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TCC Final Mesmo
TCC Final Mesmo
Abstract: Socio-education, in the face of increasing crime among young people in the
Brazilian context, has established itself as an essential measure for the resocialization of
individuals in conflict with the law. However, one of the great paradoxes of these public
policies lies in the high rates of recidivism of young people in infringing acts. The main
objective of this article is to delve into these paradoxes, seeking to understand how the socio-
institutional processes, in which these young people are entangled, produce social suffering.
The analysis of social suffering will be carried out through sociological studies,
ethnographies, and rap music, which portray the daily lives of young people in the periphery
and the violence to which they are subjected. The choice to focus on the dimensions of social
suffering is important to demonstrate how socio-educational measures directly impact the
lives of these individuals. It highlights the need to understand this phenomenon and its
complex social dynamics, as individuals in conflict with the law suffer from the stigma of
“bandits”, being separated from society. This study seeks to unravel the nuances of
segregation in contemporary urban society, pointing to the way public policies feed back such
violence.
Keywords: youth in conflict with the law; crime; outskirts; segregation; social suffering.
1 Artigo produzido como requisito para conclusão da disciplina de TCC, do curso de Licenciatura em Ciências
Sociais da UNIOESTE, sob orientação da Profa. Dra. Mariana Medina Martinez
1
1. Introdução
2
focadas somente na punição e violência simbólica, mas também na ressocialização e
reintegração dos jovens em meio social.
Para a análise do sofrimento social dos jovens em cumprimento de medidas
socioeducativas, foram utilizados como materiais de pesquisa estudos sociológicos que
abrangem aspectos socioeconômicos, educacionais e políticas públicas. Além da análise de
etnografias realizadas a partir do cotidiano dos jovens em conflito com a lei, para um
embasamento teórico mais sólido e uma compreensão mais profunda dos sentimentos. A
partir destes, buscou-se atentar para os sentimentos expressos nos relatos de campo,
relacionados ao sofrimento social.
Também foram utilizadas músicas de rap dos Racionais MC 's como material de
análise, uma vez que suas produções retratam o cotidiano dos jovens na periferia, ao mesmo
tempo em que trazem uma análise sociocultural de grande importância, permitindo
compreender a dinâmica da sociabilidade violenta e periférica.
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apenas ao aspecto social, também são vistas no espaço físico, onde as cidades, vistas antes
como meios de oportunidades e crescimento, tornam-se palco de uma realidade que segrega
populações.
As expressões da segregação em comunidades periféricas são estudadas em mais
profundidade por Feltran (2008). Ao analisar os processos de exclusão de moradores de uma
periferia paulista, Feltran propõe o conceito “Fronteiras”, para compreender os processos
simbólicos e materiais da segregação de populações marginalizadas e suas apartações do
mundo público.2 As fronteiras são uma forma de demarcação e regulação e são marcadas,
principalmente, por tensões e conflitos, conforme explicita no trecho a seguir:
2 Gabriel Feltran, em “Fronteiras de Tensão” (2008), apresenta um estudo etnográfico realizado entre os anos de
2005 e 2007, na periferia de Sapopemba, Zona Leste da cidade de São Paulo.
4
comum, de que é preciso isolar-se das “classes perigosas”, demarcando as fronteiras
entre favelas e periferias e o mundo social habitável” (Feltran, 2008, p. 30).
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Em síntese, a segregação socioespacial – geradora de desigualdades no acesso à
direitos –, a violência da multiplicação imaginária constante – que estigmatiza todos os
indivíduos nas periferias –, o lapso no auxílio público e as influências causadas pela expansão
do mundo do crime, são consolidadas como constantes banais no cotidiano dos indivíduos e
contribuem para que jovens se vejam presos em contextos de conflitos e marginalização, sem
a possibilidade de saída.
Outrossim, coeficientes relacionados à exacerbada repressão policial, o lapso da
aplicabilidade das medidas socioeducativas e o constante sofrimento social, – assuntos
tratados à frente neste artigo – decidem o futuro de jovens infratores à medida que esses
optam pelo mundo do crime pela falta de oportunidades e busca por prestígio.
