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cadernos de teatro

TEATRO NA EDUCAÇÃO - Maria Clara Machado


TEATRO PROFÉTICO' - Christian Gilloux
A MORTA - Oswald de Andrade
DO'S JORNAIS
MOVIMENTO TEATRAL (Janeirojmarçoj72)
CADERNOS~DETEATRO N. 52
janeiro-fevereiro-março-1972

Publicação d'O TABLADO patrocinada pelo


Serviço Nacional de Teatro (MEC)
Redação e Pesquisa d'O TABLADO

Diretor-responsável - JOÃo SÉRGIO MARINHO NUNES


Diretor-executioo - MARIA CLARA MACHADO
Diretor-tesoureiro - EDDY REZENDENUNES
Redator-chefe - VIRGINIA VALLI

Redação: O TABLADO
Av. Lineu de Paula Machado, 795 - ZC 20
Rio de Janeiro - Guanabara - Brasil

Os textos publicados nos CADERNOS DE TEATRO


só poderão ser representados mediante autorização
da Soc-iedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT),
avo Almirante Barroso, 97, Guanabara.
TEATRO PROFÉTICO

1936

ARTAUD:
Queremos ressuscitar uma idéia do espetáculo total,
em que o teatro retomará ao cinema, ao rnusic hall,
ao circo e à própria vida o que sempre lhe pertenceu.
A sala será fechada por quatro paredes, sem qualquer
1919 espécie de ornamento e o público sentado, no meio da
sala, em baixo, em cadeiras móveis que lhe permitirão
GROPIUS: acompanhar o espetáculo que se passará em redor dele.
De fato, a ausência de palco no sentido comum da pala-
Em sua origem, o teatro nasceu de uma nostalgia vra convidará a ação a desdobrar-se nos quatro cantos
metafísica. .. A seção teatral da Bauhaus busca possi- da platéia.
bilidades novas que possam satisfazer essa nostalgia mís-
tica; ela deseja dar ao seu trabalho não só satisfações Não haverá cenário; bastará para esse ofício per-
estéticas mas criar essa alegria primitioa perceptível a sonagens-hieroglifos, trajes rituais, manequins de dez
todos os sentidos. metros de altura ...

um teatro de sangue
um teatro que, a cada representação, fará ganhar
1932 corporalmente
alguma coisa àquele que representa
ARTAUD: como àquele que vem ver representar
pois
Desejamos introduzir a natureza inteira no teatro,
não se representa
tal como queremos realizá-lo. POf mais vasto que seja
age-se.
esse programa, ele não ultrapassa o próprio teatro, que
r .
parece identificar-se com as forças da antiga magia. O teatro é, na realidade, a gênese da criação.

1
]969 CHRISTIAN GILLOUX

J. :1m K: o Oriente: fonte de alimento dos últimos cinquenta


anos de renovação teatral. Em 1930, a representação do
N 6s pensávamos que o teatro e a vida eram duas teatro de Bali, por ocasião da Exposição Internacional.
caisas , eparadas, mas isso era uma bela mentira, Living Para Artaud.zé a revelação; sua visão de um teatro me-
'J'hoat r (teatro vivo - teatro da vida) - porque quere- tafísico se delineia. Ele compreende esse teatro orien-
I1/,OS f azer do teatro uma realidade em que possamos tal em que "os temas que faz vibrar não são dele, mas
0'1' (lit'Cl1' e que contenha, para os sentidos, essa espé- dos deuses. Eles vêm - parece - das junções primitivas
'i' d violência concreta que toda sensação verdadeira da Natureza que um Espírito double favoreceu. O que
comporta, .. No ponto de desgaste a que chegou nossa ele revolve é o Manifestado, uma espécie de Física pri-
lJ(i/lsibil-idade, é certo que necessitamos de um teatro meira da qual o Espírito nunca se desprendeu". Teatro
'/11 d sperte nervos e coração em contato permanente com o original. Teatro da iden-
tificação, da unidade enfim reencontrada, do :concreto
e do abstrato. Teatro do absoluto. Artaud acentua seu
ataque :contra o teatro ocidental da palavra - com-
preendido como gênero literário pela abusiva importân-
cia dada ao texto, e que em nada utiliza a expressão
cênica: o movimento no espaço, a terceira dimensão
do gesto e da voz - contra as formas estáticas de uma
arte petrificada, formas que aprisionam as forças cós-
micas, que dissociam a cultura da vida, o espírito da
matéria. Artaud invoca, então, o poder liberador e sa-
lutar do teatro. Se quisermos evitar os piores conflitos,
devemos por fim a essa ruptura dentro de nós e "acre-
ditar no sentido da vida renovada pelo teatro e em
que o homem se torna senhor daquilo que ainda não
é e o faz nascer. Isso leva a rejeitar as habituais fron-
teiras do homem e de seus poderes e a tornar infi-
nitos os limites daquilo que se chama realidade" para
que essas formas possam explodir.
A cena se torna um perigoso lugar de destruição,
semelhante ao caos antes da criação. Mas o ator, esse
feiticeiro que grita, dança, invoca, e o diretor, este de-
miurgo de um mundo renascente, devem aceitar o risco.
Devem aproximar-se o mais possível da criação, "discu-
tir não só todos os aspectos do mundo objetivo e des-
critivo exterior, mas também o mundo interno, isto é, o
homem considerado metafisícamente". Eles devem, como
o alquimista, remontar ao seio da matéria para trans-
mutá-la, no drama essencial em que se encontram em
conflitos necessários os Princípios primitivos; dramatizar,
pela explosão da forma que os contém, as duas forças
de que cada um é o double inverso do outro, como po-
ETERNIDADE DO INSTANTE
ORGANICO ...
ItI negativo, e cuja resultante nada mais é que a Momento do "ato total" de que fala Crotowski,
p!' pria vida em perpétuo devenir (daí essa crueldade) Momento único em que o ator jamais fará duas vezes
nlrn V'5 de outras formas. o mesmo gesto, visto que participa integralmente do de-
Eles devem fazer do teatro uma forma dinâmica que venir, do momento da vida; momento irremediável em
se cl strói à medida que ultrapassa toda a significação que ele se encontra inteiramente "no centro do drama
da r alidade em primeiro grau: as palavras, os gestos sem dissimular-se sob o pitoresco de um personagem a
adquirem um valor intrínseco, significantes se tornam pretexto da verdade humana". O ator, privilegiado pela
liignificados; êles não são mais o decalque da reali- sua dupla natureza (orgânica e espiritual), torna-se o
dade, mas a própria realidade condensada. centro da cosmogonía teatral e, consequentemente, tor-
na-se uma forma entre as formas. Apenas, como "toda
A ilusão dá lugar a uma concretude além da lin- verdadeira efigie, ele tem a sua sombra" que ele reen-
uagem articulada, além das formas mortas e estereoti- contra na necessidade que o guia; "seu processo interior
padas do intelecto, do pensamento racional (daí a im- é um processo real", que lhe revela os impulsos orgâ-
portância da herança do sonho surrealista), a uma lin- nicos mais profundos; como diz Julien Beck "o ator não
guagem concreta dirigida aos sentidos e que não se espalha mais mentiras", ele não engana, ele se confessa
detém, por isso, nesse contato, até atingir as camadas publicamente através sua "própria linguagem psicanalí-
mais profundas de nosso espírito: a expressão é total tica de sons e gestos". '
no espaço e no tempo. A mise en scéne é uma lingua-
Ele é o motor da representação e lhe devolve sua
gem prática e uma prática da linguagem: a pantomima,
função; o teatro volta a essa "idéia elementar mágica,
a música, a dança, a intonação, a incantação, o grito,
retomada pela psicanálise moderna, gue consiste, para
os ruidos, as luzes desestruturam a consciência e se tor-
obter a cura de um doente, em lhe fazer tomar a ati-
nam os verdadeiros sinais dessa liberação catártica.
tude exterior à qual se desejaria reconduzi-lo".
Sinais hieroglíficos "que evocam ao espírito imagens de
intensa poesia natural", deixando à distancia a psicolo-
gia sumária, as racionalizações intelectuais, os correios E ESPIRITUAL
do coração.
Mas se uma das especifícidades do teatro é atingir
A peça não mais sofre a ditadura do texto; ela vive diretamente o organismo nos períodos de nevroses e de
do que lhe é próprio no aqui e agora, daquilo que é baixa sexualidade como este em que mergulhamos, de
especificamente teatral: a encenação, expressão ideoló- atacar essa sexualidade por meios físicos, não se trata
gica, "projeção ardente de tudo que pode ser obtido de de cair na armadilha do ato, esbanjador de energia;
consequências objetivas de uma palavra, de um som, não fazer como o assassino que, não podendo resistir às
uma música e de sua combinação recíproca", no espaço e suas paixões, comete realmente o crime. Ao contrário,
no tempo, materialização da simbólica do mito arcaico, o estado de transe provocado pela representação de "nos-
em formas evolutivas de conteúdo íntemporal e abso- sos demônios interiores" é um estado de extrema luci-
luto. dez, de híper-percepção e não deve levar à morte, ao
o objeto do teatro é (re) criar mitos, "traduzir a incesto ou ao massacre efetivos mas evitar qualquer des-
vida em seu aspecto universal, imenso e extrair desta truição de matéria e sublimar-se na espiritualidade. O
vida imagens sob as quais gostariamos de nos encon- teatro é uma situação concreta, criada artificialmente a
trar". Em outras palavras, viver efetivamente a identi- fim de provocar estados de espírito, sensações fortes e
ficação do espírito na matéria e da matéria no espírito. reais que, pelo conhecimento vivido e obtido interior-
O teatro é o momento crucial da Criação a partir da mente, nos permitem atingir um equilíbrio supremo de
«anarquia formal" da matéria, e da "íntegração da idéia". forças dai resultantes; estado metafísico, quando caem ( .
as máscaras, as sombras se iluminam, no qual Eros não é a domina e nos devolve todo o seu patético. Seu orga-
mais unicamente um líbido carnal, mas todas as forças nismo deve ser um grito terrível e penetrante. O ator
de vida, de amor. deve atingir "essas' esferas em que a beleza não di-
"Artaud achava que se nós fôssemos somente capa- fere mais da verdade." (Grotowski). O teatro toma -se o
zes de sentir, de sentir realmente, acharíamos o sofri- local de um sacrifício exemplar. "Ele se eleva nova-
mento insuportável, a dor intolerável, poríamos fim a mente ao esplendor interno porque como ação exem-
ela e, finalmente, capazes de sentir, experimentaríamos plar ele redes cobre a profecia. Ele não muda o curso
de fato a alegria de amar, de criar, de estar em paz, de do mundo, mas confirma uma mutação na consciência".
sermos nós mesmos" (Julien Beck). O sofrimento, a dor (Rogoff)
revoltada devem sobrepujar a realidade. O estado do- 11: claro que, diante de tal espetáculo que atinge
loroso do ator (e do espectador) só tem valor se for tal gravidade, que se reveste de tal importância (por
gratuito, isto é, inutilizado: a dor deve ser conservada sua referência à criação original que se recria perpetua-
em seu estado de energia pura para poder romper nos- mente em nós) e apela para nossos liames uníversaís,
sas formas interiores, nossos hábitos, nossa moral; em nossa metafísica do espírito-corpo, o espectador não é
vez de esgotar-se em exteriorização ela deve alimentar mais esse voyeul' apático do teatro da palavra árida; do
os conflitos, o tumulto das forças, a anarquia que se teatro de bouleoard como das falsas tragédias de Cor-
encontra no seio da Unidade e sem a qual não há criação. neille e Racine. Ele se torna sua razão de ser. Ele
Para Artaud um dos valores essenciais do Teatro da compreenderá o ator que dá humilde e generosamente a
Crueldade é sua gratuidade: "teatro que ensina justa- Sua pessoa como os antigos compreendiam aquele que,
mente a inutilidade da ação que, uma vez feita, não coberto de ouro, tinha o privilégio de lançar-se para
se faz mais e a utilidade superior do estado inutilizado eles numa pirâmide de serpentes, Ele verá nela o seu
pela ação, mas que, "retourné", produz a sublimação. próprio double, a sombra de sua própria efígie. Assis-
tirá à cerimônia mágica de uma morte e um renasci-
mento: o ator que morre e renasce.
Através do Jogo

O ator, em contato com o Mal, a Violência, o Hor- A Descida aos Infernos


ror, o Medo deve cruzar o cabo "heróico e difícil" do
domínio de si mesmo: seus atos devem continuar a ser Morrer sem destruição de matéria, como o pesti-
ilusórios. O ator que "representa" em Annabella de lento. Morrer numa "voluta de formas" apocalípticas.
John Ford (teatro isabelino) o papel de Giovanni não Para renascer em e através "dessas formas que dormem
deve realmente matar a irmã, mas' ao contrário levar em toda forma e que não podem sair de uma contempla-
até final o seu jogo teatral: tudo o leva interiormente a ção das formas em si mesmas, mas que saem de uma
um crime e ele deve mimá-Ia. Deve manter a ilusão do identificação mágica com as formas"; renascer por uma
ato, uma ilusão que se torna verídica, que não nos linguagem na magia destrutiva e na poética universal
engana mais; um ato-ilusão, uma teatralidade que to- que o espectador sentirá no "eco de toda sua sensibi-
mamos como se o fosse: nós, espectadores, sabemos então lidade, em todos os seus nervos"; renascer pelo ato ri-
que o que se passa em cena é um sonho, "um preci- tual (em que ele participa de uma mágica em seu ser
pitado verídico do sonho", um jogo gratuito de extrema metafísico) que só tem sentido se se efetua através da
eficácia pois que nos mostra até onde a nossa perversi- coletividade reunida, para que ela seja revolvida e cruel-
dade, nossas paixões, "nossas forças obscuras" podem mente tocada.
nos levar se em lugar de salvaguardar nossa liberda- Estabelece-se aí a relação essencial entre o ator e
de na sublimação, nós nos encadeamos à fatalidade de o espectador actant, a do carrasco e da vítima; relação
nossos atos. sado-masoquista: de um lado o ator sofre sua própria
Devemos tirar uma lição da representação em que dor e goza de uma eficácia, de outro lado, o espectador
o ator se sacrifica por nós, vai até o fim de uma Dor, goza dessa dor recebida porque ela significa a redes-
coberta das forças profundas, uma liberação de tudo A extensão é o espaço-tempo, o movimento; ou "o
que o sufocava, o parto da vida, e goza o sacrifício reencontro do espaço e do tempo é a linha. Só po-
"mortal" que se desenrola diante dele como necessário demos conceber a linha com o movimento. .. só temos
à sua regeneração. Relação sado-rnasoquísta em duplo o movimento corporal, nele realizamos e simbolizamos o
sentido unindo irremediavelmente ator e espectador. movimento cósmico" (Appia). Encenar é, portanto, prin-
Esse mergulho no interno só pode ter por motor cipalmente, projetar o ator no espaço do som e do gesto
nossos sentimentos extremos: o medo, o horror, a angús- através de uma linguagem plástica e sonora. O ator
tia mortal; e nossos estados extremos: a cólera, a vio- deve poder, então, dominar todas as suas possibilida-
lência, o amor. Eles correspondem a um mundo que a des corporais e mentais. Nada em seu jogo será dei-
razão recusa, ela que se contenta com idéias claras, xado ao "acaso ou à iniciativa pessoal", ao voluntarismo
que a consciência se recusa a conhecer para poder viver psicológico. Essa "adorável e matemática mínúcía" que
mais calma e covardemente. São as únicas capazes dá a impressão de "vida superior", canalizará todos os
de provOCR!rem nós o choque necessário à revelação a impulsos vindos do fundo de seu organismo. Ele será
que aspiramos Somente eles são capazes de nos Ias- dono de sua espontaneidade. "Os movimentos muscula-
cínar, isto é, de nos atrair e aterrorizar, :É o seu pró- res do esforço são corno a efígie d um outro esforço em
prio poder de fascinação (sua ambivalência: salutar e duplo e que, nos movimentos do jogo dramático, se lo-
terrível) que representa o primeiro conflito que nos caliza nos mesmos pontos" do corpo. A cada um desses
conduzirá, à medida que a crueldade for cada vez mais pontos de impulsão, a cada uma das qualidades do
intensa e insuportável como se nos aproximássemos do fôlego, a cada um dos termos das ternárias respirató-
próprio sol, à medida que o determínísmo filosófico que rias e musculares corresponde "um s ntimento, um mo-
ele representa for implacável, até o supremo conflito no vimento do espírito, um salto da afetívidade humana".
seio da unidade, lá onde a anarquia formal é condição "Saber antecipadamente os pontos do corpo que é pre-
sine qua non de toda criação. :É aí, perto do caos, que ciso fazer vibrar é lançar o esp ctador m transes má-
o teatro, como a morte, tira todo seu poder de fasci- gicos". Esse conhecimento de si mesmo permitirá ao
nação. ator projetar o grito, o gesto, produzir a imobi.lidade,
o silêncio que vão desencadear no espectador que par-
o MÁGICO TEATRAL ticipa dessa necessidade "um d sprendírnento de ener-
gia real", uma necessidade de exorcísar as forças obs-
o Teatro da Crueldade - crueldade tomada "no curas, as sombras que estão dentro d le e que ele deve
sentido dessa dor fora da necessidade inelutável" - é também comandar. "Quanto mais se mergulha no que
antes de tudo luoidez, uma mágica rigorosa de "todos há de oculto em nós, mais é necessário disciplinar, exte-
os meios técnicos e práticos", a utilização na mise en ríormente, o que é a forma, a artificialidade, o ídeo-
scêne de todas as possibilidades da poesia concreta, "a grama, o sinal" (Grotowski).
poesia, simplesmente, sem forma, sem texto. .. tentando Se o ator tem, além da sua natureza dupla (orgâ-
experimentar a velha eficácia mágica, sua força fasci- nica-espiritual ), um lugar importante na representação,
nante e integral além da palavra". Em outras pala- os sinais falam também com ele. Os gritos, as queixas,
vras, "a utilização de um lado, da massa e da extensão as palavras articuladas (que então reencontraram sua
dum espetáculo que se dirige ao organismo inteiro e sonoridade plena, seu físico e são utilizadas num jogo
de outro, uma mobilização intensiva de objetos, de ges- difícil de vogais, como as usava a Kabala) são provo-
tos, de sinais utilizados num sentido novo". cadas por ele. Mas se as possibilidades vocais oferecem
A extensão cênica deve corresponder às quatro di- uma grande variedade de tonalidade, de novos instru-
mensões interiores, isto é, aos diferentes planos de re- mentos (empregados também no estado de objeto}; de
ceptividade do organismo até as camadas mentais mais novos aparelhos sonoros baseados nas fusões especiais
profundas e ao sonho atualizado, confrontando o passa- ou em alianças renovadas de metais, podem atingir um
do e o presente intemporal, de todos os nossos desejos novo díapasão da oitava, produzir vibrações estranhas,
e inibições. insuportáveis, lancinantes. Artaud ficaria plenamente ti
r )
sntisf 'ito com as descobertas da música <concreta e ele-
1 ro-a .ústica e com a estereofonia (essa posse da forma-
spaço em todas as dimensões). Do mesmo modo "vi-
sos, de crimes atrozes, da devoção sobrehumana, tenta-
remos concentrar um espetáculo que, sem recorrer às
imagens gastas dos velhos mitos, se revela capaz de
I
braçõ s luminosas devem ser pesquisadas, maneiras no-
vas de espalhar as luzes em ondas e por faixas para
I roduzir qualidades de tons particulares, reintroduzindo
extrair as forças que se agitam neles."
Como para uma catedral, "a ideologia", a moral de
um teatro está em relação com sua arquitetura. No
I
na luz um elemento de tensão, de densidade, de opaci- teatro tradicional nenhum esforço de participação se
dade a fim de produzir o calor, o frio, a cólera, o medo, pede ao espectador - voyeur gozador passivo - que
etc." Nessa encenação concebida como totalidade - vem assistir aos desregramentos dos príncipes, à inte-j
que participa de uma utilização de todas as formas artís- lectualização, pelo texto, do homem e de seu destino'
ticas de expressão e se torna, através dessa síntese, uma (sem se tratar, daí, de um teatro-crítico brechtiano"f
arte maior e não menor, não mais simples intermediária percebidos pelo autor e que nos vem, mais ou menos re-
entre ator e espectador mas realmente criadora - inter- transmitido pelo diretor (adaptador e não criador ) e
vêem as roupas. Elas serão, como em toda cerimônia comediantes. O público acha-se, então, diante da caixa
ritual, belas, faustosas, antigas para se parecerem com de espetáculo, numa poltrona, numa falsa intimidade,
"essas roupas milenares que têm uma aparência reve- diante e em repouso visto que a percepção que se lhe
ladora do fato, de sua aproximação com as tradições que pede (dada) do drama é linear. Mas no teatro tal
as produziram". Tradição transmitida pelos Mitos, Pro- como o entende Artaud e todo o movimento de reno-
jeção formal das forças vitais que nos permitam con- vação, de Gropius aos grupos de pesquisas dos últi-
servar o ensinamento e o sentimento metafísico da vida. mos anos, o espectador é participante, comungante, en-
Mas o mito, para guardar todo o seu poder evocador, volvido na própria ação dramática.
deverá ser uma cultura viva; isto é, evoluir em sua for-
ma e apelar em cada época, em sua representação, para
outras formas de sensibilidade.

o TEATRO DA CRUELDADE
E "se determinada época se volta e se desinteressa
do teatro é que o teatro deixou de representá-Ia. Ela
não espera mais que ele lhe forneça os mitos em que
poderia apoiar-se". O mito aparece, então, como uma
imagem acrescida. Visto que a representação dos mi-
tos deve ser evolutiva, destruidora das formas antigas,
blasfematória dos ritos habituais, o teatro que se afasta
dessa função perde sua razão de ser.
I

O "Teatro da Crueldade escolherá temas e assuntos


que correspondarn à agitação e à inquietude caracterís-
ticas de nossa época". Os mitos deverão, portanto, atua-
lizar-se nos dois sentidos do termo, isto é, objetivar-se
em cena representando "os velhos conflitos" sob nova
forma. "O amor quotidiano, a ambição pessoal, os abor-
r cimentos diários, só têm valor em reação a essa for-
ma de horrível lirismo, que se encontra nos mitos aos
quaís as coletividades em massa deram seu consenti-
fi nto. B por isso que, em torno de personagens famo- iPlanéte, 20/2171)
ERRATA

À página 2 ("Teatro na Educação"), coluna, 2

nona linha, onde se lê "odiar", leia-se "adorar".


