria Organização que, como aliás já
acontecia com a Sociedade das Nações, tem uma Assembleia e um Conselho. Ou seja,
um órgão mais restrito, no qual as maiores potências têm um papel mais importante.
No entanto, há uma grande diferença entre a ONU e a Sociedade das Nações
porque, na Sociedade das Nações, todos os membros do Conselho estavam em pé de
igualdade. Embora houvesse membros permanentes e não permanentes, não havia
275

direito de veto, que passa a haver no Conselho de Segurança da ONU. Este direito de
veto no Conselho de segurança da ONU é reservado às cinco grandes potências: os
Estados Unidos, a Inglaterra, a União Soviética, a França e a China.
A China foi incluída embora se encontrasse nesta altura numa situação ainda em
larga medida caótica – porque por um lado uma parte do território tinha sofrido os
efeitos terríveis da invasão japonesa, por outro, à guerra anti-japonesa sucedeu o
recomeço da guerra civil entre os nacionalistas do Kuomintang e o exército comunista
de Mao Tsé Tung, que acabará por vencer em 1949.

Para além das disposições institucionais tendentes à criação de uma nova ordem
mundial, há que ter em conta a série de encontros durante a Guerra dos representantes
das três grandes potências, Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética, nuns casos ao
nível de Ministros dos Negócios Estrangeiros, noutros dos dirigentes supremos,
Roosevelt, Churchill e Stalin.
Essas conferências foram decisivas para aquilo que vai ser a estrutura territorial
da Europa no pós-guerra.
Em anos recentes, têm sido, muitas vezes, criticadas as decisões tomadas nesta
época por terem permitido uma posição de hegemonia da União Soviética em toda a
região da Europa de Leste.
Mas na verdade essa influência dominante da União Soviética na Europa de
Leste foi, antes do mais, o resultado objectivo da maneira como a Guerra decorreu. Isto
é, do facto que a Europa Ocidental foi, no seu conjunto, vencida e ocupada pelos
exércitos de Hitler, a Inglaterra resistiu, de facto, mas não tinha meios para desencadear
por si só uma contra-invasão da Europa. Portanto, quem resistiu, aliás para surpresa de
muitos, à invasão alemã e pôde desencadear uma contra-ofensiva, avançando para
Ocidente, foi o Exército Vermelho. Só a partir de certa altura é que a combinação das
operações militares entre os Aliados permitiu, primeiro, a vitória no Norte de África,
seguidamente a conquista da Sicília pelas tropas anglo-americanas e, depois, o avanço
pelo sul de Itália, que vai determinar, aliás, em Julho de 1943, a queda de Mussolini e a
entrada da Itália num período de transição. Mas isso ainda fica muito longe da
libertação da Itália porque, entretanto, os exércitos alemães reagem, concentram-se na
cordilheira dos Apeninos e essas montanhas dos Apeninos, que atravessam a Itália, vão
276

constituir uma barreira muito difícil de transpor, para o avanço das tropas Aliadas para
Norte. Só em 1945 (a 25 de Abril) é que a Itália será libertada na totalidade.
Entretanto a União Soviética, que ainda em fins de 1942 estava em riscos de ver
cair Estalinegrado, mas conseguiu resistir, em Fevereiro de 1943 vence a batalha de
Estalinegrado e desencadeia uma contra-ofensiva e, a partir daí, o avanço para ocidente.
De maneira que nos fins de 1943, princípios de 1944, os exércitos soviéticos já tinham
ocupado os Estados Bálticos e uma parte da Polónia.
É neste contexto, portanto, do avanço das tropas soviéticas para Ocidente que se
realiza a primeira das Conferências dos Três Grandes, a Conferência de Teerão, na qual
se discute entre Churchill, Roosevelt e Stalin, a abertura da Segunda Frente na Europa.
A primeira Frente era a frente soviética, contra os exércitos alemães. A abertura
duma segunda frente, na Europa, tinha sido um pedido insistente dos Soviéticos
praticamente desde que foram invadidos. E se, por hipótese, se tivesse podido dar uma
invasão americana da Europa, na sequência da entrada americana na Guerra, em 1941-
42, possivelmente a Europa teria sido libertada antes dos exércitos soviéticos poderem
avançar, em profundidade, em direcção do Ocidente. Mas não foi isso que aconteceu.
Os Estados Unidos entraram na Guerra porque foram agredidos pelo Japão, a
sua zona de operações foi o Pacífico. Além disso, obviamente tiveram um papel
decisivo no apoio à Inglaterra, e um apoio material, importante, também, à União
Soviética. O conjunto do apoio americano e aliado à União Soviética vale alguma coisa
como 10%, ou mesmo 15%, do conjunto do investimento soviético na Guerra, o que é
muitíssimo. Mas os Estados Unidos não estavam então, até pela disposição interna dos
americanos, em condições de desencadear uma invasão da Europa.
Por outro lado, a preocupação inglesa era com a sua própria influência na
Europa e, depois dos exércitos inglês e americano participarem na invasão da Itália, a
tentativa do Churchill vai ser no sentido de abrir uma segunda frente nos Balcãs.
Quer dizer, a ideia inglesa era a de que era preciso assegurar o controlo da
região balcânica, onde a Inglaterra sempre tinha tido historicamente uma grande
influência política e económica e essa era, igualmente, uma maneira de preservar essa
região em relação à chegada das tropas soviéticas.
Simplesmente esse plano, já se tinha verificado, no caso italiano, que não era
vantajoso. Quer dizer, as condições geográficas objectivas faziam que, sem grande
277

perda de tropas, os alemães conseguissem defender as suas posições. Tinha acontecido


assim na Itália, e aconteceria também nos Balcãs. De maneira que, a posição americana
foi no sentido de abrir a segunda frente na Europa ocidental, e é essa posição que é
adoptada na Conferência de Teerão. Dela resulta a marcação daquilo que vem a ser a
Operação Overlord, ou seja o desembarque na Normandia, que vem a ter lugar em
Junho de 1944, e que significa, portanto, o começo da libertação da Europa Ocidental
pelas tropas Anglo-Americanas, também com participação de Resistentes franceses, de
tropas das colónias francesas, etc.
De qualquer maneira, portanto, quando se dá a abertura da segunda frente na
Europa, já a União Soviética ocupava não só os Estados Bálticos e a Polónia, como
também a Roménia e a Hungria. Portanto, praticamente, dominava a Europa Oriental.
É neste quadro que, alguns meses depois do dia D, em Fevereiro de 1945, se
realiza a famosa Conferência de Ialta, que é a segunda e a mais importante das
Conferências dos Três Grandes durante a Guerra, em que são discutidas e acordadas as
principais medidas relativas à ordem internacional e europeia do pós-guerra.
E, como escrevem alguns autores, ao passo que os americanos tinham muito a
pedir à União Soviética, não tinham muito para lhe oferecer em contrapartida.
O que é que os americanos precisavam da União Soviética?
Essencialmente de duas coisas. Por um lado, a concordância com o
estabelecimento da ONU. Que estava longe de ser uma coisa evidente.
É preciso ter presente que a experiência histórica da União Soviética se tinha
feito, toda ela, até 1934, em hostilidade e em separação do mundo ocidental, do mundo
capitalista. Por um conjunto de factores que tiveram a ver com a natureza da Revolução
Russa e a maneira como ela foi hostilizada, desde início, pelos países ocidentais.
Portanto essa adesão da URSS aos princípios duma Organização Internacional
não era uma coisa que fosse evidente por si. Tinha de ser, de algum modo, negociada.
O outro aspecto em que a América dependia da URSS era para a invasão do
Japão. A bomba atómica ainda não existia. Os combates no Japão foram extremamente
violentos e demorados. O Japão era um arquipélago que dominava uma região
essencialmente composta por ilhas grandes e pequenas, tudo isso tornava
estrategicamente, no plano militar, difícil a condução da guerra. Na medida em que a
URSS tinha fronteira com o território ocupado pelo Japão, na Manchúria, a União
278

Soviética estava em posição de atacar o Império japonês numa das suas bases
fundamentais. E era disso que os americanos precisavam.
Para tanto estavam dispostos a fazer algumas concessões em matéria da
estatuição do pós-guerra como as que diziam respeito, por exemplo, às Ilhas Curilhas,
que passariam para a posse soviética depois da guerra, como de facto aconteceu. O que
aliás ainda hoje constitui um motivo de conflito entre a Rússia e o Japão.
Além destas disposições sobre o pós-guerra no Extremo Oriente e da decisão
sobre o estabelecimento da ONU e sua estrutura, a Conferência de Ialta chegou a
acordo na atribuição de zonas de ocupação da Alemanha. Essa era também uma questão
que foi controversa, a de saber se a Alemanha se mantinha como país único ou devia
ser dividida em vários Estados. Aceitou-se o princípio da manutenção da Alemanha,
com o estatuto de ocupação conjunta, traduzida numa repartição territorial provisória,
em que cada um dos quatro vencedores (entra a França também como potência aliada)
ocupava provisoriamente uma zona, havendo, no entanto, um poder militar conjunto,
com poderes de inspecção das várias zonas.
No entanto, já desde a Conferência de Ialta havia discordância sobre alguns
aspectos da questão alemã, nomeadamente porque a União Soviética tinha uma
premente exigência de reparações de guerra alemãs. Isto, é de pagamento de
indemnizações pela Alemanha, coisa que à América não interessa especialmente. A
América estava mais próspera e receava que se gerasse na Alemanha uma situação
económica semelhante à do pós I Guerra Mundial e, portanto, não vai facilitar as
medidas de reparação.
Em Ialta, há também algumas discussões sobre os governos dos países
libertados pelo Exército soviético. Basicamente, sai da Conferência de Ialta uma
Declaração sobre a Europa Libertada que estabelece o princípio da realização de
eleições livres em todos os países, inclusivamente com fiscalização dessas eleições pelo
conjunto das potências vencedoras.
Realização de eleições, portanto, mas quando a paz estivesse assegurada.
No entretanto, em toda a parte se estabeleceram Governos de Coligação que
reflectiam as frentes de Resistência anti-nazi e anti-fascista, nos vários países. E isto
tanto foi assim na Europa de Leste, libertada pelo Exército Vermelho, como na Europa
Ocidental, na França, na Bélgica, etc. Paris é libertada em Agosto de 44, por uma
279

insurreição interna, mas na sequência do avanço das forças aliadas; a libertação de


Itália conclui-se em 25 de Abril de 1945, mas já antes disso tinha-se constituído um
governo de coligação, sediado em Salerno, no sul de Itália. E essas coligações, tanto na
Europa Ocidental como na Europa de Leste, incluíam comunistas, socialistas, liberais,
democratas cristãos e, nos países da Europa de Leste, na medida em que havia uma
tradição de existência de partidos camponeses, também esses partidos camponeses.
Portanto, digamos, em Ialta o que se esperava era que, por um prazo mais ou
menos longo, permanecessem governos de coligação. O perfil desses governos não
tinha que ser necessariamente muito diferente na Europa Ocidental e na Europa de
Leste. A sequência das coisas depois vai ser diferente, mas na Conferência de Ialta
dominava ainda este espírito de unidade anti-fascista.
Na última das conferências dos Três Grandes, que é a Conferência de Potsdam,
em Julho de 1945, quando a guerra já tinha terminado na Europa, permanecia apenas a
questão da guerra com o Japão. O ambiente nas relações entre os Três Grandes vai ser
já sensivelmente diferente. E essa diferença aponta para a passagem do ambiente da
concórdia antifascista para aquilo que vão ser as origens da chamada “guerra fria”, isto
é, a contraposição entre a União Soviética e os países do Ocidente capitalista.
Quais foram os factores essenciais deste contraste que há entre estas duas
últimas conferências dos Três Grandes? Para já, os participantes não são exactamente
os mesmos. Roosevelt morreu em Abril de 1945, o vice-presidente Truman, que o
substituiu, era um personagem muito diferente e que nem sequer fazia parte do círculo
próximo de Roosevelt. Por outro lado, Churchill foi derrotado nas eleições em
Inglaterra e substituído pelo trabalhista Clement Attlee.
A grande diferença entre Ialta e Potsdam é que, no decurso da Conferência de
Potsdam, o agora Presidente americano Truman recebe a notícia de que tinha sido
realizada com êxito a experiência da explosão experimental da bomba atómica, no
Nevada. O que significa uma alteração.
Para além da alteração que significa na História da Humanidade, significa,
desde logo, uma alteração brusca dos termos em que são equacionadas as relações de
força a nível mundial.
280

Lição 2. Os inícios da “guerra fria“: 1945-47.

Vamos hoje continuar com o problema das origens da “guerra fria” e entrar
já nos primeiros episódios da “guerra fria”.
Aquilo de que falei nas últimas aulas teve ainda a ver com o que decorreu,
na última fase da guerra, em termos de negociações diplomáticas acerca da
definição do pós-guerra, durante as conferências dos Três Grandes, em Teerão, Ialta
e Potsdam - as conferências destinadas à preparação do pós-guerra.
Hoje entramos já na época da paz, em que vai verificar-se, contrariamente
ao que eram os projectos e expectativas de muitos nos anos finais da guerra, não um
mundo relativamente unificado, mas uma situação de confronto bipolar das duas
novas super-potências, os Estados Unidos e a União Soviética, sendo que até 1949
apenas os EUA são potência nuclear. Só em 1949 é que a URSS acede a esse
estatuto.
A passagem à paz, por muito que tenha sido, e foi obviamente, um alívio e
uma entrada num período de grandes esperanças, após aquela catástrofe tremenda,
no entanto esteve longe de ser um período fácil para as populações. O livro,
recentemente publicado em português, de Tony Judt, Pós- Guerra, dá bem ideia dos
dramas humanos ligados a esta passagem para a paz.
Como vimos, com a libertação da Europa, a ocidente pelas tropas aliadas,
essencialmente inglesas e americanas, a leste pelo Exército Vermelho, apesar da
delimitação das esferas de acção e das presenças militares dos exércitos ocupantes,
a natureza dos governos que se formaram na sequência da Libertação, nos vários
países, tanto a ocidente como a leste, não diferia muito, na sua caracterização
político-ideológica. Quer dizer, eram, por toda a Europa, com poucas excepções,
governos de coligação que integravam o conjunto das forças que de uma forma ou
outra tinham tomado posição contra a ocupação hitleriana, e consequentemente
contra as ideologias fascistas ligadas ao nazismo e à ocupação.
281

Desde a França, a ocidente, até à Bulgária, a leste, em 1945/46 a maior parte


dos governos eram governos de coligação que incluíam comunistas, social-
democratas ou socialistas, liberais e democratas-cristãos. Um tipo de formação
política que na Europa oriental tinha mais peso, e portanto também mais presença
nos governos, do que na Europa ocidental, eram os partidos camponeses, partidos
com uma base de pequenos e médios proprietários agrícolas, que na Europa de
Leste eram uma realidade social mais importante dado o carácter
predominantemente agrário das suas economias (excepto na Checoslováquia), e
com lideranças, em muitos casos vindas do período anterior à guerra, que não eram
socialistas mas, naturalmente, apegadas à ideia de propriedade privada.
É certo que na Europa oriental, em alguns casos, nomeadamente na
Bulgária, desde cedo se definiu o predomínio comunista, o que tinha a ver com o
facto de a Resistência nesse país ter estado ligada à União Soviética. São dois povos
próximos, sob todos os aspectos, os Búlgaros e os Russos. Na Bulgária, foi uma
Frente unitária, de maioria comunista, que venceu as eleições de Novembro de
1945. Mas já na Hungria, nas eleições de Novembro de 1945, a maioria foi
conquistada pelo Partido dos Pequenos Proprietários; o Partido Comunista obteve
17% dos votos e uma participação correspondente, minoritária, no governo.
Na Checoslováquia formou-se um governo pluri-partidário de coligação,
inicialmente presidido por um socialista e, depois das eleições de 1946 ganhas pelos
comunistas (39%), liderado pelo secretário-geral destes, Klement Gottwald.
Verdadeiramente, o problema que desde mesmo antes do fim da guerra se
colocou como problemático e factor de conflito entre a União Soviética por um
lado, a Inglaterra e os Estados Unidos pelo outro, foi a questão da Polónia. E é
interessante saber isso, até para perceber o que se vai passar nos 40 anos seguintes.
(Como sabem, o fim dos regimes socialistas da Europa de Leste, nos anos 80,
começou pela crise na Polónia.)
E de certa maneira tudo isso tem a ver com estas origens. A Polónia é um
país historicamente muito marcado pelo facto de se encontrar numa situação em
tenaz entre dois vizinhos muito poderosos, a Alemanha dum lado e a Rússia do
outro (ao ponto de ter desaparecido como Estado durante mais de um século e
renascido só em 1919). O anti-comunismo era muito forte e as forças de resistência
282

ligadas ao governo anterior a 1939 tinham uma representação no governo exilado


em Londres. A União Soviética, desde o momento em que o Exército Vermelho
entrou na Polónia, ajudou a formar um governo de maioria comunista, o chamado
Comité de Lublin, e só posteriormente é que esse governo foi alargado a
representantes dos exilados de Londres. De maneira que, quando se realizaram
eleições, em Janeiro de 1947, já o controle comunista estava no essencial
assegurado, o que envolveu também perseguições aos opositores e nomeadamente
ao Partido Camponês, que tinha estado ligado à outra componente, à outra ala da
Resistência.
A Áustria foi, tal como a Alemanha, sujeita a uma ocupação militar conjunta
e a uma divisão em quatro zonas, administradas pelos exércitos de ocupação, tal
como no caso alemão, mas, do ponto de vista de política interna, tudo correu
normalmente. As eleições deram maioria ao Partido Social-Democrata. Embora a
ocupação se tenha mantido até 1955, não suscitou conflitos de maior. A Áustria tem
um tratamento, no plano jurídico, diferente dos outros países libertados, porque a
Áustria era, desde o Anschluss de 1938, parte da Alemanha nazi. Portanto o grau de
responsabilização no empreendimento nazi era maior, e daí a manutenção até 1955
dessa situação de ocupação que, de resto, permitiu transitar para uma situação de
democracia ocidental, com a ressalva apenas de que era um país neutral. Não podia
aderir a nenhum bloco político-militar. Por isso a Áustria nunca fez parte da NATO,
nem mesmo, até 1995, da Comunidade Económica Europeia.
O caso especial, no contexto europeu, que não se traduziu num governo de
coligação, mas também não virá nunca a alinhar completamente nem num nem no
outro bloco, quando se abre a guerra fria, é o caso da Jugoslávia.
Porquê? Porque a Jugoslávia foi o único país que conseguiu, com êxito,
libertar-se essencialmente pelos seus próprios meios da ocupação nazi.
Durante a guerra, a Croácia e a Bósnia-Herzegovina formaram um reino
independente, de facto tutelado pela Alemanha nazi. Na Sérvia, realiza-se um golpe
de estado, apoiado pela população, contra o acordo da monarquia com a Alemanha.
A Alemanha e a Itália invadem e dividem a Jugoslávia, mas contra a ocupação nazi-
fascista desenvolveu-se desde cedo uma resistência armada (possível pelas
condições geográficas, montanhosas), composta por dois tipos de forças: dum lado,
283

são os chamados tchetniks, um exército conservador, monárquico e nacionalista; do


outro a guerrilha comunista, sob a chefia dum homem que vem a ganhar um grande
prestígio de chefe político e militar, que é conhecido como o Marechal Tito. Josip
Broz era o seu nome verdadeiro.
Acontece que esta guerrilha resiste eficazmente à ocupação alemã, e a um
ponto tal que o próprio governo inglês, durante a guerra, embora estivesse
preocupado em manter a sua influência tradicional naquela região, e portanto
inicialmente apoiasse os guerrilheiros tchetniks monárquicos, como depois viu que
alguns desses elementos colaboravam com a ocupação por hostilidade aos
comunistas, transferiu o apoio para a própria guerrilha de Tito. Tito impôs-se, de
facto, no terreno, e promoveu a reunificação da Jugoslávia. Quer dizer, os
nacionalismos que anteriormente tinham oposto entre si croatas, sérvios, eslovenos
e bósnios, um grave problema na Jugoslávia de antes da guerra (e que em anos
recentes voltou a ser um terrível problema e fonte de catástrofes para aqueles
povos), foi banido das fileiras do Partido Comunista Jugoslavo e do movimento de
Libertação.
Assim, ao terminar a guerra, forma-se um governo de Frente Popular em que
é clara a hegemonia comunista. E nos anos seguintes, quando se desenvolve o
conflito da Jugoslávia com a URSS, este governo definiu uma posição autónoma,
recusando o alinhamento com qualquer dos blocos e vindo mais tarde, a partir de
meados da década de 50, a ser um dos principais protagonistas do movimento dos
“não-alinhados”.

Tal como após a I Guerra mundial, houve que concluir tratados de paz. E
realizou-se, para isso, uma série de conferências a vários níveis, nomeadamente a
nível de ministros dos Negócios Estrangeiros, que se concluíram pelos Tratados de
Paris de 10 de Fevereiro de 1947.
284
285

E é essencialmente o resultado desses Tratados de Paris (substancialmente já


negociados pelas conferências dos Três Grandes durante a guerra), no que diz
respeito à Europa, que podem ver neste mapa.
Ou seja, tal como previsto a URSS manteve os Estados Bálticos, que tinha
adquirido através do pacto germano-soviético: Estónia, Letónia e Lituânia, países
que tinham pertencido ao Império Russo até 1917. Não se trata da integração destes
Estados na Rússia, trata-se da integração na União Soviética. A Estónia, Letónia e
Lituânia ficam como Repúblicas da União Soviética. Além disso, há uma anexação
parcial do território da Carélia finlandesa. Há uma parte da Carélia que já era da
União Soviética, mas outra, que era importante do ponto de vista estratégico,
sobretudo por causa da defesa de Leninegrado, é tomada à Finlândia. É um
resultado da guerra fino-soviética de 1940.
O principal ganho territorial da URSS resulta da deslocação das fronteiras
da Polónia para ocidente, também acordada em Teerão e Ialta. São, no essencial, os
territórios que tinham sido perdidos pela URSS na guerra de 1920-21 com a
Polónia. Esta nova linha de fronteira entre a Polónia e a União Soviética, no
essencial, corresponde à linha Curzon, definida pela Sociedade das Nações em
1919.
Há ainda outras anexações menores, nomeadamente a região da Ruténia, que
tinha sido da Checoslováquia antes de 1939, mas que durante a guerra pertenceu à
Hungria e passa agora para a URSS. E finalmente há também uma conquista de
território à Roménia, na Bessarábia.
Estas são as principais alterações em relação à URSS.
De referir também, relativamente à Itália, um conjunto de alterações
territoriais. Em primeiro lugar, a perda das colónias, nomeadamente da Líbia e da
Etiópia. Houve ainda pequenas rectificações de fronteira com a Áustria e a França.
Uma alteração maior é a passagem da região da Ístria, em frente de Trieste (um
território importante que inclui nomeadamente Fiume, uma cidade histórica italiana,
que hoje se chama Rijeka), para a Jugoslávia. Quanto a Trieste, foi durante alguns
anos motivo de discussão, houve inicialmente uma solução provisória de repartição,
mas acabou por ficar integrada na Itália, e é hoje portanto uma cidade italiana.
286

Em relação à Alemanha, embora os acordos de Ialta e Potsdam apontassem


para a manutenção da integridade da Alemanha, e igualmente para a realização de
eleições livres que conduziriam ao estabelecimento duma Alemanha independente,
na verdade a situação vai evoluir em termos que inviabilizam essa unidade e que
acabam por levar à formação de dois Estados separados.
Desde logo a presença de exércitos pertencentes a países com características
muito diferentes, teve, no imediato pós-guerra, consequências muito fortes na
sociedade alemã. Tanto mais que não se deve perder de vista que, apesar do apoio
maioritário dos alemães a Hitler, no entanto, historicamente, a Alemanha tinha sido
atravessada por profundos antagonismos de classes e lutas políticas, nomeadamente
durante a República de Weimar.
Com a Libertação e o fim da guerra, recuperou-se a liberdade política,
reorganizaram-se forças, reentraram em cena socialistas e comunistas, que tinham
sido perseguidos pelo nazismo. E, naturalmente, depressa se estabeleceu uma
disposição das esquerdas alemãs de realizarem reformas económicas e sociais que
liquidassem a possibilidade de renascimento de um regime fascista. Este objectivo,
que era um objectivo histórico da esquerda, um objectivo que tinha fracassado
durante a República de Weimar, ia ao encontro do objectivo soviético de operar
uma transformação profunda na Alemanha.
Como se pode ver no mapa, estabeleceram-se quatro zonas de ocupação. A
zona 1 como zona de ocupação soviética, a zona 2 de ocupação britânica, a 3 de
ocupação francesa e a 4 de ocupação americana.
Na zona de ocupação soviética rapidamente, tal como aconteceu nos países
da Europa Oriental, se procedeu a reformas sociais, nomeadamente à reforma
agrária. Era também a região da Alemanha com maior peso da agricultura e da
influência dos grandes agrários, a classe mais conservadora e em grande parte
comprometida com o nazismo.
A Polónia, que perdeu territórios para a União Soviética, ganhou
importantes parcelas de território da Alemanha. Integrou a Prússia Oriental, que no
período entre guerras estivera geograficamente separada das regiões ocidentais da
Alemanha pelo “corredor polaco”. Agora a Prússia Oriental é integrada na Polónia e
287

todos os territórios a leste da linha formada pelo curso dos rios Oder e Neisse são
integrados na Polónia.
Na zona de ocupação soviética da Alemanha realizam-se reformas sociais
idênticas às realizadas na Europa de Leste, como o fim dos latifúndios e a
nacionalização dos grandes cartéis industriais.
Há desde logo uma diferença de interesses e objectivos entre soviéticos, por
um lado, e americanos, por outro. Para os soviéticos, obter reparações de guerra da
Alemanha é essencial. Vimos o estado em que a URSS ficou em consequência da
guerra. Naturalmente eles consideravam os alemães responsáveis e entendiam que
tinham de pagar por isso. Portanto, desde o início que, na zona de ocupação
soviética, começaram as transferências de riquezas, nomeadamente de todo o tipo
de equipamentos fabris que foram metidos nos comboios e transferidos para a
URSS.
Os Estados Unidos, que saíram da guerra ainda mais ricos do que tinham
entrado, não tinham este género de problemas nem de preocupações. Pelo contrário,
o interesse deles era a normalização e revitalização da economia europeia em geral
incluindo, portanto, a economia alemã, visto que, pela dimensão geográfica e
demográfica e pela força económica (porque, independentemente de haver
destruição de equipamento, a Alemanha mantém o essencial dos seus recursos de
capital e de preparação da força de trabalho), a Alemanha é essencial para esse
objectivo. Não só não estão interessados em reparações para eles, como, embora
tenham prometido, nos Acordos de Ialta, que os soviéticos teriam direito a
reparações também dos territórios ocidentais, de facto as transferências das zonas
ocidentais para a União Soviética, a título de reparação, só foram muito
limitadamente realizadas em 1945 e depois cessaram completamente. O chefe
militar responsável pela zona de ocupação americana e representante na Comissão
de Controle Aliada proibiu em 1946 a continuação do pagamento das reparações. O
que naturalmente agravou a disposição soviética nas relações com os Aliados.
A preocupação americana era a integração da Alemanha no mercado
mundial. E os ingleses seguiam também essa política, os franceses não tanto porque
tinham reivindicações próprias, nomeadamente a ambição de ocupar o Sarre (e
288

ocuparam de facto durante algum tempo o Sarre), mas não tinham grande peso na
decisão.
Assim, os Estados Unidos e a Inglaterra realizam logo em Dezembro de
1946 a integração das suas duas zonas, a chamada Bi-Zona. A constituição desta Bi-
Zona anglo-americana era, de facto, já a preparação duma unificação das zonas
ocupadas pelos aliados ocidentais. A Bi-Zona vai passados uns meses evoluir para
Tri-Zona, porque também a França se integra nessa operação. Quer dizer, as
potências ocidentais passaram a comportar-se como se a divisão já fosse definitiva.
Entretanto, na zona oriental, de ocupação soviética, há uma dinâmica política
própria que conduz à unificação dos dois partidos da esquerda, comunista e
socialista, sob hegemonia comunista. Portanto, o Partido Socialista integrou-se com
o Partido Comunista num partido único, o Partido de Unidade Socialista da
Alemanha (SED, Sozialistische Einheitspartei Deutschlands). A palavra Unidade
dizia respeito simultaneamente à unidade socialista (que era uma grande causa,
porque a divisão entre socialistas e comunistas tinha sido um factor primacial da
vitória do Hitler) e à unidade da Alemanha como Estado.
Enquanto que, na zona de ocupação soviética, os socialistas, dirigidos por
Otto Grotewohl, aderiram à fusão com os comunistas, no parte ocidental opuseram-
se a ela e repudiaram-na expressamente, mantendo-se como Partido Social-
Democrata (SPD).

A par disto, desde 1946 que, na ONU, o ambiente começa a ser de


controvérsia crescente entre os EUA e a URSS. A ONU como areópago da unidade
dos povos num espírito de fraternidade, como tinha sido idealizada nos tempos da
Guerra, não é propriamente o que caracteriza os debates.
Uma das primeiras discussões foi a propósito da presença temporária da
União Soviética no Irão, prevista nos acordos inter-aliados. O Irão queixou-se de
que a presença soviética se estava a prolongar mais do que o previsto e que os
soviéticos estavam a fomentar um movimento separatista no Azerbaijão iraniano.
Esta controvérsia depois é ultrapassada pela retirada das tropas soviéticas.
Mais importante é a discussão sobre o controle da energia atómica.
289

Há nesta época, sobretudo à medida que se desenha o antagonismo


americano-soviético, uma preocupação crescente em muitos sectores da opinião
pública, inclusivamente entre gente que tinha estado ligada à presidência de
Roosevelt e que tinha acreditado de algum modo, tal como Roosevelt, que o mundo
do pós-guerra seria um mundo não dividido em blocos, mas unido em torno de
algumas ideias centrais.
Há consciência, em sectores politicamente mais informados, nomeadamente
de cientistas, alguns ligados até à descoberta da energia atómica, dos perigos que
ela representava, e um certo debate em torno disso. Por exemplo, um dos
intervenientes acerca da necessidade de encontrar aquilo que ele chama um governo
mundial é o próprio Einstein. Einstein não esteve propriamente ligado à preparação
técnica da bomba, mas em 1940 enviara uma carta ao Presidente Roosevelt em que
recomendava o início de investigações com o objectivo de chegar á construção de
um engenho nuclear o mais cedo possível (nessa altura havia o receio sério de que
os cientistas alemães chegassem mais depressa à descoberta da bomba atómica).
Mas entretanto Einstein, que era aliás um socialista e um pacifista, tomou posição
contra os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki e foi uma das pessoas que no
pós-guerra mais alertou para os riscos enormes da possibilidade de se entrar numa
corrida atómica, como efectivamente veio a acontecer. Não só ele. O próprio Robert
Oppenheimer, o cientista que dirigiu o projecto Manhattan, também era crítico do
monopólio americano da bomba atómica.
Na ONU foi constituída em 1946 uma Comissão para estabelecer um plano
de controlo da energia atómica, é o chamado Plano Baruch, do nome do homem que
dirigiu essa comissão. O plano assentava essencialmente em duas bases: proibir a
construção de qualquer novo engenho nuclear com objectivos militares e controlar e
superintender em todas as iniciativas dos países relacionadas com a energia nuclear
com fins pacíficos.
Perante isto os soviéticos simplesmente perguntaram: «então e as bombas
que já existem?». Porque nesta altura os EUA já detinham cerca de uma dezena de
bombas atómicas, e quanto a elas a Comissão nada propunha. A União Soviética
propôs que se começasse por desmantelar o arsenal existente, que era o americano,
mas isso nunca foi aceite pelos Estados Unidos. E como não foi aceite, os
290

soviéticos, para não estarem em inferioridade, prosseguiram as investigações para a


fabricação da bomba atómica. Portanto, o único resultado a que o Plano Baruch
conduziu foi a discussões na ONU e à utilização pela União Soviética do direito de
veto contra resoluções que pretendiam impor o controle sobre a investigação
soviética em matéria de energia nuclear mas, ao mesmo tempo, não previam o
desmantelamento das bombas atómicas existentes.
Em suma, o Plano Baruch não teve realização, e é que aqui que se inicia a
corrida aos armamentos. A União Soviética desenvolve a investigação, já desde o
período da guerra tinha alguma coisa desenvolvida e tinha também uma espionagem
que foi útil. Nomeadamente o físico comunista Klaus Fuchs foi um espião
importante nesse aspecto, e foi aliás condenado em Inglaterra a 14 anos de prisão,
tendo cumprido nove. Klaus Fuchs era um alemão que não actuava por motivos de
dinheiro mas por convicção. No entanto, ao contrário da ideia que muitas vezes há,
a bomba soviética não foi simplesmente copiada da americana. A espionagem fez o
seu papel, mas também houve muito trabalho dos físicos soviéticos, que finalmente
em 1949 chegaram à construção da sua própria bomba atómica. E a partir daí
passou a existir uma bipolaridade nuclear e o desenvolvimento duma corrida aos
armamentos nucleares que nunca mais parou e desde os anos 60 permitiria destruir
o planeta, não só uma, mas repetidas vezes.

Entre os problema europeus que vão aprofundar o antagonismo americano-


soviético, estava a questão da Grécia, um dos países que não referi ainda e que teve
uma história, durante a II Guerra Mundial, com semelhanças com a da Jugoslávia.
Porque também a Grécia foi ocupada por tropas italianas primeiro, e alemãs depois,
e na Grécia se desenvolve um movimento de resistência eficaz que consegue na fase
final da guerra libertar a maior parte do território. Esse movimento de resistência é
dirigido por um exército de guerrilha que é chamado ELAS, são as iniciais em
grego do Exército popular de libertação nacional, que tem por trás dele o Partido
Comunista da Grécia e a Frente Grega de Libertação (EAM). Quer dizer, em
condições normais a Grécia teria tido uma evolução semelhante à da Jugoslávia, ou
seja, era libertada pela guerrilha e teria uma orientação socialista, de direcção
comunista, a partir daí. Simplesmente isso não estava de acordo com o interesse
291

inglês e, a partir do momento em que os ingleses estão em condições de fazer


chegar tropas à Grécia, tal como tinha acontecido em Itália, vão defender as forças
monárquicas.
Durante a ocupação italiana e alemã, o Rei exilou-se em Inglaterra. A
resistência efectiva à ocupação foi a do ELAS, dirigida pelos comunistas. Mas, ao
terminar a guerra, os ingleses vão fazer tudo pela restauração da monarquia na
Grécia
Desde 1944 que os ingleses intervêm militarmente. Em Dezembro de 1944
há manifestações populares contra o novo governo provisório, que era um governo
essencialmente de inspiração inglesa. Como se recordam, nas conversações entre
Staline e Churchill imediatamente antes de Ialta, Churchill rascunhou num papel
uma proposta sobre as percentagens de influência que a Inglaterra e a União
Soviética respectivamente teriam nos países da região balcânica. E quanto à Grécia
esse rascunho previa 90 % de influência para Inglaterra, 10 % para a União
Soviética. A União Soviética, que se preocupava muito com os países da sua
periferia imediata, aceitou que, em relação à Grécia (tal como já acontecia em
relação à Itália, onde os anglo-americanos deliberaram sem dar cavaco aos
soviéticos), a influência dominante seria a ocidental. Os comunistas gregos, embora
dispondo de influência dominante no movimento de Libertação, tiveram de se
conformar com esse facto e concluir os chamados Acordos de Varkiza (Fevereiro
de 1945) que aceitavam o desarmamento do ELAS e a realização dum referendo
sobre a monarquia. O que veio a significar na prática que o ELAS, a guerrilha de
esquerda, foi desarmada, e com isso intervieram em força as direitas, uma grande
parte delas, aliás, anteriormente envolvida na colaboração com os nazis.
Desenvolve-se um terrorismo contra a esquerda e é neste contexto que se realizam
eleições e em Setembro de 1946 tem lugar o referendo, manipulado, condicionado
por essa presença dominante das direitas, que consagra manutenção da monarquia.
E, a partir daí, desenvolve-se uma forte repressão não só anti-comunista, mas
também anti-republicana. É importante notar isso porque a Grécia é um dos países
onde a questão do confronto República-Monarquia, até esta época, e mesmo mais
tarde, é uma questão de grande importância política.
292

Em reacção ao terrorismo da direita, os comunistas e o EAM (Frente


patriótica grega), criam um ”Exército democrático da Grécia”. Entra-se, a partir de
1947, numa situação de guerra civil, em que há dum lado as forças monárquicas e
da direita em geral, incluindo as anteriormente colaboracionistas com a ocupação,
que têm o apoio inglês; do outro lado a esquerda, que chegou a ter um exército de
30.000 homens. É uma segunda guerra civil que se vai prolongar por mais dois
anos, e perante a qual a dada altura as tropas e o governo inglês se vêm
impotentes88.
É nesse momento (12.3.1947) que o Presidente Truman vai ao Congresso
americano e faz o famoso discurso em que afirma a decisão de apoiar todos os
governos que sejam postos em perigo pela ameaça comunista. O que estava em
causa era o governo grego, que nada tinha de democrático mas que os americanos
vão a partir daí, em substituição dos ingleses, apoiar por todos os meios.
Esta intervenção de Truman é um facto central no início da Guerra Fria. No
filme que vimos diz-se em conclusão ”a guerra fria estava oficialmente declarada”.
E porquê? Não foi apenas uma declaração pontual de apoio a este governo. A
mensagem do Truman era um discurso que no seu conjunto afirmava uma
contraposição de dois blocos no Mundo: o “mundo livre”, capitalista, e o mundo
comunista.
O apoio à Grécia era conjugado com os financiamentos à Turquia, que tinha
neste momento um conflito territorial com a União Soviética. Durante a guerra fora
prevista a participação soviética no controle da passagem do estreito dos
Dardanelos, o que depois não foi aceite pelo governo turco. E havia além disso
também questões territoriais de fronteira.
Esta declaração formaliza assim uma atitude de intervenção global dos
Estados Unidos no mundo, ultrapassando definitivamente a tradição de
isolacionismo e de intervenção limitada à zona de influência próxima, a América
Latina e a região do Pacífico.

88
V. Lidia Santarelli, “La guerra civile greca”, in Aldo Agosti (dir.), Enciclopedia della sinistra europea
nel ventesimo secolo, pp. 735-741.
293
294

Lição 3: O pós-guerra e a primeira fase da descolonização.

Nestas últimas aulas falámos das origens da guerra fria mas, até agora, praticamente
tudo o que disse a esse respeito tinha a ver com problemas europeus, tanto da Europa
Ocidental como da Europa de Leste: nomeadamente, situações relativas à evolução
política na Europa de Leste e à influência da União Soviética nesses países, a situação
da Grécia e a guerra civil, também a situação italiana, que foi uma das referidas no
filme da aula passada como mais directamente ligadas às origens do Plano Marshall,
que é, por seu turno, uma realização política e económica que acaba por consolidar a
separação entre as duas Europas, a ocidental e a de leste.
No entanto, a guerra fria foi um problema global que dividiu o mundo todo. A
explicação das origens da guerra fria não tem a ver apenas com os problemas relativos à
divisão das esferas de influência na Europa, tem a ver, também, com a transformação
profunda que se verificou na estrutura política do mundo na sequência da II Guerra
Mundial e resultante da descolonização, do desaparecimento dos impérios coloniais
europeus, um fenómeno que vai marcar os 30 anos posteriores à guerra. Isto não
significa que a descolonização implique directamente uma mudança de campo ou um
alinhamento de cada um dos países que se tornam independentes com uma das duas
super-potências. Em muitos casos, pelo contrário, esses países, pelo menos à partida,
procuram ser independentes dos blocos. Mas a realidade da hegemonia económica
americana no mundo, por um lado, por outro a existência de um bloco alternativo,
constituído pela União Soviética e o grupo dos Estados socialistas, fazem com que, em
termos de modelos de desenvolvimento, em termos de ajudas ao desenvolvimento e em
termos, consequentemente, de modelos políticos, as decisões, as orientações dos novos
países sejam profundamente atravessadas pela bipolaridade dos modelos da guerra fria,
além de serem atravessadas pelas acções próprias dos agentes políticos, militares,
económicos e da espionagem, que é também uma componente absolutamente central da
guerra fria e da interferência em todos estes processos. Por outro lado, a questão da
bipolaridade capitalismo-socialismo e o problema da descolonização não são, à partida,
idênticos mas, nalguns casos, cruzam-se e nalguns casos até, pode dizer-se, identificam-
se. Identificam-se, nomeadamente, no caso da China onde no pós-guerra se vai decidir
uma luta entre duas orientações políticas que pretendem representar a China e em que
295

acaba por vencer a revolução socialista, através da conquista do poder, no país mais
populoso do mundo, por um Partido Comunista, nessa altura identificado com a União
Soviética. No caso concreto da China, embora não fosse uma colónia em sentido
político, era-o em sentido económico. A independência política e económica vem a
significar, também, a formação de uma componente essencial do campo socialista na
guerra fria.

Vejamos então esta segunda componente das origens da guerra fria que é a
descolonização.
Recordemos que a II Guerra Mundial, tal como já tinha acontecido com a primeira, foi
um impulsionador decisivo dos movimentos de descolonização. Até à II Guerra
Mundial, a grande maioria dos países africanos e asiáticos eram colónias, depois da II
Guerra Mundial, num prazo relativamente curto, a maioria tinha-se tornado
independente. No entanto, não foi a II Guerra Mundial que desencadeou o anti-
colonialismo. As resistências aos colonialismos são tão antigas como a história do
próprio colonialismo e, em particular, desde a I Guerra Mundial que os movimentos
anti-coloniais tinham expressão, mais ou menos organizada, em alguns países, com
correntes intelectuais que assumiam a causa independentista e, também, desde os anos
20 que existiam movimentos anti-imperialistas e anti-coloniais - por exemplo, em 1927,
reuniu em Bruxelas um congresso mundial anti-imperialista.
Já anteriormente referi as tendências no sentido da descolonização que se desenvolviam
desde a I Guerra Mundial. Vários factores pesaram nesse sentido. Desde logo, as
guerras perturbaram o ciclo normal das relações económicas, a guerra marítima
perturbava o comércio internacional e as relações das metrópoles com as colónias.
Nalguns casos, como foi, por exemplo, o da Índia desde essa altura, o facto de estarem
privadas do abastecimento normal em produtos industriais das metrópoles suscitou
processos de industrialização próprios. Esse é um dos factores de modernização de
alguns países coloniais que vai favorecer o desenvolvimento de uma vontade de
autonomia e de independência.
Por outro lado, os EUA, como país não colonial e cujo interesse reside no livre-câmbio
internacional, é um país com uma tradição anti-colonial que, nomeadamente, inspirava
o pensamento do Presidente Wilson e algumas disposições da Sociedade das Nações
296

que, mesmo não tendo tido grande consequência prática, apontavam no sentido da
responsabilidade dos países coloniais em educarem e promoverem a autonomia das
populações sujeitas ao seu domínio. A instituição dos mandatos da Sociedade das
Nações, que são uma novidade, insere-se dentro dessa filosofia, quer dizer, as colónias
alemãs não foram simplesmente redistribuídas, os países que assumiram o governo das
ex-colónias alemãs, nomeadamente a França e a Inglaterra, faziam-no como mandato da
Sociedade das Nações, em teoria não visavam o seu interesse directo ou colonial mas
uma tarefa internacional de promoção dos povos que tutelavam. Com isto, cruza-se, por
outro lado, a influência crescente da Revolução Russa e da União Soviética. A
Revolução de Outubro foi protagonizada por um partido que se situava nas correntes
mais à esquerda do movimento socialista, que sempre tinham sido críticas do
colonialismo. O colonialismo era visto como uma extensão e um agravamento da
dominação capitalista, mas, simultaneamente, como factor de agravamento das tensões
internacionais. E a revolução russa tinha realizado no seu próprio império (visto que a
Rússia era um império), uma descolonização, ao dar a independência à Finlândia, ao
aceitar a independência dos Estados Bálticos e ao promover a URSS como uma forma
de federação de nacionalidades muito diferente do antigo Império Russo. A União
Soviética, como país atrasado, agrário, semi-europeu e semi-asiático, situa-se numa
lógica de oposição às potências coloniais e procura estimular os movimentos anti-
coloniais e anti-imperialistas em todo o mundo praticamente desde o seu nascimento,
nomeadamente desde o Congresso de Baku dos Povos do Oriente, em 1920. E também
através da acção da Internacional Comunista apoiava a independência da Índia, o
movimento anti-imperialista na China, na Indonésia, em todo o mundo.

A II Guerra Mundial acentuou ainda mais estas tendências, essencialmente por três
razões. Em primeiro lugar, porque a rápida derrota na guerra de algumas das maiores
potências coloniais, como a França e a Holanda, provocou simultaneamente um
desprestígio político e uma inibição da respectiva capacidade do controlo efectivo das
colónias. A Inglaterra, embora mantendo o controlo dos mares e o seu império, também,
em muitos aspectos, teve dificuldade em sustentar as suas posições coloniais ao mesmo
tempo que conduzia a guerra. Por outro lado, a guerra vai-se traduzir no ascenso
decisivo e na passagem à condição de super-potências, por um lado, dos EUA, por
297

outro, da URSS – dois países anti-coloniais. De certa maneira, com o final da II Guerra
Mundial reproduz-se em escala ampliada aquilo que já se tinha verificado no final da
primeira, quer dizer, do lado dos EUA um anti-colonialismo que era agora mais eficaz
porque a América, na II Guerra Mundial e no pós-guerra, estava decidida a assumir um
papel mundial mais efectivo. E, no que diz respeito ao factor soviético, tinha-se
reforçado enormemente, porque a Rússia dos primeiros anos após a revolução, apesar
de todo o enorme impacto ideológico e político desta, era uma potência fraca e
ameaçada e, pelo contrário, a União Soviética de 1945 é uma grande potência. Além
disso, no que diz respeito ao carácter ideológico da guerra (e as ideologias também
contam), também já vimos como, desde a Carta do Atlântico até à definição dos
princípios da ONU, passando pela influência que tiveram as resistências anti-fascistas e,
mais genericamente, o facto de os protagonistas da coligação anti-hitleriana e anti-
japonesa se definirem como anti-fascistas, essa definição ideológica significava uma
afirmação de princípios de democracia e de igualdade dos povos que punha em causa
directamente o colonialismo.

Estes são alguns dos factores que explicam que, mais ainda do que tinha acontecido no
final da I Guerra mundial, o anti-colonialismo, os movimentos anti-coloniais recebam
um grande impulso. Mas este impulso não veio só do anti-imperialismo e do carácter
democrático da coligação anti-fascista, veio também do lado de um dos participantes no
Eixo fascista, que foi o Japão. Quer dizer, o Japão, embora Estado imperialista, já antes
da guerra, para muita gente, nos mais diversos países, em especial da Ásia, representava
um símbolo das capacidades dos povos asiáticos na rivalidade ou na oposição ao
domínio ocidental. É um longo processo, que começa com a vitória japonesa na guerra
contra a Rússia em 1905. Essa vitória, de um povo de raça amarela, como dantes se
dizia, contra um império longamente estabelecido como o império russo, teve um
grande impacto, porque revelava capacidades militares e de modernização económica
que já existiam no Japão nessa época. Alguns dos homens que vieram a ser pioneiros do
anti-imperialismo, por exemplo na China, como Sun Yat-sen (que, em 1911, chefiou a
Revolução Republicana na China), viveram no Japão. Nos seus escritos, Sun Yat-sen
pôs em relevo o significado da vitória japonesa contra a Rússia no impulso à luta pela
independência dos povos asiáticos.
298

Quando, em 1941, o Japão entra na guerra com os EUA, porque ambiciona dominar
toda a região do sueste asiático, ocupa quase todo o extremo-oriente, ocupa a Birmânia,
a Malásia, a Indochina, a Indonésia e uma série de ilhas do Pacífico, incluindo as
Filipinas. Em relação a todos estes países, que eram colónias de potências ocidentais, os
japoneses apresentaram-se como libertadores em relação ao domínio colonial europeu e
procuraram o entendimento com elites e lideranças que já anteriormente tinham
assumido posições anti-coloniais. Não se tratava apenas de ideologia mas, também, da
proposta e da tentativa de organização daquilo a que chamaram uma “área de
prosperidade comum” do extremo-oriente, ou seja, de tentativas de integração
económica desta região, de assegurar a complementaridade de recursos das diversas
economias a partir de uma base, que era a própria capacidade económica do Japão.
Antes de entrar na guerra com os EUA em 1941, o Japão já era um império porque já
dominava há muito a Coreia, desde 1931 a Manchúria e, desde 1937, uma grande parte
da China. O Japão era, à partida, uma potência imperial que oferecia essa capacidade de
integração e, com ela, o programa da criação de uma “área de prosperidade comum”
para os povos asiáticos.
Efectivamente, os japoneses conseguiram na Indonésia a colaboração dos
independentistas, já nessa altura liderados por Ahmed Sukarno e, mesmo na Índia,
houve uma parte dos partidários da independência, liderada por Chandra Bosé, que
também preconizou e defendeu a colaboração e constituiu até um governo no exílio com
apoio japonês. Mas, já noutros países, como foi o caso na Indochina, nomeadamente no
Vietname, onde já antes da guerra o movimento independentista mais activo, o
Vietminh, era dirigido pelo Partido Comunista e pelo seu líder Ho Chi Minh, estes
recusaram qualquer tipo de colaboração com os japoneses. O que vai acontecer durante
a II Guerra Mundial é que, durante um período inicial, correspondente à fase de
ofensiva japonesa e de êxito militar, efectivamente, os japoneses conseguiram nalguns
sítios um relativo sucesso na conquista das populações e da colaboração de alguns
grupos nacionalistas. A partir de certa altura porém a situação inverte-se, o que tem a
ver com o recuo militar e, consequentemente, o agravamento das dificuldades
económicas, uma crescente pressão japonesa sobre todo o tipo de recursos, materiais e
humanos, e uma direcção político-militar que era do tipo fascista, quer dizer, de um
militarismo exacerbado e também racista. Apesar de os japoneses defenderem e, de
299

algum modo, representarem a independência dos asiáticos em relação aos europeus,


eram eles próprios racistas – os coreanos, por exemplo, foram tratados como escravos e
a ocupação japonesa na China foi extremamente violenta, com barbaridades
semelhantes às que os nazis cometeram na Rússia ou na Polónia. Sobretudo, a gestão
económica da ocupação foi cada vez mais dirigida para uma exploração a todo o custo,
subordinada às necessidades da economia de guerra japonesa, e isso suscitou resistência
das populações. Com a derrota japonesa, quem está em posição de assumir o poder são
os movimentos independentistas. No caso do Vietname, o Japão promoveu um monarca
local, Bao Dai, o Rei do Anam, que é a parte central do Vietname, e permitiu até, na
fase final da guerra, que o Bao Dai proclamasse a independência. Era uma tentativa de
evitar a tomada do poder pelo Vietminh, o que não conseguiu porque, logo pouco
depois de terminar a guerra, o Vietminh estabeleceu-se como a força principal e
proclamou a república. Bao Dai veio depois a ser apoiado pela velha potência colonial
na Indochina, que era a França, e, a partir daí, entrou-se no princípio da guerra do
Vietname, em que os franceses acabaram por ser derrotados em 1954, mas foram depois
sucedidos (e é um assunto a que voltaremos noutra altura) pelos americanos, que
intervieram e acabariam também por ser derrotados em 1974. O Vietname do Norte
tornou-se independente imediatamente a seguir ao final da II Guerra mundial, sob
direcção do Vietminh e do Presidente Ho Chi Minh, mas a libertação e unificação do
conjunto do Vietname só se concluiria 30 anos depois, em 1975.

Já no caso da Indonésia, o processo decorreu de forma relativamente mais pacífica, ou


seja, o movimento liderado por Sukarno, que tinha tido a complacência e mesmo a
protecção dos japoneses, conseguiu reforçar-se nessa base e, com a derrota japonesa, é
Sukarno quem proclama a independência da Indonésia em relação à velha potência
colonial que era a Holanda. A Holanda não aceita esta proclamação e tenta combatê-la.
Mas a Holanda encontrou-se isolada internacionalmente. Sukarno era um nacionalista
não comunista, dava garantias de independência e até de hostilidade ao comunismo
mas, no seio do movimento da independência da Indonésia, nomeadamente em
determinadas regiões, desenvolve-se uma componente comunista que, aliás, em Java em
1948, chegou a desencadear uma insurreição. Isto fazia com que os EUA temessem a
possibilidade de uma radicalização e de uma evolução de sentido socialista do novo
300

Estado Indonésio e, daí, que eles se empenhassem nesta fase em apoiar Sukarno como
alternativa a uma hipotética evolução comunista. O apoio dos Estados Unidos consistiu,
sobretudo, em contrariar as tentativas da Holanda de prolongar a guerra. Mesmo ao
nível da ONU, houve votações favoráveis ao reconhecimento da independência da
Indonésia e, finalmente, em 1949, a própria Holanda se resignou e acabou por
reconhecer a independência

Entretanto, os Estados Unidos, que tinham a sua própria colónia das Filipinas, também
deram a independência às Filipinas em 1946, tendo tido o cuidado, no entanto, de
manter um controlo, não só económico mas também, politico e militar, um controlo que
dura até hoje, embora isso não tenha conseguido impedir que numa parte das Filipinas
exista um movimento de guerrilha de influência comunista mas, que até hoje, não
conseguiu sucesso.