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Segundo o SINASE (2006), é visto como essencial que os jovens se tornem alvos de
iniciativas socioeducativas, com objetivo de potencializar a sua formação como cidadãos
autônomos e solidários. Para tal, é necessário capacitar esses indivíduos para estabelecerem
relações mais saudáveis consigo mesmos, com os outros e com o ambiente onde estão
inseridos, ao mesmo tempo que recebem orientações que servirão para evitar a reincidência e
comportamentos infracionais. Conclui-se que é de suma importância que esses jovens
infratores desenvolvam a habilidade de tomar decisões e analisar situações de forma legítima
na lei, tanto em termos de interesse pessoal, quanto de bem-estar coletivo. Esse processo
permite que ampliem suas competências pessoais, interpessoais, cognitivas e produtivas.
As medidas socioeducativas estão previstas no art. 112 a 114 do Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), e são aplicadas para jovens e adolescentes infratores entre 12 e 18
anos. O ECA compreende como necessário, após um ato infracional cometido por um
indivíduo dentro dessa faixa etária, o cumprimento de uma das seis medidas previstas no
Estatuto. A aplicação da medida é feita pelo Juiz da Vara da Infância e Juventude, e leva em
consideração a gravidade do ato infracional, o contexto pessoal do adolescente e a sua
capacidade de cumprir a medida a ser imposta. São elas:
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sofrimento, que resultam em tentativas de resistência ao sistema e, consequentemente, falhas
nos processos de ressocialização.
Apesar da introdução da socioeducação com a implementação das medidas
socioeducativas, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na lei 8.069/1990, apresentou
uma abordagem conceitualmente abstrata sobre o tema. Antônio Gomes da Costa
desempenhou um papel crucial ao centralizar informações sobre o assunto. Para Costa (2006),
o objetivo da socioeducação no Brasil é a preparação dos jovens para a sociedade, pois,
(...) assim como existe educação geral e educação profissional, deve existir
socioeducação no Brasil, cujo objetivo é preparar os jovens para o convívio social
sem quebrar as regras de convivência consideradas como crime ou contravenção no
Código Penal de Adultos.” (Costa, 2006, p. 57)
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ambiente hostil, que reforça sua marginalização em vez de combatê-la, dificultando assim sua
ressocialização.
Torna-se imperativo repensar as estratégias empregadas nos processos das medidas
socioeducativas, de modo que estas possam verdadeiramente constituir meios coesos de
ressocialização, respeitando a singularidade dos jovens e contemplando todos os aspectos que
os conduziram ao sistema de Justiça juvenil. O uso excessivo de práticas punitivas e a
perpetuação do ciclo de violência, podem ser caráter utilizados para reforçar a subalternidade
de jovens em conflitos com a lei, consequentemente dificultando sua reintegração social, o
que aumenta as chances de reincidência. Conforme salientado por Barbosa (2020), a
socioeducação não comporta a punição se forem consideradas prioritárias as práticas
pedagógicas.
Para tratar sobre a relação dos jovens com a justiça e o sistema carcerário, Silveira e
Pinel (2019), introduzem a “lei do mais forte”, presente em instituições socioeducativas do
Brasil as quais uma lei formal não é regida, e sim a formação de um processo de coerção e
poder do mais forte. Essa lei é aderida aqueles que estão em uma posição de legitimar a
violência. Portanto, a relação entre o indivíduo que cometeu o ato infracional e os agentes
cumpridores da justiça e das medidas socioeducativas, pode trazer um sentimento de opressão
por parte do jovem, por este ser obrigado a cumprir regras, ter comportamentos cravados na
obediência e ser mais um número no meio de tantos outros, resumido apenas pelo seu ato
infracional.
Aliadas às práticas de segregação socioespacial, a constante violência e opressão dos
jovens, a falha na estrutura das medidas socioeducativas permite compreendermos os
sofrimentos sociais sofridos pelos jovens em conflito com a lei. Buscaremos, portanto,
compreender como o sofrimento torna-se um fator determinante para a ressocialização, bem
como os motivos que incentivam esses jovens a permanecerem na ilegalidade.
4. Sofrimento social
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que pode ser observado tanto em nível individual quanto coletivo, originando-se em contextos
de fragilidade e precariedade social (Werlang e Mendes, 2013).
Na esfera individual, Dejours (1998) examina o sofrimento no contexto laboral e na
rotina dos trabalhadores, destacando que as grandes corporações desempenham um papel
crucial na redução da qualidade de vida ao promoverem condições precárias de trabalho.
Nesse cenário, os trabalhadores enfrentam riscos à sua saúde física e mental (Dejours 1998,
apud Werlang et al., 2013, p. 745). Assim, considerando as exigências diárias do trabalho, as
pressões corporativas e as inevitáveis frustrações decorrentes da quebra de expectativas no
ambiente corporativo, o indivíduo é submetido ao sofrimento.
