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Cadernos Teatro 52
Cadernos Teatro 52
cadernos de teatro
Redação: O TABLADO
Av. Lineu de Paula Machado, 795 - ZC 20
Rio de Janeiro - Guanabara - Brasil
1936
ARTAUD:
Queremos ressuscitar uma idéia do espetáculo total,
em que o teatro retomará ao cinema, ao rnusic hall,
ao circo e à própria vida o que sempre lhe pertenceu.
A sala será fechada por quatro paredes, sem qualquer
1919 espécie de ornamento e o público sentado, no meio da
sala, em baixo, em cadeiras móveis que lhe permitirão
GROPIUS: acompanhar o espetáculo que se passará em redor dele.
De fato, a ausência de palco no sentido comum da pala-
Em sua origem, o teatro nasceu de uma nostalgia vra convidará a ação a desdobrar-se nos quatro cantos
metafísica. .. A seção teatral da Bauhaus busca possi- da platéia.
bilidades novas que possam satisfazer essa nostalgia mís-
tica; ela deseja dar ao seu trabalho não só satisfações Não haverá cenário; bastará para esse ofício per-
estéticas mas criar essa alegria primitioa perceptível a sonagens-hieroglifos, trajes rituais, manequins de dez
todos os sentidos. metros de altura ...
um teatro de sangue
um teatro que, a cada representação, fará ganhar
1932 corporalmente
alguma coisa àquele que representa
ARTAUD: como àquele que vem ver representar
pois
Desejamos introduzir a natureza inteira no teatro,
não se representa
tal como queremos realizá-lo. POf mais vasto que seja
age-se.
esse programa, ele não ultrapassa o próprio teatro, que
r .
parece identificar-se com as forças da antiga magia. O teatro é, na realidade, a gênese da criação.
1
]969 CHRISTIAN GILLOUX
o TEATRO DA CRUELDADE
E "se determinada época se volta e se desinteressa
do teatro é que o teatro deixou de representá-Ia. Ela
não espera mais que ele lhe forneça os mitos em que
poderia apoiar-se". O mito aparece, então, como uma
imagem acrescida. Visto que a representação dos mi-
tos deve ser evolutiva, destruidora das formas antigas,
blasfematória dos ritos habituais, o teatro que se afasta
dessa função perde sua razão de ser.
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ada lado, por uma chapa em ângulo reto e uma can- que se veja o céu; em tais casos é praticamente impos-
t 11 ira (ambas metálicas) de cada lado. Uma cha- sível fazer com que os dois recursos tenham o mesmo
pinha m tálica perfurada, vergada e aparafusada a um aspecto.
lado do batente, pode ser utilizada como retentor para
a lingueta da fechadura. Arcos. A face anterior do arco é recortada em pa-
A porta é engonçada ao batente por dobradiças de pelão grosso e aparafusado à face anterior da abertura
pino solto. Uma folha de cada dobradiça é aparafusada do trainel na qual será usado. Uma armação de madei-
à porta com as alças dos pinos projetando-se para além ra é construída e ligada à face posterior da abertura,
da superfície. A outra folha é invertida para dobrar no Essa armação formará a espessura do portal e, além
sentido da face posterior da porta. O batente é dei- disso, segurará no lugar a espessura do arco. Essa
tado no chão com a face anterior virada para baixo. espessura do arco é feita de papelão grosso com lona
Coloca-se a porta por cima do mesmo, exatamente pa, colada em ambos os lados. Papelão recoberto de lona
ralela no lado da dobradiça e a 1,5cm acima da base, pode ser recurvado com facilidade sem quebrar. Pode-
para que a porta possa abrir e fechar livremente. Só -se usar também compensado fino, atravessado (não
então é que as folhas soltas da dobradiça são parafu- verga ao comprido).
sadas aos portais.
Molduras. A aparência de qualquer acabamento
Janelas. Os portais ou marcos para janelas são COllS- de madeira é muito melhorada com o uso de molduras.
truídos da mesma maneira que os da porta, com a dife- A moldura é chanfrada nos cantos e presa por peque-
rença que são iguais no alto e na base, e que levam nos pregos sem cabeça. Uma moldura longa pode ser
uma tira de moldura na base para fornecer uma guia formada de várias peças curtas, já que as juntas não
para a janela no batente inferior. O caixilho superior serão visíveis ao público. Um painel pode ser forma-
é de 4cm mais largo do que a abertura da porta e do por quatro pedaços presos nos cantos por preguinhos
pregado à face posterior da armação. O caixilho infe- sem cabeça. É necessário colocar travessas adicionais na
rior tem as mesmas dimensões pelo lado de dentro do parte posterior dos trainéis para Formar uma superfície
superior, mas como é construido com ripa de 5cm de sólida à qual os painéis possam ser pregados. Molduras
largura, em vez de 7cm, isto é suficientemente estrei- pesadas, como cimalhas ou sancas, podem ser formadas
to para correr dentro de um trilho formado por duas pela combinação de uma ou mais-tábuas com várias
tírínhas finas de ripa, pregadas na parte interior do tiras de moldura estreita, Molduras rasas ou quaisquer
batente. As traves horizontais dos vidros são feitas de outros detalhes com menos de lcm de espessura podem
tiras de ripa pr-egadas ao caixilho. As traves verticais ser simulados com tinta.
do caixilho inferior devem ficar por trás das horizon-
tais para evitar que, por acidente, o caixilho inferior ESCADAS E PRATICÁVEIS
pegue no superior no momento de ser aberto. Painéis
de losango podem ser sugeridos por cordões trançados Os teatros profissionais usam degraus e praticáveis
e pregados à face posterior dos caixilhos. diferentes dos aqui indicados, mas como estes são
Se a janela não for praticável, é por vezes possí- mais versáteis, são os mais adaptáveis ao trabalho de
vel não utilizar um fundinho, mas simplesmente pregar grupos amadores.
um forro de fazenda por trás da armação. Naturalmente
usam-se pano preto para as cenas noturnas e pano azul Praticáveis. A parte superior é formada por três
claro transparente, que pode ser iluminado por trás, pedaços de madeira de 5cm x IOcm, paralelos e colo-
para cenas diurnas. Tais recursos são aplicados com cados no chão sobre seu lado mais fino, aos quais se
mais facilidade quando as janelas são enfeitadas com prega, perpendicularmente, uma série de tábuas. Cada
cortinas cruzadas e presas apenas nos cantos inferiores. tábua é colocada sobre as três traves básicas e prega-
E nunca devem ser usados para cenas durante o dia da individualmente. Essa pranchada é forrada com um
nas quais qualquer abertura, como uma porta, permita acolchoado e o conjunto é então recoberto de lona ou
de aniagem, que é dobrada para os lados e pregada com .'No próximo número:
.. 1. .
Pi1ifurade •
Cenários.
tachas. (Do Livro: Como fazer Teatro (l'), de H.
As pernas são também feitas de madeira de 5cm Nelms, Editora Letras e Artes, GB)
x lOcm, colocadas pelo lado interior das traves básicas
laterais e aparafusadas no lugar. A trave básica central
da cobertura é mantida no lugar por 'uma trave trans-
versa de 5cm x IOcm que se aparafusa às pernas. Os
esquadros são feitos de qualquer sobra de. ma,deirae
fixados com pregos comuns, de tamanho médio. Pla-
taformas de mais de 2m necessitam de mais duas pernas
ao centro" bem como de mais uma travessa.
FORMAS IRREGULARES
A MORTA
Osw ALD DE ANnRADE: ((t)
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o POETA - Minha vida reduzida, O HIEOOFANTE - Complexo de O POETA - Ficarás nesse garfo ge-
prisioneira, entumulada! que faço a máscara. lado.
BEATlUZ - Sou a mulher de már- O POETA - E eu a ruptura ... BEATlUZ - Socorro!
more e dos <cemitérios. O HIEROFANTE - Ninguém te
O HIEROFANTE - Darei sempre a
ouvirá no país do indivíduo!
O H:rE:ROF ANTE - Pise baixo ... visão oficial.
O POETA - Quando a morte res-
devagar. O POETA - Enquanto eu bradar o vala por nós, a vida torna-se gran-
A ENFERMEIRA- Um golpe de jiu- canto noturno do emparedado. Um diosa.
-jitsu, pronto. canto desconexo. Interior como o BEATRIZ - Dá-me um epitáfio,
O POETA (num gesto longo) - Tu sangue. As comunicações cortadas poeta!
me mastigas, noite tenebrosa! com a vida! O POETA - Diante do espelho, és
A ENFERMEIRA senta-se. BEATRIZ (chorando) - Desfiguras- sempre a Vitória de Samatrácia, com
O HIEROFANTE - C onsumatum! te-me sob as tintas efusivas do amor. os olhos e os cabelos presos a um
O POETA - Fizeram-me abando- horizonte sem fundo.
O POETA - Guerra à sua alma.
nar a Agora para viver sobre mim BEATRIZ - Fujamos. Foi a outra
A ENFERMEIRA -É preciso des- que morreu!
mesmo de mil recursos improduti-
fazer todo sinal do drama ... O HIEROFANTE - Sopra para sem-
vos. Eu quero voltar à Ágora.
O HIEROFANTE - Não há perigo. pre o comutador noturno.
O HIEROFANTE - A realidade mo-
Recomponhamos o cadáver. É um O POETA - Meu álibi! Meu se-
lesta os humanos.
piedoso dever. J untemos os seus O POETA - Eu sou um valor sem
cular álibi!
membros esparsos, os cabelos, os
mercados. Criaram o sentimento e o
dentes.
tornaram um valor excluído da troca.
BEATRIZ - Meu amor. II QUADRO
BEATRIZ - :És o augúrio, poeta!
O POETA - Não é possível mais ...
O POETA - Encontrarão aqui a NO PAiS DA GRAMÁTICA
BEATlUZ - Por que?
tua imagem silenciosa.
O POETA - O professor te disso- Personagens Dramáticos:
BEATRIZ - Eu sou a lealdade sem
ciou. Fujamos. Não há crime ainda
sentido! O POETA
visível.
A ENFERMEIRA - Na aurora virão O POETA - No bem como no mal. BEATRIZ
buscar os restos do chá da meia BEATRIZ - Não te deixo ... HOMClO
noite. O CREMADOR
O POETA - Melancolia! Feita de
BEATRIZ - O amor é o quero-par-
O HIEROFANTE
luar e de onda noturna! Quem te
que-quero da vida. O JUIZ
definirá?
U MA ROUPA DE HOMEM
O HIEROFANTE - O criador do
O HIEROFANTE - No país do GRUPO DE CREMADORES
irremediável.
Ego ... GRUPO DE CONSERVADORES
O POETA - Que diz agora o teu
BEATRIZ - Por que acreditas em DE CADÁVER
coração? Para justificar-te!
BEATRIZ - Vive do medo de te mim? MORTOS
O HIEROFAL~TE- :És insolúvel sem VIVOS
ter perdido!
a censura. O TumSTA PREOOCE
O POETA - Quebraste o elo.