O movimento anti-colonial que no pós-guerra vai ter maior repercussão internacional e


um significado simbólico grande é o da Índia. A Índia que era, como se costuma dizer, a
jóia da coroa do império britânico e, portanto, qualquer coisa de muito intimamente
associada à própria consciência nacional e imperial inglesa desde o século XIX. Na
Índia, desde o primeiro pós-guerra que se desenvolvia um movimento pela
independência com uma liderança política assegurada pelo Partido do Congresso e com
um líder político e espiritual reconhecido e que, rapidamente, alcançou grande prestígio,
que foi Gandhi. Os ingleses durante a colonização mantiveram a estrutura dos reinos
locais, os rajás e marajás. Gandhi, ainda jovem, foi estudar Direito para Inglaterra,
formou-se em Londres e foi, depois, exercer advocacia para outra das colónias
britânicas, a África do Sul. É aqui que ele primeiro se confronta com a discriminação
racial e, em particular, com a discriminação dos indianos na África do Sul e lança o
Congresso hindu, um movimento de luta pelos direitos da minoria indiana inspirado
numa filosofia própria, de base religiosa, que usa como método a “desobediência
cívica” não violenta. Vinte anos depois, nas vésperas da I Guerra mundial, é que vai
para a Índia e torna-se aí o promotor de um movimento de independência e da
reorganização do partido do Congresso (fundado em 1885), de que se torna líder. A
palavra “Congresso” significa, etimologicamente, reunião, convergência, tem esse
301

significado de união por um objectivo, neste caso, a independência. Gandhi encara a


acção política como uma filosofia e uma atitude, inspirada em parte na religião hindu,
em parte na sua formação intelectual que recolhia elementos diversos, nomeadamente a
influência das ideias do Leão Tolstoi, escritor russo muito influente nos finais do século
XIX e princípios do século XX, nomeadamente o pacifismo do Tolstoi. O Congresso
Indiano não organizou putsch, acções armadas, guerra civil, mas sim, acções
sistemáticas de recusa de colaboração, política ou económica, com a potência colonial.
Ficou célebre a recusa do imposto sobre o sal através da promoção de um movimento de
massa para as praias, para obter o sal através da recolha e evaporação de água do mar.
Gestos que, em muitos casos, suscitaram reacções violentas dos ingleses. A não-
violência não significou que o movimento pela independência não tivesse custos
humanos também importantes, que teve. Desde os anos 30 que o avanço do movimento
pela independência e da organização do Partido do Congresso conseguiu obter algumas
concessões da parte dos ingleses, nomeadamente, em 1935, uma Lei do Governo da
Índia, que alargava substancialmente a autonomia do Governo e a participação eleitoral
dos indianos nas eleições para a escolha dos órgãos de governo local, embora
continuasse a existir o Governador ou Vice-Rei da Índia, representante da Coroa
britânica.
Durante a II Guerra mundial, a Inglaterra procurou conter o movimento pela
independência, declarando a união dos povos do império britânico contra o Eixo. Esta
pretensão foi desafiada pelos independentistas indianos, que receberam muito mal o
facto de a decisão da participação de tropas indianas na guerra ter sido imposta sem
qualquer participação dos órgãos eleitos locais. Esta participação indiana foi importante
e teve peso, foram dois milhões de soldados indianos que participaram na 2ª Guerra
Mundial, nomeadamente na Birmânia. Como já foi referido, uma parte dos
independentistas indianos vai aliar-se com os japoneses. O seu chefe foi Chandra Bose,
que formou um governo indiano no exílio e chegou, aliás, a ter conversações com o
governo nazi. Mas a componente principal do movimento independentista, que era o
Partido do Congresso, liderado por Gandhi como chefe espiritual e, a partir desta altura,
também com uma participação dirigente bastante importante de Nehru (que vai ser mais
tarde, Primeiro-Ministro da Índia), recusa qualquer coligação com os japoneses e aceita
a participação na guerra anti-japonesa, mas sem renunciar à luta pela independência da
302

Índia. Ao contrário do que a Inglaterra pretendia, a situação de guerra não foi um


motivo para reduzir a oposição à presença inglesa mas, pelo contrário, o movimento de
exigência da independência e de expulsão das autoridades inglesas da Índia
intensificou-se. Gandhi foi preso mas, passado algum tempo foi libertado, em 1944.
Entretanto, a situação do final da guerra, a difusão crescente de ideais anti-coloniais e,
o facto de que na própria Inglaterra, os trabalhistas, ou seja, o partido da esquerda,
ganham as eleições em Julho de 1945, possibilita que o governo britânico entre em
negociações com o Gandhi e se oriente no sentido da concessão da independência. Mas
pesava nisto um outro problema, que vem a ser a própria complicação interna da
situação indiana, o nascimento de um movimento de base religiosa que exige uma
identidade nacional própria para os muçulmanos da Índia, predominantemente
concentrados em determinadas regiões. Quer dizer, nascia por esta altura uma corrente
pela formação do Paquistão, assente na existência de uma Liga Muçulmana, hostil ao
Partido do Congresso e com uma orientação política mais conservadora, de base
religiosa e de reivindicação de valores tradicionais.
O Partido do Congresso indiano realizava uma espécie de combinação entre a referência
aos valores hindus e algumas ideias de modernização e racionalização política e
intelectual, quer dizer, o Partido do Congresso, sobretudo na versão do Nehru (mais do
que na de Gandhi), era essencialmente inspirado nas ideias ocidentais modernas, da
liberdade individual, da democracia política e social, da instrução e difusão da cultura.
Já Gandhi achava que era preciso preservar certos hábitos tradicionais, certa concepção
de morigeração dos costumes e da vida (há imagens dele a fiar o linho com
instrumentos artesanais) e não era em princípio contra a existência de castas, embora se
tenha batido muito pela dignidade da casta inferior dos “intocáveis”. O Partido do
Congresso é partidário das ideias da liberdade e igualdade dos indivíduos e recusa a
discriminação das castas que, com a independência, serão legalmente abolidas, embora
na prática ainda hoje permaneçam. Gandhi e Nehru tinham consciência da diversidade
religiosa e até linguística da Índia e viam o Estado indiano como um Estado não
confessional, um Estado laico, capaz de ter no seu seio cidadãos com diferentes
religiões e diferentes línguas. Em oposição a isto, a Liga Muçulmana que é, de certa
maneira, um percursor de alguns dos movimentos do fundamentalismo islâmico que
hoje existem por toda a parte, é um movimento de inspiração religiosa. A própria
303

palavra “Paquistão”, que nasceu só nos anos 30, significa “terra dos puros”, puros do
ponto de vista religioso. O certo é que os adeptos da independência do Paquistão
procuraram e conseguiram obter as boas graças das autoridades inglesas, nomeadamente
do Lord Mountbatten, nomeado, em Março de 1947, como vice-rei, numa altura em que
a Inglaterra já tinha anunciado a intenção de conceder a independência à Índia. Os
ingleses favoreceram, dentro de uma política geral de dividir para reinar, a formação do
Paquistão como Estado independente. Portanto, é isso que acontece ainda em 1947, é
concedida a independência da Índia e forma-se, pela mesma altura, o Paquistão. O
problema é que, embora a população muçulmana fosse predominante na região do
noroeste e também no Bengala oriental (que é hoje o Bangladesh), na verdade as
populações muçulmanas e hindus estavam muito misturadas. Esta formação de dois
Estados, com a ideia de que cada Estado tem uma orientação religiosa e que oprimirá os
que têm uma orientação diferente, gera uma extrema inquietação das populações e vai
fazer com que milhões de pessoas, nas regiões de fronteira entre o Paquistão e a Índia,
nos últimos dias anteriores à proclamação das independências, migrem no sentido de
ficarem no Estado associado à sua orientação religiosa. Nas regiões de fronteira vão-se
dar esses movimentos intensos e precipitados de população, cerca de dez a dezassete
milhões de pessoas. Deve-se ter em conta que o Paquistão não era apenas o território
actual, aquela massa importante no noroeste mas, também, aquilo que é hoje o
Bangladesh e que se chamava inicialmente Paquistão Oriental. Sobretudo na região do
Punjab, que é atravessada pela fronteira, e na região de Caxemira, houve essas
migrações e, associadas a elas, conflitos e incidentes de todo o tipo que fizeram muitas
vítimas, calcula-se entre 500 mil e um milhão de mortos no decurso deste processo das
migrações do Punjab. Este conflito não foi só negativo para as relações entre hindus e
muçulmanos, porque exasperou as tensões dentro das próprias comunidades,
nomeadamente entre os hindus. Gandhi era favorável à integração dos muçulmanos, não
desejava a formação de Estados separados (por isso nem participa na celebração da
independência da Índia) e acaba por ser assassinado, em Janeiro de 1948, poucos meses
depois da independência da Índia, não por um muçulmano mas por um nacionalista
hindu, um fanático religioso. Também um problema muito sério foi o da Caxemira. Na
Caxemira, embora a maior parte da população fosse muçulmana, o Rajá era favorável à
integração na Índia, o que gerou conflitos internos e acabou por provocar a primeira
304

guerra indo-paquistanesa em 1948, logo no ano seguinte às declarações de


independência, guerra essa que foi concluída por um armistício que ainda hoje não é
considerado definitivo, nem pelo Paquistão nem pela Índia. Ainda hoje há discussões
acerca da fronteira e há, com frequência, conflitos nessa zona, um dos potenciais focos
que ameaçam descambar em conflito internacional perigoso porque hoje em dia, e já
desde há alguns anos, tanto a Índia como o Paquistão são potências nucleares. A Índia é
muitas vezes caracterizada como a maior democracia do mundo porque é um dos
maiores Estados e a segunda maior potência demográfica do mundo, a seguir à China.
Em muitos aspectos, a Índia é um Estado moderno, assente num regime parlamentar em
que, no entanto, nas últimas décadas o Partido do Congresso, que até aos anos 70 foi
sempre dominante, agora nos últimos vinte ou trinta anos tem sido defrontado pelos
nacionalistas muçulmanos e também pelo partido nacionalista hindu. É um país com
imensos contrastes, nalguns aspectos um país desenvolvido, aliás, em anos recentes com
desenvolvimentos de ponta a nível mundial em vários domínios científicos, com um
bom sistema educacional, ao mesmo tempo é um dos países mais miseráveis do mundo
e ainda com níveis de pobreza extrema.
305

Lição 4. Guerra fria. Da revolução chinesa à guerra da Coreia.O Maccartismo. A


repressão na URSS e na Europa de leste.

Hoje continuamos com a análise do período da guerra fria em sentido estrito que, como
já tive ocasião de dizer, corresponde essencialmente à primeira metade da década de 50.
Em anos recentes, sobretudo depois do desaparecimento da União Soviética, tem-se
generalizado o uso da expressão “guerra fria” para designar todo o período de confronto
entre os dois blocos que vai, praticamente, desde os finais da II Guerra Mundial até ao
desaparecimento da URSS, ou pelo menos até à Perestroika, ou seja, um período de,
pelo menos, 40 anos. Mas a guerra fria, em sentido próprio, foi uma situação de tensão
aguda nas relações internacionais que sucedeu ao fim da II Guerra Mundial e que, de
algum modo, substituiu à guerra que tinha acabado, e ao inimigo nazi, o confronto com
o comunismo visto como o novo inimigo global, confronto marcado, e isso é que é, de
facto, característico da novidade da guerra fria, pela ameaça atómica, pela consciência
de que havia conflitos que podiam desembocar em guerra e que essa guerra podia
recorrer à arma atómica, uma vez que já havia, até, experiência da utilização dela e que,
a partir de 1949, as duas super-potências estão dotadas da arma atómica, ou seja, os
Estados Unidos já dispunham dela desde 1945 e a União Soviética constrói a primeira
bomba atómica em 1949.
Já vimos alguns dos conflitos que marcaram o imediato pós-guerra, nomeadamente na
Europa, a gravidade da questão alemã e da divisão da Alemanha. Na aula passada,
comecei a falar sobre aspectos da guerra fria fora da Europa, no terceiro mundo e,
nomeadamente, referi que toda a história da guerra fria se vai cruzar com o longo
processo das descolonizações, de que comecei também a falar a propósito da Índia (por
sinal, o caso de um país que manteve a neutralidade durante o período da guerra fria).
Hoje vamos analisar mais alguns problemas, quer relativos à evolução interna nos EUA
e na União Soviética, quer à expressão da guerra fria na Ásia, nomeadamente, em
relação com a guerra da Coreia, que é, pode dizer-se, o grande conflito da guerra fria em
sentido estrito, isto é, o grande conflito de incidência internacional da primeira metade
dos anos 50. É preciso ter presente que 1949, o ano da aquisição da bomba atómica pela
URSS, é também o ano da Revolução Chinesa, isto é, o ano em que o Partido
Comunista da China, envolvido numa guerra civil de longa duração que tinha começado
306

nos anos 20, vence contra as tropas do Kuomintang, que eram aliadas dos EUA. Essa
vitória da Revolução Chinesa tem uma enorme importância histórica (sem ela é difícil
conceber que a China fosse a grande potência que hoje é) e o impacto da Revolução
Chinesa deve-se justamente ao facto de que nela há, por um lado, o aspecto social e
político comunista, por outro, na medida em que a China era um país dependente e
desde o final do séc. XIX uma semi-colónia, também uma forma de libertação de um
país semi-colonial, que vai ter um grande impacto nos países do terceiro mundo e em
todo o processo anti-colonial.

Não vou fazer aqui a história da guerra civil na China mas, apenas, dizer alguma coisa
sobre a última fase que se inicia nos anos 30, com a ocupação da Manchúria e, depois,
da China, pelo Japão. Essa ocupação japonesa suscitou uma procura de aproximação
entre as duas forças organizadas que anteriormente estavam em guerra, ou seja, os
comunistas e o movimento nacionalista do Kuomintang (Guomindang). A partir de
1937, há conversações e acaba por se concluir um acordo entre o PCC e o Kuomintang,
dirigido por Tchang Kai-Chek (Jiang Jieshi), que anteriormente estavam em guerra
entre si, acordo no sentido de combaterem conjuntamente a invasão japonesa. Os
comunistas durante a fase da guerra anti-japonesa reconhecem a liderança do
Kuomintang. O próprio exército comunista oficialmente faz parte do conjunto das
tropas nacionalistas chinesas, dirigidas pelo Kuomintang. No plano internacional tanto
os EUA como a URSS negoceiam com o Kuomintang, tanto Roosevelt como Stalin
tiveram durante a guerra encontros com Tchang Kai-Chek, acerca das respectivas
posições e do futuro da China. Isto inseria-se, no que respeita aos comunistas chineses,
na mesma política geral que o movimento comunista teve desde meados dos anos 30, a
política das frentes populares anti-fascistas, ou seja, a política da unidade contra o
nazismo e os fascismos, uma vez que, como sabemos, o Japão fazia parte do Eixo). A
essa política correspondem, no final da guerra, em 1945, programas de “democracia
popular” que se propunham continuar as alianças anti-fascistas nas condições da paz, o
que nos países europeus teve concretização nos governos de coligação de 1945-47. O
mesmo tipo de tentativa foi feito na China, chegou a ser prevista a formação de um
Governo de coligação entre o Partido Comunista e o Kuomintang. Mas na China esta
coligação não teve realização prática, cada uma das forças tinha as suas tropas e,
307

sobretudo do lado do Kuomintang, não houve nenhuma disposição para a formação


desse governo de unidade nacional, a que os próprios EUA, no final da guerra, não se
opunham (houve uma missão do General Marshall junto do Tchang-Kai-Chek, no
sentido de favorecer esse governo de unidade nacional, mas não teve nenhum
acolhimento da parte de Tchang Kai-Chek). Logo pouco depois de derrotado o Japão,
recomeça a guerra civil. Os comunistas chineses, já antes da II Guerra Mundial,
dispunham de algumas bases territoriais no interior da China, primeiro na região do
Kiangsi, a sul, e depois, na sequência da “longa marcha”, tinham fundado a república do
Yenan, a norte. Mas agora podem dispor, também, de bases a partir da Manchúria
porque esta foi libertada pela União Soviética, o que lhes dá uma sólida retaguarda e
uma situação muito mais favorável do que anteriormente. A condução da guerra, por
parte do Partido Comunista, e tal como foi concebida pelo seu líder, Mao Tsé-Tung
(Mao Zedong), procurou sempre aliar as operações militares com a conquista das
populações, o que significava a concretização de transformações sociais nas regiões
onde a guerrilha comunista conseguia implantar-se e controlar território (a primeira
“República Soviética Chinesa” ou soviete do Kiangsi, que existiu entre 1931 e 1934,
tinha 30 mil km2 e 3 milhões de habitantes). Isto foi prosseguido, sobretudo depois na
fase em que tiveram essa base mais vasta a norte, com capital no Yenan. Ou seja,
conquistar as populações significava realizar a revolução nesses territórios,
essencialmente através da reforma agrária, aliás, esse foi um aspecto em que,
praticamente desde o início, a condução politica do comunismo chinês por Mao Tsé-
Tung se diferenciou das estratégias tradicionais da Internacional Comunista, que
apostavam no proletariado urbano e, consequentemente, na conquista das cidades. Mao
defendeu que, sendo a China um país de camponeses, uma revolução de massas seria,
em primeiro lugar, uma revolução camponesa, e depois teorizou que os campos é que
deviam cercar as cidades. Isto foi concretizado, as condições de extraordinária miséria e
opressão do campesinato chinês foram, progressivamente, superadas através de um
processo violento - porque esta guerra civil não era só conduzida pelas tropas, era
também assumida pelas populações - contra os grandes proprietários que,
efectivamente, mudou a partir da base a estrutura social das regiões libertadas. Em
1945, terminada a guerra anti-japonesa, os comunistas retomaram a iniciativa e, sempre
nessa base de combinação das operações militares com a transformação social nos
308

campos, conquistaram, de facto, a maioria da população. Pelo contrário, o Governo e os


exércitos do Kuomintang só se preocuparam em dominar as cidades e faziam uma
condução clássica da guerra, não conseguindo apoio popular. Além disto, o Kuomintang
foi, em larga medida, corroído pela corrupção. Após 1945, o Kuomintang sofre derrotas
sucessivas, a partir de certa altura, divisões inteiras do exército do Kuomintang
passaram para as fileiras comunistas e, finalmente, em Março de 1949, o Exército de
Libertação Popular (era o nome oficial das tropas comunistas e é ainda hoje o nome das
Forças Armadas da China) entra em Pequim. Seis meses depois, em 1 de Outubro de
1949, dá-se a proclamação da República Popular da China. Entre a entrada em Pequim e
a proclamação mediaram seis meses porque, nessa altura, ainda uma grande parte do
território não estava conquistada e, mesmo depois da proclamação em Outubro,
prosseguiram os combates, e progressivamente é que os nacionalistas foram empurrados
para sul e, finalmente, obrigados a fugir por mar para Taiwan (Formosa). Vão ocupar a
Formosa onde se estabeleceram e onde criaram um Governo do Kuomintang de que o
Tchang Kai-Chek continuou a ser o chefe, até à sua morte em 1975. Um regime
ditatorial que beneficiou do apoio americano e, por isso, continuou a ocupar na ONU o
lugar pertencente à China. Foi este um dos problemas que caracterizaram e limitaram a
acção da ONU e a sua própria representatividade, ou seja, um país imenso como a
China não era representado pelo governo efectivo, mas sim pelo governo de Taiwan, e
essa situação durou até 1971. Só nessa data, pouco antes do encontro histórico entre
Nixon e Mao Tsé-Tung e do reconhecimento da República Popular da China pelos
EUA, é que os EUA abandonaram o veto à presença na ONU da RPC e esta entrou no
Conselho de Segurança.
A história da Revolução Chinesa é uma história com autonomia no conjunto da história
do movimento comunista. Se é certo que, em muitos aspectos, a história da III
Internacional (o Comintern) e, naturalmente, depois da guerra, do Cominform (o bureau
de informação dos Partidos Comunistas criado em 1947), esteve estreitamente
dependente da União Soviética, em contraste com isso a história do comunismo chinês é
uma história autónoma e, mais tarde, nos anos 60 e 70, será até uma história de conflito
agudo. Nesta altura da vitória dos comunistas na China há, pelo contrário, uma grande
identificação entre os dois países e regimes. A primeira viagem do Mao Tsé-Tung ao
estrangeiro é uma viagem à URSS, que dura dois meses e meio.
309

De uma maneira geral, pode dizer-se que a política soviética não contava para o pós-
guerra com uma vitória do comunismo na China. No entanto, quando se dá a
proclamação da República Popular da China, a política americana será sempre de
apresentar a revolução na China como mais uma expressão da expansão mundial do
comunismo, isto é, do carácter global das pretensões expansionistas da URSS. É um dos
factores que jogaram na criação do clima do pós-guerra, em termos de relações
internacionais e, também, em termos da política interna americana e da maneira como a
“ameaça comunista” foi vivida nos EUA, e mais difusamente nos países capitalistas
europeus, durante este período.
Temos assim, no final da década de 40, a vitória do comunismo na China praticamente
em simultâneo com a estreia da bomba atómica soviética. Entretanto, na política
americana, o espírito reformador da política de Roosevelt, que tinha apostado na criação
de uma ordem internacional pacífica no pós-guerra envolvendo as grandes potências,
incluindo a URSS, é sujeito a uma erosão e a um retrocesso. Em certa medida, a
tendência da opinião pública americana, tal como tinha acontecido no primeiro pós-
guerra, é de novo para se voltar para os problemas internos e encarar todo o tipo de
problemas internacionais como ameaças potenciais ao seu estilo de vida. A defesa do
modo de vida americano será, nestes anos, um dos temas predilectos, em especial do
Partido Republicano, que representa a oposição de direita e isso significa, também, a
crítica da política fiscal, que tinha sido uma componente importante das reformas
sociais realizada durante o período do Roosevelt. Há uma viragem no sentido anti-fiscal
que arrasta uma posição contra as políticas sociais e contra os sindicatos, que se tinham
fortalecido durante o período de Roosevelt mas são agora postos em causa, mesmo
ainda durante a presidência do Truman, que vai durar até 1952. Paralelamente a isto, a
preocupação anti-comunista leva a desenvolver uma quantidade de inquéritos de polícia
e da contra-espionagem, envolvendo tanto o FBI como a CIA e desdobrando-se, ainda,
em inquéritos na generalidade dos serviços públicos sobre o comportamento político
dos funcionários, em particular os ligados ao Departamento de Estado (nos EUA, o
State Department é o Ministério dos Negócios Estrangeiros). Vão começando pelo State
Departement e depois estendendo-se praticamente a todos os domínios da
Administração e, também, da actividade em sectores como os intelectuais e os artistas
em geral. Vai ser desenvolvida uma série de inquéritos sobre o comportamento, quer de
310

funcionários com funções de responsabilidade, quer de intelectuais e artistas


conhecidos. O período da guerra, da coligação anti-fascista, tinha envolvido muita
gente, a todos os níveis, num espírito progressista favorável à aliança com a União
Soviética, favorável, por isso, em geral, às ideias de esquerda. O próprio Partido
Comunista Americano, embora tenha sido sempre pequeno - nunca teve uma base de
massas importante nem expressão eleitoral -, no entanto teve alguma expressão em
determinados sindicatos. Se a filiação no Partido Comunista era relativamente rara, a
adesão a ideias de esquerda ou a simpatia comunista encontrou-se em muitos escritores
e artistas, bem como algumas personalidades envolvidas na Administração Roosevelt,
no fim dos anos 30 e durante o período da guerra. Tudo isso é sujeito a inquéritos
apertados que são, em relação aos casos mais importantes, coordenados e objecto de
audições do House Comittee on Un-American Activities, que se costuma traduzir como
“Comissão de Actividades Anti-Americanas” (da Câmara de Representantes). Esta
Comissão tinha sido criada em 1938 para investigar a espionagem nazi. Agora, a mesma
comissão é virada para a investigação nos mais diversos meios sobre possíveis
cumplicidades com a União Soviética ou com o Partido Comunista Americano. Mas o
inquérito vai muito para além da actividade e dos activistas do Partido Comunista
Americano. Estes inquéritos e as sanções consequentes conduziram ao despedimento de
milhares de pessoas em vários Departamentos oficiais. Tudo isto foi sustentado e, de
algum modo, apoiado ao nível da opinião pública pelo impacto dos casos de Klaus
Fuchs, já mencionado e, depois, do casal Rosenberg.. Julius e Ethel Rosenberg tiveram
acesso a algumas informações relacionadas com o projecto atómico americano. Foram
acusados de as ter fornecido à União Soviética, julgados e condenados à morte em
1953. Foi um caso que teve um certo impacto mundial, até porque a culpa deles não
ficou totalmente demonstrada. Hoje, o que se sabe é que efectivamente eram comunistas
e prestaram algumas informações que, em todo o caso, tiveram uma importância menor
para a construção da bomba atómica da União Soviética do que lhes foi atribuída na
época.
A figura central nestas perseguições foi o Senador Joseph McCarthy, que conduziu as
investigações da Comissão das actividades anti-americanas e acabou por lançar
suspeitas generalizadas, a um ponto tal que se tornou incómodo. Mesmo figuras
destacadas da política americana, como o Secretário de Estado George Marshall, ou
311

Robert Oppenheimer, o principal físico da condução do Projecto Manhattan, acabaram


por também ser suspeitos. McCarthy acabou ridicularizado e desprestigiado.Em 1954
foi objecto duma censura do Senado e demitido.

A situação da URSS destes anos da guerra fria pode ser descrita como simétrica em
relação à americana mas, obviamente, processa-se dentro do quadro de um tipo de
sistema político a que se costuma chamar “estalinista”, formado nos anos 30, em que
não há lugar para dissidências. Há toda uma estrutura de controle formada no contexto
das purgas de 1936-38 que é, de algum modo, reactivada neste período. Este período é
também já marcado pela decadência do Stalin, pela velhice e pela sua desconfiança
crescente (morre em 1953). Há, entre outras, uma diferença importante, como escreve o
Scipione Guarraccino89, entre o clima nos EUA e na União Soviética. Nos EUA, a
guerra fria foi vivida como um fenómeno de massa em que teve já um papel importante
a televisão. Na União Soviética trata-se, essencialmente, de uma decisão a partir de
cima, de cortar com tudo o que possa representar um risco para a segurança do Estado e
com todo o tipo de influências exteriores geradas, nomeadamente, pela participação na
guerra, pelo facto de ter havido contacto das tropas soviéticas com as tropas aliadas e
soviéticos prisioneiros de guerra dos alemães, portanto, em contacto com os alemães e
com prisioneiros de outros países. Há um enorme receio, uma vontade de prevenir o
contágio desses contactos. Esta situação liga-se, por outro lado, com o problema
resultante da evolução na Europa de Leste em consequência da guerra fria, da separação
dos comunistas das forças social-democratas ou liberais com que tinham estado
anteriormente aliadas nos governos de coligação. A União Soviética vira-se para uma
política de estrito controle sobre toda a Europa oriental, no sentido de impedir
desenvolvimentos autónomos e qualquer tipo de nacionalismos. Por exemplo, no pós-
guerra tinha chegado a ser prevista a formação de uma Federação Balcânica unindo a
Bulgária, a Jugoslávia e a Roménia. A União Soviética impede a formação dessa
federação, o que aliás se liga com o princípio do conflito com a Jugoslávia e a crítica do
“titismo”. O Partido Comunista Jugoslavo é expulso do Cominform. A partir da
iniciativa soviética, vai desenvolver-se, em todos os partidos comunistas do mundo mas,

89
Storia degli ultimi sessant’anni, p. 65.
312

naturalmente, com uma incidência prática maior nos que estavam no poder, que eram os
da Europa de Leste, a perseguição ao desvio “titista”, isto é, a ideias ou propostas de
uma certa autonomia nacional dos partidos e dos governos. Tais posições são
combatidas por porem em causa a unidade do bloco socialista. Este é, também, o
período em que se entra, a nível do movimento comunista internacional, numa fase de
rigidificação sectária, de monolitismo, de combate simultaneamente às tendências
cosmopolitas e nacionalistas. As duas coisas podem parecer contraditórias, visto que o
nacionalismo é o contrário de cosmopolitismo mas, na visão soviética, eram
assimiladas: o sublinhar das especificidades nacionais era criticado por pôr em causa a
unidade do bloco socialista e o cosmopolitismo era criticado como permeabilidade a
influências do mundo capitalista. Esta crítica do cosmopolitismo atingiu, sobretudo, os
judeus soviéticos, em particular na intelectualidade, que tinham sido acarinhados
durante o período da guerra. Há, nesta fase, uma espécie de anti-semitismo. O anti-
semitismo na União Soviética não teve nenhuma espécie de semelhança com o anti-
semitismo nazi, que era de natureza racial e teve as consequências que se conhecem. O
anti-semitismo na URSS surgiu por tabela, na medida em que os judeus, povo disperso
por várias nações, eram muitas vezes personalidades com contactos internacionais e
vistos como permeáveis a influências do estrangeiro. Tudo isto se inseriu mais
genericamente na orientação da política comunista para os escritores e artistas, uma
orientação que foi associada ao nome de um dos responsáveis soviéticos da época,
Zdanov (por sinal, compadre do Stalin), que se tornou o ideólogo soviético para as
questões culturais, e este foi um período marcado por essa rigidez nas orientações da
política cultural que ficou associada à palavra “zdanovismo”.

Vejamos agora a questão da guerra fria na Ásia, o continente mais directamente


influenciado pela grande mudança que tem lugar com a vitória comunista na China.
Como vimos, pouco depois da proclamação da RPC, Mao Tsé-Tung fez uma
prolongada viagem à Rússia, no termo da qual foi concluído um tratado de aliança, pelo
qual a União Soviética concedia à China um empréstimo e renunciava aos ganhos que a
Rússia tinha obtido antes de 1905 e o tratado de Stalin com Tchang Kai-Chek
confirmara. Era, nomeadamente, o controlo de Port Arthur e do porto de Dairen, numa
313

zona fronteira à Coreia e de grande importância estratégica. A URSS renuncia a isso, ou


seja, a China recupera a sua inteira soberania nessa zona.
A vitória comunista na China leva a uma reequacionação da política americana no
extremo-oriente, em primeiro lugar em relação ao Japão.
O Japão fora sujeito, no imediato pós-guerra, a medidas de democratização interna
semelhantes às que os Aliados realizaram na Alemanha. Também no Japão foi criado
um Tribunal Internacional semelhante ao de Nuremberga, embora o número de
condenações que saíram deste Tribunal fosse, em comparação com Nuremberga,
bastante mais reduzido (as condenações de Nuremberga atingiram 2,5 % da população
alemã, no caso do Japão não chegaram a 1%). Ainda sob a direcção dos americanos, o
Japão adoptou uma constituição parlamentar democrática em que desapareceu o papel
de chefia política do Imperador e o carácter divino que a tradição lhe atribuía: o
Imperador Hirohito, aliás bastante contrariado, teve de fazer um discurso a explicar que
já não era Deus. Mas manteve-se no cargo até à sua morte em 1989.
Também no aspecto social houve inicialmente mudanças importantes no Japão com
uma reforma agrária e a dissolução dos Zaibatsu, os grandes cartéis industriais. Esta
política americana em relação ao Japão, que inicialmente teve um carácter democrático,
é alterada a partir de 1947 em função de uma preocupação prioritária com a estabilidade
interna e o anti-comunismo. No pós-guerra, tinham renascido o Partido Socialista e o
Partido Comunista, ambos partidos de massas com influência real e, sobretudo, com
uma expressão sindical forte. A esquerda vai ser a partir de certa altura marginalizada e,
sobretudo, a actividade dos sindicatos vai ser dificultada. Em 1946 houve uma greve
geral de carácter político que foi proibida pelo próprio general Mac Arthur, o
plenipotenciário dos EUA no Japão.
Em 1951, é concluído o tratado de paz que formalmente põe termo à guerra. É assinado
apenas pelos EUA, o Japão e Taiwan, como representante teórico da China. Quer dizer,
a maior parte dos Estados asiáticos que tinham sido vítimas da invasão japonesa,
incluindo, obviamente, a República Popular da China, e além da Índia, não assinaram o
tratado de paz com o Japão, e isso reforçou ainda mais este carácter privilegiado das
relações entre os EUA e o Japão. Logo a seguir, os americanos fazem um novo tratado
com os japoneses, pelo qual mantêm bases militares no Japão e o direito de intervenção
em situações de crise política interna. O Japão é desde esta altura um aliado
314

privilegiado, situação que, apesar dos quase 60 anos que passaram, se mantém ainda
hoje.
Esta aliança reforçou-se com a eclosão da guerra da Coreia, durante a qual o Japão
funcionou como um vasto porta-aviões para as acções americanas e das Nações Unidas
na Coreia. A guerra da Coreia é o conflito central e mais marcante deste período da
guerra fria propriamente dita, ou seja, da primeira metade dos anos 50.
A Coreia foi ocupada pelo Japão desde 1910. Este domínio colonial foi caracterizado
por uma brutal exploração, pelo trabalho forçado e recrutamento forçado para o
exército, também. Durante a II Guerra houve a deportação de trabalhadores para o Japão
e para a Manchúria, e tudo isto foi acompanhado de repressão a todos os níveis,
incluindo cultural e linguístico. Na Coreia desenvolveu-se uma oposição que, durante a
guerra, assumiu formas de guerrilha, liderada pelo comunista Kim Il-sung. Nas vésperas
da derrota japonesa, forma-se um “Comité de Preparação da Independência Coreana”,
coligação democrática articulada com os sindicatos e uniões de camponeses. No final da
guerra, estabelece-se um acordo entre americanos e soviéticos segundo o qual cabe às
tropas soviéticas a ocupação da península a norte do paralelo 38º e aos americanos a
ocupação do território a sul do mesmo paralelo. Haveria assim uma ocupação
temporária soviética no norte e, a sul, uma ocupação temporária americana, devendo
depois preparar-se, com as forças internas, a unificação do país. Nas condições da
presença soviética, foi fácil para os comunistas e apoiantes do “Comité de Preparação
da Independência Coreana “ proclamar, em Setembro de 1945, a República Popular da
Coreia. A influência do Comité estendeu-se ao sul, porque também aqui se
estabeleceram organizações de base empenhadas, nomeadamente, em promover a
reforma agrária. No entanto, quem assume o Governo, sob a protecção americana, é um
político de direita, Syngman Rhee, inicialmente apoiado por um “Partido democrático
da Coreia” (de algum modo semelhante ao Kuomintang chinês com o qual Syngman
Rhee tivera contacto estreito), que vai estabelecer no sul um regime ditatorial e passar
rapidamente à perseguição das organizações de influência comunista. Em suma, a partir
de 1946, desenha-se uma separação semelhante à que ocorreu na Alemanha. No norte
estabelece-se o poder do Partido Comunista, que realiza uma reforma agrária e a
nacionalização da banca e da grande indústria, no sul estabelece-se o Governo Syngman
Rhee, que reprime ferozmente a esquerda. Em 1948 realizam-se eleições separadamente
315

no sul e no norte, que consagram cada um dos governos e a divisão do país. No entanto,
no sul mantém-se uma forte oposição de esquerda (inclusive com actividade de
guerrilha), ao mesmo tempo que intensa repressão. Syngman Rhee recusa todas as
propostas norte-coreanas de negociação e impede o contacto dos norte-coreanos com a
oposição do sul, preparando-se para a guerra.
Com a vitória comunista na China em 1949, as condições tornaram-se mais favoráveis à
Coreia do Norte. Em 25 de Junho de 1950 a Coreia do Norte, depois de uma visita de
Kim Il-sung a Moscovo, decide a invasão e desencadeia um ataque militar ao sul. As
tropas norte-coreanas avançam rapidamente e conquistam Seul. Isto vai desencadear
uma imediata reacção americana, através das Nações Unidas onde os EUA dominam o
Conselho de Segurança, tanto mais que, nesta fase, a União Soviética não participava
nas sessões do Conselho (em protesto contra o facto de a República Popular da China
não ser admitida e a China ser representada pelo governo de Taiwan). Os americanos
conseguem do Conselho de Segurança a aprovação de uma moção no sentido da
formação de um contingente internacional, participado por 15 países, que, na prática, é
essencialmente composto por tropas americanas e fica sob a direcção do General Mac
Arthur. As tropas da ONU conseguem fazer recuar as tropas da Coreia do Norte para
norte do paralelo 38 e continuam a avançar no sentido de ocupar a capital da Coreia do
Norte. Por seu turno, isto desencadeia uma intervenção da China, sob a forma de
mobilização de voluntários (a China, com a população que tem, não teve dificuldade em
mobilizar cerca de um milhão de homens), que participaram ao lado das forças da
Coreia do Norte e fizeram recuar as tropas americanas e da ONU. Nos finais de 1950,
princípios de 1951, a situação era, de facto, extremamente aguda, era uma guerra de
certa dimensão em curso, envolvendo milhões de pessoas e empenhando já
directamente os EUA de um lado, a China do outro, embora sob a forma de voluntários,
isto num contexto que coincide com o apogeu dos pavores anti-soviéticos em relação à
União Soviética, que se tornara potência nuclear. O Presidente Truman chegou a admitir
numa conferência de imprensa a hipótese da utilização da bomba atómica. Foi porém
sobretudo MacArthur quem preconizou a invasão da China e defendeu a utilização da
bomba atómica, o que suscitou inquietações, nomeadamente, da Inglaterra e da França.
O próprio Truman acaba por perceber os riscos de uma escalada do confronto e demite
MacArthur do comando das tropas. A partir de 1952 inicia-se um processo de
316

negociações (entretanto, há eleições nos EUA que levam ao poder o general


Eisenhower), que acabam por conduzir ao armistício de Julho de 1953, tendo como
resultado o restabelecimento da fronteira no paralelo 38. Isto é, voltou tudo ao ponto
inicial, consolidou-se a divisão da Coreia em dois Estados. Entretanto, quem sofreu foi
a população coreana, com mais de dois milhões de mortos90. A divisão permanece até
hoje. Porém, com as grandes lutas sociais e políticas desenvolvidas na Coreia do Sul e a
passagem desta em 1987 a um regime democrático, e a evolução registada no mundo
com o fim da URSS e a transformação da China, iniciou-se um processo de
aproximação e negociações, envolvendo também os EUA, a Rússia e a China, que
prosseguem.

90
T.E. Vadney, The World since 1945, Penguin, 2ª ed., pp.132-148.
317

Lição 5: O período da guerra fria nos EUA e na Europa.


1.4.08

Vimos nas primeiras aulas as origens da guerra fria na Europa e, mais recentemente,
falámos sobre acontecimentos extra-europeus relacionados com o princípio da guerra
fria. Vimos, nomeadamente, que a Revolução Chinesa de 1949 teve uma importância
decisiva na projecção mundial da guerra fria e, na última aula, falámos em especial na
guerra da Coreia que, pode dizer-se, é o conflito central do período da guerra fria
propriamente dita (que, como vos disse, corresponde à primeira metade dos anos 50),
pela importância que teve e pelo que significou como possibilidade de eclosão de uma
III Guerra Mundial. Falar-se da possibilidade da III Guerra Mundial nos princípios dos
anos 50 não era qualquer coisa de abstracto ou especulativo. Bastava imaginar que a
China, em vez de intervir apenas com voluntários, decidia intervir em força, que a
União Soviética acompanhava a China, e tínhamos um conflito localizado transformado
em Guerra Mundial. Mas felizmente isso não aconteceu.
Há, no entanto, um conflito localizado que veio a ter uma enorme importância
internacional em todo o terceiro quartel do século XX e cuja cronologia, em relação à
sua primeira fase, aproximadamente acompanha a da guerra da Coreia, que foi a guerra
do Vietname.
Já referimos que, quando a II Guerra Mundial terminou, o movimento de resistência, o
Vietminh liderado por Ho Chin Minh, que já durante a ocupação japonesa se tinha
implantado, logo que os japoneses abandonaram o território, proclamou a República do
Vietname. Mas a França continuava a ser a potência colonial, ou seja, o regime de
Vichy também tinha sido derrotado, mas a França era uma das potências formalmente
vencedoras da guerra e mantinha as suas colónias. Dentro de uma política conciliatória
e de procura de uma solução pacífica, Ho Chi Minh visitou a França em 1946 e
chegaram a ser feitos acordos, chegou a ser concluído um tratado pelo qual a República
do Vietname se mantinha como parte da União Francesa mas seriam realizadas eleições
livres e constituído um governo independente. Na prática, este acordo não foi cumprido
pela parte francesa, as tropas francesas continuavam no local e exerceram todo o tipo de
repressão sobre o Vietminh, o que desencadeia o recomeço da guerra a partir de 1947.
As autoridades francesas restauraram o chamado Império de Bao Dai, no sul do
318

Vietname, e continuaram a funcionar como potência colonial. No norte, beneficiando da


retaguarda que era constituída pela fronteira com a China Popular, a partir de 1949, o
Vietminh pôde implantar-se e aí manter a República Democrática do Vietname e, em
Novembro de 1953, infligir à França uma derrota militar histórica na Batalha de Dien
Bien Phu. Pouco depois, foram iniciadas conversações na Conferência internacional de
Genebra, em 1954, conversações que tinham em vista o conjunto da situação no
Extremo Oriente, nomeadamente o conflito no Vietname e, também, o da Coreia. Foi na
Conferência de Genebra que foi confirmado o armistício coreano e a divisão das duas
Coreias que ainda hoje dura e, em relação ao Vietname, nesta altura, a solução a que se
chegou foi semelhante (separação entre o Norte e o sul pelo paralelo 17º). Isto foi de
algum modo facilitado porque em França chegou ao poder uma coligação de esquerda
moderada, chefiada por um político francês que nos anos 50 era bastante conhecido e
que ganhou, com isto, um certo prestígio, chamado Pierre Mendès-France. Era um
homem de esquerda, portanto não identificado com as ideias colonialistas, e isso foi um
dos factores que contribuíram para que fosse possível chegar a este acordo que, no
entanto, não resolveu definitivamente o problema, permitiu simplesmente chegar a um
acordo sobre a divisão. Ou seja, no Vietname do Sul mantinha-se o Bao Dai que, aliás,
no ano seguinte será deposto pelos americanos, cada vez mais empenhados na região,
que o substituem por outro ditador. Manteve-se assim no sul um Estado que até à
Conferência de Genebra era dependente da França e depois vai ser dependente dos
EUA, o que significa que o problema da união e independência do Vietname não fica
resolvido. A guerra de libertação vai recomeçar a curto prazo no sul e vai ser uma
guerra prolongada, que confrontará a RDV e a Frente de Libertação Nacional do
Vietname com os EUA e o governo fantoche do sul e acabará pela derrota americana
em 1973.

Na evolução política e social dos países ocidentais falarei, em primeiro lugar, sobre os
EUA nesta passagem da década de 40 para a década de 50 e, depois, veremos alguma
coisa sobre a Europa Ocidental. Ficam para a parte do filme as questões sobre a
evolução da URSS neste período.
Como já vimos anteriormente, o período da Guerra nos EUA, sobretudo enquanto viveu
o Presidente Roosevelt, foi caracterizado por uma certa evolução de esquerda em muitos
319

aspectos da sociedade americana, evolução que aliás tinha antecedentes anteriores à


guerra. Toda a política do New Deal, que está associada a Roosevelt, já foi comparada
por alguns historiadores (nomeadamente o americano Malcolm Sylvers, numa
conferência que fez no ISCTE em 1996) àquilo que, na Europa dos anos 30, foram as
frentes populares. O contexto era naturalmente diferente, governos de frente popular na
Europa foram apenas o francês e o espanhol, governos de coligação que se referiam a
uma ideologia socialista e nada disso se passou nos EUA, onde o New Deal esteve
directamente ligado à figura do presidente Roosevelt que era um homem do Partido
Democrático, não era um socialista do ponto de vista teórico No entanto, no quadro
político do bipartidarismo americano, o Partido Democrata é aquele que corresponde
historicamente, desde a segunda metade do séc. XIX, ao voto e à participação
trabalhadora, nesse sentido, tem uma afinidade com os partidos socialistas da Europa. A
política do New Deal antecipou certos aspectos de intervenção do Estado na economia
através da política de obras públicas e de despesa, de investimento deficitário (deficit
spending) que tem a ver com alguns aspectos da política que a Frente Popular francesa
também tentou realizar e, sobretudo, o New Deal implementou medidas de reforma
social e combinou-se com o fortalecimento do movimento sindical, aspectos que
coincidem com as consequências das frentes populares na Europa. A comparação acaba
aí mas, de qualquer maneira, ela tem, depois, uma continuidade no período da guerra,
porque o período da guerra foi o da aliança anti-fascista e, nesse contexto, também
muitos elementos de esquerda e simpatizantes de ideias socialistas e, nalguns casos até,
simpatizantes da União Soviética, colaboraram na Administração americana. Com o
final da guerra e, mesmo antes, com a presidência Truman, há uma tendência geral de
inversão destas características progressistas que tinham estado ligadas ao New Deal. O
Truman era um anti-comunista decidido, e isso ficou claro desde os inícios do seu
Governo e, sobretudo, com o nascimento da guerra fria, em relação à qual, também, a
responsabilidade do Truman é absolutamente decisiva a partir do momento em que
resolve intervir na Grécia e na Turquia e formular aquilo que ficou conhecido como a
doutrina Truman, de contraposição global à influência comunista. Esse é um facto
ideológico que difunde na sociedade americana um sentimento anti-comunista que,
sobretudo, vai ser particularmente reforçado e levado a extremos de delírio com as
320

investigações da Comissão de Actividades Anti-Americanas, ou seja, do Maccartismo,


do qual já falámos.
Em relação com isto, há uma tendência geral no comportamento das classes médias,
uma vez ultrapassados os condicionalismos da guerra e tudo aquilo a que a guerra tinha
obrigado, em termos de intervenção do Estado na economia, nomeadamente através dos
impostos, há uma pressão no sentido da diminuição dos impostos e do regresso àquilo a
que chamam “o modo de vida americano”, ou seja, os princípios da livre iniciativa, da
livre empresa e do mínimo da intervenção do Estado. Mas contrariar a política fiscal,
nomeadamente nos seus aspectos redistributivos, que tinha sido uma característica do
New Deal, significa agravar os conflitos sociais, tanto mais que a passagem da guerra à
paz, como acontece sempre, significou que indústrias de guerra foram desmontadas, a
transição para condições de paz gera sempre alguns problemas, pelo menos
temporariamente situações de desemprego, e isso verificou-se, embora não tenha tido
características de crise aguda. O certo é que a tendência predominante na opinião
pública americana e, em especial, nas camadas médias, que na América tinham já, nesta
época, alcançado um estado de prosperidade considerável, é no sentido do
individualismo e do isolacionismo, ou seja, há, em certa medida, um reflexo semelhante
ao que também se tinha verificado após a I Guerra Mundial, de pensar: uma vez que
somos a potência mais forte, mais rica, concentramo-nos sobre nós, não temos que nos
preocupar ou envolver nos problemas do mundo. No entanto, este tipo de sentimento
americanista e isolacionista não prevaleceu, porque a orientação do Truman e do
sistema político americano é no sentido de tomar a cargo uma posição hegemónica em
todas as questões mundiais. De resto, essa noção do papel hegemónico dos EUA estava
já bem presente nos projectos do Roosevelt para o pós-guerra, só que, agora, esse
hegemonismo é assumido pelo Truman no espírito de guerra fria. A guerra fria vai, de
algum modo, convergir com esta tendência conservadora crescente no eleitorado
americano no sentido de políticas mais à direita, anti-fiscais e anti-sindicais, isto é, de
restrição e diminuição dos poderes dos sindicatos. Isto reflecte-se, desde logo, na
maioria republicana nas eleições para o Congresso de Novembro de 1946, que já
exprimem uma orientação à direita. Em 1946/47, o fim dos controlos de preços e a
subida da inflação geram movimentos de greves de certa importância e é justamente
para contrariar essas greves que são adoptadas leis que proíbem os piquetes de greve,
321

que obrigam os dirigentes sindicais a uma declaração de não serem comunistas nem
terem nada a ver com o Partido Comunista (isto é curioso porque esta declaração, num
país democrático era, no entanto, muito semelhante à declaração que, até às vésperas do
25 de Abril, em Portugal, os funcionários públicos tinham que fazer para ingressar em
funções do Estado).
Truman foi, até 1948, Presidente não eleito, isto é, era Vice-Presidente na altura em que
o Roosevelt morreu, em 1945, e sucedeu-lhe nessa qualidade e cumpriu o mandato de
Roosevelt, que acabava em 1948, até ao fim. Em 1948 ganhou as eleições, é no entanto
de registar que, nessas eleições, ele não se confrontava apenas com o candidato mais à
direita, isto é, Republicano, mas também com um candidato mais à esquerda, e isso é
significativo. Nessas eleições, Henry Wallace, que anteriormente tinha sido Vice-
Presidente num dos mandatos de Roosevelt, candidatou-se com um programa de
esquerda e de relações de cooperação com a União Soviética, mas foi derrotado. Foi,
talvez, um dos últimos casos de uma candidatura claramente de esquerda na história
americana. O programa do Truman, que teve o nome de Fair Deal, pretendia-se uma
continuação em novas condições do New Deal de Roosevelt mas, de facto, ficou muito
aquém, em termos de realizações sociais, do que tinha sido o New Deal. Concretizou a
fixação de salários mínimos, seguros e pensões, e um programa de construção de casas
para as classes pobres, mas outras medidas que estavam previstas, como a criação de
um serviço nacional de saúde (que, justamente nesta época, foi implantado em
Inglaterra e que depois será adoptado em formas diferentes na generalidade dos países
europeus), não chegou a ser aprovado. E isso é interessante porque, até hoje, nos EUA
não existe nada de semelhante aos serviços nacionais de saúde, o que é um dos aspectos
mais chocantes da desprotecção, neste aspecto, de uma grande parte da população
americana, num dos países mais ricos do mundo. Um outro aspecto importante e
dramático que permanece na sociedade americana da década de 50 é a segregação
racial. Também fazia parte do programa do Truman uma lei no sentido de acabar com a
discriminação racial, mas essa lei foi reprovada pelo Congresso e, em certos aspectos, o
problema racial no pós-guerra nos EUA vai-se agravar (também vimos alguns exemplos
disso num dos filmes aqui passados, a propósito do Paul Robeson). De facto, só em
anos relativamente recentes e, sobretudo, com o grande movimento dos direitos cívicos
liderado por Martin Luther King nos anos 60 e, também, com as acções de grupos mais
322

radicais como os Panteras Negras, nos anos 60 e 70, é que a situação se começou a
alterar mais fundamentalmente, sendo que, na prática, muitos aspectos da separação e
da desigualdade, em prejuízo da população negra, subsistem até hoje. De qualquer
maneira, o facto de hoje existir um candidato presidencial negro é qualquer coisa de
absolutamente novo e que seria impensável há 50 anos. Nos anos 40/50 mantém-se, na
prática, uma discriminação eleitoral, em especial nos Estados do sul, a pretexto de
requisitos de escolaridade para ter direito de voto que, na prática, eliminam a população
negra. Mantêm-se escolas para brancos e escolas para pretos, hospitais também para
brancos e para pretos, locais públicos, transportes (justamente uma das primeiras
grandes acções que vai pôr em causa a discriminação nos transportes públicos é a de
uma mulher negra que se recusa, num autocarro, a dar o lugar a um branco). Essa
discriminação, até então, era legal em muitos dos Estados americanos. Neste contexto,
as eleições presidenciais de 1952 levam também a uma vitória dos Republicanos,
representados pelo general Eisenhower, que tinha sido o comandante das tropas
americanas na Europa, no final da II Guerra Mundial. No entanto, a sua presidência foi
menos reaccionária do que os seus apoiantes preconizavam e foi durante a presidência
do Eisenhower que o Supremo Tribunal adoptou uma sentença que anulava a
segregação racial nas escolas.