TEATRO NA EDUCAÇÃO o JOGO DRAMÁTICO:
Diga a uma criança: "você hoje é o vento" ou "faça
MARIA CLARA MACHADO uma árvore nascendo da terra e depois comece a con-
versar com seu colega."
Neste artigo vamos abordar dois aspectos do teatro - Conversa de que?
na educação: o teatro-jogo e o teatro-espetáculo. Ambos - Conversa de gente com árvore.
com a mesma finalidade: desenvolvimento da oríatíví- A criança entra logo no jogo. Não discute se árvo-
dade. Facilitar este desenvolvimento é a tarefa de todo re fala, se vento é "fazível", se... se... Ela começa
bom educador. Ora, a educação, ou melhor, a instru- a odiar. E o professor, observando-a, também se enri-
ção que vínhamos adotando, até bem pouco tempo, não quece.
fazia outra coisa senão cercear a capacidade de criar. A aplicação do jogo dramático na terapêutica é
Pensava-se que para bem integrar um homem na socie- assunto para psicólogos, mas é fácil verificar o que o
dade bastava ensiná-Ia a ser igual a todos os outros. Não jogo mostra das necessidades psicológicas da criança:
está muito longe a época em que, nas aulas de desenho, desinibição, liberação da agressividade mal controlada,
o aluno era obrigado a copiar cabeças de estátuas gre- da falta de amor e da ânsia de viver! "Fazendo de
gas ou figuras geométricas. .. Aquele que tivesse von- conta", a criança está muito mais perto da verdade do
tade de pintar uma árvore ou apenas borrar o papel era que verbalizando seus problemas com uma psicóloga.
reprimido e se sentia marginalizado, diferente. Esta di- Da liberação de agressividade através do jogo dra-
ferença no entanto é que o fazia ÚNICO, diferente, no mático, tenho um exemplo esclarecedor entre crianças
meio de outros diferentes, para que cada um sozinho de 10, 11 e 12 anos. A monitora pede às crianças para
pudesse procurar a propria solução, hoje para o desenho inventarem uma história de índios e representarem. As
de uma árvore, amanhã para o próprio desenvolvimento. crianças se dividem em vários grupos e começam a
Entregar à criança soluções prontas é desestimulá-la a trabalhar. À disposição delas há um malão com 'foupas
criar. Criar é uma atividade permanente, que não dá velhas e material de cena: tambores, chapéus, espin-
diploma mas uma sensação de constante caminhar para gardas, panelas, etc. '" etc. ... 15 minutos depois co-
uma plenitude de existência. Garanto que muita crian- meça a representação. Elas geralmente fazem questão
ça gostaria de descobrir um dia que dois e dois fazem de dizer que estão fazendo teatro. O palco lhes atrai
cinco, só pelo prazer de descobrir sozinha uma coisa muito. São artistas e querem ser como os grandes da
única. Educar não é fazer a criança abrir os olhos para televisão. O fato de saberem que estão representando
um determinado saber, pré-estabelecído pelo professor, as deixa ainda mais livres para expressarem o que estão
com soluções prontas que o aluno terá que forçosamen- sentindo. Isto, aparentemente, as distancia de seus pró-
te aceitar junto com todos os outros para o melhor fun- prios problemas deixando a imaginação trabalhar e o
cionamento da sociedade e para o seu próprio bem. inconsciente agir. Muitos grupos mostraram histórias de
Educar .:É FAZER A CRIANÇA ABRIR OS OLHOS índios, como cantarias, quase sempre baseados no que
PARA O MUNDO QUE A RODEIA e dar-lhe a possi- aprendiam na escola. Um dos grupos, porém, resolve
bilidade de se maravilhar com cada nova descoberta apresentar uma tribo de antropófagos que se delícia-
que ela mesma vai fazendo do mundo que a cerca, Esta vam num banquete em que comiam seus pais! A mo-
capacidade, hoje, só o poeta conserva. O que é uma nitora, indecisa: - será educativo? Deixo continuar o
pena! Sensível para o mundo que descobre, a criança jogo livremente para ver no que dá ou interrompo e dou
será também sensível para os outros homens, para as uma lição de moral sobre o respeito devido aos pais, etc.
ciências, para as artes, para o prazer de viver. etc.? A monitora preferiu aguardar o final. As crian-
Despertar no aluno a NECESSIDADE de uma ati- ças que assistiam ao jogo estavam também se deleitan-
tude criadora é a grande tarefa do professor, é chamar do. Ao terminar o jogo tudo voltou ao normal e <os
a atenção do aluno sobre sua capacidade de inventar e "índios antropófagos" e seu pequeno público, entusias-
de transformar. mado, estavam felizes por terem feito uma "brincadeira" ( .
2
d \ t .atro. A monitora conversou sobre a disciplina no do Estado da Guanabara. Foi aberto um concurso
· )
jo fO, ti rnan ira teatral que elas estavam representando, entre as escolas, cada uma teria que apresentar uma
tc., observou para si mesma que era melhor que as dramatízação sobre "ENTRADAS E BANDEIRAS".
nian 'as jogassem numa história de faz-de-conta a agres- Virginia Valli, uma das examinadoras do concurso con-
sividade contida e natural do que se tornassem adoles- cluiu: "a finalidade do concurso - contribuir para o
nt s recalcados, impossibilitados de extravasarem seus conhecimento do fato histórico - repercutiu intimamen-
s ntimentos escondidos, É claro que nenhuma daquelas te nos estudantes de nível primário, removendo a indi-
rianças queria seus pais mortos ou maltratados, apenas ferença pelo estudo da H.- do B., pareceu-nos plena-
o jogo dramático foi uma maneira simbólica de liberar mente atingida. Apesar das falhas observadas, os resulta-
a agressividade natural mas proibida em relação aos dos levam a recomendar a dramatização espontânea como
pais. método a ser usado no ensino da matéria pelo vivo inte-
Escolhendo temas sobre pais e mestr-es, as crian- resse demonstrado pela criança pela 'brincadeira de ban-
ças descarregam ressentimentos que o sentimento de deírante", além de haver facilitado o trabalho da pro-
culpa escondia e que o jogo libera porque é apenas um" fessora quanto à pesquisa do conhecimento e outras
"brincadeira de teatro", No teatro o aluno que faz pa- atividades. Houve oportunidade de verificar de que
péis de autoridade geralmente leva enormes surras, ou maneira o fato histórico repercutiu no espírito da crian-
sermões. Um grupo de meninas, uma vez, criou numa ça, levando-a a sentir e incorporá-lo à sua experiência".
improvisão um bando de avós que resolveu assaltar um Jogando-se inteira, numa representação dramática a
banco porque não tinha nada que fazer. No final do criança está liberando anseios, fantasias, frustrações, de-
assalto as "velhinhas" se arrependeram e resolveram sejos e sua visão do mundo.
fazer alguma coisa na vida, para não assaltarem mais Mas é muito importante que a dramatização espon-
bancos, então abrem uma casa de flores! tânea seja uma atividade somente das crianças, sem se
Há também os jogos onde a criança transborda sen- visar a um espetáculo ou qualquer forma de exibicio-
timentos de plenitude, de amor e de camaradagem. A nísmo. Expor a criança à crítica ou mesmo aos aplau-
redes coberta da natureza através de sua identificação sos de uma platéia seria desvirtuar o iogo, que deixaria
com os elementos ou com os animais, nos jogos dramá- de ser espontâneo. Uma representação teatral com pú-
ticos, dá a criança a oportunidade de reavivar a sensi- blico, feita por crianças, não passa de uma imitação mal
bilidade, redeseobrindo sensações perdidas. feita de espetáculos de adultos, onde o papel decora-
Muito importante, na aplicação do jogo dramático, do é dito de uma maneira formal, (ensaiada pela pro-
é a solução pessoal. Em cada situação dada, em cada fessora) e limitado pelo texto e pela marcação. Além
história, mesmo com a solução pré-estabelecida pelo mo- de cercear a criatividade infantil o espetáculo teatral
nitor, a criança deve encontrar a própria maneira de decorado, visando uma platéia sobretudo formada de
ver e sentir. pais complascentes, é uma escola de exibicionismo, uma
Para desempenhar bem o jogo dramático a criança competição desleal entre os pequenos atores. Geral-
tem que aprender a observar. Ao repetir a situação mente os melhores papéis são dados (é justo, desde
imaginada, ela é solicitada a VER. O mundo da criança que vise ao espetáculo) aos mais desinibidos, isto é, aos
vai se alargar, aguçando a observação: árvores, animais, mais "exibidos". O tímido e retraído, o que talvez mais
mar, rio, vento, chuva e estrelas entram no pequeno necessite do jogo dramático, é abandonado em nome do
grande universo da [criança. Daí para a vida cotidiana é sucesso do espetáculo. E resta ainda o problema das
um passo: a rua, a cidade, os homens e seus sentimen- roupas caras que nem todos os alunos podem pagar,
tos, tudo é material para a recriação, no palco, de uma criando-se a casta dos que podem representar porque
situação dramática. tem uma situação econômica melhor.
A aplicação do jogo dramático no estudo é de valor A criança tem a tendência normal de imitar espe-
incalculável. Pode ser aplicado no estudo da música, da táculos de televisão, cinema ou teatro. Isto não tem
história e até mesmo da ciência. Há alguns anos a CASES importância. Deixemos que ela mesma tenha a sua con-
( ME ) tentou uma experiência fascinante nas escolas cepção "de como fazer", que ela mesma tente imitar o
que viu e gostou. Imitando, sem o auxílio da professo- um espetáculo é inesquecível! E talvez esta seja a
Ira, ela estará ainda criando. Os trechos que mais a gmnde emoção do realizador.
impressionaram, os atores com os quais ela mais se iden- Quando eu fazia teatro de marionetes, via crian-
tificou são transportados para a cena numa visão infantil ças emocionadas esperarem o fim do espetáculo, para
e pessoal idealizada. O resultado, muitas vezes, é desas- tocarem nos bonecos. Silenciosas, graves, elas chegavam
troso do ponto de vista artístico, é porém uma maneira perto dos personagens para melhor se "entenderem".
saudável de deixar a criança livre para extravasar sua Entre os jovens que fazem teatro para crianças há
maneira de perceber o mundo. uma gra-pde confusão sobre o que é comunicação. "Co-
O teatro infantil do TABLADO é uma fonte cons- municação" é hoje uma das palavras mais usadas do
tante de inspiração para as crianças. Cada peça mon- vocabulário. Fazem-se cursos, palestras, reportagens, 'em
tada pelo grupo é assunto para todo um ano de ativi- busca do significado da palavra mágica. Televisão, tea-
dades de jogos dramáticos entre as crianças. Em 1971, tro, cinema, rádio é comunicação .. , Grito, berro, surra,
não havia atividade dramática entre os alunos dos cur- pancadaria, auto-falante, sexo ... também é comunica-
sos do TABLADO que não contasse com bandidos e ção. Talvez o homem esteja aperfeiçoando demais os
mocinhos, índios e canções, provenientes da história de "veículos" da comunicação e descuidando da mensagem.
TRlBOB6 CrTY (peça montada pelo TABLADO). Apesar de todas as teorias intelectuais em moda a crian-
ça necessita de um "clima" para receber: o silêncio da
sala, as luzes, a música. É necessário se recolher, estar
atento. Ela não é um simples aparelho receptor de
TEATRO-ESPETÁCULO:
imagens e palavras vazias. A criança deve ser solici-
tada a participar ativamente de uma emoção total e
Teatro-espetáculo é o teatro feito por adultos para as
não de uma competição esportiva.
crianças.
Nunca deixo de citar a comovente participação de
Se o jogo dramático libera a criatividade, o espe- uma menininha de uns 8 anos num espetáculo de Pluft,
táculo teatral alimenta esta eríatívidade. Um espetáculo o Fantasminhaçxxo TABLADO. Quando a mãe do fan-
de teatro bem feito é um estímulo inesgotável para a tasminha perdia tempo, falando ao telefone coisas inú-
sensibilidade da criança. A emoção artística leva a teis com a prima Bolha, enquanto Maribel estava em
criança a um mundo de fantasia e de sonho que cor- perigo, Pluft vira-se para a platéia e confessa aflito que
responde ao que busca sua alma em desenvolvimento. aquele era o único defeito de sua mãe. A menina se
Num espetáculo bem feito há perfeito entendimento levanta na platéia, e no meio de total silêncio, grita so-
entre os anseíos ainda desconhecidos da criança e a rea- lidária, comovida: "Não liga não, Pluft, minha mãe
lidade inexplicável do mundo misterioso que a rodeia. também é assim ... "
O mistério teatral é justamente esta identificação pro- Aquela menina estava realmente se comunicando e
funda de cores, ritmos, música, movimento e palavra se identificando. O problema de Pluft era o dela e assim
com a alma do espectador. Antonin Artaud diz que tea- ela não estava mais só. A tensão em relacão a sua
tro é poesia em movimento no espaço. O público espera mãe estava sendo aliviada através da história' de Pluft.
este momento de poesia. E que público mais capaz, O teatro estava lhe dando a oportunidade de descobrir,
mais pronto para captar esta poesia solta no espaço que através de uma emoção, os próprios anseios e problemas.
a criança? Se ela vive no mundo do faz-de-conta, trans- Na mesma peça, quando Pluft extasiado ante o
formar este faz-de-conta em realidade é tarefa de todo choro da menina Maribel, vira-se para a mãe e diz:
educador-criador. É difícil, neste década de compu- "Veja, mamãe, a menina está derramando o mar todo
tadores provar a importância do espetáculo teatral bem pelos olhos", ouvimos de quase todos os espectadores
feito na alma da criança. Não há estatística que mos- um "Ahhh!", A satisfação do apelo poético da imagem
trem o maior ou menor grau de sensibilidade captado recebida, peneh'ava através dos .sentidos, e se manifes-
numa sala de teatro. Mas, para o observador sensível tava neste "Ahhh!", Não é preciso explicar com pa-
a transformação que sofre o pequeno público durante lavras a imagem ... se o público está atento, a comu-
nícação se faz, isto é, comunicação verdadeira, alimento
pedido pela sensibilidade do espectador. Estaremos,
então, comunicando e não ímpíngindo, forçando um pú-
blico a nos aceitar ou aceitar nossas idéias, por melhores
que elas sejam.
Uma peça infantil que apela para o excesso de
gritos e perguntas, para o excesso de diálogos com a
platéia, está formando torcedores e não pessoas.
A realização de um espetáculo para crianças exige,
pois, grande cuidado da parte dos realizadores. :É enga-
no pensar que criança, por não poder criticar, aceita
qualquer espetáculo que se lhe apresente. Perguntem
a um menino de 13 anos se ele gosta de teatro infantil.
A maioria diz que tudo não passa de uma "xaropada".
E os pais sensíveis ficam desesperados porque os filhos
não gostam mais de arte. Isto é terrível para a educa-
ção e a própria arte. :É melhor não fazer nada do
que fazer mal. A aparente facilidade do teatro infantil
tem atraído muita gente que se inicia na alie teatral:
"Já que não se consegue fazer teatro para adultos vamos
fazer teatro infantil". .. isto é, distribuição de balas, de
revistinhas, de presentes, muita luz, gritaria, pancadaria,
histeria e pronto! Neste caso não estamos desenvolven-
do a sensibilidade. Estamos alimentando as doenças
da sensibilidade. Estamos "apelando" e perdendo a
maravilhosa oportunidade de desenvolver na criança a
capacidade de captar, através do espetáculo, o mistério
da vida.

(Da rev. Educação, publ. MEC)


COMO CONSTRUIR OS CENÁRIOS

Os ângulos. Se os cantos de um trainel não esti-


verem em ângulos retos perfeitos, toma-se impossível
ligá-Ios com justeza a outros trainéis, o que cria muitas
dificuldades. O trainel deve ser armado no chão, com
a face anterior para baixo; à medida que cada elemento
vai sendo colocado no lugar deve ser preso ao chão
com pregos finos que não são pregados até o fim. Cada
canto deve ser ajustado cuidadosamente com um esqua-
dro de aço. Ê preciso verificar ao longo de cada ele-
mento para ter certeza de que está reto, e verificar as
posições medindo as diagonais, que devem ser iguais.

Juntas. As cantoneiras de madeira são colocadas


recuadas, aproximadamente 1,5cm da face exterior dos
prumos, pois de outro modo quando dois trainéis forem
TRAINÉIS colocados a um ângulo reto um do outro, as cantoneiras
serão um impecilho.
Os trainéis são a base de toda construcão cemca e A disposição dos pregos também é importante. Um
devem ser executados com perfeição. As soluções que prego no lugar certo fortalece a junta, enquanto no
daremos a seguir são muito simplificadas, de maneira lugar errado enfraquece a madeira. Um prego deve ser
que qualquer modificação adicionada pode resultar num colocado em cada canto do reforço, e 2 em cada extre-
trabalho inferimo midade enviesada da junta. Outros pregos devem ser
Medidas. As "travessas" ocupam toda a largura pregados nos pontos nos quais as cantoneiras de ma-
de um trainel e, consequentemente, os "prumos" têm deira mostrem tendência a afastar-se das ripas. Para
o cumprimento do trainel menos duas vezes a largura imobilizar os pregos coloca-se uma chapa metálica sob
da madeira. Do mesmo modo a travessa central é da a junta e martela-se o prego de encontro à mesma. Isso
largura do trainel menos duas vezes a largura da ma- faz que suas pontas virem para um lado. Uma vez
deira usada. Os traínéis com mais de 3,60m requerem assim imobilizados, os pregos não podem ser retirados
duas travessas centrais e os com mais de 4m de largura sem danificar a madeira e, consequentemente, os cená-
devem ser construídos com ripas de 2,5 x lOcm. Os rios que são montados apenas para uma determinada
esquadros têm aproximadamente o mesmo cumprimento produção devem ser ligados com parafusos em vez de
da travessa, porém, as medidas não precisam ser exatas pregos, para que se possa aproveitar novamente a ma-
e podem ser feitas a olho. deira em outros cenários. . ( i
Eorração dos trainéis. A lona deve cobrir o traínel curtos do que seu tamanho exato. A tira de ferro pode
apenas na face anterior da armação, e não deve ser ser vergada a frio, quando presa num torno e batida a
! )
virada ao longo da espessura da madeira. A fazenda a martelo, A medida exterior da lâmina de ferro, depois
ser usada deve ser cortada uns Sem mais comprida e de verga da, deve corresponder exatamente à largura
5cm mais larga do que a armação. Vira-se a armação do traínel, Os buracos para os parafusos só devem
(face anterior para cima) e extende-se o tecido sobre ser abertos com uma broca, depois de vergada a lâmi-
ela. A fazenda deve ficar folgada, mas não franzida na, e as bordas dos mesmos devem ser escaríadas de
e a trama deve ficar paralela os lados das cabeceiras modo a permitir que os parafusos se ajustem perfeita-
da armação, Prega-se a lona temporariamente aos pru- mente à abertura e fiquem com a cabeça rigorosamente
mos com uma série de tachas separadas uns 15cm entre no nível da superfície da lâmina. Utilizam-se 12 pa-
si, e a um pouco menos de 1cm para dentro da su- \ rafusos em grupos de três. É impossível fazer fixar
perfície interior da ripa. Prega-se, então, uma tacha um parafuso no corte transverso de uma ripa, isto é, na
no centro de cada travessa, a um pouco menos de 1cm extremidade de um prumo.
da extremidade interior da ripa; depois prega-se uma As pequenas chapas triangulares para firmar os pm-
tacha a mais distância de cada metade, e outras nos mos interiores e exteriores são essenciais para a rigi-
centros dos espaços deixados. Isso divide a folga de dez do trainel.
madeira igual.
Nos trainéis de porta usam-se três pedaços separa-
A beira que fica solta para fora deve, então, ser dos de fazenda para a forração: os dos cantos devem
colada (cola sintética) à madeira e, assim que secar, ser colocados primeiro, para que o da verga os reeu-
prega-se então uma segunda série de tachas, a 3cm de bra na: extremidade, Quando os pedaços dos cantos
intervalo e a lcm da borda exterior da armação, cortan- ficam por cima às vezes acontece que os pintores de-
do-se o excesso da fazenda com uma faca. Esta ajuda formam a extremidade.
a rasgar: o segredo está em puxar o excesso' da lona
com a mão esquerda (enquanto a direita corre com a Ligação dos trainéis. As paredes são, normalmente,
faca) exercendo a pressão no ângulo apropriado, formadas de dois ou três trainéís que devem ser ligados
de tal forma que não apareçam frestas entre os mesmos.
Trainéis pam portas e janelas. Estes requerem que Colocam-se os trainéís no chão, com a face anterior
se forme uma armação menor dentro da maior, A não para cima, e ligam-se os mesmos com dobradiças de
ser que o cenário só vá ser utilizado em uma produção, pino. Uma dobradiça é colocada a 30cm do alto, uma
é desnecessário construir trainéis especiais para janelas, a meia altura e outra a 30cm da base. A seguir a fres-
lareiras, etc. Trainéís de porta podem ser utilizados ta é recoberta com uma tira estreita de lona (ou algo-
vedando-se qualquer parte da abertura que não for ne- dãozinho) que deve ter lOcm de largura e ser um pouco
cessária, Quando os mesmos trainéís são utilizados para mais comprida que o traínel. A tira é molhada e tor-
formar paredes de cenários diversos de uma mesma pro- cida até que fique apenas úmida. Vai-se então abrindo
dução, as aberturas indesejáveis podem ser tampadas a tira sobre um pedaço de ripa e passando a goma de
temporariamente com painéis pequenos aplicados, que farinha de trigo em toda a sua extensão (não se passa
recobrem a parte que deve ser vedada. Trata-se de cola a não ser que a parede seja permanente). Pin-
pequenos traínéis sobre cuja armação, na face anterior, celarn-se também os dois trainéís ao longo da fresta,
deve ser pregada uma segunda moldura de papelão numa superfície de uns 5cm pa~'a cada lado. Duas
grosso ou material semelhante, com uma reborda de 2 pessoas pegam a tira pelas extremidades: enquanto uma
ou 3cm, que impede qualquer fresta entre o trainel maior segura sua extremidade no alto, a outra cola a sua so-
e o menor. A fazenda é colada recobrindo a reborda. bre a base da fresta, segurando-a depois na posição
Esses painéis menores devem ser pintados junto com os certa com 4 tachas ou percevejos. A tira vai sendo aos
maiores, para não haver diferença na cor. poucos esticada sobre a fresta, com o auxílio de um
O "batente de ferro" faz com que seja necessário pincel de cola quase seco. Notem que as extremidades
cortarem-se os 4 prumos e a travessa interior 4mm mais exteriores das dobradiças ficam expostas, o que não pre-
judica, já que a tinta que se usa no cenano adere às dado ou transportado, a lona é enrolada em torno das
mesmas. Uma tira larga demais, por outro lado, tende travessas,
a descolar-se da superfície dos trainéis. A tira não deve
ser muito esticada para não descolar quando seca. Qua- Téiões. Os telões são formados por várias faixas de
tro tachas ou percevejos são pregados acima e abaixo lona cosidas umas às outras no sentido horizontal. As
de cada dobradiça e ao alto dos trainéis. Se sobrar varas de cima e de baixo são, cada uma, constituídas
um pedaço de tira no alto, dobra-se para dentro antes por 2 ripas de iguais dimensões, colocadas ao longo de
de pregar. cada lado da beira da lona e ligadas um à outra por
parafusos. Várias ripas são necessárias para cada lado.
Grossura. Se três ou mais trainéis do mesmo ta- Cada junta é reforçada com uma labaça presa por pa-
manho forem ligados uns aos outros, será impossível rafusos 'fixados por porcas no lado oposto. As porcas de-
dobrá-los. Para corrigir esse defeito é necessário inse- vem ser embutidas e as pontas dos parafusos cortadas
TÍr, entre dois dos trainéis, uma ripa de 2,5cm x 7,5 ao mesmo nível.
ao longo de todo o comprimento. A ripa e as duas Os lados do telão devem ser aparados de maneira
frestas são cobertas por uma tira de 18cm de largo. a fazê-lo diminuir do alto para a base, na proporção
de 2,5cm para 30cm. de altura. Esse estreitamento aju-
Recortes. São formados por uma folha de compen- da a fazer desaparecer as rugas que aparecem nos can-
sado ou papelão grosso que se prega a um trainel de tos dos telões retangulares.
forma irregular, construído para determinado fim. Para
que o recorte possa ser rígido, é preciso que as partes Bambolinas. São semelhantes aos telões, porém,
que constituem a armação sejam armadas em esquadros. mais curtas e destituídas de varas na parte inferior.
A base deve ser composta por uma só peça para que Quando representam folhagens, usa-se recortar a parte
não haja superfícies irregulares que possam pegar no inferior irregularmente, imitando folhas. Todo recorte
chão quando o recorte é transportado. pequeno tende a enrolar para trás. Como é inevitável
que haja algum enrolamento, a parte recortada deve ser
pintada dos dois lados para que não fique exposta a
CONSTRUÇÃO DE CENÁRIO - Cenário Pendurado , lona em sua cor natural.