No âmbito coletivo, o sofrimento social emerge em meio a condições precárias de
vida. Grupos ou comunidades que enfrentam a marginalização e a pobreza, historicamente
segregados dos demais membros da sociedade, experimentam um sofrimento social à medida
que as circunstâncias do dia a dia os conduzem a esse estado. Essa percepção é contemplada
dentro dos contextos de exclusão social, violência e desigualdade.
Bourdieu (2014) apresenta o conceito de violência simbólica, descrevendo-a como um
instrumento para exercer poder por meio de meios simbólicos. Esta forma de violência diz
respeito à maneira pela qual as estruturas sociais de desigualdade e as relações de poder são
capazes de provocar sofrimento, derivado da exclusão e marginalização.
Veena Das, antropóloga indiana, em suas obras, “Social Suffering” (1997) – uma
colaboração com Arthur Kleinman e Margaret Lock – e “Life and Words: Violence and the
Descent Into the Ordinary” (2006), aborda o sofrimento social dentro do contexto da
violência, argumentando que este não é apenas uma experiência individual, mas também
moldado por fatores sociais e culturais. Ela destaca que a violência, e consequentemente o
sofrimento, manifesta-se em assassinatos, ameaças, violações de normas e na visibilidade dos
corpos mortos nas ruas (Parreiras e Lacerda, 2021). Kleinman (1997) complementa o
pensamento de Veena Das, ao sugerir que o sofrimento social engloba experiências de dor,
trauma e distúrbios, estabelecendo conexões com questões morais, de saúde, de justiça, entre
outros. Dessa forma, o sofrimento social é caracterizado como um problema de experiência
social, presente no cotidiano dos indivíduos (Kleinnman, 1997 apud Carvalho, 2008).
Nessa perspectiva, Parreiras e Lacerda, baseados na obra de Das e Nandy (1985),
esclarecem que a análise antropológica do sofrimento deve seguir os processos políticos para
a compreensão de sua dimensão na experiência de sujeitos, conforme mostra o trecho a
seguir:
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A violência não deve ser definida a partir de sua incidência, de suas supostas
causas e consequências, tampouco a partir de tipologias, mas como
experiência relacionada a processos políticos, atravessada por noções de
família e de parentesco, e pela forma como as pessoas utilizam a linguagem
para expressar dor e sofrimento. (Das e Nandy 1985, apud Parreiras e
Lacerda, 2012, p. 01)
Seguindo a proposta deste campo de debate, a seguir faremos uma análise dos
sentimentos expostos pelos jovens em medidas socioeducativas, a partir da leitura de
etnografias com jovens em conflito com a lei, na tentativa de compreender os processos
políticos que atravessam a experiência do sofrimento social desses jovens.
O “estigma” por Goffman, (1988), pode ser entendido como uma situação em que um
indivíduo não é apto para a aceitação social. Configurado como uma característica
depreciativa, o estigma distingue um indivíduo dos demais membros de uma categoria
socialmente aceita, afetando a forma com que este é percebido e tratado em sociedade,
podendo resultar em discriminação e segregação.
No contexto dos jovens infratores, a etiqueta de “ex-criminoso”, após o cumprimento
da medida socioeducativa, definirá a percepção da sociedade sobre o indivíduo. O estigma se
manifestará de diferentes maneiras, como a exclusão social, a discriminação e a perpetuação
da desigualdade, resultando em um ciclo contínuo de violência e possível perpetuação da
criminalidade.
O verso abaixo é um recorte da música "Homem na Estrada" (1993), dos Racionais
MC´s. Suas vozes permitem analisarmos, no âmbito sociológico e antropológico, as relações
de poder e as vulnerabilidades das margens. Nela, é narrada a trajetória de um ex-presidiário
que retoma sua liberdade e retorna à sua casa, numa comunidade periférica e violenta de São
Paulo:
Assaltos na redondeza levantaram suspeitas
Logo acusaram a favela, para variar
E o boato que corre é que esse homem está
Com o seu nome lá
Na lista dos suspeitos
Pregada na parede do bar
A noite chega e o clima estranho no ar
E ele sem desconfiar de nada, vai dormir tranquilamente
Mas na calada, caguetaram seus antecedentes
Como se fosse uma doença incurável
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crimes foi anotado ao lado de seus nomes. Nessa lógica, Malvasi ainda sugere que, ainda que
os jovens finalizem suas medidas socioeducativas, a categoria "bandido" será uma realidade
constante, não importando suas ações ou omissões (2011).