Passando agora para análise da evolução na Europa Ocidental do pós-guerra, queria


dizer alguma coisa, em primeiro lugar, sobre as potências formalmente vencedoras da
guerra, ou seja, a Grã-Bretanha e a França, que continuam a ser potências coloniais.
Embora estivesse muito clara a inevitabilidade da descolonização, tanto a Inglaterra
como a França vão continuar a fazer da sua posição de centros dos Impérios, britânico e
francês, um elemento de prestígio e de força. Embora o Império Britânico tivesse sido
decisivamente alterado com a perda da Índia e do Paquistão, tinha perdido a jóia da
coroa, no entanto, a ideologia colonial permaneceu.
Na evolução interna da sociedade inglesa, há aspectos positivos e até com uma
importância histórica, que resultam da vitória trabalhista, ou seja, do Labour Party, nas
eleições de 1945. Foram eleições, a vários títulos, históricas, desde logo porque,
praticamente, coincidiram com o final da II Guerra Mundial na Europa (que tinha
acabado em Maio e as eleições inglesas foram em Julho), nesse ambiente de grande
323

transformação a nível planetário, transformação da qual a Inglaterra tinha sido, pela


resistência ao nazismo, uma componente essencial. E essas eleições são históricas,
também, por este facto simbólico que surpreendeu muita gente na altura, que foi o líder
do Governo e, pode dizer-se, do povo britânico, durante a guerra, Churchill, com um
enorme prestigio por ter presidido o Governo Nacional de coligação desde a
participação efectiva inglesa na guerra (o final de 1939 tinha ainda sido com o Governo
de Chamberlain e só em Maio de 1940 é que Churchill formou o Governo de
coligação). Churchill, apesar deste prestígio, perdeu as eleições, ou melhor, o Partido
Conservador, a que ele presidia, perdeu em benefício do Labour Party, do Partido
Trabalhista que é, nesta época, um partido com um programa socialista – esse é um
aspecto que convém frisar porque distingue o ambiente desta época, final dos anos 40 e
da década de 50, do que é hoje a situação dos países onde há governos de partidos
socialistas. No contexto da evolução mais recente, dos últimos trinta anos, os partidos
socialistas perderam qualquer espécie de característica socialista. Obviamente, a cisão
entre socialistas - ou social-democratas, que são conceitos idênticos - e comunistas já
estava feita há muito tempo, data da época de Revolução Russa e dos anos a seguir. A
recusa da ideia de revolução enquanto ditadura do proletariado e da tomada do poder
pela força estava perfeitamente clara nos programas socialistas desde há muito tempo.
No entanto, todos os partidos socialistas, incluindo o Partido Trabalhista Inglês,
mantinham o objectivo de mudança das estruturas da sociedade, a alcançar, diziam, por
reformas, não por revolução, mas a concretizar progressivamente, através de um
processo evolutivo. Nesta fase, o Partido Trabalhista Inglês e, em concreto, o Governo
chefiado pelo seu líder Clement Attlee, protagonizou algumas reformas importantes
inspiradas num plano que tinha sido elaborado ainda durante a guerra (o Plano
Beveridge), que era um plano para a ordem social no pós-guerra. No essencial, as
reformas são uma aplicação desse plano, inspirado na ideia de que, nas condições da
economia moderna, as sociedades geram riqueza suficiente que deve permitir uma
protecção e uma garantia de vida de todos os indivíduos “desde o berço até ao túmulo”.
Havia já algumas realizações na Suécia e na Noruega onde existiam, desde os finais dos
anos 30, governos social-democratas e é, também, inspirada nisto que a Inglaterra vai
concretizar a ideia do welfare state, que nós traduzimos como “Estado de bem-estar”.
Hoje, na opinião dominante, o welfare state é uma coisa impossível, historicamente
324

ultrapassada. De facto, representou uma aquisição que se pode considerar histórica na


evolução da Europa Ocidental a partir daqui até aos anos 70. A generalização desses
direitos sociais básicos com carácter de universalidade, direitos esses que acabaram
também por chegar a Portugal, no essencial, com o 25 de Abril e as reformas realizadas
a partir de 1974 mas que, em Portugal, tiveram a característica de chegar numa época
em que, justamente, começava a ser contestada a própria ideia do welfare state.
As medidas socializantes do governo trabalhista entraram mesmo pela nacionalização
de alguns dos sectores fundamentais da economia, como as empresas de transportes, o
gás, a electricidade, os telefones, as minas, a siderurgia e a banca (não completamente
mas, pelo menos, o Banco de Inglaterra). Foram nacionalizados e, através destas
medidas, foi também introduzida a planificação indicativa que, em parte, se inspira na
experiência da planificação soviética. Através deste controle do Estado sobre os grandes
centros económicos, foi também possível realizar uma política de pleno emprego. No
entanto, passada esta vaga de transformações, e já num contexto em que também em
Inglaterra se faz sentir o ambiente da guerra fria, os Conservadores, ou seja, os tories,
vencem as eleições de 1951 e o Churchill volta a ocupar a chefia do Governo (e este foi
o seu último mandato porque governou este novo período de 4 anos, até 1955 e, depois,
já tinha muita idade). No entanto, os conservadores mantiveram-se no governo por toda
a década de 50 e até 1964. Neste ano, o Labour venceu novamente, mas esta vitória já
não teve um significado reformista tão profundo como tinha tido a vitória trabalhista de
1945.

Passando agora para a França. A libertação de Paris é em Agosto de 1944 e, na


sequência, formou-se um Governo de coligação presidido pelo general De Gaulle, líder
da Resistência. Esse governo inseria-se dentro de um espírito de convergência
democrática que reflectia o carácter unitário dos movimentos da resistência, em que a
participação de comunistas e socialistas era um dos dados importantes e que
imprimiram às realizações desse governo um significado reformador que, em parte, tem
coincidências com aquilo que foi a acção dos Trabalhistas em Inglaterra. No que diz
respeito, por exemplo, à política de nacionalizações, também em França houve no pós-
guerra, ainda sob o Governo provisório, nacionalizações importantes, nomeadamente de
grandes empresas que tinham colaborado com a ocupação, o caso mais conhecido foi o
325

da Renault. Foi, nessa altura, nacionalizada e transformada na Régie Renault (régie era
o nome que se dava às empresas do Estado, significava um tipo de empresa pública).
Passada a fase do Governo provisório, com as eleições para a Assembleia Constituinte
que reúne em 1946 (são as primeiras eleições onde há a participação generalizada das
mulheres, em França só em 1946 é que as mulheres ganharam o direito de voto, tal
como aconteceu em Itália) nasce a Quarta República91.
A Constituição da Quarta República estabeleceu um sistema parlamentar, eleito por
voto proporcional. Essa é uma orientação geral das Constituições do pós-guerra, à
excepção do caso da Alemanha. O sistema proporcional é o mais democrático mas
facilita a representação dos pequenos partidos e, com isso, dificulta a formação de
maiorias (como acontece, em certa medida, ainda hoje em Portugal onde o sistema
vigente é um sistema proporcional embora “corrigido” pelo método de Hondt). A
instabilidade governamental foi uma das características da Quarta República Francesa
mas, nem por isso, deixou de se reflectir, também aqui, a mudança do ambiente e das
relações inter-partidárias em consequência da entrada na guerra fria. Nomeadamente o
Partido Comunista Francês, que tinha sido uma das componentes essenciais dos
governos até 1947, foi afastado do Governo nesse ano, na imediata consequência
daquilo que podemos considerar a declaração da guerra fria, o discurso de Truman (é
curioso que no ano anterior, em 1946, Maurice Thorez, que era o líder histórico do

91 Recordemos a cronologia da República Francesa. A Primeira República Francesa correspondeu a um


período a seguir à Revolução de 1789 e durou doze anos, entre Setembro de 1792 e o Império de
Napoleão (1804-15). A Segunda República francesa nasceu com a Revolução de 1848 e durou três anos e
meio, até dar lugar ao II Império de Luís Napoleão (sobrinho do Napoleaão I), que foi derrubado em
1870.Durante seis anos viveu-se uma situação de indefinição, em 1876 foram aprovadas as leis que
instituíram a Terceira República Francesa e, essa, durou mais de 60 anos, até 1939. Era já uma República
Parlamentar e com sufrágio universal - o sufrágio universal em França data de 1848 - e era um regime
parlamentar moderno e, além da Suíça, até 1910, a única República na Europa. No entanto, foi da
Terceira República que nasceu o regime colaboracionista do marechal Pétain, ou seja, o regime que
colaborou com a ocupação hitleriana e a divisão e ocupação da França. Naturalmente, com a Libertação, o
regime de Pétain foi eliminado e era preciso uma nova Constituição. Nasce assim a Quarta República que,
aliás, acabou por só durar uma dúzia de anos porque, em 1958, foi derrubada por um pronunciamento
militar do qual nasceu um governo, de novo presidido pelo general De Gaulle que elabora a constituição
da Quinta República, que existe ainda hoje e já leva 50 anos de existência.
326

Partido Comunista Francês, por pouco não foi eleito Chefe do Governo em França,
esteve perto de ter a maioria parlamentar, não teve mas ficou como vice-presidente do
Governo). Em 1947, a remodelação afasta os comunistas do Governo.
No contexto da instabilidade dos governos, um dos que tiveram mais significado,
sobretudo por ter posto termo à guerra da Indochina, foi o presidido por Pierre Mendès
France que, também no plano interno, tinha intenções reformistas que, na prática, não
tiveram grande concretização porque o seu governo durou seis ou sete meses. No
entanto, a projecção que a figura do Mendès-France teve, como político, foi grande.
Para terminar este panorama dos principais países da Europa Ocidental, no final da
década de 40 e princípios de 50, falta dizer que também em Itália foi eleita em Junho de
1946 uma Assembleia Constituinte, ao mesmo tempo que foi realizado o referendo
sobre a monarquia. Era uma das grandes questões da política italiana desde o séc. XIX.
Há 100 anos, ou mesmo há 50 anos, a questão Monarquia versus República, era uma
questão de princípio importante, de oposição entre formas de governo democráticas,
assentes numa ideia de representação popular, ou não democráticas, baseadas numa
predestinação originária, genética. Além disso, no caso de Itália (que tinha tido o
regicídio, em 1900, de Umberto I), a questão era importantíssima, porque a monarquia
foi um co-responsável absolutamente decisivo pela existência do regime fascista. Foi o
rei que nomeou Mussolini, levando o fascismo ao poder, e foi ele que o manteve até à
23ª hora, ou seja, até à entrada dos exércitos Aliados em Itália, altura em que a
monarquia e uma parte dos círculos do fascismo perceberam que o regime estava
condenado e, como sabemos, o rei demitiu Mussolini. Esta questão da responsabilidade
da monarquia estava muito presente e o referendo dá uma maioria à abolição da
monarquia, em todo o caso, por uma margem pequena. As eleições para a Assembleia
Constituinte reflectiram, entretanto, uma força grande dos partidos da esquerda que
estavam, e essa é também uma peculiaridade italiana que durou até perto do final dos
anos 50, unidos por um pacto de unidade de acção, ou seja, o Partido Comunista e o
Partido Socialista tinham uma afinidade doutrinária forte e tiveram ambos cerca de 20%
dos votos, cada um, superando, no seu conjunto, a Democracia Cristã, que teve 35%.
No entanto, a DC é o partido isoladamente maioritário, e que vai ser, durante cerca de
40 anos, o maior partido italiano e que, na verdade, comanda todos os governos em
Itália até ao final dos anos 80. A Democracia Cristã tinha origem no movimento
327

católico reformador, no chamado Partido Popular que existiu no primeiro pós-guerra,


que depois foi proibido pelo fascismo, é uma realidade muito ambígua e pode dizer-se,
ao mesmo tempo, polimorfa, baseada na doutrina social da Igreja que se prestava
sempre a várias interpretações, e um partido de natureza pluriclassista, com tendências
diferentes, mais conservadoras e mais sociais ou progressistas. Conseguiu acompanhar a
passagem da Monarquia à República e também as reformas de esquerda que foram
realizadas no pós-guerra, mas vai ser um canal essencial da conservação da influência
da Igreja no Estado italiano e, a partir desta época da guerra fria, um elemento essencial
de hostilização e marginalização dos partidos da esquerda, ou seja, dos socialistas e
comunistas. O líder democrata-cristão italiano era Alcide De Gasperi, que o chefiou até
1953. Mas a democracia cristã governará normalmente através de coligações.
1947 é, também, um ano essencial na evolução em Itália porque dá-se uma cisão no
Partido Socialista, com a formação de um Partido Social-Democrata que rompe a
unidade com os comunistas e facilita, deste modo, a expulsão dos comunistas e
socialistas do governo. É importante ainda registar o nascimento de uma nova
Constituição, que é resultado da Assembleia Constituinte de 1946, a Constituição de
1948, uma Constituição com alguns aspectos de esquerda ou socializantes, a começar
logo por um artigo que declara que é uma Constituição fundada no trabalho (segundo o
projecto inicial, “nos trabalhadores”, depois esta formulação foi mitigada para uma
forma mais genérica, que é esta do “trabalho”, que no entanto reflecte a presença das
componentes de esquerda. No entanto, a Constituição manteve a Concordata de 1929
com o Vaticano e, através disso, uma presença de grande peso da Igreja na sociedade
italiana. Até aos anos 70, o divórcio foi proibido, pura e simplesmente não existia nem
mesmo a possibilidade de dissolução do casamento civil.
As eleições de 1948 foram um dos grandes acontecimentos europeus do princípio da
guerra fria e contrapuseram a direita, essencialmente representada pela Democracia
Cristã, às listas da Frente Democrática e Popular, composta por socialistas e comunistas.
A propaganda da Igreja contra a Frente Popular foi muito eficaz e a Democracia Cristã
teve um grande êxito, com quase 50% dos votos, ao passo que a Frente Popular não
passou dos 35%.
328

Em relação à Alemanha, tínhamos visto como os acordos estabelecidos a partir de Ialta


previam apenas uma divisão temporária e a ocupação correspondente. Teoricamente, a
intenção dos Aliados era a realização, ao fim de um certo tempo, de eleições e a
formação de um Estado alemão único embora com fronteiras que, já vimos, eram
diferentes das de 1939, visto que a Prússia oriental tinha sido integrada na Polónia e
havia, além disso, uma deslocação das fronteiras da Polónia para ocidente,
nomeadamente com a integração da Silésia. Esse era o plano mas viu-se também como,
desde os primeiros tempos da ocupação, na zona da ocupação soviética, é realizada de
uma maneira sistemática a desnazificação do aparelho do Estado e do aparelho
económico. É realizada de uma maneira consequente na zona de ocupação soviética, ao
passo que o é bastante menos nas zonas ocidentais. Na zona de ocupação soviética é
realizada uma reforma agrária bastante radical, o que não tem lugar nas zonas de
ocupação ocidental, na zona de ocupação soviética é realizado o pagamento de
reparações, a retirada para a URSS de máquinas e equipamentos, o que, nas zonas
ocidentais não é realizado, nem sequer são cumpridas as reparações estabelecidas em
relação à URSS. Há, portanto, uma atitude básica diferente e, desde 1946, que é claro
que a preocupação central dos EUA é a recuperação e integração das zonas de ocupação
ocidental no contexto de um desenvolvimento da economia europeia, isto é, evitar um
enfraquecimento económico da Alemanha que perturbaria os planos de reconstituição
económica a nível mundial formulados pelos EUA. Daqui o caminhar, em 1947, para
uma integração das três zonas ocidentais, primeiro com a constituição da Bi-Zona e,
depois, da Tri-Zona (a Tri-Zona é já a unificação do conjunto das zonas americana,
inglesa e francesa; a França foi a última a aderir porque partilhava com a URSS as
preocupações em relação ao renascimento do nacionalismo alemão e tinha, também,
reivindicações territoriais próprias, nomeadamente em relação à região do Sarre). Mas a
zona de ocupação francesa acaba também por ser integrada e, simultaneamente, é
realizada, e esta é uma medida decisiva, uma reforma económica, através da criação do
novo Deutsche Mark – a nova moeda alemã que iria pôr em crise o marco que circulava
na zona de ocupação soviética. A União Soviética não podia de maneira nenhuma
aceitar a introdução deste novo marco alemão. O Deutsche Mark, ligado a uma
economia em ascensão e já apoiada nos créditos americanos estava, à partida, dotado de
329

condições de força tais que a introdução dele na zona de ocupação soviética iria anular o
marco existente e desorganizar todo o sistema económico nesta zona.
Entretanto, tinham-se consolidado formas de poder diferentes. Na zona de ocupação
soviética tinha-se dado a unificação dos partidos comunista e socialista e, nessa base, a
constituição de um aparelho de Estado identificado ideologicamente com o socialismo e
com a URSS, ao passo que, nas zonas ocidentais, essa unificação tinha sido recusada e o
Partido Comunista era marginalizado e, de certo modo até, perseguido e, portanto, não
tinha qualquer expectativa de ocupação do poder. Neste quadro, a reforma económica, a
introdução do novo marco, é uma medida inaceitável para os soviéticos e os alemães da
zona de ocupação soviética. Neste contexto, a URSS decide o bloqueio de Berlim
Ocidental, visando forçar um retrocesso dessas medidas. Mas o bloqueio foi defrontado
com eficácia, através do estabelecimento de uma ponte aérea, que chegou a atingir a
aterragem ao ritmo de um avião por minuto em Berlim ocidental. Os Aliados, mas
essencialmente os EUA, asseguraram o abastecimento da população de Berlim
Ocidental e, assim, o fracasso do bloqueio. Foi uma situação extremamente tensa
porque havia sempre o risco de os soviéticos resolverem aplicar o bloqueio, também, à
circulação aérea e começarem a derrubar os aviões, o que nunca aconteceu, mas foi uma
das situações mais marcantes do princípio da guerra fria. Em substância, a posição
soviética foi derrotada e, em Maio de 1949, a URSS pôs termo ao bloqueio.
Coincidindo praticamente com este período, entre Junho de 1948 e Maio de 1949,
durante o qual existiu o bloqueio, na Tri-Zona realizou-se a preparação para a formação
de um novo Estado. Os EUA abandonaram de todo a perspectiva da unificação alemã,
da constituição de um novo Estado alemão unificado, e apoiaram a formação de um
Estado na Tri-Zona, isto é, nas zonas de ocupação ocidental, e esse Estado é que vem a
ser a República Federal da Alemanha. Começou por reunir um Conselho Parlamentar
em Frankfurt (Berlim estava dividida e numa situação de crise) que aprovou, em 8 de
Maio de 1949, a lei fundamental (Grundgesetz) da República Federal da Alemanha. Era
na verdade, embora sem esse nome, a Constituição da RFA. Instituía um Estado Federal
composto por onze Länder, isto é, Estados Federados (a existência dos Länder é uma
tradição que já vinha dos tempos do Império Guilhermino e tem a ver com a
fragmentação estatal da Alemanha até 1871). A RFA tem como primeira Câmara do
Parlamento, o Bundestag (Tag significa neste caso congresso, portanto Congresso
330

federal) que é o Parlamento eleito por sufrágio universal directo, e uma segunda Câmara
que é o Bundesrat, ou seja, Conselho Federal com representantes em número igual para
cada Land (Estado federado). O Bundestag é a Câmara essencial do Parlamento. A
Constituição estabeleceu temporariamente a proibição de forças armadas, ou seja, a
Alemanha, por causa das responsabilidades na guerra, esteve proibida de ter forças
armadas, mas isso vem a ser ultrapassado em 1956 quando se integra na NATO.
Temporariamente o Sarre foi ocupado pela França que teve, também, a administração
económica da região, que é uma região mineira. As bases e as condições em que se
constituiu a República Federal da Alemanha fizeram com que a sua formação não tenha
sido marcada pela mesma influência das forças de esquerda que ocorreu nos países
libertados da Europa, nomeadamente em França e na Itália. Embora, de qualquer
maneira, a desnazificação ainda determinasse um certo peso das ideias de esquerda na
fase inicial - das ideias e de alguns aspectos, até, da Constituição – mas as medidas de
desnazificação, isto é, do saneamento do aparelho de Estado, aquilo que foi feito, foi
feito até à constituição da RFA. Na prática, muitos ex-nazis continuaram em posições
de autoridade a vários níveis do aparelho do Estado e o anti-comunismo, até pelas
condições em que se tinha dado a constituição da RFA, foi muito forte desde o início e
reforçado, também, pelas características do sistema eleitoral, que é um sistema que
ainda hoje exclui os partidos com menos de 5% dos votos – um partido com menos de
5% não chega a ter entrada no Parlamento. O Partido Comunista Alemão ainda entrou
nas primeiras eleições e ainda esteve representado no Conselho Parlamentar que
funcionou como Assembleia Constituinte e depois no primeiro Bundestag mas, nas
eleições seguintes, já não alcançou os 5%. Veio a ser ilegalizado em 1956 e essa
ilegalização manteve-se até 1968.
A evolução da RFA cruza-se com um outro problema, que é o nascimento das
instituições comunitárias europeias, a primeira das quais foi a CECA, a Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço, fundada em 1951 e integrada pela França, a Itália, o
Benelux e a RFA. A CECA foi o primeiro passo para a constituição da Comunidade
Económica Europeia, ou Mercado Comum, a que hoje chamamos União Europeia. O
Mercado Comum só veio a ser constituído em 1957, a CECA é de 1951, mas tem uma
grande importância porque correspondia a estabelecer um controle comum em domínios
essenciais e de importância militar como o carvão e o aço. Em 1952 foi também
331

projectada a Comunidade Europeia de Defesa, que chegou a ser objecto de um tratado


assinado pelos mesmos países que constituíam a CECA, mas foi recusado no
Parlamento francês. No Parlamento francês houve, por um lado a oposição comunista,
por outro, a oposição dos gaullistas e da maioria dos deputados, por receio de que desse
lugar ao renascimento de um militarismo alemão. No entanto, isso não impediu que a
RFA viesse a ser integrada na NATO em 1956 e, ainda antes disso, na União da Europa
Ocidental, que é uma instituição que ainda hoje existe e que tem também objectivos de
defesa, mas que nunca teve operatividade no plano prático de organização militar. Aliás,
a União da Europa Ocidental inclui a Inglaterra, ao contrário do que acontecia com o
projecto da CED. O certo é que, através da integração na NATO, a RFA reconstituiu
forças armadas, embora a intervenção dessas forças armadas no estrangeiro continuasse
a estar proibida (o que durou até há pouco tempo) pela Constituição alemã.
332

Lição 6: A crise do Suez. A Conferência de Bandung. As independências


africanas92.

O Irão, já antes da Revolução de 1979, tinha sido nos anos 50 um foco de


agitação e de preocupações, só que, nessa altura, de curta duração, mas de qualquer
maneira um foco de conflito significativo em que esteve já em primeiro plano a questão
do petróleo. A história do Irão é complicada, porque desde o séc. XIX - sendo um
grande país e com uma importante posição estratégica por causa da rota da Índia – foi
um centro de disputas, sobretudo, entre a Inglaterra e o Império Russo. Desde o
princípio do séc. XX que a Inglaterra tinha obtido posições económicas importantes no
Irão que suscitaram resistências populares, em particular da classe burguesa ligada ao
comércio e, também, das autoridades religiosas muçulmanas que têm um grande peso
tradicional na história do Irão. No séc. XIX ainda não se tinha descoberto nada em
matéria de petróleo e só depois da II Guerra Mundial o Irão começou a ter importância
na exploração do petróleo. Nos finais do séc. XIX foi a questão da concessão do tabaco
aos ingleses que suscitou movimentos de oposição à influência estrangeira e uma
espécie de revolução constitucional, em 1906. Entre as duas guerras mundiais houve,
também, uma disputa de influência - já não entre a Inglaterra e a Rússia, mas sim entre a
Inglaterra e a Alemanha - e, nesse período, o reformador do Irão, Reza Khan (que foi o
primeiro Xá da dinastia dos Pahlavi), procurou apoiar-se na Alemanha. No entanto,
durante a II guerra mundial houve a intervenção anglo-americana que obrigou à
deposição do Reza Khan e à colocação no trono do filho, Reza Pahlavi que reinaria até
1979.
No princípio dos anos 50 o Primeiro Ministro era o dr. Mossadeq, um membro
da classe alta, jurista e diplomata, não era nenhum revolucionário.
No contexto no pós-guerra, em parte por influência da proximidade com a União
Soviética e da influência dos movimentos de esquerda por toda a Europa e também na
Ásia, no Irão existiu nessa época um forte partido comunista (o Partido Tudeh) e,
sobretudo, muito para além da influência comunista, ganhou uma dimensão de massa a
exigência nacionalista, agora dirigida contra o domínio inglês do petróleo. Nesta altura,

92
Baseada essencialmente no capítulo 5, “Terzo mondo e non allineamento 1950-1965”do livro de
Scipione Guarraccino, Storia degli ultimi sessant’anni,pp. 91-106.
333

a importância do petróleo e a extensão dos poços petrolíferos iranianos já era conhecida,


portanto surgiu como escandaloso, aos olhos de uma grande parte da opinião, o
predomínio da Inglaterra que tinha uma Companhia com, praticamente, o exclusivo da
exploração do petróleo iraniano, a Anglo-Iranian Oil Company. A participação inglesa
arrecadava ¾ dos lucros, deixando uma pequena parte nas mãos dos iranianos que
também participavam na Companhia e pagando apenas 10% de royalties ao Estado
iraniano. Sob o governo do Dr. Mossadeq, e na sequência de uma série de movimentos
de massa nesse sentido e de uma votação do Majles (parlamento), foi decidida a
nacionalização do petróleo. Esta nacionalização foi considerada intolerável pelo
Governo inglês (aliás, em 1951, em Inglaterra, tinha voltado ao governo o Partido
Conservador) e também os EUA a encaram negativamente. O Intelligence Service e a
CIA organizam então uma conspiração no sentido de derrubar o Governo do Dr.
Mossadeq e de fazer reverter a nacionalização do petróleo. Esta conspiração conseguiu
articular-se com oposições ao governo na própria sociedade iraniana. Mossadeq era um
reformador laico e entrou em choque com os ulamas, ou seja, os sacerdotes islamistas,
que tinham também influência de massa. Gera-se uma certa divisão na população,
embora inicialmente houvesse um apoio muito grande à nacionalização do petróleo e ao
governo de Mossadeq. Em combinação com os conspiradores, o Xá, a certa altura,
abandona o país, o que precipita a entrada num período de conflito mais agudo e acaba
por determinar uma intervenção do Exército que reprimiu, nomeadamente o Partido
Comunista - os comunistas tinham tido, com o Partido Tudeh, uma influência grande
em todo o processo e foram perseguidos. O exército acabou por se voltar contra o Dr.
Mossadeq e, na sequência, o Xá regressou. Em suma, o golpe de Estado preparado pela
CIA e pelos serviços ingleses resultou, e a tentativa reformadora e nacionalista foi
derrotada. No entanto, as condições não voltaram exactamente ao que eram antes. O
predomínio britânico foi restringido decisivamente. O novo acordo para exploração do
petróleo consistiu na formação de um consórcio internacional, no qual a BP (British
Petroleum), a companhia inglesa do petróleo que sucedeu à velha Anglo-Iranian Oil
Company, passou dos 75% para 40%, um conjunto de cinco companhias americanas
ficou com outros 40% e os restantes 20% ficaram para franceses e holandeses. Além
disso, também o pagamento ao Estado iraniano (os chamados royalties, até aí eram uma
percentagem muito pequena dos lucros, cerca de 10%), passou a ser de 50%. Portanto, o
334

Estado iraniano reforçou também a sua posição. Mas, de facto, o que isto significou foi
uma substituição, a longo prazo, da hegemonia inglesa pela hegemonia americana. O
Irão torna-se um dos países com importância mundial em que a hegemonia americana se
afirma e vai durar até à Revolução Islâmica de 1979.

Um outro país do Próximo Oriente que, nos anos 50, esteve no centro das atenções
mundiais e que acabou por ter uma grande projecção na África e na Ásia foi o Egipto.
Durante muito tempo, tinha sido uma colónia inglesa, em 1922 tinha-se tornado
formalmente independente em regime monárquico; de facto, o domínio económico
inglês manteve-se. Em 1952 há, porém, um golpe militar de oficiais de baixa patente
chefiado pelo General Naguib. O Coronel Nasser é que veio a ser, a partir de 1954, a
figura dominante do Egipto e a ganhar um enorme prestígio no mundo árabe. Antes de
Nasser se tornar chefe do Governo, a Monarquia foi abolida e a República proclamada
em 1953. A figura do Nasser ganhou esta importância porque ele foi, de certo modo,
pioneiro de uma série de movimentos em países do Próximo Oriente, nomeadamente na
Síria e no Iraque, comandados por militares de baixa patente e que viriam a adoptar uma
ideologia que se reclamava de um certo socialismo que, no entanto, não se identificava
com o marxismo nem com a União Soviética93. Nasser e os militares egípcios ganharam
esta importância porque, em primeiro lugar, representaram uma tentativa de
nacionalismo económico e de unidade árabe contra Israel - essa vai ser uma das grandes
causas do Nasser - e, através da oposição a Israel, um pôr em causa da influência do
ocidente, do mundo capitalista e colonial. Nesta intenção de nacionalismo económico,
associado a um pensamento desenvolvimentista, um grande objectivo que os egípcios se
propuseram, a certa altura, foi o da construção de uma barragem no Nilo, a barragem do
Assuão que é, ainda hoje, a maior barragem do mundo (hoje é, de algum modo, posta
em causa como realização, pelas consequências ecológicas negativas que teve mas, há
50 anos, não havia a mesma noção dos problemas ecológicos, foi uma época, por toda a

93
Indirectamente, este tipo de movimentos veio a ser também uma das fontes ideológicas do 25 de Abril
em Portugal, que com eles teve algumas semelhanças. Em Portugal, o 25 de Abril de 1974 e os dois anos
seguintes foram muito dominados por um grupo de oficiais subalternos, os capitães de Abril. Na sua
grande maioria, não eram directamente dependente de partidos políticos e muitos reclamaram-se duma
certa inspiração “terceiro-mundista” e de independência em relação às grandes potências. Em parte, pode
considerar-se que uma das fontes ideológicas deste tipo de tendência e de pensamento se situa na
experiência dos militares nacionalistas árabes, de que Nasser foi o pioneiro.
335

parte, de construção de grandes barragens e em que os aproveitamentos hidroeléctricos


eram vistos como uma das bases essenciais da industrialização, da modernização e da
independência económica dos países). Os militares egípcios tinham então esse projecto
e obtiveram dos EUA promessas de apoio do Banco Mundial nesse sentido. Entretanto,
o Governo de Nasser diversificou também as suas relações em direcção aos países
socialistas, e nomeadamente com a Checoslováquia, para a compra de material militar,
que teve lugar. Esta aproximação aos países do leste suscitou a irritação americana. A
política de Foster Dulles, o Secretário de Estado americano nesta época, era, de certo
modo, arrogante, e os EUA quiseram pressionar a orientação do governo egípcio
dificultando o acesso aos fundos do Banco Mundial, ou seja, dificultando a construção
da barragem do Assuão. Nasser não esteve com meias medidas. No Egipto havia o
Canal do Suez - construído nos finais do séc. XIX e de enorme importância porque
controlava a passagem do Mediterrâneo para o Índico e o acesso ao Oriente. O Canal do
Suez era administrado por um consórcio franco-inglês e o governo de Nasser decide
simplesmente a sua nacionalização. Aliás, nacionalização que previa indemnizações,
nesse sentido, não era uma medida de socialismo radical, não era um ataque frontal ao
interesse propriamente económico dos capitalistas ingleses e franceses. Era “apenas”,
dada a importância estratégica e a importância económica do trânsito do canal, uma
afirmação de independência e de força do Egipto, e é nesse sentido que esta medida é
considerada intolerável pelos ingleses e pelos franceses. Apesar de ser evidente que a
Inglaterra e a França tinham deixado de ser verdadeiras grandes potências depois da II
Guerra, no entanto não se resignavam a isso e vão, conjugadamente, formar um plano
de intervenção, com a ajuda e a participação activa de Israel, tendente a impedir a
nacionalização do canal e a forçar o derrube do governo de Nasser. Concretamente,
houve uma conspiração anglo-francesa com Israel, que consistia em Israel tomar uma
iniciativa militar contra o Egipto, o que não era difícil, visto que desde a guerra de 1948
entre Israel e os países árabes nunca tinha sido concluída a paz. Israel desencadeia uma
operação de ocupação da Faixa de Gaza e do deserto do Sinai, quer dizer, os tanques
israelitas avançaram pela Faixa de Gaza e pelo deserto do Sinai, que pertenciam ao
Egipto. A participação anglo-francesa consistia, segundo o plano, em intervirem como
mediadores e, a pretexto disso, ocuparem posições estratégicas na zona do Canal do
Suez, a partir das quais ditariam as suas condições ao governo egípcio. Mas o tiro saiu
336

pela culatra. Os governos francês e inglês confiavam no predomínio ocidental na ONU


que, nesta altura, já começava a ser discutido, nomeadamente a nível da Assembleia
Geral, e confiava também na solidariedade americana, que não existiu. Os americanos
não tinham interesse nenhum em ajudar a manter o predomínio económico tradicional
anglo-francês nesta região e o que acontece é que a ocupação israelita de Gaza e do
Sinai é imediatamente condenada na Assembleia Geral da ONU, que vota uma moção, e
quando as tropas anglo-francesas tentam ocupar os aeroportos da zona do Canal do
Suez, são obrigadas, também por decisão da ONU, a retirar. Pelo meio, os EUA
pronunciaram-se condenando a intervenção, e também a União Soviética teve uma
intervenção decisiva porque ameaçou intervir militarmente o que, nesta altura,
significava já, também, a ameaça atómica. Na prática, as tropas israelitas foram
obrigadas a retirar e as tropas de pára-quedistas franceses e ingleses que tinham sido
enviadas, tiveram igualmente de sair do Egipto. Quer dizer, esta tentativa de impedir,
pela força, a nacionalização do Canal do Suez, fracassou completamente. A
nacionalização foi um sucesso para o governo egípcio e para o Nasser como
personalidade que, a partir daí, é um ídolo dos povos árabes (e continuará a sê-lo até à
“guerra dos seis dias”de 1967) porque se tinha confrontado com Israel e saído vitorioso
do confronto e, ao mesmo tempo, representava um modelo de afirmação e de
independência em relação às tradicionais potências coloniais. Foi isto a famosa crise do
Suez, que constituiu um episódio de grande importância no declínio da posição
internacional da Inglaterra e da França como potências mundiais. A influência do
Nasser foi tão grande que gerou mesmo uma ideologia, o nasserismo, que se pretendia
uma modalidade de socialismo. Este “socialismo” nasserista, como depois outros
socialismos que nascem no Próximo Oriente, não se identificam com o marxismo,
recusam a ideia de luta de classes, vêem-se como meio de unificação nacional contra os
imperialismos e, na prática, cada um destes governos, a começar pelo egípcio, manteve
e até favoreceu a respectiva burguesia nacional, embora esse regime se traduzisse
também por um alargamento do papel do Estado na economia com objectivos de
desenvolvimento. Com base nesta influência, durante três anos, entre 1958 e 1961,
chegou a existir uma fusão entre o Egipto e a Síria, que constituíram a República Árabe
Unida como nova entidade estatal e princípio de uma união mais ampla do conjunto dos
337

povos árabes, mas acabou por não ter viabilidade. Em 1961 um golpe de Estado na Síria
pôs termo a esse ensaio.
No entanto, também no Iraque a revolução do Nasser teve impacto e levou, em 1958, a
uma revolução que pôs termo à monarquia e à formação de um governo nacionalista de
esquerda que adoptou também uma modalidade de socialismo. Este Governo do Iraque,
inicialmente chefiado pelo Coronel Abdel Karim Kassem, acabou por ser derrubado em
1963 e deu lugar a uma ditadura do partido Baas, também próxima do nasserismo.
O nacionalismo árabe foi uma das variantes de uma tendência que se exprimiu também
noutros países no sentido da definição de posições autónomas que não se identificavam
nem com o capitalismo, nem com o socialismo do bloco de leste e, nesse sentido,
encontrou afinidades com outros Estados nascidos das independências da Ásia do pós-
guerra, nomeadamente a Índia e a Indonésia.
Um ano antes da crise do Suez, em Bandung, na ilha de Java na Indonésia, decorreu
uma conferência que ficou na história como o início do movimento dos países não-
alinhados. A Conferência de Bandung (oficialmente designada de “Conferência
asiático-africana”) teve como Estados organizadores a Índia, o Paquistão, a Indonésia, o
Ceilão e a Birmânia.
Na Índia governava então Nehru, um homem que foi o associado mais próximo de
Gandhi e um dos dirigentes do movimento de independência, Primeiro-Ministro desde
1947 até à sua morte em 1964. Nehru tinha feito parte da sua formação na Europa nos
anos 20 e 30 e, nessa fase, recebido alguma influência marxista (em 1927 foi um
participante destacado do Congresso de Bruxelas da Liga anti-imperialista, uma
organização de influência comunista). A Índia de Nehru foi um país que reservou
sempre um papel importante para o Estado na economia. Essa orientação durou até aos
anos 80 e teve um papel desenvolvimentista, ou seja, teve um papel importante na
industrialização da Índia. No entanto, a Índia nunca foi um Estado socialista.
Na Indonésia, era de algum modo semelhante a orientação do Governo de Sukarno, que
tinha sido um anti-comunista na fase da formação do país mas posteriormente evoluiu,
em certos aspectos, num sentido socialista.
Portanto, de algum modo, os regimes do Egipto do Nasser, da Índia de Nehru e da
Indonésia de Sukarno têm alguns pontos de contacto em termos das orientações
políticas. À Conferência asiático-africana aderiram 29 Estados, entre os quais o Egipto
338

que veio, a partir de certa altura, a ter também um papel importante. A Conferência
conseguiu ainda a adesão da China (que, embora nesta altura alinhasse
internacionalmente com a União Soviética, nunca pertenceu ao Pacto de Varsóvia), mas
também, por outro lado, contou com a participação de Estados como o Paquistão e as
Filipinas, que pertenciam à SEATO, i.e., eram aliados dos EUA.
A Conferência de Bandung teve um papel muito importante na condenação do
colonialismo e deu um impulso ao desenvolvimento dos movimentos anti-coloniais,
nomeadamente em África onde, até ao princípio da década de 50, praticamente só se
tinham feito sentir no norte de África94.
É a partir de Bandung que se difunde a expressão “Terceiro Mundo”, pouco antes
inventada pelo economista francês Alfred Sauvy para significar que a grande maioria da
população mundial se situava fora dos dois blocos, capitalista e socialista, e que, à
semelhança do Terceiro Estado nas vésperas da Revolução Francesa, não era nada em
termos políticos mas, ao mesmo tempo, era potencialmente tudo. A Conferência de
Bandung foi a primeira expressão institucional do surgimento na cena internacional
deste conjunto de países, a maior parte deles pouco antes ainda colónias, que, agora,
começam a procurar concertar posições no sentido de levarem a termo a abolição do
colonialismo e de adoptarem políticas no sentido de uma maior independência em
relação aos centros da economia mundial. A partir da Conferência de Bandung, e
sobretudo ao longo dos anos 60 e 70, o movimento evoluiu, adoptando então
expressamente a designação “Movimento dos Não-Alinhados”. Teve como figuras
principais Nasser, o marechal Tito da Jugoslávia (que, em resultado do conflito com a
URSS, e embora tal conflito seja nesta altura superado, nunca se integrou no Pacto de
Varsóvia, a aliança militar dos países de leste) e Nehru. Os três organizam, em 1961, a
Conferência de Belgrado, que adopta expressamente o “Não-Alinhamento” e exclui os
países pertencentes a alianças militares.
Depois de Bandung, ao passo que a União Soviética e os países de leste encararam de
uma maneira positiva o movimento dos não-alinhados, pelo contrário os EUA
encararam este movimento com grande reticência e mesmo hostilidade.

94
V. Roberto Mesa, La Conferencia de Bandung, Cuadernos del mundo actual 26, Historia,M adrid,
1993.
339

Na União Soviética, e mesmo no âmbito do movimento comunista internacional, nos


anos 60 e 70 desenvolveu-se uma vasta teorização acerca do não-alinhamento como um
factor de paz e enfraquecimento do imperialismo e, de facto, a evolução dominante
nesses anos vai ser no sentido socialista. Também Cuba vem a aderir a este movimento,
imprimindo-lhe uma caracterização ideológica mais forte, tendo a conferência de 1979
sido realizada em Havana.
A Conferência de Bandung e o movimento dos Não-Alinhados tiveram importância
para o nascimento dos movimentos de independência nas colónias africanas.

Apesar do declínio da França e da Inglaterra como potências mundiais, resignarem-se à


perda dos respectivos impérios, nomeadamente em África, foi um processo complicado
e difícil. No entanto, em meados da década de 50, a França e a Grã-Bretanha
convencem-se que, de facto, é praticamente impossível conservá-los e a passagem às
independências da maior parte das colónias de África inglesas e francesas desenvolve-se
num espaço de tempo relativamente curto.
De qualquer maneira, ainda no final da Guerra, tanto a Inglaterra como a França
ensaiaram diversas fórmulas de conservação dos impérios, em geral reconhecendo uma
maior autonomia mas procurando manter os laços económicos e políticos dos territórios
coloniais com as metrópoles. A Inglaterra, já há muito que tinha criado a instituição do
Commonwealth como conjunto das várias colónias incluindo os dominions, ou seja, os
territórios com autonomia de governo que reconheciam a autoridade da Coroa britânica,
de que os primeiros foram o Canadá e África do Sul. A França, ao contrário da
Inglaterra, até bastante tarde manteve a teoria da assimilação, isto é, de que a função da
França era promover os povos coloniais para a sua progressiva assimilação da cultura
francesa e consequente formação das populações como cidadãos franceses. No pós-
guerra, a expressão “colónias” tende a ser substituída pela de “ultramar” (nesse aspecto,
também a evolução que se deu em Portugal nos anos 50, quando o governo deixou de
falar em colónias para falar em províncias ultramarinas, foi exactamente do mesmo
tipo).
De qualquer maneira, sobretudo a França resistia à ideia de independência e esta
posição tem decisivamente a ver com o facto de que, ao contrário do que acontecia na
Ásia, onde as populações europeias foram sempre em número muito pequeno, nalgumas
340

colónias africanas havia uma proporção importante de população branca. Enquanto na


Indochina a percentagem da população europeia era inferior a 0,2%, já, por exemplo, na
Tunísia era de 4%, na Rodésia do Sul 7,5%, em Angola quase 2% e, sobretudo, na
Argélia 11,5%. Havia portanto uma percentagem muito maior de população europeia
em África do que nas colónias asiáticas.
Apesar das disposições da Carta do Atlântico relativas à emancipação dos povos e à
autodeterminação, apesar do sentido anti-imperialista do combate aos fascismos, em
pleno final da Segunda Guerra Mundial, quando a França já está libertada e já existe um
governo francês, o movimento pela independência da Argélia vai ser objecto de uma
repressão impiedosa. Em 1944 desenvolvem-se em Argel e noutras cidades da Argélia
manifestações independentistas que são bombardeadas por aviões franceses. A
repressão foi implacável e fez milhares de mortos. E foi semelhante o comportamento
da França, dois anos depois, perante a revolta pela independência do Madagáscar,
também esmagada de uma forma sangrenta. No norte de África, onde mais cedo se
tinham formado certas elites nativas em relação com as próprias autoridades tradicionais
locais mas onde, também, nomeadamente em Marrocos, o movimento pela
independência já datava dos anos 20 – a guerra dos independentistas marroquinos com a
Espanha e com a França nos anos 20 foi violenta –, a França vai evoluir para uma
atitude de negociação que salvaguardou, aliás, a influência económica que tinha em
toda essa região do norte de África. No caso da Tunísia, isso correspondeu a entregar o
poder ao Partido Neo-Destour, chefiado por Habib Bourguiba, o líder da independência
da Tunísia, mas o Bourguiba e a elite que ele representa manteve relações económicas
estreitas com a França e uma certa identidade fundamental de posicionamentos nas
questões internacionais. Em 1954, são iniciadas negociações que conduzem, em ambos
os casos da Tunísia e de Marrocos, à independência. A Espanha, que dominava uma
parte de Marrocos, renunciou unilateralmente a esse domínio e a Tunísia e Marrocos
tornam-se, em 1956, Estados independentes.
Muito mais complicada foi a evolução na Argélia, que muitos franceses não
consideravam como colónia mas sim como um departamento da França. De facto, como
já referi, a percentagem da população francesa era bastante superior na Argélia e cerca
de 4/5 dos franceses residentes eram naturais da Argélia. As modalidades de
representação concedidas pela França nunca reconheceram a igualdade de direitos da
341

população árabe. Chegou a existir uma espécie de parlamento em que metade era eleita
pelos franceses e metade pela população árabe, sendo que cerca de 90% da população
era árabe, e essa fórmula de conciliação não funcionou. Em 1954, nasce a Frente de
Libertação Nacional da Argélia que se orienta para a luta armada, que vai ser efectiva, e
suscita também uma resposta violenta da França. Chegaram a estar mobilizados na
Argélia 400.000 militares franceses, o que dá uma ideia da dimensão do envolvimento.
Para além disso, em resposta ao terrorismo da FLN, a França responde também com
métodos terroristas de actuação do exército, nomeadamente o uso da tortura sobre os
presos ligados ao movimento de libertação. A guerra da Argélia, que se prolongou
durante seis anos, gerou, por seu turno, grandes divisões em França e episódios de
perseguição dos argelinos em França que impressionaram a opinião pública. Na própria
opinião pública francesa, na imprensa, no parlamento, geraram-se divisões importantes.
A perspectiva de uma evolução para a independência suscita, em 1958, um movimento
da população francesa da Argélia e dos militares aí situados, contra o regime da Quarta
República. O regime da Quarta República (iniciado no pós-guerra pela Constituição de
1946) era um regime instável com uma certa fragmentação partidária, às origens do qual
tinha estado ligado o General De Gaulle que, nesse ano, se afastara da política. Este
levantamento de Argel vai ter como consequência que o próprio parlamento francês
apela ao General De Gaulle e confia-lhe os plenos poderes. De Gaulle, que tinha sido o
chefe da resistência francesa e o presidente do governo provisório na fase entre a
Libertação e a Constituição de 1946, assume poderes ditatoriais provisórios e vai ser o
criador da Quinta República, um regime presidencialista que ele, aliás, vai marcar como
a figura principal durante os dez anos, até 1969, em que é Presidente. Um dos aspectos
da nova Constituição é a introdução do referendo como instrumento do governo. É pelo
recurso ao referendo que De Gaulle aborda a solução da questão argelina, inicialmente
numa perspectiva de evolução para a autonomia no quadro da França. Rapidamente ele
se apercebe que essa tentativa é inviável e inicia, em 1959, negociações com vista à
independência, que é depois aprovada por referendo e concluída pelos Acordos de
Évian de 1962. Estes procuraram salvaguardar o direito à permanência da população
europeia, o que, na prática, não aconteceu. A grande maioria dos franceses da Argélia,
os chamados pieds noirs, regressou a França. Esta evolução teve ainda uma
consequência na política interna francesa, porque um sector de militares da extrema-
342

direita, em 1961, desencadeou um putsch em Argel procurando, no último momento,


obstar à evolução para a independência e, na sequência, criaram uma organização
armada, chamada Organização do Exército Secreto (OAS) que organizou atentados,
inclusivamente um atentado, que falhou, contra De Gaulle. Os militares, alguns dos
quais tinham sido companheiros de armas do De Gaulle, ligados à OAS e ao putsch de
Argel, foram julgados e condenados e depois disso a Quinta República evoluiu
estavelmente.
A guerra da Argélia foi prolongada e extremamente violenta e influiu no sentido de
evitar que os movimentos de independência que, entretanto, começaram a nascer nas
outras colónias africanas, inglesas e francesas, repetissem esse tipo de experiência.
Houve ainda tentativas, nomeadamente por parte da França, de manter formas de
associação com a metrópole. Em 1958 foi criada a Communauté Française
(Comunidade Francesa) a que poderiam pertencer todas as colónias francesas e a
França. Só a Guiné-Conacri, dirigida por Sekou Touré, é que recusou e optou pela
independência imediata mas, nos anos seguintes, as restantes colónias francesas
optaram também pela independência. A tentativa de manutenção de uma Comunidade
Francesa não teve portanto continuidade.
Ainda antes disso, em 1957, deu-se a independência do Ghana – até aí colónia britânica
com o nome de Costa do Ouro, Gold Coast. O líder da independência do Ghana,
Kwame Nkrumah, foi também um dos mentores e uma das figuras mais activas na luta
pelas independências e pela unidade africana. Essa é outra causa que nasce nesta época,
a tentativa de superar as divisões dos Estados africanos que são um fruto do
colonialismo, já que a maior parte das fronteiras de África não tem nada a ver com
divisões étnicas tradicionais.
1960 foi o ano em que o maior número de Estados africanos ganhou a independência,
dos quais 13 colónias francesas e também o Togo e a Somália (o Togo tinha sido
mandato da Sociedade das Nações e anteriormente colónia alemã, a Somália era uma
tutela exercida em nome da ONU, porque antes era uma colónia italiana) e, além
destes, a Nigéria e o Congo Belga.
A maior parte destas evoluções foi pacífica, um caso um pouco mais complicado e com
episódios de violência foi o do Quénia onde, desde os anos 50, existia um movimento
de natureza tribal que ficou conhecido como os “Mau-Mau”. Eram revoltas primitivas
343

das populações nativas, com pinturas simbólicas no rosto e armadas de lanças. Este
movimento, a partir de certa altura, ganhou uma representação política em torno da
figura de Jomo Kenyatta, que veio a ser o líder da independência do Quénia, alcançada
em 1963, e depois, durante muito tempo, o chefe do Estado. O Quénia era também um
dos países onde havia uma presença europeia que, embora não fosse grande em relação
ao conjunto da população - não chegava a 1% -, no entanto era uma minoria branca
activa com um forte interesse económico que a fez tentar resistir à independência.
Também o caso das Rodésias suscitou um dos maiores problemas nas independências
africanas. Chegou a constituir-se a Federação Rodesiana, com o intuito da população
branca resistir à independência. Mas a população branca tinha um peso significativo na
Rodésia do Sul, não tanto na Rodésia do Norte (actual Zâmbia e Malawi). O Governo
inglês forçou, por isso, a dissolução da Federação e concedeu a independência à Zâmbia
e ao Malawi (aliás, no caso do Malawi, uma independência de algum modo subalterna,
que manteve um posicionamento de compromisso com o colonialismo e por isso veio a
ser, aliás, cooperante com Portugal durante a guerra colonial). Na Rodésia do Sul, os
europeus, que eram uma percentagem de 7% da população, resistem à independência
negra, saem do Commonwealth, proclamam uma independência branca e vão-se
confrontar, durante vários anos, com dois movimentos de guerrilha, um deles liderado
por Robert Mugabe, que é hoje, e desde 1980, o Presidente do Zimbabwe. Até 1979
existiu, na Rodésia do Sul, um governo de minoria branca, cujo chefe foi Ian Smith, um
grande aliado das posições coloniais portuguesas.
A África do Sul é um país de grande importância territorial e demográfica, que
dominava também, desde a I Guerra mundial, o Sudoeste Africano, ou seja, a Namíbia.
Foi fundada em 1910 como dominion britânico, na sequência da guerra dos boers, que
entre 1899 e 1902 opôs os ingleses aos descendentes dos colonos holandeses
(Afrikaner). A população branca era uma percentagem importante (20%), existindo
ainda cerca de 12% de indianos e mestiços. Entre 1948 e 1989 existiu na África do Sul
o apartheid, um rígido regime de estrita segregação racial e impedimento absoluto do
acesso da população de cor a muitos locais públicos e a qualquer tipo de posições de
poder. Contra o regime do apartheid desenvolveu-se um movimento armado de
independência, dirigido pelo Congresso Nacional Africano (o ANC, nascido em 1912),
cujo dirigente mais famoso foi Nelson Mandela. Mandela esteve 28 anos preso, até
344

1990. Nessa altura, tendo já desaparecido o regime colonial português e o regime racista
da Rodésia, no quadro também do fim da guerra fria, o partido da minoria branca vê-se
forçado a renunciar ao apartheid. Nas primeiras eleições multirraciais realizadas em
1994, Mandela é eleito Presidente da República.
Um dos conflitos mais violentos, nos anos 60, foi o do Congo Belga, um país com
enorme importância económica por causa das suas riquezas naturais, nomeadamente em
diamantes, e onde a população branca era uma percentagem muito pequena, cerca de
0,6%. É uma das colónias com tradições de mais violência na exploração da população
nativa que, aliás, permaneceu na sua grande maioria analfabeta e, portanto, é um país
onde houve dificuldade em formarem-se elites nativas. Em muitos dos países que
transitaram para a independência, e na origem dos próprios movimentos da libertação,
estiveram, em muitos casos, elementos que tinham sido quadros da Administração
Colonial, elementos negros ou mestiços que tinham participado nos níveis inferiores da
Administração colonial e que tinham, portanto, instrução. No caso do Congo Belga não
existia quase nada disso. No entanto, desenvolve-se, a partir de 1958, um movimento
nacional congolês liderado por Patrice Lumumba, um homem identificado com a causa
da unidade africana. Em 1960 a Bélgica concede a independência e realizam-se eleições
de que sai vencedor Patrice Lumumba. Lumumba era o Primeiro Ministro, o Chefe de
Estado era um militar chamado Kasavubu e, entre os dois, vai-se gerar um conflito.
Logo pouco depois da formação do governo, surge um movimento de separação na
região do Katanga que era, justamente, a região de maior riqueza mineira. Lumumba
apelou sem sucesso à intervenção das tropas da ONU. A tentativa de secessão estendeu-
se à província do Kasai, também rica em diamantes, e nessa altura Lumumba apela ao
auxílio da URSS, o que lhe vai trazer a hostilidade ocidental. Isolado entre a oposição
do Kasavubu e a de Mobutu, que era o Chefe do Estado Maior do novo exército
congolês, Lumumba é preso e entregue aos secessionistas, ou seja, ao movimento que
defendia a independência do Katanga, e logo assassinado. Durante uns anos manteve-se
um confronto violento no Congo que durou até 1965 e do qual saiu vencedor Mobutu,
que estabeleceu uma ditadura sangrenta e um regime de poder pessoal e de verdadeira
cleptocracia, que durou até quase à sua morte em 1997.
345
346

Lição 7. Os anos do desenvolvimento 1950 – 1973.