Certos tipos de cenário precisam ser sustentados PORTAS E JANELAS


pelo alto, o que normalmente é feito ligando-se os mes-
mos às varas com as cordas. O tipo mais simples de porta é construído como
se fosse um pequeno trainel com uma travessa central
Tetos. O mesmo teto normalmente é usado para de 15cm de largura, fixada por cantoneíras metálicas.
todos os cenários de uma peça. Ele é construído com Prendendo-se painéis de moldura fina à face anterior
um grande trainel sem reforços triangulares nos cantos e
desse tipo, é possível obter-se um efeito suficientemente
com a estrutura ligada por reforços do teto em lugar
realista. Uma porta um pouco mais elaborada pode ser
de reforços comuns. As várias faixas de fazenda devem , -construída com ripas de 15cm de largura e a lona é
ser emendadas no sentido do comprimento, e as ripas presa por trás da armação, antes de serem colocadas as
devem ser de 3 x 7,5 em em vez de 1,5 x 5 em. Como cantoneiras de madeira no trainel. Uma tira de mol-
os elementos mais longos (que correspondem aos pru- dura é aplicada à superfície interior (i.é, à espessura)
mos dos trainéis) terão aproximadamente 9 m de com- dos painéis formados pelos elementos da armação.
primento, é necessário que sejam compostos de dois
pedaços. A junção dos mesmos pode ser feita com a uti- Portais. São feitos com tábuas de 2,5cm por 15cm.
lização de dois pedaços da mesma madeira, de 5 em, um Recorta-se uma reentrância para receber o reforço de
usado como labaças para reforço. A lona deve ser co- ferro para o batente inferior, que é formado por uma
lada e pregada às travessas mas apenas pregada aos ripa de 2,5 x 7em chanfrada de ambos os lados, para
prumos. Quando o teto é desarmado para ser guar- que os atores não tropecem. Esta base é fixada, de é •

3
ada lado, por uma chapa em ângulo reto e uma can- que se veja o céu; em tais casos é praticamente impos-
t 11 ira (ambas metálicas) de cada lado. Uma cha- sível fazer com que os dois recursos tenham o mesmo
pinha m tálica perfurada, vergada e aparafusada a um aspecto.
lado do batente, pode ser utilizada como retentor para
a lingueta da fechadura. Arcos. A face anterior do arco é recortada em pa-
A porta é engonçada ao batente por dobradiças de pelão grosso e aparafusado à face anterior da abertura
pino solto. Uma folha de cada dobradiça é aparafusada do trainel na qual será usado. Uma armação de madei-
à porta com as alças dos pinos projetando-se para além ra é construída e ligada à face posterior da abertura,
da superfície. A outra folha é invertida para dobrar no Essa armação formará a espessura do portal e, além
sentido da face posterior da porta. O batente é dei- disso, segurará no lugar a espessura do arco. Essa
tado no chão com a face anterior virada para baixo. espessura do arco é feita de papelão grosso com lona
Coloca-se a porta por cima do mesmo, exatamente pa, colada em ambos os lados. Papelão recoberto de lona
ralela no lado da dobradiça e a 1,5cm acima da base, pode ser recurvado com facilidade sem quebrar. Pode-
para que a porta possa abrir e fechar livremente. Só -se usar também compensado fino, atravessado (não
então é que as folhas soltas da dobradiça são parafu- verga ao comprido).
sadas aos portais.
Molduras. A aparência de qualquer acabamento
Janelas. Os portais ou marcos para janelas são COllS- de madeira é muito melhorada com o uso de molduras.
truídos da mesma maneira que os da porta, com a dife- A moldura é chanfrada nos cantos e presa por peque-
rença que são iguais no alto e na base, e que levam nos pregos sem cabeça. Uma moldura longa pode ser
uma tira de moldura na base para fornecer uma guia formada de várias peças curtas, já que as juntas não
para a janela no batente inferior. O caixilho superior serão visíveis ao público. Um painel pode ser forma-
é de 4cm mais largo do que a abertura da porta e do por quatro pedaços presos nos cantos por preguinhos
pregado à face posterior da armação. O caixilho infe- sem cabeça. É necessário colocar travessas adicionais na
rior tem as mesmas dimensões pelo lado de dentro do parte posterior dos trainéis para Formar uma superfície
superior, mas como é construido com ripa de 5cm de sólida à qual os painéis possam ser pregados. Molduras
largura, em vez de 7cm, isto é suficientemente estrei- pesadas, como cimalhas ou sancas, podem ser formadas
to para correr dentro de um trilho formado por duas pela combinação de uma ou mais-tábuas com várias
tírínhas finas de ripa, pregadas na parte interior do tiras de moldura estreita, Molduras rasas ou quaisquer
batente. As traves horizontais dos vidros são feitas de outros detalhes com menos de lcm de espessura podem
tiras de ripa pr-egadas ao caixilho. As traves verticais ser simulados com tinta.
do caixilho inferior devem ficar por trás das horizon-
tais para evitar que, por acidente, o caixilho inferior ESCADAS E PRATICÁVEIS
pegue no superior no momento de ser aberto. Painéis
de losango podem ser sugeridos por cordões trançados Os teatros profissionais usam degraus e praticáveis
e pregados à face posterior dos caixilhos. diferentes dos aqui indicados, mas como estes são
Se a janela não for praticável, é por vezes possí- mais versáteis, são os mais adaptáveis ao trabalho de
vel não utilizar um fundinho, mas simplesmente pregar grupos amadores.
um forro de fazenda por trás da armação. Naturalmente
usam-se pano preto para as cenas noturnas e pano azul Praticáveis. A parte superior é formada por três
claro transparente, que pode ser iluminado por trás, pedaços de madeira de 5cm x IOcm, paralelos e colo-
para cenas diurnas. Tais recursos são aplicados com cados no chão sobre seu lado mais fino, aos quais se
mais facilidade quando as janelas são enfeitadas com prega, perpendicularmente, uma série de tábuas. Cada
cortinas cruzadas e presas apenas nos cantos inferiores. tábua é colocada sobre as três traves básicas e prega-
E nunca devem ser usados para cenas durante o dia da individualmente. Essa pranchada é forrada com um
nas quais qualquer abertura, como uma porta, permita acolchoado e o conjunto é então recoberto de lona ou
de aniagem, que é dobrada para os lados e pregada com .'No próximo número:
.. 1. .
Pi1ifurade •
Cenários.
tachas. (Do Livro: Como fazer Teatro (l'), de H.
As pernas são também feitas de madeira de 5cm Nelms, Editora Letras e Artes, GB)
x lOcm, colocadas pelo lado interior das traves básicas
laterais e aparafusadas no lugar. A trave básica central
da cobertura é mantida no lugar por 'uma trave trans-
versa de 5cm x IOcm que se aparafusa às pernas. Os
esquadros são feitos de qualquer sobra de. ma,deirae
fixados com pregos comuns, de tamanho médio. Pla-
taformas de mais de 2m necessitam de mais duas pernas
ao centro" bem como de mais uma travessa.

Escadas. Sua construção é com o piso dos degraus


de 2,5cm de espessura e 25cm de profundidade (lar-
gura da tábua), enquanto os dormentes (partes laterais
dentadas) 'são recortados em tábuas de 2,5cm x 30cm.
Os dormentes não devem nunca ser afastados mais de
75 em um do outro. Todos os degraus devem ser
acolchoados para evitar o barulho. Algumas camadas
de papelão conugado recoberto de lona ou aniagem
formarão uma proteção satisfatória.

Trainéis de proteção. O lado de uma escada ou I

grupo de degraus que fica visível ao público tem de ser


recoberto seja por papelão grosso, seja por trainéis espe- ,
cialmente construídos.

FORMAS IRREGULARES

Pedras, troncos, etc. são feitos de armações leves


de madeira, e cobertas com tela de arame de galinheirO,
que pode ser amoldada na forma desejada. Lona do-
brada ou amassada na forma apropriada, é cosida sobre
esse conjunto e pintada.
. .
Consertos. Um trainel rasgado pode ser remenda-
do, colando-se um pedaço de lona pelo lado de trás. A
pessoa que vai fazer o remendo precisa de outra que a
auxilie segurando uma tábua pelo lado da frente, para
formar. um ponto. de apoio contra o qual se possa realí-
zar o trabalho.
Quando um pedaço de lona cede, formando um
calombo flácido, deve-se respingar a .lona pelo lado de ;
trás com· um pouco dágua, o que faz com que ela enco- Este livro pode ser pedido à Editora, à rua Paulino Fernan- r.
lha e fique, portanto, novamente estícada, des 17 -: Botafogo, GB.
• 1
o QUE VAMOS REPRESENTAR

A MORTA
Osw ALD DE ANnRADE: ((t)

Respeitável público! Não vos pedimos palmas,


pedimos bombeiros! Se quiserdes salvar vossas tradi-
ções e a vossa moral, ide chamar os bombeiros ou se
preferirdes a polícia! Somos como vós mesmos, um
imenso cadáver gangrenado! Salvai nossas podridões e
talvez vos salvareis da fogueira acesa do mundo!

( " ) Nota autobiográfica: .. , Eu sou o povo. Do lado


materno venho de uma descendência [austosa de guerrei1'Os, os
"fidalgos do Mazagõo", a quem D. José I mandou dar de
presente um pedaço do Amazonas. Nasci em São Paulo, na
atual avenida Ipimnga n. 5 (primitivo), ao meio dia de 11 de
janeiro de 1890. Bacharel em Ciências e Letras pelo Ginásio de
S. Bento, onde ouvi um velho professor que se chamava Gervásio
de Araujo, que ia ser escritor. Isso decidiu em 1970 a minha A MORTA
vocação e a minha carreira. Passei a comprar lioros, a ler e
escrever, a estudar. Logo que pude, entrei pam um jornal. O
"Diário Popular" publicou em 1909 meu primeiro artigo. A cena se desenvalve também na platéia. O única
"Penando" - uma reportagem da excursão do presidente Afonso ser em ação viva é A ENFERMEIRA, sentada na centro
Pena aos Estados do Paranâ e Santa Catal''Ína. da palco, em um banca metálica, demonstrando a extre-
A muito custo, bacharel em Direito pela Faculdade de ma fadiga de um fim de vigília naturna. AO' fundo,
S. Paulo, em 1919. Orador do Centro Acadêmico 11 de Agosto.
Nunca advoguei. Continuei jornalista. Publiquei, com Guilher- arde uma lareira solitária. Está-se num cenáculo de
me de Almeida, o meu primeiro livro em 1916. Duas peças em marjim, unida, recebendo a luz inquieta da faga. Em
francês. Foi representado um ato de "LeU!' Âme" por Suzanne torno da ENFERMEIRA, acham-se colocadas sobre
Desprês, no Teatro Municipal de S. Paulo. Com a maior e quatro tronos altas, sem tocar a sala, quatro marionetes,
mais justa indiferença do público e da critica. Em 1922 tomei
parte na Semana de Al·te Moderna e publiquei "Os Condenados",
fantasmais e mudas, que gesticulam exorbitantemente
meu primeiro romance. Fiz uma conieréncta na Sorbonne e as suas aflições, indica das pelas falas. Estas partem de
outra no Sindicato dos Padeiros, Confeitarias e Anexos. macrojones, colocados em dois camarotes opostos na
Viajei, fiquei pobre, fiquei rico, casei, enviuvei, casei, meia da platéia. Na camarote da direita, estão BEA-
dioorciei, viajei, casei... Já disse que sou conjugal, gremial
e ordeiro. O que não me impediu de ter brigado dioersa« TRIZ, despida, e A OUTRA, num manto de negra cas-
vezes ti portuguêea e tomado pane em algumas batalhas cam- tidade que a recobre da cabeça aos pés. No da esquerda,
pais. Nem ter sido preso 13 vezes. Tive também grandes O POETA e O HIEROFANTE, caracterizadas com. ex-
fugas por motioos políticos. Tenho irés filhos e três netos e sou trema vulgaridade. Expressam-se todos estáticas, sem
casado, em últimas núpcias, com Maria Antonieta d'Alkmin.
Sou livre-docente ele Literatura na Faculdade de Filosofia da um gesto e em câmara lenta, esperando que as mario-
Universidade de São Paulo. (1950) netes a eles correspondentes executem a mímica de suas
vazes. Sobre as quatro personagens da platéia [erram.
(Do programa d'O Rei da Vela - OFICINA) reiletores no teatro escura. É um pana1'ama de análise.
Personagens: A OUTRA BEATRIZ - Entras pela janela O POETA - Hospital? Óvulo?
O POETA equívoca do meu ser, poeta! Teia de aranha ?
BEATRIZ O POETA-:És o belo horrível! BEATRIZ- Navegamos num rio
A OUTRA - Praticamente este preso!
O HIEROFANTE A OUTRA- Tenho medo de ser
edifício só tem forros fechados. Ha-
A ENFERMEIRA bitamos uma cidade sem luz direta um cadáver em vez de dois seres
- o teatro. vivos!
A OUTRA- Somos um colar trun- O POETA- Se te atirasses do pri- O HIEROFANTE - Forneço a cons-
cado. meiro impulso não morrerias inteira. ciência dos incuráveis.
O POETA- Quatro lirismos ... BEATRIZ- Permaneceria aleijada O POETA- A volta ao trauma .. ,
BEATRIZ- E um só lírio doen- e bela diante de ti vendendo peda- A ENFERMEIRASONÂMBULA - (le-
te ... ços de meu espetáculo. . vanta-se devagar ao fundo) - Ma-
O POETA - Num país dissocia- A OUTRA- Ganharíamos dinheiro. dre, na calada de uma noite de en-
do ... BEATRIZ- Me arrastarias torta e fennagem, esgano o doente que me
A OUTRA- Da existência estan- bela pelas ruas como a tua musa confiaste (senta-se).
que ... quebrada. BEATRIZ(soluçando) - Ai! Con-
BEATillZ- Não te assustes, outra! A OUTRA- Seria a irradiacão do cede-me o último beijo! Ai! Não
A OUTRA- Sou a imagem impas- meu clima! ' quero morrer sem o último beijo!
sível onde ondulam tuas cargas." O POETA- Qual dos crimes? A OUTRA- Não admito que faça
BEATRIZ- Minha imagem frus- BEATRIZ- Fui violada como uma isto de barulho! Morra como Na-
trada. virgem! poleão.
A OUTRA- O silêncio é necessá- A OUTRA- Estão batendo outra BEATRIZ- Querem transformar o
rio à nossa amizade. vez, escutem ... mundo!
O POETA- Toda mudez termina O POETA- Vou abrir. Não vou. A OUTRA- Através de absurdas
no útero de amanhã. BEATRIZ- Tens medo que seja catástrofes. , .
A OUTRA- Estão batendo. um personagem novo! O POETA- As classes possuidoras
O POETA - Aqui não há portas. O PoETA Ou de cair num país
-< expulsaram-me da ação. Minha sub-
BEATRIZ- Abre aquela porta. de fauna mirrada ... versão habitou as Torres de Marfim
O POETA- Nomeio da mágica. O HIEROFANTE- Não é preciso que se transformaram em antenas, . ,
BEATRIZ- Nunca se sabe quem é abrir, eu já estava aqui. O HIEROFANTE- :É a reclassifica-
que está batendo. BEATRIZ- É o meu professor de ção .. ,
A OUTRA - É perigoso abrir-se jiu-jitsu. BEATmZ - No último beijo direi
toda porta. que preciso de ti.
A OUTRA- Deite-se porque a sua
O POETA- A porta dá sempre na O POETA- O meu ânimo se torna
camisola é de vidro.
jaula. o ânimo de um condenado à mor-
BEATRIZ- Me ame! Por favor!
BEATRIZ- Só o papa pode abrir. te, ,. a febre cai com a primeira
O HIEROFANTE- Faze-te gostar meia-tinta fria da noite. Dou por
O POETA - O que haverá atrás
por um velho com dinheiro, .. encerrada a nossa vida amarga e tu-
de uma porta?
A OUTRA- Abre a porta! Chi O POETA- Este quarto está in- multuária. Mas sinto as reações tér-
10 sá! crustrado de febres. micas da insônia. O delírio de novo
O POETA- Pode ser a girafa, o BEATRIZ- Eu sou uma grande flor crepita nos meus membros nervo-
oficial de justiça, a metralhadora, a no leito de um açude ... sos!
poesia! O HIEROFANTE- Bon giorno! A OUTRA- Onde não há plano,
BEATRIZ- Nunca abra, BEATRIZ- Me ame por caridade! não há sanção,
A OUTRA- Eu me jogo semi-nua O HIEROFANTE- Onde estamos, O POETA- Há sempre dois pla-
da minha posição social abaixo. I em que capítulo? nos e um espetáculo .. , ( .
B 'ATlUZ- Sinto a voragem ... a A ENFERMEIRA- Quando a mor- O POETA - És maternal! Que
, J voragem que vai esfriando a gente te resvala por nós, a vida torna-se madrugada de amor, vamos ter, co-
ant s de cair. grandiosa. tovia!
O POETA- Oh! Inflexível? Oh! .BEATRIZ- Somos almas! O HIEROFANTE - A última noite é
Absoluta! Desmoronas na ação! O POETÁ - Ninguém, como eu, sem .dia seguinte ...
A OUTRA- Que vês, poeta? tem a compreensão absoluta da des- A OUTRA- A mulher não é so-
O POETA- Há uma fresta na tua truição. Cansada e vigilante ela es- mente um frasco físico.
imagem. Uma fresta. Está aberta preita o homem. O HIEROFANTE- O sexual é a
a porta do teu quarto tenebroso! BEATRIZ- Existe para o bem e raiz da vida. Ai tropeçam um no
mas não há ninguém dentro dele. para o mal. outro o mundo velho e o novo.
BEATRIZ- Há o outro homem, o O ~OETA - Respiraste o cheiro BEATRIZ- Quero e não quero.
ciúme ea ameaça permanente da perigoso da liberdade. A OUTRA- Hesito.
vida ... BEATRIZ- Venho de terras sim- BEATRIZ- Tenho fome.
A OUTRA- Há um grande sádi- ples. A OUTRA - Ela quer ganhar o
co, um sacerdote no circo... No A OUTRA- Essa incapacidade de pão leviano!
plenário do circo. .. Quero denun- se mortificar ... BEATRIZ- Meu pai.
ciar! Quero! Que sexualidade cres- BEATRIZ- Porque nasci? Me di- O HIEROFANTE - Foi o sexual que
cente! Aquele aparelho um prolon- gam? Me expliquem? Não queria inventou o jazido de família e a
gamento do corpo dele. A sua cara nascer. Sou um pobre sexo amputa- casa ...
de orgasmo! Fundemos um tribu- do do seu tronco econômico ... BEATRIZ- Quero ser um espe-
nal. (Chora) Nunca pensei que a vida táculo para mim mesma! .
BEATRIZ- Foi na sala cirúrgica. fosse resistência. Ou me mato ou A OUTRA- És uma flor irascível.
A pureza me envolvia como algodão. me isolo na parede de um bordeI. O HIEROFANTE- Só é possível um
E· o pai da minha primeira experiên- O HIEROFANTE- As conjurações. acordo no sexual.
cia digital! As óperas. As hipnoses. O POETA- A poesia é desacordo
O POETA- Sinto um suspiro imen- A OUTRA - Amaldiçoada natu- entre os conceitos.
so pelo teu corpo em posição ... reza! BEATRIZ- Um terreno fofo, poeta!
O HIEROFANTE- Ginecológica ... BEATRrL- Amaldiçoada hora que O POETA- Perco-me no paúldo
A fantasia é sempre um paraquedas. me criou! Tu" poeta,não passas de movimento.
um ser vivo. '. Devíamos ter juntos O HIEROFANTE- O poeta Hlergu-
O POETA- Arte é outra realida-
uma bela coragem. lha na percepção ...
de ...
O HIEROFANTE- Qual? O POETA- Só a cicuta de Sócra-
BEATRIZ- Mas eu serei um ca- tes salvará o mundo.
BEATRIZ- Nos amarmos num ne-
dáver rebelde. Não me deixo enter- O HIEROFANTE - A data mais im-
crotério lavado.
rar! portante da história é a que pôs ô
O POETA- Meu coracão não sen-
A OUTRA- Vives enterrada em ti te ainda a força atrativa da mor- homem entre a ação e Deus!
diante do espelho! te ... O POETA- Entre o seu ser animal
O POETA- És sempre uma Vitó- A. OUTRA- Foste tu, poeta, que e o seu ser social.
ria de Samatrácia, com os olhos e os preparaste para Beatriz os caminhos A OUTRA- Eu sou o Alter-ego.
cabelos presos a um horizonte sem evasivos da liberdade. O POETA- Eu, o oposto de Bea-
fundo. BEATRIZ- Eu queria saber se era triz. . . a raiz dialética de seu ser.
A OUTRA- Eu sou a perspectiva. para outro humano a Inspiração ... BEATRIZ- Progrido para a, morte
BEATRIZ- Não ouço nada-o.'. se- O POETA - Desmanchaste meu nos teus braços. E te encontro no
não os meus gritos, um atropelo e o sonho infantil. seio tumultuoso da natureza. Sou
silêncio ... BEATRIZ- Atiro-me em flexa ma- um elemento dela como a lua num
O POETA- Paz a teu corpo! ravilhosa para ti ... ramo de árvore.
o HIEROFANTE- o homem com- BEATRIZ- Sou a raiz da vida A OUTRA- A cegueira mora em
preendeu a responsabilidade econô- onde toda revolução desemboca, se tua histeria!
mica de matar. espraia e para. BEATRlZ.- Horror! Horror! Re-
O POETA- O sonho fê-lo acorda- O POETA- Um dia se abrirá na solve a minha questão econômica
do criar a primeira jaula. praça pública o meu abcesso fecha- antes que eu morra em plena mo-
O HIEROFAL'\fTE- A primeira ética. do. Expor-me-ei perante as largas cidade!
A OUTRA - A jaula de si mes- massas. A OUTRA- Alguém entrou? Ccn-
mo ... surarei quem for ...
A OUTRA- E o sexo? O inimigo
O HIEROFANTE- Os vegetarianos O HIEROFANTE- Pela porta que
interior!
querem retroceder na primitiva di- não existe.
O POETA- Deixarei os pequenos A ENFERMEIRASONÂMBULA(le-
reção. Comer da Árvore da Vida,
protestos - o chapéu grande, a ca- vantando-se) - É a hora métrica.
em pratos industriais.
beleira faustosa: falarei a linguagem BEATRlZ- Mereço todas as coisas
BEATRlZ- Em jaulas ...
compreensível da metralha. lindas da vida... As coisas lindas
O POETA- Porque insistes?
BEATRIZ- Não há argumento que BEATRIZ- Existe uma frente úni- da morte.
demova o amor ... ca ... O HIEROFANTE- No plano da so-
A OUTRA- No amor só existe o O HIEROFANTE - O país oficial de ciedade esquizofrênica.
que há de pior no homem. Freud ... O POETA- Toda a minha produ-
O POETA- É a volta do troglo- O POETA- Não haverá progresso ção há de ser protesto e embeleza-
dita - violenta e periódica. humano, enquanto houver a frente mento enquanto não puder despejar
O HIEROFANTE- Para garantir a única sexual. sobre as brutalidades coletivas a po-
espécie enjaulada. O sexual é o ra- BEATRIZ- Nunca a tua febre amo- tência dos meus sonhos.
dical da vida. Sua essência é a bru- rosa deixou o meu corpo, poeta! A OUTRA- Emparedado! Criaste
talidade. O amor é a quebra de uma grande doença!
O POETA- Porque me retempero
toda ética, de toda evolução ... BEATRlZ- Meu rapín!
no teu útero materno. O POETA- A construção do ro-
A OUTRA- É a pessoa distinta
que escuta atrás da porta, viola cor- BEATRIZ- Tenho medo. mantismo habita este quarto ...
respondência, manda cartas anôni- O POETA- No mundo sem clas- BEATRlZ- Que sou eu?
mas e mata nos jornais. .. Eu nun- ses o animal humano progredirá sem O POETA - A psique irreconhe-
ca fiz isso ... medo. cÍvel. . . .
BEATRlZ- O amor é o quero-por- A ENFER,\1ElRA- Sabes o que é O HIEROFANTE - O nascimento da
que-quero ... medo? alma.
A OUTRA- Quem gritou? O HIEROFAL'\fTE - É o sentimento O POETA- O subterrâneo que a
BEATRlZ- Não foi aqui. inaugural. sociedade ordena. Um dia serei re-
O POETA- Tua madrugada será conduzido à atmosfera ...
O POETA - É o sentimento de
assim. BEATRlZ- Estarnos fora do social!
insegurança do feto na vida aquosa
A OUTRA- És o presságio, poeta! O POETA- A polícia só me per-
da geração.
O POETA- Sou a classe média. mite esbravejar no teu dramático
A OUTRA- Vi uma luz. interior.
Entre a bigorna e o martelo, fiquei
o som! O POETA- É a luz sobre o mar O HIEROFANTE- Poeta!
O HIEROFANTE - Alma que esgui- inexistente que nos rodeia. O POETA- Eles tomaram o Esta-
cha enclausurada. BEATR:IZ- Estou obscura como do, eu fiquei com a mulher. Criei
BEATRIZ- Sem mim morrerias ca- uma idéia religiosa. uma alma de cova. Por isso busco
lado. O POETA- És a noite. Carrego drama e busco o teu cheiro.
O POETA- Viverei na Ágora. Vi- nos meus ombros o teu desequilíbrio BEATRlZ- Cantas a tua missa de
verei no social. Libertado! glandular. corpo presente!

