Você está na página 1de 5

O ARROZ E O FEIJÃO NÃO FICARAM MAIS BARATOS

REFLEXÕES SOBRE O FAZER TEATRAL EM MEIO AO FIM DO MUNDO


Por Caroline do Amaral

Ouvi dizer,
que haverá um tempo em que o tempo não fará sentido.
Obsolescendo, o tempo devorará seus filhos
Entregando-os ao centro escuro da galáxia
onde a imensa massa desintegra a matéria.
Depositará,
como quem dá a descarga,
tudo o que criou e que de si derivou.
Antes de entregar sua existência
à falência.

Devo começar afirmando que este é um texto que pergunta. Para mim, a
graduação se deu dessa forma: levantou uma infinidade de perguntas e não
respondeu nenhuma. Logo, não estou habituada a escrever de outra forma.
Aqui quero perguntar, principalmente, sobre o público. Motivada pelas minhas
decepções, tédios e mau humor perguntar sobre a relação entre aquilo que é
público e aquilo que é privado e sobre como as pessoas que se sentam diante
da cena e dedicam sua atenção ao trabalho dos artistas são tratadas. Meu
recorte é o teatro paulistano dos últimos 10 anos e só poderia ser este, pois, é
a única cena a que tenho acesso e o breve período em que tenho sido uma
frequentadora regular. É uma perspectiva limitada, sem dúvidas. Mas, sendo a
única ao alcance teremos que nos contentar.
Observo, inquieta, que o teatro paulistano não está preocupado em me
agradar.

“O preço do feijão
não cabe no poema.
O preço do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,


está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira”
(“Não tem vaga”, Ferreira Gullar)
Declaração de Princípios
(editado do texto escrito por Jerzy Grotowski para uso interno no Teatro
Laboratório e, em particular, pelos atores que faziam um aprendizado, antes de
serem aceitos na companhia, a fim de colocá-los em contato com os princípios
básicos do trabalho ali realizado).

O ritmo de vida na civilização moderna se caracteriza pela tensão, por


um sentimento de condenação, pelo desejo de esconder nossas motivações
pessoais, e por uma adoção da variedade de papéis e máscaras da vida
(máscaras diferentes para a nossa família, o trabalho, entre amigos, na
comunidade, etc.). Gostamos de ser “científicos”, querendo dizer com isto
racionais e cerebrais, uma vez que esta atitude é ditada pelo curso da
civilização. Mas também queremos pagar um tributo ao nosso lado biológico, o
que poderíamos chamar de prazeres fisiológicos. Portanto, fazemos um jogo
duplo de intelecto e instinto, pensamento e emoção; tentamos dividir-nos
artificialmente em corpo e alma. Quando tentamos nos livrar disto tudo,
começamos a gritar e a bater com o pé, nos convulsionando com o ritmo da
música. Em nossa busca por liberação, atingimos o caos biológico. Sofremos
mais com uma falta de totalidade, atirando-nos, dissipando-nos. (…)
Por que sacrificamos tanta energia à nossa arte? Não é para ensinar aos
outros, mas para aprender com eles o que nossa existência, nosso organismo,
nossa experiência pessoal e ainda não treinada tem para nos ensinar; para
aprender a romper os limites que nos aprisionam e a libertar-nos das cadeias
que nos puxam para trás, da mentiras sobre nós mesmos que manufaturamos
cotidianamente para nós e para os outros; para as limitações causadas pela
nossa ignorância e falta de coragem; em resumo, para encher o vazio em nós,
para nos realizarmos. A arte não é um estado da alma (no sentido de algum
momento extraordinário e imprevisível de inspiração), nem um estado do
homem (no sentido de uma profissão ou função social). A arte é um
amadurecimento, uma evolução, uma ascensão que nos torna capazes de
emergir da escuridão para a luz.
O que devemos fazer é lutar, para então descobrir, experimentar a
verdade sobre nós mesmos; rasgar as máscaras atrás das quais nos
escondemos diariamente. (…) A arte não pode ser limitada pelas leis da
moralidade comum ou de qualquer catecismo. (…) O ato de criação nada tem a
ver com o conforto externo ou com a civilidade humana convencional; quer
dizer, as condições de trabalho nas quais as pessoas se sentem seguras e
felizes.

REFLEXÕES SOBRE O FAZER TEATRAL EM MEIO AO FIM DO MUNDO?