Hoje vou voltar ao mundo desenvolvido de que falámos aqui sobre o pós-guerra,
o princípio da guerra fria e as repercussões disso nalguns dos países europeus. Hoje
quero avançar nessa descrição e entrar nos anos sessenta que são, como sabem, anos de
grande vitalidade na história europeia e americana.
Além do mais, são anos importantes porque alguns de nós já éramos nascidos,
são anos que fazem parte da nossa vida. E, de certa maneira, porque se relacionam com
uma época excepcionalmente próspera das sociedades europeias e americana, em
relação à qual hoje existe uma discussão e, ao mesmo tempo, um sentimento de crise.
Quer dizer, no fundo, a noção que muitos de nós temos, e corresponde em parte à
verdade, é a de que nos anos 60 se tinha alcançado um certo padrão social e
civilizacional que hoje está posto em causa. Que se tinha alcançado um certo equilíbrio
no mundo, por assim dizer, ao passo que a situação hoje é muito mais incerta.

Mas vou entrar directamente na matéria e, em primeiro lugar, vejamos o quadro


geral, do ponto de vista económico.
As décadas de 50 e 60 integram aquele período que, aliás duma forma um
bocado nostálgica, nos últimos anos tem sido designado, por exemplo no livro do
Hobsbawm, A Era dos Extremos, como “Era Dourada” (The Golden Age). Outros
autores também falaram e fala-se com frequência das 3 décadas gloriosas para designar
os anos que vão de 1945 a meados da década de setenta.
Que fundamento é que tem essa ideia, em relação às décadas de cinquenta e
sessenta, como sendo excepcionalmente prósperas?
Tem de facto um certo fundamento. Em primeiro lugar porque a reconstrução, a
recuperação em relação às consequências da guerra, foi mais rápida do que se esperava,
na maior parte dos países. E, no princípio da década de 50, já os países mais afectados
pelas destruições, a Inglaterra, a França, a Alemanha, o Japão, além da União Soviética,
tinham alcançado um nível do PIB, do Produto Interno Bruto, semelhante ao que tinham
antes do início da guerra, em 1939.
Depois o processo de recuperação vai-se transformar num processo de
crescimento económico sustentado, que durou até à crise de 1973.
347

A crise de 1973, que é chamada primeira crise do petróleo, iniciou um processo


de declínio do ritmo de crescimento que nunca mais foi recuperado. Esse ano de 1973
marca o fim da fase de expansão do pós-guerra.
Portanto, níveis de crescimento económico bastante elevados que, no conjunto
dos 16 maiores países da OCDE 95 (o mundo capitalista desenvolvido) atingiram
praticamente os 5%, como média anual, entre 1950-1973. Ao passo que, no período de
1913 a 1950, a taxa média para o mesmo conjunto de países era de 2%.
E, a par deste crescimento do PIB, o aumento dos níveis de vida que, medido em
termos do PIB per capita, significou mais do que a duplicação dos níveis médios de vida
dos países da OCDE, entre o princípio da década de 50 e o ano de 1973.
Isto teve profundas consequências a todos os níveis, quer nas relações entre as
várias partes do mundo, quer nos costumes, na cultura, como veremos.
Em primeiro lugar este desenvolvimento correspondeu também a um período de
intensa industrialização.
No final da 2ª Guerra Mundial, a agricultura ainda era uma componente muito
importante de muitas economias europeias. Não só no caso português, o país mais
atrasado da Europa Ocidental, como na Espanha também, como na Itália, como na
França. A agricultura, em qualquer destes países, representava, no final da 2ª Guerra
Mundial, mais de 30% da população activa.
Portanto, a par de uma diminuição acentuada do sector agrário que, nos anos
setenta, passa a representar menos de 10% da força de trabalho nos países da OCDE e
menos de 3% nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, a par disto há um impulso grande
e dominante das indústrias modernas, nomeadamente das indústrias pesadas, das
metalurgias e das siderurgias, das indústrias mecânicas, das indústrias químicas e, a
partir dos anos sessenta, da electrónica.
É o período máximo de industrialização nestes países porque, a partir daí, o que
se vai registar, e que já se começava a sentir nos finais dos anos 60, é um crescimento
proporcionalmente mais rápido do sector terciário, e desde os anos 70,
correspondentemente, uma certa desindustrialização.

95
Criada em 1961, a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico resultou da união dos
16 países da Europa Ocidental membros da OECE (Organização Europeia de Cooperação Económica)
com os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia e o Japão. Hoje conta 30 países
membros.
348

Mas quem diz industrialização diz também crescimento da classe operária


industrial e do seu peso social e político, a que está ligado também o crescimento da
sindicalização.
Este desenvolvimento deu-se num quadro de livre-câmbio que, nesse sentido,
contrastou com as tendências de nacionalismo económico e proteccionismo
alfandegário que tinham marcado o período entre as guerras, sobretudo o período a
partir da crise económica mundial, e tinham sido eles próprios um factor e depois uma
consequência agravante da crise. Desde os acordos do final da guerra - e nisso os
Estados Unidos tiveram um papel decisivo – a orientação foi não voltar aos
proteccionismos nacionalistas, mas estabelecer um regime de circulação livre
envolvendo o abaixamento das tarifas. Essa era uma das bases dos acordos de Bretton
Woods, que foram paralelos à própria constituição da ONU. E também datou dessa
altura, da construção da ONU e da Conferência de Bretton Woods, a tentativa de
constituição de uma Organização Mundial de Comércio que devia garantir a diminuição
e, depois, a liquidação das tarifas alfandegárias.
Nunca se chegou, nesses anos, à constituição da Organização Mundial do
Comércio, nomeadamente por causa da existência, nessa época, da Commonwealth
britânica e da Union Française, com relações privilegiadas nas respectivas esferas. Não
se chegou a acordo e, em vez disso, o que ficou estabelecido foi, simplesmente, um
acordo geral sobre tarifas e comércio, que ficou conhecido como o GATT (General
Agreement on Tarifs and Trade). Mas o GATT funcionou depois, durante os 50 e tal
anos seguintes, como uma instituição. Regularmente, de tantos em tantos anos, havia
conferências internacionais e através dessas conferências foram sendo diminuídos os
direitos alfandegários, portanto o objectivo da Organização Mundial de Comércio foi
sendo progressivamente, senão alcançado, pelo menos aproximado. Até que, mais tarde,
já no final do séc. XX (1995), já no contexto da globalização, então sim é que se chegou
à constituição da Organização Mundial do Comércio a que, recentemente, a própria
China também aderiu.
De qualquer maneira a tendência geral do período é essa do livre-cambismo, da
superação dos proteccionismos. O que não significou, no entanto, uma abdicação do
papel regulador dos Estados nas relações económicas, que é um dos aspectos que
349

distinguem esse período da situação actual, da globalização, em que esse papel de


intervenção e regulação do Estado está substancialmente mais limitado.

Nesta internacionalização económica e nesta dinamização do comércio mundial,


os Estados Unidos, como a potência à partida hegemónica, tiveram um papel decisivo
através dos investimentos no estrangeiro e, em primeiro lugar, na Europa (os
investimentos relacionados com o Plano Marshall, que foram essenciais para o
relançamento das economias europeias). Além disso, os Estados Unidos tiveram, como
aliás continuam a ter, um papel muito importante na economia mundial porque são 160
milhões de habitantes com uma capacidade aquisitiva elevada, que é uma componente
essencial da procura a nível mundial.
O investimento estrangeiro esteve na origem dum fenómeno que, a partir da
década de 70, teve uma enorme difusão e que hoje é absolutamente dominante a nível
mundial, que é a existência das empresas multinacionais.
A tendência para a expansão, para a procura de mercados, era inerente ao
desenvolvimento capitalista e já falámos dela a propósito das tendências imperialistas
desde o final do século XIX.
Agora, o que é relativamente novo, é a procura de implantação de fábricas em
vários lugares, em vários países, o que significa, por um lado, estar mais próximo das
fontes de matérias primas, por outro lado estar mais directamente relacionado com os
mercados locais e, por outro lado ainda, tirar o máximo proveito das vantagens em
termos fiscais. O investimento, a criação de empresas filiais em países mais atrasados,
significa subtraí-las aos níveis de imposto que são próprios dos países desenvolvidos. E
sobretudo, permite o aproveitamento dos baixos salários dos países mais atrasados.
Este crescimento da produção, e nomeadamente da produção industrial, andou a
par dum desenvolvimento dos mercados internos em que foi importante um fenómeno
demográfico conhecido como “baby boom”. Ou seja, a par da continuação da
diminuição das taxas de mortalidade, que é uma tendência desde o século XIX,
sobretudo o incremento das taxas de natalidade que se registou neste período e que
contrasta com aquilo que tem sido a evolução, nos países desenvolvidos, a partir do
princípio da década de setenta.
350

O baby boom foi sobretudo marcado nos Estados Unidos, mas também nos
países europeus. Em França, por exemplo, ao passo que a natalidade média era, no fim
dos anos trinta, de 2,1 por mulher, cada mulher tinha em média dois filhos vírgula um, o
que corresponde exactamente à taxa de renovação necessária para se ter a estabilidade
demográfica – passa para uma média de 3, no princípio dos anos cinquenta.
Este grande crescimento da natalidade significou, nos anos 50 e 60, um grande
número de jovens na população. Isso também é o contrário do que acontece hoje em dia.
Dantes dizia-se «a juventude é o futuro do Mundo», hoje a tendência do futuro é
justamente o predomínio dos velhos.
O grande número de adolescentes e jovens na população significa a criação dum
mercado especificamente juvenil e com isso uma procura de novidades em todo o tipo
de produções e nomeadamente nas ligadas à indumentária, que tem por seu turno
consequências em termos de formação das identidades sociais juvenis, que vão ter um
peso grande e se relacionam com a eclosão dos movimentos estudantis do final dos anos
60.
Como disse, este desenvolvimento económico assentou na economia capitalista,
portanto na propriedade privada e na liberdade económica. No entanto, foi também
sustentado decisivamente pela intervenção do Estado na economia, e sobretudo por
aquilo a que se pode chamar a difusão do keynesianismo.
O Lord Keynes era um economista inglês que desde a década de 20, e sobretudo
na década de 30, em reacção às consequências da Guerra e da crise económica mundial,
criticou a insuficiência do liberalismo económico e reconheceu aquilo que os marxistas
há muito tempo sustentavam, ou seja, a ideia de que o capitalismo deixado a si mesmo
gera inevitavelmente crises de sobreprodução, que conduziriam no limite a uma
situação de estagnação económica prolongada e ao próprio colapso do sistema.
Só que o Keynes não tirava daí uma conclusão revolucionária, mas preocupou-se
antes em encontrar os meios que podiam permitir a sobrevivência do regime capitalista.
Ele era no fundo um liberal, mas um liberal consciente das contradições do
liberalismo. E que por isso defendeu uma maior intervenção do Estado através dos
instrumentos fiscais e da criação de trabalho. Duma maneira geral, pela intervenção do
Estado na criação do investimento produtivo, quer directamente - através de
encomendas estatais, nomeadamente políticas de obras públicas -, quer indirectamente,
351

através do alargamento do crédito e do apoio à procura, incluindo pelas políticas sociais


e a elevação de salários. Era o deficit spending, ou seja, as políticas de défice
orçamental sistemático, mas um défice tendente à criação de riqueza, e que portanto
tende a reequilibrar-se, porque através do instrumento fiscal recupera uma parte da
riqueza criada.
Portanto, em maior ou menor medida, todos os Estados, e nisto teve um papel
pioneiro a experiência do primeiro governo trabalhista em Inglaterra, que em parte se
inspirava no New Deal americano (que também já tinha a ver com as ideias do Keynes),
visam evitar tudo aquilo que pudesse levar a uma nova crise económica, da qual já tinha
havido a experiência nos anos 30. Tinha havido a experiência da relação entre a crise e
os fascismos, e os governos do pós-guerra nascem, apesar da orientação conservadora
que no quadro da guerra fria vão assumir, com a marca da democracia, da existência da
pluralidade de partidos, da liberdade sindical. Há a noção de que é preciso ter em conta
a condição social da maioria das pessoas. Praticamente todas as correntes políticas, para
além dos partidos comunistas que, em vários países europeus, têm um peso grande,
também os partidos social-democratas e mesmo as democracias-cristãs - partido
dominante na Alemanha e na Itália e também com um peso importante em França -
reconhecem essa necessidade de algum reformismo social e, quando defendem a
economia de mercado, em contraposição à economia colectivista ou socialista,
classificam-na – e este era um termo muito em voga nos anos 60 – como economia
social de mercado.
Portanto este papel de intervenção do Estado na economia andou a par do
desenvolvimento de mecanismos da Segurança Social, em geral, e do desenvolvimento
da sindicalização.

Uma das bases fundamentais deste intenso crescimento económico foi o baixo
preço da energia devido, em primeiro lugar, ao acesso fácil ao petróleo, que se torna de
longe a principal fonte de energia. O carvão está cada vez mais ultrapassado. A energia
nuclear é uma novidade e, embora haja consciência do potencial da indústria nuclear
para a criação de energia, é algo que exige investimentos extraordinariamente caros.
Nessa época, aliás, não há grandes prevenções em relação aos riscos da energia nuclear,
352

simplesmente é um processo demorado e quantitativamente têm um papel muito


reduzido como fonte de energia.
E as outras coisas que a gente hoje valoriza, como por exemplo a energia eólica,
era coisa de que nos anos 60 nunca se ouviu falar, não tinha nenhum significado.
Naturalmente têm um peso importante (bastante importante em Portugal nos anos 50 e
60) os aproveitamentos hidroeléctricos.
De qualquer maneira a exploração sistemática dos poços de petróleo é o factor
decisivo e a nível mundial a produção de petróleo quintuplica entre 1950 e 1973.
As duas grandes potências, Estados Unidos e URSS, são ambas produtores de
petróleo, no entanto a parcela da produção americana na produção mundial de petróleo
desceu significativamente, ao passo que cada vez mais é o conjunto dos países do
Médio Oriente e Norte de África, que são a fonte essencial do abastecimento.
Em 1973 o conjunto dos países do Médio Oriente, incluindo o Irão, mais a
Argélia e a Líbia, só por si, significavam mais de 40% da produção mundial de petróleo.
Isto obviamente tem como consequência que sobretudo o Médio Oriente se torna
uma região de importância estratégica absolutamente essencial, como hoje continua a
ser (e as guerras israelo-árabes têm directamente a ver com isso). Tanto mais que a
exploração do petróleo estava centralizada num número muito pequeno de companhias,
ao todo sete, das quais cinco americanas, mais a Shell que era anglo-holandesa e a BP
(British Petroleum) inglesa, que extraíam mais de metade do petróleo mundial.
E este é um dos casos típicos em que o crescimento do mundo desenvolvido se
deu à custa dos preços muito baixos da matéria-prima que, até aos anos 70, estava a um
preço que hoje nos pode parecer irrisório. O litro do crude custava nos anos 60 cerca de
1 cêntimo de dólar. O barril de 159 litros custava cerca de dólar e meio.
O preço do crude, obviamente que é sempre muito inferior ao do produto final
vendido. Mas, de qualquer maneira, lembro-me da gasolina se vender em Portugal, há
50 anos, a cerca de 1 escudo por litro.

Neste processo de crescimento económico, também um factor de certo peso é o


papel da despesa militar ou seja, da corrida aos armamentos e do investimento em
armamento (e nomeadamente em armamento nuclear), que teve uma função propulsora
da economia, e isso intensificou-se a partir da guerra da Coreia. Por exemplo o Japão é
353

a partir da Guerra da Coreia que arranca industrialmente, com as encomendas derivadas,


directa ou indirectamente.
Mas o que acontece é que, uma vez geradas essas encomendas, os interesses
ligados a elas não querem renunciar. E portanto constituem também um obstáculo às
políticas de paz, constituem também um factor de acentuação das dinâmicas conflituais,
como justificação da despesa militar.
Por isso, mesmo depois da Guerra da Coreia, nos Estados Unidos a despesa
militar manteve-se sempre acima dos 10% do PIB.
O que levou o próprio Presidente Eisenhower, um conservador, um homem do
Partido Republicano, a denunciar o complexo militar-industrial. Quer dizer, a falar nesta
imbricação de interesses ligados à produção militar como um factor perigoso que influi
no funcionamento do sistema político e perigoso também no sentido de acentuar as
tensões militares.
Depois da 2ª Guerra Mundial a maior parte das indústrias teve de se reconverter,
como é evidente. Mas, sobretudo nos ramos tecnologicamente mais avançados, como os
ligados à indústria nuclear, essa reconversão não é tão fácil, e daí um dos motivos da
continuidade das pressões no sentido da manutenção da despesa militar.
Em suma, do conjunto deste processo de crescimento económico resulta a
emergência daquilo a que nos anos 60 se começou a chamar, com um termo que ao
princípio parecia estranho, a sociedade de consumo.
Mas de facto hoje para todos nós é evidente que estamos submersos por uma
quantidade de consumos que estão para além do necessário, e até cuja explicação às
vezes é difícil de encontrar.
O símbolo da formação da sociedade de consumo foi, e em certa medida
continua a ser, mas foi sobretudo para as décadas de 50, 60 e 70 (em Portugal, mais
tarde), o automóvel que em média, a nível mundial, se multiplicou por 6 vezes, entre
1948 e 1971.
O automóvel é muito importante porque atrás dele trouxe uma série de outras
indústrias, nomeadamente a borracha, os pneus, o vidro e os plásticos, que são também
uma grande novidade. E o automóvel trouxe ainda o desenvolvimento das redes
rodoviárias, nomeadamente das auto-estradas, e com elas uma reestruturação urbana
que, no caso português, é sobretudo nos anos 80 que se faz sentir, intensificando os
354

movimentos de deslocação do campo para a cidade mas também a expulsão da


população dos centros urbanos para as periferias.
Os plásticos são derivados do petróleo que tiveram também uma difusão e uma
diversificação astronómica, um fenómeno essencialmente dos anos sessenta (mesmo
assim, não existiam os sacos de plástico no supermercado, isso é bastante mais tardio).
O plástico começou a substituir o vidro e a madeira, por exemplo nos recipientes
ligados às outras inovações da vida doméstica, como o frigorífico.
Tudo isto está sobretudo ligado a uma transformação nos estilos de vida com a
difusão, nomeadamente, dos electrodomésticos como o frigorífico, a máquina de lavar
roupa e depois a de lavar loiça, que por seu turno contribuíram decisivamente para
alterar o estatuto da mulher, a situação da mulher nas tarefas domésticas. Esse é um dos
factores que impulsionaram o crescimento do trabalho assalariado feminino, e com ele a
alteração radical do estatuto da mulher, uma das maiores mudanças da segunda metade
do século XX.
De referir ainda, em ligação com a sociedade de consumo, duas invenções cujo
alcance é hoje ainda muito mais visível: a televisão e o computador, que têm em comum
basearem-se na invenção do transistor, um dispositivo electrónico que permitiu realizar
num espaço muito reduzido funções que anteriormente exigiam equipamentos de
grandes dimensões. A televisão já tinha sido experimentada antes da Guerra nos EUA e
na Alemanha, mas só entrou em funcionamento normal nos EUA em 1949, estendendo-
se depois rapidamente nos países europeus. É também um dos factores que alteraram
fundamentalmente as condições de sociabilidade, a relação público/privado, a educação,
etc. Quanto aos computadores, começam nestes anos a ser utilizados por instituições e
grandes empresas, mas eram equipamentos muito pesados e caros. Só nos anos 70 é que
surgirá o computador pessoal.

Faltou referir um aspecto importante neste desenvolvimento económico dos anos


50 e 60, também de grandes consequências actuais, que é a integração europeia.
Já tínhamos referido que havia propostas nesse sentido e que em 1951 foi criada
a CECA, Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Isso correspondeu à ideia,
defendida nomeadamente pelo Jean Monnet, um francês que foi um dos principais
inspiradores da união europeia, dos pequenos passos, isto é, de que era preferível, em
355

vez de projectos políticos ambiciosos de integração, avançar com iniciativas concretas


que tivessem uma importância estratégica.
De facto a CECA foi a primeira instituição europeia a dotar-se de um órgão de
governo com autonomia em relação aos governos nacionais. A Alta Autoridade da
CECA era eleita pelo Conselho de Ministros dos 6 países membros mas gozava de uma
certa autonomia em relação ao Conselho Europeu, que foi o antecessor do Parlamento
Europeu.
A partir desta experiência é que, em 1957, se avançou para o Tratado de Roma
que deu origem à CEE - Comunidade Económica Europeia - e ao EURATOM.
O EURATOM, de que hoje se fala pouco, foi criado com o objectivo de
estabelecer uma autoridade conjunta em relação à exploração da energia nuclear para
fins pacíficos. Mas nunca teve grande alcance prático.
A CEE, que nos anos 60 era conhecida como Mercado Comum, teve um papel
importante na descida das tarifas alfandegárias entre os países participantes, que foram
até 1968 os Seis, ou seja, a França , a Alemanha, a Itália e o Benelux (Bélgica, Holanda
e Luxemburgo). Portanto, estabelecimento duma tarifa comum em relação ao exterior, e
duma política agrícola comum. Ao mesmo tempo que uma sistemática descida das
tarifas internas no espaço do Mercado Comum que, a partir de 1968 ou 69 praticamente
significou a eliminação das tarifas alfandegárias dentro desse espaço.
O problema que se pôs sempre na constituição da Comunidade Económica
Europeia foi o das relações com a Inglaterra. Porque, por um lado, a Grã -Bretanha era o
centro da Commonwealth, e não queria abdicar da relação privilegiada com os países da
Commonwealth no que diz respeito nomeadamente aos aspectos alfandegários. E, por
outro lado, porque a ideia do Mercado Comum estava associada a um objectivo último
de União Europeia, isto é, de autonomia da Europa em relação às super-potências. Ora a
Inglaterra, sobretudo a partir da Guerra, teve uma política sempre muito vinculada à dos
Estados Unidos e esse facto constituía um obstáculo à participação no Mercado
Comum, para além da questão mais prática colocada pela existência da Commonwealth.
Além disso, em 1958, como vimos, o General De Gaulle chegou ao poder em
França e o General De Gaulle tinha ideias muito próprias acerca da função da Europa,
que aliás ele não via como dissolução da especificidade de cada país. Pelo contrário,
toda a política gaullista esteve associada a uma ideia de grandeza da França.
356

Esse aspecto de nacionalismo francês foi bastante característico da política e até


do estilo de intervenção de De Gaulle. Mas, ao mesmo tempo, de Gaulle defendia uma
afirmação independente da Europa em relação às super-potências e, por isso, foi
adversário duma entrada da Inglaterra na Comunidade Económica Europeia. Em 1959 a
Grã-Bretanha constituiu uma espécie de Mercado Comum paralelo com os países
nórdicos, ou seja Dinamarca, Noruega e Suécia, e ainda Portugal, Suiça e Áustria. A
EFTA (European Free Trade Association), no entanto, teve sempre objectivos muito
mais circunscritos de carácter económico, de criação dum espaço comercial comum.
Posteriormente a Inglaterra, assim como a Dinamarca e a Irlanda, veio a aderir à
CEE, em 1973, e em consequência a EFTA, embora entretanto se tivesse alargado a
outros países, perdeu significado. E depois progressivamente também os países da
EFTA, à excepção da Noruega e da Suiça, vieram a aderir à CEE. À parte a Noruega e a
Suíça, hoje todos os outros fazem parte da União Europeia.

Scipione Guarraccino, o autor que tenho continuado a seguir, dá um


desenvolvimento, neste capítulo, também à análise dos países do chamado “milagre
económico” ou seja, os países derrotados na Guerra e que alteraram as suas estruturas
económicas nas décadas de 50 e 60 ao ponto de se falar, em relação a eles, ou seja a
Itália, a Alemanha e o Japão, no “milagre económico”ou nos “milagres económicos”
respectivos.
Não há tempo para estarmos a ver isso com detalhe. Os três casos são diferentes.
A Itália é caracterizada por uma instabilidade governamental que, no entanto,
nunca pôs em causa, nos anos 50 e 60, a hegemonia do Partido da Democracia Cristã,
que ia fazendo e desfazendo as suas alianças. Sucederam-se os primeiros-ministros, em
média os Governos, nas décadas de cinquenta e sessenta, duraram um ano, e alguns
duraram menos do que isso. Mas essa hegemonia democrata-cristã traduziu-se, na
prática, por uma continuidade administrativa grande. No entanto com um momento de
alteração, que corresponde ao princípio dos anos sessenta.
A primeira fase do desenvolvimento italiano foi muito baseada nos sectores
tradicionais da economia, as indústrias têxteis e alimentares, com pouco conteúdo
tecnológico, e em que era possível também praticar baixos salários e concorrer na base
desses baixos salários.
357

É um país que, apesar do crescimento intenso, manteve nestas décadas uma forte
separação entre o norte industrial e o sul agrícola, ao mesmo tempo que uma intensa
emigração, quer emigração do país em geral para o estrangeiro, para a Europa
desenvolvida e para as Américas, numa linha continuidade histórica que vem de trás,
quer, e esse é o facto mais novo, as migrações do Sul agrícola e atrasado para o Norte
industrial. E com isso, no conjunto, um processo de industrialização e modernização
importante que, a partir de meados dos anos cinquenta, envolveu também as indústrias
modernas, tecnologicamente avançadas, tendo por centro a FIAT, ou seja, a indústria
automóvel.
Em relação com esta evolução há, também, um fortalecimento do movimento
sindical e as grandes greves do princípio da década de sessenta vão obter conquistas
importantes em matéria salarial. E por seu turno influenciam uma viragem política que
tem lugar nessa altura, sem pôr em causa a tal hegemonia democrata-cristã. Formam-se
os Governos chamados de centro-esquerda. Isso é uma novidade importante na política
italiana e que, na altura, teve um papel positivo em termos sociais e de desenvolvimento
do país. Consistiu na entrada do Partido Socialista em Governos de coligação, nos quais
o Partido principal era o Partido Democrata-Cristão e que integravam também outros
partidos como o Partido Social-Democrata (resultante de uma cisão em 1947 dos
socialistas). Havia ainda o Partido Republicano.
Aqui está um aspecto em que, nos anos sessenta, alguns Partidos Socialistas,
diversamente do que acontece hoje, se diferenciavam das orientações conservadoras.
Porque estes Governos de centro-esquerda estiveram ligados em Itália à nacionalização
da indústria eléctrica e à implementação de medidas de “Estado social”- que em Itália
vieram mais tarde do que por exemplo em Inglaterra, no que diz respeito à saúde, e
sobretudo em relação à educação, que criou a Escola Média Unificada no princípio dos
anos sessenta (aquilo que também aconteceu em Portugal depois do 25 de Abril, com o
fim da separação entre Liceus e Escolas Técnicas), o que teve um papel democratizador
importante.
Um dos outros “milagres económicos” é o da Alemanha, embora partindo de
pressupostos diferentes porque já com níveis educacionais elevados, que fizeram com
que a indústria alemã não assentasse nos baixos salários mas sim, desde o princípio, no
desenvolvimento tecnológico. O modelo foi essencialmente liberal no plano económico,
358

mas conseguiu um desenvolvimento das exportações ao mesmo tempo que do mercado


interno, e conseguiu até absorver os grandes incrementos de mão de obra resultantes da
imigração dos territórios perdidos de Leste - nomeadamente os territórios que passaram
a pertencer à Polónia e à Checoslováquia- e imigração também da RDA. Como até 1961
existia liberdade de trânsito entre as duas Alemanhas e como a Alemanha Ocidental (a
RFA) era mais rica, houve um grande êxodo de dois milhões e meio de alemães de
Leste para Oeste, antes da construção do Muro.
Por seu turno o Japão, que foi o que registou as mais elevadas taxas de
crescimento do PIB e do comércio externo, e também um grande aumento do
rendimento per capita, foi um país, como diz o Guarraccino, com um alto nível de
“vivacidade social “, ou seja, de conflitualidade social, de luta de classes, para usar
outra expressão, no imediato pós guerra.
Mas, em função da guerra fria, os Estados Unidos apoiaram uma evolução
conservadora do Japão. No essencial, o pessoal político responsável pela guerra,
incluindo muitos dos que tinham sido julgados, foram reintegrados. Portanto, o Japão
restabeleceu-se como uma sociedade conservadora e em que as velhas tradições, vindas
do período imperial, de integração entre o Estado e as empresas, as tradições de
autoridade na sociedade civil, a nível familiar, etc., funcionaram duma maneira
integrada e que é uma das explicações do desenvolvimento económico intenso. Que
abrangeu primeiro ramos tradicionais, que evoluiu rapidamente para as siderurgias, a
construção de navios, nomeadamente petroleiros, e indústria automóvel e electrónica,
também, desde bastante cedo.
Para concluir sobre o Japão, cito o que diz o Guarraccino: «os japoneses
aceitaram uma política de baixos salários, um nível relativamente baixo de Welfare
State e um nível de vida que se manteve durante muito tempo relativamente modesto, e
transferiram sem dificuldades a sua fidelidade e deferência de um império militar-
industrial para as organizações da produção e dos negócios e os novos objectivos do
crescimento económico»96.
Estes são alguns dos casos mais conhecidos de sucesso no crescimento
económico no chamado mundo ocidental.

96
Storia degli ultimi sessant’Anni, pp.124-125.
359

Mas é importante frisar, até porque é uma ideia que provavelmente não têm
devido à imagem que se criou em resultado do colapso dos Estados socialistas da
Europa de Leste na passagem da década de 80 para a de 90, que nestas décadas de 50 e
60, que foram as de maior crescimento económico internacional, também este
crescimento se deu, a taxas ainda mais elevadas do que no Mundo capitalista, nos países
do chamado bloco soviético.
A explicação básica é fácil: quanto mais baixo é o nível de partida, mais rápido é
em regra o crescimento. De qualquer maneira, é uma realidade com algumas
consequências importantes, sobretudo a de ter mudado muito a caracterização social e
cultural do conjunto daquilo que se chamava a Europa de Leste que, até à 2ª Guerra
Mundial, e com excepção da Checoslováquia, era massivamente rural.
Em termos de aumento do PIB, se há pouco vimos que ele foi em média de 4,9%
ao ano para os maiores países da OCDE, no caso da União Soviética, embora haja
discussões acerca das estatísticas, esses níveis andam à volta de 6,7%. Portanto
superiores aos dos países capitalistas.
Também no caso da União Soviética a reconstrução, no sentido da recuperação
dos níveis da produção anteriores à Guerra, é obtida rapidamente. Em 1948 já o nível do
PIB tinha alcançado o de 1940, antes, portanto, da entrada da URSS na Guerra.
O modelo económico e político mantém-se. Até porque a liderança pessoal de
Stalin dura até à sua morte em 1953 e é uma liderança, além de carismática, ditatorial. O
modelo é aquele que tinha caracterizado a industrialização e a formação das estruturas
político-económicas da URSS nos anos 30, a partir da colectivização, ou seja, um
modelo centralizado, estatal, baseado numa planificação rígida, que a partir de cima
determina os objectivos de produção ao nível das diversas unidades económicas. De
resto continuam a vigorar os planos quinquenais: o 4º Plano Quinquenal de 1946-50, o
5º de 1951 a 1955,etc.
Um modelo em que o aspecto ideológico é muito forte e, ligado a ele, um
voluntarismo e uma disciplina coactiva igualmente fortes. Nem por isso deixa de ser
participado, nem por isso deixa de corresponder ao sentimento, ao idealismo, à
mobilização voluntária também, de largas camadas da população.
360

De qualquer maneira, um sistema que tem como centro o fortalecimento das


estruturas económicas básicas, e não o consumo. Os níveis de consumo são reduzidos às
necessidades essenciais, o que em alguns domínios suscitava problemas graves que,
aliás, levarão muito tempo a ser resolvidos e que se pode dizer que nunca foram
completamente resolvidos. Como é o caso, por exemplo, em matéria de construção para
habitação. E nisso, em parte, combinaram-se elementos da tradição ideológica do
Estado soviético e de certo utopismo com este problema, isto é, a permanência da
Komunalka e das várias formas de habitação colectiva. Nos anos a seguir à Revolução,
nalguns casos tinham estado associadas a ideais utópicos de reconstrução comunitária
dos modos de vida, mas agora serviam para justificar simplesmente o facto de que
muitas vezes não havia habitação para todas as famílias, portanto metiam-se várias
famílias na mesma casa. Esse é um dos domínios do consumo em que as carências na
URSS foram mais acentuadas.
Com a morte do Stalin há alterações profundas e imediatas.
Desde logo no que diz respeito ao próprio aparelho repressivo, que diminuiu
drasticamente os famosos campos do Gulag. A população em regime prisional ou de
deportação reduziu para talvez um décimo do que era anteriormente, num espaço de
tempo curto. Mas, para além disso, há uma orientação geral no sentido de mais atenção
às carências da população e portanto uma reorientação da produção no sentido de ter
mais em conta as necessidades do consumidor.
Isto foi anunciado ainda antes de Khruschov se ter imposto como o líder
principal e foi continuado depois com o 6º e 7º Planos Quinquenais entre 1956 e 65,
durante o Governo de Khruschov, numa preocupação com o desenvolvimento das
indústrias ligeiras ou seja, de bens de consumo, e da agricultura. Mas não só. A grande
novidade da viragem da década de 50 para a década de 60, é o grande ênfase, o grande
investimento em todos os sentidos da palavra, no desenvolvimento técnico-científico
que se vai traduzir em êxitos que estão indissociavelmente ligados à época que foi
talvez a de maior prestígio da União Soviética e da própria ideia comunista, a nível
internacional.
Um dos mais espectaculares desses êxitos foi em 1957 o lançamento do Sputnik.
Sputnik significa em russo satélite. E foi o primeiro satélite artificial, um veículo posto
em órbita à volta da terra.
361

Ainda no mesmo ano, foi experimentado o lançamento dum ser vivo no espaço,
a cadela Laika. E, quatro anos depois, em 1961, o primeiro cosmonauta, Iuri Gagarin,
um piloto aviador que foi intensamente treinado ao longo de meses, fez a viagem à volta
da terra e conseguiu voltar a aterrar.
Estes êxitos, aliados aos níveis de crescimento rápidos que já referi, e à melhoria
sensível dos níveis de vida, geraram um momento muito interessante da história da
União Soviética, um momento que teve repercussões a nível mundial de todo o tipo, e
desde logo no movimento comunista mundial, nos Partidos Comunistas de todo o
mundo.
Já vimos, a propósito do XX Congresso do PCUS, que Khruschov em 1956 tinha
iniciado a destalinização, que foi um choque para os comunistas e simpatizantes
comunistas em todo o mundo, mas foi, ao mesmo tempo, também, uma promessa de
evolução.
E essa evolução concretizou-se em muitos aspectos da sociedade soviética e da
evolução do conjunto dos países do bloco de Leste porque, apesar da repressão aos
acontecimentos da Hungria, mesmo na Hungria houve reformas económicas e políticas
importantes e noutros países as crises foram resolvidas duma forma que, pelo menos
durante alguns anos, teve êxito, como foi o caso da Polónia, onde a crise não chegou a
assumir dimensões dramáticas.
Por outro lado, tudo isto era condicionado pela personalidade do Khruschov, que
era uma figura completamente diferente do Stalin. Ao passo que o Stalin era um homem
extremamente contido, prudente digamos, não dava um passo impensado, o Khruschov
era uma figura impulsiva, temperamental, há quem o compare com o Gorbatchov que
apareceu em 1985 e que vocês conhecem pelo menos da televisão. Havia uma grande
diferença: Khruschov foi na sua juventude operário e mineiro na Ucrânia e tinha toda a
sua vida e carreira ligada à história do comunismo na União Soviética. Foi um
participante na colectivização, teve também responsabilidades no período da Guerra e
era, portanto, um homem identificado ideologicamente com a causa da Revolução, os
objectivos revolucionários. E portanto a convicção no Comunismo como futuro, como
projecto de sociedade.
Lembro bem esse tempo. A década de sessenta foi uma das épocas em que o
movimento comunista voltou a ter projecção e a conquistar eleitorado em muitos países,
362

nomeadamente, entre a juventude. Isso também se reflectiu em Portugal, apesar das


dificuldades maiores de acesso à informação que, no entanto, não eram totais, pelo
menos para a juventude universitária.
É um período em que há esse tipo de grandes expectativas e recordo os
documentos que era possível conhecer, nomeadamente do XXII Congresso do PCUS,
que teve lugar em 1961. Exprimiam duma forma lírica, ou épica, extraordinárias
perspectivas de desenvolvimento para a sociedade soviética e, de certa maneira, como
termo de referência da solução duma série de problemas mundiais. Por esta altura, ou
pouco depois, o Khruschov anuncia a passagem ao comunismo no espaço de tempo de
20 anos. O comunismo, dentro da teoria marxista soviética, é uma etapa superior do
desenvolvimento social. A União Soviética nunca se intitulou de Estado comunista, mas
sim como Estado socialista. O comunismo era definido, desse ponto de vista teórico,
como o reino da abundância, uma situação de abundância tal que deixa de haver
necessidade do Estado, isto é, duma autoridade repressiva, porque se existe abundância
para todos a sociedade passa a poder autogerir-se. É evidente que depois a promessa de
comunismo que ele fazia tinha alguns condicionamentos, porque enquanto o Mundo
estiver dividido tem de haver Forças Armadas, tem de haver controlos, etc. De qualquer
maneira, isto aparecia como uma promessa extremamente audaciosa. Não eram só
promessas, era também um tipo de mobilização que se traduziu nalgumas iniciativas
concretas que confirmavam a realização possível desses objectivos.
Um dos aspectos que eram prioritários, em termos do desenvolvimento
soviético, era a agricultura.
E de facto é também nestes anos que se desenvolve o projecto chamado das
terras virgens, o cultivo de grandes extensões de território em regiões que até então
eram consideradas inutilizáveis para a agricultura, nomeadamente no Cazaquistão e na
Sibéria. Foi um episódio que em parte reatou com a experiência da colectivização dos
anos 30 e conseguiu alguns êxitos no que diz respeito ao alargamento dos terrenos
produtivos, portanto das áreas de exploração.
Mas, passados os efeitos desses primeiros anos, depois não se conseguiram
progressos semelhantes em relação àquilo que era essencial, que seria tornar as terras
produtivas continuamente. Alcançou-se esse objectivo de aumento extensivo, no
entanto, do ponto de vista das técnicas agrícolas, não se conseguiram progressos de
363

produtividade significativos. E, de facto, este impulso não resolveu duradouramente os


problemas crónicos da agricultura soviética que, aliás, se agravaram nas décadas
seguintes e fizeram com que a União Soviética fosse um país dependente em matéria
agrícola.
Khruschov gerou simpatias e houve toda uma geração que esteve empenhada
neste projecto. É certo que houve muita coisa que fracassou e que, nesse sentido, ele
pode ter acabado por ser visto como um vendedor de ilusões. Para além de que algumas
das suas concepções, e nomeadamente a reinterpretação da coexistência pacífica,
suscitaram reservas e resistências no aparelho do Partido. Em 1964, é afastado por uma
espécie de golpe interno no Politburo soviético.
Também os países da Europa de Leste registaram taxas de crescimento intenso,
mas o Comecon (o Mercado Comum da Europa de Leste) não alcançou a mesma
capacidade de integração da Comunidade Económica Europeia, no Ocidente, e desde
finais dos anos 60 as relações entre os vários países de Leste e os países capitalistas
começaram a crescer mais depressa do que as relações no interior do Comecon.
Portanto, os êxitos foram parcelares e, sobretudo com a entrada numa nova fase de
internacionalização da economia nos anos 70, as economias socialistas não têm
condições suficientemente competitivas e, a partir daí, tenderão nos anos 70 e 80 a
endividar-se crescentemente, o que vai depois gerar problemas muito sérios que fazem
parte já da crise do sistema nos anos 80.
Mesmo assim, este crescimento dos anos 50 e 60 traduziu-se em aumentos do
nível de vida. No final dos anos 60 o rendimento per capita nos países de Leste, ou seja,
nos países do Comecon, aproximava-se dos dois terços, ou um pouco abaixo, entre 60 e
66%, dos países da Europa Ocidental. Sendo que na Europa Ocidental havia
discrepâncias grandes. E também havia algumas discrepâncias importantes no Leste. A
RDA e a Checoslováquia eram os países com nível de vida mais elevado, ao passo que a
Albânia e a Roménia eram aqueles que tinham o nível de vida mais baixo.
Em todos eles porém, certo tipo de despesas sociais básicas, como as ligadas à
habitação e aos sistemas de educação e saúde, eram garantidas pelo Estado.
A habitação não era totalmente gratuita mas quase, e a instrução e a saúde eram
gratuitas e altamente desenvolvidas. Quer dizer, todos estes países alcançaram não só a
alfabetização - mesmo os mais atrasados fizeram a alfabetização muito rapidamente -,
364

como taxas de escolaridade elevadas para níveis de escolaridade elevados, de dez anos,
doze anos, tanto na URSS como nos países da Europa de Leste.

Vejamos agora o que é que se passava entretanto nos Estados Unidos, que
continuam a ser a potência hegemónica, embora tendendo a deixar de ser o único termo
de referência, a deixar de ter a distância absoluta que tinham em termos de
desenvolvimento, no final da Guerra.
Os êxitos soviéticos, nomeadamente os relacionados com a astronáutica, foram
encarados com preocupação nos Estados Unidos, porque o lançamento dos satélites
significava que a URSS dispunha de foguetões capazes de o fazerem e, se podiam
percorrer dezenas de milhares de quilómetros para pôr um satélite no espaço, também
podiam percorrer os 7 600 km entre Moscovo e Nova Iorque para transportar uma
bomba nuclear. Ou seja, a capacidade para lançar o Sputnik significava a disposição de
mísseis intercontinentais. Isso é o grande facto novo, estratégico - é a disponibilidade
dos mísseis intercontinentais pela URSS.
Isto significava portanto também que todos aqueles cuidados que os Estados
Unidos tinham tido de criar as diversas alianças militares, NATO, SEATO, Pacto de
Bagdad, etc., ficavam muito relativizados em termos da função que podia ter a
existência das bases militares nos países aliados.
E demonstravam que as declarações de Khruschov sobre a superioridade do
comunismo ou que o comunismo havia de vencer o capitalismo tinham alguma base em
que assentar.
A resposta a isto, numa primeira fase, é digamos de carácter optimista e através
dum personagem que ficou sem dúvida com uma aura na História do século XX, que foi
o John Fitzgerald Kennedy.
O John Kennedy (aparecendo muitas vezes com a sua atraente mulher,
Jacqueline) candidatou-se em 1960 às eleições presidenciais e venceu. Venceu por uma
margem pequena, mas venceu contra o Richard Nixon que tinha sido Vice-Presidente de
Eisenhower e que era um homem que nós aliás já vimos aqui num filme, participando
numa sessão do Comité de actividades anti-americanas. Ou seja, era um personagem
ligado ao maccartismo, às versões mais duras e primárias do anti-comunismo.
365

Kennedy, o candidato democrata, venceu com um discurso que combinava as


manifestações de intransigência com uma certa abertura de ideias. Que procurava
actualizar a tradição americana, o pioneirismo americano, no comprometimento dos
cidadãos dentro duma ideia de que é possível à América ser um farol de liberdade. Os
valores americanos como exemplo e estímulo da liberdade.
E, nesse sentido, ele reatou com algumas ideias do Roosevelt e teve até alguns
conselheiros que tinham estado associados à Administração Roosevelt. Nomeadamente
em relação à América Latina, onde se desenvolviam movimentos de contestação social
importantes.
A América Latina, mais do que é hoje, era no essencial o quintal das traseiras
dos Estados Unidos. Quer dizer, desde a 1ª metade do século XIX, que os Estados
Unidos, depois que enunciaram a Doutrina Monroe, achavam que a América para os
Americanos significava o conjunto da América, Norte, Centro e Sul, sob a hegemonia
dos Americanos do Norte, dos Estados Unidos da América.
Nos anos 50 houve uma crise política importante em relação com a Guatemala.
O Governo reformador, democraticamente eleito, da Guatemala, tinha feito uma
reforma agrária e nacionalizado a empresa americana United Fruit e foi derrubado
através duma intervenção da CIA. Foi um acontecimento que chocou a opinião, que
deixou mal vistos os EUA.
E de muito maior alcance foi a Revolução Cubana.
Cuba era uma espécie de estância turística e de jogo dos EUA. Cuba já tinha
uma história revolucionária complexa, desde os anos 30 em especial, mas em 1952 o
ex-sargento Baptista tinha-se imposto como ditador com toda a protecção americana.
Esse Governo foi derrubado pela guerrilha liderada por Fidel Castro e pelo Movimento
26 de Julho. A guerrilha revolucionária venceu em 1 de Janeiro de 1959.
O Movimento 26 de Julho não era comunista. Fidel Castro tinha lido o Jean-
Jacques Rousseau, o Bolívar, e sobretudo o José Martí, era um liberal no sentido
político, do individualismo liberal do século XIX, do liberalismo revolucionário, da
Revolução Francesa. Mas simplesmente tinha bem consciência do que era o domínio da
economia cubana e de como o acesso dos cubanos à cidadania passava por uma
Reforma Agrária. E, portanto, uma das primeiras medidas do Governo Revolucionário
foi a Reforma Agrária e a Reforma Agrária foi também atingir interesses americanos,
366

foi também suscitar resistências internas e em curto prazo Fidel Castro, que tinha sido
encarado com uma certa complacência, passou a ser visto como um inimigo a abater.
John Kennedy teve uma participação activa nestas tentativas de derrube do
Governo Revolucionário cubano e de Fidel Castro porque, poucas semanas depois de
ter tomado posse em 1961, dá luz verde a uma operação de invasão da CIA em
conjugação com os refugiados cubanos de Miami. É o episódio chamado da Baía dos
Porcos, uma invasão por mar, com apoio aéreo americano e bombardeamentos aéreos,
que foi derrotada. Foi um fiasco. Alguns dos invasores foram capturados e foi possível
demonstrar o envolvimento directo americano nesta tentativa violenta de derrube da
revolução cubana.
Kennedy tentou também lançar um programa reformador para a América Latina,
com o nome de Aliança para o Progresso, que previa a realização de reformas agrárias e
substanciais ajudas financeiras americanas aos governos da América do Sul. Na
verdade, este Programa não teve concretização prática porque o próprio Congresso
Americano reduziu muito as ajudas previstas e, sobretudo, as reformas agrárias foram
boicotadas pelos governos e pelas oligarquias latino-americanas.
No aspecto interno, Kennedy lançou um Programa de combate à pobreza e
promoção dos Direitos Cívicos da população negra. Algumas das leis propostas foram
recusadas no Congresso. Também neste aspecto, o programa foi menos concretizado do
que era prometido.
É nesta época que se regista o nascimento dum importante Movimento dos
Direitos Cívicos. Ainda durante o mandato de Kennedy, em Abril de 1963, teve lugar a
famosa marcha sobre Washington de 200 mil americanos, em defesa da igualdade de
direitos. E é realmente na década de sessenta que vão ser conseguidas algumas grandes
alterações em matéria de direitos cívicos da população negra.
Por outro lado Kennedy teve um discurso de negociação no plano internacional.
Ao mesmo tempo que aumentou o número de tropas no Vietnam, encarou a solução do
problema do Vietnam. O que fez com que ele suscitasse reacções de direita que
provavelmente têm a ver com o assassinato de que acabou por ser vítima em Novembro
de 1963 em Dallas, quando iniciava a campanha eleitoral para um segundo mandato.
Portanto terminou aí a carreira desse político, tinha 46 anos quando foi morto.
367

Lição 8: A coexistência pacífica. As crises de Berlim e de Cuba. A Igreja Católica


do Vaticano II à Teologia da Libertação. O conflito sino-soviético. A Guerra do
Vietname.