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o POETA - Minha vida reduzida, O HIEOOFANTE - Complexo de O POETA - Ficarás nesse garfo ge-
prisioneira, entumulada! que faço a máscara. lado.
BEATlUZ - Sou a mulher de már- O POETA - E eu a ruptura ... BEATlUZ - Socorro!
more e dos <cemitérios. O HIEROFANTE - Ninguém te
O HIEROFANTE - Darei sempre a
ouvirá no país do indivíduo!
O H:rE:ROF ANTE - Pise baixo ... visão oficial.
O POETA - Quando a morte res-
devagar. O POETA - Enquanto eu bradar o vala por nós, a vida torna-se gran-
A ENFERMEIRA- Um golpe de jiu- canto noturno do emparedado. Um diosa.
-jitsu, pronto. canto desconexo. Interior como o BEATRIZ - Dá-me um epitáfio,
O POETA (num gesto longo) - Tu sangue. As comunicações cortadas poeta!
me mastigas, noite tenebrosa! com a vida! O POETA - Diante do espelho, és
A ENFERMEIRA senta-se. BEATRIZ (chorando) - Desfiguras- sempre a Vitória de Samatrácia, com
O HIEROFANTE - C onsumatum! te-me sob as tintas efusivas do amor. os olhos e os cabelos presos a um
O POETA - Fizeram-me abando- horizonte sem fundo.
O POETA - Guerra à sua alma.
nar a Agora para viver sobre mim BEATRIZ - Fujamos. Foi a outra
A ENFERMEIRA -É preciso des- que morreu!
mesmo de mil recursos improduti-
fazer todo sinal do drama ... O HIEROFANTE - Sopra para sem-
vos. Eu quero voltar à Ágora.
O HIEROFANTE - Não há perigo. pre o comutador noturno.
O HIEROFANTE - A realidade mo-
Recomponhamos o cadáver. É um O POETA - Meu álibi! Meu se-
lesta os humanos.
piedoso dever. J untemos os seus O POETA - Eu sou um valor sem
cular álibi!
membros esparsos, os cabelos, os
mercados. Criaram o sentimento e o
dentes.
tornaram um valor excluído da troca.
BEATRIZ - Meu amor. II QUADRO
BEATRIZ - :És o augúrio, poeta!
O POETA - Não é possível mais ...
O POETA - Encontrarão aqui a NO PAiS DA GRAMÁTICA
BEATlUZ - Por que?
tua imagem silenciosa.
O POETA - O professor te disso- Personagens Dramáticos:
BEATRIZ - Eu sou a lealdade sem
ciou. Fujamos. Não há crime ainda
sentido! O POETA
visível.
A ENFERMEIRA - Na aurora virão O POETA - No bem como no mal. BEATRIZ
buscar os restos do chá da meia BEATRIZ - Não te deixo ... HOMClO
noite. O CREMADOR
O POETA - Melancolia! Feita de
BEATRIZ - O amor é o quero-par-
O HIEROFANTE
luar e de onda noturna! Quem te
que-quero da vida. O JUIZ
definirá?
U MA ROUPA DE HOMEM
O HIEROFANTE - O criador do
O HIEROFANTE - No país do GRUPO DE CREMADORES
irremediável.
Ego ... GRUPO DE CONSERVADORES
O POETA - Que diz agora o teu
BEATRIZ - Por que acreditas em DE CADÁVER
coração? Para justificar-te!
BEATRIZ - Vive do medo de te mim? MORTOS
O HIEROFAL~TE- :És insolúvel sem VIVOS
ter perdido!
a censura. O TumSTA PREOOCE
O POETA - Quebraste o elo.
O POLÍCIA POLIGLOTA
BEATRIZ- Não poderei fazer nada BEATRIZ - Tanto algodão e tanto
sem ti, sem o teu calor, a tua ado- sangue! A cena representa uma praça onde
ração. O HIEROFAL~TE- Vou para o país vêm desembocar várias ruas. Um
O POETA - Quebraste a porta fe- sem dor. Longe das conjurações e grupo de gente internacional passa
chada ... I das óperas! ao fundo.
o TURISTA PREOOCE - Por favor. falo sete línguas, nesta idade! E O TURISTA - E patrões. Que se-
Quem são aqueles? não tenho mais governante! ria do mundo sem os patrões?
O PoLÍCIA - Um russo, um ale- O POLÍCIA- Também falo- sete lín- O POLÍCIA - Eles querem queimar
mão, um japonês, um italiano, um guas, todas mortas. A minha função todos os cadáveres, os mais respei-
nacional ... é mesmo essa, matá-Ias. Todo o táveis, os que fazem a fortuna das
O TURISTA - O que são? meu glosário é de frases feitas ... empresas funerárias, como a impren-
O POLÍCIA - Nomes comuns. É
O TURISTA - As mesmas que eu sa, a política ...
a grande reserva humana de onde emprego. Nós dois, só conseguimos O TURISTA - Acabam querendo
se tira para a ação, o sujeito ... catalogar o mundo, esfriá-Ia, pô-Ia queimar o cadáver da curiosidade,
O TURISTA- São vivos? em vitrine! que sou eu!
O POLÍCIA - Vivos todos.
O POLÍCIA - Somos os guardiães
de uma terra sem surpresas. Saem, de cena conoersando
Um grupo de gente amortalhada
atravessa a cena.
O TURISTA - E querem transfor-
má-Ia! Absurdo! Não é melhor VOZES AO FUNDO - Abaixo a auto-
assim? Sabemos onde estão a torre ridade dos ociosos! Abaixo! Que-
O TURISTA- E aqueles?
de Pisa, as Pirâmides, o Santo Se- remos o verbo criador da ação!
O POLícIA - São os mortos.
pulcro, os cabarés ...
O TURISTA - Vivem juntos? Vi- O POETA (entra conversando com
vos e mortos? A POLÍCIA - Nossa desgraça seria HORÁCIO) - Deixei-a para sem-
O POLÍCIA- O mundo é um dicio- imensa se subvertessem a ordem es- pre. .. Sinto-me atual. Longe da
nano. Palavras vivas e vocábulos tabelecida nos Bedekers. Desconhe- "Apassíonata",
mortos. Não se atracam porque so- ceríamos as pedras novas da vida,
HORÁCIO - Pisas de novo a terra
mos severos vigilantes. Fechamo-Ias os feitos calorosos da rebeldia. Não
dos que se embuçam nas regras do
em regras indiscutíveis e fixas. Fa- distinguiríamos mais fronteiras e al-
bom viver ...
zemos mesmo que estes que são a fândegas. .. Perderíamos o pão e a
O POETA - Renovo-me na rua.
serenidade tomem o lugar daquelas função.
HoRÁCto - É o país da gramática.
que são a raiva e o fermento. Fun- O TURISTA - E nós, os ricos, os
N ele acharás o teu elemento for-
damos para isso as academias. .. os ociosos, onde passear as nossas neu-
maL
museus. .. os códigos ... rastenias, os nossos reumatismos?
O TURISTA - E os vivos recla- Onde? Perderíamos toda autori- O POETA - Ainda guardo a espe-
mam? dade. rança trágica de vê-Ia ...
O POLÍCIA - Mais do que isso.. HORÁCIO - Voltas a essa mulher
Querem que os outros desapareçam Vozes ao fundo. como um criminoso!
para sempre. Mas se isso aconte- O POETA - Porque sou o culpado.
cesse não haveria mais os céus da Os CREMADORES - -Abaixo os HORÁCIO - Deixaste-a?
literatura, as águas paradas da poe- mortos! Limpemos a terra! Abaixo!
O POETA - Fui andando cada vez
sia, os lagos imóveis do sonho. Tudo A POLícIA - De um tempo para
mais para o lado das estrelas e ela
que é clássico, isto é, o que se en- cá, não sei porque agravou-se a con-
ficou no meio da música ...
sina nas classes ... tenda. Creio que os vivos cresce-
O TURISTA - Com quem tenho a ram, agoTa querem se emancipar. HORÁCIO - Estás marcado por
honra de falar? Os mortos os agrilhoam à indústria. ela ...
O PoLÍCIA - Com a polícia poli- E eles querem ocupar fábricas, ci- O FOETA - Sinto-a como a culpa,
glota. dades e o mundo. ... Ingratos. Não como a esperança. .. Sem ela a vida
O TURISTA - Oh! que prazer! O sabem que sem os mortos, eles não é deserta, o mundo é uma trágica
senhor sou eu mesmo na voz passi- teriam tudo, emprego, salários, assis- planície sem descanso! Ela é a ca-
va. Na minha qualidade de turista tência .... verna do indivíduo... Onde me
e•
acolho sem nada esperar, sem nada Ias armações metálicas. A natureza brança de sua voz? Ficarei perdido
desejar ... foi vencida pela mecânica! no mundo terrível da rua ...
HoRÁCIO - Ela te imobiliza e O POETA - Desfizeste tua frágil
amortalha. e confusa capa ética. Deixaste a so- Novo tumulto
ciedade dos humanos ...
Tumulto. Um pequeno Exército BEATRIZ - Me reconheces? Os CREMADORES- Fora! Fora os
da Salvação penetra na praça e se exploradores da vida! Limparemos
O POETA - Ainda trago no corpo
instala. para um comício musical e o mundo!
o perfume lascivo de tuas calças!
pacífico. Um homem gordo traz BEATRlZ - Quem são esses desor-
uma tabuleta onde se lê "Deus, Pá- BEATRlZ - Sou virgem de novo. deíros?
tria e Família". É o HIEROFANTE. Não vês este véu?
O POETA - É a vanguarda que
Sons fúnebres seguem o bando far- O POETA (retira-se) - É a másca- luta pela libertação humana.
dado. ra de um ente que se dispersa! O BEATRIZ (sufocada) - Quanta gen-
teu inóspito ser se desagrega! te! Não posso, não posso me habi-
HoRÁcIO - São os mortos que ma- BEATRIZ - Ao contrário, encontrei tuar. Esses homens procurando mu-
nifestam ... a minha unidade! lheres esperando homens ...
O POETA - Conheço aquele ho- HORÁCIO (chamando-o) - Deixa- O POETA - Pareces pertencer a
mem da tabuleta. -a! Não vês que habitas de novo um país assexuado. Que sentes?
HORÁCIO - São os conservadores com ela os subterrâneos da vida inte- Tens os olhos longínquos, a boca
de cadáver ... rior? voluntariosa crispada!
O POETA - Ela é o meu drama. . Os CREMADORES- Fogo nesses po-
Tumulto do outro lado da cena. HORÁCIO - O empresário da tua dres! Abaixo o despotismo dos mor-
Um grupo de exaltados, em roupa morte. Deixa-a! tos.
pobre, protesta contra o comício. O POETA - Não. O coração acor-
Homens e mulheres invadem a cena. da de repente. E' começa o tra- A música toca um tanga. O HIE-
balho irracional. Corrosivo de to- ROFANTE procura o Evangelho.
Os CREMADORES- Limpemos o do debate. .. A consciência torna-
mundo! Abaixo os mortos! Eles co- -se um estado sentimental e a justi- O HIEROFANTE - In illo tempore!
mem a comida dos vivos! Abaixo! ça foge do mundo ... Oh! Drama! Os CREMADORES- Fora! Fora!
O HIEROFANTE - Materialistas! Desenvolvimento do próprio ser
O CREMADOR- Ao contrário! So- universal! Eu te busco! O tumulto cresce. Juntam-se aos
mos a constante idealista que faz BEATRIZ - Porque crias em mim creinadores galicismos, solecismos,
avançar a humanidade! pesados encargos assim! E o senti- barbarismos. Do lado dos mortos
O POETA (apontando BEATRIZ, mento de culpa! Desenvolvido na cerram colunas, graves interjeições,
que aparece com passos medidos, célula de um circo. O sentimento adjetivos lustrosos e senhoriais ar-
estática sob o véu) - Ei-lal Que espetacular da culpa! A disciplina caismos.
gestos solenes! (Aproximando-se e das feras, as grandes quedas sem
falando-lhe) Voltas ao meu cami- rede, o amor pelo palhaço. CoRO DAS INTERJEIÇÕES - Oh!
nho? HORÁCIO - Foge! Não vês uma a Ah! Hi!
BEATRIZ - Todos os esforços me uma as ficções da vida interior? Os CREMADORES- Fora a estupi-
abandonaram! Onde estou? O POETA - Porque fugir? Para dez das interjeições!
O POETA - No país da Ordena- depois me arrastar pelos locais em O HIEBOFANTE - Massa desprezí-
ção ... que a acompanhei? Me acoitar à vel de pronomes mal colocados!
BEATRIZ- Os homens abateram as sombra de seus gestos idos, pro- O CREMADOR- Fora! Quinhentis-
florestas. Expulsaram os espíritos da curando nos cenários encontrados a tas! Falais uma língua estranha às
terra! Substituíram as árvores pe- dois, a sombra de seu ser, a Iem- novas catadupas humanas!
o HIEROFANTE - Somos o ver- Deus e Jesus Cristo me inspirem e Os CoNSERVADORES- Muito bem!
náculo das cara velas ... me garantam o céu. Muito bem!
O CREMADOR - No século do O HIEROFArTE - Culto aos mor- O HIEROFANTE - Devemos obe-
avião! tos! Culto aos mortos! Onde já se decer os nossos maiores. E seguir
Os CREMADORES- Somos a língua viu destruir um cadáver. Senhor o que está escrito ...
falada pelo rádio. . . Queima essa JUIZ, a humanidade levou séculos VOZES - Julgai! Julgai!
tabuleta. para construir esta frase "Deus, Pá- O JUIZ - Os mortos governam os
tria e Família". Como derrogá-Ia? vivos. Premissa maior! Premissa
Os CONSERVADORES BabeI!
Como e porque? menor. .. Os cremadores são exces-
BabeI!
BEATRIZ - Como fala bem esse sivamente vivos! Ergo! Ergo! De-
Os CREMADORES- Não! Somos vem ser... Conclusão! Governa-
os fundamentos do esperanto, a lín- velho!
dos ...
gua da humanidade una! O CREMAD'OR- O que nos traz à
Os CONSERVADORES - Governados
O HIEROFANTE - Não pode! Não cena é a fome! Mais que qualquer
vocação. Muito mais que a vontade por nós!
pode! Quem poderá destruir uma VOZES - Muito bem! Muito bem!
de representar. É o problema da
frase feita? OUTRAS VOZES - Fora! Idiota!
comida! A produção da terra é des-
Os CRID.1:ADORES - Fora as frases Vendido! Cadáver!
viada dos vivos para os mortos. Nós
feitas, as frases ocas! Fora as fra- trabalhamos para alimentar cadáve- HIEROFANTE - Eis um silogismo
ses mortas! res. Mais eles absorvem a produ- irrefutável!
Os CoNSERVADORES Chama o ção, mais aniquilam os vivos. Tudo O POETA - Essa lógica tem servi-
juiz! Chama o juiz! que produzimos vai para sua boca do de fundamento a todos os crimes
A MULTIDÃO - O juiz! insaciada. Eles possuem armas e di- históricos.
rigem exércitos iludidos pela igno- Os CoNSERVADORES- É extraordi-
A charanga toca. rância e pela fé religiosa. nária a perspicácia dos livros!
Os CREMADORES- Rebelemo-nos! O POETA - Fora o velho argô dos
VOZES - Aí vem o juiz. Ele jul- VOZES - Façamos a limpeza do filisteus!
gará! mundo! O CREMADOR - Rebelemo-nos.
Os CoNSERVADORES - É um grande Os CREMADORES- Queimemos os Um dia sairemos de nossos labora-
gramática! cadáveres que infestam a terra! tórios subterrâneos. .. Para limpar
Os CREMADORES- É um juiz de VOZES - Sim! A cremacão! A o mundo de toda putrefação!
classe. cremação! ' As INTERJEIÇÕES- Ah! Oh! Ih!
Os. CoNSERVADORES- Viva o juiz! Os CR&VfADORES - É preciso des-
Viva o nosso querido juiz! truir os mortos que paralisam a vida! A charanga dos conservadores de
VOZES - Vamos queimá-Ias! cadáver forma um séquito e conduz
o juiz agradece a manifestação. O JUIZ - Esperail Esperaí a sen- o juiz em triunfo.
Formam-se C1n torno· dele semi- tença. Tragam aqui o livro: Bi-
-círculos irados. -blos. Tudo está no Livro, (Colo- Os CONSERVADORES(retirando-se)
cam diante dele um grande lioro - Abaixo os solecismos! Abaixo os
O CREMADOR- Conhecemos o jul- aberto, Ele vira as páginas) Vamos barbarismos! Abaixo!
gamento! É contra nós! ver. De-vo-ta-men-to. .. Pu-ri-fi- UMA ROUPA DE HOMEM (passan-
O JUIZ - Silêncio! Julgarei segun- -ca-ção! Adiante! Viver para os do) - Boa tarde, linda!
do os cânones. outros! Não! Está aqui! Achei (Lê BEATRIZ - Boa tarde.
VOZES - Os cânones mortos. num grande berro) Os-mortos-go- O POETA - Quem é?
O JUIZ - Começai a exposição do vernam-os-vivos! (Aclamações. Pro- BEATRIZ - Um conhecido. Estive
pleito. Sou todo ouvidos! Que testos) ontem com ele ...
,
o POETA - Impossível, .. O POETA - No entanto não po- isso! (Coloca as mãos recatadamen-
)
BEATRIZ - Sim. Pediu-me que derei fazer mais nada sem ti! Sem te sobre o sexo).
fosse sua. Falou-me da eternidade. teu calor e tua adoração. O POETA - És.a morte, o abismo
Mas lembrei-me de tuas palavras. BEATRIZ - Amo-te ainda. Vem final, o longe da terra.
Recusei. Ele disse: Não insisto! comigo. Nada pode conter a vida ... BEATRIZ - Sou a imagem do se-
Sei que serás minha! O POETA - A morte ... xual.
O POETA - Mas é um morto, que- BEATRIZ- Nunca a tua febre amo- O POETA - Estás deformada, Ion-
ridal rosa deixou o meu corpo. gÚ1qua, inexata... Pareces despe-
BEATRIZ - Morto?! gada dos ossos, como aquele que te
O POETA - Sim. Tu não morres- A charanga dos conseroadores de cumprimentou.
te, querida... Não podias ter te cadáver passa ao fundo. BEATRIZ - Tenho um encontro
avistado intimamente com ele, que marcado com ele.
não existe. Por acaso não notaste BEATRIZ- Vamos com eles, poeta. O POETA - Impossível. É um
as suas roupas despegadas do cor- O POETA - Não. morto!
po? É um morto. Não sabes? BEATRIZ - Vamos!
BEATRIZ - Aqui na cidade? O POETA - Queres seguir a músi- A charanga do exército da morte
O POETA - Sim, meu amor. Os ca da morte? toma conta da cena lentamente.
mortos ainda infestam a terra viva. BEATRIZ - O juiz decidiu ... BEATRIZ centraliza-o,
Metade da população desta praça é O POETA - O juiz é um morto
de gente morta. também. VOZES - Culto aos mortos! Culto
BEATRIZ - Somos todos mortos! aos mortos! Passagem para um gran-
BEATRIZ - Se eu tivesse morri do
serias um necrófilo! O POETA - Vem para o outro de enterro... (Saem levando-a)
lado! Minha ação heróica e práti- O POETA - Força de resistência
O POETA - Ter-te-ia abandonado!
ca te salvará. <'0 mundo que começa ...
BEATRIZ - Não podes abandonar- A VOZ DE UM. CREMADOR - É
-me! Nasci da selecão de ti mes- HORÁCIO- Onde vais? Que tens?
preciso mudar o mundo! O POETA - Estou como quem per-
mo! (Declamando) Comecei a pal- A Voz DO HIEROFANTE- É preci-
pitar com a tua religião infantil, com deu um brinquedo querido... es-
so conservar as instituições! pera ...
a tua cultura adolescente! Fui o A Voz DO CREMADOR- É preciso
cofre heráldico das tuas tradições, a HORÁCIO - Deixa-a!
queimar os cadáveres que infestam O POETA - Horácío, não escalpe-
cuma de tua gente! a terra. Eles tiram os alimentos dos
O POETA - Como te encontro mu- les minha dor! Estou marcado por
vivos. da.
dada! Não te recordas senão de VOZES - Querem mudar a super-
evocações e cadeias! HORÁCIO - Onde vais?
-estrutura. O POETA - Salvá-Ia!
BEATRIZ- Tu te tornaste um puro UMA Voz - O comportamento. HORÁClO - Como?
estímulo mecânico. Não acodes aos OUTRA Voz - A reflexiologia. O POETA ~ Pelo primeiro avião ...
,chamados· de tua alma! BEATRlZ - A raiz de tudo é o se- Numa folha morta passarei a gar-
O PDETA ;- Os acentos de minha xual. O amar é o quero-porque ganta cerrada da outra vida.
dor não te penetram mais. Não que- -quero da vida. Nessa frente única,
bram a mudez do teu mundo de pe- a humanidade hesita. .. Vem.
dra. Estás perturbada, os olhos lon- O POETA - Não, o social domina Sai correndo atrás do costeio, cuia
gínquos, a boca voluntariosa oris- os humanos. Vem conosco. Vem charanga ainda se ouve.
pada. com os libera dores do grande con-
BEATRIZ (depois de um silêncio flito! HoRÁeIO Insensato! Poeta!
evocativo) - Pertenço às regiões da BEATRIZ - Como és cândido. O Cuardar-te-ão para sempre os den-
amnésia. que os homens querem é isso, só tes fechados da morte!
III QUADRO (Silêncio) Gostaria de conhecer o Berreiro no jazigo
poeta ...
O PAíS DA ANESTESIA O RÁmo PATRULHA- Ele vem de O MENINO DE ESMALTE - Ai! Ai!
auto giro, trazendo a morta! (Espia pela vigia)
Personagens Dramáticos: A DAMA DAS C A M É L I A S Os CADÁVERES- Que é isso? Que
Quem é? é isso?
BEATRIZ O HIEROFANTE - Beatriz. O HIEROFANTE - Uma cena de
O POETA A SENHORAMINISTRA - E' ele? família.
O HIEROFANTE O HIEltOFANTE - O poeta vem de A SENHORA MINISTRA - Que pes-
A CRIk'l"ÇA-DE-EsMALTE planador. Só assim penetrará nes- soal escandaloso!
SEUS PAIS sas paragens ... A DAMA DAS CAMÉLIAS - Brigam
O ATLETA COMPLETO A SENHORA MINISTRA - O motor. sempre. Nunca pensei que fosse
O RÁDIO-PATRULHA (acompanha- O HIEROFANTE - A mosca. assim no seio da sociedade honrada!
do de uma motocicleta) O PAI (pondo a cabeça pela O'gi- O HIEROFANTE - Gente católica.
A DAMA-DAS-CAMÉLIAS va do jazigO') - Silêncio! Eu habito E' extremamente conceituada. O
A SENHORAMINISTRA um lugar silencioso ou não? Eu me drama que os trouxe para cá teve a
CARONTE matei para ouvir a solidão. Para mais tétrica repercussão .nos meios
O URUBU DE EDGARD estar só! Não viver em sociedade. distintos.
A cena representa 'Um recinto so- Em nenhuma sociedade. Eu me en- A SENHORAMINISTRA- Como foi?
bre 'Uma paisagem, de alumi'nio e contro assediado de intrigas, cumu- O HIEROFANTE - Gás. Suicídio
carvão. À direita, wn aeródromo lado de vis preocupações. coletivo.
que serve de necrotério. Ao centro, O HIEROFANTE - Faço sentir que A DAMA DAS CAMÉLIAS - E nin-
um jazigo de família. À esquerda, a o vizinho está num cemitério de pri- guém escapou?
Árvore desgalhada da Vida, em for- meira. Não há melhor. O MENINO (pela vigia) - Esse su-
ma de cruz, onde arde, pregado, wn O PAI - Por isso é que eu não jeito, além de me ter suicidado, não
facho. Um grupo de cadáveres re- queria embarcar no autogiro. quer me dar doce!
centes está conversando nos degraus O PAI - Cala a boca!
do jazigo. Passagem lateral para a Silêncio O MENINO - Depois diz que é pai!
platéia, onde a primeira fila de ca- O PAI - O amante de tua mãe te
deiras se conservará vazia. O HIEROFANTE - O motor ... dava doces!
A DAMA - O poeta ... O MENINO - É por isso que eu
O RÁDIo-PATRULHA - Ouve-se já A SEl\'HORA MINISTRA - A mos- gostava dele ...
'o ruído do motor! ca ... O PAI - Cínico, bastardo, filho de
A DAMA-DAS-CAMÉLIAS - Escu- uma ...
tem! O urubu de Edgard. atravessa a
O ATLETA COMPLE'In - Não é! cena ao fundo. I Pancadaria, urros, choros ..
A SENHORA MINISTRA - É' uma
mosca. O RÁDIO PATRULHA - Ouço vo- A DAMA DASCAMÉLIAS - Esta ár-
O HIEROFANTE- Não. zes ... vore não tem sombra.
O ATLETA COMPLETO - Agora é. A DAMA - É a mosca azul. .. O RÁDIO PATRULHA - Gastou a
A DAMA DAS CAMÉLIAS - Não.
O HIEROFANTE - É o urubu de que tinha em 60 séculos!
A SENHORA MINISTRA - A mosca.
Edgard. A SENHORAMINISTRA - Por que a
O HIEROFANTE - O auto giro de
Caronte ... O RÁmo PATRULHA - Silêncio! trouxeram para cá?
A SENHORA MINISTRA - É uma O HIEROFANTE - Fiquemos con- O HIEROFANTE - É uma peça de
mosca no interior de meu nariz! centrados como perfumes. museu. Como nós. ( ,
A DAMA DAS CAMÉLIAS - Foi ela O HIEROFANTE - Depois que o O HIEROFANTE - É quem forne-
,)
que fez a queda do primeiro pai. ouro nos expulsou da Idade de Ouro, ce certidões de óbito.
O HIEROFANTE - A queda ... exploramos a fábula ... A: DAMA DAS CAMÉLIAS - Onde
Quando o troglodita desceu da árvo- O RÁDIO PATRULHA - E' o traba- que ele mora?
re. .. caiu. E se tornou homem ... lho da terra. O HIEROFANTE - No interior oco
A DAMA DAS CAMÉLIAS - É a A DAMA DAS CAMÉLIAS - Então da cruz.
árvore da vida ... foi um choque físico que produziu o A SENHORA MINISTRA - Ó vida
O ATLETA COMPLETO - Da vida homem? chata!
espiritual. A única que me interes- O HIEROFANTE - Não. Foi um O HIEROFANTE - Que vos falta
sa ... choque econômico. Caindo da árvo- aqui?
A SENHORA MINISTRA - Quem é re, ele perdeu os frutos com que se A DAMA DAS CAMÉLIAS A pri-
esse sujeito? alimentava. mavera! Pássaros coloridos. Gritos
O RÁDIO PATRULHA - É um atle- A Sm-rnORA MINISTRA - Engate o d'alma! Namorados!
ta completo. rádio, seu patrulha. A SENHORAMINISTRA- Vamos in-
A DAMA DAS CAMÉLIAS - Mas O RÁDIO PATRULHA- Não posso. ventar um joguinho?
não tem frutas essa árvore? Só tenho na minha motocicleta uma O HIEROFANTE - Jogaq'emos gol-
O HIEROFANTE - Tinha uma. Co- estação emissora. fe com as nossas caveiras ...
A SENHORAMINISTRA- Que pena! O ATLETA COMPLETO - Faltam as
meram. Foi com seus galhos que se
A gente podia até ouvir a terra ... esteques.
acendeu o primeiro fogo. .. E com
Escutar a Giovinezza. .. Ir às cor-
ela toda se fará a última foguei- O RÁmo PATRULHA - Jogaremos
rídas de longe.
ra. Então é uma incendiária? com as nossas próprias tíbias.
A DAMA DAS CAMÉLIAS - No meu
O HIEROFANTE - Nela costuma- A SENHORAMINISTRA - Não. Me-
tempo eu adorava as corridas.
mos festejar o Natal dos falecidos ... lhor é ler a mão. Um brinquedo de
A SENHORA MINISTRA - Oh! As
O MENINO (pela vigia) - Eu que- sociedade.
corridas! Lonchamps! O Derby de
ro um brinquedo ... O ATLETA GOMPLE'I1O- O Híero-
Epson! Eu tinha um coronel que
O PAI - Vai pedir ao amante de fante sabe ler.
me pagava o taxi o dia inteiro, só
tua mãe. para namorar os meus braços nas A SENHORA MINISTRA - Disseram
A MÃE - Ele nunca me passou corridas. Era um homem casado, uma vez que eu ia morrer aos oiten-
as doenças que trouxeste para casa. muito sério! ta anos. Me blefaram.
A DAl\.fA DAS CAMÉLIAS - Conte- O HIEROFANTE - Aqui é impossí-
-nos a história da queda de Adão ... o urubú de Edgard passa ao vel ler-se a mão a alguém.
O HIEROFA1~TE- Levou um tom- A DAMA DAS CAMÉuAS - Por
fundo.
bo. .. Quando se levantou do solo, que?
estava criada a propriedade priva- A DAMA DAS CAMÉLIAS - Quem é O HIEROFANTE - Porque não te-
da ... esse passarinho? mos mais linhas nas mãos tumefac-
A SENHORAMINISTRA - Foi dessa O ATLETA CoMPLETO - É o espí- tas ... (todos examinam as próprias
árvore que ele despencou ... rito da árvore. mãos) Está tudo esgarçado pela
O MO'I1OCICLISTA - Então que so- A DAMA DASCA..l\IlÉLIAS
- O urubu morféia lenta e definitiva da morte.
mos? do Edgard. Vivemos na negação.
O HIEROFA1~TE- O conteúdo das A SENHORA MINSTRA - Quem é O ATLETA C01l1:PLETO- Na eterni-
mitologias. mesmo o dono? dade.
O ATLETA COMPLETO - O alimen- O HIEROFANTE - Um literato, O HIEROFANTE - No além do es-'
to espiritual dos mortos! Edgard Poe, paço.
A Sm-UIORAMINISTRA - O susten- A DAl\1:A DAS CAMÉLIAS Para A Sm-rnORA MINISTRA - O· poeta
táculo das religiões! que serve um bicho desses? não virá até aqui atrás da morta!
A DAMA DAS CAMÉLIAS - Virá. A SENHORAMINISTRA - Silêncio! A DAMA DAS CAlVIÉLIAS- Torna-
Eu que fui mulher da vida sei que O HIEROFANTE - Que reine entre mo-nos humanos.
ele virá. nós o silêncio que convém aos mor- O POETA (procura na cena) -
A SEr-.TJIORA MINISTRA - Quem é tos. Beatrizl Beatriz! Retificadora de
a senhora? meus caminhos! Que tive longe de
Permanecem todos estáticos como ti? Cachos de desgraças. Ofereço-
A DAMA DAS CAMÉLIAS (mostran-
figuras de cera. O urubu de Edgard -te o terreno alagado de meu senti-
do as flores que a envolvem) - Não
se imobiliza junto à árvore esgalha- mento! Sem desejar nada de ti, de
vê? Sou a dama das camélias.
da. Escuta-se o ruído de um motor. teu corpo sepulcral, ofereço-te o
A SENHORA MINISTRA - Pois eu meu coração. (descerra o renard)
Um autogiro desce oerticalmente, e
fui a senhora legítima de um minis- dele saí Caronte.trazerulo nos braços Beatriz!
tro ... BEATRIZ - Sacrilégio."
um corpo de mulher amortalhado
O ATLETA CoMPLETO Não ll!./m grande renard. argenté. O POETA - Beatriz!
adiantou nada. Apodreceu como BEATRIZ - Dizes tão bem o meu
eu. Eis aqui o que resta de um o HIEROFANTE - Está morta? nome! Porque tudo que te dou de
atleta completo. CARONTE - Não insistiu em ficar. emoção, de força criadora, não pões
A SENHORA MINISTRA - Ó! Pa- O HIEROFANTE - Os mortos não em tua arte estanca da?
trulha! Liga o rádio na motocicleta. insistem. O POETA - Falas de novo a lin-
Fala a Nírvana-emíssora! Vamos CARONTE(depositando o corpo so- guagem da vida! Queres de novo
desmoralizar toda vida. bre a mesa de mármore do necroté- dar existência ao poema de meu en-
O HIEROFANTE - Não! rio) - O serviço terreno me reclama, contro!
O ATLETA COMPLETO - Por que? (Parte no autogiro) BEATRIZ- Que fizeste, poeta! Não
O ATLETA CoMPLETO - Sinto do- podes penetrar no país que eu ha-