O POLÍCIA POLIGLOTA
BEATRIZ- Não poderei fazer nada BEATRIZ - Tanto algodão e tanto
sem ti, sem o teu calor, a tua ado- sangue! A cena representa uma praça onde
ração. O HIEROFAL~TE- Vou para o país vêm desembocar várias ruas. Um
O POETA - Quebraste a porta fe- sem dor. Longe das conjurações e grupo de gente internacional passa
chada ... I das óperas! ao fundo.
o TURISTA PREOOCE - Por favor. falo sete línguas, nesta idade! E O TURISTA - E patrões. Que se-
Quem são aqueles? não tenho mais governante! ria do mundo sem os patrões?
O PoLÍCIA - Um russo, um ale- O POLÍCIA- Também falo- sete lín- O POLÍCIA - Eles querem queimar
mão, um japonês, um italiano, um guas, todas mortas. A minha função todos os cadáveres, os mais respei-
nacional ... é mesmo essa, matá-Ias. Todo o táveis, os que fazem a fortuna das
O TURISTA - O que são? meu glosário é de frases feitas ... empresas funerárias, como a impren-
O POLÍCIA - Nomes comuns. É
O TURISTA - As mesmas que eu sa, a política ...
a grande reserva humana de onde emprego. Nós dois, só conseguimos O TURISTA - Acabam querendo
se tira para a ação, o sujeito ... catalogar o mundo, esfriá-Ia, pô-Ia queimar o cadáver da curiosidade,
O TURISTA- São vivos? em vitrine! que sou eu!
O POLÍCIA - Vivos todos.
O POLÍCIA - Somos os guardiães
de uma terra sem surpresas. Saem, de cena conoersando
Um grupo de gente amortalhada
atravessa a cena.
O TURISTA - E querem transfor-
má-Ia! Absurdo! Não é melhor VOZES AO FUNDO - Abaixo a auto-
assim? Sabemos onde estão a torre ridade dos ociosos! Abaixo! Que-
O TURISTA- E aqueles?
de Pisa, as Pirâmides, o Santo Se- remos o verbo criador da ação!
O POLícIA - São os mortos.
pulcro, os cabarés ...
O TURISTA - Vivem juntos? Vi- O POETA (entra conversando com
vos e mortos? A POLÍCIA - Nossa desgraça seria HORÁCIO) - Deixei-a para sem-
O POLÍCIA- O mundo é um dicio- imensa se subvertessem a ordem es- pre. .. Sinto-me atual. Longe da
nano. Palavras vivas e vocábulos tabelecida nos Bedekers. Desconhe- "Apassíonata",
mortos. Não se atracam porque so- ceríamos as pedras novas da vida,
HORÁCIO - Pisas de novo a terra
mos severos vigilantes. Fechamo-Ias os feitos calorosos da rebeldia. Não
dos que se embuçam nas regras do
em regras indiscutíveis e fixas. Fa- distinguiríamos mais fronteiras e al-
bom viver ...
zemos mesmo que estes que são a fândegas. .. Perderíamos o pão e a
O POETA - Renovo-me na rua.
serenidade tomem o lugar daquelas função.
HoRÁCto - É o país da gramática.
que são a raiva e o fermento. Fun- O TURISTA - E nós, os ricos, os
N ele acharás o teu elemento for-
damos para isso as academias. .. os ociosos, onde passear as nossas neu-
maL
museus. .. os códigos ... rastenias, os nossos reumatismos?
O TURISTA - E os vivos recla- Onde? Perderíamos toda autori- O POETA - Ainda guardo a espe-
mam? dade. rança trágica de vê-Ia ...
O POLÍCIA - Mais do que isso.. HORÁCIO - Voltas a essa mulher
Querem que os outros desapareçam Vozes ao fundo. como um criminoso!
para sempre. Mas se isso aconte- O POETA - Porque sou o culpado.
cesse não haveria mais os céus da Os CREMADORES - -Abaixo os HORÁCIO - Deixaste-a?
literatura, as águas paradas da poe- mortos! Limpemos a terra! Abaixo!
O POETA - Fui andando cada vez
sia, os lagos imóveis do sonho. Tudo A POLícIA - De um tempo para
mais para o lado das estrelas e ela
que é clássico, isto é, o que se en- cá, não sei porque agravou-se a con-
ficou no meio da música ...
sina nas classes ... tenda. Creio que os vivos cresce-
O TURISTA - Com quem tenho a ram, agoTa querem se emancipar. HORÁCIO - Estás marcado por
honra de falar? Os mortos os agrilhoam à indústria. ela ...
O PoLÍCIA - Com a polícia poli- E eles querem ocupar fábricas, ci- O FOETA - Sinto-a como a culpa,
glota. dades e o mundo. ... Ingratos. Não como a esperança. .. Sem ela a vida
O TURISTA - Oh! que prazer! O sabem que sem os mortos, eles não é deserta, o mundo é uma trágica
senhor sou eu mesmo na voz passi- teriam tudo, emprego, salários, assis- planície sem descanso! Ela é a ca-
va. Na minha qualidade de turista tência .... verna do indivíduo... Onde me
e•
acolho sem nada esperar, sem nada Ias armações metálicas. A natureza brança de sua voz? Ficarei perdido
desejar ... foi vencida pela mecânica! no mundo terrível da rua ...
HoRÁCIO - Ela te imobiliza e O POETA - Desfizeste tua frágil
amortalha. e confusa capa ética. Deixaste a so- Novo tumulto
ciedade dos humanos ...
Tumulto. Um pequeno Exército BEATRIZ - Me reconheces? Os CREMADORES- Fora! Fora os
da Salvação penetra na praça e se exploradores da vida! Limparemos
O POETA - Ainda trago no corpo
instala. para um comício musical e o mundo!
o perfume lascivo de tuas calças!
pacífico. Um homem gordo traz BEATRlZ - Quem são esses desor-
uma tabuleta onde se lê "Deus, Pá- BEATRlZ - Sou virgem de novo. deíros?
tria e Família". É o HIEROFANTE. Não vês este véu?
O POETA - É a vanguarda que
Sons fúnebres seguem o bando far- O POETA (retira-se) - É a másca- luta pela libertação humana.
dado. ra de um ente que se dispersa! O BEATRIZ (sufocada) - Quanta gen-
teu inóspito ser se desagrega! te! Não posso, não posso me habi-
HoRÁcIO - São os mortos que ma- BEATRIZ - Ao contrário, encontrei tuar. Esses homens procurando mu-
nifestam ... a minha unidade! lheres esperando homens ...
O POETA - Conheço aquele ho- HORÁCIO (chamando-o) - Deixa- O POETA - Pareces pertencer a
mem da tabuleta. -a! Não vês que habitas de novo um país assexuado. Que sentes?
HORÁCIO - São os conservadores com ela os subterrâneos da vida inte- Tens os olhos longínquos, a boca
de cadáver ... rior? voluntariosa crispada!
O POETA - Ela é o meu drama. . Os CREMADORES- Fogo nesses po-
Tumulto do outro lado da cena. HORÁCIO - O empresário da tua dres! Abaixo o despotismo dos mor-
Um grupo de exaltados, em roupa morte. Deixa-a! tos.
pobre, protesta contra o comício. O POETA - Não. O coração acor-
Homens e mulheres invadem a cena. da de repente. E' começa o tra- A música toca um tanga. O HIE-
balho irracional. Corrosivo de to- ROFANTE procura o Evangelho.
Os CREMADORES- Limpemos o do debate. .. A consciência torna-
mundo! Abaixo os mortos! Eles co- -se um estado sentimental e a justi- O HIEROFANTE - In illo tempore!
mem a comida dos vivos! Abaixo! ça foge do mundo ... Oh! Drama! Os CREMADORES- Fora! Fora!
O HIEROFANTE - Materialistas! Desenvolvimento do próprio ser
O CREMADOR- Ao contrário! So- universal! Eu te busco! O tumulto cresce. Juntam-se aos
mos a constante idealista que faz BEATRIZ - Porque crias em mim creinadores galicismos, solecismos,
avançar a humanidade! pesados encargos assim! E o senti- barbarismos. Do lado dos mortos
O POETA (apontando BEATRIZ, mento de culpa! Desenvolvido na cerram colunas, graves interjeições,
que aparece com passos medidos, célula de um circo. O sentimento adjetivos lustrosos e senhoriais ar-
estática sob o véu) - Ei-lal Que espetacular da culpa! A disciplina caismos.
gestos solenes! (Aproximando-se e das feras, as grandes quedas sem
falando-lhe) Voltas ao meu cami- rede, o amor pelo palhaço. CoRO DAS INTERJEIÇÕES - Oh!
nho? HORÁCIO - Foge! Não vês uma a Ah! Hi!
BEATRIZ - Todos os esforços me uma as ficções da vida interior? Os CREMADORES- Fora a estupi-
abandonaram! Onde estou? O POETA - Porque fugir? Para dez das interjeições!
O POETA - No país da Ordena- depois me arrastar pelos locais em O HIEBOFANTE - Massa desprezí-
ção ... que a acompanhei? Me acoitar à vel de pronomes mal colocados!
BEATRIZ- Os homens abateram as sombra de seus gestos idos, pro- O CREMADOR- Fora! Quinhentis-
florestas. Expulsaram os espíritos da curando nos cenários encontrados a tas! Falais uma língua estranha às
terra! Substituíram as árvores pe- dois, a sombra de seu ser, a Iem- novas catadupas humanas!
o HIEROFANTE - Somos o ver- Deus e Jesus Cristo me inspirem e Os CoNSERVADORES- Muito bem!
náculo das cara velas ... me garantam o céu. Muito bem!
O CREMADOR - No século do O HIEROFArTE - Culto aos mor- O HIEROFANTE - Devemos obe-
avião! tos! Culto aos mortos! Onde já se decer os nossos maiores. E seguir
Os CREMADORES- Somos a língua viu destruir um cadáver. Senhor o que está escrito ...
falada pelo rádio. . . Queima essa JUIZ, a humanidade levou séculos VOZES - Julgai! Julgai!
tabuleta. para construir esta frase "Deus, Pá- O JUIZ - Os mortos governam os
tria e Família". Como derrogá-Ia? vivos. Premissa maior! Premissa
Os CONSERVADORES BabeI!
Como e porque? menor. .. Os cremadores são exces-
BabeI!
BEATRIZ - Como fala bem esse sivamente vivos! Ergo! Ergo! De-
Os CREMADORES- Não! Somos vem ser... Conclusão! Governa-
os fundamentos do esperanto, a lín- velho!
dos ...
gua da humanidade una! O CREMAD'OR- O que nos traz à
Os CONSERVADORES - Governados
O HIEROFANTE - Não pode! Não cena é a fome! Mais que qualquer
vocação. Muito mais que a vontade por nós!
pode! Quem poderá destruir uma VOZES - Muito bem! Muito bem!
de representar. É o problema da
frase feita? OUTRAS VOZES - Fora! Idiota!
comida! A produção da terra é des-
Os CRID.1:ADORES - Fora as frases Vendido! Cadáver!
viada dos vivos para os mortos. Nós
feitas, as frases ocas! Fora as fra- trabalhamos para alimentar cadáve- HIEROFANTE - Eis um silogismo
ses mortas! res. Mais eles absorvem a produ- irrefutável!