Na última aula falámos essencialmente sobre a evolução dos anos 50 e 60 na Europa


Ocidental e na Europa Oriental, incluindo a União Soviética, e também nos EUA, onde
vimos que a mudança da década de 50 para a década de 60 foi caracterizada pela
ascensão à presidência dos EUA de John Kennedy, uma figura com certas
características que não sei se, em rigor, se podem chamar carismáticas mas, de qualquer
maneira, de um determinado tipo de popularidade, e que acabou por se tornar
carismática pelas circunstâncias do seu assassinato, em 1963. Sem dúvida, esses três
anos da presidência do Kennedy marcaram uma época que, já vimos, nos EUA se
caracterizou, por um lado, pelo alcançar de um extremo dos níveis da prosperidade, da
grandeza e da hegemonia americana no mundo, todo o sentimento de superioridade
americana continuou a funcionar; por outro lado, por determinadas intenções de
inovação, de reforma, tanto no plano das relações internacionais como a nível interno,
nomeadamente no que dizia respeito às questões dos direitos cívicos dos negros e do
combate à pobreza que, de resto, ficaram mais pelas proclamações e intenções do que
por resultados efectivos. De qualquer maneira, esse período do Kennedy e o ambiente
de optimismo, que referi a esse propósito, é indissociável do conjunto do contexto
internacional e, por assim dizer, faz par com a União Soviética desses anos, da transição
dos anos 50 para os anos 60, que foram também caracterizados pela figura do líder
soviético dessa época, Nikita Khruschov. Khruschov morreu pacificamente, nos anos 70
na sua datcha97, mas também ele teve a sua liderança interrompida de uma forma súbita
e que quase coincide cronologicamente com o assassinato do Kennedy - Kennedy tinha
sido morto em Novembro de 1963, Khruschov foi demitido numa reunião do Comité
Central do Partido Comunista da URSS em Outubro de 1964. O mandato de Khruschov
como líder soviético correspondeu ao período do segundo mandato presidencial de
Eisenhower, à presidência de Kennedy e ao primeiro ano da presidência de Lyndon
Johnson. Os dois K são personagens que estão ligados a uma transição histórica, a meu

97
casa de campo, em russo.
368

ver importante e talvez hoje subestimada na maior parte dos relatos que se fazem da
época, que é a transição da guerra fria, propriamente dita, para o período da chamada
Détente ou coexistência pacífica que caracterizou as duas décadas seguintes e que,
apesar da continuação da corrida aos armamentos, se distingue do período da guerra fria
mais aguda. No entanto, este período de transição foi também marcado por duas das
maiores crises dos últimos 50 anos, que foram a Crise de Berlim em 1961 e, sobretudo,
a Crise de Cuba em 1962.
Voltando à política soviética que, como vimos, tinha consagrado, com o XX Congresso
do PCUS em 1956, a destalinização. O XX Congresso foi o congresso da denúncia de
Stalin no famoso relatório secreto, que logo foi publicado no ocidente, em primeiro
lugar no New York Times. O relatório é um documento que merece a pena ler-se e do
qual houve até edições em português na época porque, naturalmente, em Portugal e em
todos os países capitalistas, os governos tiveram interesse na divulgação deste
documento, embora se tratasse de um documento oficial soviético e, normalmente,
todas as publicações soviéticas em Portugal fossem, obviamente, proibidas. Mas esta
não, foi publicada. É um documento, apesar de tudo, mais complexo do que muitas
vezes se diz e não é apenas uma denúncia, é também a crítica dos erros e a atribuição de
crimes (alguns dos quais, aliás, erradamente, porque mais tarde se verificou que, quanto
ao famoso caso do assassinato do Kirov, acerca do qual no relatório é insinuada a
responsabilidade do Stalin, isso não é confirmado pela investigação histórica.) Há, de
facto, essa atribuição de erros e crimes mas, ao mesmo tempo, o avalizar e confirmar do
balanço histórico do socialismo e das mudanças realizadas no período do Stalin e o
reconhecimento do papel de Stalin nesse processo. De qualquer maneira, o que teve
impacto foi o aspecto negativo da denúncia e que constituiu um choque. Quanto ao
relatório oficial ao XX Congresso, que tinha sido apresentado publicamente pela mesma
altura, marcou o início da tese que ficou conhecida como da “coexistência pacífica”
entre regimes sociais diferentes, isto é, a negação da tese tradicional da
incompatibilidade entre os regimes socialista e capitalista à escala mundial e da
inevitabilidade da tendência do imperialismo para a guerra. A tese da coexistência
pacífica, pelo contrário, vem dizer que é possível a paz e que a consolidação do bloco
socialista é, em si mesma, uma vitória do socialismo, é um sintoma da superioridade
histórica e da tendência histórica para a superação do capitalismo e, portanto, o que há
369

que esperar é o desenvolvimento desse processo. Daí deriva também, embora a tese não
seja expressamente afirmada mas vai depois sendo difundida, vai tendo um processo
mais subterrâneo de penetração, a ideia de que não são inevitáveis as revoluções
violentas, portanto o processo da mudança social e o avanço do socialismo não assenta
tanto na força das revoluções como na demonstração da superioridade histórica do
sistema socialista. Ou seja, a tese da coexistência pacífica andou associada à ideia de
que os êxitos obtidos pelo regime soviético, nomeadamente no aspecto técnico-
científico ligado à exploração espacial, funcionariam como um atractivo e suscitariam
nos países capitalistas espontaneamente a pressão das populações no sentido de
transformações socialistas. Esta tese era, por um lado, enunciada no plano teórico, mas
andou a par de iniciativas diplomáticas no sentido de descongelar, pacificar as relações
internacionais, e um dos aspectos da política do Khruschov foi a preocupação dele em
realizar conferências internacionais, nas quais participou pessoalmente - ao contrário do
que era característico do Stalin que, durante o quarto de século em que foi o chefe
político, nunca saiu do território da União Soviética, a não ser para participar nas
conferências de Teerão e de Potsdam. Pelo contrário, Khruschov visitou a China, a
Jugoslávia (a visita à Jugoslávia teve um significado importante), a Índia, a Birmânia, o
Afeganistão, a Inglaterra e deslocou-se a Genebra, onde se realizou uma cimeira, a
primeira desde 1945, dos chefes de Estado e de Governo das quatro grandes potências.
Aí é de novo discutida a questão do tratado de paz com a Alemanha, que deveria regular
definitivamente o estatuto da Alemanha, questão sobre a qual não há acordo. De
qualquer maneira, esta conferência decorreu num clima de cordialidade e, nesse sentido,
já marca uma evolução em relação ao ambiente da guerra fria. Também, nesta altura,
em 1955, Adenauer, chefe do governo da Alemanha Ocidental, ou seja, da RFA, foi
recebido em Moscovo. Deu-se então o reconhecimento diplomático entre a União
Soviética e a RFA, o que é também um dado importante visto que até aí – e mesmo
depois - todos os Estados que reconheciam e tinham relações com a RDA não eram
reconhecidos pela RFA. Foi a primeira vez que a RFA aceitou fazer uma excepção a
essa regra e isto marcou o início de conversações com vista a uma solução que
implicava o reconhecimento dos poderes existentes de facto, o que, muito mais tarde,
acabaria por levar ao reconhecimento diplomático recíproco (embora com certas
limitações formais) dos dois Estados alemães. Também em 1955 se chegou a acordo
370

entre as grandes potências na admissão de novos membros na ONU, nomeadamente de


países vencidos na guerra como o Japão e a Itália e de países que eram vistos como
herdeiros do fascismo, ou seja, Portugal e Espanha, cuja admissão na ONU a União
Soviética vetava. Nesta altura houve acordo para serem admitidos e assim Portugal
entrou na ONU. Este conjunto de iniciativas teve, de certo modo, um culminar na
viagem do Khruschov aos EUA em 1959, a partir da qual a expressão “guerra fria”
começa a cair em desuso. Há imagens de declarações do Khruschov durante a visita aos
EUA em que ele é sempre muito enfático na propaganda que faz da superioridade do
comunismo, mas toda a visita decorre num tom de cordialidade. Anteriormente, durante
a visita à URSS do então vice-presidente americano Richard Nixon, quando Khruschov
e Nixon visitaram uma exposição industrial americana em Moscovo, ocorreu entre os
dois uma discussão que ficaria para a história com o nome de “debate da cozinha”
(kitchen debate): cada um deles defendia que o sistema do seu país era o mais capaz de
assegurar a satisfação das necessidades quotidianas dos seus cidadãos. Quando vê a
televisão, Khruschov diz que a União Soviética fará televisões ainda melhores.
No entanto, o problema da corrida aos armamentos e consequente crescimento contínuo
das despesas militares e do potencial de destruição acumulado continua a agravar-se e,
sobretudo, é nesta época que se começa a ter consciência, com a quantidade de armas
nucleares que existem, de que a possibilidade de um acidente se pode colocar em
qualquer momento. De resto, houve acidentes efectivos. Em 1966, no sul de Espanha,
sobre a praia de Palomares, colidiram no ar dois aviões da Força Aérea dos EUA, um
dos quais transportava quatro bombas nucleares. Uma das bombas caiu no mar sem
consequências, mas as outras três caíram em terra, verificando-se a detonação de
elementos não-nucleares, mesmo assim com efeitos de contaminação radioactiva num
raio de 2 km. Em 1968 verificou-se um acidente semelhante na Gronelândia.
Houve outros casos anteriores, como a explosão experimental no atol de Bikini no
Pacífico, em 1954, cujas radiações atingiram pescadores japoneses que estavam a mais
de 100 km de distância. No imediato não sofreram nada mas sofreram a prazo, porque
essas radiações tiveram efeitos mortais.
É uma época em que se continuam a experimentar as bombas de hidrogénio, mais
destrutivas do que a bomba atómica. Nomeadamente, a União Soviética produz, em
1961, uma bomba com uma capacidade explosiva correspondente a 4 600 vezes a
371

bomba de Hiroshima (a situação não é menos alucinante hoje em dia do que era nessa
época, aliás hoje é muito pior em termos quantitativos só que, nessa época, era uma
novidade ao passo que nós, de algum modo, já nos habituámos). As discussões em
termos de redução de armamento não produziram resultados concretos mas evoluiu-se,
a partir daqui, para uma teorização e uma negociação que marcou a passagem a uma
fase nova no domínio das relações internacionais e, nomeadamente, na maneira como se
encarava o problema da guerra atómica. Uma nova fase que vai assentar num princípio
que se torna de política geral, o princípio de destruição mútua assegurada. Quer dizer:
em vez de reduzir o armamento, o que se assegura é que o primeiro a disparar uma arma
nuclear tem a certeza de ser retribuído e, portanto, estamos descansados porque
ninguém dará o primeiro tiro. Este princípio tem a curiosidade de em inglês se escrever
Mutually Assured Destruction e passou a ser designado por MAD. É uma designação
perfeitamente expressiva da situação em que se entrou. Os acordos SALT I e II
celebrados nos últimos anos da década de 60 e nos primeiros da década de 70,
basearam-se nesta ideia.
No início da década de 60 vão-se viver, de facto, duas situações de crise que são as mais
graves desde o final da II Guerra Mundial. Aliás, o ano de 1960 começou por uma
pequena crise internacional relacionada com o caso do avião espião americano U2, que
voava a grandes altitudes e estava equipado de maneira a fazer fotografias sem ser
detectado pela artilharia anti-aérea. Acontece que o foi, e consequentemente abatido
pela artilharia soviética. O piloto fez-se ejectar com o pára-quedas, foi preso, julgado,
reconheceu inteiramente aquilo que estava a fazer e foi condenado a uma pena de
prisão. O governo soviético protestou energicamente e até, em consequência disso, o
Khruschov recusou-se a participar na Cimeira que estava prevista em Paris com o
presidente Eisenhover. Pouco depois, fez na ONU um discurso muito enérgico e muito
no estilo que o caracterizava - Khruschov era um personagem muito expansivo e
emocional e no meio do discurso, para reforçar a sua posição, não se bastou a bater com
a mão no tampo da mesa, puxou do sapato para sublinhar as declarações, o que teve
como consequência uma multa aplicada pela ONU à União Soviética por
comportamento impróprio.
O problema que se vai suscitar por esta altura, ou logo a seguir, é relacionado com a
questão de Berlim, que continua como cidade dividida. Berlim ficava dentro do
372

território da RDA - República Democrática Alemã ou Alemanha de Leste. Apesar da


divisão, havia circulação entre as duas partes de Berlim e, como havia circulação livre
entre Berlim Ocidental e a RFA, até 1961 quem queria sair da RDA, saía, bastava
passar de um lado de Berlim para o outro. O que acontece é que, desde a formação das
duas Alemanhas, os dois Estados tiveram processos de desenvolvimento diferentes e a
RFA (Alemanha Ocidental), com as ajudas Marshall e todo o tipo de créditos
americanos, conheceu rapidamente um processo de expansão económica, tinha-se
tornado já, desde os finais dos anos 50, num país rico e, portanto, as condições de vida
eram muito superiores às da Alemanha de Leste, de onde resultou uma transferência,
uma saída contínua de gente da RDA para a RFA, normalmente através de Berlim. A
RFA recusava-se a reconhecer, e recusou sempre, a soberania da RDA, porque a RFA
considerava-se o Estado de todos os alemães, o que significava que todos aqueles que
saíam da RDA eram acolhidos, e até protegidos o mais possível, pela RFA. Portanto,
esta saída dá-se em grandes números e a RDA perdeu, entre 1945 e 1960, mais de três
milhões e meio de cidadãos, o que significava um enfraquecimento económico
constante, tanto mais que a RDA tinha um sistema de ensino tão eficaz como o da
Alemanha Ocidental e, na maior parte dos casos, eram quadros que tinham sido
formados, nos quais tinha havido um investimento educacional importante, que saíam, o
que correspondia à perda desse investimento. Este era um dos problemas para a
reconstrução económica da RDA, além de que, também do ponto de vista político,
condicionava o funcionamento das instituições. Por exemplo, nas universidades, a
capacidade do partido comunista, o SED, de impor as suas directivas, estava sempre
condicionada pelo facto de que muitos dos professores, se os maçassem muito,
emigravam. Quer dizer, esta situação também se reflectia na relação de forças social,
política, cultural, na própria existência da RDA.
A União Soviética fez propostas de voltar a discutir uma solução para o estatuto de
Berlim Ocidental, essas propostas não tiveram consequência e, em Agosto de 1961, o
governo da RDA, com todo o apoio soviético, decide uma medida drástica que é a
construção de uma barreira que impede fisicamente a passagem de um lado para o outro
de Berlim. Simultaneamente são também tomadas medidas do género na fronteira da
RDA com a RFA. Foi isto a construção daquilo que ficou conhecido como o “Muro de
Berlim”, que, inicialmente, foi uma barreira de arame farpado, suficientemente eficaz
373

para impedir a grande maioria das passagens. Nos meses seguintes, foi de facto
construído um muro e depois dotado de todo o tipo de equipamentos eléctricos, etc., que
tornavam quase impossível a passagem. Isto causou, em primeiro lugar, um drama
humano que não deve ser subestimado, seja qual for a apreciação política que se faça
desta medida, porque famílias que estivessem separadas, e muitas que viviam de um
lado e de outro, ficaram definitivamente separadas. Obviamente, isto representava
também uma anulação da liberdade de escolha e de movimentação dos cidadãos da
RDA e suscitou uma grande vaga de protestos e indignação na Alemanha Ocidental.
Finalmente, em termos militares nada aconteceu, houve uma certa exibição de forças de
um lado e de outro, nomeadamente do lado ocidental que tinha, naturalmente, as suas
tropas e os seus tanques e, na noite de 27 de Outubro, chegaram a estar dois tanques em
frente um do outro em situação de ameaça mútua mas nenhum disparou, depois um
deles recuou e o incidente foi ultrapassado.
Em suma, a crise de Berlim foi superada pacificamente, a separação ente as duas
Alemanhas foi consolidada, mas o levantamento do muro teve um grande impacto
emocional e significava sempre um potencial de tensão e, eventualmente, de crise
internacional.
A questão de Cuba foi diferente e mais grave. Em Cuba, como já vimos, tinha havido
em 1959 a revolução conduzida pelo Movimento 26 de Julho que não era, à partida,
comunista. Inclusive a fase inicial dessa revolução até tinha sido encarada
positivamente por alguns círculos da política americana, mas as transformações internas
que se vão dar são relativamente rápidas, sobretudo a partir da reforma agrária que vai
atingir também interesses americanos e, sobretudo, suscitar movimentos de emigração
para Miami, a partir de onde os exilados permanentemente conspiram no sentido do
derrube do governo revolucionário. A transformação revolucionária em Cuba suscitou
uma hostilidade crescente do governo americano e, já na presidência do Kennedy, o
governo americano esteve comprometido na invasão da Baía dos Porcos, apoiada por
aviões dos EUA e com tropas milicianas constituídas por exilados de Miami. Esse
episódio de intervenção radicalizou a situação interna e justificou que, a partir daí, Cuba
visse o governo americano como inimigo, o que impulsiona a sua aproximação com a
União Soviética. Quer dizer, dá-se em Cuba, em 1961, uma evolução que é
simultaneamente doutrinária e de política internacional, as duas coisas andam neste
374

contexto estreitamente ligadas. É nesta altura que, pela primeira vez, Fidel Castro
declara que tem em vista o socialismo, que se identifica com a ideologia comunista, é
também nesta altura que são dados os primeiros passos para a construção de um partido
único de governo que, aliás, se chama Partido Unido da Revolução Socialista e que é já
uma fusão do Movimento 26 de Julho com o Directório revolucionário 13 de Março e
com o Partido Comunista Cubano, e daqui vai nascer o novo Partido Comunista
Cubano. Fidel Castro assume-se como marxista e, nesta sequência, a URSS fornece os
mais avançados meios de defesa militar, o que consiste em instalar em Cuba, a curta
distância da fronteira dos Estados Unidos, mísseis com capacidade nuclear. A União
Soviética, como já vimos, estava cercada por uma série de alianças, a SEATO, o
Tratado do Centro, as bases americanas na Turquia, por exemplo. Desta maneira, na
perspectiva soviética, a situação de reciprocidade ficava assegurada, ou seja, os EUA
passavam a contar com a ameaça dos mísseis instalados à sua porta. Obviamente a
operação foi feita secretamente, mas foi detectada por um avião espião americano e
causou naturalmente grande alarme no governo dos EUA. Houve militares que
defenderam que os EUA deveriam imediatamente proceder a um ataque e liquidar as
bases. Mas ninguém podia garantir que esse ataque não suscitasse, em represália, o
disparo de uma bomba nuclear. O Presidente Kennedy optou por uma solução diferente
que foi fazer um discurso muito enérgico e ameaçador e, ao mesmo tempo, decidir o
bloqueio a Cuba. Ou seja, os navios americanos passavam a controlar todos os barcos
que se dirigissem para Cuba e obrigá-los-iam a retroceder se transportassem qualquer
espécie de arma – o que aconteceu com um navio soviético que foi obrigado a voltar
para trás – e, simultaneamente, impunham a retirada imediata dos mísseis, sob a ameaça
de invasão e guerra atómica se este ultimato não fosse aceite. Portanto, durante uns dias
(mesmo em Portugal e apesar das deficiências da informação), tivemos a noção de um
perigo extraordinário iminente. Finalmente, Khruschov, i.e., a liderança soviética,
acabou por ceder. Negociou a retirada dos mísseis americanos da Turquia, que foi a
única contrapartida que os soviéticos obtiveram e mesmo essa não foi formulada
publicamente, foi uma negociação privada. Portanto, substancialmente, a posição
soviética saiu derrotada deste episódio. De qualquer maneira, os EUA comprometiam-
se também a não repetir a tentativa de invasão e a respeitar a existência de Cuba como
Estado independente.
375

A saída pacífica desta situação de crise foi acompanhada também pelo estabelecimento
de certos mecanismos de contacto entre os dois governos. Foi nessa altura que se
estabeleceu o chamado “telefone vermelho” entre os dois Presidentes. Na realidade,
tratava-se de uma ligação de telex que permitiria abordar rapidamente qualquer situação
de crise internacional.
Foi ainda em 1963, um ano depois, que se chegou de facto ao primeiro tratado
internacional de proibição de experiências nucleares na atmosfera. Continuaram a ser
possíveis as experiências subterrâneas, que aliás tiveram lugar, mas as experiências na
atmosfera, de que já se sabia que tinham consequências graves em termos de poluição,
foram proibidas, e este tratado foi depois assinado por todos os países à excepção da
França e da China (a França tornou-se potência nuclear em 1964 e a China em 1965 e,
tanto uma como a outra, justamente nesta altura, começam a representar posições
autónomas em relação, respectivamente, aos EUA e à URSS). Isto prende-se também
com o princípio do conflito sino-soviético, que nesta altura já estava em pleno
desenvolvimento e do qual falarei a seguir.
Outro aspecto ainda, importante na caracterização dos anos 60, é a evolução da Igreja
Católica que, praticamente desde a época da Revolução Francesa e, sobretudo, desde a
segunda metade do século XIX, tinha, quase sem descontinuidade, funcionado como um
símbolo de posições anti-democráticas conservadoras. Foi assim já no tempo da
Revolução Francesa, foi assim na segunda metade do século XIX em toda a série de
tomadas de posição do Papa contra as “ideias modernas”, o que ele chamava o
“cientismo” (a aceitação das verdades da ciência que se contrapunham à “verdade
revelada”, à tradição bíblica). Foi assim na recusa também, em geral, das ideias
democráticas e do individualismo, bem como do socialismo. Nomeadamente, o papado
de Pio XII, de 1939 até à sua morte em 1958, caracterizou-se por uma certa
ambiguidade em relação ao regime nazi e é acusado de não ter feito todo o possível no
aspecto da protecção dos judeus e da denúncia do Holocausto. Aliás , anteriormente,
ainda sob o pontificado de Pio XI, Eugenio Pacelli (o futuro Pio XII) era Núncio
Apostólico na Alemanha e nessa qualidade foi um dos autores da Concordata entre o
Vaticano e a governo nazi, logo em 1933.
No pós-guerra, a Igreja continuou a ter um papel muito activo na luta anti-comunista e
contra a esquerda em geral. Quando, por exemplo em 1948, em Itália se deu a
376

possibilidade de vitória eleitoral da Frente Popular, da aliança comunista-socialista,


como vimos no filme, a mobilização da Igreja foi decisiva para mobilizar os católicos
contra isso, agitando todo o tipo de espectros do ateísmo. A Igreja do Pio XII estava, de
uma maneira geral, associada a uma tradição anti-democrática. Na medida em que as
ideias democráticas emanadas do derrube dos fascismos na guerra se tinham expandido
e vivíamos um período de reformas sociais, a Igreja estava bastante conotada com os
remanescentes do fascismo, o salazarismo e o regime de Franco em Espanha. O
corporativismo tinha uma das suas fontes justamente na doutrina social da Igreja e os
únicos regimes que continuavam a declarar-se corporativos eram a Espanha de Franco e
o Estado Novo de Salazar.
Em relação a esta tradição, a eleição, a seguir à morte do Pio XII, do Papa João XXIII
(Angelo Roncalli) marcou, de facto, uma mudança do ambiente que teve efeitos
duradouros e que acompanham esta época que foi, no seu conjunto, uma época de
mudanças progressistas e de sentido democrático, pode-se dizer, a nível mundial.
Embora João XXIII só tenha vivido mais cinco anos depois da sua eleição, uma das
primeiras medidas que ele anunciou, logo depois de tomar posse, foi a convocação de
um novo Concílio, quer dizer, de um congresso dos bispos de toda a Igreja Católica,
concílio que se tinha realizado pela última vez em 1870, quase cem anos antes e num
contexto histórico completamente diferente. Veio a ser o Concílio Vaticano II, que
reuniu em 1962 mas se prolongou por três anos e teve, de facto, grandes consequências
no perfil da Igreja e no comportamento dos católicos, no nascimento de novas posições
e orientações políticas no mundo católico e, concretamente, também, nos partidos
católicos que nalguns países (nomeadamente em Itália o Partido Democrata-Cristão)
eram factores políticos de primeira importância. Em Itália a Democracia Cristã
continuou a ser, até quase ao final do século XX, o principal partido do governo, mas
mesmo nos países que não tinham partidos, ou onde os partidos eram proibidos, como
Portugal, existiam correntes desse tipo que sofreram uma evolução. O que caracterizou
tal evolução foi estar ligada à orientação dos documentos emanados do Papa nestes
anos, nomeadamente duas encíclicas que tiveram um grande impacto, uma, a Mater et
Magistra, sobre as questões sociais, as questões das classes trabalhadoras, e a outra,
mais ampla, sobre as questões políticas mundiais, intitulada Pacem in Terris (paz na
terra), encíclica esta que era dirigida de uma forma inusual a todos os homens de boa-
377

vontade. Isso marcava uma não exclusão de ninguém, quer dizer, uma disposição de
falar com os não-católicos. É nesta época que se iniciam acções da Igreja também no
sentido da conversação com outras confissões cristãs e não cristãs, e uma abertura que
se começa a dar, e que depois teve alguma expressão a nível intelectual, a um nível mais
difuso e não institucional, ao diálogo intelectual com os marxistas. Uma novidade de
certo impacto foi a audiência pessoal concedida pelo Papa João XXIII à filha e ao genro
de Khruschov, Alexei Adjubei, que, se bem me lembro, era então director do Izvestia,
um dos dois principais jornais soviéticos.
A Pacem in Terris referia também a importância da emancipação dos povos
colonizados, que é uma questão essencial dos anos 60, como vimos. Embora a morte do
Papa em 1963 marcasse, em certa medida, uma quebra deste espírito originário porque o
sucessor, Paulo VI, era um personagem mais discreto e mais diplomático, no entanto, o
essencial desta orientação foi prosseguida, por exemplo, no que diz respeito à reforma
litúrgica. Deve ser sublinhado que muitas das orientações do Vaticano II e de João
XXIII, a partir dos anos 80, com João Paulo II, e mais ainda com o actual Papa Bento
XVI, têm sido invertidas e, curiosamente, um dos últimos aspectos dessa inversão é a
reforma litúrgica. Quer dizer, a reforma litúrgica dos anos 60 era no sentido de
aproximar a religião da sensibilidade dos crentes e acabar com o latim na missa, por
exemplo, ao passo que hoje a tendência é, pelo contrário, de valorizar e de repor o
aspecto, formal, ritual e de autoridade da Igreja.
Não são só importantes as posições oficiais da Igreja. Paulo VI, o sucessor de João
XXIII, ainda fez uma encíclica também progressista sobre as questões do
subdesenvolvimento do Terceiro Mundo, a Populorum Progressio (“o Progresso dos
Povos”). Mas sobretudo, é a partir daqui que nasce uma corrente que nunca teve a
cobertura da Igreja oficial mas veio a gerar movimentos importantes de esquerda,
nomeadamente na América Latina, a “teologia da libertação”. Dá-me um certo prazer
referir isto num dia em que, segundo a notícia de que ainda só vi o título no jornal, um
bispo do Paraguai, Fernando Lugo, formado justamente na teologia da libertação, acaba
de ser eleito Presidente da República num país que viveu muitas décadas de regimes
ditatoriais reaccionários e que tem problemas sociais muito graves. A “teologia da
libertação” é um conjunto de movimentos de inspiração católica que vão procurar reatar
com a mensagem originária da Igreja primitiva e da Bíblia, no sentido de a interpretar
378

como mensagem de libertação contra a exploração económica e a dominação política.


Dessa corrente vão nascer até, na América Latina, alguns movimentos de guerrilha
revolucionária.
Um outro conflito ideológico que marcou os anos 60 e que teve consequências a longo
prazo para o movimento comunista internacional e para a evolução mundial, é o conflito
sino-soviético. A história das relações internacionais dos últimos 50 anos não pode
deixar de ter em conta o conflito sino-soviético, quer no que diz respeito às evoluções
que vão ter lugar na Rússia e na China, quer no que concerne às relações de cada um
desses países com a evolução, nomeadamente, do terceiro mundo. O ponto de partida,
em 1949 e no princípio dos anos 50, era o de uma identificação completa entre os dois
países, ou seja, à partida, a vitória da Revolução Chinesa em 1949 era mais um aspecto
do alargamento do bloco socialista e, apesar das divergências que historicamente tinham
oposto o Partido Comunista Chinês à Internacional Comunista e à URSS, tudo isto
parecia ultrapassado e parecia haver uma inteira coincidência. Ainda nos primeiros
tempos após a morte de Stalin, a primeira viagem que Khruschov faz ao estrangeiro é
justamente à China, e durante esta visita os dois países assinam acordos de cooperação
económica e técnica, incluindo no domínio nuclear. Mas não demorou muito tempo,
após esta visita, que começassem a manifestar-se divergências, nomeadamente a partir
do XX Congresso do Partido Comunista Soviético que coincidiu, também, com a
aproximação diplomática entre a URSS e a Jugoslávia. Quer dizer, a China viu desde o
primeiro momento com bastante reserva a crítica de Stalin nos termos em que foi feita
no XX Congresso. Considerou que essa crítica fazia o jogo do inimigo e via também no
mesmo sentido, não só como discutível, mas como uma capitulação, o facto de a União
Soviética ter aceite as posições de Tito. Como sabemos, o afastamento da Jugoslávia do
bloco soviético tinha-a levado à adopção de uma política de neutralidade no plano
internacional e, mesmo no plano de desenvolvimento interno, a uma distanciação do
modelo socialista da URSS e à elaboração de uma especificidade do seu modelo
económico. Em suma, o Partido Comunista da China continuava a ver a Jugoslávia
como tendo uma posição de colaboração e aproximação ao imperialismo e via com
maus olhos a normalização de relações e a aproximação soviética à Jugoslávia. Mas,
destas críticas pontuais, passou-se rapidamente para um enunciado de posições
diferentes sobre uma questão essencial e que era central em toda a abordagem do
379

Khruschov aos problemas da política internacional, ou seja, uma divergência sobre a


própria questão da guerra e da paz e uma crítica à tese da coexistência pacífica nos
termos em que Khruschov a defendia. A interpretação khruschoviana da coexistência
pacífica levava a uma atenuação do papel das revoluções na superação do capitalismo e
a um ênfase nas virtudes demonstrativas da superioridade do sistema socialista, o que
tinha como consequência uma preocupação crescente com o seu próprio reforço
económico e a consolidação do Estado soviético, em detrimento daquilo que os chineses
viam como a função revolucionária internacional do Estado soviético, enquanto
impulsionador das lutas e das transformações em todo o mundo. Quer dizer, segundo a
crítica chinesa, a posição soviética conduzia a um privilegiar dos aspectos do próprio
desenvolvimento económico da URSS, em detrimento da sua função política
revolucionária. E alguma coisa desta crítica foi expressa na intervenção de Mao Tsé-
Tung na Conferência de Moscovo de 1957, uma conferência reunida a propósito dos 40
anos da Revolução de Outubro, durante a qual Mao-Tsé-Tung exprimiu a ideia de que
não era a existência de armas atómicas que alterava a natureza da guerra e defendeu que
o movimento revolucionário e os países socialistas não se podiam deixar intimidar pela
ameaça atómica. Isto que, até aqui, era uma controvérsia relativamente abstracta,
começou a ligar-se a motivos de ressentimento mais concretos pouco tempo depois, a
propósito do conflito entre a China e a Índia acerca do Tibete. O Tibete tinha sofrido em
1958 uma crise relacionada com uma tentativa contra-revolucionária. Na sequência
disso, ou em relação com isso, havia um conflito entre a China e a Índia acerca de
fronteiras no Tibete. Nesse conflito a União Soviética, que tinha boas relações com a
Índia – sempre teve – recusou tomar posição e ofereceu-se como mediadora. Sobretudo
a partir da Conferência de Bandung, a URSS tinha como um dos pontos cardeais da sua
política o apoio aos Estados neutralistas do terceiro mundo, valorizando o facto de esses
Estados se recusarem a aderir a alianças militares, e defendia também a tese de que a
identificação das burguesias desses países com um caminho de desenvolvimento
autónomo as afastava da dominação imperialista. Ora isto foi visto de uma forma
negativa pela China, que esperava uma posição de solidariedade no conflito com a
Índia. Nesta sequência, em 1960, a URSS, por decisão do Khruschov, toma uma medida
que vai ser recebida de uma forma muito negativa pelos chineses e que causa, de facto,
uma perturbação grande, que é a retirada dos técnicos soviéticos na China. Quer dizer,
380

havia missões soviéticas de técnicos que estavam na China desde os acordos de


cooperação de 1954, eram milhares e, nesta fase, para a China, um país
subdesenvolvido, a sua partida constitui um abalo importante em termos das
perspectivas de desenvolvimento. Este é um dos factores que agudizam o conflito.
Aquilo que tinha começado por ser uma crítica ideológica acerca da maneira como o
problema da paz e da guerra era avaliado e uma crítica pontual acerca da questão de
Stalin e do seu papel na história do movimento comunista, evolui, a partir do princípio
dos anos 60, para um ataque bastante mais sistemático. Aliás, evolui também na forma
como se exprime, porque os primeiros textos chineses de crítica ideológica tinham
como alvo a evolução da Jugoslávia e depois, numa fase seguinte, eram ainda textos de
crítica ideológica dirigidas contra o camarada Togliatti. O camarada Togliatti era o líder
histórico do Partido Comunista Italiano que defendia, nomeadamente, a teoria das
reformas de estrutura, quer dizer, defendia a ideia de que o socialismo em Itália não
passava por uma revolução, mas sim por determinadas reformas estruturais que podiam
ser alcançadas sem ruptura das instituições, através do Parlamento. O Partido
Comunista da China publica um longo texto de crítica ideológica a esta tese, cheio de
citações do Marx e do Lenin que na verdade, por tabela, significava também pôr em
causa as perspectivas de Khruschov acerca da coexistência pacífica. Pouco depois,
alguns textos chineses de 63 e de 64 já são dirigidos expressamente contra a “camarilha
de Khruschov” e a linguagem vai assim, sucessivamente, subindo de tom.
A partir de 1965 desencadeia-se na China um movimento que põe a China de pernas
para o ar durante um período de cerca de uma dúzia de anos, que é a chamada “grande
revolução cultural proletária”. É um movimento que tem a directa inspiração de Mao-
Tsé-Tung que, no princípio dos anos 60, tinha visto também posta em causa a sua
liderança. Mao não era, nesta altura, o Presidente da República, o Presidente da
República era Liu Chao Chi que vai ser, justamente um dos alvos da Revolução
Cultural. E, justamente, nesse movimento, que é um movimento com acentuadíssimo
carácter ideológico, vão ser postas de novo as questões fundamentais da doutrina
marxista, da natureza da revolução, a questão de saber-se o que é prioritário, se é o
desenvolvimento técnico-material dos países socialistas ou a revolução das relações
sociais. A tese do Mao Tsé-Tung e do sector que dirige esta revolução cultural é a tese
da prioridade dos factores ideológicos, da transformação das consciências, etc. Nesse
381

quadro, radicaliza-se a crítica iniciada nos anos anteriores a Khruschov, ao mesmo


tempo que a revolução cultural é apresentada como a realização na China de uma
revolução social e ideológica que acompanha e que é, ao mesmo tempo, um farol de um
processo revolucionário mundial. Quer dizer, as teses chinesas não têm só a ver com as
relações com a URSS e a crítica às orientações soviéticas, nem têm apenas a ver com a
concepção da construção do socialismo na URSS, têm a ver também com a
interpretação da evolução mundial em curso desde a II Guerra mundial e, em especial, a
evolução mundial resultante das descolonizações, da formação de uma série de novos
países e do facto de que essas descolonizações tinham significado um desmantelamento
do quadro político-económico do imperialismo como ele estava tradicionalmente
organizado e, nesse sentido, eram vistas como um sintoma do avanço do movimento
revolucionário mundial. Há nestas teses chinesas a ideia de que o mundo atravessa de
novo um período revolucionário semelhante àquele que tinha sido iniciado com a
Revolução de Outubro de 1917 na Rússia e que poderá, agora, conduzir à transformação
do mundo no seu conjunto. Não vou agora prolongar este aspecto, mas vem a propósito
dizer que, de facto, nestes anos há discussões sobre o significado da descolonização, da
mudança de estrutura do mundo, sobre a questão de saber em que medida a
descolonização política significou, de facto, libertação e independência económica, e
estas discussões andam a par de algumas crises importantes no mundo, das quais a mais
importante é a guerra do Vietname que, justamente, conhece um agravamento a partir
de 1964.
Os chineses interpretaram a guerra do Vietname como um exemplo de revolução de um
país pobre e atrasado, contra a maior potência imperialista, e defenderam a ideia de que
esse exemplo era apenas parte e podia ser o ponto de partida de um conjunto de outros
movimentos de carácter revolucionário no mundo. Estas teses andam a par de uma
difusão, nos anos 60, da consciência dos problemas do subdesenvolvimento do terceiro
mundo, nomeadamente, o confronto com o facto de que a separação entre países ricos e
países pobres não tende a atenuar-se apesar dos altos ritmos de desenvolvimento
económico dos países ricos mas, pelo contrário, este crescimento se dá ao mesmo tempo
que se aprofunda a miséria nos países do terceiro mundo.
Efectivamente, esta ideia tem fundamento, como mostram as estatísticas incluídas no
livro de Scipione Guarraccino, que tenho continuado a seguir. Para dar apenas um
382

número bastante expressivo, ao passo que a situação da população mundial no princípio


do século XX, em 1900, podia ser arrumada aproximadamente na existência de 1/3 de
ricos para 2/3 de pobres, em 1960 essa proporção seria de 30% de ricos para 70% de
pobres e continuava – e continuou – a aprofundar-se, ao ponto de que é hoje de menos
de 20% de ricos para mais de 80% de pobres (números do ano 2000). Constata-se que
as independências, na maior parte dos casos, não alcançaram alterações significativas
neste aspecto e difundem-se as análises das razões estruturais da permanência destas
situações. A principal delas é o contraste entre a baixa produtividade da agricultura de
subsistência que ocupa a maioria da população mundial e os sectores modernos virados
para a exportação que, por sistema, continuaram a ser dominados pelas grandes
empresas multinacionais. Neste aspecto, a passagem à independência política não
alterou, na grande maioria dos casos, praticamente nada. Este controle das
multinacionais sobre o comércio de exportação significou uma ausência de interacção
entre as produções agrárias voltadas para a exportação, que são as mais lucrativas, e o
funcionamento do resto da economia dos países. Isto significa a acumulação de riqueza
que não entra no circuito do desenvolvimento interno dos países e, em geral, esteve
associado à existência de regimes de monocultura, quer dizer, na especialização da
produção agrícola ou mineira em determinados produtos, que causa uma enorme
dependência da flutuação dos preços nos mercados mundiais. Em alguns casos, mais de
80% do total das exportações dizem respeito a uma única cultura e a tendência geral, a
partir dos anos 50, foi de novo para a diminuição dos preços dos produtos agrícolas em
relação aos produtos industriais, portanto, o agravamento daquilo que ficou conhecido
como a troca desigual, entre os países subdesenvolvidos e os países capitalistas
evoluídos. Embora tenha havido algumas iniciativas no sentido da promoção do
desenvolvimento, por exemplo, no caso da Índia, com a difusão dos meios técnicos
tendentes ao aumento da produtividade, o que se verificou foi quase sempre que a
difusão desses meios beneficiava a grande propriedade e não a pequena. Portanto,
aquilo que seria indispensável, para sair deste círculo vicioso do subdesenvolvimento,
eram reformas agrárias. Mas estas eram, por sistema, recusadas pelos governos, pelas
classes dominantes e pela estrutura das relações entre os governos dos países e as
grandes potências. Na América Latina onde, sobretudo entre os anos 30 e os anos 50,
houve processos de desenvolvimento industrial tendentes à substituição de importações,
383

esses processos depararam com um impasse porque, em geral, centraram-se na


produção de bens de consumo e não de bens de produção, portanto, a partir de um certo
nível de desenvolvimento, o que fizeram foi acentuar a dependência em relação aos
países avançados produtores de meios de produção. No caso da América Latina, a
diminuição da parte da agricultura no conjunto da economia, a partir dos anos 60, em
vez de se traduzir no crescimento da indústria, foi traduzir-se no crescimento dos
serviços, do chamado “sector terciário” (entre parênteses, é também aquilo que se passa,
num contexto internacional diferente, em Portugal nas últimas décadas, quer dizer o
desaparecimento da agricultura não em benefício de outros sectores produtivos mas sim
traduzido no desenvolvimento do terciário, do sector bancário, dos serviços comerciais).
Isto resulta por seu turno na hipertrofia das capitais e das grandes cidades, o que gera
desequilíbrios demográficos que, no caso da América Latina, agravaram os problemas
de subsistência de largas camadas da população.
Esta questão do subdesenvolvimento e da permanência de relações económicas
desequilibradas entre os países do terceiro mundo e os países capitalistas avançados é
um dos fundamentos das posições revolucionárias que a China exprime e que, de outra
forma, Cuba, por exemplo, virá também a exprimir (o que ocasionará uma certa
distanciação em relação às orientações da União Soviética no final dos anos 60 e,
também no caso de Cuba, um princípio de conflito ideológico). Simplesmente Cuba
estava dependente da União Soviética de uma maneira que a China não estava e nunca
pôde (embora tenha havido algumas aflorações disso) constituir-se como um terceiro
pólo dos países comunistas. Esse esboço de dissidência cubana não chegou a avançar
muito e, nos anos 70, foi reabsorvido. Isto para dizer que as teses chinesas fizeram parte
de um conjunto de posições e até de ideologias diversas, com incidência no movimento
comunista, mas não só, com incidência também no surgimento, nomeadamente na
América Latina, de movimentos revolucionários que se referiam sempre, de uma forma
ou de outra, ao marxismo, mas nalguns dos quais, por exemplo, a “teologia da
libertação” também já influía.
O grande foco destas expectativas ou esperanças de revolução, ou de um novo ciclo de
revoluções, situou-se na Ásia e, em particular, no Vietname, embora deva fazer-se
também referência ao caso de um país já aqui várias vezes mencionado que, em 1965,
sofreu uma contra-revolução, mas chegou a ser por um momento uma hipótese de
384

revolução, que foi a Indonésia. A Indonésia, liderada por Sukarno, um dos líderes
neutralistas, registou uma evolução à esquerda e o Sukarno aproximou-se do Partido
Comunista indonésio o qual tinha posições pró-chinesas. Neste processo, foi tentada
uma revolução comunista na Indonésia. Hoje parece demonstrado que sectores da
direita procuraram precipitar esse processo, o que deu oportunidade a um golpe de
Estado sangrento que pôs termo à ameaça de revolução socialista. O golpe de Estado
teve como consequência a marginalização do Sukarno, ele não foi imediatamente
demitido mas, na prática foi “congelado”, passado dois anos foi demitido e morreu
pouco depois. Quem, entretanto, se consolidou no poder foi o General Suharto que foi
uma espécie de ditador fascista (“fascista” usando o termo no sentido amplo), uma
ditadura terrorista de direita que reintegrou a Indonésia completamente na esfera de
influência americana e que foi, aliás, uma contra-revolução muito violenta porque
depois se repercutiu numa espécie de guerra civil que fez pelo menos meio milhão de
mortos.
O grande processo revolucionário destes anos é a guerra do Vietname. Em 1954, a
República Democrática do Vietname do Norte tinha obtido uma primeira vitória contra
o colonialismo francês na Conferência de Genebra, ao ficar assente a divisão do
Vietname pelo paralelo 17 e com o reconhecimento da República Democrática do
Vietname a norte desse paralelo. É o chamado regime de Hanoi, liderado por Ho Chi
Minh. A sul, ficara estabelecido que haveria, num prazo de um ano, eleições controladas
internacionalmente, a partir das quais se prepararia a reunificação. Na verdade, no sul,
não houve eleições, permaneceu durante algum tempo o governo do imperador Bao Dai,
que não realizou as eleições. Os americanos que já na última fase da presença francesa
eram cada vez mais o apoio militar e económico de Bao Dai, acabaram por depô-lo
fizeram-no substituir por um homem mais directamente ligado à dependência
americana, Ngo Dinh Diem. O que existe de facto, a partir de 1954, no Vietname do
Sul, é uma ditadura protegida pelos americanos que vai deparar com uma crescente
oposição, não só da Frente de Libertação Nacional apoiada pelo governo do Vietname
do Norte mas, também, dos monges budistas que não o aceitam. Na prática, aquilo que
fica a existir no Vietname do Sul é uma ditadura protegida pelos americanos que fazem
e desfazem os governos como entendem, aliás, em 1961 decidem liquidar política e
fisicamente Ngo Dinh Diem e instaurar uma outra junta militar. Na prática, a oposição
385

armada da Frente de Libertação Nacional (que os americanos designam por Vietcong,


termo que ganhou um curso generalizado) consegue ganhar uma crescente implantação
à qual, por seu turno, os americanos respondem com um crescente envolvimento, o
envio de “conselheiros” que, na altura do assassinato do Kennedy, em 1963, já eram 16
mil (a palavra “conselheiro” é, obviamente, eufemística, é de facto já um exército de
certa dimensão). Parece que, nos últimos tempos da presidência de Kennedy, ele próprio
tomou consciência da inviabilidade da continuação do crescimento do envolvimento
americano e encarava equacionar a questão de outra maneira. Não há muitos elementos
sobre isso, mas há quem pense que uma das causas do assassinato do Kennedy foi
justamente essa hipótese de ele se orientar para a procura de solução pacífica. Seja
como for, o certo é que, com a morte dele, a orientação do novo presidente, Lyndon
Johnson, é no sentido contrário, isto é, é no sentido de travar a guerra do Vietname
como um combate decisivo. É nesse aspecto, em certa medida, um regresso à teoria do
dominó do tempo da guerra fria, à ideia de que o Vietname do Sul tem de ser defendido
sob pena de arrastar o colapso da influência ocidental na Ásia. Isto vai desembocar
numa escalada, nomeadamente, a partir de 1964, com os famosos incidentes do Golfo
do Tonquim. Navios americanos estacionados em águas internacionais, ao largo do
Vietname do Norte, declararam que tinham sido atingidos por torpedos da marinha do
Vietname do Norte. A origem do primeiro incidente, a 2 de Agosto, é ainda hoje
controversa. Mas o segundo incidente, dia 4, ficou para a história como “incidente-
fantasma”: o que houve foi uma percepção de ataque ocasionada por deficiência do
radar do navio americano, mas nenhum ataque real, o que aliás foi rapidamente
apurado. A pseudo-agressão norte-vietnamita serviu porém para o Presidente Johnson se
dirigir ao Congresso americano e obter poderes para uma intervenção militar directa no
Sueste asiático. Foi o princípio de uma sucessão de bombardeamentos extremamente
destrutivos e que, na intenção americana, deviam liquidar de vez as bases da existência
da FLN porque, naturalmente, a FLN do Vietname do Sul tinha como retaguarda e
apoio o governo do Vietname do Norte. Mas não conseguiram o objectivo, a luta da
FLN continuou e, em 1968, conseguiram êxitos extraordinariamente importantes, com a
famosa ofensiva do Tet (“tet” é a estação das chuvas no Vietname). Por alturas de
Fevereiro os guerrilheiros do Vietcong penetraram em Saigão e inclusivamente na
Embaixada americana, fizeram um assalto à embaixada e causaram baixas
386

consideráveis. Entretanto, havia as baixas quotidianas de militares americanos e


desenvolve-se nos EUA um movimento de oposição à guerra. De resto essa é uma das
fontes do movimento estudantil que vai nascer nos EUA e depois ter uma enorme
expressão na Europa e que caracteriza os últimos anos da década de 60, ou seja, é tudo o
que está ligado ao Maio de 68 francês que foi um fenómeno internacional. Essa
movimentação exprime uma resistência do seio da própria população americana,
traduzida, nomeadamente, no número crescente de desertores e refractários. Perante
isto, Lyndon Johnson, ao mesmo tempo que decide não se candidatar a um segundo
mandato, resolve aceitar abrir negociações em Paris. Isto coincidiu praticamente com o
final do mandato do Johnson, de maneira que o grosso das negociações de Paris vai já
ter lugar sob a presidência do Richard Nixon, o candidato republicano, de direita, que
tinha como conselheiro, e mais tarde Secretário de Estado, um famoso analista político e
teórico das relações internacionais, chamado Henry Kissinger. Vai ser o Kissinger quem
conduz no terreno essas negociações de Paris, que se prolongaram por quatro anos, e
que eram uma tentativa dos EUA de saírem da guerra preservando a sua influência na
região e a existência de um governo apoiado pelos americanos e identificado com as
posições ocidentais no Vietname do Sul. Era a tentativa, simultaneamente, de
vietnamizar a guerra, isto é, de conseguir que o Vietname do Sul estivesse em condições
de se defender, de resistir à tomada do poder pela FLN. As negociações foram muito
demoradas e no intervalo a guerra, entre 1969 e 1973, em vez de diminuir alargou-se ao
conjunto da Indochina, envolveu completamente o Cambodja e o Laos que eram,
anteriormente, países neutrais e também aí se desenvolveram movimentos
revolucionários, nesta fase aliados do FLN vietnamita. Os americanos retomaram os
bombardeamentos sobre o Vietname do Norte mas tudo isto foi incapaz de conter
efectivamente o avanço do FLN e, finalmente, em 1973, os EUA concluíram um acordo
que estabelecia a retirada das tropas americanas ao mesmo tempo que se mantinha o
governo do Vietname do Sul e se deveriam realizar a seguir eleições controladas
internacionalmente. Na prática, o que aconteceu foi que, uma vez que os americanos
retiraram, o governo do Vietname do Sul não teve condições de resistir muito mais
tempo, mesmo assim aguentou a guerra durante mais um ano meio mas, em Abril de
1975, a tropas da FNL entraram em Saigão e na sequência dá-se a reunificação do
Vietname. É uma guerra conduzida por uma força militar de um partido comunista, uma
387

guerra em que um país do terceiro mundo, pobre, subdesenvolvido, sem armas


nucleares, venceu a maior potência da história. Foi uma guerra extremamente sangrenta
e custosa e que marca o que Nixon tinha previsto quando assumiu a presidência, o
princípio de um declínio da hegemonia americana no mundo, declínio que depois, cerca
de vinte anos depois, pareceu poder ser redimido ou invertido quando os EUA
venceram a guerra fria mas é de qualquer maneira um problema que hoje continua de
pé, o saber se há ou não um declínio americano e quais são as perspectivas da
hegemonia americana no século XXI. Aparentemente não são muitas e, sob esse ponto
de vista, a derrota no Vietname marca uma derrota histórica e uma viragem importante
na posição dos EUA no mundo.
388

Lição 9. O terceiro mundo. O Médio Oriente: a “guerra dos seis dias”. A América
latina e o impacto da revolução cubana. O Brasil nos anos 60. Guevara e o
guevarismo. O Chile de Allende. A experiência militar no Peru. O regresso de
Perón na Argentina.