O HIEROFANTE - Estas 'coisas me- bito. Não podes prescrutar minha
res reumáticas.
cânicas não convêm ao nosso estado intimidade com os autômatos!
O HIEROFAl'lTE - Cuidado.
onírico. O POETA - Lacera-me de novo a
O ATLETA COMPLETO - Por que?
A SENHORAMINISTRA - Mas a ir- O HIEROFAl'-,'TE- O poeta pode angústia criadora. Venho de uma
radiação nos interessa. chegar a qualquer momento. noite cheia de passos e de vultos, a
O ATLETA COMPLETO - É um de- O ATLETA COMPLETO - Mas sinto noite sem ti!
sabafo espiritual ... dores fulgurantes! BEATRIZ - Que se passa lá em
A SENHORAMINISTRA - Um passa A SENHORAMINISTRA - Você tem baixo, onde há chuva?
tempo ... , aí uma bolsa de água quente? O POETA - A chuva, coiteira de
A DAi\1A DASCAMÉLIAS - Trouxe- A DAMA DAS CAMÉLIAS - Sinto tragédias!
um frio enorme no peito! BEATRIZ - O Ego e a Gramática.
mos conosco todos os recalques ter-
O HIEROFANTE - É a presença O POETA - Pareces anestesiada
renos.
dos sopros augurais da terra. num lençol de argila!
A SENHORA MINISTRA - Ou não
A DAMA DAS CAMÉLIAS - O BEATRIZ - Interrompeste o meu
habitamos o país sem censura ... sonho, poeta. És a incorreção]
poeta.
A DAMA DASCAM~ÉLIAS- O auto- O HIEROFAl'lTE - Ele virá can- O POETA - Como falas diferente!
giro está se aproximando. O poeta tando a grandeza do agir ... Trazes no fácies os sinais da decom-
virá atrás ... A SENHORA MINISTRA - Quem é posição de tua unidade!
O HIEROFANTE - Agora é. que faz o discurso de recepção? BEATRIZ - Pelo contrário .. ,
O RÁDIO PATRULHA - Viva Ca- O RÁDIO PATRULHA - A motoci- O POETA - És a máscara de um
ronte! cleta ... ser que se dispersa. Teus olhos de-
Os MORTOS (rnanifestando) O HIEROFANTE - Tornastes-vos ri- liram enquanto a tua boca amarga
( ,
Viva! Viva o iniciador! Viva! dículos à aproximação da vida. sorri. Tens os cabelos do homem
de Neendertal, coroados de espi- te? Onde se unem os dois planos, O POETA - Sou a tua mensagem
• J nhosl o latente e o manifesto? sexual!
BEATRIZ - Sou o primeiro degrau BEATRIZ - Não mais podes acor-
da vida espírítuall Os mortos colocam-se na primeira dar em mim o ódio erótico ...
O POETA - O que me chama é o fila do teatro, olhando. O POETA - Para onde me condu-
drama. Drama, desenvolvimento do ziste?
próprio ser universal! BEATRIZ - Ama-me, por favor! BEATRIZ - Habito o país letáirgi-
BEATRIZ - Quero plata ... co onde não penetra a dor!
O POETA - És a agressão, o eras
O POETA - Dissimetria, minha O POETA - Onde está a tua boca
e a morte. Sigo-te e desapareces!
criadora dissimetria! antiga? Por que esse ritus Oh! Os
BEATIÜZ - Todo esforço é inútil.
BEATRIZ - Tu me abriste de novo teus dentes! Não quero ver mais
O POETA - Angústia! Ansiedade! os teus dentes. Onde estão os teus
os caminhos incoerentes da terra,
Divisão! Resolve! Vives de novo lábios molhados e vivos? Foges com
poeta!
para a minha vida ou partiste para a boca repleta de dentes! Cessa o
sempre?
o Poeta aproxima-se quieto e som-
BEATRIZ - Todos os meus gestos
teu riso parado!
brio.
são de amor! Ouve-se o uivo demorado de um
O HIEROFANTE - Formaremos um O POETA - Fala do sol, da manhã cão.
comício de protesto! O amor quer e da terra!
faze-Ia voltar ao país ordenado e BEATRIZ - Estamos no país pro- O RÁDIO PATRULHA(na platéia) -
terrível da rua. pício às mensagens ... Debout les mortsl
O RÁDIO PATRULHA - Onde nos O POETA - Eras a felicidade! Me
reuniremos? diminuías como uma criança em ti! O cortejo forma-se de novo e diri-
A DAMA DAS CAMÉLIAS - Vamos- BEATRIZ - Chorei todas as lágri- ge-se para o palco.
para a platéia, assim não perdere- mas! Hoje só resta o rímel negro
mos a grande cena. distilado de meus olhos sem fundo! O POETA - Que uivo terrível! Pa-
O RÁDIO PATRULHA - Vamos. O POETA - Teus cabelos me en- rece um coração baleado ...
A SENHORAMINISTRA- Que curio- volvem! Sinto-me ensopado de es- BEATRIZ- Só por uma mulher um
sidade eu sinto! trelas álgidas. Quero a manhã! Que- cerbero uiva assim.
O ATLETA COMPLETO - Para a ro o sol!
platéia! Quero ver como um poeta BEATRIZ - Escalaste escadarias, Os mortos alinham-se ao fundo da
ama! montanhas e o mar! Para atingir cena. O urubu de Edgard abre as
O HIEROFANTE - Ordena o corte- este horizonte sem fim! asas sob a ároore.
jo, rádio patrulha, seguir-te-emos em O POETA - Sorri! De dentro de
ordem alfabética. teus cabelos noturnos! O POETA - A tua mão termina em
O RÁDIO PATRULHA- Debout les BEATRIZ - Sejamos a mesma afli- reta! O teu braço está rígido e
mortsl ção no mesmo leito! reto! A noite tenebrosa de teus ca-
O POETA - Quero o marfim quen- belos não mais restituirá a manhã ra-
Os cadáveres se organizam dificul- te de teu corpo. Mas os teus olhos diosa ...
tosamente. Animados pelo barulho se evaporam! Que boca angustiada! O URUBU DE EDCARD (aproximam-
da motocicleta, conduzem-se em rit- BEATRIZ- Sem ti me falta o apoio do-se e tomando a axila de Beatriz]
mo mole, atrás do Rádio Patrulha, terreno ... - O amor não peneh'a o crânio dos
que desce a cena. O POETA - Sinto-me rodeado da mortos!
angústia das águas! Onde estou? O POETA - Morta! Beijei inútil
O HIEROFANTE (deixando o palco) BEATRIZ - És o feto humano que a labareda extinta de teu corpo! Por
- De que serve aqui o subconscien- voltou à eternidade! isso guardavas dentro do peito uma -
humanidade diversa, atraente e ter- O A"ILETA CO:MPLETO - Errarão Flamba tudo nas mãos heróicas
rível! pelo espaço infinito nossos irmãos do poeta .
A DAMA DAS CA-"YÉLIAS- Olhem, sem carne.
Beatriz permanece quieta e sensa- A DAMA DASCAMÉLIAS- Sinto se O HIEROFANTE (aproximando-se
cional! inflamarem os meus pulmões ... da platéia) - Respeitável PÚblico!
O HIEROFANTE - Só se ama no O ATLETA COMPLETO - Talvez se- Não vos pedimos palmas, pedimos
plano da criação! jamos pmificados! bombeiros! Se quíserdes salvar as
O POETA - Eu trouxe o amor A SENHORA MINISTRA - Não. vossas tradições e vossa moral, ide
para o nada! Cristo-Rei não deixará! chamar os bombeiros ou, se prefe-
BEATRlZ - Para a aurora da vida! O RÁmo PATRULHA- O país dos rirdes, a policial Somos, como vós
O POETA - Queimrurei a tua car- mortos é donde se alimenta toda re- mesmos, um imenso cadáver gan-
ne dadivosa! Não se poupa o nada! ligião ... grenado! Salvai nossas podridões e
O URUBU DE EDGARD - Socorro! O HIEROFANTE - Mas os crema- talvez vos salvareis da fogueira ace-
Socorro! Fogo! dores mataram os deuses. .. Joga- sa do mundo!
ram fora os mitos inúteis.
Os mortos se movimentam. BEATRIZ- Poeta! Permanece para
sempre dentro de mim! Sê fiel!
O POETA - Devoro-te trecho no-
O POETA - Não penetrei à-toa turno de minha vida! Serei fiel para
neste país, onde há uma árvore e um com os arrebóis do futuro ...
facho. Se a força criadora de mi- O HIEROF ANTE - O erro do ho-
nha paixão não te toca, é porque não mem é pensar que é o fim do bar-
existes! bante. .. O barbante não tem fim.
O URUBU DE EDGARD- A huma-
Ouve-se uma sereia estridente. nidade [continuará trágica e ingê-
nua. .. Só a morte é a etapa atin-
o HIEROFANTE - O sinal dos cre- gida.
madores! Acode-nos, espírito da ár- O POETA (Passa o facho aceso ao
vore! corpo de Beatriz, frouxamente co-
O URUBU DE EDGARD- Deus! berto pelo renardi argenté) Todo
O POETA - Reconheço-te, empre- mistério será aclarado. Basta que o
sa funerária! Na matéria do meu homem queime a própria ahna!
cérebro ficará o teu epitáfio. Nun-
ca mais! (Toma do facho e começa Um imenso clarão se anuncia no
a incendiar a Árvore da Vida). Não fundo.
mais estes símbolos dialéticos do se-
xual perturbarão a marcha do ho- A SEl\'HORA MINISTRA - Fujamos
mem terreno. Foge, ave do Paraiso! para o país da chuva ...
O URUBUDE EDGARD- Os cemité- O POETA - A noite não terá mais
rios são combustíveis. Não há sal- passos nem vultos!
vação! O HIEROFANTE - O dilúvio de
A SENHORA MINISTRA - Sempre fogo nos seguirá!
disse que essa vela aí era um peri- BEATRJZ - Sexual! Sexual!
go! O POETA - Incendiarei os teus ca-
O RÁDIO PATRULHA - O incên- belos noturnos! A tua boca aquosa! (Publ. Livraria José Olímpio Edi-
t ,
dio será a cegueira de Caronte. A aurora de teus seios! tam - Rio de Janeiro - 1937)
Tem uma origem muito discutida o mais autêntico melho, com touca do enfeitado de cacos de espelho e la-
, J
e popular espetáculo rural nordestino, e seu nome tal- ços de fita - e a Cantadeira, que também atua cantan-
vez sugerido aos primeiros criadores pelo bater dos pró- do na orquestra, composta exclusivamente de instru-
prios instrumentos de percussão, que marcam o ritmo de mentos de percussão: zabumbas, ganzás, maracás, pan-
suas danças e cantarias, parecendo dizer: bumba! bumba! deiros, etc.
bumba! - ao que se teria acrescentado o nome da fi- As cantorias sofrem variação tanto na melodia quan-
gura principal do auto. Vale a pena ressaltar que, em to na letra, A cenografia e as falas são, geralmente,
Pernambuco, essa marcação ritmica é tão característica improvisadas na ocasião, obedecendo apenas à linha
que por si só anuncia, de longe, o lugar em que está se estrutural própria de cada grupo, de acordo com a orien-
realizando a função. tação de seu dirigente.
O Bumba é, geralmente, apresentado em campo A intenção da autora, ao resumir um espetáculo que
aberto, onde uma empanada, armada às pressas, serve dura várias horas, foi tornar possível sua divulgação
de camarim para os figurantes, que ficam aguardando (através do teatro de bonecos ou de representação ao
a vez de entrar em cena assim que solicitados pelo vivo nas escolas) para o público infantil - em geral tão
Capitão (o mestre-de-cerimônia que comanda o espe- . alienado quanto às raizes tradicionais de nossa forma-
táculo) montado no Cavalo-marinho e que, às vezes, ção cultural - sem a perda de suas características prin-
também empresta seu nome ao Boi que organizou. cipais, sua pmeza e seu grande poder de comunica-
O texto aqui apresentado baseia-se em reminiscên- ção. ( C . M .A. )
cias do Boi do Capitão Felipe de Tígípió, que existiu
por volta de 1916, nesse subúrbio de Recife.
O público assiste a representação colocando-se de
pé em volta do terreiro (sem pagar) e, eventualmente,
dela participando obrigado pela intervenção de Mateus
e Bastião, empregados do Capitão - espécie de bufões
(comumente negros) que o ajudam a movimentar as fi-
guras, contracenando com elas e animando a festa com
ditos e trejeitos engraçados, sempre arrimados numa pe-
quena vara de cuja ponta pendem bexigas de boi infla-
das de ar (como nas comédias italianas do séc. XVII),
com que distribuem pancadas aos presentes, provocando
correrias e gritos alegres, divertidos,
Os trajes, que variam conforme a região, em Per-
nambuco são muito pobres, quase despojados de enfei-
tes e colorido, pouco contribuindo para a beleza visual
do espetáculo. O elenco, constituído por dezenas de
figurantes, representa personagens humanos, animais e
seres fantásticos tirados das lendas e superstições locais
variando de uma região para outra e entre os grupos
do mesmo lugar, pois cada qual tem liberdade de criar
e acrescentar ao seu as figuras que desejar.
Os artistas que não representam animais usam ma-
quilagem carregada, feita de carrnim, carvão e pós bran-
cos - à semelhança das máscaras do teatro grego. As
mulheres geralmente não participam do Boi, a não ser (" ) Texto premiado no ooncurso de peças da Secretaria
a Pastotinha - moça bonitinha, vestida de azul ou ver- de Educação do Paraná (1969).
leva uma surra danada, pra deixar
BUMBA-MEU-BOI! (*) de ser atrevido!
BASTIÃO- Pai, vamos deixar de
CARMOSIHA MONTEIRO embromação, que o pessoal veio foi
DE ARAUJO assistir o Bumba-meu-Boi de Per-
nambuco. Não foi, pessoal?
MATEUS- Então vai chamar o
o Bumba começa com, a orquestra BASTIÃO- Filho de gato, gatinho Capitão para começar a função, que
em cena: tocadores de bombo, gan- é ... eu vou pedir à Cantadeira para can-
zá, viola, e a Cantadeira (a única fi- MATEUS- Tu tá me chamando de tar a lôa dele entrar! (Sai um para
gura feminina presente) tocando pan- burro, maIoria do? Eu te quebro a cada lado)
deiro, cara na vista de todo mundo!
BASTIÃO (fingindo chorar) - Ai, ai, CANTADElHA -
CANTADEIRA - ai, ai! Tadinho de mim! .Ninguém Ô de casa, ô de fora,
tem pena de um pobre menino ino-
o de casa, ô de fora cente!
Capitão já vem chegando
Mangerô já vem saindo! ô de lá, ô de lá (bis)
Ô de lá, ô de lá MATEus - Deixa de dengo, mole- ôde lá, de lá, de lá!
Ô de lá, de lá, de lá. (bis) que! Por causa de um safado como
você, é que o povo diz que negro Entram o Capitão montado na
Os tocadores retiram-se para um não presta, e até inventou 'uma can- burrinha. Matem e Bastião. A mú-
lado, enquanto entram Mateus e Bas- taria que diz assim: . sica continua e eles cantam e dançam
tíão cantando estribilho, dançando Eu não gosto de negro até o Capitão apitar.
e fazendo mesuras. ô charuto,
nem que seja meu parente CAPITÃO(declamando)
MATEUS- ôcharuto Cheguei, cheguei
Boa noite, distinta platéia pois ele tem um costume estou chegando.
que nos VeI1!prestigiar! ô charuto O dono da casa e a dona
Boa noite, povos e povas de fazer vergonha à gente eu entro logo saudando!
Boa noite, meu pessoal! ô charuto Cheguei, cheguei
(Para Bastião} Cumprimenta as estou chegando.
BASTIÃO(rindo) - Eita, pai! Mas Se querem folguedo em casa
famílias, moleque! Mas com todo o eu também inventei outra que diz eu vou logo perguntando.
respeito, heinl assim:
BAST!ÃJO (acanhado) - Eu tenho MATEus - Entra, cantadeiral
vergonha, pai! Não sabe como sou Eu não gosto de branco
CA TADEIRA-
acanhado, pai? ô charuto
MATEUS- Matuto! Quem fica de nem que seja meu avô Viva, ora viva
ô charuto viva o dono da casa
cara lambida, sou eu! Esse povo
todo ai vai mangar da gente! pois branco tem um costume ora viva!
BASTIÃO- Eu nem me importo! ô charuto Viva, ora viva
MATEUS- Mas eu tenho desgos- de sujar o que lavou sua dona também (bis)
to de ter um filho desinducado como ô charuto! ora viva!
você! (À platéia) Gastei um dinhei-
MATEUS(achando graça) - Ah, Mateus e Bastião também cantam
rão botando este burro na escola,
mas ele não aprendeu nadinha! moleque sem-vergonha! Tu ainda I e dançam.
( .
Al1TÃIO(apita e declama) MATEUS - Mateus sai correndo, depois volta.
N o terreiro desta casa Nossa obrigação já foi feita
nosso boi já vem folgar. antes do senhor chegar! CANTADEIRA- Viva, ora, viva! etc.
Mas antes que ele apareça BASTIÃO (debochado) - CAPITÃO (Apita e declama)
queremos cumprimentar Já saudamos todos os velhos A todos peço desculpas
o dono da casa e o povo as velhas, as viúvas, as casadas, pois o culpado sou eu
que nos vem apreciar! os filhos, os primos, os tios, das besteiras que ouviram
as tias, os netos, os parentes, de Bastião e Mateus!
já cantamos as "largadas" (chama) Bastião! Mateus!
C antadeira repete o viva! com BASTIÃO - Pronto, meu Capitão!
que também estão presentes ...
M ateus e Bastião. MATEus - Às ordens, meu Ca-
CAPITÃO - Basta! Então mande a
cantadeira cantar o Viva! para você pitão!
CAPITÃIO(apita e declama) CAPITÃO - Mande a Cantadeira
dizer uma loa!
Saudar também as crianças tirar uma loa para o meu cavalo!
BASTIÃO- Deus me livre! Eu não
a quem viemos mostrar BASTIÃO- Cantadeira, canta a loa
gosto dessas coisas, capitão!
os folguedos do sertão do cavalo-marinho!
CAPITÃO - Avia, moleque! Can-
para que possam gostar I-"IATEus - Tem que apitar, Ca-
tadeira! Canta o Viva! para o Bas-
das coisas de nossa terra pitão!
tíão.
que devem valorizar!
Capitão apita e a Caniadeira
CG11tadeÍJ1'a.cania.
CANTADEIRA- Viva, ora viva! etc. canta.
CAPITÃO (apita) - Mateus! Bas-
BASTIÃO(declama) -
tião! CA."N'TADEIRA -
Lá vem a lua saindo
MATEus - Pronto, meu Capitão! Cavalo-marinho
por trás do canavial.
BASTIÃO - Às ordens, meu pa- cavalo-marinho (bis)
Não é lua não é nada
trão! chega para diante
é a moça que eu vou roubar
CAPITÃO - Onde está a educação? faz uma mesura
porque o velho não deixa
MATEus - Que quer dizer, capi- pra toda essa gente!
ela comigo casar.
tão?
CAPITÃO (a Bastião) - Cavalo-marinho
Que foi aprender na escola
Cantadeira repete o Viva! cavalo-marinho (bis)
que paguei pra lhe ensinar? bunda de pandeiro
BASTIÃO - CAPITÃO - Mateus! Agora é a alevanta o rabo
Escola não é lugar tua vez! pra ganhar dinheiro!
de aprender b - a - bá? "t<.íATEUS
- Tá certo, capitão. Mas
CAPITÃO (zangado) - depois não se queixe, hein? (De- Cavalo-marinho
Isso é lá jeito, moleque clama) cavalo-marinho (bis)
do seu patrão respostar? Lá vem a lua saindo Bunda de viola
MATEus - por trás do pé de feijão alevanta o rabo
Me desculpe, Capitão. Não é lua, sou eu mesmo pra aquela senhora!
Mas isso é charada ou não? com uma dor no coração
CAPITÃO - de ver tanto pobre besta CAPITÃIO(apita, a música para)
Charada, negro da peste, e tanto rico, ladrão! Bastião!
é a platéia saudar? CAPITÃO(ameaçando) - Você está BASTIÃO - Fale, meu padrinho!
BASTIÃO - Mas, patrão, tá enga- doido, negro? Quer ser preso, mise- CAPITÃO - Vai dizer ao barraquei-
nado! rável? ro que pode mandar a primeira fi-
gura! Manda a Cantadeira cantar, VALENTÃO - tá bom demais!
Mateus! (Avista o Valentão que vai Não faça isso, compadre! Eu estou tremendo,
entrando) Eíl Quem é você? Vamos ser amigos, homem! blum!
Aperte aqui esta mão! Mas não é de frio,
Mateus e Bastião saem um para VALENTE - Só aperto pra quebrar! blum!
cada lado. VALENTÃO- Ai, ai, ai, assim não! f<: da frialdade, ô
ô xente!
VALENTÃO(declama) Eles lutam capoeira durante Da beira do rio!
Eu me chamo Valentão
algum tempo, enquanto Mateus e
Bastião torcem. Repetem o estribilho cantando e
sou filho de cangaceiro.
dançando. Depois entra o caçador
Desde menino que tenho
um rifle por companheiro. CAPITÃO (apita) - Mateus! Bas- atirando a esmo. O sapo foge com
Já matei trinta defunto ... tião! medo.
AMBOS - Que deseja, capitão?
CAPITÃO - Vamos botar estes ar- MATEUS - Ai, ai, ai! Este desgra-
CAPITÃO (interrompe debochando)
ruaceiros daqui pra fora? Pra bri- çado quase fura meu pé!
- Ah! Defunto, eu acredito!
gar a gente tem hora! CAPITÃO- Este sujeito é doido!
VALENTÃO - BASTIÃO - Vamos, meu Capitão!
Não deboche, Capitão! MATEUS - É pra já, meu patrão! CAÇADOR(cantando) -
Não deboche, Capitão, Atirei mas não matei,
se não vai se arrepender! atirei mas não pegou.
Os três enxotam os valentes
Pois eu no tiro sou bão Minha pólvora derramada,
na faca nem é bom dizer! meu chumbo perdido! .
CAPITÃO - Que sujeitos mais cha-
Quer a prova, se aproxime Polvarim derretido ...
tos! (Pausa) Vão pedir ao barra-
que mostro o que sei fazer!
queiro outra figura melhor, e a Can- CANT,\.DEIRA-
CAPITÃO - Mas eu não quero bri-
tadeira que cante para a figura que Adeus, João!
gar, seu moço!
vai entrar! Atira no gavião!
VAL&'\lTÃO- Não quer, ou não tem
coragem? AMBOS - É pra já, meu Capitão! Meu n2g~não me mate, não!
VALENTE (entrando) (Sai um para cada lado) Me mate, não!
Nunca vi tanta farofa CANTADEIRA- Me mate, não!
derramada num lugar! Sapo cururu CAPITÃO - Por que você anda per-
Quer brigar tá aqui um homem blum! seguindo o sapo desse jeito? Não
disposto a lhe enfrentar. Da beira do rio tem o que fazer, não?
Eu topo qualquer parada blum! CAÇADOR-
a questão é encontrar! Quando o sapo canta
Eu não gosto daquele bicho!
. VALENTÃO(tremendo) - ô xente!
Ele é feio demais, Capitão!
Que é isto, companheiro? Cururu tem frio!
CAPITÃO - Mas se fosse para ma-
Não se pode nem brincar?
Entram o Sapo, Bastião e Mateus, tar tudo que é feio, você já tinha
VALENTE -
morrido há muito tempo, desgra-
Não gosto de brincadeira cantando e dan çando.
çado!
nem de sujeito que mente.
Quem fala sem ser verdade TODOS - ~IIATEUS- Um diabo mais feio do
vergonha na cara não sente. Ô xente, ô xente que briga de foice!
Por isso eu vou achatar Tá muito bom. BASTrÃO- Perseguindo a feíura elo ( .
o seu nariz de dormente. Ô xente, ô xente (bis) bichinho!
CAPITÃO - E quer saber de uma CAPITÃO - Mas que galinha da- l?ASTIÃO - Vá pro inferno com
• J
oisa? Eu não gosto de gente mal- nada de grande é esta, Bastião? suaema, língua ferina!
vada! Ponha-se já daqui pra fora! EMA - U, u, u, u, u, u, u! MATEUS - Dane-se pra casa, do
BASTIÃO (empurrando o caçador) MATEUS - De que tamanho não diabo, faladeira!
- r~isto mesmo! Vá-se embora, seu será o ovo dessa bicha, capitão?
mata-sapo! ]oana sai correndo com a, ema:
BASTIÃO - Me disseram que' esta I
CAÇADOR(saindo) - Cabra chalei-
danada come até caco de vidro!
ra! (sai) CAPITÃO (soprando) ,-' Vai buscar
EMA ,- 'U, u, u, u, li, u, u!
MATEUS (canta e dança sozinho) outro figmante para distrair a gen-
Meu nego, não me mate, não!' CAPITÃO - E se apertar mesmo,
te, Bastiãol Aquela mulher quase
'Meu nego, não, me mate; não! " ela fala! me mata do coração] (Sai Bastião)
CAi'ITADEillA-
MATEUS - Cantadeira! Tira a
Completamente distraído, ,conti- Olha o passo da 'em a, cantoria do Mané Gostoso!
nua dançando alheio ao Capitão e la-ri-lôl
Bastião, que o observam.' D. JOANA ( entrando) - Minha CÀNTADElRA-
ema, minha ema! Vamos para casa, Seu Mané gostoso'
BASTIÃO- Tá ficando doido, pai? minha ema! perna-de-pau.
CAPITÃO - Bebeu cachaça, Ma- CAPITÃO - Que é isso, dona? A Ele canta, ele toca (bis)
teus? ' senhora entra assim, na casa dos seu berimbau!
MATEUS(encabulado) - Eu só tava outros, sem pedir licença? MANÉ' Cosroso (declama)
esquentando as canelas .. , BASTIÃO - Isso aqui não é casa Quando eu vim lá de riba
CAPITÃO (rindo) - A gente' vê de sua sogra, não, dona! Capitão,
cada uma! (Noutro tom) Bastião! comi carne com feijão,
D. JOANA - Eu ando atrás do que
BASTIÃO '(Perfilando-se)" Às Capitão,
é meu. Quem manda vocês pren-
ordens, meu Capitão! ' derem em casa o que não lhes per- as meninas me pediram,
CAPITÃO - Vai ver o que tem, Capitão,
tence?
mais o barraqueiro, para mandar um vestido de babado,
MATEUS - E quem lhe contou que
para a gente se distrair! Mateus! Capitão,
MATEUS - Tô aqui, patrão] esse bicho está preso aqui? A senho-
andei pelo mundo todo,
ra tá vendo alguma corda amarran-
CAPITÃiO - Manda a cantadeira Capitão, ,
do ela? E' fui achar na loja do Chicão,
cantar!
MATEUS - Canta a Ioa da ema, D. JOANA - E pra que fica esse Capitão!
mulher (Sai um para cada lado) bando de homem rodeando a bichi- CANTADEillA-
nha? Me diga! Só pode ser para Seu Mané Gostoso,
CANTADEillA -
não deixar ela passar. Perna-de-pau,
Olha, o passo da ema,
la-ri-lô! CAPITÃO (indignado) - Dona, vos- ele dança, ele pula (bis)
Lá do meu sertão! micê está me chamando de ladrão no seu girau.
-Ia-ri-Iôl de galinha?
Toda ave avôa D. JOANA - Eu não, capitão! Mas Capitão apita. A música pam.
Ia-rí-lôl . se a carapuça lhe cabe, pode deixar
Só a ema não que eu deixo! MANÉ Cosroso (declama)
la-rí-Iôl CAPITÃO - Suma-se já da minha Quando eu vim lá de riba,
frente, mulher desaforada! Se você Capitão!
Cantam. duas vezes. Enquanto não vestisse saia, eu lhe esquentava A seca tava danada, Capitão!
eles cantam, entra a Ema. os couros agbrinha mesmo! O gado todo morrendo, Capitão!
Enquanto o povo descia, Capitão! VAQUEIRO- CAPITÃO (aos gritos) - Vai cha-
Mas agora veio a chuva, Capitão! Chegou na hora, menina! mar o sacristão, Mateus! Já!
Vai tudo reverdecer, capitão! Estou procurando trabalho MATEUS - Vou correndo, patrão.
Por isso eu quero voltar, Capitão! e ajudar moça bonita Volto logo (sai).
Pra melancia comer, Capitão! é paga mais do que valho!
CANTADEIRA- Seu Mané Gostoso, A Caipora'í) continua assomando
etc. (Saem abraçados) e pulando, enquanto todos a evitam.
Bastião reza, ajoelhado.
Capitão apita e Mané Costoso saí. MATEUS (debochando) - Eu acha-
va melhor vocês falarem antes com SACRISTÃO- Cheguei, seu vigário!
BASTIÃO - Cuidado, "seu" Mané! o vigário! Nossa Senhora do Bom Parto! Que
Se vosmícê cai de riba desta trepeça, CAPITÃO - Deixa de ser enxerido, bicho danado de feio é este?
quebra seu mucumbu no- chão! (To- negro! Bastião! Vai buscar outra PADRE - É uma assombração! Um
dos acham graça. Entra o Vaqueiro). figura, que esta do vaqueiro não deu castigo de D us, meu filho! Você
VAQUEIRO- Dá licença, Capitão! nem para meia missa! trouxe água benta?
CAPITÃo - Ora, que faz perdido SACRISTÃO- Está aqui, padre!
por aqui, rapaz? Bastião sai. Ouvem-se fortes as- PADRE - Então, joga em riba des-
VAQUEIRO- sovios e a Caipora desce pulando. se satanaz, para ver se ele desapa-
Ouvi falar em boi, vim atrás. rece com o poder de Deus!
Eu estou desempregado CAPITÃO - Meu Deus do céu! SACRISTÃO- E' se ele me agalTar
e viver vagabundando Que marmota danada é esta? e me levar para o inferno?
é coisa que não me aprazo MATEUS - 1t zumbi de caboclo
PADRE - Leva, não, meu filho! A
CAPITÃO - brabo, Capitão!
Virgem Maria te protege. Vai!
Trabalho pra homem não falta! CAPITÃO - Vai chamar o padre,
depressa, Mateus! Só ele pode sos- (empu1'm-o)
Demora, mas aparece.
Se não quiser esperar, segar esta bicha! SACRISTÃO- Espere ai! Não pre-
você cuida do meu boi MATEUS - Vou correndo, patrão! cisa me empurrar! Eu sou é ho-
e eu lhe pago o que merece. mem!
BASTIÃO (entrando) - Vai entrar A Caipora continua associando e
uma figura muito linda, Capitão! pulando. Vai junto da Caipora e joga a
CAPITÃO - Seja benvinda! água. Caipora continua assoviando
P ASTORINHA(canta) - PADRE (entrando) - Mandou me e pulando.
Sou uma pobre pastorinha chamar, capitão?'
ando os montes percorrendo, CAPITÃO - Padre, pelo amor de CAPITÃO - Tá aí. Não serviu de
percorrendo, Deus, desencante esta visagem! Isso nada, padre! Ela nem ligou!
a procurar o meu gado, é uma assombração! PADRE (ao Sacristão) - Vamos re-
que ele anda se perdendo, PADRE - Que quer que eu faça, zar o Creio em Deus Padre, meu fi-
se perdendo! meu filho? lho! (Ajoelham-se e rezam)
TODOS - CAPITÃo - O senhor pergunta a MATEUS - Eu sei uma mandinga
Vamos pedir mim? O ofício é seu, padre. Deve que vai afastá-Ia em dois minutos,
ajuda ao Vaqueiro saber melhor do que eu. capitão!
com ele você pode (bis) PADRE (aproxima-se com medo e CAPITÃO (zangado) - Que estás
achar o seu roteiro! volta) - Sozinho, não posso fazer esperando, negro?
nada. Só se o sacristão vier me MATEus - Bastião! (:i