“Posso escolher qualquer espaço vazio e considera-lo um palco nu. Um


homem atravessa este espaço enquanto outro o observa. Isto é suficiente para
criar uma ação cênica.”
É com esta reflexão que Peter Brook inicia sua reflexão sobre “O Teatro Morto”,
em “O Teatro e seu Espaço”, que é baseado em quatro palestras que ele
realizou.

KANTOR
antor toma distância em relação às conhecidas soluções que Craig ofereceu
para o destino do ator: “já que o momento em que o ator apareceu pela
primeira vez diante de um auditório me parece, muito pelo contrário, que é um
momento revolucionário e de vanguarda... do círculo comum dos costumes e
ritos religiosos, das cerimônias e atividades lúdicas, saiu Alguém, Alguém que
acabava de tomar uma temerária decisão: a de separar-se da comunidade
cultural. Seus motivos não eram nem o orgulho, nem o desejo de atrair sobre si
mesmo a atenção de todos. Ele veio como um rebelde, um herético, livre e
trágico, por haver ousado ficar só com sua sorte e seu destino. Se
acrescentarmos “e com seu papel”, teremos diante de nós o ATOR. É seguro
que esse ato, terá sido julgado como uma traição às tradições antigas e às
práticas do culto. O ator foi relegado pela sociedade. Não só teve inimigos
ferozes, como admiradores fanáticos. Vergonha e glória conjugados. Frente à
comunidade levantou-se um HOMEM, exatamente igual a cada um dessa
comunidade e, ao mesmo tempo, infinitamente distante, terrivelmente estranho,
como que habitado pela morte. Igual à luz cegadora de um relâmpago, veio de
repente a imagem do Homem, como se o vissem pela primeira vez, como se
acabassem de ver-se a si mesmo. Foi, com certeza, uma comoção, que se
pode qualificar de metafísica.

Foi dos espaços da Morte, que surgiu esse Manifesto Revelador e que
provocou no público, essa COMOÇÃO METAFÍSICA. Os meios e a arte desse
homem, o ATOR, se relacionam também com a morte, com sua beleza trágica
e horrenda”.

Kantor diz que devemos devolver à relação espectador/ator, sua significação


essencial. Devemos fazer renascer esse impacto original do instante em que
um homem (ator) apareceu pela primeira vez frente a outros homens
(espectadores), exatamente igual a cada um deles e, ao mesmo tempo,
infinitamente estranho.

“Plantaremos”, diz Kantor, “os limites desta fronteira que se chama a condição
da morte, porque constitui o ponto de referência mais avançado, e não
amenizado por nenhum conformismo sobre a condição do artista e da arte. Só
os mortos se fazem perceptíveis (para os vivos) e obtém assim, por esse
preço, o mais elevado, sua singularidade, sua silhueta resplandecente, quase
como no circo.”
(http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/teatro/teatro-contemporaneo/tadeusz-
kantor-fases-teatro-da-morte.html)
ANATOL ROSENFELD
“Nas peças gregas há danças, cantos. Cada parte tem uma forma especial e
agradável. Por mais que os acontecimentos inspirem terror ou pena, devem
causar algum prazer. Este é um conceito fundamental da estética aristotélica: a
obra de arte deve sempre causar algum prazer.
O drama moderno não pretende só isso; às vezes, massacra a plateia.
Max Frisch [1911-91], que é suíço, o que por si só significa ser bem moderado,
diz desejar que o público passe mal à noite. José Celso também. Um fenômeno
importante ocorre, nesse aspecto: trata-se da negação do prazer estético.
Quer-se apelar diretamente à consciência do público: não se aceita seu
conformismo, não se aceita que permaneça fazendo sua digestão na poltrona,
apenas.
Brecht também é contra Aristóteles; não busca um público satisfeito, em paz.
Quer que seja agressivo, conscientizado.
Hoje o prazer fundamental como conceito estético é negado. [No século 18]
Kant defendia o mesmo princípio aristotélico, defendia o belo, em arte, como
provocador de um prazer desinteressado; ou seja: ao vermos uma natureza-
morta, não desejaríamos comer o pato assado ou as frutas; tão somente
experimentar o prazer estético, sem nenhum outro interesse.
A arte atual não procura mais esse prazer desinteressado; se há prazer, que
ele seja interessado, isto é, que leve a impulsos, a ações. Há uma total quebra
da tradição.”
(ROSENFELD, A. A Arte do Teatro: aulas de Anatol Rosenfeld (1968) /
registradas por Neusa Martins. Pags 49 e 50)

Você também pode gostar