Vimos em aulas anteriores que os anos 60 tiveram como um dos fenómenos centrais as
descolonizações, nuns casos violentas noutros pacíficas mas, em muitos casos, gerando
situações que se cruzavam com os problemas postos pela guerra fria, pela bipolarização
do mundo. E vimos também que isso, nos anos 60, coincidiu com uma teorização da
parte da União Soviética, que nessa época estava centrada na política de coexistência
pacífica mas, ao mesmo tempo, via os processos abertos com a descolonização, com as
independências políticas, como a formação de um conjunto de tendências que
objectivamente se colocavam em oposição ao imperialismo e poderiam situar-se numa
mudança evolutiva para o socialismo. A URSS valorizou muito o fenómeno emergente
a partir da Conferência de Bandung que foi o neutralismo e, por isso, teve uma política
não só de boas relações mas de apoio a Estados que eram Estados das burguesias
nacionais, como era o governo do Partido do Congresso de Nehru na Índia ou o caso do
Egipto de Nasser, que representavam políticas voltadas para a industrialização,
modernização e independência, sem prejuízo da liberdade de investimento, da
existência de um capitalismo nacional nos seus países. A União Soviética, de uma
maneira geral, encarou de uma maneira positiva e em posição de apoio essas
experiências. No entanto, vimos também que, a partir do final dos anos 50 e princípio
dos anos 60, se desenha e aprofunda rapidamente uma divisão entre os dois grandes
países do bloco socialista que eram a União Soviética e a China, e essa oposição vai ter
como ponto de partida, por um lado, as questões ligadas à destalinização, isto é, à
própria posição do Khruschov e da direcção khruschoviana em relação ao passado
389

próximo do movimento comunista, a todo o período de Stalin. Mas, por outro lado, a
China receia que a política soviética de coexistência pacífica se traduza na tendência
para uma espécie de condomínio do mundo entre as duas super-potências e para uma
diminuição da solidariedade da União Soviética com a própria China. Por exemplo, a
posição neutral da União Soviética no conflito entre a China e a Índia foi uma coisa que
causou bastante amargor à China. O mesmo aconteceu com a posição da União
Soviética contra a atitude chinesa em relação à recuperação de Taiwan, contra qualquer
iniciativa da China comunista em relação a Taiwan. E, a partir daqui, em relação com os
desenvolvimentos da descolonização e a evolução nos novos países, a partir de meados
dos anos 60, ao mesmo tempo que o conflito sino-soviético no plano doutrinário se
agudizou e conduziu a uma ruptura, vai-se definindo a oposição da China à política da
coexistência pacífica. A China recusa a assinatura do tratado de não proliferação das
armas nucleares de 1963 e, para além disso, é crescentemente crítica do apoio às
burguesias nacionais, por exemplo do Egipto ou da Índia, e tende a teorizar a ideia de
que o importante é o facto de que, apesar da descolonização, se mantém uma situação
de exploração dos povos do terceiro mundo e que, em resposta a ela, há possibilidades e
há grandes perspectivas de lutas dos povos do terceiro mundo contra os países
imperialistas e, em primeiro lugar, contra os EUA. A China teoriza, nos meados dos
anos 60, de certo modo à imagem e semelhança daquilo que era a própria experiência da
Revolução Chinesa em que a guerra civil revolucionária tinha avançado da conquista
dos campos para a conquista das cidades, a ideia de que o futuro socialista do mundo
reside na mobilização dos campos contra as cidades, quer dizer, neste caso não dentro
de um país, mas do conjunto dos campos que é o terceiro mundo (no sentido de que os
países do terceiro mundo são massivamente agrários), contra as metrópoles urbanas que
estão, nessa época, essencialmente nos países capitalistas. Isto é concomitante com uma
crise e um novo processo revolucionário que se vai desenvolver na China a partir dos
meados dos anos 60, que é a chamada grande revolução cultural proletária, a revolução
cultural, que abre uma crise prolongada no interior da sociedade e da política chinesa. É
certo que, na segunda metade dos anos 60, se desenvolveram alguns conflitos em países
do terceiro mundo que pareceram justificar as teses chinesas. Do principal deles já
falámos, foi a Guerra do Vietname que, justamente a partir de 1964, conheceu uma
escalada impressionante, quer em termos de intensificação dos bombardeamentos
390

americanos, quer quanto à intensificação da guerra de libertação, das acções da FLN


(Vietcong) que acabaram por forçar os EUA às negociações e acabaram por ser
vitoriosas, em 1973, quando os americanos saíram do Vietname.
Um outro foco de tensões internacionais que, a partir dos meados dos anos 60, ganhou
uma importância crescente e mobilizou as atenções da esquerda em todo o mundo, foi o
conflito israelo-árabe. O conflito israelo-árabe, que se tinha iniciado com a guerra da
fundação de Israel em 1948 e, desde então, gerou um problema dramático com a
questão dos refugiados, teve um segundo episódio importante por ocasião da crise do
Suez, em 1956, quando a Inglaterra e a França, com a colaboração israelita, tentaram
impedir a nacionalização do Canal do Suez por Nasser e falharam nessa tentativa. No
entanto, esse episódio agudizou o conflito, na medida em que o Egipto teve um êxito ao
vencer a crise do Suez. Como já vimos, a figura do Nasser representou um pólo de
referência para a causa da unidade dos árabes identificada com certas posições de
esquerda e com o apoio que a União Soviética também lhes prestou. Nessa base, Nasser
considerou a certa altura que havia condições para travar uma nova guerra e resolver o
problema da existência de Israel. Deve dizer-se que, nessa época, a existência de Israel
era ainda um facto relativamente recente e que os árabes não a reconheciam nem
aceitavam de maneira nenhuma. Quer dizer, era uma situação diferente da que há hoje
em dia em que, embora permaneça um conflito muito agudo, pelo menos a maior parte
dos governos árabes e uma parte até das forças palestinianas reconhece a existência de
Israel. Nos anos 60 não, a ideia era que a própria criação do Estado de Israel tinha sido
uma violência, e que essa violência devia ser anulada por uma iniciativa militar. É neste
contexto que, em 1967, Nasser exige e obtém a retirada das tropas da ONU da fronteira
do Sinai, que asseguravam a manutenção da paz entre o Egipto e Israel, e bloqueia o
golfo de Acaba, via de comunicação de Israel para o Mar Vermelho.
391

(Fonte: Wikipédia)

Os israelitas interpretaram esta medida como preparativo de guerra e tomaram a


iniciativa daquilo a que hoje se chama “guerra preemptiva”, ou seja, tomaram eles
próprios a iniciativa de uma acção militar, desencadeando uma invasão que ocupou
muito rapidamente a Faixa de Gaza e o deserto do Sinai e avançou em direcção ao golfo
do Suez, ao mesmo tempo que desenvolveram também as operações a norte, ocupando
o planalto do Golan na fronteira com a Síria, quer dizer, uma parte do território sírio
com importância estratégica. Ocuparam ainda a Cisjordânia, que pertencia à Jordânia, e
Jerusalém leste. Anteriormente a cidade de Jerusalém estava dividida e, a partir daí,
ficou totalmente ocupada pelo Estado israelita. É sobretudo a partir daqui que o conflito
israelo-árabe se desenha como um elemento estratégico central nas relações entre os
EUA e a URSS e, mais globalmente, entre o bloco ocidental e o bloco socialista porque,
na fase anterior, na altura da formação de Israel, esta tinha sido apoiada muito
generalizadamente, inclusive pela URSS e pelos países socialistas (a URSS foi aliás o
primeiro país do mundo a reconhecer Israel). Mesmo na altura do conflito do Suez, em
1956, também a URSS e os EUA de certa maneira convergiram na oposição à iniciativa
inglesa e francesa. Agora não, a partir daqui, o conflito local reflecte-se imediatamente
na oposição entre as duas grandes potências. No entanto, os EUA reconheceram que não
podiam ir longe demais ou deixar que as coisas fossem longe demais e, por isso, o
Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução no sentido do cessar-fogo e da
obrigação de os israelitas retirarem dos territórios ocupados – resolução que hoje ainda
está por cumprir. Apesar de que, entretanto, a situação entre Israel e o Egipto foi
392

composta, no que diz respeito ao planalto do Golan até hoje não foi alterada. Esta
guerra, que foi ganha por Israel e ficou conhecida como “Guerra dos Seis Dias”, foi um
triunfo militar rápido mas, a longo prazo, agravou muitíssimo a situação, em primeiro
lugar no que diz respeito à situação dos refugiados palestinianos e, depois, no que diz
respeito às relações no Médio Oriente em geral. Entre o final dos anos 60 e o princípio
dos anos 70, o conflito nesta área foi um dos problemas principais das relações
internacionais (de que voltaremos a falar a propósito da guerra do Yom Kippur de
1973). Por outro lado, é a partir daqui que se intensifica a acção dos movimentos
palestinianos. A própria OLP só tinha sido constituída recentemente, em 1964 sob a
direcção de Yasser Arafat. Com vários tipos de relacionamento com a OLP, nasceram
também outros agrupamentos, que realizaram acções de grande impacto mediático,
nomeadamente desvios de aviões israelitas e, em 1972, o rapto dos atletas israelitas nos
Jogos Olímpicos de Munique, que acabaram todos mortos.
Uma outra região do mundo que nos anos 60 e princípios dos anos 70 sofreu uma série
de conturbações relacionadas com o conflito leste-oeste, foi a América Latina. A
situação nos anos 60 registou uma série de conflitos dos quais convém dizer alguma
coisa, e o primeiro dado a ter presente é que, da mesma maneira que, no século XIX, a
Inglaterra era a potência hegemónica na América do Sul, no século XX os EUA viram-
se sempre como uma potência tutelar em relação à América Central e à América do Sul,
situação essa que era tanto mais facilitada pela instabilidade da maior parte dos regimes
desses países e, nomeadamente, pela persistência do caciquismo e do militarismo.
Sobretudo, em relação à América Central, é conhecido que os Estados Unidos a
encararam como o “quintal das traseiras”, quer dizer, como uma zona atrasada mas com
grande importância estratégica e em relação à qual se reservavam um direito de controlo
estrito, o que chegou a ter, aliás, expressões quase inacreditáveis, como é o caso da
chamada “Emenda Platt” de 1901. Platt era um senador americano que conseguiu fazer
introduzir na própria Constituição cubana – Cuba tinha nascido três anos antes, em
1898, em consequência da guerra da independência com a Espanha - o direito de
intervenção dos Estados Unidos para a defesa da independência, da boa ordem e da
propriedade em Cuba. Este artigo esteve em vigor até 1934, só nessa altura, na
sequência da revolução ocorrida no ano anterior, é que foi alterado. A maior parte dos
países latino-americanos caracterizava-se também por relações de fortíssima
393

dependência económica dos EUA, derivadas do facto de serem monoprodutores


agrícolas. Nalguns casos, toda a actividade ligada a essa produção principal, desde as
grandes plantações até ao comércio externo, até às actividades industriais relacionadas,
estavam nas mãos de grandes companhias americanas. Daí que, ao falar-se muitas
vezes, por extensão, em “repúblicas das bananas”, tal expressão é um símbolo de
dependência e, consequentemente, de manipulação da política de um país por uma
potência estrangeira. No sentido próprio, a questão das bananas colocou-se de uma
forma bastante ostensiva e chocante na Guatemala, que tinha justamente a banana como
produção principal, na posse da United Fruit Company, uma empresa americana.
Acontece que a Guatemala, depois de uma sucessão de governos ditatoriais, no
princípio dos anos 50 teve um governo democrático constitucional que pretendeu
formular a sua própria política independente, também no plano económico, e
nacionalizar a United Fruit Company. O resultado disso foi um golpe da CIA, em 1954,
e o derrube do militar que, nessa fase, era o líder do país, Jacob Arbenz. Esse caso da
Guatemala foi, de certa maneira, paradigmático, mas situações semelhantes existiram
em Cuba, na República Dominicana, no Haiti, na Nicarágua. Todos estes são casos de
países em que havia uma produção principal de que a economia no seu conjunto estava
fortemente dependente, no caso de Cuba o açúcar. Em todos estes casos, também se
verifica o controlo do poder por um ditador que, regra geral, preside a uma dinastia em
que estão ligados os interesses políticos e económicos e abunda a corrupção. Foi o caso,
como disse, de Cuba, governada por Fulgencio Baptista que, em 1933, tinha participado
como sargento num golpe democrático de esquerda mas que depois se entronizou em
1940 como Presidente da República, exercendo o mandato até 1944. Essa fase dos anos
40 foi ainda relativamente normal, mas ele regressou ao poder através de um novo golpe
de Estado em 1952. É sobretudo nesta fase que se torna um instrumento dos americanos
e Cuba tem uma situação, por um lado, de estrita dependência económica e, por outro,
de corrupção, ao ponto de ter ficado conhecida como o bordel dos EUA. Como
sabemos, a ditadura foi derrubada em 1959 pela guerrilha conduzida por Fidel Castro e
Batista exilou-se na Madeira e no Estoril (destinos aliás habituais de ditadores e
monarcas derrubados).
A República Dominicana foi dominada pelo governo ditatorial de Trujillo, durante mais
de trinta anos, entre 1930 e 1961; o Haiti teve como ditadores Duvalier pai, depois
394

Duvalier filho, durante também praticamente trinta anos, entre 1957 e 1986, e a
Nicarágua teve no poder a ditadura do Anastasio Somoza durante vinte anos, de 1936 a
1956, que foi sucedido pelos filhos ainda por 23 anos, até 1979, altura em que se dá a
revolução sandinista na Nicarágua que, aliás, ganhou também uma orientação socialista
mas acabou por não durar muito tempo.
Além destes casos, também a Guatemala, o Salvador e as Honduras tiveram ditaduras
militares. O Panamá, como sabem, tinha sido uma criação americana em 1903 com o
objectivo de controlar o Canal do Panamá. No princípio dos anos 50 desenvolveu-se um
movimento pela nacionalização do canal, que foi cortado por uma intervenção
americana em 1951.
O caso do México é, de certa maneira, particular no conjunto da América Latina, para já
porque é um grande país em dimensão e do ponto de vista demográfico e depois,
sobretudo, porque foi uma das grandes revoluções sociais do século XX, a Revolução
Mexicana de 1911-1917. Revolução cuja génese é anterior aos movimentos
revolucionários europeus do século XX e à própria revolução russa de 1917, e que não
teve características propriamente socialistas, porque o que estava em causa eram,
sobretudo, questões agrárias e numa perspectiva de redistribuição da propriedade. Mas
revolução democrática que foi vitoriosa e de algum modo se veio a cruzar, no plano
internacional, com o impacto da Revolução Russa, e que imprimiu um desenvolvimento
democrático ao México das décadas seguintes. Nomeadamente nos anos 30, na época
dos governos de Frente Popular em França, em Espanha e no Chile, o governo
mexicano do presidente Lázaro Cárdenas, embora não tendo oficialmente essa
designação, pode integrar-se na mesma categoria, tendo realizado uma reforma agrária e
a nacionalização do petróleo. Foi praticamente o único governo, além da URSS, que
apoiou a Espanha Republicana durante a Guerra Civil, com possibilidades limitadas
mas dentro dessas possibilidades em termos eficazes.
Os maiores países da América do Sul são o Brasil e a Argentina e também vale a pena
dizer alguma coisa sobre o que aí se passa nos anos 30 e 40 porque é a época de dois
regimes que tiveram uma grande projecção na história desses países, e mesmo a nível
internacional, e que são casos de certa maneira complexos que, sem dúvida,
contribuíram para a modernização das sociedades respectivas no que diz respeito à
integração dos trabalhadores na política e no acesso a determinadas conquistas sociais
395

mas que, ao mesmo tempo, foram governos de tipo ditatorial e muito influenciados
pelas experiências dos fascismos.
Vimos que os fascismos europeus nasceram como movimentos de classe média mas
foram rapidamente canalizados e manipulados pelo grande capital contra o movimento
operário e contra o socialismo, ou seja, a natureza de classe dos fascismos europeus, em
termos do tipo de poder que estabilizaram, deixa pouca margem para dúvidas.
O caso da Argentina e do Brasil (estou a falar em concreto dos governos de Getúlio
Vargas no Brasil entre 1930 e 1945 e, depois, numa segunda fase entre 1950 e 1954, e
do governo de Juan Péron na Argentina entre 1946 e 1955) é mais complexo. A ditadura
de Getúlio Vargas, que nasceu de uma revolução, a revolução de 1930, e só se instaurou
como ditadura em 1934, deu origem a um regime que, curiosamente, se chamava
“Estado Novo” – a mesma expressão do salazarismo português – e nessa época era
caracterizada pelos comunistas como fascismo, mas hoje a historiografia brasileira não
interpreta esse período como fascismo. O que caracterizou estas ditaduras,
nomeadamente a do Getúlio Vargas, foi uma preocupação nacionalista e de
industrialização, segundo o modelo conhecido como import- substitution (modelo de
substituição de importações), tendente a reduzir a dependência externa. Este modelo foi
eficaz até certo ponto, favoreceu a urbanização, o desenvolvimento de indústrias
nacionais e das classes médias urbanas e, tanto no caso do Brasil como no da Argentina,
esteve ligado a um apoio do Estado aos sindicalismos. Um sindicalismo que é
dependente do Estado, e que nesse sentido é controlado, mas que, efectivamente,
assegurou conquistas sociais e económicas importantes. Nesse sentido, em contraste
com aquilo que aconteceu nos fascismos europeus, embora de algum modo
correspondesse àquilo que era a ideologia de algumas alas esquerdas nos fascismos
europeus. Este modelo de import-substitution teve também os seus limites, porque
propiciou a formação de pequenas e médias empresas ligadas à produção de bens de
consumo, mas não à de meios de produção. No aspecto de equipamentos e máquinas, a
dependência manteve-se e daí que, numa segunda fase, os mecanismos da dependência
fossem ressuscitados. Este modelo da substituição de importações permitiu o
desenvolvimento das classes médias urbanas e do mercado correspondente a essas
classes mas, na medida em que não foi acompanhado de reformas agrárias, a grande
maioria da população continuou excluída do desenvolvimento. De qualquer maneira, é
396

certo que o Getúlio Vargas conseguiu uma efectiva popularidade em largos sectores da
população trabalhadora, nomeadamente, ele esteve também na origem da formação de
um partido chamado “trabalhista”, que tinha uma influência sindical importante. Sendo
certo que, numa primeira fase do seu governo, até à Guerra, o getulismo esteve muito
ligado à influência das ditaduras europeias e até certo ponto conotado com o fascismo,
depois de 1945 as coisas evoluíram. O Brasil, tal como todos os países latino-
americanos existentes na época, participou, a partir de 1943, na II Guerra Mundial ao
lado dos EUA, houve tropas brasileiras que desembarcaram na Europa tal como as
tropas americanas e que participaram na libertação da Europa. Portanto, depois da II
Guerra Mundial, uma orientação de tipo fascista estava excluída. Getúlio Vargas esteve
afastado do poder durante cinco anos, embora na Presidência estivesse um homem da
confiança dele. Em 1951 reapareceu como Presidente eleito democraticamente e é,
sobretudo, nesse segundo mandato que ele vai definir mais claramente uma orientação
independentista do ponto de vista económico, que acabará por colocá-lo em contradição
com os interesses instalados, o que o leva ao suicídio em 1954.
Aquilo que vos estive a dizer é, de certo modo, um prefácio, porque do que estamos a
falar hoje é da situação dos anos 60 e 70 e, no caso da América Latina, do impacto da
Revolução Cubana. Desde a época de Jânio Quadros (Presidente do Brasil entre Janeiro
e Agosto de 1961) que a Revolução Cubana causou um grande entusiasmo no Brasil e
foi um factor da agudização das lutas políticas – aliás a renúncia de Jânio Quadros ao
mandato veio na sequência das oposições desencadeadas por ter atribuído uma alta
condecoração a Che Guevara. O governo de João Goulart, que lhe sucedeu, acentuou a
orientação à esquerda, com o estabelecimento de relações diplomáticas com a URSS, o
projecto de nacionalização do petróleo e o lançamento de uma reforma agrária, mas
acabou por ser derrubado em 1964 por um golpe militar.
Também na República Dominicana, após o fim da ditadura de Trujillo, o Presidente
eleito em 1962, Juan Bosch, empreendeu medidas de reforma agrária e outras
favoráveis aos trabalhadores, mas foi deposto no ano seguinte por um golpe militar
apoiado pelos EUA. Embora tenha podido concorrer de novo nas eleições de 1966 (na
sequência de nova revolta militar), acabou por perder contra o candidato conservador.
Como escreve S. Guarraccino, “a rigidez crescente do poder das oligarquias, a fraca
incidência das reformas agrárias, o explodir da pressão demográfica, a falência das
397

estratégias de desenvolvimento típicas dos governos populistas, estavam a conduzir


naqueles anos toda a área latino-americana para uma acesa turbulência social”.98
Outro factor que vai influir na evolução da América do Sul nestes anos é uma tendencial
separação, mesmo um princípio de conflito, entre Cuba e a União Soviética. Cuba
nunca alinhou com as posições chinesas e por outro lado, até no plano económico,
militar e em todos os aspectos, Cuba estava, de certo modo, dependente e estreitamente
ligada à URSS. No entanto, ao passo que a URSS equacionava os problemas do ponto
de vista das relações entre as superpotências, sempre subordinadas à ideia da
coexistência pacífica, a liderança cubana, que tinha feito a revolução muito
recentemente – a revolução tinha sido em 1959 e convém não esquecer que foi uma
revolução feita por jovens, uma revolução que resultou da iniciativa voluntarista de um
pequeno grupo como era o Movimento de 26 de Julho – estava animada de um espírito
revolucionário muito diferente da mentalidade com que a liderança soviética
interpretava o mundo. Nestes anos, e nomeadamente na sequência do fracasso da
tentativa reformadora de Goulart e da instauração da ditadura militar brasileira, o
fracasso também do Juan Bosch em São Domingos, os cubanos vão animar o
surgimento de tendências que surgem na esquerda latino-americana e que normalmente
vão conduzir a dissidências dos partidos comunistas ou, noutros casos, simplesmente ao
surgimento de novos grupos revolucionários que pretendem inspirar-se no exemplo da
Revolução Cubana. Essa inspiração não fica apenas no plano das ideias mas é também
concretamente animada pelo facto de que, em 1965, o Che Guevara - que era, a par de
Fidel Castro, a figura mais carismática da Revolução Cubana - considera que já
desempenhou o seu papel no que diz respeito a Cuba, considera que o que está em causa
é um processo revolucionário mundial (ele, por esses anos, redigiu um panfleto que teve
grande difusão intitulado “Criemos um, dois, três, muitos Vietnames”). Não ficou pela
redacção de panfletos, saiu de Cuba e participou ainda em 1965 num movimento de
guerrilha no Congo contra o governo de Mobutu. A propósito, vale a pena sublinhar que
alguns dos movimentos que aparentemente fracassaram ou não tiveram resultados
nenhuns nesta fase, na realidade viriam a ter prolongamento e até a ter êxito a longo
prazo. No caso concreto do Congo, ele esteve em contacto e trabalhou com Laurent

98
Op. Cit., p. 184.
398

Désiré Kabila que, de facto, mais de trinta anos depois veio a vencer a luta contra o
Mobutu, aliás o líder actual da República do Congo Brazzaville é o filho daquele,
Joseph Kabila. De qualquer maneira, na altura, em 1965, essa guerrilha do Congo foi
descoberta e liquidada e o Che Guevara voltou para a América Latina onde tentou, a
partir da Bolívia, estabelecer um foco de guerrilha. Esta ideia do “foco” era inspirada na
experiência cubana e gerou uma teoria revolucionária que teve a sua voga nessa época e
que fracassou completamente, que era a teoria do foquismo. O foquismo era a ideia de
que, dadas as condições de miséria das populações camponesas e o potencial
revolucionário que essa situação significava, a iniciativa armada de um pequeno grupo
que fosse capaz de, numa determinada área, defender as populações e realizar ataques
contra o exército, podia ser o princípio de um movimento que se poderia expandir
rapidamente. Esta teoria foi objecto de muitas discussões que também envolveram
meios da esquerda intelectual europeia. Ficou como símbolo disso um jovem francês,
filho de boas famílias e escritor que, em anos recentes, foi conselheiro do presidente
francês Miterrand, chamado Régis Debray. O Régis Debray esteve na Bolívia com o
Che Guevara, e escreveu com base nisso um livro que suscitou grande debate na época
chamado Revolução na Revolução e era justamente a teorização do foquismo. A
tentativa fracassou na Bolívia e fracassou praticamente por toda a parte, porque também
se estabeleceram, baseadas nesta intenção, guerrilhas na Venezuela, no Uruguai assim
como na Colômbia – mas na Colômbia tinha uma história própria e que ainda hoje tem
continuidade, que são as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Até
mesmo no Brasil, onde as condições geográficas eram muito adversas e o movimento
teve uma expressão absolutamente minoritária, houve tentativas do género. No
essencial, isto fracassou, no entanto marcou uma época e fez Cuba situar-se, nesse final
dos anos 60, como pólo de referência internacional para um conjunto de movimentos
diversos. Em Cuba chegou a realizar-se em 1966 a Conferência Tricontinental da qual
saiu a criação de uma “Organização de Solidariedade dos Povos da África, Ásia e
América Latina” que não teve continuidade mas que, na altura, representava em
intenção uma nova Internacional revolucionária, como já não existia desde a dissolução
da Internacional Comunista em 1943. Quanto ao Che Guevara, como sabem, acabou por
ser morto na Bolívia em 1967.
399

No entanto, não foi esta a única expressão de movimentos no sentido de transformação


política e social da América Latina. Em alguns países, pela convergência de sectores de
burguesia democrática anti-imperialista com elementos no seio do próprio exército,
surgem ou ressurgem movimentos de esquerda que vão ter a sua importância. Um deles
é, em 1968, o governo militar do Peru, que vem a ser dirigido pelo Coronel (depois,
General) Alvarado. Muitos dos militares que iniciaram este governo reformador, pouco
tempo antes, tinham estado envolvidos na repressão à guerrilha no Peru. No entanto, o
governo militar do Alvarado iniciou medidas de reforma agrária, nacionalização das
minas e da banca e, durante meia dúzia de anos, constituiu uma espécie de modelo
militar de tendência socialista, que não deixou de suscitar atenção em Portugal. Em
certas esferas, nas vésperas do 25 de Abril já se discutia como um possível modelo para
Portugal e depois, naturalmente, durante o PREC, alguns dos militares tinham como
uma das suas referências esta experiência. O que aconteceu é que justamente coincidiu
com a revolução portuguesa, o esgotamento e finalmente a liquidação da experiência
revolucionária do Peru.
O caso do governo militar revolucionário do Peru foi contemporâneo da tentativa
socialista de Salvador Allende no Chile, que teve a particularidade de ser um dos raros
casos de formação de governo de esquerda marxista através de uma vitória eleitoral. O
Salvador Allende era um líder histórico do Partido Socialista do Chile – aqui está um
dos casos, embora os partidos socialistas da América do Sul fossem diferentes dos
europeus mas, de qualquer maneira, aqui está um dos casos em que se pode ver como
nos anos 70 havia ainda partidos socialistas com algumas ideias e algumas lideranças de
carácter socialista, coisa que hoje parece muito estranha. O Salvador Allende era um
líder histórico que já por três vezes se tinha candidatado a Presidente da República, na
última, em 1964, tinha perdido contra o democrata-cristão Eduardo Frei. Em 1970
ganhou mas por uma margem muito pequena, e sem a maioria absoluta do eleitorado. A
direita e centro, nomeadamente a democracia-cristã que estava nesta fase numa posição
centrista (é uma época em que a influência das ideias do Vaticano II, as ideias de
esquerda no meio católico também se fizeram sentir no Chile), aceitaram o acesso do
Allende ao poder e o Senado confirmou a sua eleição. Mas Allende tinha na sua base o
apoio dos partidos da esquerda, socialista e comunista e também da extrema-esquerda
de matriz cubana, que tem uma grande influência. Com o desenvolvimento do processo,
400

vai-se assistir a uma radicalização dos dois lados, quer dizer, os primeiros tempos são
relativamente pacíficos e de grande entusiasmo, a nacionalização das minas do cobre,
que era um dos aspectos fundamentais do programa de Allende, é realizada, uma
nacionalização com indemnizações que se passa no quadro da legalidade. Mas a
continuação do processo de mobilização social suscitou, nomeadamente no que diz
respeito à ideia da reforma agrária, enormes inquietações e a oposição dos EUA,
nomeadamente da empresa multinacional ITT (International Telephone & Telegraph),
que tinha posições de grande influência na economia chilena, e se empenhou a fundo
contra o governo do Allende. Os contrastes na sociedade chilena eram grandes, por isso,
as posições radicais dos grupos de esquerda, nomeadamente do MIR (Movimento de
Esquerda Revolucionária), tinham algum apoio, mas suscitaram, por seu turno, receios
nos sectores pequeno-burgueses e, a partir de certa altura, os boicotes económicos
conjugados com a acção destabilizadora da CIA - isto hoje é perfeitamente conhecido e
assumido pela própria CIA - conseguiram mobilizar as classes médias, nomeadamente
através de uma tremenda greve dos transportes rodoviários, que desencadeou uma crise
de abastecimentos. A inflação já estava em desenvolvimento e agravou-se e, com isso,
embora numa primeira fase o governo de Allende tenha conseguido reforçar o seu apoio
social - nas eleições municipais de 1971 o conjunto dos partidos da Unidad Popular
ultrapassou os 50% -, esse apoio foi perdido. Nesta situação de crise, tornam-se
decisivas as Forças Armadas. O exército chileno é um exército de formação alemã,
tecnicamente bem preparado mas com forte espírito de casta – ao mesmo tempo, com
algumas tradições de legalismo, que acabaram por funcionar contra o Presidente, porque
ele se convenceu de que era possível garantir a fidelidade do exército através de uma
política estritamente legalista. O legalismo era um traço muito marcado da
personalidade e do comportamento político do Allende, mas não foi correspondido
pelos chefes militares. O general Pinochet, que tinha tido a confiança de Allende e fora
nomeado Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, veio a ser o principal
organizador do golpe de Setembro de 1973 e tornou-se o chefe de uma ditadura
terrorista que matou muita gente e obrigou ao exílio de muita gente também, e liquidou
duradouramente qualquer hipótese de evolução socialista no Chile. Pinochet foi
Presidente da República até 1990 e, mesmo depois de sair do poder, continuou a ser
Comandante em chefe e depois Senador. A influência da ditadura, em alguns aspectos,
401

mantém-se até hoje, embora o regime constitucional tenha sido recuperado


progressivamente a partir de 1990.
Pertence também ao contexto da viragem à esquerda do princípio dos anos 70 a eleição
de um candidato peronista na Argentina, Héctor Cámpora, um apoiante fiel do Perón. A
Argentina tinha vivido desde a queda do Perón, em 1955, uma grande instabilidade,
com vários golpes militares, o último em 1976, também guerrilhas, uma guerrilha
trotskista, outra guerrilha peronista. Finalmente, nas eleições de 1973, Hector Cámpora
ganha (candidata-se ele porque Juan Perón, que estava exilado, não podia candidatar-se)
mas, logo que Héctor Cámpora vence as eleições, Perón é autorizado a regressar e são
realizadas novas eleições, de maneira que é eleito como Presidente e este mandato
marca uma viragem à esquerda da situação da Argentina, que foi continuada pela vice-
presidente, a segunda mulher dele, Isabel Perón, quando ele morre em 1974. Ela
continuou até 1976, mas acabou por ser derrubada por um golpe militar que instaurou
uma ditadura terrorista que durou até 1982.
402

Lição 10: Dos movimentos de protesto na América ao Maio de 68. O conflito sino-
soviético e a revolução cultural na China. Das negociações SALT à Conferência de
Helsínquia. O conflito israelo-árabe: a guerra do Yom Kippur.

Vimos que, pelos meados dos anos 60, do ponto de vista social e económico, se tinham
atingido níveis de desenvolvimento que permitiram, tanto no ocidente capitalista como
nos países de leste, uma relativa prosperidade que apontava para uma tendência de
estabilidade no plano social contrastante com aquilo que era a Europa do imediato pós-
guerra. No entanto, é nessa época que vai, de uma forma que na altura parece súbita,
surgir um movimento de contestação ideológica que ganha uma vasta dimensão social e
política, tendo no seu centro os acontecimentos do Maio de 68. Foi, sem dúvida, uma
surpresa para toda a gente, mesmo se hoje, de um ponto de vista de reconstrução
histórica, não é difícil concluir que o movimento não foi tão súbito quanto parecia e
que, em vários países, havia tendências e acontecimentos que de algum modo o
prenunciavam. Mas apareceu na altura como súbito. É frequentemente referido que o
jornal “Le Monde” (na França dos anos 60 o órgão de informação mais influente),
justamente umas semanas antes de eclodirem os acontecimentos de Nanterre, tinha
como título de um artigo, com um certo destaque, “la France s’ennuie”, ou seja, “a
França aborrece-se”. Uma descrição da situação e do estado de espírito dominante que
contrasta absolutamente com aquilo que era a atmosfera pouco tempo depois. Também
no plano das relações internacionais, superada a grave crise de Cuba e tendo-se iniciado
a coexistência pacífica e os primeiros acordos em matéria nuclear, parecia que tudo se
encaminhava para aquilo que alguns chamaram o “condomínio soviético-americano do
mundo” e a sensação de que os povos tinham sido “expropriados” da política por esse
condomínio é então muito difundida. Mas os anos 60 são também os dos maiores
desenvolvimentos da guerra do Vietname e vamos ver que, com a emergência da China,
403

de facto, muito rapidamente nos anos 70 tal “condomínio” e a aparência de estabilidade


que lhe era inerente vão ser postos em causa.
Começando pela questão dos movimentos de protesto nos EUA e na Europa, vou
apenas fazer uma referência breve para chamar a atenção para que, embora o principal
impacto dos movimentos estudantis tenha sido na Europa, a origem situou-se nos EUA
e não é dissociável de movimentos de protesto, nomeadamente em torno da questão
racial, que aí se desenvolveram. Sobretudo durante a presidência de Lyndon Johnson,
tinham sido publicadas algumas leis de direitos civis importantes que consagravam a
igualdade racial, mas acontece que essas leis estavam desfasadas daquilo que eram os
problemas económico-sociais dos negros na América dos anos 60, sobretudo nas
regiões mais industrializadas que eram as do norte e da Califórnia, onde o problema que
se punha não era de direitos cívicos, mas sim da situação social dos negros. Vão-se
desenvolver, na segunda metade dos anos 60, algumas revoltas violentas, começando
pela revolta de Los Angeles de 1965 que depois se estende a Detroit. O movimento
pacífico de direitos cívicos, liderado por Martin Luther King, apesar da sua influência,
tem como concorrência já outros movimentos de natureza mais violenta e com carácter
de contestação social radical, como é o Black Power e o grupo chamado das Panteras
Negras, dirigido por Malcolm X. A questão racial e da contestação negra é uma das que
marcam os meados dos anos 60 nos EUA. Por outro lado, nas Universidades que, em
parte, reflectem também esta questão da contestação à discriminação racial, o factor que
vai ser mais impulsionador da contestação é a oposição à Guerra do Vietname que,
sobretudo a partir de 1964, absorve efectivos crescentes do exército americano. Trata-
se, nesta época, de um exército assente no serviço militar obrigatório e não de um
exército profissional, como é hoje. Há assim um recrutamento crescente de jovens
universitários e isso suscita resistências e combina-se com uma influência ideológica do
marxismo nas universidades que vai, nos EUA, politizar o movimento estudantil e, em
primeiro lugar, o movimento pacifista. O movimento de oposição à guerra realiza, em
1967, manifestações importantes em Nova Iorque e em Washington e, na Primavera de
1968, aliás, em coincidência cronológica com o assassinato de Martin Luther King, dá-
se uma série de ocupações nas universidades americanas. É só depois disto que se dá a
extensão dos movimentos estudantis à Europa. Não é a França a pioneira, mas sim a
Alemanha. Na Universidade Livre de Berlim Ocidental, em 1968, Rudi Dutschke, um
404

exilado da RDA, dirige a “Liga estudantil socialista alemã” (com a sigla SDS,
correspondente ao nome em alemão Sozialistischer Deutscher Studentenbund e
coincidente com a do famoso movimento Students for a Democratic Society criado
anteriormente nos Estados Unidos). A SDS alemã (como aliás a americana) era já um
movimento geral de contestação dos métodos de ensino, da autoridade universitária e
simultaneamente de luta política anti-capitalista.
O caso que acabou por ter uma repercussão maior e por depois gerar uma série de
movimentos de impacto, pode dizer-se, universal, o movimento que teve nomeadamente
mais impacto em Portugal, foi o da França a partir de Maio, iniciando-se num problema
absolutamente localizado mas que tem a ver com um dos aspectos que marcaram mais o
conjunto do Maio de 68, que é a contestação da moral dominante, nomeadamente no
que diz respeito às relações entre os sexos. O protesto gerou-se inicialmente em torno da
proibição de visita da residência universitária das raparigas a partir das 10h da noite. Foi
o motivo inicial da contestação, que se estendeu rapidamente e que, nos meses
seguintes, pôs em causa a autoridade universitária em geral, pôs em causa muitas coisas
que eram consideradas princípios básicos, nomeadamente nesse aspecto moral das
relações de família. Mas o mais importante é que esta contestação esteve associada
desde início, como aliás também acontecia no caso americano, a uma crítica político-
social, a uma crítica do capitalismo, a uma influência da tradição ideológica
revolucionária, por um lado do marxismo, por outro do anarquismo que, desde a guerra
civil de Espanha, praticamente tinha desaparecido como facto social influente e como
organização. O movimento de 68, nomeadamente em França, suscita uma espécie de
renascimento das doutrinas anarquistas até com repercussão na investigação histórica,
quer dizer, na difusão do conhecimento dos teóricos históricos do anarquismo, de
Proudhon, Bakunine, Malatesta, etc., e também uma influência do marxismo e do
marxismo-leninismo, portanto do comunismo. No que diz respeito ao comunismo, as
teorias e as orientações que vão ganhar difusão são as ligadas às posições chinesas, quer
dizer, esta é uma época em que o conflito sino-soviético já estava em pleno
desenvolvimento, em que as posições soviéticas e da generalidade dos partidos
comunistas ocidentais aparecem ligadas à teoria da coexistência pacífica e a propostas
que eram descritas como reformistas, ao passo que a China em 1968 é a China que está
em plena Revolução Cultural e que, ao mesmo tempo, é a defensora da insurreição geral
405

dos povos, nomeadamente do terceiro mundo, contra as metrópoles capitalistas. É,


sobretudo, essa versão do comunismo que vai penetrar no movimento estudantil francês
e na generalidade dos movimentos estudantis desta época. Naturalmente, a partir do
momento em que este movimento ganha uma certa dimensão e com este carácter de
crítica social e política, ligada às ideologias históricas da esquerda, põe-se o problema
de saber em que medida se pode tornar um movimento revolucionário, isto é, em que
medida é que essas ideias podem ganhar eficácia e projecção junto de camadas sociais
mais amplas e traduzir-se em efeitos políticos. E de facto sem que, aparentemente, as
estruturas organizadas do movimento sindical ou do partido comunista tenham tido um
papel iniciador, o movimento operário francês, nomeadamente os bastiões das grandes
oficinas metalúrgicas da ceinture rouge, da periferia vermelha de Paris, vão reassumir a
contestação. Gera-se então na França, com centro em Paris mas com carácter nacional, o
maior movimento grevista e de ocupação de fábricas que alguma vez teve lugar na
história de França ou, pelo menos, o maior desde o tempo da Frente Popular de 1936.
Ao passo que, em 1936, a crise económica e o carácter dramático da situação
internacional da época o explicam facilmente, aqui este movimento foi absolutamente
surpreendente, porque ocorria numa situação de prosperidade relativa que abrangia
mesmo uma grande parte da classe operária. Abriu-se, durante um curto período, uma
crise política geral, que chegou a fazer pensar numa hipótese de revolução. Houve
várias noites de combates de barricadas, com lançamento de cocktails Molotov a que a
polícia respondia com gases lacrimogéneos. Houve também uma grande manifestação
de meio milhão de pessoas. Paralelamente, as organizações sindicais encetaram
negociações que obtiveram elevações salariais importantes.
Num país como a França, que no século XIX conheceu várias revoluções e algumas
também bastante súbitas como foi o caso de 1848, por alguns dias houve grande
expectativa sobre o que iria acontecer. O general De Gaulle, Presidente da República
desde 1958, não subestimou a importância dos acontecimentos e, durante três dias,
desapareceu completamente de cena sem que se soubesse onde estava. Na realidade,
estava numa base de comando militar, ponderando as medidas a tomar e assegurando-se
de que contava com as Forças Armadas. Ao fim dos três dias, fez uma alocução pela
rádio anunciando eleições para Junho e simultaneamente ameaçando com o estado de
emergência se a greve geral não terminasse. A partir daí, o movimento refluiu, sem que
406

se tivesse chegado a verificar grande violência. O número de mortos durante os


acontecimentos de Maio foi muito pequeno.
Isto explica-se porque a politização era intensa, mas era intensa do lado estudantil que
não correspondia a uma força social suficientemente importante para ser perigosa e, por
outro lado, essa politização exprimia-se mais em termos de afirmação de ideais, de
palavras de ordem genéricas. As correntes existentes no movimento estudantil eram
extremamente diversificadas e, em muitos aspectos, opostas umas às outras, portanto,
sem qualquer possibilidade de tradução directa num programa de poder.
No que diz respeito às forças políticas constituídas, nomeadamente da esquerda,
essencialmente eram os comunistas e o partido socialista que, de resto, eleitoralmente
em 1965 tinham realizado uma aliança em torno da candidatura de François Miterrand a
Presidente da República. Mitterrand, pessoalmente, também procurou tirar o proveito
possível da situação mas, nesta altura, o Partido Socialista Francês estava dividido e
enfraquecido, o próprio Mitterrand não era membro, só um ou dois anos depois virá a
constituir o seu próprio agrupamento e suscitar uma reorganização, aliás com um nome
novo, do partido socialista em França. Portanto, esta iniciativa de Mitterrand aparecia
com carácter pessoal e sem uma infra-estrutura política.
No que diz respeito ao Partido Comunista Francês, não se colocava a hipótese de uma
opção súbita por uma iniciativa revolucionária à maneira da Revolução Russa de 1917.
Desde a época propriamente revolucionária, que foi a época da Revolução Russa e do
princípio dos anos 20, já se tinha passado muito tempo, toda a teoria e a estratégia dos
comunistas franceses, sobretudo nos anos 60 mas com antecedentes já que vinham
desde a época das frentes populares, tinham em conta que as sociedades ocidentais
eram muito mais complexas e diversificadas do que a sociedades russa e de que uma
ideia da tomada do poder por uma minoria não seria sustentável a longo prazo. Toda a
elaboração teórica e política dos anos 60 estava voltada para as ideias de unidade de
esquerda e de ganhos de influência parlamentar. Não eram estes acontecimentos que
podiam subitamente colocar as questões noutro plano. Por isso, o PCF preocupou-se,
essencialmente, em consolidar a sua influência que, aliás, era a influência determinante
no plano sindical em relação à principal confederação sindical francesa, a CGT, e foi
nesse plano que procurou conduzir o movimento de greves que veio a desembocar nos
“Acordos de Grenelle”, dos quais resultaram melhorias salariais e aumento da
407

capacidade de intervenção dos organismos sindicais ao nível de fábrica, mas sem que
chegasse a ser posta em causa a propriedade capitalista. Em relação às questões
universitárias, as questões foram canalizadas no sentido de ganhos, que efectivamente
houve nos anos seguintes, no aspecto de autonomia universitária e de representação
estudantil nos órgãos universitários, ganhos esses que depois, mais ou menos em todos
os países onde, mais cedo ou mais tarde, se verificaram movimentos semelhantes, foram
obtidos, e que hoje estão de novo postos em causa.
O país onde o movimento do Maio de 68 teve uma projecção mais duradoura e intensa,
de tal maneira que já não faz sentido falar no Maio porque foi um movimento que,
sobretudo, teve consequências nos anos seguintes, em 1969/70 e por toda a primeira
metade dos anos 70, foi a Itália. Na Itália houve também um movimento estudantil
importante que se exprime em 1969, mas aquilo que marca definitivamente o caso
italiano é o Outono de 1969, já um ano e meio depois dos acontecimentos do Maio de
68 em França, o chamado “Outono quente” (autunno caldo), com um intensíssimo
movimento de ocupações de fábrica. Também aí, naturalmente, se pôs fortemente a
questão do papel do partido comunista mas, tanto como em França ou mais ainda,
estava afastada qualquer hipótese de o Partido Comunista Italiano encabeçar um
movimento insurreccional. De qualquer maneira, o movimento traduziu-se em
conquistas salariais e mesmo de poder dos organismos de base sindicais e comissões de
trabalhadores ao nível da fábrica - aliás, as ocupações tinham sido ocupações com
continuação da produção, nesse sentido foram movimentos como já não havia desde a
época da I Guerra Mundial, movimentos de auto-gestão. Reflectiu-se também num
crescimento eleitoral importante do Partido Comunista Italiano que, na segunda metade
da década de 70, virá a conquistar cerca de um terço dos votos em eleições legislativas.
No entanto, não tendo tido uma solução política, estes movimentos vão declinar,
dispersar-se e evoluir em sentidos diversos nos anos seguintes e, de uma maneira geral,
as direitas recuperam do susto. Mesmo em França, o general De Gaulle consegue
organizar logo em Junho uma manifestação de massas em apoio do governo bastante
expressiva e, logo a seguir, as eleições dão uma vitória às forças conservadoras.
Também na América Central e do sul houve movimentos estudantis importantes e,
nomeadamente, um caso que suscitou um confronto mais violento foi o dos estudantes
408

da Cidade do México que foram verdadeiramente massacrados em Outubro de 1968. A


intervenção policial causou centenas de mortos.
Nos EUA, também em 1968, apesar das grandes expectativas que tinha chegado a haver
em torno de uma possível vitória do candidato presidencial democrata, Robert Kennedy,
que era visto como uma certa esperança da esquerda, nomeadamente pelas suas
posições em relação à Guerra do Vietname, aconteceu que ele foi assassinado. O
candidato finalmente escolhido pela convenção democrata, Hubert Humphrey, fora
vice-presidente dos EUA durante o mandato de Johnson. Nas eleições foi derrotado por
Richard Nixon, um homem ligado à “caça às bruxas” nos anos 50 e representante de
orientações reaccionárias.
De qualquer modo o movimento de 68 pôs em causa, numa série de Estados europeus e
na América, a estabilidade, ou mesmo a estagnação, que parecia anteriormente sentir-se.
E nos anos seguintes, apesar da vitória de Nixon, no plano internacional a situação vai
começar a evoluir no que respeita à estabilidade ligada ao “duopólio” soviético-
americano. Na passagem dos anos 60 para os anos 70, continuaram as negociações em
relação aos programas nucleares. Um acordo que é assinado em 1968 é, aliás, bastante
significativo da tendência para pensar na paz como fruto do concerto das grandes
potências: é o tratado de não proliferação das armas nucleares, subscrito pelos EUA, a
Inglaterra e a União Soviética e que tinha como objectivo a proibição de divulgação dos
segredos nucleares, quer dizer, tomar medidas para evitar que outros Estados viessem a
adquirir a arma nuclear ou meios de se dotarem dela. Sendo que, nesta altura, já outros
Estados a possuíam, nomeadamente a França e a China, que recusam subscrever o
tratado (só o fizeram em 1992). Outros Estados não nucleares que aderiram
comprometiam-se antecipadamente a renunciar a uma aquisição futura da arma nuclear.
Houve vários Estados que se recusaram a subscrevê-lo. Até hoje, a Índia, o Paquistão e
Israel recusam-se a assinar, e a Coreia do Norte, que o assinou em 1985, repudiou-o em
2003.
Este tratado reflectia a tendência dos dirigentes soviéticos e americanos de pensarem os
problemas da paz como dependentes, essencialmente, do entendimento entre ambos e da
possibilidade de controlo das super-potências em relação ao conjunto da situação.
Também foi nessa linha que se desenvolveram as conversações de limitação das armas
estratégicas de longo alcance, ou seja, de limitação do número de mísseis e de cargas
409

nucleares que cada um dos campos detém. Estas conversações são conhecidas pela sigla
SALT (Strategic Arms Limitation Talks) - inicialmente era Talks, depois o T passou a
significar Treaty, na medida em que, em 1972 foi, de facto, concluído o primeiro tratado
SALT, por ocasião de uma visita de Richard Nixon a Moscovo. Era, por um lado um
acordo sobre os mísseis antibalísticos, ou seja, os mísseis anti-mísseis, e por outro lado
um acordo sobre o quantitativo dos vários tipos de armas e de ogivas nucleares. O
primeiro é o Acordo ABM, que estabeleceu que, tanto os EUA como a URSS,
limitavam a existência de mísseis anti-mísseis à defesa das capitais e de uma área de
instalações de mísseis. É um acordo típico da teoria da destruição mútua assegurada (de
que já aqui falámos a propósito da sigla MAD), ou seja, a segurança assenta em que
aquele que ousar a iniciativa de um ataque nuclear tem a certeza de receber, em troca,
represálias esmagadoras, pelo que fica inibido de desencadear esse ataque. Isto é, a
segurança assentava em proteger os próprios mísseis, de maneira que cada lado tinha a
capacidade de resposta, e não proteger as populações porque, se as populações não
estivessem expostas, não havia risco e, portanto, havia a possibilidade de decidir o
ataque.
O acordo complementar é o acordo sobre o número de vários tipos de armas e de
ogivas. Estes acordos tendiam assim a reforçar o monopólio das armas nucleares e
encontrar uma certa estabilidade na base desta ideia aparentemente louca da destruição
mútua garantida (da qual, no entanto, Robert McNamara num dos filmes diz “No, MAD
is not mad”).

Outros factores surgiram em cena, e não era só a política internacional da China ou da


França. Uma importante novidade é a que vai surgir da Alemanha. Pela primeira vez na
história da RFA, a democracia cristã (CDU/CSU), não obtém a maioria absoluta nas
eleições de 1966 e, em consequência, constitui-se um governo de coligação democrata-
cristã, liberal e social-democrata, em que é Ministro dos Negócios Estrangeiros o líder
social-democrata Willy Brandt. Nas eleições de 1969, o Partido Social-Democrata
(SPD) vence e Willy Brandt vai encabeçar uma coligação entre o SPD e os Liberais.
Embora na Alemanha Ocidental o Partido Comunista fosse praticamente insignificante
(aliás, foi ilegal de 1956 até 1968) e a contestação laboral não tenha tido as
características de luta de classes que teve na França ou na Itália, também na RFA houve
410

importantes movimentações sindicais e estudantis que se reflectiram no clima


ideológico do país e numa certa atenuação do anticomunismo, em particular no SPD.
Willy Brandt vai inaugurar uma atitude diferente nas relações da RFA com o leste
europeu, abandonando a chamada doutrina Hallstein, que recusava relações
diplomáticas com qualquer país que reconhecesse oficialmente a RDA. A única
excepção a esta doutrina eram as relações diplomáticas que, já desde o tempo de
Adenauer, a RFA tinha com a União Soviética mas, fora isso, era um princípio absoluto.
Willy Brandt vai relançar as relações com a União Soviética através de uma visita a
Moscovo que se conclui por um tratado de amizade e não-agressão entre os dois países
em que, pela primeira vez, a RFA reconhece a inviolabilidade das fronteiras na Europa.
Até aqui, a Alemanha Ocidental nunca tinha aceite a fronteira Oder-Neisse com a
Polónia (falámos nisso nas primeiras aulas), a anexação de território anteriormente
alemão, nomeadamente na região da Silésia, pela Polónia, nem a anexação da Prússia
Oriental. Agora a RFA aceita estas fronteiras, no quadro geral de aceitação das
fronteiras definidas nos tratados do pós-guerra, na sequência de Ialta e Postdam. Logo a
seguir, Willy Brandt faz uma visita à Polónia que teve um significado talvez ainda
maior, porque a Polónia tinha sido vítima da invasão nazi e tinha sido também um dos
países mais atingidos pelo extermínio dos judeus. Portanto, esta visita foi
particularmente significativa na afirmação, da parte alemã, de uma recusa do passado
nazi. Durante esta visita, Willy Brandt ajoelhou perante o monumento às vítimas do
Holocausto em Varsóvia, um gesto que ficou histórico. Também aqui, a visita se
concluiu por um tratado entre a RFA e a Polónia, com o reconhecimento expresso da
fronteira Oder-Neisse como a fronteira entre os dois países. Faltava o mais difícil, que
era a aceitação da própria bipartição da Alemanha, ou seja, da existência da RDA como
Estado independente, o que nunca foi totalmente realizado mas, em Dezembro de 1972,
houve conversações entre os governos dos dois Estados, na sequência das quais se
estabeleceu uma certa facilitação do trânsito. Nomeadamente, o governo da RDA
acordou algumas medidas de permissão parcial do trânsito de cidadãos da RDA para
ocidente e de visita de turistas do ocidente à RDA e, na sequência, deu-se o
reconhecimento diplomático. Embora formalmente não fosse ao nível de embaixada,
passou a haver representações diplomáticas. Finalmente, em Setembro de 1973, 35 anos
depois do Tratado de Munique, a RFA e a Checoslováquia estabeleceram um novo
411

tratado que anulou os acordos de Munique de 1938, significando com isso uma renúncia
definitiva dos Alemães aos Sudetas. A partir deste conjunto de tratados, intensificaram-
se as relações económicas da RFA – que, entretanto, como vimos, se tinha tornado a
maior potência económica na Europa ocidental – com os países de leste. Este é um dos
dados novos que se vão impor a partir daqui, o ressurgimento da Alemanha como uma
potência que não é apenas uma potência económica mas que é também um protagonista
internacional e com relações estabelecidas na Europa de Leste.
Ainda em relação aos acontecimentos da primeira metade dos anos 70, que têm a ver
com a situação europeia e as relações leste-oeste, é de destacar a realização da
Conferência de Helsínquia, que foi um dos processos internacionais mais importantes e
mais significativos deste período. A iniciativa da Conferência de Helsínquia foi
sobretudo da parte soviética, quer dizer, a realização de uma grande conferência
internacional de segurança europeia, que corresponderia a consagrar a aceitação da
divisão da Europa entre o bloco de leste e o ocidente era, sobretudo, uma preocupação
soviética. A ela obstava o facto de os EUA e a NATO não dispensarem uma intervenção
directa na questão, o que foi motivo de alguns atrasos no início do processo mas,
finalmente, em 1973 iniciou-se a conferência, que foi alargada à participação dos EUA
e do Canadá. Dos Estados europeus só ficou de fora a Albânia, pelas posições que tinha,
em geral, contra a política de coexistência pacífica.
A Conferência concluiu-se, em 1975, com a assinatura da Acta Final de Helsínquia, que
consagrava os princípios da igualdade e soberania dos Estados, não-ingerência,
cooperação económica, científica, técnica e cultural, os direitos humanos, incluindo a
liberdade de expressão. É uma declaração mais de carácter formal mas, de algum modo,
significativa da superação do ambiente da guerra fria, na época foi mesmo considerada
como a prova da superação da guerra fria. No entanto, continha princípios que se
prestavam a ser instrumentalizados pelos interesses de um lado ou do outro e que, nesse
sentido, darão ainda matéria para polémicas e para contradições nos anos seguintes.
Por esta época, em 1973, dá-se também uma alteração importante no quadro da
Comunidade Económica Europeia, com a passagem da Europa dos 6 à Europa dos 9.
Foi o primeiro alargamento efectivo desde a constituição da CEE, em 1957. O grande
problema tinha sido, até então, a não admissão da Grã-Bretanha, quer dizer, a posição
insular e ligada à Commonwealth da Grã-Bretanha e, depois, a oposição gaullista à sua
412

admissão - o que tem a ver justamente com o facto de De Gaulle sustentar uma posição
de autonomia europeia em relação aos EUA (a Inglaterra, na medida em que estava
muito ligada à política americana, contradizia essa autonomia, e daí o veto do De
Gaulle). Mas, em 1969, De Gaulle demitiu-se de Presidente depois de ter perdido um
referendo sobre uma questão, de certo modo menor, a questão da regionalização em
França, e o seu sucessor, Georges Pompidou, já não tinha a mesma objecção. Em 1973,
a CEE alarga-se à Grã-Bretanha, Irlanda e Dinamarca.
Por esta altura, também, a política americana está em evolução. Por um lado, em 1968
tinham sido iniciadas em Paris as conversações sobre o Vietname. A tentativa
americana de vietnamização do conflito, complementada com a intensificação dos
bombardeamentos no princípio dos anos 70, falhou. O crescimento da influência e do
controlo da FLN no sul do Vietname foram crescentes, e as conversações vêm a
concluir por um acordo que prevê, em 1973, a saída das tropas americanas do Vietname,
mantendo-se a divisão dos dois Estados. De facto, a saída das tropas americanas
concretizou-se nesse ano, o que abriu o caminho à vitória da FLN em 1975, com a
libertação de Saigão, e à reunificação do Vietname.
Uma das cartadas que o Presidente Nixon e o seu Conselheiro e depois Secretário de
Estado Henry Kissinger, tentaram jogar, foi a da superação da bipolaridade EUA-
URSS. O Kissinger era um conceituado teórico e historiador das relações internacionais,
com obra importante publicada, e tinha a ideia de que era preciso explorar os factores na
cena internacional susceptíveis de enfraquecer o adversário soviético. Um dos factores
era sem dúvida a China, a partir do conflito que estava em pleno desenvolvimento desde
o princípio dos anos 60, e nos anos 70 mais profundo do que nunca. Aliás em 1969
tinha-se chegado ao ponto de confrontos armados na fronteira do Extremo Oriente. O
conflito sino-soviético nos anos 60 esteve ligado a um extremo radicalismo das posições
chinesas sobre a política internacional. A concepção teórica básica, inspirada no
pensamento de Mao Tsé-Tung, era a de que a revolução mundial, tal como tinha
acontecido na China, contrapunha os campos às cidades e acabaria por se resolver por
um assalto dos campos do terceiro mundo às metrópoles imperialistas. Na segunda
metade dos anos 60, este radicalismo foi ainda mais exasperado porque se ligou com a
evolução interna na China, no quadro da chamada “grande revolução cultural
proletária”. Não vou agora aqui desenvolver o que é que foi a revolução cultural mas,
413

resumidamente, foi um processo de contestação da própria hierarquia do Estado e do