Os CoNSERVADORES Chama o ção, mais aniquilam os vivos. Tudo O POETA - Essa lógica tem servi-
juiz! Chama o juiz! que produzimos vai para sua boca do de fundamento a todos os crimes
A MULTIDÃO - O juiz! insaciada. Eles possuem armas e di- históricos.
rigem exércitos iludidos pela igno- Os CoNSERVADORES- É extraordi-
A charanga toca. rância e pela fé religiosa. nária a perspicácia dos livros!
Os CREMADORES- Rebelemo-nos! O POETA - Fora o velho argô dos
VOZES - Aí vem o juiz. Ele jul- VOZES - Façamos a limpeza do filisteus!
gará! mundo! O CREMADOR - Rebelemo-nos.
Os CoNSERVADORES - É um grande Os CREMADORES- Queimemos os Um dia sairemos de nossos labora-
gramática! cadáveres que infestam a terra! tórios subterrâneos. .. Para limpar
Os CREMADORES- É um juiz de VOZES - Sim! A cremacão! A o mundo de toda putrefação!
classe. cremação! ' As INTERJEIÇÕES- Ah! Oh! Ih!
Os. CoNSERVADORES- Viva o juiz! Os CR&VfADORES - É preciso des-
Viva o nosso querido juiz! truir os mortos que paralisam a vida! A charanga dos conservadores de
VOZES - Vamos queimá-Ias! cadáver forma um séquito e conduz
o juiz agradece a manifestação. O JUIZ - Esperail Esperaí a sen- o juiz em triunfo.
Formam-se C1n torno· dele semi- tença. Tragam aqui o livro: Bi-
-círculos irados. -blos. Tudo está no Livro, (Colo- Os CONSERVADORES(retirando-se)
cam diante dele um grande lioro - Abaixo os solecismos! Abaixo os
O CREMADOR- Conhecemos o jul- aberto, Ele vira as páginas) Vamos barbarismos! Abaixo!
gamento! É contra nós! ver. De-vo-ta-men-to. .. Pu-ri-fi- UMA ROUPA DE HOMEM (passan-
O JUIZ - Silêncio! Julgarei segun- -ca-ção! Adiante! Viver para os do) - Boa tarde, linda!
do os cânones. outros! Não! Está aqui! Achei (Lê BEATRIZ - Boa tarde.
VOZES - Os cânones mortos. num grande berro) Os-mortos-go- O POETA - Quem é?
O JUIZ - Começai a exposição do vernam-os-vivos! (Aclamações. Pro- BEATRIZ - Um conhecido. Estive
pleito. Sou todo ouvidos! Que testos) ontem com ele ...
,
o POETA - Impossível, .. O POETA - No entanto não po- isso! (Coloca as mãos recatadamen-
)
BEATRIZ - Sim. Pediu-me que derei fazer mais nada sem ti! Sem te sobre o sexo).
fosse sua. Falou-me da eternidade. teu calor e tua adoração. O POETA - És.a morte, o abismo
Mas lembrei-me de tuas palavras. BEATRIZ - Amo-te ainda. Vem final, o longe da terra.
Recusei. Ele disse: Não insisto! comigo. Nada pode conter a vida ... BEATRIZ - Sou a imagem do se-
Sei que serás minha! O POETA - A morte ... xual.
O POETA - Mas é um morto, que- BEATRIZ- Nunca a tua febre amo- O POETA - Estás deformada, Ion-
ridal rosa deixou o meu corpo. gÚ1qua, inexata... Pareces despe-
BEATRIZ - Morto?! gada dos ossos, como aquele que te
O POETA - Sim. Tu não morres- A charanga dos conseroadores de cumprimentou.
te, querida... Não podias ter te cadáver passa ao fundo. BEATRIZ - Tenho um encontro
avistado intimamente com ele, que marcado com ele.
não existe. Por acaso não notaste BEATRIZ- Vamos com eles, poeta. O POETA - Impossível. É um
as suas roupas despegadas do cor- O POETA - Não. morto!
po? É um morto. Não sabes? BEATRIZ - Vamos!
BEATRIZ - Aqui na cidade? O POETA - Queres seguir a músi- A charanga do exército da morte
O POETA - Sim, meu amor. Os ca da morte? toma conta da cena lentamente.
mortos ainda infestam a terra viva. BEATRIZ - O juiz decidiu ... BEATRIZ centraliza-o,
Metade da população desta praça é O POETA - O juiz é um morto
de gente morta. também. VOZES - Culto aos mortos! Culto
BEATRIZ - Somos todos mortos! aos mortos! Passagem para um gran-
BEATRIZ - Se eu tivesse morri do
serias um necrófilo! O POETA - Vem para o outro de enterro... (Saem levando-a)
lado! Minha ação heróica e práti- O POETA - Força de resistência
O POETA - Ter-te-ia abandonado!
ca te salvará. <'0 mundo que começa ...
BEATRIZ - Não podes abandonar- A VOZ DE UM. CREMADOR - É
-me! Nasci da selecão de ti mes- HORÁCIO- Onde vais? Que tens?
preciso mudar o mundo! O POETA - Estou como quem per-
mo! (Declamando) Comecei a pal- A Voz DO HIEROFANTE- É preci-
pitar com a tua religião infantil, com deu um brinquedo querido... es-
so conservar as instituições! pera ...
a tua cultura adolescente! Fui o A Voz DO CREMADOR- É preciso
cofre heráldico das tuas tradições, a HORÁCIO - Deixa-a!
queimar os cadáveres que infestam O POETA - Horácío, não escalpe-
cuma de tua gente! a terra. Eles tiram os alimentos dos
O POETA - Como te encontro mu- les minha dor! Estou marcado por
vivos. da.
dada! Não te recordas senão de VOZES - Querem mudar a super-
evocações e cadeias! HORÁCIO - Onde vais?
-estrutura. O POETA - Salvá-Ia!
BEATRIZ- Tu te tornaste um puro UMA Voz - O comportamento. HORÁClO - Como?
estímulo mecânico. Não acodes aos OUTRA Voz - A reflexiologia. O POETA ~ Pelo primeiro avião ...
,chamados· de tua alma! BEATRlZ - A raiz de tudo é o se- Numa folha morta passarei a gar-
O PDETA ;- Os acentos de minha xual. O amar é o quero-porque ganta cerrada da outra vida.
dor não te penetram mais. Não que- -quero da vida. Nessa frente única,
bram a mudez do teu mundo de pe- a humanidade hesita. .. Vem.
dra. Estás perturbada, os olhos lon- O POETA - Não, o social domina Sai correndo atrás do costeio, cuia
gínquos, a boca voluntariosa oris- os humanos. Vem conosco. Vem charanga ainda se ouve.
pada. com os libera dores do grande con-
BEATRIZ (depois de um silêncio flito! HoRÁeIO Insensato! Poeta!
evocativo) - Pertenço às regiões da BEATRIZ - Como és cândido. O Cuardar-te-ão para sempre os den-
amnésia. que os homens querem é isso, só tes fechados da morte!
III QUADRO (Silêncio) Gostaria de conhecer o Berreiro no jazigo
poeta ...
O PAíS DA ANESTESIA O RÁmo PATRULHA- Ele vem de O MENINO DE ESMALTE - Ai! Ai!
auto giro, trazendo a morta! (Espia pela vigia)
Personagens Dramáticos: A DAMA DAS C A M É L I A S Os CADÁVERES- Que é isso? Que
Quem é? é isso?
BEATRIZ O HIEROFANTE - Beatriz. O HIEROFANTE - Uma cena de
O POETA A SENHORAMINISTRA - E' ele? família.
O HIEROFANTE O HIEltOFANTE - O poeta vem de A SENHORA MINISTRA - Que pes-
A CRIk'l"ÇA-DE-EsMALTE planador. Só assim penetrará nes- soal escandaloso!
SEUS PAIS sas paragens ... A DAMA DAS CAMÉLIAS - Brigam
O ATLETA COMPLETO A SENHORA MINISTRA - O motor. sempre. Nunca pensei que fosse
O RÁDIO-PATRULHA (acompanha- O HIEROFANTE - A mosca. assim no seio da sociedade honrada!
do de uma motocicleta) O PAI (pondo a cabeça pela O'gi- O HIEROFANTE - Gente católica.
A DAMA-DAS-CAMÉLIAS va do jazigO') - Silêncio! Eu habito E' extremamente conceituada. O
A SENHORAMINISTRA um lugar silencioso ou não? Eu me drama que os trouxe para cá teve a
CARONTE matei para ouvir a solidão. Para mais tétrica repercussão .nos meios
O URUBU DE EDGARD estar só! Não viver em sociedade. distintos.
A cena representa 'Um recinto so- Em nenhuma sociedade. Eu me en- A SENHORAMINISTRA- Como foi?
bre 'Uma paisagem, de alumi'nio e contro assediado de intrigas, cumu- O HIEROFANTE - Gás. Suicídio
carvão. À direita, wn aeródromo lado de vis preocupações. coletivo.
que serve de necrotério. Ao centro, O HIEROFANTE - Faço sentir que A DAMA DAS CAMÉLIAS - E nin-
um jazigo de família. À esquerda, a o vizinho está num cemitério de pri- guém escapou?
Árvore desgalhada da Vida, em for- meira. Não há melhor. O MENINO (pela vigia) - Esse su-
ma de cruz, onde arde, pregado, wn O PAI - Por isso é que eu não jeito, além de me ter suicidado, não
facho. Um grupo de cadáveres re- queria embarcar no autogiro. quer me dar doce!
centes está conversando nos degraus O PAI - Cala a boca!
do jazigo. Passagem lateral para a Silêncio O MENINO - Depois diz que é pai!
platéia, onde a primeira fila de ca- O PAI - O amante de tua mãe te
deiras se conservará vazia. O HIEROFANTE - O motor ... dava doces!
A DAMA - O poeta ... O MENINO - É por isso que eu
O RÁDIo-PATRULHA - Ouve-se já A SEl\'HORA MINISTRA - A mos- gostava dele ...
'o ruído do motor! ca ... O PAI - Cínico, bastardo, filho de
A DAMA-DAS-CAMÉLIAS - Escu- uma ...
tem! O urubu de Edgard. atravessa a
O ATLETA COMPLE'In - Não é! cena ao fundo. I Pancadaria, urros, choros ..
A SENHORA MINISTRA - É' uma
mosca. O RÁDIO PATRULHA - Ouço vo- A DAMA DASCAMÉLIAS - Esta ár-
O HIEROFANTE- Não. zes ... vore não tem sombra.
O ATLETA COMPLETO - Agora é. A DAMA - É a mosca azul. .. O RÁDIO PATRULHA - Gastou a
A DAMA DAS CAMÉLIAS - Não.
O HIEROFANTE - É o urubu de que tinha em 60 séculos!
A SENHORA MINISTRA - A mosca.
Edgard. A SENHORAMINISTRA - Por que a
O HIEROFANTE - O auto giro de
Caronte ... O RÁmo PATRULHA - Silêncio! trouxeram para cá?