(Capitão apita) ajudar! BASTIÃO - Nhô!


MATEUS- Vai lá dentro buscar BAsTIÃo - Apite, meu capitão, TODOS-
·, uma vara de fumo daquele bem for- para a cantadeira cantar. Bate asa, canta o galo,
te. Vai! CAPITÃO(apita) - Canta a loa do que são horas, avisou.
'BASTIÃO- Já estou indo, meu pai! caboclo, Cantadeira! E o sino da igreja
(Saí) CANTADEIRA - meia noite já tocou.
CAPITÃO- Que invenção é esta! Caboclo do arco, BASTIÃo- Chegou a vez de nos-
Esse diabo fuma? que vem cá buscar? sa cantoria, patrão!
MATEUS- Quando ela aperreia os CAB'0CLO(entra) CAPITÃO(apita e canta)
caçadores no mato, é assim que eles Uma bela menina Senhora dona da casa
se livram dela. pra nós vadiar! mande o terreiro limpar
T'0DOS- Na areia, na areia, que já é chegada a hora
BAsTIÃJ'0(chegando) - Tá aqui,
na areia do mar, (bis) de mandar o Boi entrar
meu pai (Mostra o [umo}.
CAB'0CLO- e o lugaQ"do seu folguedo
MATEUS- Joga o fumo pra ela! Vocês me chamam caboclo
Joga depressa! com estima preparar.
mas eu não sou caboclo não! TOD'0S-
BAsTIÃo (jogando o fumo) Vai Foi o sol que me queimou
fumar, desgraçada! Torna] Meu senhor dono da casa,
lá nos ares do sertão! mande varrer seu quintal,
CAPITÃ'0- Que besteira é esta, que a hora é chegada
Caipora apanha o fumo e saí cor- caboclo? Está negando a sua raça, pois o galo deu sinal,
rendo com ele. homem? que o Boi já vem chegando.
CANTADEIRA - para a gente vadiar!
CAPITÃO- Viu, seu vigário? Num Caboclo do arco, CAPITÃO(apita) - Mateus! Bas-
instante ela foi-se embora. quem vem cá buscar? tião!
PADRE- Ela se afastou por causa CAB'0CL'0- A..M:B'0S
- Pronto, meu capitão!
da reza. Uma bela menina' CAPITÃO- Vai dizer ao barran-
CAPITÃO- Deixa de lorota, padre! pra nós vadiar! queiro que pode mandar o Boi.
Se não fosse o rolo de fumo, ela TOD'0S- Na areia, na areia, etc. MATEUS- Ora, viva! Até que
áinda estava aqui, dançando no seu enfim (Sai)!
nariz! o Caboclo sai dançando. Ouve- BAsTIÃ'0- Agora, sim! Vai ficar
SACRISTÃO - Está vendo, padre? -se cantar um galo. mais animado! (Sai)
·.É nisso que dá a gente ajudar igno-
rante! MATEUS- O galo cantou agori-
Entram fazendo grande algazarra,
CAPITÃO- Sacristão! Você está nha mesmo! Escutou, capitão?
cantando e dançando cmn o Boi, que
me ofendendo! Ponha-se daqui pra CAPITÃO- Então? Eu sou mou-
muge distribuindo chifradas.
fora! (Ao padre) - Desculpe, seu co, negro? Vai mandar a cantadeira
vigárío, mas esse seu ajudante é mui- tirar a loa do galo!
to Folgado para meu gosto! MATEUS(à Cantadeira) - O pa- CAPITÃo- Faz uma vênia para o
PADRE (ao sacristão) - Vamos trão mandou dizer que é para você meu pessoal, meu Boi!
embora, meu filho! Nossa obrigação imitar o galo que acabou de cantar!
,já foi fetia. Agora vamos rezar na BASTIÃO- Felizmente já passa da Boi obedece, cumprimentando.
,igreja! meia noite!
MATEUS(enxota os dois debaixo CANTADEIRA - CAPITÃO- Faz outra! Bastião!
das risadas de Bastião e do Capitão) Bate asa, canta o galo, BAsTIÃ'0- Que foi, meu patrão?
- Vão-se embora! Vão-se embora! Meia noite deu sinal CAPITÃO- Manda a cantadeira
CAPITÃlO- Quem será que Vai que está chegando a hora cantar! Agora que chegou o Boi,
aparecer agora? para nosso Boi entrar! a danada se cala.
MATEUS - Apite, meu capitão. MATEUS - Lá vou eu, meu patrão! CAPITÃO -
Vosrnícê se esqueceu! Mando buscar outro,
CAPITÃO - Ah, é verdade! (Apita) Saem os dois, entrando o soldado. maninha,
CANTADEIRA- em Belo Jardim!
Dança, dança meu Boi CAPITÃO - Que faz por aqui, sol- CANTADEIBA-
Dança, meu Boi-Bumbá! dado? Se a seca não matou,
Dança, dança meu Boi SOLDADO- Eu vi os urubus fare- se o gado não comeu,
para nos alegrar! jando carniça e vim multar quem bo- em cima daquela serra
(bis) tou ela ai. capim verde já nasceu!
Dança, dança meu Boi, CAPITÃO - Que carniça, homem CAPITÃO -
meu boi lá do sertão! de Deus? Está sonhando? Se este boi morrer
Dança para alegrar SOLDADO- E este boi aí? Não que será de nós?
todo o meu coração! está morto? Bicho morto é carniça. CANTADEIBA-
CAPITÃO - Morto? Você está doi- Manda buscar outro,
Ó Boi, dançando, continua a dis- do! Um boi gordo desses! maninho,
tribuir chifradas. SOLDADO(desconfiado) - E por- lá nos cafundós!
que ele não se levanta?
BASTrÃO (correndo do bicho) -
CAPITÃO - Está descansando, ora CAPITÃO apita e a música para.
Está me estranhando, bicho?
esta! Se estivesse morto, fedia! Está Entram o Doutor, Bastião e Mateus.
MATEUS (rindo) - Cuidado que o
Boi te pega, Bastíão! sentindo catinga?
BASTIÃO - Eu termino metendo SOLDADO- Não, senhor! (Fareian- MATEUS - Está o doutor aqui, Ca-
esta vara nele! do) Não sinto nada! pitão!
CAPITÃO - Pois vá farejar impos- CAPITÃO - Obrigado por ter vin-
o Boi insiste el1t chifrar Bastião. to no inferno! Saia já daqui! do, doutor!
Este bate com a vara na cabeça dele, SOLDADO(aborrecido) - O senhor DOUTOR - Que deseja de mim,
que cai urrando de dor. está me desacatando? Olhe que sou capitão?
autoridade e posso prendê-lo, capi- CAPITÃO - Me faça o favor de
CAPITÃO (irritado) - Para que ba- tão!' examinar este boi aí, meu doutor!
teu com tanta força na cabeça do DOUTOR (aborrecido) - Mas eu
CAPITÃO (zangado) - Deixe de ser
Boi, seu traste ruim? não sou doutor de boi!
besta, rapaz! Onde você já viu sol-
BASTIÃO- Não viu que ele estava CAPITÃO - Eu sei. Mas o senhor
dado prender capitão! Quem manda
querendo enfiar o chifre no meu tra- não tem coração? Vai deixar o bi-
lhe prender, sou eu! Duvida! Du-
seiro? chinho morrer à míngua, só porque
vida', se for homem!
CAPITÃO - O bichinho estava não é veterinário?
brincando, negro frouxo! SOLDADO(com medo) - Duvido, DOUTOR - Está bem. Consentirei
MATEUS - Coitado do boi! (Apro- não, meu capitão! Me desculpa, ca- em examinar o animal! (Ausculta o
xima-se) Está quase morto! pitão! (Sai) Boi e levanta-se) Este boi não tem
CAPITÃO (examinando) Está CAPITÃO (indignado) - Eu não doença nenhuma!
arreado! Vai chamar o doutor para estou dizendo? Ora, essa! Um pi- BASTIÃ>O- Eu não disse? Ele stá
tratar dele, Bastião! xilinga daqueles, querendo me pren- é se fingindo!
BASTIÃO (arrependido) - Nhor, der! (Apita) Canta qualquer coisa CAPITÃO - Cala a boca, mol qu '!
sim! para me distrair, cantadeiral (Ao doutor) Examine direito, clon-
CAPITÃO - E você, Mateus, vai na CANTADEIBA- torl Parece que o senhor está orn
baixa de capim e traz um feixe bem Se meu boi morrer nojo dele?
verdinho, para ele comer. que será de mim? MATEUS - S6 fica todo de lon~( ! r ,
DOUTOR (Torna a examinar) Ele BASTIÃO - Cantadeira, cumpre a
só tem manha. Está se fazendo! tua obrigação, mulher!
BASTIÃO - Eita boi mentiroso! CANTADEIRA-
CAPITkO (ladino) - Mas pelo sim Dança, dança meu boi,
pelo não, passe uma "meízinha" para boi de Tejipió.
ele tomar, doutor! Pode ser que o (bis)
boi esteja com dor de barriga ... Dança, dança, meu boi
DOU'I'OR(de acordo) - Tem razão! cada vez bem melhor!
O senhor me alertou. Mande dar- Dança, dança, meu boi
-lhe um purgante de óleo de rícino! para se despedir.
Se não melhorar, um dister de pi- (bis)
menta malagueta! :É um ótimo re- Dia já vem raiando
médio! e nós vamos partir!
CAPITÃO Obrigado, doutor!
(Apita) Mateus! Bastião!
AMBOS - Às ordens, meu capi-
tão!
CAPITkO - Mateus, vai dizer ao ( 1) Em qualquer direção pelo inte-
rior do Brasil, o Caapora-Caipora é um
barraqueiro para mandar uma gar- pequeno indígena, escuro, ágil, nu ou usan-
rafa bem grande, cheia de óleo de do tanga, fumando cachimbo, doido pela
mamona, pra gente dar um purgan- cachaça e pelo fumo, reinando sobre todos
te neste boi! Não é possível deixá- os animais e fazendo pactos com os caça-
dores, matando-os quando descobrem o
-10 morrer sem tratamento! segredo ou batem número maior das peças
MATEUS - Pois não, meu capitão! combinadas. O Caipora pequenino e po-
CAPITÃO Bastião! pular é o velho Curupira. Por todo o
BASTIÃO - Tô aqui, meu padri- nordeste do Brasil duas imagens verbais
pintam o duende: fumar como o Caipora
nho! e assobiar como o Caípora.
CAPITkO - Agarra um balaio e Caiporinha. Figura secundária do auto
vai encher ele de pimenta malague- popular de bumba-meu-boi, representando
ta, para a cantadeira cozinhar e fa- um caboclinho de tanga, com uma enorme
cabeça, arranjada com uma urupema (ba-
zer um ... laio) coberta com um pano branco, con-
venientemente disposto e apertado em
Antes do Capitão terminar, o Boi torno do pescoço, deixa ver dois orifícios
correspondentes aos olhos, simbolizando
levanta-se e começa a dança?' sob assim o próprio mito do caipora, consoante
risadas gerais. com as nossas lendas populares: "Um me-
donho caboquinho no queixo, montado
CAPITÃO (rindo) - Na voz de to- num porco-espinho". Encontra-se o Cai-
mar remédio, ele já ficou bom! Eita porinha em muitos bumba-meu-boí com
jndL1p1entária diferente: cabeleira longa,
bicho manhoso de uma figa! saia branca curta, cabeção decotado, dan-
MATEUS - Vai ser fingido assim çando rapidamente sem cantar, ao som do
no inferno! coro: Esta Caíporínha/ dança muito bem!
CAPITÃO - Faz vênia para o pes- só quer que lhe chamem! maricas meu
bem!
soal, boi safado! (Ri)
(Luis da Câmara Cascudo - DicionáTio
o Boi faz um, cumprimento em do Folclore Brasileiro, 2.a ed. INL-MEC- DOS JORNAIS
cada direção. 1962).
CRIAÇÃO COLETIVA
formam em palavra? Qual o lugar exato da palavra
Enquanto Sonho de Urna Noite de Verão era, sau- na expressão teatral? Seria a vibração? Ou então o
dado pelos críticos londrinos c.omo o grande espetacu~o conceito e a música? Existe alguma evidência oculta
da temporada de 1971, seu diretor Pete~ Br?ok par~Ia
A
na estrutura sonora de certas línguas antigas?
para a Pérsia ao encontro de uma expen~ncIa qu.e ele Orghast, além de título de espetáculo, é também o
sabia ser fascinante. Os dados para faze-Ia realidade nome da linguagem inventada por Hughes. Com ref~-
estavam ainda muito confusos em sua cabeça. Só ha- rêncías gálicas, esta linguagem pretende se ~xl?re~sar fí-
via o convite do Festival de Shiçraz e a certeza de que ! siologicamente. Hughes armou seu vocabulano Juntan-
as apresentações seriam feitas nas ruinas de Persépolis. do algumas raízes sonoras. Este co~plexo esquema deu
Brook levava consigo um grupo de 20 pessoas de 12 oportunidade a que os atores recnassem os sons ~o~
diferentes nacionalidades. Desta mistura de ambientes, seu próprio corpo. Hughes afirma. q~e se~, voca~mla~Io
pessoas e vivências nasceu Orghast. . cria "a sensação de um mundo semibárbaro", FOi aSSIm
Um pouco depois de sua chegada, Brook mcorpo- que Hughes e Brook criaram uma linguagem comum
rou atores persas, escolhidos propositadamente por fala- entre atores e platéia. Um dos atores, Robert Loyd,
rem mal o francês e o inglês. A contribuição de pala- dá o seu depoimento sobre este novo método.
vras persas ao vocabulário inventado por Ted Hughes - :É mais do que um ato de representar. :E: a pro-
deu forma à peça, reescrita diariamente, à me~ida queA