Partido Comunista Chinês através de uma mobilização de massas, tendo como
referência a autoridade de Mao Tsé-Tung, ou mais propriamente o pensamento de Mao
Tsé-Tung (sintetizado no famoso Pequeno Livro Vermelho das Citações), interpretado
no sentido de uma revolta geral contra todo o tipo de autoridade, a nível do Estado, do
partido, das escolas, das instituições, da família, etc. Nesse sentido, foi um movimento
que teve um eco profundo na contestação estudantil destes anos na Europa ocidental –
mais na Europa do que nos EUA –, e que tinha um ponto de contacto no aspecto em que
era essencialmente um movimento jovem. O certo é que a revolução cultural acabou por
conduzir a uma situação de quase anarquia incontrolável, com problemas sérios de
paralisação das actividades produtivas, para além da paralisação das universidades, etc.
A partir de meados dos anos 70 tendeu-se para uma estabilização que, em parte, se
apoia na figura de um homem que conseguiu passar à margem dos conflitos da
revolução cultural e era uma das figuras mais importantes da revolução chinesa desde o
início, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Chu En-Lai. Chu en-Lai não foi
propriamente atacado e manteve o seu lugar, que era também o de Vice-Primeiro
Ministro e, em torno dele, constituiu-se um núcleo de reposição da autoridade do
Estado, núcleo esse a que pertence um homem muito atacado durante a Revolução
Cultural, e preso, mas que depois recupera, que é Deng Xiaoping. Chu En-Lai vai
perceber que a perspectiva puramente revolucionária enunciada nos anos da Revolução
Cultural não conduzia a lado nenhum e, sobretudo, não era capaz de defender a China e
de assegurar a consolidação da posição internacional da China, nomeadamente na
eventualidade de um conflito com a União Soviética. Há assim uma convergência do
interesse americano em suscitar novos protagonistas com o interesse chinês em sair do
isolamento, e é este o princípio de uma evolução nas relações sino-americanas que é
profundamente nova em relação aos vinte e tal anos que se tinham passado desde a
tomada comunista do poder em 1949. Quer dizer, os EUA sempre tinham hostilizado a
China comunista, continuavam a reconhecer e a apoiar Taiwan (“República da China”)
como o único Estado chinês e representação da China na ONU. A partir do início dos
anos 70 isto muda. A primeira iniciativa diplomática que vai abrir uma série de outras e
conduzir à alteração da situação é o encontro de duas equipas de pingue-pongue, uma
americana e outra chinesa em Pequim, em Abril de 1971. Foi a primeira presença de
414

uma representação oficial americana, embora a nível desportivo, na China. Mas em tudo
o importante é o princípio porque, atrás dos jogadores de pingue-pongue, três meses
depois, seguiu Henry Kissinger, que foi recebido não só por Chu En-Lai mas também
por Mao Tsé-Tung e, na sequência, em Fevereiro de 1972, menos de um ano depois do
jogo de pingue-pongue, era o próprio Nixon a visitar Pequim. Dessa visita resultou uma
declaração conjunta em que os EUA reconheciam Taiwan como parte da China e, em
contrapartida, a China se comprometia a não invadir Taiwan e procurar uma solução
pacífica para a reunificação. Já antes, em Outubro de 1971, a República Popular da
China tinha sido admitida na ONU e, correspondentemente, Taiwan tinha sido obrigada
a sair. Esta evolução coincide praticamente com a mudança que se dá no poder político
na China e com aquilo que é, na prática, o fim da Revolução Cultural. No congresso
anterior do Partido Comunista Chinês, em 1969, o chefe do Exército Popular, Lin Piao,
tinha sido eleito, praticamente, o sucessor de Mao Tsé-Tung. Este mesmo Lin Piao é
abatido com o avião em que viajava em Setembro de 1971 - a explicação oficial é que
tencionava fugir para a URSS, seria, portanto, um traidor à China que fugia para o país
inimigo. Depois disto, haverá ainda um relançamento da Revolução Cultural a nível de
cúpulas, no qual vai estar envolvida a viúva do Mao Tsé-Tung, Jiang Qing, mas essa
tentativa vai fracassar. Estes são também os últimos anos da vida de Chu En-Lai e de
Mao Tsé-Tung, ambos morrem em 1976. Os anos entre 1972 e a morte de Mao Tsé-
Tung, em 1976, são ainda de uma certa oscilação e incerteza, nomeadamente Deng
Xiaoping em 1973 torna-se Vice-Primeiro-Ministro mas depois é apeado novamente e
só mais tarde é que regressará ao poder. A partir de 1978 Deng Xiaoping torna-se a
principal figura da liderança chinesa. Por essa altura também, o grupo em torno da
viúva da Mao, o chamado “bando dos quatro”, é preso.
Deng Xiaoping virá a representar uma orientação nova na política interna e externa
chinesa. Na política externa, já em 1974 ele tinha defendido na ONU a teoria dos “três
mundos”: a China identificava-se com os povos do terceiro mundo contra o primeiro
mundo, composto pelos imperialistas soviéticos e americanos, considerando um
segundo mundo que era a Europa e os países neutrais, i.e. os países de regime capitalista
com uma posição de inferioridade e um potencial antagonismo em relação às super-
potências. Deng Xiaoping vai representar uma orientação essencialmente de realismo
político, em oposição com aquilo que eram as teses da Revolução Cultural. As teses da
415

Revolução Cultural supunham por um lado, no plano internacional, uma revolta geral
dos povos contra o capitalismo e contra o “social-imperialismo” soviético. E supunham,
no plano interno, o princípio de que é mais importante ser vermelho que ser
especialista. Quer dizer, em relação ao conjunto dos problemas de uma sociedade, a
questão prioritária é a questão política, em que sentido vão as medidas que se tomam:
tendem a favorecer o controlo dos proletários sobre a sociedade, sobre a decisão do que
se produz e como é produzido, ou favorecem aqueles que são mais competentes porque
adquiriram o domínio das técnicas e estão numa posição de superioridade? O problema
que Mao Tsé-Tung punha é que, na existência de qualquer sociedade, aquilo que é
espontaneamente mais favorável a um desenvolvimento quantitativo, isto é, a um
crescimento económico em condições de estabilidade, é a manutenção de relações
sociais existentes - que aqueles que já dominam as técnicas tenham a palavra decisiva -
ao passo que, na perspectiva que ele considera revolucionária, o importante não é tanto
a ambição quantitativa do crescimento económico, é a de construir uma sociedade
segundo princípios diferentes, que realmente representem o acesso ao poder dos que
nunca o tiveram.
A ideia do Deng Xiaoping é, de certa maneira, a oposta. Deng Xiaoping participou na
Revolução Chinesa desde a longa marcha e, nesse sentido, era também ideologicamente
comunista, mas a ideia dele é que a China é um país profundamente pobre, atrasado e
que não há via de superação dessa situação sem um aproveitamento de todos os recursos
internos e internacionais através, no fundo, de uma inserção na economia mundial. Ao
passo que o modelo maoísta de desenvolvimento é estritamente autocentrado, e há toda
uma filosofia de Mao Tsé-Tung sobre o confiar nas próprias forças, o modelo do Deng
Xiaoping nas relações económicas internacionais é, pelo contrário, de inserção, é o
pensar que a China tem que se inserir num mundo mais vasto e procurar tirar o máximo
benefício de uma diversificação das relações económicas. A frase que é atribuída ao
Deng Xiaoping (e que se opõe à tese do Mao sobre a contraposição do técnico e do
vermelho), é a expressão “não importa se o gato é branco ou preto, o que importa é que
cace os ratos”, ou seja, todos os meios são bons se servirem o grande objectivo que é o
fortalecimento, em primeiro lugar económico, da China.
Outro acontecimento importante que marca a situação no Extremo Oriente na segunda
metade da década de 70 é, como já referi, a vitória da FLN em Saigão e a reunificação
416

do Vietname, que coincidiu com a vitória do movimento dos Khmer vermelhos do


Cambodja, uma guerrilha de orientação maoista e estritamente ligada à influência
chinesa. Entre o Cambodja dos Khmer vermelhos e o Vietname, vai-se gerar um
conflito que desemboca na invasão do Cambodja pelo Vietname em 1978, princípios de
1979. Este conflito localizado esteve a ponto de se tornar um conflito internacional de
maiores dimensões porque a própria China invadiu o Vietname (embora
localizadamente, e tenha sido uma incursão sem grande significado), em oposição à
entrada do Vietname no Cambodja. Foi um conflito localizado que, indirectamente,
tinha a ver com o conflito sino-soviético, na medida em que o Vietname era
predominantemente apoiado pela União Soviética.
As negociações EUA-URSS em torno dos problemas nucleares continuam depois da
primeira assinatura dos Acordos SALT e, em 1974, há um encontro entre Leonid
Brejnev e o Presidente americano Gerald Ford, para as negociações SALT II, o que
conduz à assinatura do acordo uns anos depois, em 1979. Entretanto deve-se dizer que a
política americana tinha sofrido uma certa crise com a resignação a que Nixon foi
forçado em 1974, por causa do escândalo Watergate, tendo sido substituído pelo vice-
presidente Gerald Ford. Ford foi, por seu turno, sucedido pelo democrata Jimmy Carter
e assim em 1979 é que se dá a assinatura dos acordos SALT II que, pela primeira vez,
concretizavam a redução do número de armas nucleares. Este acordo SALT II nunca
chegou a ser ratificado e, por isso, nunca foi levada à prática até hoje nenhuma
diminuição efectiva dos arsenais nucleares. Só no mês passado (Abril 2010), durante o
encontro em Praga entre Barack Obama e o Presidente russo Medvedev, é que foi
assinado um novo acordo entre a Rússia e os EUA para a redução dos arsenais
nucleares.
Outros factores entram em cena na segunda metade dos anos 70 e princípios dos anos
80 que vão novamente gerar situações de instabilidade, nomeadamente a discussão
sobre os novos mísseis de alcance médio, que a URSS adopta em 1976. Esta questão
dos mísseis foi o princípio daquilo que se viria a chamar “segunda guerra fria”, de que
se começou a falar pelo final dos anos 70 - o que, aliás, acrescento eu, prova que nunca
houve uma guerra fria homogénea e contínua desde 1947 até ao fim do sistema
soviético. Nos anos 70, tinha-se entrado na chamada “Détente” ou “Distensão” e, de
facto, o que há nesta segunda metade dos anos 70 é a entrada numa situação nova que
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vai levar a uma reagudização de conflitos. O problema que se suscitou, de uma maneira
um bocado inesperada, foi com os mísseis SS 20 soviéticos, mísseis de médio alcance
que os soviéticos encaravam como uma mera renovação técnica, mas a que os
americanos e a NATO atribuíram um significado de novas armas ofensivas, por serem
mais rápidas que as anteriores, e às quais responderam com a instalação de novos
mísseis na Europa, os mísseis Pershing II, que permitiam atingir o território soviético a
partir da Europa ocidental em menos de cinco minutos. Seguiram-se, da parte da
NATO, os mísseis Cruise, invisíveis aos radares e, por volta de 1978, a bomba de
neutrões. A bomba de neutrões representava uma inovação técnica muito importante.
Embora hoje não se fale neste assunto e esta expressão praticamente não se use, foi
precursora de uma tendência que se tem desenvolvido, que é a de tornar o armamento
nuclear “manejável”. As bombas atómicas eram até aqui extraordinariamente
destrutivas e foi essa característica que assegurou a lógica da destruição mútua
garantida como meio de manter a paz, quer dizer, qualquer golpe nuclear tinha
consequências desproporcionadas em relação a um objectivo político alcançável. O
grande problema a partir daqui era para os estrategas inventar um instrumento que fosse
superior aos explosivos convencionais mas utilizável em acções militares. A bomba de
neutrões satisfazia o objectivo porque podia ser utilizada contra homens e objectivos
militares, poupando estruturas. Como dizia acertadamente um slogan pacifista da época:
“só destrói seres vivos”. A implementação destas bombas pelos EUA foi um factor de
agudização das relações com a União Soviética.
Outros factores vão interferir na mudança de situação nos anos 70, com repercussões até
hoje, e um deles tem a ver de novo com o Médio Oriente. É, em primeiro lugar, a guerra
do Yom Kippur, ou seja, o ataque que o Egipto e a Síria desencadeiam em Outubro de
1973 contra Israel para a recuperação dos territórios perdidos na Guerra dos Seis Dias.
Com a Guerra dos Seis Dias o Egipto tinha perdido o Sinai e a Faixa de Gaza, a
Jordânia perdeu a Cisjordânia e a Síria perdeu os planaltos do Golan.
Na Jordânia dá-se, nos anos 70, uma evolução num sentido adverso aos povos árabes e
nomeadamente aos palestinianos. A Jordânia tinha recebido muitos exilados
palestinianos dos territórios ocupados que constituíam um factor de pressão e de crítica
da política pró-ocidental do rei da Jordânia e, em 1970, resolveu desembaraçar-se dessa
pressão, da forma mais drástica, através do massacre dos guerrilheiros palestinianos da
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OLP (“Setembro Negro”), forçando-os a exilarem-se no Líbano, o que vai gerar


terríveis problemas no Líbano, que duram até hoje. Já a composição do Líbano era
bastante complexa, com a estrutura política de representação dos cristãos e dos árabes,
cada um deles dividido em vários grupos e tendências O influxo palestiniano vai-se
prender com as contradições existentes entre cristãos e árabes e piorar tremendamente a
conflitualidade. O que, aliás, é agravado ainda porque, em 1982, Israel ataca a OLP
instalada no Líbano. Israel invadiu o Líbano, conseguiu a expulsão da OLP e provocou
o massacre dos palestinianos pelos falangistas, ou seja, a extrema-direita do Líbano
ligada ao sector extremista cristão. Isto está na origem do nascimento do movimento
Hezbollah, que é hoje o principal factor das acções árabes anti-Israel a partir do Líbano.
Voltando à questão da guerra do Egipto e da Síria contra Israel, que ficou conhecida
como a Guerra do Yom Kippur porque foi desencadeada na altura das celebrações
religiosas, que têm justamente o nome de Yom Kippur, em Israel. O Estado israelita é
um Estado confessional. Os israelitas encontravam-se nas celebrações religiosas quando
foram atacados. O Egipto e a Síria tiveram uma primeira vitória, a que respondeu uma
rápida contra-ofensiva israelita. Isto gerou uma crise internacional grave e esteve na
origem da primeira crise do petróleo, a crise de 1973. Os Estados da OPEP, por
iniciativa dos árabes, decretaram o boicote dos aliados de Israel, que era o conjunto dos
países ocidentais. Mesmo depois de ultrapassado o boicote, mantiveram uma elevação
de preços que alterou completamente a tradição do preço baixo do petróleo, uma das
bases essenciais do crescimento industrial em todo o ocidente, desde a II Guerra
Mundial. Foi uma crise grave também porque envolveu os EUA e a União Soviética,
chegando-se ao ponto da ameaça de intervenção directa. Esta guerra agravou a situação
no Médio Oriente num sentido desfavorável aos povos árabes, porque foi o princípio da
aproximação do Egipto a Israel e aos EUA. O Egipto já não era o Egipto de Nasser, que
morreu em 1969, sendo sucedido por Anwar Sadat. Se Nasser representava ainda uma
orientação com aspectos socialistas, inclusivamente no plano interno, embora apoiada
também na burguesia nacional, Sadat vai representar uma orientação que se separa
dessas intenções socialistas, tanto no plano interno como externo. Já antes desta guerra,
Sadat tinha iniciado uma certa distanciação no plano económico e político em relação à
União Soviética e, agora, vai negociar uma paz separada com Israel em troca do Sinai.
O Sinai foi recuperado, mas o Egipto separou-se da aliança com os povos árabes. Na
419

sequência, realizaram-se as conversações de Sadat e Menahem Begin, Primeiro


Ministro Israelita, em Camp David, residência do Presidente americano, que
conduziram, em 1979, ao Tratado de Washington, com o qual o Egipto se separou da
aliança com os povos árabes.
Ainda outros factores intervieram nestes meados dos anos 70, um deles tem
directamente a ver com Portugal e a Revolução do 25 de Abril. Em si, Portugal seria
uma questão menor, sobretudo porque a fase socialista da revolução portuguesa não
durou muito tempo nem foi muito longe, embora também ela, de qualquer maneira,
tenha sido ocasião de uma certa crise. Mas o que foi mais importante a longo prazo foi a
independência das colónias portuguesas, porque as três principais colónias que se
tornaram independentes, ou seja, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, tinham no
governo partidos de orientação socialista e, no caso de Angola, um partido que
controlava apenas uma parte do território e que teve de vencer uma guerra civil contra
outras duas forças apoiadas pelos EUA. Nomeadamente o caso de Angola mas, também,
o de Moçambique, implicaram um envolvimento do bloco de leste que suscitou
reacções da parte americana. É também importante referir, em África, a evolução da
Etiópia onde, em 1974, com um golpe militar comparável ao 25 de Abril português,
também militares democratas, a partir de certa altura, evoluem para a esquerda,
sobretudo a partir de 1977. Simplesmente na Etiópia em 1977 venceu uma orientação
claramente socialista e aliada da URSS e, a curto prazo, a Etiópia encontrou-se em
guerra com a região da Eritreia, que reivindicava a independência, e com a Somália,
ambas apoiadas pelos EUA.
Em suma, portanto, ao mesmo tempo que a primeira metade dos anos 70, com os
acordos SALT, parece significar um culminar das tendências de coexistência pacífica e
de distensão (ou “desanuviamento”) e de um certo duopólio mundial das duas super-
potências, o certo é que as dinâmicas do terceiro mundo, a emergência da China, a
emergência da União Europeia e a permanência dos problemas no terceiro mundo,
nomeadamente o do Médio Oriente, representam um conjunto de focos de instabilidade
que põem em causa as expectativas de estabilização do início da década.
Um novo factor muito importante e do qual falaremos na próxima aula, é, em 1979, a
Revolução Iraniana que, até hoje, representa uma das principais preocupações da
política americana.
420

Lição 11: A crise dos anos 70. A revolução iraniana.

Nas últimas aulas falámos das décadas de 60 e 70. Vimos que foram caracterizadas,
tanto no plano internacional como nomeadamente na política europeia, por aquilo a que
se pode chamar uma tendência para a esquerda. Vimos isso, em primeiro lugar, a
propósito da relação entre a expansão económica das décadas de 50 e 60 e a influência
crescente dos sindicatos, traduzida em conquistas salariais, em elevações regulares do
salário e na consolidação das instituições do Welfare State. Mas isso é apenas uma parte
de um processo mais vasto de que também fez parte a emergência do terceiro mundo,
com a evolução da China que, a partir da última fase de Revolução Cultural, se torna
um protagonista internacional de primeiro plano e consolida a sua posição pela entrada
na ONU em 1971; com a evolução dos movimentos de libertação em África, a
revolução em Cuba, as lutas sociais na América Latina, em geral de resultados
frustrantes e desembocando, numa série de casos, em ditaduras militares mas, apesar
disso, com experiências importantes no Brasil em 1963/64, e principalmente no Chile
em 1969/73. Essa transformação também se fez sentir no aspecto ideológico,
nomeadamente na sequência dos movimentos que associamos ao Maio de 68 que, na
verdade, não começaram em 68 e, menos ainda, se reduzem ao Maio ou se reduzem à
França, vimos que se relacionavam com a evolução da luta pelos direitos dos negros nos
EUA e com um questionamento mais global das relações sociais. 1968 em França mas,
sobretudo, 1969/70 na Itália, representam movimentos operários de excepcional
dimensão e que iniciaram um processo de conquistas sociais importante e duradouro; e
o conjunto desses movimentos que ligamos ao Maio de 68 está associado a uma
421

mudança ideológica em que o marxismo, as ideologias revolucionárias, sem excluir um


certo renascimento das ideologias anarquistas, estiveram presentes e marcaram muito o
ambiente. É, de resto, ainda nesse contexto que se dá a revolução de 1974/75 em
Portugal.

A partir dos finais da década de 70, a evolução vai ser num sentido diferente e vai pôr
em causa muitas das conquistas sociais que tinham tido lugar nas décadas anteriores,
bem como a atmosfera ideológica e cultural que as tinha caracterizado. A partir do final
dos anos 70, o desenvolvimento de ideologias de individualismo e consumismo –
obviamente que com raízes anteriores - torna-se cada vez mais importante e marca
aquilo que são valores e tendências sociais dominantes actualmente. Na origem desta
transformação que caracteriza os últimos 30 anos está uma mudança no ciclo
económico e, concretamente, a crise económica que se costuma associar à primeira crise
do petróleo em 1973. Nesse sentido, é importante ter presente que a mudança do
contexto mundial que normalmente associamos ao colapso da União Soviética e dos
países da Europa de Leste, nos finais da década de 80 e princípios da década de 90,
surge numa fase em que já estava em curso uma transformação das tendências de
evolução política e social mundiais. Esta evolução, como disse, tem um momento
central na primeira crise petrolífera ligada à Guerra do Yom Kippur, ou seja, à Guerra
israelo-árabe de 1973 e à posição então tomada pela organização dos países
exportadores de petróleo, a OPEP, de elevar drasticamente o preço do petróleo. Mas as
raízes desta mudança são anteriores e têm sobretudo a ver com a perda pelos EUA, ao
longo da década de 60, da sua posição dominante na economia mundial. De certa
maneira, pode-se dizer que toda a evolução dos últimos trinta e tal anos tem a ver com
este declínio de hegemonia, embora o colapso da União Soviética durante algum tempo
tenha levado a ocultar o facto (e até a criar uma ilusão de triunfo histórico-universal da
América) . Uma parte das causas deste declínio da posição económica americana tem a
ver com o crescente peso das despesas militares, nomeadamente por causa da Guerra do
Vietname e da extensão dos compromissos mundiais assumidos pelos EUA, com bases
militares praticamente em todo o mundo. Mas tem a ver também com o crescente défice
da balança comercial americana, ou seja, a perda da superioridade industrial dos EUA
que faz com que, a partir da década de 70, eles sejam cada vez mais um país importador
422

e cada vez menos exportador de produções industriais. Se a internacionalização da


economia americana e a expansão das suas multinacionais, depois da Guerra, teve um
papel decisivo para a reanimação das economias europeias e funcionou também como
um estímulo para a indústria americana, a partir do momento em que, nos anos 60,
vários países europeus, e nomeadamente a RFA, assim como o Japão, emergem como
grandes potências industriais, o efeito dinamizador da procura já não vai só solicitar a
indústria americana mas vai ter o seu efeito propulsivo em relação às economias
europeias e, mais ainda, à japonesa. O que tem como resultado uma diminuição da parte
dos EUA na exportação mundial de produtos manufacturados que, em 1948, era de mais
de 1/3 em valor, ao passo que, em 1970, era de menos de 1/5. Em consequência, há uma
dispersão da posse de dólares em mãos estrangeiras, não americanas, e uma diminuição
das reservas de ouro no tesouro americano, logo uma insuficiência dessas reservas para
garantirem o dólar e a estabilidade do dólar. É preciso ter presente que o sistema
económico fundado em Bretton Woods, em 1944, que estruturou as relações
económicas do pós-guerra, assentava no câmbio fixo dólar-ouro e na possibilidade de
trocar o dólar por ouro. Perante os Estados estrangeiros, o governo americano respondia
pela convertibilidade do dólar em ouro. Isso era possível, tendo os próprios EUA fortes
reservas em ouro que, justamente, deixam de existir porque a posição comercial dos
EUA deixa de ser competitiva e porque o investimento no estrangeiro multiplica os
dólares em mãos estrangeiras. Em consequência, o dólar tende a ser depreciado, ou seja,
a manutenção do câmbio fixo entre o dólar e o ouro torna-se artificial e a prazo
insustentável. Em 1971, o Presidente Nixon decide desvalorizar e suspender a
convertibilidade do dólar. É uma solução que se tinha tornado indispensável para
defender a indústria americana, quer dizer, com o dólar na posição em que estava, os
produtos americanos eram muito caros para o estrangeiro e a indústria americana não
conseguia exportar. A desvalorização é uma maneira de reanimar as exportações
americanas e, ao mesmo tempo, defender o mercado americano em relação às
importações do estrangeiro e, portanto, conter o esvaziamento do tesouro americano. A
desvalorização de 1971 é seguida de uma outra em 1973.
1973 é o ano em que os EUA assinam os Acordos de Paris, que conduzirão dois anos
depois à derrota de facto no Vietname, e é também o ano da guerra de Yom Kippur, que
tem como consequência a subida drástica do preço do petróleo. Esta elevação do preço
423

do petróleo, no entanto, tem raízes mais profundas. Em primeiro lugar, é preciso ter
presente que o petróleo se tinha tornado esmagadoramente o recurso energético
fundamental, ao passo que o carvão tendia a ser abandonado. O petróleo é o
combustível para os transportes, mas não só. Também a maior parte das centrais de
produção de electricidade eram as termoeléctricas, alimentadas a petróleo. Ao contrário
do que acontece com o carvão, o petróleo existe apenas em determinadas regiões, e
quase todas em países do terceiro mundo. A Rússia e os EUA também são produtores
de petróleo mas o petróleo americano já não era suficiente para satisfação das próprias
necessidades americanas e uma parte essencial estava no Médio Oriente, sobretudo nos
países árabes. Com a constituição, em 1960, da Organização dos Países Exportadores de
Petróleo (OPEP, ou OPEC na sigla inglesa), a capacidade destes países de pesarem no
mercado internacional aumentou. Isso coincidiu também com uma vaga de regimes de
orientação nacionalista e com referências de tipo socialista, como é o caso do Egipto ou
da Síria, que tomaram medidas no sentido de garantir maiores lucros da exploração do
petróleo para as suas economias, quer através da nacionalização das companhias
exportadoras, quer reservando, através dos impostos, uma parte maior dos lucros da
exploração. Foi uma evolução progressiva ao longo da década de 60, mas a que se
juntaram factores políticos novos. Nomeadamente, em 1967, o bloqueio do Canal do
Suez por ocasião da terceira guerra israelo-árabe suscita uma elevação dos preços e
obriga a novas soluções para o acesso ao petróleo através do Atlântico e do Cabo da
Boa Esperança (foi nessa altura que foram construídos os super-petroleiros). Em
1972/73, em relação com a guerra de Yom Kippur, são decididos novos aumentos de
preço, primeiro um aumento de 70% e depois um novo aumento de 100%. O preço do
petróleo que, em 1970, estava ainda a 1,80 dólares por barril, passa em 1973 para 11,65
e, em 1980, para 36 dólares, ou seja, tinha aumentado 20 vezes em relação a dez anos
antes.
Neste segundo aumento, em 1979, intervém o factor decisivo que é, nesse ano, a
Revolução do Irão, uns dos factos de grande repercussão internacional que ainda hoje
marcam a actualidade. As subidas do custo do petróleo desencadeiam uma subida geral
dos preços, gerando uma situação de crise económica, crise de tipo novo porque
combina a estagnação, ou seja, a quebra dos ritmos de crescimento industrial, com a
inflação, coisas que normalmente andam separadas. Normalmente, os períodos de alta
424

dos preços são favoráveis aos produtores e favoráveis à reivindicação salarial – a


inflação estimulava a pressão reivindicativa mas os patrões tinham condições de
responder a essa pressão porque, justamente, os negócios estavam em alta. O que
acontece de novo com esta crise de 73 - e isto vai marcar toda a década seguinte - é que
a subida geral dos preços é motivada, não pela prosperidade, mas por factores políticos,
e tem como consequência uma redução geral da procura. A subida do preço encarece,
desde logo, os transportes, mas encarece também os custos de energia, e não há margem
para aumento das vendas porque a procura reduz-se, uma vez que os consumidores
dispõem de menos recursos.
A redução da procura vai, por seu turno, suscitar uma redução da produção industrial,
ou seja, uma quebra dos ritmos de crescimento, a entrada, portanto, numa situação de
estagnação. É evidente que houve quem lucrasse com as elevações do petróleo, houve a
criação dos chamados “petrodólares”, houve regimes árabes nomeadamente que
ganharam muito com esta subida, mas esses recursos não foram alimentar a procura dos
países industrializados mas sim novos investimentos, nomeadamente dos árabes, nos
países industriais.
Entra-se, então, a partir de 1973, naquilo a que se chama a “estagflação” (combinação
de estagnação e inflação), uma palavra de que agora se começa a ouvir falar outra vez e
da qual se falou muito nessa época. A quebra do crescimento pode ser caracterizada, por
exemplo, pelo facto de que, enquanto entre 1950 e 1973 o crescimento médio do PIB
dos países da OCDE foi ao ritmo de 4,9%, praticamente 5% ao ano, nos anos 1974-82
baixou para 2,2% ao ano, e nunca mais, até hoje, retomou os ritmos desse quarto de
século entre o final da década de 40 e 1973.
A crise traduziu-se, naturalmente, em aumento do desemprego mas, numa primeira fase
até aproximadamente meados da década de 80, a força dos sindicatos, consolidada
desde o pós-guerra e alargada nos anos da prosperidade, conseguiu salvar os níveis
salariais e, ao mesmo tempo, aproveitar tudo aquilo que tinha sido conquistado em
termos de instituições sociais próprias do Welfare State. No entanto, verificou-se um
aumento das taxas de juro, que foi um novo factor de agravamento da crise e que
acentuou as tendências recessivas na economia. Esta evolução económica vai
desencadear uma alteração das políticas económicas, sobretudo a partir da chegada ao
poder na Inglaterra, em 1979, da Primeira-Ministra Conservadora Margaret Thatcher e
425

nos EUA, em 1980, do Presidente Reagan. Mas está também em relação com
acontecimentos políticos de grande impacto, e quase coincidentes no tempo, que são a
Revolução Iraniana e o princípio da guerra no Afeganistão no final da década de 70.

O que é que se passou com o Irão? O Irão era, já desde os princípios do século XX, um
dos países do terceiro mundo que, praticamente até à II Guerra Mundial, constituiu uma
semi-colónia inglesa. No entanto, tinham-se verificado ciclicamente movimentos sociais
de oposição ao domínio inglês em que se combinavam motivos diversos e,
nomeadamente, as oposições civis da população burguesa, nomeadamente comerciante,
com a oposição religiosa dos sacerdotes islâmicos – isto já foi assim no princípio do
século no movimento contra o monopólio britânico dos tabacos. Depois, nos anos 30, o
Irão foi governado por um chefe militar que depôs o rei e ele próprio se tornou Xá da
Pérsia. Era o Reza Xá, uma espécie de ditador modernizante que, em certa medida,
copiou o Kemal Ataturk (o reformador e fundador da Turquia moderna). O Reza Xá foi
mais conservador e teve, a partir de certa altura, uma posição germanófila, de
aproximação com os nazis, que dava continuidade à oposição ao imperialismo inglês. O
certo é que o Reza Xá, durante a Guerra, foi obrigado pela intervenção americana a
abdicar no filho, chamado Reza Pahlevi (ou Pahlavi), e a colaborar com os Aliados,
porque o Irão tinha uma posição estratégica muito importante para os apoios anglo-
americanos à União Soviética.
A tradição anti-imperialista, junta à influência que a União Soviética ganhou durante a
Guerra, reflectiu-se, no final da guerra, numa influência grande das forças de esquerda
no país, que aliás já aqui referi anteriormente a propósito do conflito protagonizado, em
1953, pelo Dr. Mossadeq. Mas as forças da esquerda que apoiaram Mosadeq foram
vencidas e perseguidas. O regime do Xá Reza Pahlevi foi altamente repressivo e
crescentemente dependente do apoio americano, um regime com uma polícia política
que não seria exagerado classificar de tipo nazi. Nos anos 60 empreendeu uma certa
modernização, houve um processo rápido de urbanização da sociedade iraniana que, no
entanto, esteve muito longe de resolver os grandes problemas sociais que subsistiam, e
nomeadamente o empobrecimento do campesinato, embora esse campesinato tenha
diminuído. Neste contexto há, a partir da década de 70, um ressurgimento dos
movimentos de oposição. Em 1975, o Xá ainda celebrou os 2500 anos do Império persa,
426

foram cerimónias extremamente faustosas mas que, de certo modo, escondiam uma
crise que era já indesmentível. A partir de 1978, gera-se um movimento de
manifestações de oposição em que convergem de novo, como tinha acontecido já em
momentos históricos anteriores, as oposições civis, de democratas e comunistas (o
Partido Tudeh), com a oposição crescentemente influente dos sacerdotes muçulmanos
xiitas, que tinham como referência o Ayatolah Khomeini, exilado em França. Estas
manifestações no princípio de 1979 chegaram a ter a participação de dois milhões de
pessoas, em Teerão, exigindo o regresso do Ayatolah Khomeini e, perante isto, a tropa
acabou por se dividir e por tomar posição contra o Xá e este viu-se forçado a exilar-se –
aliás, ele estava já doente nessa altura, morreu pouco tempo depois. Constituiu-se um
governo civil de carácter revolucionário e, nos anos seguintes, foi um governo com uma
orientação, em termos sociais, de esquerda que, aliás, realizou reformas sociais
importantes, mas em que cedo se impôs como predominante o grupo dos sacerdotes em
torno de Khomeini. Estes acabaram por ganhar o monopólio do poder e instalar um
regime fundamentalista, baseado na aplicação das leis do Islão na vida civil e no papel
dirigente da hierarquia islâmica nas próprias instâncias de governo. O regime e,
nomeadamente, o discurso de Khomeini, tem como característica nova o facto de, ao
contrário do que aconteceu noutras revoluções nacionalistas anti-imperialistas como as
dos países árabes entre o final da década de 50 e o princípio da década de 60, ser
simultaneamente anti-americano e anti-soviético, anti-comunista. Os comunistas,
participantes activos na primeira fase da revolução, foram brutalmente reprimidos e
novamente ilegalizados e, no plano internacional, o Irão não procurou nenhuma espécie
de aproximação à URSS, mas sim uma oposição às duas super-potências. Em 1979, um
grupo de estudantes fundamentalistas islâmicos assalta a embaixada americana em
Teerão, fazendo reféns os funcionários que aí se encontravam e exigindo a entrega do
Xá (que se encontrava nesta altura em Nova Iorque), para ser julgado. O governo
americano não satisfez essa exigência. Tentou, uns meses mais tarde, uma operação de
comandos de libertação dos reféns através da intervenção por helicóptero na embaixada
em Teerão mas essa operação foi um fiasco completo, o helicóptero foi abatido. A
questão dos reféns só viria a ser resolvida mais tarde pela via diplomática.
427

Entretanto, também no final da década de 70, dão-se no Afeganistão acontecimentos


que vão ter uma grande importância nas relações entre as duas super-potências. O
Afeganistão era uma monarquia feudal onde, em 1973, se dera um golpe de Estado
protagonizado por militares democratas e, na sequência, se iniciara um processo
semelhante ao do pós-25 de Abril em Portugal, um processo de reformas sociais e
políticas. Só que, no caso do Afeganistão, a partir de 1978 as forças da esquerda ligadas
em especial ao partido comunista, Partido Democrático do Povo, se tornam a força
predominante e realizam transformações socialistas, incluindo uma reforma agrária
avançada e, para além disso, uma reorganização do Estado que implicava pôr em causa
o predomínio tradicional do clero e da religião islâmica - nomeadamente uma alteração
do estatuto da mulher, uma das questões essenciais que vão justamente agravar o
choque com os islamistas. Em oposição, desenvolve-se um movimento de guerrilha
encabeçada pelos fundamentalistas islâmicos, os mujahedin, apoiados pelo Paquistão,
pela Arábia Saudita e, também, pela China e pelos EUA. A União Soviética considerou
que a situação no Afeganistão devia ser defendida contra esta guerrilha fundamentalista
islâmica. Tinha-se dado pouco antes a revolução no Irão, havia um risco de
contaminação do islamismo nas repúblicas da União Soviética fronteiriças.
O governo soviético empenhou-se a fundo nesta defesa do governo do Afeganistão, o
que desencadeou uma forte reacção americana, ainda sob a presidência de Jimmy
Carter. Os EUA suspenderam a ratificação do tratado SALT II, suspenderam também a
venda do trigo à URSS e decidiram (o que teve grande impacto mediático) a abstenção
americana de participar nos Jogos Olímpicos de Moscovo em 1980. O
comprometimento da URSS no Afeganistão foi um facto importante porque veio
desgastar o regime soviético e virá a ser uma das causas que mais contribuíram para a
sua crise e desagregação nos anos seguintes.

A evolução do final da década de 70 levou à derrota de Carter quando se apresentou


como candidato do Partido Democrata à reeleição para Presidente dos EUA em 1980.
Cárter ainda actualmente aparece em questões internacionais, relacionadas
nomeadamente com o Médio Oriente ou com problemas na América Latina. A
presidência dele caracterizou-se por um certo discurso moral que, de resto, o levou a
explorar a questão dos direitos humanos contra a situação existente nos países de leste.
428

Apesar de, na última fase do mandato, ter agravado as relações com a URSS, ter
suspendido as negociações SALT, ter impedido a participação nos Jogos Olímpicos de
Moscovo, a sua política foi vista em amplos sectores do eleitorado americano e
caracterizada pelos adversários republicanos como demasiado conciliadora e como
responsável pelo declínio económico e a perda da primazia política dos EUA no mundo.
E foi justamente na base de um discurso de America First, exaltação das tradições
americanas e do individualismo americano, que o candidato republicano, Ronald
Reagan, ganhou as eleições de Novembro de 1980. Reagan era, de sua profissão, actor
de Hollywood. Era um homem que, nos anos 40/50, tinha participado nas audições do
McCarthy no Senado, com denúncias de colegas de trabalho, de figuras do mundo do
cinema americano, que acusava como cúmplices de esquerdismo ou de comunismo.
Ronald Reagan introduz um discurso novo, no sentido da reafirmação das tradições e da
primazia americana, um discurso que não diz respeito apenas à política internacional
mas, também, a toda filosofia de vida e aos princípios de organização social. E
naturalmente, não vem sozinho, até porque não era nenhum intelectual, vem com os
seus conselheiros que, em matéria económica, são os expoentes da escola chamada do
neoliberalismo (que desde então tem sido muito falada e tem correspondido às
orientações económicas predominantes), nomeadamente Milton Friedman (que tinha
sido conselheiro do Pinochet para assuntos económicos no Chile), e Friedrich Hayek,
um prémio Nobel.

O que é que significa este neoliberalismo? Deve-se notar que o neoliberalismo como
doutrina só tem uma relação formal com o liberalismo clássico dos séculos XVIII e
XIX. Aquilo a que se chama neoliberalismo é primacialmente uma doutrina económica,
ao passo que o liberalismo era também uma filosofia e uma teoria política. Como
doutrina económica, o neoliberalismo significa essencialmente a divinização do
mercado, ou seja, das forças economicamente dominantes. Quer dizer, o princípio em
que assenta é que, para dinamizar a economia, é preciso confiar nos criadores de
riqueza, e os criadores espontâneos, naturais, de riqueza são aqueles que já detêm a
riqueza. Portanto, a recusa de qualquer tipo de função interventora, reguladora,
redistribuidora do Estado, a crítica do papel do Estado na economia é, em teoria, o
axioma fundamental dos neoliberais. O neoliberalismo perfilha as doutrinas chamadas
429

“monetaristas”, isto é, a ideia de que o fundamental é que a riqueza se veja estabilizada


e defendida, daí, portanto, o princípio da defesa de taxas de juro elevadas e a prioridade
dada, nesse sentido, à valorização e estabilidade da moeda.
O neoliberalismo procura opor-se a todas formas de organização colectiva que
restrinjam a liberdade do mercado, visto como “encontro espontâneo dos factores de
produção”. Isto significa que visa, na prática, a negociação dos custos do trabalho nas
melhores condições para a valorização do capital. Ataca os sindicatos como factores de
distorção do mercado e, consequentemente, do nível “espontâneo” dos salários e ataca,
de uma maneira geral, a despesa pública, nomeadamente as despesas ligadas à
segurança social, como um factor que indirectamente, através do imposto, vai prejudicar
os “criadores de riqueza”, isto é, os empresários. Os neoliberais são pela diminuição dos
impostos e, consequentemente, pela diminuição dos encargos sociais do Estado.
Esta orientação, que foi levada à prática e traduzida em políticas económicas, foi
também adoptada como uma espécie de religião que conformou o ambiente dominante,
os comportamentos e as mentalidades a partir da década de 80. Uma religião assente na
exaltação do individualismo e na crítica às funções sociais do Estado, acusado de
protegerem os mais preguiçosos, os indolentes, aqueles que, por debilidade moral, não
são capazes de tomar iniciativas e de produzir eficazmente. Esta orientação, embora se
tenha traduzido, como disse, no aumento das taxas de juro e na revalorização do dólar,
e, num primeiro momento, tenha tornado mais difícil o investimento, acabou por
alcançar efeitos em termos de conseguir uma certa retoma da posição dos EUA a nível
económico, alargando não só os grupos dos rendimentos altos como, também, uma parte
das camadas médias.
Este desenvolvimento esteve associado à viragem para a chamada sociedade da
informação. Foi a década da generalização da informática, da difusão do computador
pessoal, inventado em 1975, assim como das técnicas ligadas à difusão da electrónica,
nomeadamente na reprodução do som e da imagem, os CDs e depois o DVD, etc.
Conseguiu, nessa medida, criar um certo alargamento do consenso na sociedade
americana. Este contexto permitiu a reeleição do Reagan em 1984, de maneira que a
personagem, e tudo aquilo que simbolizou, marcou toda a década de 80.
Esta reorientação económica esteve, por seu turno, ligada a uma evolução na política
internacional americana. Aliás, as duas coisas estiveram ligadas porque, do ponto de
430

vista económico, apesar do discurso sobre a abstinência do Estado na economia, houve


pelo menos um sector em que o investimento estatal não diminuiu nada, que foi o da
despesa militar.
Nas relações internacionais, o mandato do Reagan vai pôr directamente em causa aquilo
que tinha sido o princípio básico da détente em relação à União Soviética, ou seja, o
princípio da paridade estratégica, a partir da qual se procuraria a diminuição dos
arsenais militares. Em oposição a isso, Ronald Reagan vai criticar os antecessores,
nomeadamente Carter, por fraqueza, por terem abdicado do predomínio americano.
Durante a presidência Reagan, há uma liquidação dos processos iniciados. A ratificação
do SALT II é suspensa indefinidamente, as conversações START, que tinham em vista
a redução do armamento estratégico, são anuladas, e há um investimento em força no
apoio aos fundamentalistas islâmicos no Afeganistão, em função anti-soviética. O
próprio Reagan assume um discurso ideológico caído em desuso desde os anos 50, um
discurso ideológico de antagonismo em relação à União Soviética, que caracterizou com
a expressão “império do mal”.
Em termos mais concretos havia como vimos, desde o final dos anos 70, uma questão
candente que era a questão dos mísseis europeus de médio alcance – os mísseis
soviéticos SS 20 versus os mísseis Pershing da NATO. Reagan formula a proposta
puramente demagógica que chamou de opção zero que consistia em, quer a União
Soviética quer a NATO, desistirem da instalação de quaisquer mísseis de alcance
intermédio. Continuava a haver os mísseis estratégicos do longo alcance, já em certa
medida limitados pelo primeiro tratado SALT, e eliminavam-se os mísseis de alcance
intermédio que diziam respeito à Europa. Isto, à primeira vista, parece uma proposta
óptima e pacifista, simplesmente ignorava um facto muito simples: que a França e a
Inglaterra tinham mísseis de médio alcance, apontados contra a URSS, ao passo que os
países do bloco de leste não possuíam esse tipo de mísseis. Na verdade, a chamada
“opção zero” correspondia a colocar o monopólio dos mísseis de médio alcance nas
mãos dos países ocidentais e era, portanto, uma opção impossível para a URSS. Além
disto, Reagan iniciou um outro plano estratégico que teve um impacto ideológico
grande e que tinha também importância prática e que é a chamada “guerra das estrelas”.
Foi uma época, e continua a ser, de enorme desenvolvimento da ficção em torno das
guerras espaciais. Reagan propôs-se levar a ficção à prática, com um sistema, a
431

chamada “Iniciativa de Defesa Estratégica” (SDI), que consistia em anular o princípio


da destruição mútua assegurada (MAD), ou seja, o princípio em que assentava
justamente o “equilíbrio do terror” e, portanto, a contenção de perigo de guerra
alcançado através dos Acordos SALT. Esta “iniciativa de defesa estratégica” consistia
em criar um sistema, baseado em satélites, de defesa antimíssil, protegendo de tal
maneira as instalações nucleares americanas que lhes dava a possibilidade da iniciativa
de um ataque sem o risco de sofrer represálias. A instalação deste sistema de mísseis
anti-mísseis, a partir de satélites, que se chamou “guerra das estrelas”, colocava os EUA
numa situação de protecção integral que lhe permitia atacar sem correr o risco de ser
atacado. Por muito que isto pareça fazer parte da ficção científica e não ter grande
importância prática, na verdade destabilizou profundamente as relações internacionais
da época e, nomeadamente, as relações com a União Soviética, porque era um sistema
extraordinariamente caro, com que a URSS não estava em condições económicas de
concorrer. Foi talvez o elemento mais significativo do conjunto de uma politica de
aumento das despesas militares destinada a esgotar a URSS, ou seja, a obrigá-la a um
esforço militar tal que, como veremos na próxima aula, na situação económica em que a
URSS e o bloco de leste se encontravam nos anos 80, seria um factor de
enfraquecimento e de agravamento global duma situação que era já muito difícil.

Para além disto, durante o mandato do Reagan, os EUA empenharam-se no apoio à


guerrilha anti-sandinista. Em 1979, a guerrilha da esquerda na Nicarágua tinha vencido,
pondo termo à ditadura de Somoza e instaurando um governo pluripartidário de
orientação socialista. Este governo foi combatido por uma guerrilha contra-
revolucionária com o apoio americano, o que acabou por levar, no fim da década de 80,
à derrota dos sandinistas.
Além disto, em 1983 os EUA invadiram Granada e depuseram o governo de esquerda
desse país. E em 1986 bombardearam a Líbia.
No entanto, este conjunto de iniciativas acabou por ter um aspecto em que afectou o
próprio governo de Reagan, que foi o escândalo que ficou conhecido como “Irangate”
(o nome é uma paródia ao “Watergate” que tinha levado ao fim do mandato do
Presidente Nixon). O “Irangate” consistiu no fornecimento de armas ao Irão, negócio
com os lucros do qual era financiada a guerrilha anti-sandinista da Nicarágua. Isto era
432

feito assim porque o Congresso dos EUA tinha recusado fundos para apoio aos
guerrilheiros contra o governo da Nicarágua. Mas, deste modo, os EUA estavam a
apoiar um governo que era apresentado como inimigo da civilização, o governo iraniano
dos ayatolahs.
Nesta época, os EUA estiveram também envolvidos na hostilização do Irão através do
apoio a um outro personagem que foi nada menos que Saddam Hussein, o líder do
Iraque que, em 1979, desencadeou a guerra contra o Irão. Uma guerra em torno das
questões do petróleo nos domínios de fronteira entre os dois países, que se prolongou
por dez anos e foi extraordinariamente mortífera.

Este tipo de orientação nos EUA teve um correspondente na Europa que, aliás, começou
ainda antes. A orientação neoliberal e monetarista em economia foi inaugurada pela
senhora Margaret Thatcher que levou ao poder o Partido Conservador nas eleições de
1979, com a diferença de que, no caso inglês, havia uma longa tradição de importância
dos sindicatos na vida política, económica e social - os sindicatos eram, até aos anos 90,
membros colectivos do Partido Trabalhista. Além disso, desde o pós-guerra, a Inglaterra
tinha todo um sistema de segurança social de que é símbolo o “National Health Service”
(Serviço Nacional de Saúde), sistema de segurança social muito mais amplo do que o
que existe nos EUA. A orientação do governo Thatcher foi de verdadeira guerra social
contra os sindicatos e de retoma de uma ideologia capitalista com concepções
semelhantes às da época da Revolução Industrial. Como nesse tempo, os pobres são
acusados de serem responsáveis pela própria pobreza, quer dizer, a causa das diferenças
sociais é vista em características psicológicas e o funcionamento da sociedade deixado
às capacidades económicas de cada um.
No caso inglês, as mudanças afectaram sectores fundamentais da economia.
Nomeadamente, o governo Thatcher prosseguiu uma política sistemática de
desnacionalização nas minas, na siderurgia, no petróleo, nos caminhos-de-ferro, nas
telecomunicações, gás, aviação. As minas de carvão foram praticamente abandonadas e
o sindicato dos mineiros, que era uma fortíssima organização, travou uma luta
prolongada pela defesa dos postos de trabalho durante oito meses. Mas os mineiros
foram derrotados e essa derrota teve impacto no recuo de todo o movimento sindical
inglês, de toda a força das trade-unions.
433

No resto da Europa ocidental, na primeira metade da década de oitenta, esta viragem


não foi imediatamente sensível. De certa maneira, algumas das tendências que vinham
dos anos 70 mantiveram-se e, como veremos, geraram-se até ilusões de que se daria
uma viragem à esquerda.
434

Lição 12: O fim do mundo bipolar. Da crise do bloco de leste ao fim da URSS. A
Perestroika e o fim da “guerra fria”.

Na semana passada falámos da crise económica dos anos 70 e da mudança de fase na


história mundial, em termos económicos, sociais e políticos, que corresponde ao
princípio dessa crise detectada desde os finais dos anos 60 no mundo capitalista de uma
maneira geral, em especial com o crescimento do défice comercial americano, e
precipitada com a chamada crise do petróleo – esta por seu turno ligada à guerra no
Médio Oriente em 1973, e desencadeada pelas medidas da OPEP, que provocaram um
aumento súbito e surpreendente do preço do petróleo. Essa crise foi ainda agravada
porque, no final da década, dá-se a revolução no Irão e, com isso, a entrada em cena,
numa posição anti-ocidental e anti-americana, de um dos grandes produtores, o que
desencadeia, no final dos anos 70, novo aumento do preço do petróleo.
Na segunda metade dos anos 70 o mundo ocidental vive numa combinação de
estagnação económica e inflação, que era qualquer coisa de insólito, uma combinação
que contrariava os esquemas económicos tradicionais e a que se chamou “estagflação”.
A crise surgia, também, no final de um período de intenso desenvolvimento das lutas
sociais e políticas e crescimento dos movimentos sindicais, que tinha tido uma espécie
de culminar com os movimentos de 68 mas que, numa série de países, se tinha
prolongado e até ganho o seu máximo impacto já nos anos seguintes, nomeadamente em
Itália. Isso tinha-se traduzido também na mudança do clima ideológico no sentido da
esquerda e num crescimento dos movimentos políticos de esquerda, embora contrariado
também por reacções conservadoras.
A reacção conservadora vence em Inglaterra em 1979 com a nova liderança do Partido
Conservador protagonizada por Margaret Thatcher e, logo a seguir, nos EUA com o
Presidente Reagan. Não vou agora repetir a descrição do reaganismo, mas apenas
lembrar que marcou uma viragem na política económica paralela à do monetarismo da
Inglaterra. Marcou também uma viragem na política internacional num sentido
agressivo, anti-comunista, de acção diplomática, política e militar contra a URSS e,
simultaneamente, de retórica ideológica que ressuscitou o clima da guerra fria e que,
435

nesse sentido, fez o confronto entre as duas super-potências situar-se num plano que já
não era conhecido desde havia praticamente um quarto de século. Foi então que se
começou a falar, e com razão, em segunda guerra fria. A expressão “guerra fria” nos
anos 70 praticamente tinha deixado de se usar.
O que me faltou dizer no final da aula passada é que, no entanto, em alguns países
europeus o ritmo da política andou desfasado da evolução económico-social. Isso
deveu-se sobretudo ao impacto das revoluções ou transições dos países da Europa do sul
em 1974/75, ou seja, a revolução portuguesa de 1974/75, a transição espanhola de 75/76
e a mudança política na Grécia, também em 1974. Embora com características e
evoluções diferentes - o caso português foi o de consequências mais profundas e maior
duração -, os três desembocaram numa estabilização nos quadros de democracias
burguesas de regime parlamentar ou semi-parlamentar e em todos se verificou um
crescimento dos movimentos sindicais e, em geral, do campo político e ideológico da
esquerda. Mas também na Itália, embora não tivesse havido nessa altura nenhuma
mudança de regime, foi na segunda metade da década de 70 que se fez sentir a
repercussão política do desenvolvimento da luta de classes, do desenvolvimento social e
sindical da primeira parte da década. Isso traduziu-se no chamado compromisso
histórico entre os comunistas e a Democracia Cristã e mesmo numa temporária inserção
do Partido Comunista Italiano na área da maioria parlamentar, isto é, uma espécie de
coligação parlamentar entre o PCI e a Democracia Cristã, que realizou alguns avanços
políticos e sociais. Foi nos anos 70 que em Itália foi introduzido o divórcio, que
simplesmente não existia por força da Concordata, bem como várias conquistas sociais,
nomeadamente a escala móvel, que ajustava automaticamente os salários à inflação. Foi
também na segunda metade da década de 70 que o PCI obteve maior expressão
eleitoral, chegando a representar 1/3 do parlamento.
Em França, ao longo dos anos 60 e 70, tinha havido uma presença forte do Partido
Comunista e um crescimento das iniciativas da unidade de esquerda em que se começou
a afirmar, desde as eleições presidenciais de 1965, a figura de François Mitterrand, que
depois se torna o líder do novo Partido Socialista Francês, criado em 1969. Mitterrand
falhou as candidaturas à Presidência da República em 1965 e 1974. Também nas
eleições legislativas, nomeadamente as que se realizaram em 1978, falhou a unidade da
esquerda. De maneira que foi já numa fase em que a dinâmica da esquerda estava em
436

retrocesso que, finalmente, Miterrand ganhou as eleições presidenciais de 1981. Como


havia a tradição da unidade da esquerda, a essência de um programa de unidade
socialista-comunista estava ainda muito presente. O governo que então se formou
contou também com a participação comunista e traduziu-se nalgumas medidas de tipo
socializante, que iam ao arrepio daquilo que eram já, nesta altura, as tendências gerais e
as pressões sociais e políticas no sentido do liberalismo económico. Mas acabaram por
ser essas pressões a prevalecer: a orientação governamental inverte-se e em 1984 cessa
a participação comunista. Também na Itália se desfez o “compromisso histórico” e se
iniciou uma involução da influência da esquerda. Na RFA, onde desde 1969 os sociais-
democratas de Willy Brandt (e, depois, de Helmut Schmidt) tinham ganho as eleições e
formado governo com o Partido Liberal, no princípio da década de 80 os liberais
separam-se e mudam de aliança, coligam-se com os democratas-cristãos. Essa aliança
de centro-direita é que vence as eleições de 1982 e marca, portanto, com a liderança de
Helmut Kohl, uma viragem à direita na política da RFA. Também noutros países da
Europa do sul, e nomeadamente em Portugal, na década de 80 a evolução foi no sentido
da direita, primeiro com os governos da chamada “Aliança Democrática”, depois com
os de “bloco central” e finalmente com o “cavaquismo”.