A SENHORA MINISTRA - É uma O HIEROFANTE - Fiquemos con- O HIEROFANTE - É uma peça de
mosca no interior de meu nariz! centrados como perfumes. museu. Como nós. ( ,
A DAMA DAS CAMÉLIAS - Foi ela O HIEROFANTE - Depois que o O HIEROFANTE - É quem forne-
,)
que fez a queda do primeiro pai. ouro nos expulsou da Idade de Ouro, ce certidões de óbito.
O HIEROFANTE - A queda ... exploramos a fábula ... A: DAMA DAS CAMÉLIAS - Onde
Quando o troglodita desceu da árvo- O RÁDIO PATRULHA - E' o traba- que ele mora?
re. .. caiu. E se tornou homem ... lho da terra. O HIEROFANTE - No interior oco
A DAMA DAS CAMÉLIAS - É a A DAMA DAS CAMÉLIAS - Então da cruz.
árvore da vida ... foi um choque físico que produziu o A SENHORA MINISTRA - Ó vida
O ATLETA COMPLETO - Da vida homem? chata!
espiritual. A única que me interes- O HIEROFANTE - Não. Foi um O HIEROFANTE - Que vos falta
sa ... choque econômico. Caindo da árvo- aqui?
A SENHORA MINISTRA - Quem é re, ele perdeu os frutos com que se A DAMA DAS CAMÉLIAS A pri-
esse sujeito? alimentava. mavera! Pássaros coloridos. Gritos
O RÁDIO PATRULHA - É um atle- A Sm-rnORA MINISTRA - Engate o d'alma! Namorados!
ta completo. rádio, seu patrulha. A SENHORAMINISTRA- Vamos in-
A DAMA DAS CAMÉLIAS - Mas O RÁDIO PATRULHA- Não posso. ventar um joguinho?
não tem frutas essa árvore? Só tenho na minha motocicleta uma O HIEROFANTE - Jogaq'emos gol-
O HIEROFANTE - Tinha uma. Co- estação emissora. fe com as nossas caveiras ...
A SENHORAMINISTRA- Que pena! O ATLETA COMPLETO - Faltam as
meram. Foi com seus galhos que se
A gente podia até ouvir a terra ... esteques.
acendeu o primeiro fogo. .. E com
Escutar a Giovinezza. .. Ir às cor-
ela toda se fará a última foguei- O RÁmo PATRULHA - Jogaremos
rídas de longe.
ra. Então é uma incendiária? com as nossas próprias tíbias.
A DAMA DAS CAMÉLIAS - No meu
O HIEROFANTE - Nela costuma- A SENHORAMINISTRA - Não. Me-
tempo eu adorava as corridas.
mos festejar o Natal dos falecidos ... lhor é ler a mão. Um brinquedo de
A SENHORA MINISTRA - Oh! As
O MENINO (pela vigia) - Eu que- sociedade.
corridas! Lonchamps! O Derby de
ro um brinquedo ... O ATLETA GOMPLE'I1O- O Híero-
Epson! Eu tinha um coronel que
O PAI - Vai pedir ao amante de fante sabe ler.
me pagava o taxi o dia inteiro, só
tua mãe. para namorar os meus braços nas A SENHORA MINISTRA - Disseram
A MÃE - Ele nunca me passou corridas. Era um homem casado, uma vez que eu ia morrer aos oiten-
as doenças que trouxeste para casa. muito sério! ta anos. Me blefaram.
A DAl\.fA DAS CAMÉLIAS - Conte- O HIEROFANTE - Aqui é impossí-
-nos a história da queda de Adão ... o urubú de Edgard passa ao vel ler-se a mão a alguém.
O HIEROFA1~TE- Levou um tom- A DAMA DAS CAMÉuAS - Por
fundo.
bo. .. Quando se levantou do solo, que?
estava criada a propriedade priva- A DAMA DAS CAMÉLIAS - Quem é O HIEROFANTE - Porque não te-
da ... esse passarinho? mos mais linhas nas mãos tumefac-
A SENHORAMINISTRA - Foi dessa O ATLETA CoMPLETO - É o espí- tas ... (todos examinam as próprias
árvore que ele despencou ... rito da árvore. mãos) Está tudo esgarçado pela
O MO'I1OCICLISTA - Então que so- A DAMA DASCA..l\IlÉLIAS
- O urubu morféia lenta e definitiva da morte.
mos? do Edgard. Vivemos na negação.
O HIEROFA1~TE- O conteúdo das A SENHORA MINSTRA - Quem é O ATLETA C01l1:PLETO- Na eterni-
mitologias. mesmo o dono? dade.
O ATLETA COMPLETO - O alimen- O HIEROFANTE - Um literato, O HIEROFANTE - No além do es-'
to espiritual dos mortos! Edgard Poe, paço.
A Sm-UIORAMINISTRA - O susten- A DAl\1:A DAS CAMÉLIAS Para A Sm-rnORA MINISTRA - O· poeta
táculo das religiões! que serve um bicho desses? não virá até aqui atrás da morta!
A DAMA DAS CAMÉLIAS - Virá. A SENHORAMINISTRA - Silêncio! A DAMA DAS CAlVIÉLIAS- Torna-
Eu que fui mulher da vida sei que O HIEROFANTE - Que reine entre mo-nos humanos.
ele virá. nós o silêncio que convém aos mor- O POETA (procura na cena) -
A SEr-.TJIORA MINISTRA - Quem é tos. Beatrizl Beatriz! Retificadora de
a senhora? meus caminhos! Que tive longe de
Permanecem todos estáticos como ti? Cachos de desgraças. Ofereço-
A DAMA DAS CAMÉLIAS (mostran-
figuras de cera. O urubu de Edgard -te o terreno alagado de meu senti-
do as flores que a envolvem) - Não
se imobiliza junto à árvore esgalha- mento! Sem desejar nada de ti, de
vê? Sou a dama das camélias.
da. Escuta-se o ruído de um motor. teu corpo sepulcral, ofereço-te o
A SENHORA MINISTRA - Pois eu meu coração. (descerra o renard)
Um autogiro desce oerticalmente, e
fui a senhora legítima de um minis- dele saí Caronte.trazerulo nos braços Beatriz!
tro ... BEATRIZ - Sacrilégio."
um corpo de mulher amortalhado
O ATLETA CoMPLETO Não ll!./m grande renard. argenté. O POETA - Beatriz!
adiantou nada. Apodreceu como BEATRIZ - Dizes tão bem o meu
eu. Eis aqui o que resta de um o HIEROFANTE - Está morta? nome! Porque tudo que te dou de
atleta completo. CARONTE - Não insistiu em ficar. emoção, de força criadora, não pões
A SENHORA MINISTRA - Ó! Pa- O HIEROFANTE - Os mortos não em tua arte estanca da?
trulha! Liga o rádio na motocicleta. insistem. O POETA - Falas de novo a lin-
Fala a Nírvana-emíssora! Vamos CARONTE(depositando o corpo so- guagem da vida! Queres de novo
desmoralizar toda vida. bre a mesa de mármore do necroté- dar existência ao poema de meu en-
O HIEROFANTE - Não! rio) - O serviço terreno me reclama, contro!
O ATLETA COMPLETO - Por que? (Parte no autogiro) BEATRIZ- Que fizeste, poeta! Não
O ATLETA CoMPLETO - Sinto do- podes penetrar no país que eu ha-
O HIEROFANTE - Estas 'coisas me- bito. Não podes prescrutar minha
res reumáticas.
cânicas não convêm ao nosso estado intimidade com os autômatos!
O HIEROFAl'lTE - Cuidado.
onírico. O POETA - Lacera-me de novo a
O ATLETA COMPLETO - Por que?
A SENHORAMINISTRA - Mas a ir- O HIEROFAl'-,'TE- O poeta pode angústia criadora. Venho de uma
radiação nos interessa. chegar a qualquer momento. noite cheia de passos e de vultos, a
O ATLETA COMPLETO - É um de- O ATLETA COMPLETO - Mas sinto noite sem ti!
sabafo espiritual ... dores fulgurantes! BEATRIZ - Que se passa lá em
A SENHORAMINISTRA - Um passa A SENHORAMINISTRA - Você tem baixo, onde há chuva?
tempo ... , aí uma bolsa de água quente? O POETA - A chuva, coiteira de
A DAi\1A DASCAMÉLIAS - Trouxe- A DAMA DAS CAMÉLIAS - Sinto tragédias!
um frio enorme no peito! BEATRIZ - O Ego e a Gramática.
mos conosco todos os recalques ter-
O HIEROFANTE - É a presença O POETA - Pareces anestesiada
renos.
dos sopros augurais da terra. num lençol de argila!
A SENHORA MINISTRA - Ou não
A DAMA DAS CAMÉLIAS - O BEATRIZ - Interrompeste o meu
habitamos o país sem censura ... sonho, poeta. És a incorreção]
poeta.
A DAMA DASCAM~ÉLIAS- O auto- O HIEROFAl'lTE - Ele virá can- O POETA - Como falas diferente!
giro está se aproximando. O poeta tando a grandeza do agir ... Trazes no fácies os sinais da decom-
virá atrás ... A SENHORA MINISTRA - Quem é posição de tua unidade!
O HIEROFANTE - Agora é. que faz o discurso de recepção? BEATRIZ - Pelo contrário .. ,
O RÁDIO PATRULHA - Viva Ca- O RÁDIO PATRULHA - A motoci- O POETA - És a máscara de um
ronte! cleta ... ser que se dispersa. Teus olhos de-
Os MORTOS (rnanifestando) O HIEROFANTE - Tornastes-vos ri- liram enquanto a tua boca amarga
( ,
Viva! Viva o iniciador! Viva! dículos à aproximação da vida. sorri. Tens os cabelos do homem
de Neendertal, coroados de espi- te? Onde se unem os dois planos, O POETA - Sou a tua mensagem
• J nhosl o latente e o manifesto? sexual!
BEATRIZ - Sou o primeiro degrau BEATRIZ - Não mais podes acor-
da vida espírítuall Os mortos colocam-se na primeira dar em mim o ódio erótico ...
O POETA - O que me chama é o fila do teatro, olhando. O POETA - Para onde me condu-
drama. Drama, desenvolvimento do ziste?
próprio ser universal! BEATRIZ - Ama-me, por favor! BEATRIZ - Habito o país letáirgi-
BEATRIZ - Quero plata ... co onde não penetra a dor!
O POETA - És a agressão, o eras
O POETA - Dissimetria, minha O POETA - Onde está a tua boca
e a morte. Sigo-te e desapareces!
criadora dissimetria! antiga? Por que esse ritus Oh! Os
BEATIÜZ - Todo esforço é inútil.