cura de uma linguagem que só começa a existir efetiva-


os ensaios evoluíam. Ted Hughes - um poeta mgles mente quando você troca idéias e informações com o
usou em Orghast textos próprios e algumas passagens público. Quando encontra a chave para estabelecer
deEsquilo, Sêneca e de sacerdotes de Zoroastro. Quan- este contato - e a descoberta é feita quando você toma
do a peça foi à cena, estava concluída a pesquisa de posse de suas energias - a sensação que nos fica é de
Peter Brook com seu teatro da linguagem e começava a
intensa liberdade.
se estruturar a idéia de um Centro Internacional de Pes-
Os resultados das pesquisas de Peter Brook ainda
quisas Teatrais com maior alcance ~o que 0_ que ex~ste
não estão devidamente assimilados pelos críticos e pú-
em Paris. Brook acredita que esta e a soluçao possível
blico. Mas o fato é que já se sabe que o teatro, como
para que o teatro experimental se liberte das exigências
um todo, será atingido mais por estas experimentações
de sessões diárias em lugares e horários prefixados.
de linguagem do que pelos métodos de trabalho em
- Nenhum trabalho teatral será completo até que
grupo.
ele seja dividido com a platéia. E as atuais companhias Críticos afirmam que a forma como Brook encara
subvencionadas nunca têm tempo suficiente pam explo-
o espetáculo teatral - "não como algo com uma lingua-
rar e desenvolver uma montagem em profundidade, acei- gem específica, mas como um entretenimento total (mú-
tar riscos, incorrer em erros e ousar descobrir. sica, texto, dança, fala, etc.) - deu ao teatro uma con-
Trabalhando em colaboração com um grupo gran-
tribuição enorme. Destacam ainda a participação de
de, de diversas nacionalidades, Brook afirma que não
Irene W orth - que esteve no elenco de Orghast - como
pretende que haja troca de know-how,. mas apena~ uma uma maneira de romper o arcaico star-sustem.
troca de experiências humanas: maneiras de sentir, ex-
E nada é mais significativo da presença de Brook
pressar ou falar. no teatro internacional do que o trabalho - síntese e
A Comunidade de Criação maturo - de uma encenadora francesa, Ariane Mnouch-
kíne, que, de posse de um texto histórico (1789), des-
A base do trabalho de Brook na Pérsia foi a desco-
montou-o e conseguiu que também falasse o público.
berta das raizes da linguagem. Suas perguntas no iní-
cio dos ensaios eram:
- Qual a relação entre o teatro verbal e o não-
-verbal? Que acontece quando o gesto e o som se trans- (Do Jornal do Brasil, 22/1172) { ,
TEATRO-JORNAL (*)
! )

A forma de teatro-jornal tem vários objetivos. Pri- Por isso, nesta primeira edição, os meios são bem
meiro, procura desmistificar a pretensa "objetividade" simples e por isso o espetáculo pretende ser apenas de-
do jornalismo: demonstra que uma notícia publicada em monstrativo. Esta a sua estética: o fino acabamento
um jornal é uma obra de ficção. A importância de uma pertence a outra estética.
notícia e o seu próprio caráter dependem de sua rela- O terceiro objetivo consiste em demonstrar que o
ção com o resto do jornal. Se na manchete surge a teatro pode ser praticado por quem não é artista, da
tragédia da jovem que foi miraculosamente salva depois mesma maneira que o futebol pode ser praticado mesmo
de atear fogo às vestes, desenganada no seu amor - por quem não é atleta. Para se jogar numa seleção, sim,
esta tragédia de primeira página reduz à simples con- é necessário ser atleta, mas pode-se também jogar na
dição de faits dicers os sangrentos choques entre os várzea ou no quintal de casa. O prazer de uma boa pe-
guerrilheiros palestinos e os mercenários do rei Hussein. lada não depende da execução refinada de uma joga-
Pergunta-se qual é mais importante: a conquista do tri- da. O prazer de se fazer teatro numa sala de aula, no
-campeonato ou a seca do nordeste? O Cidadão Kane, restaurante de um sindicato, não depende da perfei-
de Welles, já respondeu: "Nenhuma notícia é bastante ção artesanal do Berliner Ensemble. Todo mundo pode
importante para valer uma manchete; ponha-se qualquer fazer teatro como pode participar de uma assembléia e
notícia sem importância na manchete e ela se transfor- defender seus pontos de vista sem que para isso seja
mará em notícia importante!" Assim se manipula a necessário fazer um curso de oratória. E, paralelamen-
opinião pública - o processo é simples, indolor, te, tudo é passível de um tratamento teatral: notícias
O teatro-jornal é a realidade do jornalismo porque de jornal, discursos, jingles, livros didáticos, a Bíblia,
apresenta a notícia diretamente ao espectador sem o filmes documentários, etc.
condicionamento da diagramação. Algumas de suas téc-
nicas, como a do improviso, são a realidade mesma: AS NOVE PRIMEIRAS TÉCNICAS
aqui não se trata de representar uma cena, mas de vivê-
-Ia cada vez. E cada vez é única em si mesma - como A l.a edição do Teatro-Jornal do Teatro de Arena
é único cada segundo, cada fato, cada emoção. Neste pesquisou nove técnicas que constam do seu primeiro
caso, jornal é ficção, teatro-jornal é realidade. Em outras espetáculo. São elas:
técnicas, porém, teatro-jornal é teatro, ficção: nas téc- 1. Leitura Simples. Esta nem ao menos se constitui
nicas de ação paralela, ritmo, etc. numa técnica propriamente dita. Os atores lêem notí-
O segundo objetivo é tornar o teatro mais popular. cias destacadas do corpo do jornal. A notícia, fora do
Em geral, quando se pretende popularizar o teatro, pre- seu contexto jornalístico, adquire outro valor que lhe
tende-se impor ao povo um produto acabado, feito sem é dado pela relação ator-espectador, em cada espetáculo
a sua participação, e às vezes sem os seus pontos de determinado.
vista. No Brasil, por exemplo, pretende-se às vezes 2. Improvisação. Os atores informam-se da notícia e
popularizar peças reacionárias de Pirandelo, de Hous- improvisam uma cena, como em exercício de laboratório.
sin e, neste sentido, o teatro se torna tão popular como A notícia serve apenas como vago roteiro - espécie
a fome e a morte antes dos trinta. O teatro-jornal, ao de canovacci da cornmedia dell' arte. Ou pode-se improvi-
contrário, pretende popularizar alguns meios de se fazer sar o que terá acontecido após o fato narrado pela no-
teatro - a fim de que o próprio povo deles se possa tícia. Ou pode-se improvisar os motivos e as cenas que
utilizar para produzir o seu próprio teatro. Mal compa- teriam levado aos fatos narrados pela notícia.
rando, se temos rotativas não pretendemos fabricar o
nosso jornal e popularízá-lo: pretendemos ceder nossas 3. Leitura com Ritmo. Todo ritmo, em si mesmo, tem
rotativas. um conteúdo próprio, desperta certas emoções, certas
imagens, certas idéias. Qualquer letra de musica pode velados em fotografias: favelas ao lado de palacetes, etc.,
variar de sentido, dependendo do ritmo com que é can- etc.
tada. Uma letra que fale de solidão, abandono, triste-
za, etc. em bossa nova é nostalgia, em tango é lamento
7. Histórico. Uma notícia é sempre melhor compreen-
dida se o espectador tiver informações históricas adicio-
de cornudo. Ler com ritmo é interpretar, emprestando
à notícia o conteúdo do ritmo escolhido. Significa ver nais. Na "Primeira Edição" conta-se o crime cometido
os fatos com a perspectiva do ritmo. No caso da l.a contra um camponês que solicitou do patrão o paga-
edição, elegeu-se o discurso de um deputado em favor mento dos meses em atraso e que foi amarrado a uma
da censura prévia de livros, revistas e jornais. O dis- árvore e morto a golpes de faca enquanto o senhor das
curso é bastante medieval em seu conteúdo, Nada me- terras lia palavras cruzadas. Um fotógrafo amador fo-
tografou o crime e só assim as autoridades tomaram co-
lhor do que o canto gregoriano para evidenciar esse
significado subjacente. nhecimento do fato, apesar de denúncias feitas antes
pela mulher da vítima. Utilizando-se o "histórico", o
4. Ação Paralela. A notícia é lida por um ator ou' teatro-jornal procura mostrar que a situação do homem
num gravador, enquanto que em cena se desenrolam do campo pouco mudou sob o domínio português, holan-
ações que explicam a notícia ou que a criticam, dês, durante a escravidão ou depois da República.
Na "Primeira Edição" as notícias lidas no gravador
referem-se à utilização de animais pelos Estados Unidos 8. Entrevista de Campo. Antigamente, quando o dra-
na Cuerra do Vietnã (percevejos radiativos, castores maturgo queria revelar o intimo do seu personagem,
para destruir diques, peixes elétricos para eletrocutarem escrevia um monólogo e o personagem começava a fa-
embarcações inimigas e outras idéias aparentemente de lar sozinho, a perguntar se era melhor ser ou não ser.
science fiction, mas que são, na realidade, estudadas Hoje em dia foi inventada a televisão, e quando a gen-
seriamente pelos cientistas de Salt Lake City, USA), te quer saber o que vai no íntimo do personagem, faz-
notícias sobre Herman Kahn, o futurólogo que foi inca- -se uma entrevista de cam.po, utilizando-se todas as téc-
nicas espetaculares dos costumeiros entrevistadores. A
paz de prever o que aconteceria nos últimos 3 anos no
solenidade de certos manifestos, certos discursos, são
Brasil, mas que ao mesmo tempo julga-se capaz de pre-
ver o. que acontecerá nos próximos 30, o terremoto do. assim relativizados pela sua transcrição numa linguagem
também conhecida, esportiva. O conhecimento da ver-
Peru, os gols de Pelé, etc. Em cena, os atores repro-
duzem as ações cotidianas que melhor demonstrem o to- dade do pronunciamento torna-se mais fácil se ele for
destacado do seu contexto solene e desprovido dos cha-
tal alheiamente da maioria silenciosa diante dos fatos
vões demagógicos.
mais acabrunhantes: filas de jogadores em busca da
solução mágica da loteria esportiva, um ensaio de esco- 9. Concreção ela Abstração. Tomar concreta uma no-
la de samba, o dia de um "cidadão normal", a compra tícia. A TV nos habituou a conviver com o que há de
de um carro último tipo, etc, etc. mais terrível no mundo: guerra, mortes violentas, chaci-
5. Reforço. Nesta técnica, a notícia serve de roteiro nas, terremotos, estupros, todos os tipos de crimes. Os
preenchido com todo o tipo de material já conhecido noticiários são quase sempre na hora do almoço ou na
pelo público, ou previsto: jngles comerciais, slídes, pro- hora do jantar. Ver sangue na TV, enquanto se come,
paganda, filmes documentários, frases de anúncios fa- é quase tão importante como o sal da própria comida.
mosos, etc. Na quarta-feira, junto com a feijoada, a gente tem que
ver um belo bombardeio na lndochina; e o molho à bo-
6. Leitura Cruzada. Aqui, o elenco cruza duas ou lonhesa da macarronada das quintas é o sangue de um
mais notícias. A seleção brasileira de futebol foi con- estudante ou negro baleado nos Estados Unidos. Nós
siderada a de melhor preparo físico no último campeo- continuamos comendo tranquilos. A informação já não
nato mundial, a mais saudável. No Piaui, segundo notí- informa. Ouvimos a notícia e registramos, e continua-
cias dos jornais, toda a equipe campeã do Fluminense mos tão insensíveis como um computador eletrônico. A
local sofre de verminose. Os contrastes podem ser re- morte é abstrata. Por isso é necessário tomar concretas é i
certas palav.ras. Podemos ouvir, como na "Primeira
· )
Edição", a notícia da morte de um operário que, sendo
obrigado a entrar num forno sem o tempo de resfria-
mento necessário, teve o seu sangue cozido dentro do
corpo - e essa notícia pode nos deixar indiferentes, sem
ver realmente o fato. Neste caso particular, após cenas
de improviso, cenas de "histórico" e outras técnicas, o
elenco concretiza a morte do camponês através da mor-
te, em cena, de pequenos animais queimados, de bo-
necas cujo fogo reproduzia o cheiro do forno misturado
com carne queimada.
São estas as nove técnicas que foram pesquisadas
pelo Teatro-Jornal do Teatro de Arena. Outras estão
sendo pesquisa das pelos já inúmeros grupos de teatro-
-jornal que se formaram e continuam se formando. O
importante não são as técnicas em si mesmas, mas sim
dar a todos a possibilidade de disporem do teatro como
um meio válido de comunicação. Pela primeira vez o
Teatro de Arena não tenta apenas popularizar um pro-
duto acabado, mas sim dar a todos os meios de fazer
teatro: e o teatro feito pelo povo, independentemente
de suas habilidades artísticas, será, desnecessário é dizer,
"popular".
A idéia do teatro-jornal é antiga. Porém, só quan-
do o grupo integrado por Celso Frateschi, Dulce Muniz,
Hélio Muniz, Elísio Brandão, Denise Fallotico e Edson
Santana aceitam levar avante a pesquisa, só então o
teatro-jornal se tornou viável. Exposta a idéia desse
tipo de teatro, a equipe pesquisou durante três meses,
tendo realizado cinco edições, em criação coletiva. A
direção desse espetáculo, constituiu um trabalho espe-
cial e diferente: coordenar, estruturar, selecionar e esti-
mular, partindo de um trabalho de equipe. Também
Marcos Weinstock integrou-se no grupo cuidando da
parte visual e Mário Masetti contribuindo com suges-
tões e com o artesanato da parte sonora.