Hoje regresso às questões da evolução da URSS e do bloco de Leste, que são


fundamentais porque, sendo certo que a grande viragem, no plano das tendências
económicas e sociais, é a que se dá a partir da crise mundial de 73, no aspecto da
política internacional aquilo que vem a ser mais decisivo é a mudança na União
Soviética, que conduz ao fim da URSS e do bloco socialista em 1989-91.
Tínhamos ficado nos meados dos anos 60, na altura em que o líder do partido e do
Estado, Nikita Khruschov, foi afastado do poder por uma espécie de pronunciamento ou
de golpe no interior da própria liderança soviética. Como vimos, ele marcara uma
viragem profunda na política interna e internacional em relação à herança de Stalin, por
uma espécie de liberalização que ficou conhecida como “degelo” e, sobretudo, pela
coexistência pacífica, que assinalou o fim da guerra fria propriamente dita. Mas a
liderança de Khruschov tinha acabado por sofrer de um aspecto de demasiado
personalismo e de uma espécie de instabilidade de temperamento do próprio
Khruschov, associada a alguns percalços na política internacional, o mais importante
437

dos quais foi o de Cuba, em que uma iniciativa demasiado arriscada como a colocação
dos mísseis acabou por se saldar por um recuo. Khruschov era também acusado de
voluntarismo e oscilação na política económica, de não acertar numa política
equilibrada em relação às reformas que pretendia fazer. Em suma, o seu comportamento
desencadeou reacções, reacções que no entanto não se pretendiam um regresso nem à
guerra fria nem ao stalinismo. Do ponto de vista formal e da maneira como foram
apresentadas pela nova liderança soviética, eram uma retoma do princípio da direcção
colectiva, em oposição ao subjectivismo. De facto, os primeiros anos pós-Khruschov
foram marcados por um triunvirato, ou seja, três personalidades que repartiam os
principais postos do Estado, Leonid Brezhnev como Secretário-Geral do Partido, Alexei
Kosygin como chefe do Governo, e Podgorny como Presidente do Soviete Supremo (o
equivalente a Presidente da República). E embora o facto de Brezhnev ser o líder
partidário lhe desse condições de certa proeminência no contexto do regime, durante os
primeiros anos, até 1968, tratava-se de facto de uma liderança colectiva em que, aliás,
uma parte decisiva das responsabilidades incumbia sobre o chefe do governo, Kosygin,
que foi o responsável de uma nova tentativa de reforma económica.
Desde o princípio da década de 60 que se constatava – e esse era um dos motivos de
crítica a Khruschov – uma tendência para a diminuição das taxas de crescimento do PIB
da União Soviética, embora essas taxas de crescimento continuassem a ser, e tenham
continuado a ser até à fase final da existência da URSS, superiores às dos países
capitalistas. Mas registava-se uma tendência para a diminuição dessas taxas e,
sobretudo, uma produtividade muito inferior à dos países desenvolvidos da Europa
Ocidental, e mais ainda em relação à produtividade nos EUA. Quer dizer, aquilo que
assegurava o crescimento da URSS era a disponibilidade extensiva de uma força de
trabalho abundante e uma economia de pleno emprego baseada num sistema de
planificação, a disponibilidade de recursos naturais (nomeadamente ainda as
possibilidades oferecidas pela exploração dos territórios da Sibéria), e a capacidade do
Estado, como poder económico exclusivo, de reunir meios e concentrá-los para
investimentos de grande importância. Mas, no que dizia respeito à produtividade, ou
seja, à produção por unidade de trabalho - por hora individual de trabalho, por exemplo
- essa produtividade era muito insatisfatória, no confronto com os países desenvolvidos
do mundo capitalista, o que punha directamente em causa toda a ideologia e propaganda
438

soviética. Propaganda que não era apenas publicidade no sentido em que hoje estamos
habituados a que cada partido ou cada empresa faz propaganda para vender o seu
produto ou promover os seus líderes, era uma propaganda que reflectia muito do
impulso da Revolução Socialista e do ideal comunista. A ideia da superação do
capitalismo pelo comunismo, por se revelar mais capaz de resolver os problemas
económicos e sociais, e da União Soviética como a sociedade mais avançada, era uma
ideia que não era só propagandeada mas também acreditada, que fazia parte intrínseca
da ideologia do partido e do Estado soviético. A insuficiência económica punha em
causa tais afirmações de superioridade e, mais concretamente, punha em causa a relação
com a população e a manutenção da credibilidade do regime.
É certo que o regime soviético tinha conseguido atravessar situações históricas
extremamente complicadas como a Segunda Guerra Mundial, através de um regime de
grande autoridade, repressão, disciplina e capacidade de organização, tinha depois, em
certa medida, mudado o estilo do governo com Khruschov. Mas o autoritarismo político
e o idealismo moral não são suficientes para sustentar o apoio da população se os
problemas materiais não são resolvidos. Aliás, os problemas básicos eram resolvidos.
Simplesmente, a partir dos anos 60, por exemplo com a difusão da televisão e o
desenvolvimento, no contexto da coexistência pacífica, de maiores possibilidades de
contacto com o Ocidente, mesmo que só para determinados grupos, põe-se cada vez
mais a possibilidade de comparação entre os níveis de vida na URSS e no mundo
ocidental, e essa comparação é desfavorável à URSS.
Há, em resumo, um problema de corresponder à necessidade de melhoria das condições
de vida da população, e é nesse quadro que se situa a análise dos problemas económicos
e a proposta de reformas. Essencialmente, o problema que o sistema de produção
planificada colocava, é que o plano estabelecia objectivos quantitativos detalhados para
os vários sectores da produção, sem uma relação com a procura e o gosto dos
consumidores. Ou seja, por critérios políticos era determinado aquilo que, quer em
termos de bens de produção, quer em termos de bens de consumo, era necessário para a
sociedade. Mas o mecanismo de adequação que existe, no capitalismo, entre a produção
e o consumo através do mercado, esse tipo de informação que o mercado fornece e
determina os preços em função da procura, falta num sistema em que os preços são
determinados por critérios políticos abstractos, sem uma informação permanentemente
439

actualizada sobre os interesses dos consumidores. Na prática, o que daqui com


frequência resultava, eram irregularidades no abastecimento de várias produções. Num
determinado momento, porque o plano tinha fixado que se produziam uns milhões de
sapatos, apareciam sapatos em quantidade para toda a gente a um ponto que excedia a
procura e, ao mesmo tempo que havia super-abundância de sapatos, havia escassez
noutras produções essenciais à vida. Os mecanismos de distribuição eram, também em
relação com isto, demasiado rígidos, não só na relação entre a produção e os
consumidores, mas nas próprias relações entre as empresas. Por outro lado, o facto de os
preços serem fixados por critérios sociopolíticos que não dependiam da relação entre a
oferta e a procura, que não dependiam do mercado, levava muitas vezes a fixar preços
que não tinham relação com os custos e, consequentemente, a um desperdício de
recursos, ou seja, não havia incentivo para procurar reduzir custos de maneira a, por
essa forma, reduzir também os preços e aumentar a procura.
O livro de Scipione Guarracino, que tenho continuado a seguir também nesta aula, cita
alguns exemplos, que chegam a ser cómicos, de consequências da planificação no que
diz respeito à produção de alguns bens como, por exemplo, o aço. O facto de se fixarem
objectivos em termos quantitativos, nomeadamente em termos de toneladas de aço,
significava que nenhuma empresa se esforçava por descobrir um método industrial que
permitisse alcançar um produto em aço de melhor qualidade, se essa melhor qualidade
se traduzia em menos peso porque, com isso, eram menos toneladas e, portanto, eram os
objectivos fixados pelo plano em toneladas que não eram preenchidos. Outro exemplo,
ainda mais caricato, é o da produção de um bem elementar como as lâmpadas. Por
vezes, fixavam-se os objectivos do plano em termos de produção de lâmpadas para todo
o território em capacidade energética, ou seja, em watts. Sendo assim, a tendência das
empresas era para fabricarem o máximo de lâmpadas de 100w ou 150w porque, com
poucas lâmpadas, atingiam os objectivos do plano fixados em termos da capacidade
energética, ou seja, mil lâmpadas de 150w alcançam o objectivo de 150 mil watts. O
plano tinha sido cumprido mas faltavam, para uso dos consumidores, as lâmpadas de
25, de 50 ou de 75w, que se usam para a maior parte das necessidades domésticas.
Inversamente, noutros períodos, o objectivo era fixado em termos de número de
lâmpadas e aí a consequência era produzirem-se muitas lâmpadas de 25w porque, com
menos custos, conseguiam-se produzir muitas lâmpadas e, nesse caso, sacrificavam-se
440

as lâmpadas de maior capacidade. São exemplos caricatos e que obviamente não eram
insuperáveis no quadro do sistema de planificação mas que apontam para as
consequências desse mecanismo, de carácter burocrático, na fixação dos objectivos e,
consequentemente, nos modos de execução do plano.
A reforma de Kosygin - baseada nos estudos de um economista que se tornou muito
conhecido na época, chamado Lieberman - procurava incentivar a autonomia das
empresas que, na medida em que fossem mais eficientes, poderiam realizar lucros,
acumular capital e reinvesti-lo. Isto era acompanhado por incentivos materiais para os
produtores, ou seja, mesmo no quadro da propriedade socialista dos meios de produção,
isto é, do monopólio do Estado sobre os meios de produção, os gestores e trabalhadores
das empresas mais eficientes eram compensados pelo reconhecimento da maior
eficiência alcançada. Alguma evolução houve neste aspecto, sobretudo entre os anos
1964 e 1968, mas os incentivos à autonomia das empresas implicavam alguma
democratização da gestão, implicavam necessariamente uma margem de discussão e de
decisão dos colectivos das empresas na própria escolha dos materiais, dos métodos e
ritmos da produção, da fixação de preços, etc. E, por seu turno, essa possibilidade de
discussão no colectivo das empresas, para ser eficaz, não podia ser independente de uma
maior amplitude de auscultação dos mercados, isto é, dos consumidores, da população
em geral. Como as coisas não existem separadas e, no fundo, a definição daquilo que é
prioritário em termos económicos não anda separado daquilo que são os gostos, as
orientações, as opções de vida, às duas por três vê-se que a autonomia da gestão e a
maior iniciativa das empresas tinha também implicações no aspecto político, isto é,
implicava liberdade de imprensa e liberdade de discussão porque só nesse quadro,
também, se podiam formar tendências colectivas de opinião articuladas com opções em
termos económicos. Esta experiência foi feita, e até certo ponto com aceitação da União
Soviética, na Checoslováquia que, no final de 1967, princípio de 1968, teve uma
mudança na liderança política que se orientou justamente neste sentido – era um dos
países onde já havia uma certa tradição de elaboração acerca dos temas económicos e da
reforma económica. É uma das questões que estão na génese da chamada “Primavera de
Praga”, ou seja, a tentativa da liderança política de Dubcek de liberalizar, abrir,
democratizar o sistema político. Mas a “Primavera de Praga” correu mal, isto é,
conduziu a uma situação em que o partido acabou por perder o controlo do processo, o
441

que acabou por levar – como sabem, porque já falámos nisso anteriormente – à
intervenção armada do Pacto de Varsóvia na Checoslováquia e ao fim da “Primavera de
Praga”. Portanto, foi uma experiência de certo modo traumatizante e com impacto
mundial, traumatizante no movimento comunista internacional e que pôs em causa e
anulou toda a orientação que tinha estado ligada à “Primavera de Praga”. Teve, também,
consequências na URSS, e uma das razões porque teve consequências foi que o fracasso
da Checoslováquia reforçou na URSS as tendências e os grupos sociais, nomeadamente
ligados à direcção política do Estado, que viam com uma posição de reserva e de
hostilidade qualquer tipo de abertura do sistema, porque ela iria pôr em causa o
monopólio do partido e, nomeadamente, a liderança da camada dirigente instalada. Não
se trata apenas de uma questão de defesa de grupos relativamente privilegiados. Eles
apontavam, com razão, que uma dinâmica apostada na melhoria da produtividade
levava inevitavelmente à competição entre empresas, a melhoria de qualidade de
determinados produtos inevitavelmente traduzir-se-ia em alta dos preços e,
consequentemente, inflação. Essa crítica, e até alguns aspectos negativos das reformas
realizadas, tinham também eco em sectores da população que achavam que os
dinamismos no sentido do mercado iam pôr em causa a estabilidade dos preços e, com
ela, a sua estabilidade de vida.
Mas não foi só o caso da Checoslováquia que influenciou este retrocesso da tentativa de
reforma económica na URSS. Desde o princípio dos anos 70, houve problemas
económicos com graves consequências sociais na Polónia. A Polónia era um país que,
em 1956, na altura da crise húngara e da invasão da Hungria pela União Soviética, tinha
tido uma crise semelhante, só que, no caso polaco, a crise foi superada com êxito e
pelos meios internos - o líder comunista polaco, Gomulka, tinha uma grande
popularidade e conseguiu superar a crise. Mas a Polónia teve algumas características
particulares no quadro do conjunto dos países de leste, por exemplo, a reforma agrária
nunca foi realizada completamente, houve sempre um importante sector de propriedade
privada na agricultura e, também, mais do que noutros países, certos sectores de
propriedade privada no pequeno comércio, nomeadamente. Isso implicou alguns
aspectos de atraso económico que a Polónia, no princípio da década de 70, tenta
compensar com alguns grandes investimentos, mas gerou-se neste contexto uma espiral
de subida dos preços, que esteve na origem de grandes greves. Estas foram defrontadas
442

com violência, levaram a um conflito sério e acabaram por provocar a demissão do


Gomulka. Foi uma crise de certa gravidade, aliás pode-se dizer que, depois disso, a
Polónia nunca mais regressou à normalidade. A persistência de sectores capitalistas na
economia combinou-se, a partir de certa altura, com a influência da Igreja católica, que
foi sempre muito grande na Polónia, e que vai sustentar um tipo de dissidência política
com mais continuidade do que noutros países.

Substancialmente, pode-se dizer que a tentativa de reforma económica na URSS, na


segunda metade da década de 60, falhou e, no essencial, manteve-se o mesmo sistema
rígido de planificação que, no entanto, já não tinha apoio num sistema político tão
drasticamente disciplinado como no tempo de Stalin e, por outro lado, também já não
tinha a sustentá-lo o entusiasmo revolucionário dos anos da colectivização e da
industrialização. Entra-se naquilo que veio a ficar conhecido como a “estagnação” e,
concretamente, a estagnação brezhneviana. Com a maior rigidez do regime e o fracasso
da reforma económica, a figura do Kosygin passa para segundo plano e, a partir do final
da década de 60, princípio de 70, há de novo uma espécie de personalização do poder
em torno do Secretário-Geral, que é Leonid Brezhnev e, portanto, o Brezhnev é que
marca, de facto, os doze anos seguintes, até à sua morte em 1982.

De qualquer maneira, era inevitável que algumas mudanças ocorressem no


funcionamento do sistema económico, mesmo tendo falhado as tentativas de reforma,
porque a economia soviética cada vez menos podia viver isolada do mundo como, em
grande medida, tinha acontecido até aos anos 60.
A ideia essencial de Stalin e da liderança stalinista desde os anos 20, a ideia do
“socialismo num só país”, isto é, de um desenvolvimento autocentrado e separado da
lógica do sistema capitalista mundial, de algum modo depois da Guerra reforçou-se,
porque o sistema se alargou a outros países e já não era apenas o “socialismo num só
país”, mas num conjunto de países. A partir dos anos 50 falou-se muito do sistema
socialista mundial como um campo homogéneo e contraposto ao sistema capitalista. A
verdade é que, na medida em que esse campo socialista era minoritário e
economicamente mais fraco e na medida, por outro lado, em que o desenvolvimento
capitalista do pós-guerra vai implicar uma crescente liberalização do comércio
443

internacional, a URSS não podia viver completamente à margem disso. Com a entrada
na coexistência pacífica e depois a passagem à détente, ao desanuviamento, deu-se uma
intensificação das relações económicas, que oferecia também oportunidades para a
União Soviética. O resultado do fracasso da reforma económica é que a URSS vai, em
relação a alguns dos problemas principais, e designadamente aos problemas que tinha
em matéria agrícola, aproveitar as oportunidades de comércio, nomeadamente com os
EUA, no sentido de adoptar a solução mais fácil para os seus problemas agrícolas, ou
seja, recorrer crescentemente às importações de trigo e outros cereais, em troca de
petróleo e gás natural que, justamente nos anos 70, têm uma importância enorme para o
mundo capitalista. Em suma, um dos aspectos paradoxais da situação da URSS dos anos
70 é que, ao mesmo tempo que é a superpotência alternativa aos EUA e a representante
de um “sistema socialista mundial” alternativo ao capitalismo, ela está, de facto, numa
situação de dependência crescente em relação ao mundo capitalista. Gera-se um tipo de
situação que, neste aspecto, não é muito diferente da relação normal entre os países do
terceiro mundo e os países capitalistas desenvolvidos, isto é, a URSS torna-se um
fornecedor principal de matérias-primas, como é o caso do petróleo e do gás natural,
para receber em troca equipamentos industriais e tecnologia. Um outro aspecto que vai
ser cada vez mais determinante e que vai marcar, mais ainda do que a URSS, os outros
países socialistas da Europa de Leste, é o recurso ao crédito de instituições financeiras
ocidentais, incluindo dos governos ocidentais.

No que diz respeito à Europa de Leste, essa evolução não foi simplesmente espontânea.
Foi decisiva a Ostpolitik (“política do leste”) inaugurada por Willy Brandt na segunda
metade da década de 60 e prosseguida de uma maneira muito sistemática quando Willy
Brandt se torna chefe do governo da RFA, em 1969. A abertura ao leste, a
intensificação das relações com a Europa de leste, incluindo a RDA, foi sempre vista
pelos sociais-democratas alemães como um meio de forçar a abertura das economias
desses países e, conhecendo a inferioridade em que estavam, explorar essa inferioridade
no sentido de criar mecanismos de dependência. Isso deu-se de uma forma muito
intensa e não inocente mas, obviamente, foram também opções dos governos da Europa
de Leste, que se julgavam seguros de controlar politicamente tal dependência. Portanto
há, nesta época, uma forte abertura às importações na generalidade dos países da Europa
444

Oriental, importações de equipamentos e de tecnologia e recurso ao empréstimo


externo. O empréstimo tende a gerar um ciclo vicioso porque, com os empréstimos,
inicia-se um princípio de criação da riqueza que depois abre a tentação de novos
investimentos para que, muitas vezes, são precisos outros empréstimos e, entretanto, os
juros vão aumentando e, por vezes, começa-se – o que era uma situação típica dos
países subdesenvolvidos – a ter de recorrer a novos empréstimos simplesmente para
pagar o serviço da dívida, isto é, os juros em atraso. Isto tem, por seu turno,
consequências no plano interno porque, naturalmente, recorria-se ao empréstimo para
dinamizar a economia e ir ao encontro de carências das populações. Mas quando, nos
anos 80, se agravam as condições económicas mundiais e as taxas de juro sobem muito,
a única maneira de assegurar o serviço da dívida é aumentar os impostos e aumentar os
preços, isto é, fazer repercutir a dívida do Estado sobre o custo dos produtos e isso vai,
por seu turno, ter incidências fortes no nível de vida da população e ser um dos factores
de descontentamentos sociais que geram reacções políticas.
A situação dos vários países da Europa de Leste e da URSS era, neste aspecto, diversa,
a história dos vários países era diferente. O certo é que, mesmo na URSS, que estava
mais afastada dos países ocidentais pelas circunstâncias históricas e geográficas, nasce
uma imprensa de oposição semi-clandestina, o chamado samizdat, publicações que
circulam num meio, à partida pequeno, sobretudo de intelectuais, muitas vezes
manuscritas ou tiradas em pequenas quantidades, mas que se vão propagando.
É importante ter presente que as condições políticas, apesar da repressão pontual (aliás a
época após a queda de Khruschov foi marcada por uma certa intensificação da
repressão), não eram comparáveis ao que tinham sido no tempo do Stalin. A partir dos
anos 70 existe, com carácter permanente, o fenómeno dos chamados “dissidentes”,
muitas vezes personalidades de certo prestígio literário, e o regime tem que se
confrontar mas, ao mesmo tempo, que se conformar com a permanência desses grupos.
Aliás, em 1975, foi atribuído o Prémio Nobel da Paz ao físico soviético Andrei
Sakharov, o mesmo Sakharov que em 1954 fora galardoado na URSS com o Prémio
Stalin (também da Paz), neste caso pela decisiva contribuição para a bomba de
hidrogénio soviética. Sakharov tinha entretanto publicado a brochura “Coexistência
Pacífica e Liberdade Intelectual”, uma espécie de panfleto em favor da extensão da
coexistência pacífica ao próprio funcionamento da sociedade soviética, uma
445

reivindicação da liberdade de opinião e de formulação de alternativas ao regime. O facto


de lhe ter sido atribuído o Nobel da Paz não foi inocente, tratou-se de promover, de dar
projecção internacional a uma figura de destaque da dissidência.
Nos países da Europa de Leste, a dissidência nunca tinha desaparecido completamente,
nomadamente em certas minorias intelectuais, e um dos países onde consegue
encontrar, na transição da década de 70 para a de 80, uma influência que ultrapassa a de
pequenos círculos de intelectuais para se tornar um movimento de massas, é na Polónia.
A Polónia que, em 1980, tinha vivido uma crise social grave, com os protestos contra as
elevações de preços e um movimento de reivindicação salarial, era um país muito
permeável à extensão da contestação contra o partido no poder, o Partido Operário
Unificado da Polónia. Vai ser decisiva nessa extensão a influência católica e o facto de,
em 1978, para surpresa geral, ter sido eleito Papa um bispo polaco, Karol Wojtyla, que
se torna o Papa João Paulo II (aliás, a chegada dele ao Papado está envolta num certo
mistério porque, uns meses antes, tinha sucedido a Paulo VI o João Paulo I, que não era
velho mas morreu subitamente, e há quem ponha a hipótese de ter sido envenenado). A
eleição de Karol Wojtyla foi surpreendente porque havia séculos que os Papas eram
sempre italianos. Em 1979, João Paulo II fez uma viagem à Polónia onde foi
delirantemente aclamado, teve um grande impacto público. Desde 1970 que se
desenvolvia uma agitação operária em ligação com a oposição intelectual, de maneira
que, quando se dão os conflitos em 1980, há uma opinião pública disponível para a
oposição. A oposição vai organizar-se de facto em torno de um sindicato, o chamado
Solidarnosc (“Solidariedade”), fundado em 1980 por um trabalhador dos estaleiros de
Gdansk, Lech Walesa, ele próprio católico e conservador. O Solidarnosc torna-se uma
potência que negoceia com o governo e que desenvolve uma larga agitação, não só
contra as elevações de preços, mas de reivindicação política.
Justamente, a Polónia era um dos países que tinham realizado maiores investimentos
apoiados no crédito externo e que se encontra, nesta altura, apertado pelo garrote da
dívida externa e da tentativa de defrontar essa dívida pelas elevações dos preços. A
contestação atinge uma dimensão tal que o chefe do governo, o General Jaruzelski, em
Dezembro de 1981 decide instaurar o estado de emergência, ou seja, instaurar uma
situação de disciplina militar, com a suspensão das liberdades públicas. Foi uma medida
que, no contexto dos anos 80, representou, sem dúvida, um sinal da fraqueza do sistema
446

socialista e suscitou também discussões e oposições, nomeadamente nos partidos


comunistas da Europa Ocidental. No entanto, era uma medida temporária, porque o
Solidarnosc foi suspenso na altura mas depois foi legalizado de novo, e era uma medida
tendente sobretudo a evitar uma intervenção armada soviética semelhante à que tinha
havido em 1968 na Checoslováquia, mas foi uma medida que chocou toda a gente e que
faz parte do contexto do agravamento das relações internacionais, da chamada “segunda
guerra fria”, deste princípio da década de 80.

Neste denso contexto do princípio da década de 80 - Reagan tinha tomado posse


recentemente, desenvolvia-se a ofensiva neoliberal, tinham sido suspensos os Acordos
SALT, iam-se instalar os euromísseis (o que agravava os riscos de uma guerra na
Europa), havia problemas económicos e políticos graves em vários países do bloco de
leste - dá-se, em 1982, a morte de Leonid Brezhnev, o líder soviético.
Brezhnev era uma figura cuja permanência em funções já só se explicava pelo seu papel
como figura de referência porque, mesmo fisicamente, era um símbolo da paralisia do
sistema soviético, estava velho e decrépito. No entanto, tinha acumulado nos últimos
anos títulos e honrarias, concentrava em si as posições de líder do partido, chefe do
governo e tinha sido feito marechal da União Soviética. Era preciso encontrar um novo
líder do partido e do Estado e foi nomeado Yuri Andropov, que tinha menos de 70 anos,
uma idade inferior à da média do Politburo soviético. Andropov é uma figura
interessante e ainda hoje celebrada entre os comunistas russos porque era de facto um
homem inteligente e que tinha sido o chefe do KGB mas, além disso, era poeta, um
sujeito com capacidades intelectuais e com consciência de alterações que era preciso
introduzir no sistema económico e político. Acontece, simplesmente, que Andropov não
pôde realizar quase nada do que pretendia porque morreu passado um ano, no princípio
de 1984. Ou seja, o problema de liderança não foi resolvido e continuou a não o ser
porque, em 1984, a solução que a liderança soviética encontra é eleger Konstantin
Chernenko, também velho e doente, que morre passado um ano.

Convém ter presente que a situação desta primeira metade dos anos 80 era
invulgarmente tensa, embora não tenha havido nenhum acontecimento comparável ao
que foi, por exemplo, a crise de Cuba em 1962, ou mesmo às repercussões da guerra da
447

Coreia nos princípios dos anos 50. A coexistência pacífica não estava abertamente posta
em causa mas, nomeadamente com a questão dos euromísseis, o ambiente internacional
era muito pesado. Foi uma época em que se realizaram importantes manifestações pela
paz em vários países europeus e, embora não se falasse nisso, havia uma preocupação
com o risco de uma guerra nuclear.
Com aquilo que eram os arsenais disponíveis, o conflito nuclear tinha-se tornado
qualquer coisa de dimensões impensáveis. Scipione Guarracino indica, e é um número
expressivo, que os EUA e a URSS dispunham em conjunto de 50 mil ogivas nucleares,
o que corresponde um milhão e seiscentas mil bombas atómicas como a de Hiroshima.
Escreve também uma frase que corresponde muito àquilo que recordo sobre a época:
“1983 tornou-se rapidamente o ano em que as tensões entre as duas grandes potências
alcançaram o mais alto grau desde 1962, senão mesmo desde 1950, e por todo o triénio
1982/84 voltou a pairar a atmosfera de ‘holocausto nuclear’ e fim do mundo que a
distensão tinha feito parecer definitivamente arquivada.”99
Neste contexto, surge de facto como uma surpresa, quando Konstantin Chernenko
morre em Março de 1985, a eleição para Secretário-geral do PCUS de uma figura do
Politburo soviético relativamente jovem (tinha 50 e tal anos), Mikhail Sergeyevitch
Gorbatchov, que por sinal tinha estado, poucos anos antes, em Portugal, num Congresso
do PCP. A sua eleição foi surpreendente, porque se tinha de tal maneira identificado a
liderança soviética com uma gerontocracia que este simples facto de ser um sujeito
nascido nos anos 30, que tinha feito toda a sua vida adulta e carreira política já depois
da morte do Stalin, foi uma surpresa. Mas uma surpresa pequena em comparação com o
que estava para vir.
As primeiras aparições em público do Gorbatchov não tiveram nada de especial, a não
ser o facto de que ele desde cedo se empenhou em conversações com os líderes dos
países ocidentais. Um dos primeiros encontros foi logo em 1985, poucos meses depois
de ter tomado posse, uma cimeira com Reagan em Genebra, e em 1986 houve outra em
Reykjavik, na Islândia.
A preocupação com a crise económica, com os impasses da economia soviética, ficou
também clara nos seus primeiros discursos. Aliás, as primeiras iniciativas para a

99
Storia degli ultimi sessant’anni, p. 260-261.
448

superação da crise económica pareciam ir no sentido de um certo autoritarismo. Um dos


aspectos mais frisantes foi a campanha anti-alcoólica, o combate ao alcoolismo, visto
como um factor de quebra de produtividade e de desmoralização da sociedade.
Uma das outras medidas que Gorbatchov anuncia é a ideia de acabar com a corrida aos
armamentos e cessar a intervenção no Afeganistão, que estava a empenhar um número
crescente de soldados soviéticos num confronto indirecto com os EUA (que apoiavam
os guerrilheiros islamistas) e gerava descontentamento na sociedade soviética.
As negociações, que começaram em Genebra em 1985 e depois continuaram em
Reykjavik e, finalmente, em Washington em Dezembro de 1987, desembocaram num
acordo que se pode considerar que se saldou numa primeira derrota, não assumida como
tal, dos soviéticos em relação aos EUA. Foi aceite a chamada opção zero em matéria de
euromísseis, proposta por Reagan. Quer dizer, os soviéticos abdicaram da instalação dos
mísseis SS 20 e os americanos abdicaram dos mísseis Pershing, mas mantinham-se os
mísseis ingleses e franceses que estavam apontados para a URSS.
Em contrapartida, a chamada “guerra das estrelas” (com o nome oficial de Iniciativa de
Defesa Estratégica), ou seja, o tal escudo nuclear com base em satélites muito
sofisticado e muito caro, foi congelado. A questão da guerra das estrelas ficou, de
algum modo, arrumada. A partir deste acordo de Washington, concordaram também em
iniciar conversações para a redução dos arsenais nucleares, quer dizer, até aí os acordos
concluídos efectivamente, os acordos SALT, diziam respeito apenas à contenção, a não
construir novos mísseis, agora tratava-se de começar a reduzir drasticamente, isto é, de
passar à destruição de uma parte do armamento nuclear de ambas as partes. Logo
depois, em 1988, a URSS retirou completamente do Afeganistão e a seguir reduziu em
10% os próprios efectivos do Exército Vermelho.

É também por esta altura, em 1987, que Gorbatchov publica uma obra que foi muito
divulgada em todo o mundo e cujo título deu o nome ao seu programa e é, de algum
modo, indissociável da sua própria existência política, um livro intitulado Perestroika.
“Stroit” significa construir, “pere” é um prefixo que implica alteração, “Perestroika” é
portanto a reconstrução ou reestruturação. A palavra “Perestroika” ficou não só como
título do livro mas como o símbolo daquilo que ele se propunha fazer, que era uma
remodelação ou uma alteração profunda das estruturas do Estado Soviético, em suma,
449

do regime socialista tal como ele existia e que, na sua configuração fundamental, no que
diz respeito à estrutura política, à direcção do partido sobre o Estado, ao monopólio de
poder do partido comunista e ao monopólio económico do Estado, era o mesmo sistema
desde os anos 30.
Não foi só um slogan e um programa, foi também um tema de certo alarde doutrinário.
O livro Perestroika, aliás, para quem o lesse à procura de uma informação sobre os
problemas internos e internacionais da União Soviética e esperasse encontrar citações
do Marx e do Lenin, surpreendia, pela absoluta ausência de fundamentação marxista,
embora houvesse referências a algumas ideias do Lenin do período da NEP. No
essencial, apresentava-se como um novo pensamento para a realidade completamente
nova da sociedade contemporânea, contendo inclusive formulações que implicitamente
punham em causa toda a tradição do marxismo, nomeadamente a ideia da prevalência
dos interesses gerais da humanidade sobre a luta de classes. É uma formulação que não
faz sentido do ponto de vista marxista, porque a teoria da luta de classes e da superação
da luta de classes através da revolução socialista, na perspectiva marxista é, justamente,
a abordagem da contradição essencial das sociedades modernas. Havia no livro um
certo idealismo de formulações, ao mesmo tempo que uma pretensão de inovação, não
apenas prática mas doutrinária, teórica, global.
Em termos concretos e em relação aos problemas económicos, a Perestroika iniciou
uma orientação que reduzia – e que reduziu, na prática, drasticamente – o papel da
planificação no funcionamento da economia soviética e, pelo contrário, incentivava as
empresas a adoptarem princípios de cálculo económico clássico, investir naquilo que dá
lucro, adoptar os procedimentos mais vantajosos em termos de poupança de recursos.
Implicitamente, este apelo ao cálculo económico e à autonomia das empresas implicava
a introdução de lógicas de concorrência. É certo que não havia na União Soviética
capital privado, pelo menos com importância significativa, em princípio tratava-se de
uma redinamização das empresas do Estado mas, de facto, logo a seguir, foram também
introduzidas leis que abriam espaço à constituição de empresas de economia mista, isto
é, com participação dos privados e até, em certos sectores, de uma maneira
generalizada, às pequenas empresas. Esta orientação conduziu, nesses anos, a uma
proliferação de pequenos negócios de todo o tipo.
450

Na RDA, nos anos 70 e no quadro dos acordos com o Willy Brandt, passou a ser
autorizada a emigração dos maiores de 65 anos e, no quadro do crescente intercâmbio
científico e técnico, havia pessoas, nomeadamente na área da cultura, do ensino e das
artes, que tinham a possibilidade de viajar para o estrangeiro, e algumas aproveitavam
para se exilar na RFA. Além disso, tendo Berlim Ocidental como um enclave no meio, a
RDA tinha tido que aceitar o acesso da generalidade da população à televisão da
Alemanha Ocidental e consequente influência. Apesar dos relativos êxitos económicos,
o autoritarismo inerente ao regime era sentido por largas camadas da população.
Nos anos 80, é também um dos países crescentemente sujeitos à pressão da dívida
externa e onde, por isso, as condições económicas se agravam. E é um país que vai
rejeitar desde o início a orientação das reformas de Gorbatchov (o que tem a ver com
muitos factores: a tentativa de preservar a sua independência em relação à RFA, o
próprio facto histórico de que a RDA tinha sido uma criação dos comunistas
perseguidos no tempo do Hitler - um certo carácter de intransigência política estava
presente na cultura histórica do comunismo alemão, talvez de uma forma mais marcada
do que noutros países; o próprio Honnecker, o líder do SED, era um homem que vinha
do tempo da luta contra Hitler). O certo é que a RDA é um dos países que recusam
adoptar qualquer tipo de orientação semelhante à Perestroika mas, como a influência
desta também se faz sentir em círculos da sociedade alemã-oriental, o resultado é um
agravamento do clima repressivo. Bastava ter passado na RDA durante essa época para
sentir, nesse aspecto, um agravamento do clima político na relação entre os cidadãos e o
regime entre o final dos anos 70 e os meados da década de 80.
No caso da Checoslováquia, a situação é ainda diferente e ficou sempre marcada pela
intervenção de 1968 que, no entanto, nunca erradicou completamente a oposição das
correntes críticas. Desde 1977, constituiu-se um movimento dissidente chamado “Carta
77”, encabeçado por um escritor relativamente famoso chamado Vaclav Havel, que
entretanto foi Presidente da República e ainda hoje aparece nos jornais. A “Carta 77”,
por um lado, era proibida e perseguida mas, ao mesmo tempo, era tolerada e acabou por
se institucionalizar como uma espécie de oposição permanente. No princípio de 1989,
Vaclav Havel foi condenado a nove meses de prisão mas, na sequência, houve um
movimento de manifestações que acabou por levar à demissão de Gustav Husák, o líder
comunista.
451

Em suma, havia na Europa de Leste situações diversas, cada uma delas potenciadora de
eventuais crises. Acrescenta-se a isto a influência crescente da Igreja católica e o
proselitismo de João Paulo II, cuja presença na Polónia já tinha contribuído
decisivamente para os problemas da década de 80. Todo o papado do João Paulo II foi
muito marcado por um intervencionismo político, que se fez sentir igualmente na
Hungria, onde uma parte da população era católica.
Na Polónia, a dívida externa galopante implicou como consequência a inflação e esta,
por seu turno, gerou agravamento das oposições. No quadro da influência da
Perestroika, o governo evolui para uma tentativa de conciliação com o Solidarnosc e, no
princípio de 1989, cria a chamada “mesa redonda”, ou seja, uma instituição de
discussão política entre o governo e o Solidarnosc como oposição, com a mediação da
Igreja, reconhecendo a necessidade de uma reforma política. O resultado prático desta
“mesa redonda” vai ser a tomada do poder pela oposição. As eleições de Junho de 1989,
para a composição de uma parte do Parlamento, dão a maioria à oposição. O regime
reservou um certo número de lugares, mas isso tornou ainda mais sensível o seu carácter
anti-democrático e, em resultado disto, dessas eleições de Junho de 89 saiu a nomeação
de um representante católico como chefe do governo e a evolução para um regime
diferente.
Na Hungria a reforma económica teve um certo êxito mas o líder comunista, Janos
Kadar, que já tinha uma certa idade, em 1988 foi obrigado a demitir-se e, em paralelo,
constituiu-se um partido de oposição chamado “Fórum Democrático” que, em 1989,
organizou agitação, nomeadamente conseguiu desenvolver essa agitação em torno dos
funerais de Imre Nagy, o homem que tinha sido preso pelos soviéticos e depois fuzilado
em consequência dos acontecimentos de 1956. Isto foi uma espécie de vingança dos
insurrectos de 1956 e, nesta sequência, realizaram-se eleições que conduziram à vitória,
já em 1990, do “Fórum Democrático”.

A evolução na RDA vai ser precipitada em consequência da evolução dos países


limítrofes, nomeadamente na Hungria. Em Maio de 1989, a Hungria tinha aberto a
fronteira e, em consequência, intensificou-se muitíssimo o movimento das emigrações a
partir da RDA, ou seja, os cidadãos da RDA pediam visto para a Hungria, que era
452

consentido porque a Hungria era um país do bloco socialista, da Hungria passavam para
a Áustria e da Áustria para a Alemanha onde eram recebidos com todas as honras –
qualquer alemão que quisesse sair da RDA tinha, nesta época, a garantia de ser bem
acolhido e de ter emprego na RFA. O movimento de emigrações aumentou muito e, na
sequência, muita gente começou também a procurar asilo nas embaixadas ocidentais, na
própria RDA ou na Hungria. Entretanto, a Igreja Evangélica teve também um papel no
apoio aos movimentos de contestação que, a partir de Outubro, organizam
manifestações. Em Outubro, Erich Honnecker demite-se (também já estava velho), é
substituído por Egon Krenz, ex-dirigente da organização juvenil, o qual entra em cena
com um amplo programa de reforma e abertura política, que a oposição toma à letra. As
manifestações, que já tinham começado antes, não cessaram, simplesmente o êxito
obtido com a demissão de Honnecker impele os manifestantes a uma atitude mais
revolucionária, e é nesse contexto que começa o assalto e o derrube do muro de Berlim.
Para a liderança da RDA era impensável, nesta altura, fazer cessar o movimento através
de uma intervenção de força – não teria o apoio da URSS para esse efeito, e por outro
lado isso seria contraditório com todo o discurso de abertura política que a nova
liderança tinha assumido. Portanto, aceitaram a abertura da fronteira e, nos meses
seguintes, desenvolveu-se um processo de evolução, discussões a todos os níveis,
formação de novos partidos e associações, aliás num quadro que era ainda de forte
presença de ideias socialistas. No próprio SED, o partido comunista no governo, havia
muitos que defendiam a subsistência da RDA como Estado socialista reformulado nas
suas estruturas, aceitavam a supressão da polícia política, a Stasi, e reivindicavam-se de
uma ideia de democracia socialista: em 1990, o SED (Sozialistische Einheitspartei
Deutschlands, Partido Socialista Unificado da Alemanha), adoptou um novo nome, PDS
(Partido do Socialismo Democrático). Houve várias figuras da intelectualidade da RDA
e da própria RFA, nomeadamente na esquerda do Partido social-democrata, que
defendiam que a RDA devia subsistir, e ao mesmo tempo aproveitar a oportunidade
para se transformar. Por exemplo, Günter Grass, o famoso escritor da Alemanha
ocidental, era contrário à anexação da RDA pela RFA. Mas os governantes da RFA,
nomeadamente o Chanceler Helmut Kohl, apostaram tudo em apressar a unificação.
Não há dúvida que se tornou maioritária na opinião pública da RDA a vontade de fusão,
de unificação com a RFA. Antes da queda do muro, nas manifestações gritava-se “Wir
453

sind das Volk” (“nós somos o povo”), esse slogan era já uma resposta à propaganda do
regime, que tinha como lema “fazer tudo para o povo”. Este mesmo slogan,
ligeiramente alterado, vai ser a bandeira dos partidários da unificação. Passam do “Wir
sind das Volk “ (“o” povo) para “Wir sind ein Volk” (“um” povo): um povo único nas
duas Alemanhas devia ser unificado numa única Alemanha.
Funcionou nisto, decisivamente, a atracção da superioridade da economia da RFA, a
força do DM (marco alemão). Helmut Kohl assegurou condições extremamente
vantajosas (no imediato) para a unificação e para a reforma monetária, nomeadamente
aceitou o princípio da troca do marco da RDA ao par com o marco da RFA quando, na
prática, o marco da RDA tinha menos poder de compra. Além disso, cada cidadão da
RDA que ia visitar a RFA, nestes dias a seguir à queda do muro, recebia logo à entrada
uma espécie de bolsa que dava para as despesas de uma visita turística. Deste modo,
quando em Março de 1990 se realizam as eleições, vence a CDU, ou seja, o Partido
Democrata Cristão, do Chanceler Kohl. Destas eleições praticamente resultou a decisão
pela reunificação.
Entretanto, num encontro em Moscovo, em Setembro de 1990, de representantes das
potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, é decidido abolir os acordos de
Potsdam sobre a Alemanha, acabando com os controlos internacionais estabelecidos
desde 1945. Na prática, isto significava aceitar a anexação da RDA pela RFA.

Na Bulgária, a evolução não foi tão rápida no sentido do restabelecimento do regime


capitalista. A Bulgária era um dos países onde, pela participação na resistência a Hitler,
o partido comunista teve, pelo menos nalgumas fases, uma maior implantação nacional
e, por outro lado, era também um país culturalmente mais próximo da União Soviética.
O Partido Comunista mudou de nome para Partido Socialista, ganhou ainda as eleições
de 1990 e só veio a perder o poder mais tarde.

O único caso mais dramático de fim de regime foi o da Roménia que era, aliás, uma
situação particular, porque a Roménia tinha uma liderança muito pessoalizada na figura
de Nikolai Ceausescu, era, pode dizer-se, um regime de poder pessoal. Também na
Roménia houve grandes manifestações anti-Ceausescu, mas foram de alguma maneira
454

aproveitadas por uma oposição interna ao próprio partido, que manteve o poder,
simplesmente julgou, condenou e fez executar Nikolai Ceausescu e sua mulher Helena.

Tendo os partidos comunistas perdido o poder nos países de leste, logo a seguir, em
1991, dissolve-se o COMECON, o mercado comum da Europa de Leste, e dissolve-se a
aliança militar que era o Pacto de Varsóvia.
Num curto espaço de poucos anos, a realidade tinha ultrapassado largamente aquilo que
era o projecto do Gorbatchov que, segundo Guarracino, se pode sintetizar como um
projecto defensivo, e parcialmente de retirada, mas que contava com as capacidades dos
partidos comunistas no poder para reconquistarem o consenso, e se apoiava na
convicção de que as reformas económicas rapidamente teriam dado resultados. Nada
disto aconteceu. Pelo contrário, ao colapso dos países do bloco de leste juntou-se a
precipitação da crise económica na URSS que, em 1990, registou pela primeira vez uma
diminuição do crescimento do produto e, em 1991, uma diminuição do PIB em 17%, o
que é uma queda absolutamente catastrófica, num quadro de falências e desemprego que
conduz à desvalorização do rublo e, inevitavelmente, ao desprestígio interno de
Gorbatchov. Gorbatchov ainda se iludiu durante algum tempo sobre a capacidade de
sustentar o poder. Continuou a viajar e a ser muito falado na imprensa internacional
mas, no plano interno, perdeu completamente o prestígio e, sobretudo, vai-se ver
crescentemente isolado entre dois grupos que se reforçam, para um lado e para outro.
Por um lado, aquilo que se pode considerar a esquerda, aqueles que, mesmo tendo
projectos reformadores, pretendem manter a União Soviética como Estado socialista
(nomeadamente Ligatchov), por outro lado aqueles que querem liquidar a União
Soviética e integrar completamente a Rússia na lógica das relações económicas e
políticas internacionais e que vão adoptar como líder o chefe do Partido Comunista da
Federação Russa, Boris Ieltsin. Ieltsin ganha uma efectiva popularidade e acaba por
forçar o afastamento de Gorbatchov.
Um factor decisivo da crise que irá desembocar na dissolução da URSS é o
agravamento do problema das nacionalidades que, aliás, alguns analistas já desde os
anos 70 apontavam como um potencial factor de colapso da URSS.
Nos anos 70 era quase impensável que a URSS e o socialismo soviético alguma vez
deixassem de existir, no entanto houve quem começasse a pôr essa hipótese. Uma das
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analistas que é uma das melhores conhecedoras da história e da sociedade russas, a


francesa Helène Carrère d'Encausse, escreveu em 1978 um livro intitulado “O Império
em explosão” (L’Empire éclaté) que apontava para os riscos que o problema das
nacionalidades podia vir a constituir para a sobrevivência da URSS. A URSS era
composta por vinte grandes e mais de cem pequenas nacionalidades, em muitos casos
em situação de sobreposição, isto é, com determinadas minorias repartidas por várias
das Repúblicas. Este problema começou por se fazer sentir no Nagorno-Karabakh, uma
região do Azerbaijão com população predominantemente arménia - uma espécie de
enclave de maioria arménia no Azerbaijão -, que a Arménia reivindica como parte do
seu território e no qual, de facto, a maioria se identifica como arménia. Mais importante
ainda é o problema dos Estados Bálticos, Estónia, Letónia e Lituânia, que tinham
pertencido ao Império Russo Czarista e que depois tinham sido integrados na União
Soviética, com o Tratado Germano-Soviético de 1939, como repúblicas da URSS. O
problema aqui complica-se, e é ainda hoje um problema grave, embora hoje estas três
Repúblicas sejam independentes, porque, ao longo dos anos de integração na URSS,
houve uma grande emigração russa para, nomeadamente, a Estónia e a Letónia, e os
russos constituem uma parte importante da população destes países. O certo é que, entre
Março e Maio de 1990, estas Repúblicas declararam independência. Houve ainda
tentativas de Gorbatchov de reprimir os movimentos neste sentido, mas acabaram por
proclamar a independência.
Entretanto no Partido Comunista Soviético, Boris Ieltsin demite-se do partido e, logo a
seguir, faz-se eleger Presidente da Federação Russa e, a partir daí, assume uma posição
institucional em paralelo e em oposição a Gorbatchov. Perante isto, Gorbatchov resolve
organizar um referendo para a preparação de uma nova Federação que viria substituir a
URSS, uma nova forma estatal livre a que adere quem quer. O resultado deste referendo
é porém que, não só os países bálticos votam pela independência, como também a
Arménia, a Geórgia e a Moldávia adoptam imediatamente a independência.
Entretanto, a situação interna na Rússia entrava numa espécie de anarquia, com a
inflação a 300%, ou seja, os preços num ano tinham aumentado para o quádruplo, e esta
situação de anarquia é aproveitada por um grupo do próprio círculo em torno de
Gorbatchov - não a esquerda comunista de Ligatchov -, um grupo que aproveitou a
estadia de Gorbatchov em Agosto na Crimeia para tentar um golpe de estado,
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instituindo um “comité do estado de emergência” e suspendendo a nova Constituição.


Foi uma espécie de tentativa desesperada de reposição da situação anterior a 1985, que
nem sequer contava com apoio sólido no seio do Partido, e que desencadeou
imediatamente uma resistência popular, uma forte concentração de manifestações. Foi
um golpe que tão pouco estava apoiado em forças militares e, portanto, fracassou
completamente.
Quem beneficiou dele foi Ieltsin, que encabeçou as manifestações. Gorbatchov, que
tinha sido preso quando estava na Crimeia, volta e participa numa reunião em Moscovo
em que está já numa posição defensiva. Ieltsin insinua que ele é que abriu espaço à
tentativa de golpe e, em plena sessão do Congresso do Povo, apresenta um papel
dizendo que aquele é o decreto que doravante proíbe o Partido Comunista. Isto num
momento em que o Secretário-geral do Partido Comunista da URSS era ainda
Gorbatchov, que estava ao lado dele e que, teoricamente, ele, Ieltsin, tinha salvo do
golpe. É uma situação um bocado caricata: de facto, Gorbatchov foi salvo, mas em
posição tal que de facto perdeu o poder. Poucos meses depois, em Dezembro de 1991, o
próprio Ieltsin, como representante da Federação Russa, junta-se com representantes da
Bielorrússia e da Ucrânia e põe termo à URSS. Já tinham saído anteriormente da URSS
os Países Bálticos, bem como a Arménia, a Geórgia e a Moldávia. A maior parte das
nações que restavam saíram nesta altura, portanto a URSS deixa de existir. Constitui-se
formalmente a Comunidade de Estados Independentes que ainda hoje, teoricamente,
existe e reúne uma parte das repúblicas que tinham constituído a União Soviética mas
que, na prática, não tem existência nenhuma.
Gorbatchov tinha assim perdido qualquer poder efectivo e ele próprio dissolve o Partido
Comunista da União Soviética. No dia 25 de Dezembro de 1991, a bandeira vermelha
que desde 1917 estava no Kremlin foi arreada e substituída pela bandeira azul e branca
da tradição monárquica russa.
Com isto acabou a URSS e acabou um período histórico marcado pela contraposição a
nível mundial dos sistemas socialista e capitalista. Certamente não terminaram as
alternativas socialistas nem acabaram os países no mundo - mesmo assim são muitos e
uma parte importante da população mundial - que se reclamam de uma ideologia
socialista, a começar pela China. Mas acabou a bipolaridade entre um campo socialista,
tendo como pólo hegemónico a União Soviética, e um campo capitalista e, sobretudo,
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entrou-se numa fase histórica de que desapareceu a estruturação que era conferida
justamente pela existência desse bipolarismo.
Por muito que hoje se descreva a guerra fria como a situação característica do
bipolarismo da segunda metade do século XX, por muito que se diga que a guerra fria
significava uma ameaça ou uma iminência de possível guerra nuclear, a verdade é que a
“guerra fria” - sobretudo com a evolução que as coisas tiveram ao longo dos anos 60 e
70 no sentido da coexistência e do desanuviamento -, representou uma estrutura de
organização que condicionava o desenvolvimento dos conflitos locais ou regionais.
Desaparecida esta possibilidade de condicionamento, esses conflitos multiplicaram-se.
Por outro lado, na medida em que a proliferação nuclear, apesar dos tratados existentes,
se intensificou muitíssimo, porque hoje os Estados que possuem a arma nuclear são
vários, é evidente que a possibilidade de um conflito local ou regional vir a traduzir-se
na utilização da arma atómica é muito menos controlável do que era anteriormente.
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