BEATRIZ - Tu me abriste de novo teus dentes! Não quero ver mais
O POETA - Angústia! Ansiedade! os teus dentes. Onde estão os teus
os caminhos incoerentes da terra,
Divisão! Resolve! Vives de novo lábios molhados e vivos? Foges com
poeta!
para a minha vida ou partiste para a boca repleta de dentes! Cessa o
sempre?
o Poeta aproxima-se quieto e som-
BEATRIZ - Todos os meus gestos
teu riso parado!
brio.
são de amor! Ouve-se o uivo demorado de um
O HIEROFANTE - Formaremos um O POETA - Fala do sol, da manhã cão.
comício de protesto! O amor quer e da terra!
faze-Ia voltar ao país ordenado e BEATRIZ - Estamos no país pro- O RÁDIO PATRULHA(na platéia) -
terrível da rua. pício às mensagens ... Debout les mortsl
O RÁDIO PATRULHA - Onde nos O POETA - Eras a felicidade! Me
reuniremos? diminuías como uma criança em ti! O cortejo forma-se de novo e diri-
A DAMA DAS CAMÉLIAS - Vamos- BEATRIZ - Chorei todas as lágri- ge-se para o palco.
para a platéia, assim não perdere- mas! Hoje só resta o rímel negro
mos a grande cena. distilado de meus olhos sem fundo! O POETA - Que uivo terrível! Pa-
O RÁDIO PATRULHA - Vamos. O POETA - Teus cabelos me en- rece um coração baleado ...
A SENHORAMINISTRA- Que curio- volvem! Sinto-me ensopado de es- BEATRIZ- Só por uma mulher um
sidade eu sinto! trelas álgidas. Quero a manhã! Que- cerbero uiva assim.
O ATLETA COMPLETO - Para a ro o sol!
platéia! Quero ver como um poeta BEATRIZ - Escalaste escadarias, Os mortos alinham-se ao fundo da
ama! montanhas e o mar! Para atingir cena. O urubu de Edgard abre as
O HIEROFANTE - Ordena o corte- este horizonte sem fim! asas sob a ároore.
jo, rádio patrulha, seguir-te-emos em O POETA - Sorri! De dentro de
ordem alfabética. teus cabelos noturnos! O POETA - A tua mão termina em
O RÁDIO PATRULHA- Debout les BEATRIZ - Sejamos a mesma afli- reta! O teu braço está rígido e
mortsl ção no mesmo leito! reto! A noite tenebrosa de teus ca-
O POETA - Quero o marfim quen- belos não mais restituirá a manhã ra-
Os cadáveres se organizam dificul- te de teu corpo. Mas os teus olhos diosa ...
tosamente. Animados pelo barulho se evaporam! Que boca angustiada! O URUBU DE EDCARD (aproximam-
da motocicleta, conduzem-se em rit- BEATRIZ- Sem ti me falta o apoio do-se e tomando a axila de Beatriz]
mo mole, atrás do Rádio Patrulha, terreno ... - O amor não peneh'a o crânio dos
que desce a cena. O POETA - Sinto-me rodeado da mortos!
angústia das águas! Onde estou? O POETA - Morta! Beijei inútil
O HIEROFANTE (deixando o palco) BEATRIZ - És o feto humano que a labareda extinta de teu corpo! Por
- De que serve aqui o subconscien- voltou à eternidade! isso guardavas dentro do peito uma -
humanidade diversa, atraente e ter- O A"ILETA CO:MPLETO - Errarão Flamba tudo nas mãos heróicas
rível! pelo espaço infinito nossos irmãos do poeta .
A DAMA DAS CA-"YÉLIAS- Olhem, sem carne.
Beatriz permanece quieta e sensa- A DAMA DASCAMÉLIAS- Sinto se O HIEROFANTE (aproximando-se
cional! inflamarem os meus pulmões ... da platéia) - Respeitável PÚblico!
O HIEROFANTE - Só se ama no O ATLETA COMPLETO - Talvez se- Não vos pedimos palmas, pedimos
plano da criação! jamos pmificados! bombeiros! Se quíserdes salvar as
O POETA - Eu trouxe o amor A SENHORA MINISTRA - Não. vossas tradições e vossa moral, ide
para o nada! Cristo-Rei não deixará! chamar os bombeiros ou, se prefe-
BEATRlZ - Para a aurora da vida! O RÁmo PATRULHA- O país dos rirdes, a policial Somos, como vós
O POETA - Queimrurei a tua car- mortos é donde se alimenta toda re- mesmos, um imenso cadáver gan-
ne dadivosa! Não se poupa o nada! ligião ... grenado! Salvai nossas podridões e
O URUBU DE EDGARD - Socorro! O HIEROFANTE - Mas os crema- talvez vos salvareis da fogueira ace-
Socorro! Fogo! dores mataram os deuses. .. Joga- sa do mundo!
ram fora os mitos inúteis.
Os mortos se movimentam. BEATRIZ- Poeta! Permanece para
sempre dentro de mim! Sê fiel!
O POETA - Devoro-te trecho no-
O POETA - Não penetrei à-toa turno de minha vida! Serei fiel para
neste país, onde há uma árvore e um com os arrebóis do futuro ...
facho. Se a força criadora de mi- O HIEROF ANTE - O erro do ho-
nha paixão não te toca, é porque não mem é pensar que é o fim do bar-
existes! bante. .. O barbante não tem fim.
O URUBU DE EDGARD- A huma-
Ouve-se uma sereia estridente. nidade [continuará trágica e ingê-
nua. .. Só a morte é a etapa atin-
o HIEROFANTE - O sinal dos cre- gida.
madores! Acode-nos, espírito da ár- O POETA (Passa o facho aceso ao
vore! corpo de Beatriz, frouxamente co-
O URUBU DE EDGARD- Deus! berto pelo renardi argenté) Todo
O POETA - Reconheço-te, empre- mistério será aclarado. Basta que o
sa funerária! Na matéria do meu homem queime a própria ahna!
cérebro ficará o teu epitáfio. Nun-
ca mais! (Toma do facho e começa Um imenso clarão se anuncia no
a incendiar a Árvore da Vida). Não fundo.
mais estes símbolos dialéticos do se-
xual perturbarão a marcha do ho- A SEl\'HORA MINISTRA - Fujamos
mem terreno. Foge, ave do Paraiso! para o país da chuva ...
O URUBUDE EDGARD- Os cemité- O POETA - A noite não terá mais
rios são combustíveis. Não há sal- passos nem vultos!
vação! O HIEROFANTE - O dilúvio de
A SENHORA MINISTRA - Sempre fogo nos seguirá!
disse que essa vela aí era um peri- BEATRJZ - Sexual! Sexual!
go! O POETA - Incendiarei os teus ca-
O RÁDIO PATRULHA - O incên- belos noturnos! A tua boca aquosa! (Publ. Livraria José Olímpio Edi-
t ,
dio será a cegueira de Caronte. A aurora de teus seios! tam - Rio de Janeiro - 1937)
Tem uma origem muito discutida o mais autêntico melho, com touca do enfeitado de cacos de espelho e la-
, J
e popular espetáculo rural nordestino, e seu nome tal- ços de fita - e a Cantadeira, que também atua cantan-
vez sugerido aos primeiros criadores pelo bater dos pró- do na orquestra, composta exclusivamente de instru-
prios instrumentos de percussão, que marcam o ritmo de mentos de percussão: zabumbas, ganzás, maracás, pan-
suas danças e cantarias, parecendo dizer: bumba! bumba! deiros, etc.
bumba! - ao que se teria acrescentado o nome da fi- As cantorias sofrem variação tanto na melodia quan-
gura principal do auto. Vale a pena ressaltar que, em to na letra, A cenografia e as falas são, geralmente,
Pernambuco, essa marcação ritmica é tão característica improvisadas na ocasião, obedecendo apenas à linha
que por si só anuncia, de longe, o lugar em que está se estrutural própria de cada grupo, de acordo com a orien-
realizando a função. tação de seu dirigente.
O Bumba é, geralmente, apresentado em campo A intenção da autora, ao resumir um espetáculo que
aberto, onde uma empanada, armada às pressas, serve dura várias horas, foi tornar possível sua divulgação
de camarim para os figurantes, que ficam aguardando (através do teatro de bonecos ou de representação ao
a vez de entrar em cena assim que solicitados pelo vivo nas escolas) para o público infantil - em geral tão
Capitão (o mestre-de-cerimônia que comanda o espe- . alienado quanto às raizes tradicionais de nossa forma-
táculo) montado no Cavalo-marinho e que, às vezes, ção cultural - sem a perda de suas características prin-
também empresta seu nome ao Boi que organizou. cipais, sua pmeza e seu grande poder de comunica-
O texto aqui apresentado baseia-se em reminiscên- ção. ( C . M .A. )
cias do Boi do Capitão Felipe de Tígípió, que existiu
por volta de 1916, nesse subúrbio de Recife.
O público assiste a representação colocando-se de
pé em volta do terreiro (sem pagar) e, eventualmente,
dela participando obrigado pela intervenção de Mateus
e Bastião, empregados do Capitão - espécie de bufões
(comumente negros) que o ajudam a movimentar as fi-
guras, contracenando com elas e animando a festa com
ditos e trejeitos engraçados, sempre arrimados numa pe-
quena vara de cuja ponta pendem bexigas de boi infla-
das de ar (como nas comédias italianas do séc. XVII),
com que distribuem pancadas aos presentes, provocando
correrias e gritos alegres, divertidos,
Os trajes, que variam conforme a região, em Per-
nambuco são muito pobres, quase despojados de enfei-
tes e colorido, pouco contribuindo para a beleza visual
do espetáculo. O elenco, constituído por dezenas de
figurantes, representa personagens humanos, animais e
seres fantásticos tirados das lendas e superstições locais
variando de uma região para outra e entre os grupos
do mesmo lugar, pois cada qual tem liberdade de criar
e acrescentar ao seu as figuras que desejar.
Os artistas que não representam animais usam ma-
quilagem carregada, feita de carrnim, carvão e pós bran-
cos - à semelhança das máscaras do teatro grego. As
mulheres geralmente não participam do Boi, a não ser (" ) Texto premiado no ooncurso de peças da Secretaria
a Pastotinha - moça bonitinha, vestida de azul ou ver- de Educação do Paraná (1969).
leva uma surra danada, pra deixar
BUMBA-MEU-BOI! (*) de ser atrevido!
BASTIÃO- Pai, vamos deixar de
CARMOSIHA MONTEIRO embromação, que o pessoal veio foi
DE ARAUJO assistir o Bumba-meu-Boi de Per-
nambuco. Não foi, pessoal?
MATEUS- Então vai chamar o
o Bumba começa com, a orquestra BASTIÃO- Filho de gato, gatinho Capitão para começar a função, que
em cena: tocadores de bombo, gan- é ... eu vou pedir à Cantadeira para can-
zá, viola, e a Cantadeira (a única fi- MATEUS- Tu tá me chamando de tar a lôa dele entrar! (Sai um para
gura feminina presente) tocando pan- burro, maIoria do? Eu te quebro a cada lado)
deiro, cara na vista de todo mundo!
BASTIÃO (fingindo chorar) - Ai, ai, CANTADElHA -
CANTADEIRA - ai, ai! Tadinho de mim! .Ninguém Ô de casa, ô de fora,
tem pena de um pobre menino ino-
o de casa, ô de fora cente!