(Da Rev. Latia AmeTiwn Theatre Review, 4(2/71) (") V. CT n. 51: O Teatro Político, de L. Raczac.
CELEBRAÇÃO DE PAZ

o objetivo desta montagem foi o de colocar as pes- Criada (e vivida) coletivamente, a Missa Leiga cus-
soas frente a uma opção entre o que são, por dentro, e tou muito a todos que dela participam. Da direção e dos
o que aparentam, por fora. Mais do que representar, o atores, 12 horas de ensaios por dia e um intenso traba-
que esse elenco faz é discutir com o público a condição lho de laboratório. Da produtora Ruth Escobar, uma
de todos nós e de cada um, particularmente. Importan- luta de muitos meses para liberar o texto e a encenação.
te foi criar uma linguagem comum entre a transmissão Por incompreensão de certas áreas, a Missa Leiga
do texto e a recepção ao espetáculo. E isso na maior que primitivamente seria montada na Igreja da Conso-
liberdade de concepção, sem o menor ditatorialismo de lação - foi impedida de ser levada naquele local. Mos-
fórmulas ou de técnica. Algo difícil de explicar: seria trada às autoridades eclesiásticas, estas não sópermi-
como a revelação de verdades Íntimas para acréscimo à tiram sua encenação na igreja, como elogiaram seu sen-
proposta comum de atuar no palco. tido cristão. Mas a produtora Ruth Escobar começou
Assim Ademar Guerra, diretor de Missa Leiga - a receber telefonemas ameaçadores - alguns prometiam
texto de Chico de Assis encenado em uma velha fábri- jogar bombas na igreja - e decidiu, por isso, transfe-
ca do bairro do Paraiso - define seu espetáculo, que, rir a ML para a fábrica abandonada.
entre o ofício religioso e a representação teatral, esco-
Nada foi ou é improvisado. Nem mesmo a reação
lheu o tom da comunicação direta. São 30 atores em
que a montagem encontrou, quer dos que a aplaudem
cena, mantendo os pontos básicos do ofício católico,
sem reservas, quer daqueles que, sem ler o texto ou
mas acrescentando a ele recursos eminentemente tea-
ver o espetáculo, partiram para a condenação sumária.
trais. Ademar Guerra reconhece que a encenação da
Tudo tem razão de ser, nada é obra do acaso. No epi-
Missa Leiga deve muito às teorias de Brecht, naquilo
sódio de Abraão, para exemplificar, usei uma gama bem
que sua técnica tem de mais humanizante.
mais exacerbada de emoções, porque ninguém pode crer
- Todos devemos muito a Brecht, ainda que agora que um pai sacrifique um filho seu, assim sem mais
a intenção seja, por príncípío, cristã. Até mesmo Brecht, nem menos, mesmo por ordem de Jeová.
com suas proposições radicais, sabia que todo homem
A missa de Chico de Assis e Ademar Guerra, sem
quando se dirige a si mesmo está se dirigindo a Deus.
enredo nem estrelas - os atores dividem. igualmente a
Na espécie de garagem onde a Missa Leiga é cele- responsabilidade do espetáculo - vai adquirindo o sen-
brada todas as noites, o palco improvisado, do tamanho tido de celebração religiosa, de festa, sacrifício e per-
de um grande estrado, torna ainda mais direto o conta- dão, à proporção que chega ao seu final. Momento em
to dos atores com os assistentes que se fundem na que elenco e platéia, unidos, vivem um clima de enten-
hora da coleta. Neste momento, rápidos depoimentos do dimento geral, onde todos de mãos abertas e estendidas
público, são gravados em minicassetes para conhecimen- fazem um apelo silencioso de paz.
to imediato de todos.
Há toda uma envolvência de misticismo nessa ópe-
ra dos pobres, encenada num local de extrema miséria.
A fuligem que cobre as paredes da fábrica/teatro lem-
bra um quadro abstrato na cena da crucificação dos dois
Cristos: o da dúvida ("é cômodo dizer que não creio")
e o da crença ("é fácil berrar eu não acredito"). Os
vidros quebrados, o ar de catacumba, o jeito humilde
de que tudo está impregnado remetem o espectador à
atmosfera idealista do cristianismo primitivo. (Iomai do Brasil, 16/3/72) ( .
CRONOLOGIA D'O TABLADO MOVIMENTO TEATRAL
. "',
.
(Retificação) Janeiro a março de 1972

1958 TEATRO DE ARENA


A Gatinha Detetive, de Lucio
Gentil, pelo Grupo Cacilda Becker,
À LUZ DE UMA
depois de uma excursão no sul do
FOGUEIRA ({» (leitura) país, apresenta-se no Largo da Ca-
rioca. Direção de Claudíonor Car-
comédia em 3 atos valhal. No elenco: lsaura Sabino e
de Christopher Fry Leni Alencar.
Tradução de Lama Margarida de
Queiroz Costa TEATRO DAS ARTES
Direção de lan Michalski o Segredo do Velho Mudo, de
Richard - Leizor Bronz Nelson Xavier. No elenco: Marieta
Thomas Mendip - Carlos Augusto Severo, Camila Amado, Cecil Thiré
Nem e Aderbal Junior. Lançamento a
Alizon Eliot - Elisabeth Galotti preço popular (5,00).
Nicholas Devize - Joel Lopes de
Carvalho TEATRO DE BOLSO
Margaret Devize - lnez Almeida o Jogo da Verdade, comédia po-
Humphrey Devíze - Aristeu Berger licial de Aurimar Rocha.
Hebbke Tyson - Fernando José
Os Desquitados, de Aurimar Ro-
Jennet Jomdemayne - Bárbara He-
cha, numa remontagem da realiza-
liodora
ção de 1970. Direção de AR, com
O Capelão - Nildo Parente Amândio, Eva Cristian, Regina Cé-
Rapercoom - Germano Filho lia, Fernando José e Aurimar Rocha.
Skipps - Ezequias Marques Jr.
Assistente de direção - Juarezita
A Bruxinha que Em Boa, de
MCM, apresentada pelas Proieeso-
Alves
ras Aseociadas, "por um teatro in-
fantil melhor".

Na Corte do Rei Balão, de Luis


Maranhão Filho, apresentada por L.
L. Produções, como "a melhor peça
(") À luz de uma Fogueira (The
Lady' s not fOI' burning) inaugurou, no
TABLADO, o seu Clube de Teatro, cuja
° infantil dos últimos tempos". No
elenco: E'dy, Jane Celeste, Antonio
finalidade era estudar textos importantes
da dramaturgia universal, apresentando-os
Mesquita, Maria Lígia, Robertson e
em forma de leitura. Caio Veras.
TEATRO COPACABANA Zartan, o Rei das Selvas, de Ilce- TEATRO OPINIÃO
mar Nunes, peça premiada no IV
Querido Agora Não, em final de Festival de Teatro Infantil da GB. A Gata Borralheira, pelo Grupo
carreira. Carrousel.
TEATRO IPANEMA
o Dia em que Raptaram o Papa, A Valsa Mágica, de Sérgio Rober-
de João Bethencourt. Direção do Hoje é Dia de Rock, romance-par- to. Direção de Roberto de Brito.
autor, cenário de Arlindo Rodrigues. titura de José Vicente. Direção de
No elenco: Eva, André Villon, Afon- Rubens Correia.
so Stuart, Martim Francisco, Jome- TEATRO PRINCESA ISABEL
ri Pozoli, Leda Zepelín e João Mar- TEATRO MESBLA
cos Fuentes. Castro Alves Pede Passagem, de
Cíanfrancesco Cuarníeri, inauguran-
Vida Escrachada, de Bráulio Pe-
TEATRO DULCINA do a temporada carioca de 1972,
droso, com mais de 500 representa-
após sua carreira em São Paulo. A
ções, já em final de carreira.
Toda Fera Tem um Pai ... , co- peça é uma biografia poética de Cas-
média de Emanuel Rodrigues e Cos- tro Alves transformada em progra-
tinha, já em seu 2.° ano de carreira.
TEATRO MAISON DE ma de auditório de TV. Direção do
Últimos dias. FRANCE autor, com Zanoni Ferrite, Maria
Overbeck, Jorge Chaia, Regina Via-
E Deus Criou a Varoa, espetáculo na e Lenír Pereira.
TEATRO GINÁSTICO de música e declamação, patrocina-
do pela Livraria Hachette do Brasil.
Últimos Dias de Amor e Paz, mu-
sical norte-americano, produzido e
Direção de Roberto de Cleto, com TEATRO SANTA ROSA
Maria Pompeu, Oscar Felipe, Helder
dirigido por Vítor Berbara, com Su-
Parente e Fernando Lébeis. Cordel, uma produção de Luis
zana Morais e Gracindo Junior nos
principais papéis. Letras e arran- Carlos Taborda, direção de Orlando
jos de Egberto Gismonti. Partici- TEATRO MIGUEL LEMOS Sena.
pação especial de D. Salvador e do
Grupo Abolição. o Rebu é Delas, em seu quarto Faça Alg-wna Coisa pelo Coelho,
mês de apresentação. Bicho, em seus últimos dias, "com
sorteio de presentes". Anuncia-se a
TEATRO GLAUCIO ,GIL o Iardimeiro do Rei, infantil de estréia de Fernanda Montenegro e
autoria e direção de Jair Pinheiro. seu grupo nesse teatro com Computa,
Casa de Bonecas, em temporada Computador, Computa, uma coletâ-
popular. Ninguém Segura esse Rato, do nea de textos de Millor Fernandes e
mesmo autor. direção de Carlos Kroeber.
Dom Casmurro, de Machado de
Assis, em adaptação de J. C. Caval-
canti Borges. Com Osmar Prado, TEATRO NACIONAL DE TEATRO SENAC
Isabel Silva, Paulo Padilha, Diana COMÉDIA
Moreli, Fabíola Facarolí, Marcos Se eu me Chamasse Baimusulo, de
Weinberg e outros. Cenários de Mini Prairentex, "farsa satríca" de Fernando Melo, na direção de José
Eichbauer, figurinos de Kalma Mur- Maria Helena Kuehner, com Nélia Carlos Gondim, com cenografia e fi-
tinho. Direção e interpretação de Paula, Mauro Gonçalves, Eni Ribei- gminos de Comar Díniz, substituirá
Ziembinski. ro e outros. Produção da Erpa. a peça O Mor1'O do Ouro, musi- r •
cal de Eduardo Campos, com mú- Na Semana Santa, o Grupo Barra, PREMIO IBEU
sicas de Belchior e Jorge MeIo, que apresentou sob a direção de Orlan-
teve rápida carreira nesse teatro, sob do Sena, a Via Crucis em várias O Instituto Brasil-Estados Unidos
a direção de Haroldo Serra. No elen- igrejas da GB. O roteiro foi elabo- atribuiu o seu premio ao melhor tex-
co desta última: Miriam Pérsia, Mil- rado pelo grupo integrado por Nel- to de autor americano encenado em
ton Morais, B. de Paiva e outros. son Mariani, Beatriz Lira, Maria 1971: Os Rapazes da Banda por una-
Conceição Sena e OrIando Sena. nimidade, com medalhas comemora-
tivas atribuídas a Milor Fernandes,
TEATRO SERRADOR Maurioe Vaneau, Ciro dei Nero, Raul
BONECOS Cortez Paulo Pereio, Gésio Amadeo,
Um EdifíCio Chamado 200, de Benedito Corsi, Otávio Augusto, De-
Paulo Pontes, direção de José Re- No Teatro Jaime Costa (Barão do nis Carvalho, Roberto Maia, Paulo
nato, despedindo-se do público. Bom Retiro, 94), o Teatrinho de Ma- Adário e John Herbert.
rionetes Monteiro Lobato apresentou
Passeando pelo Brasil, bonecos em
TEATRO TERESA RAQUEL temas do folclore brasileiro.

Gracías Sefíor, uma criação coleti-


va do Grupo Oficina, elaborada a
IV FESTIVAL DE TEATRO
partir de pesquisas e experiências INFANTIL DA GB (1971)
durante viagem pelo interior do Bra-
sil. Direção de José Celso Marti- Realizou-se em fins de 1971 o IV
nez, com José Celso, Renato Borghi, Festival Infantil, obtendo o 1.0 lu-
Ester Góis, Hildegard A'ngel, Maria gar' A Ilha Mágica do Contador de
Rita e grande elenco. Histórias, uma adaptação de José
Antonio Domingues, dirigida por
Gracias Sefíor é talvez, dentro da Paulo Alcântara. Zartan, o Rei das
história do teatro brasileiro, a pri- Selvas obteve a 2.a colocação e, em
meira tornada de posição na coloca- 3.a colocação: Macaco Simão, de
ção de papéis novos tanto para ato- Francisco Falcão e Aventuras de um
res quanto para público. Equivoca- Diabo Malandro, de Maria Helena
do em muitos momentos, confuso Kuehner. Outros prêmios foram da- MACHADO DE ASSIS EM
quase sempre, Cracias representa o dos a: EIsa de Andrade, Luca de LONDRES
começo de um contato. Novo? Cer- Castro, com menções honrosas para
tamente. E; como se todos que dele Claudio Valério Teixeira, Sandra No- Os alunos do Curso de Português
participam fossem recém-chegados ronha e Cláudio Barrete. O Festi- da Casa do Brasil em Londres (Lan-
de um passado teatral, agora final- val é organizado e patrocinado pela caster Gate Reading Players) apre-
mente prontos a abandonarem seus Divisão de Teatro da GB. sentaram em fevereiro a peça de Ma-
personagens e assumirem as verda- chado de Assis - Não Consultes
deiras posições. Mergui!Jhando lW' Médico. Coordenadora - Maria Lí-
universo reierenciol da classe média, sia Lourenço da Silva, ensaiadora -
Cracias não se contenta em fazer Ada Chaselíov. Elenco: M. L. [o-
uma cáustica análise de seus limites nes (Magalhães), Martyn J. Golds-
e de sua inserção no processo social mith ( Cavalcanti) , Ada Chaseliov
em curso. Solicita a descoberta. (Ian ( Adelaide ), M. Lísia Lourenço
Michalski) . (Leocádia) e J enny Parry (Carlota ).
Textos à disposição dos Ic·iloll " I

Secretaria d'O TABLA I)()

Autor anônimo o P'lsl<lIlO fi 11 '1'111111 " ".. •• .• .• ...••.. 23


Duas FIlI'HIIN'1'1111111 1111" , , • • • . . . . . . . . . •• .. 25
O Jogo d! t\dnll " I................. 37
Albee Edward A Hist61'Í11do 1.1111111/\ I II , I I , • • • • • • • • • • • • • • • •• 40
Arrabal Fernando Píqu 11 i(/!1í' 1111 1"11"" , , , • • . • . . • . . . . . • . . • .• 36
Guern i H •• •• • , , • • • • . . • . . . . . . • • • • •. 50
Azevedo Artur Uma ollsldl" , . . . . . . . . . . . . . . ... 25
Barr & Stevens O Moço BOIII 1 ()II(,d 1'1111' (11/ • • • . . • . •. . . • • . •.. 28
Brecht Berthold Aquele qU( dI,.., '1111 • • • • . . . . . . . • • • • • . • .. 41
Cervantes A Cova d Snl'IlIIlIIlI'II •• , .,..................... 38
Chancerel Leon O Jogo d S. Nfc'oltlll ••••• ,.................... 26
Antígona (udnptu ' 111) , •• ".................... 31
Checov Anton O Urso 29
O Pedido cl CaNIIIII!'!IIII........................ 38
O Jubileu , . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 46
Drummond de Andrade O Caso do Vcst ido .••••........................ 39
Ghelderode Michel Os Cegos 2/1
Labiche Eugêne A Cramátíca .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 11,7
Macedo J. Manuel O Novo Otelo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. tI:\
Machado MC O Boi e o Burro :\~I
As Interferên ias .
Os Embrulho .
Machado de Assis Antes da Missa ,
Martins Pena As Desgraças d U 111 a 'dança ,.
Motomasa Juro Sumidagawa (nô ) "
Onna Surinuri A Dama Mascarada (farsa) ,
Pereira da Silva O Vaso Suspirado ,.
Pessoa Femando O Marinheiro .
Qorpo-Santo Eu Sou a Vida ,
Sófocles Antígona ,
Suassuna Ariano Torturas de Um Coração .
Synge JM Viajantes para o Mar .
A Sombra do Desfiladeiro ,,
Tagore O Carteiro do Rei ",
Tardieu Jean Conversação Sinfonieta .
Vicente Gil Os Mistérios da Virgem (Mofina Mlllldl
Todo Mundo e Ninguém .
Yeats O Único Ciúme de Em r ",
. )
Livro à venda na Secretaria d'O TABLADO

Antígona, de Sófocles 4,00


Assim. na Terra como no Céu, de F. Hochwalder 6,00
Chapéu ele Sebo, de F. Pereira da Silva . . . . . . . . . 5,00
Édipo Rei, de Sófocles 5,00
Está Lá Fora wn Inspetor, de J. B. Priestley . . . . 5,00
[oana D' Are, de Claudel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5,00
O Livro de Cristóvão Colombo, de Claudel . . . . . 5,00
De uma Noite ele Festa, de Joaquim Cardozo .. 5,00
O Pagador de Promessas, de Dias Gomes . . . . . . . 5,00
A Pena e a Lei, de Suassuna . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5,00
O Teatro e Seu Espaço, de Peter Brook . . . . . . . .. 13,00

Livros de autoria de Maria Clara Machado;

O Cavalinho Azul (conto) 12,00


Como Fazer Teatrinho ele Bonecos. . . . . . . . . . .. 12,00
VoI. contendo; A Menina e o Ve'nto, Maroqui-
nhas Frujru, A Gata Borralheira e Maria
Minhoca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 10,00
VaI. contendo; Pluft, o Faniasminha, O Rapto
das Cebolinhas, Chapeuzuiho Vennelho e o
Boi e o BWTo 10,00
VoI. contendo: O Embarque ele Noé, A Volta ele
Cainaleão e Camaleão na Lua .. . . . . . . . . .. 10,00

Estão também à venda n'O TABLADO;

de Maria Clara Machado


Cem Jogos Dramáticos,
Estas publicações poderão ser pedidas à Secre-
e Marta Rosman . 6,00
taria d'O TABLADO, mediante pagamento com
CADERNOS DE TEATRO (número avulso) .. 5,00 cheque visado, em nome de Eddy Rezende
Assinatura anual . 20,00 Nunes, pagável no Rio de Janeiro, Guanabara.
mpreeBo por
ICA EDITORA DO LIVRO
10 de Janeiro,
GB

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