Capitão já vem chegando
Mangerô já vem saindo! ô de lá, ô de lá (bis)
Ô de lá, ô de lá MATEus - Deixa de dengo, mole- ôde lá, de lá, de lá!
Ô de lá, de lá, de lá. (bis) que! Por causa de um safado como
você, é que o povo diz que negro Entram o Capitão montado na
Os tocadores retiram-se para um não presta, e até inventou 'uma can- burrinha. Matem e Bastião. A mú-
lado, enquanto entram Mateus e Bas- taria que diz assim: . sica continua e eles cantam e dançam
tíão cantando estribilho, dançando Eu não gosto de negro até o Capitão apitar.
e fazendo mesuras. ô charuto,
nem que seja meu parente CAPITÃO(declamando)
MATEUS- ôcharuto Cheguei, cheguei
Boa noite, distinta platéia pois ele tem um costume estou chegando.
que nos VeI1!prestigiar! ô charuto O dono da casa e a dona
Boa noite, povos e povas de fazer vergonha à gente eu entro logo saudando!
Boa noite, meu pessoal! ô charuto Cheguei, cheguei
(Para Bastião} Cumprimenta as estou chegando.
BASTIÃO(rindo) - Eita, pai! Mas Se querem folguedo em casa
famílias, moleque! Mas com todo o eu também inventei outra que diz eu vou logo perguntando.
respeito, heinl assim:
BAST!ÃJO (acanhado) - Eu tenho MATEus - Entra, cantadeiral
vergonha, pai! Não sabe como sou Eu não gosto de branco
CA TADEIRA-
acanhado, pai? ô charuto
MATEUS- Matuto! Quem fica de nem que seja meu avô Viva, ora viva
ô charuto viva o dono da casa
cara lambida, sou eu! Esse povo
todo ai vai mangar da gente! pois branco tem um costume ora viva!
BASTIÃO- Eu nem me importo! ô charuto Viva, ora viva
MATEUS- Mas eu tenho desgos- de sujar o que lavou sua dona também (bis)
to de ter um filho desinducado como ô charuto! ora viva!
você! (À platéia) Gastei um dinhei-
MATEUS(achando graça) - Ah, Mateus e Bastião também cantam
rão botando este burro na escola,
mas ele não aprendeu nadinha! moleque sem-vergonha! Tu ainda I e dançam.
( .
Al1TÃIO(apita e declama) MATEUS - Mateus sai correndo, depois volta.
N o terreiro desta casa Nossa obrigação já foi feita
nosso boi já vem folgar. antes do senhor chegar! CANTADEIRA- Viva, ora, viva! etc.
Mas antes que ele apareça BASTIÃO (debochado) - CAPITÃO (Apita e declama)
queremos cumprimentar Já saudamos todos os velhos A todos peço desculpas
o dono da casa e o povo as velhas, as viúvas, as casadas, pois o culpado sou eu
que nos vem apreciar! os filhos, os primos, os tios, das besteiras que ouviram
as tias, os netos, os parentes, de Bastião e Mateus!
já cantamos as "largadas" (chama) Bastião! Mateus!
C antadeira repete o viva! com BASTIÃO - Pronto, meu Capitão!
que também estão presentes ...
M ateus e Bastião. MATEus - Às ordens, meu Ca-
CAPITÃO - Basta! Então mande a
cantadeira cantar o Viva! para você pitão!
CAPITÃIO(apita e declama) CAPITÃO - Mande a Cantadeira
dizer uma loa!
Saudar também as crianças tirar uma loa para o meu cavalo!
BASTIÃO- Deus me livre! Eu não
a quem viemos mostrar BASTIÃO- Cantadeira, canta a loa
gosto dessas coisas, capitão!
os folguedos do sertão do cavalo-marinho!
CAPITÃO - Avia, moleque! Can-
para que possam gostar I-"IATEus - Tem que apitar, Ca-
tadeira! Canta o Viva! para o Bas-
das coisas de nossa terra pitão!
tíão.
que devem valorizar!
Capitão apita e a Caniadeira
CG11tadeÍJ1'a.cania.
CANTADEIRA- Viva, ora viva! etc. canta.
CAPITÃO (apita) - Mateus! Bas-
BASTIÃO(declama) -
tião! CA."N'TADEIRA -
Lá vem a lua saindo
MATEus - Pronto, meu Capitão! Cavalo-marinho
por trás do canavial.
BASTIÃO - Às ordens, meu pa- cavalo-marinho (bis)
Não é lua não é nada
trão! chega para diante
é a moça que eu vou roubar
CAPITÃO - Onde está a educação? faz uma mesura
porque o velho não deixa
MATEus - Que quer dizer, capi- pra toda essa gente!
ela comigo casar.
tão?
CAPITÃO (a Bastião) - Cavalo-marinho
Que foi aprender na escola
Cantadeira repete o Viva! cavalo-marinho (bis)
que paguei pra lhe ensinar? bunda de pandeiro
BASTIÃO - CAPITÃO - Mateus! Agora é a alevanta o rabo
Escola não é lugar tua vez! pra ganhar dinheiro!
de aprender b - a - bá? "t<.íATEUS
- Tá certo, capitão. Mas
CAPITÃO (zangado) - depois não se queixe, hein? (De- Cavalo-marinho
Isso é lá jeito, moleque clama) cavalo-marinho (bis)
do seu patrão respostar? Lá vem a lua saindo Bunda de viola
MATEus - por trás do pé de feijão alevanta o rabo
Me desculpe, Capitão. Não é lua, sou eu mesmo pra aquela senhora!
Mas isso é charada ou não? com uma dor no coração
CAPITÃO - de ver tanto pobre besta CAPITÃIO(apita, a música para)
Charada, negro da peste, e tanto rico, ladrão! Bastião!
é a platéia saudar? CAPITÃO(ameaçando) - Você está BASTIÃO - Fale, meu padrinho!
BASTIÃO - Mas, patrão, tá enga- doido, negro? Quer ser preso, mise- CAPITÃO - Vai dizer ao barraquei-
nado! rável? ro que pode mandar a primeira fi-
gura! Manda a Cantadeira cantar, VALENTÃO - tá bom demais!
Mateus! (Avista o Valentão que vai Não faça isso, compadre! Eu estou tremendo,
entrando) Eíl Quem é você? Vamos ser amigos, homem! blum!
Aperte aqui esta mão! Mas não é de frio,
Mateus e Bastião saem um para VALENTE - Só aperto pra quebrar! blum!
cada lado. VALENTÃO- Ai, ai, ai, assim não! f<: da frialdade, ô
ô xente!
VALENTÃO(declama) Eles lutam capoeira durante Da beira do rio!
Eu me chamo Valentão
algum tempo, enquanto Mateus e
Bastião torcem. Repetem o estribilho cantando e
sou filho de cangaceiro.
dançando. Depois entra o caçador
Desde menino que tenho
um rifle por companheiro. CAPITÃO (apita) - Mateus! Bas- atirando a esmo. O sapo foge com
Já matei trinta defunto ... tião! medo.
AMBOS - Que deseja, capitão?
CAPITÃO - Vamos botar estes ar- MATEUS - Ai, ai, ai! Este desgra-
CAPITÃO (interrompe debochando)
ruaceiros daqui pra fora? Pra bri- çado quase fura meu pé!
- Ah! Defunto, eu acredito!
gar a gente tem hora! CAPITÃO- Este sujeito é doido!
VALENTÃO - BASTIÃO - Vamos, meu Capitão!
Não deboche, Capitão! MATEUS - É pra já, meu patrão! CAÇADOR(cantando) -
Não deboche, Capitão, Atirei mas não matei,
se não vai se arrepender! atirei mas não pegou.
Os três enxotam os valentes
Pois eu no tiro sou bão Minha pólvora derramada,
na faca nem é bom dizer! meu chumbo perdido! .
CAPITÃO - Que sujeitos mais cha-
Quer a prova, se aproxime Polvarim derretido ...
tos! (Pausa) Vão pedir ao barra-
que mostro o que sei fazer!
queiro outra figura melhor, e a Can- CANT,\.DEIRA-
CAPITÃO - Mas eu não quero bri-
tadeira que cante para a figura que Adeus, João!
gar, seu moço!
vai entrar! Atira no gavião!
VAL&'\lTÃO- Não quer, ou não tem
coragem? AMBOS - É pra já, meu Capitão! Meu n2g~não me mate, não!
VALENTE (entrando) (Sai um para cada lado) Me mate, não!
Nunca vi tanta farofa CANTADEIRA- Me mate, não!
derramada num lugar! Sapo cururu CAPITÃO - Por que você anda per-
Quer brigar tá aqui um homem blum! seguindo o sapo desse jeito? Não
disposto a lhe enfrentar. Da beira do rio tem o que fazer, não?
Eu topo qualquer parada blum! CAÇADOR-
a questão é encontrar! Quando o sapo canta
Eu não gosto daquele bicho!
. VALENTÃO(tremendo) - ô xente!
Ele é feio demais, Capitão!
Que é isto, companheiro? Cururu tem frio!
CAPITÃO - Mas se fosse para ma-
Não se pode nem brincar?
Entram o Sapo, Bastião e Mateus, tar tudo que é feio, você já tinha
VALENTE -
morrido há muito tempo, desgra-
Não gosto de brincadeira cantando e dan çando.
çado!
nem de sujeito que mente.
Quem fala sem ser verdade TODOS - ~IIATEUS- Um diabo mais feio do
vergonha na cara não sente. Ô xente, ô xente que briga de foice!
Por isso eu vou achatar Tá muito bom. BASTrÃO- Perseguindo a feíura elo ( .
o seu nariz de dormente. Ô xente, ô xente (bis) bichinho!
CAPITÃO - E quer saber de uma CAPITÃO - Mas que galinha da- l?ASTIÃO - Vá pro inferno com
• J
oisa? Eu não gosto de gente mal- nada de grande é esta, Bastião? suaema, língua ferina!
vada! Ponha-se já daqui pra fora! EMA - U, u, u, u, u, u, u! MATEUS - Dane-se pra casa, do
BASTIÃO (empurrando o caçador) MATEUS - De que tamanho não diabo, faladeira!
- r~isto mesmo! Vá-se embora, seu será o ovo dessa bicha, capitão?
mata-sapo! ]oana sai correndo com a, ema:
BASTIÃO - Me disseram que' esta I
CAÇADOR(saindo) - Cabra chalei-
danada come até caco de vidro!
ra! (sai) CAPITÃO (soprando) ,-' Vai buscar
EMA ,- 'U, u, u, u, li, u, u!
MATEUS (canta e dança sozinho) outro figmante para distrair a gen-
Meu nego, não me mate, não!' CAPITÃO - E se apertar mesmo,
te, Bastiãol Aquela mulher quase
'Meu nego, não, me mate; não! " ela fala! me mata do coração] (Sai Bastião)
CAi'ITADEillA-
MATEUS - Cantadeira! Tira a
Completamente distraído, ,conti- Olha o passo da 'em a, cantoria do Mané Gostoso!
nua dançando alheio ao Capitão e la-ri-lôl
Bastião, que o observam.' D. JOANA ( entrando) - Minha CÀNTADElRA-
ema, minha ema! Vamos para casa, Seu Mané gostoso'
BASTIÃO- Tá ficando doido, pai? minha ema! perna-de-pau.
CAPITÃO - Bebeu cachaça, Ma- CAPITÃO - Que é isso, dona? A Ele canta, ele toca (bis)
teus? ' senhora entra assim, na casa dos seu berimbau!
MATEUS(encabulado) - Eu só tava outros, sem pedir licença? MANÉ' Cosroso (declama)
esquentando as canelas .. , BASTIÃO - Isso aqui não é casa Quando eu vim lá de riba
CAPITÃO (rindo) - A gente' vê de sua sogra, não, dona! Capitão,
cada uma! (Noutro tom) Bastião! comi carne com feijão,
D. JOANA - Eu ando atrás do que
BASTIÃO '(Perfilando-se)" Às Capitão,
é meu. Quem manda vocês pren-
ordens, meu Capitão! ' derem em casa o que não lhes per- as meninas me pediram,
CAPITÃO - Vai ver o que tem, Capitão,
tence?
mais o barraqueiro, para mandar um vestido de babado,
MATEUS - E quem lhe contou que
para a gente se distrair! Mateus! Capitão,
MATEUS - Tô aqui, patrão] esse bicho está preso aqui? A senho-
andei pelo mundo todo,
ra tá vendo alguma corda amarran-
CAPITÃiO - Manda a cantadeira Capitão, ,
do ela? E' fui achar na loja do Chicão,
cantar!
MATEUS - Canta a Ioa da ema, D. JOANA - E pra que fica esse Capitão!
mulher (Sai um para cada lado) bando de homem rodeando a bichi- CANTADEillA-
nha? Me diga! Só pode ser para Seu Mané Gostoso,
CANTADEillA -
não deixar ela passar. Perna-de-pau,
Olha, o passo da ema,
la-ri-lô! CAPITÃO (indignado) - Dona, vos- ele dança, ele pula (bis)
Lá do meu sertão! micê está me chamando de ladrão no seu girau.
-Ia-ri-Iôl de galinha?
Toda ave avôa D. JOANA - Eu não, capitão! Mas Capitão apita. A música pam.
Ia-rí-lôl . se a carapuça lhe cabe, pode deixar
Só a ema não que eu deixo! MANÉ Cosroso (declama)
la-rí-Iôl CAPITÃO - Suma-se já da minha Quando eu vim lá de riba,
frente, mulher desaforada! Se você Capitão!
Cantam. duas vezes. Enquanto não vestisse saia, eu lhe esquentava A seca tava danada, Capitão!
eles cantam, entra a Ema. os couros agbrinha mesmo! O gado todo morrendo, Capitão!
Enquanto o povo descia, Capitão! VAQUEIRO- CAPITÃO (aos gritos) - Vai cha-
Mas agora veio a chuva, Capitão! Chegou na hora, menina! mar o sacristão, Mateus! Já!
Vai tudo reverdecer, capitão! Estou procurando trabalho MATEUS - Vou correndo, patrão.
Por isso eu quero voltar, Capitão! e ajudar moça bonita Volto logo (sai).
Pra melancia comer, Capitão! é paga mais do que valho!
CANTADEIRA- Seu Mané Gostoso, A Caipora'í) continua assomando
etc. (Saem abraçados) e pulando, enquanto todos a evitam.
Bastião reza, ajoelhado.
Capitão apita e Mané Costoso saí. MATEUS (debochando) - Eu acha-
va melhor vocês falarem antes com SACRISTÃO- Cheguei, seu vigário!
BASTIÃO - Cuidado, "seu" Mané! o vigário! Nossa Senhora do Bom Parto! Que
Se vosmícê cai de riba desta trepeça, CAPITÃO - Deixa de ser enxerido, bicho danado de feio é este?
quebra seu mucumbu no- chão! (To- negro! Bastião! Vai buscar outra PADRE - É uma assombração! Um
dos acham graça. Entra o Vaqueiro). figura, que esta do vaqueiro não deu castigo de D us, meu filho! Você
VAQUEIRO- Dá licença, Capitão! nem para meia missa! trouxe água benta?
CAPITÃo - Ora, que faz perdido SACRISTÃO- Está aqui, padre!
por aqui, rapaz? Bastião sai. Ouvem-se fortes as- PADRE - Então, joga em riba des-
VAQUEIRO- sovios e a Caipora desce pulando. se satanaz, para ver se ele desapa-
Ouvi falar em boi, vim atrás. rece com o poder de Deus!
Eu estou desempregado CAPITÃO - Meu Deus do céu! SACRISTÃO- E' se ele me agalTar
e viver vagabundando Que marmota danada é esta? e me levar para o inferno?
é coisa que não me aprazo MATEUS - 1t zumbi de caboclo
PADRE - Leva, não, meu filho! A
CAPITÃO - brabo, Capitão!
Virgem Maria te protege. Vai!
Trabalho pra homem não falta! CAPITÃO - Vai chamar o padre,
depressa, Mateus! Só ele pode sos- (empu1'm-o)
Demora, mas aparece.
Se não quiser esperar, segar esta bicha! SACRISTÃO- Espere ai! Não pre-
você cuida do meu boi MATEUS - Vou correndo, patrão! cisa me empurrar! Eu sou é ho-
e eu lhe pago o que merece. mem!
BASTIÃO (entrando) - Vai entrar A Caipora continua associando e
uma figura muito linda, Capitão! pulando. Vai junto da Caipora e joga a
CAPITÃO - Seja benvinda! água. Caipora continua assoviando
P ASTORINHA(canta) - PADRE (entrando) - Mandou me e pulando.
Sou uma pobre pastorinha chamar, capitão?'
ando os montes percorrendo, CAPITÃO - Padre, pelo amor de CAPITÃO - Tá aí. Não serviu de
percorrendo, Deus, desencante esta visagem! Isso nada, padre! Ela nem ligou!
a procurar o meu gado, é uma assombração! PADRE (ao Sacristão) - Vamos re-
que ele anda se perdendo, PADRE - Que quer que eu faça, zar o Creio em Deus Padre, meu fi-
se perdendo! meu filho? lho! (Ajoelham-se e rezam)
TODOS - CAPITÃo - O senhor pergunta a MATEUS - Eu sei uma mandinga
Vamos pedir mim? O ofício é seu, padre. Deve que vai afastá-Ia em dois minutos,
ajuda ao Vaqueiro saber melhor do que eu. capitão!
com ele você pode (bis) PADRE (aproxima-se com medo e CAPITÃO (zangado) - Que estás
achar o seu roteiro! volta) - Sozinho, não posso fazer esperando, negro?
nada. Só se o sacristão vier me MATEus - Bastião! (:i
A forma de teatro-jornal tem vários objetivos. Pri- Por isso, nesta primeira edição, os meios são bem
meiro, procura desmistificar a pretensa "objetividade" simples e por isso o espetáculo pretende ser apenas de-
do jornalismo: demonstra que uma notícia publicada em monstrativo. Esta a sua estética: o fino acabamento
um jornal é uma obra de ficção. A importância de uma pertence a outra estética.
notícia e o seu próprio caráter dependem de sua rela- O terceiro objetivo consiste em demonstrar que o
ção com o resto do jornal. Se na manchete surge a teatro pode ser praticado por quem não é artista, da
tragédia da jovem que foi miraculosamente salva depois mesma maneira que o futebol pode ser praticado mesmo
de atear fogo às vestes, desenganada no seu amor - por quem não é atleta. Para se jogar numa seleção, sim,
esta tragédia de primeira página reduz à simples con- é necessário ser atleta, mas pode-se também jogar na
dição de faits dicers os sangrentos choques entre os várzea ou no quintal de casa. O prazer de uma boa pe-
guerrilheiros palestinos e os mercenários do rei Hussein. lada não depende da execução refinada de uma joga-
Pergunta-se qual é mais importante: a conquista do tri- da. O prazer de se fazer teatro numa sala de aula, no
-campeonato ou a seca do nordeste? O Cidadão Kane, restaurante de um sindicato, não depende da perfei-
de Welles, já respondeu: "Nenhuma notícia é bastante ção artesanal do Berliner Ensemble. Todo mundo pode
importante para valer uma manchete; ponha-se qualquer fazer teatro como pode participar de uma assembléia e
notícia sem importância na manchete e ela se transfor- defender seus pontos de vista sem que para isso seja
mará em notícia importante!" Assim se manipula a necessário fazer um curso de oratória. E, paralelamen-
opinião pública - o processo é simples, indolor, te, tudo é passível de um tratamento teatral: notícias
O teatro-jornal é a realidade do jornalismo porque de jornal, discursos, jingles, livros didáticos, a Bíblia,
apresenta a notícia diretamente ao espectador sem o filmes documentários, etc.
condicionamento da diagramação. Algumas de suas téc-
nicas, como a do improviso, são a realidade mesma: AS NOVE PRIMEIRAS TÉCNICAS
aqui não se trata de representar uma cena, mas de vivê-
-Ia cada vez. E cada vez é única em si mesma - como A l.a edição do Teatro-Jornal do Teatro de Arena
é único cada segundo, cada fato, cada emoção. Neste pesquisou nove técnicas que constam do seu primeiro
caso, jornal é ficção, teatro-jornal é realidade. Em outras espetáculo. São elas:
técnicas, porém, teatro-jornal é teatro, ficção: nas téc- 1. Leitura Simples. Esta nem ao menos se constitui
nicas de ação paralela, ritmo, etc. numa técnica propriamente dita. Os atores lêem notí-
O segundo objetivo é tornar o teatro mais popular. cias destacadas do corpo do jornal. A notícia, fora do
Em geral, quando se pretende popularizar o teatro, pre- seu contexto jornalístico, adquire outro valor que lhe
tende-se impor ao povo um produto acabado, feito sem é dado pela relação ator-espectador, em cada espetáculo
a sua participação, e às vezes sem os seus pontos de determinado.
vista. No Brasil, por exemplo, pretende-se às vezes 2. Improvisação. Os atores informam-se da notícia e
popularizar peças reacionárias de Pirandelo, de Hous- improvisam uma cena, como em exercício de laboratório.
sin e, neste sentido, o teatro se torna tão popular como A notícia serve apenas como vago roteiro - espécie
a fome e a morte antes dos trinta. O teatro-jornal, ao de canovacci da cornmedia dell' arte. Ou pode-se improvi-
contrário, pretende popularizar alguns meios de se fazer sar o que terá acontecido após o fato narrado pela no-
teatro - a fim de que o próprio povo deles se possa tícia. Ou pode-se improvisar os motivos e as cenas que
utilizar para produzir o seu próprio teatro. Mal compa- teriam levado aos fatos narrados pela notícia.
rando, se temos rotativas não pretendemos fabricar o
nosso jornal e popularízá-lo: pretendemos ceder nossas 3. Leitura com Ritmo. Todo ritmo, em si mesmo, tem
rotativas. um conteúdo próprio, desperta certas emoções, certas
imagens, certas idéias. Qualquer letra de musica pode velados em fotografias: favelas ao lado de palacetes, etc.,
variar de sentido, dependendo do ritmo com que é can- etc.
tada. Uma letra que fale de solidão, abandono, triste-
za, etc. em bossa nova é nostalgia, em tango é lamento
7. Histórico. Uma notícia é sempre melhor compreen-
dida se o espectador tiver informações históricas adicio-
de cornudo. Ler com ritmo é interpretar, emprestando
à notícia o conteúdo do ritmo escolhido. Significa ver nais. Na "Primeira Edição" conta-se o crime cometido
os fatos com a perspectiva do ritmo. No caso da l.a contra um camponês que solicitou do patrão o paga-
edição, elegeu-se o discurso de um deputado em favor mento dos meses em atraso e que foi amarrado a uma
da censura prévia de livros, revistas e jornais. O dis- árvore e morto a golpes de faca enquanto o senhor das
curso é bastante medieval em seu conteúdo, Nada me- terras lia palavras cruzadas. Um fotógrafo amador fo-
tografou o crime e só assim as autoridades tomaram co-
lhor do que o canto gregoriano para evidenciar esse
significado subjacente. nhecimento do fato, apesar de denúncias feitas antes
pela mulher da vítima. Utilizando-se o "histórico", o
4. Ação Paralela. A notícia é lida por um ator ou' teatro-jornal procura mostrar que a situação do homem
num gravador, enquanto que em cena se desenrolam do campo pouco mudou sob o domínio português, holan-
ações que explicam a notícia ou que a criticam, dês, durante a escravidão ou depois da República.
Na "Primeira Edição" as notícias lidas no gravador
referem-se à utilização de animais pelos Estados Unidos 8. Entrevista de Campo. Antigamente, quando o dra-
na Cuerra do Vietnã (percevejos radiativos, castores maturgo queria revelar o intimo do seu personagem,
para destruir diques, peixes elétricos para eletrocutarem escrevia um monólogo e o personagem começava a fa-
embarcações inimigas e outras idéias aparentemente de lar sozinho, a perguntar se era melhor ser ou não ser.
science fiction, mas que são, na realidade, estudadas Hoje em dia foi inventada a televisão, e quando a gen-
seriamente pelos cientistas de Salt Lake City, USA), te quer saber o que vai no íntimo do personagem, faz-
notícias sobre Herman Kahn, o futurólogo que foi inca- -se uma entrevista de cam.po, utilizando-se todas as téc-
nicas espetaculares dos costumeiros entrevistadores. A
paz de prever o que aconteceria nos últimos 3 anos no
solenidade de certos manifestos, certos discursos, são
Brasil, mas que ao mesmo tempo julga-se capaz de pre-
ver o. que acontecerá nos próximos 30, o terremoto do. assim relativizados pela sua transcrição numa linguagem
também conhecida, esportiva. O conhecimento da ver-
Peru, os gols de Pelé, etc. Em cena, os atores repro-
duzem as ações cotidianas que melhor demonstrem o to- dade do pronunciamento torna-se mais fácil se ele for
destacado do seu contexto solene e desprovido dos cha-
tal alheiamente da maioria silenciosa diante dos fatos
vões demagógicos.
mais acabrunhantes: filas de jogadores em busca da
solução mágica da loteria esportiva, um ensaio de esco- 9. Concreção ela Abstração. Tomar concreta uma no-
la de samba, o dia de um "cidadão normal", a compra tícia. A TV nos habituou a conviver com o que há de
de um carro último tipo, etc, etc. mais terrível no mundo: guerra, mortes violentas, chaci-
5. Reforço. Nesta técnica, a notícia serve de roteiro nas, terremotos, estupros, todos os tipos de crimes. Os
preenchido com todo o tipo de material já conhecido noticiários são quase sempre na hora do almoço ou na
pelo público, ou previsto: jngles comerciais, slídes, pro- hora do jantar. Ver sangue na TV, enquanto se come,
paganda, filmes documentários, frases de anúncios fa- é quase tão importante como o sal da própria comida.
mosos, etc. Na quarta-feira, junto com a feijoada, a gente tem que
ver um belo bombardeio na lndochina; e o molho à bo-
6. Leitura Cruzada. Aqui, o elenco cruza duas ou lonhesa da macarronada das quintas é o sangue de um
mais notícias. A seleção brasileira de futebol foi con- estudante ou negro baleado nos Estados Unidos. Nós
siderada a de melhor preparo físico no último campeo- continuamos comendo tranquilos. A informação já não
nato mundial, a mais saudável. No Piaui, segundo notí- informa. Ouvimos a notícia e registramos, e continua-
cias dos jornais, toda a equipe campeã do Fluminense mos tão insensíveis como um computador eletrônico. A
local sofre de verminose. Os contrastes podem ser re- morte é abstrata. Por isso é necessário tomar concretas é i
certas palav.ras. Podemos ouvir, como na "Primeira
· )
Edição", a notícia da morte de um operário que, sendo
obrigado a entrar num forno sem o tempo de resfria-
mento necessário, teve o seu sangue cozido dentro do
corpo - e essa notícia pode nos deixar indiferentes, sem
ver realmente o fato. Neste caso particular, após cenas
de improviso, cenas de "histórico" e outras técnicas, o
elenco concretiza a morte do camponês através da mor-
te, em cena, de pequenos animais queimados, de bo-
necas cujo fogo reproduzia o cheiro do forno misturado
com carne queimada.
São estas as nove técnicas que foram pesquisadas
pelo Teatro-Jornal do Teatro de Arena. Outras estão
sendo pesquisa das pelos já inúmeros grupos de teatro-
-jornal que se formaram e continuam se formando. O
importante não são as técnicas em si mesmas, mas sim
dar a todos a possibilidade de disporem do teatro como
um meio válido de comunicação. Pela primeira vez o
Teatro de Arena não tenta apenas popularizar um pro-
duto acabado, mas sim dar a todos os meios de fazer
teatro: e o teatro feito pelo povo, independentemente
de suas habilidades artísticas, será, desnecessário é dizer,
"popular".
A idéia do teatro-jornal é antiga. Porém, só quan-
do o grupo integrado por Celso Frateschi, Dulce Muniz,
Hélio Muniz, Elísio Brandão, Denise Fallotico e Edson
Santana aceitam levar avante a pesquisa, só então o
teatro-jornal se tornou viável. Exposta a idéia desse
tipo de teatro, a equipe pesquisou durante três meses,
tendo realizado cinco edições, em criação coletiva. A
direção desse espetáculo, constituiu um trabalho espe-
cial e diferente: coordenar, estruturar, selecionar e esti-
mular, partindo de um trabalho de equipe. Também
Marcos Weinstock integrou-se no grupo cuidando da
parte visual e Mário Masetti contribuindo com suges-
tões e com o artesanato da parte sonora.
(Da Rev. Latia AmeTiwn Theatre Review, 4(2/71) (") V. CT n. 51: O Teatro Político, de L. Raczac.
CELEBRAÇÃO DE PAZ
o objetivo desta montagem foi o de colocar as pes- Criada (e vivida) coletivamente, a Missa Leiga cus-
soas frente a uma opção entre o que são, por dentro, e tou muito a todos que dela participam. Da direção e dos
o que aparentam, por fora. Mais do que representar, o atores, 12 horas de ensaios por dia e um intenso traba-
que esse elenco faz é discutir com o público a condição lho de laboratório. Da produtora Ruth Escobar, uma
de todos nós e de cada um, particularmente. Importan- luta de muitos meses para liberar o texto e a encenação.
te foi criar uma linguagem comum entre a transmissão Por incompreensão de certas áreas, a Missa Leiga
do texto e a recepção ao espetáculo. E isso na maior que primitivamente seria montada na Igreja da Conso-
liberdade de concepção, sem o menor ditatorialismo de lação - foi impedida de ser levada naquele local. Mos-
fórmulas ou de técnica. Algo difícil de explicar: seria trada às autoridades eclesiásticas, estas não sópermi-
como a revelação de verdades Íntimas para acréscimo à tiram sua encenação na igreja, como elogiaram seu sen-
proposta comum de atuar no palco. tido cristão. Mas a produtora Ruth Escobar começou
Assim Ademar Guerra, diretor de Missa Leiga - a receber telefonemas ameaçadores - alguns prometiam
texto de Chico de Assis encenado em uma velha fábri- jogar bombas na igreja - e decidiu, por isso, transfe-
ca do bairro do Paraiso - define seu espetáculo, que, rir a ML para a fábrica abandonada.
entre o ofício religioso e a representação teatral, esco-
Nada foi ou é improvisado. Nem mesmo a reação
lheu o tom da comunicação direta. São 30 atores em
que a montagem encontrou, quer dos que a aplaudem
cena, mantendo os pontos básicos do ofício católico,
sem reservas, quer daqueles que, sem ler o texto ou
mas acrescentando a ele recursos eminentemente tea-
ver o espetáculo, partiram para a condenação sumária.
trais. Ademar Guerra reconhece que a encenação da
Tudo tem razão de ser, nada é obra do acaso. No epi-
Missa Leiga deve muito às teorias de Brecht, naquilo
sódio de Abraão, para exemplificar, usei uma gama bem
que sua técnica tem de mais humanizante.
mais exacerbada de emoções, porque ninguém pode crer
- Todos devemos muito a Brecht, ainda que agora que um pai sacrifique um filho seu, assim sem mais
a intenção seja, por príncípío, cristã. Até mesmo Brecht, nem menos, mesmo por ordem de Jeová.
com suas proposições radicais, sabia que todo homem
A missa de Chico de Assis e Ademar Guerra, sem
quando se dirige a si mesmo está se dirigindo a Deus.
enredo nem estrelas - os atores dividem. igualmente a
Na espécie de garagem onde a Missa Leiga é cele- responsabilidade do espetáculo - vai adquirindo o sen-
brada todas as noites, o palco improvisado, do tamanho tido de celebração religiosa, de festa, sacrifício e per-
de um grande estrado, torna ainda mais direto o conta- dão, à proporção que chega ao seu final. Momento em
to dos atores com os assistentes que se fundem na que elenco e platéia, unidos, vivem um clima de enten-
hora da coleta. Neste momento, rápidos depoimentos do dimento geral, onde todos de mãos abertas e estendidas
público, são gravados em minicassetes para conhecimen- fazem um apelo silencioso de paz.
to imediato de todos.
Há toda uma envolvência de misticismo nessa ópe-
ra dos pobres, encenada num local de extrema miséria.
A fuligem que cobre as paredes da fábrica/teatro lem-
bra um quadro abstrato na cena da crucificação dos dois
Cristos: o da dúvida ("é cômodo dizer que não creio")
e o da crença ("é fácil berrar eu não acredito"). Os
vidros quebrados, o ar de catacumba, o jeito humilde
de que tudo está impregnado remetem o espectador à
atmosfera idealista do cristianismo primitivo. (Iomai do Brasil, 16/3/72) ( .
CRONOLOGIA D'O TABLADO MOVIMENTO TEATRAL
. "',
.
(Retificação) Janeiro a março de 1972