Ainda na etnografia de Malvasi (2011), Elias, o jovem em medida socioeducativa,
expressa a sua indignação a respeito do estigma: “Eu nasci aqui na favela, eles nunca vão me
dar um ‘boi’”.4 Perguntei-lhe: “Eles quem?”, “A sociedade”, ele respondeu. (Malvasi, 2011,
p. 13).
Ainda na obra dos Racionais MC’s, uma nova parte da música “Homem na Estrada”
(1993), reflete que, no espaço habitado pelo personagem da canção, não existe a necessidade
de culpabilização para a punição, já que um ex-presidiário já foi sentenciado pela sociedade:
(grifos nossos)
O Homem na Estrada critica a maneira brutal com que a polícia adentra a sua casa,
agindo com violência e banalizando a existência humana. Em destaque no trecho, os policiais
já sentenciaram o seu caminho, ele compreende que de nada adianta a oposição às regras, pois
seu histórico criminal, sua cor e sua moradia são marcações automáticas para a sua morte.
Assim, a estigmatização surge como uma base central para a compreensão do
sofrimento social dos jovens em conflito com a lei. Esta estigmatização, ao moldar a posição
de indivíduos no meio social, origina uma nova forma de segregação social. Na realidade
onde ex-detentos buscam por uma ressocialização digna e anseiam acesso a bens materiais,
tais direitos e oportunidades não são acessíveis para indivíduos que se encontram presentes
em contextos de subalternidade. A luta por uma vida melhor é, portanto, constantemente
impedida pelo estigma de ser um 'ex-presidiário'.
No mundo do crime, o jovem é visto como uma figura de influência, poder e prestígio.
Após ser flagrado no ato infracional e obrigado a cumprir uma medida socioeducativa, esse
mesmo jovem se vê no enfrentamento da realidade do “zé”, que ele busca evitar. Esse é o
mundo das pessoas comuns, que não ostentam marcas de luxo e não dirigem os carros mais
caros. Para ele, a transição pode ser vista como uma derrota, pois o ambiente em que passou a
ser inserido não corresponde às suas aspirações de vida.
Ainda sobre o prestígio do crime:
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O importante entre os pares é ser reconhecido como o “grande bandido”, o
que proporciona um sinal de respeitabilidade, virilidade e poder. Ser um
bandido confere status. O ladrão, pelo poder da ereção fálica, sustenta os
ideais narcísicos das comunidades pobres. Concede acesso ao que tem valor,
ao que até então estava vedado: dinheiro, carros, motos, roupas bonitas e a
sedução de algumas mulheres inacessíveis (Silveira et al. 2019, p. 251)
Com base em estudos de Manso e Almeida (2009), Fialho (2012) argumenta que o ato
infracional cometido por jovens é motivado pela “situação de precariedade econômica dos
indivíduos, tendo por base a tentativa de responder a necessidades prioritárias como a
alimentação, à educação ou à habitação”. (Manso et al. 2009, apud Fialho, 2012, p. 275).
Portanto, apesar da constante busca pela ostentação, jovens também optam pela
criminalidade para prover a casa. Destaca-se, no trabalho etnográfico de Fialho (2012), a
trajetória de Paulo, que era o meio de sustento de sua casa, por meio do dinheiro do roubo e
de Pedro, que usava do dinheiro do crime para prover alimentos, gás e auxiliar nas contas de
sua família.
Os estudos etnográficos de Feltran (2008) apresentam a trajetória de Ivete, envolvida
no mundo do crime, junto à sua família. “Do crime, a família obtém sua renda e “os filhos “do
crime”, trazem mais dinheiro para a casa do que os filhos “trabalhadores”, e a família “não
passa necessidade” graças a eles.” (Feltran, 2008, p. 173).
Dessa forma, as medidas socioeducativas enfrentam uma grande dificuldade, ao
analisarmos que a ressocialização não garante qualidade de vida e nem condições sociais. Ao
forçar indivíduos a saírem de uma situação que antes viam como ideal – com o prestígio do
crime e a sensação de poder pelo dinheiro ganho –, estes sofrem com um sentimento de
derrota. Ao ressocializar, não existe mais a ostentação, as roupas de marca e a liberdade
adquirida pelo poder, muito menos a qualidade de vida ostensiva, capaz de suprir gastos sem
dificuldades.
O que pode explicar as grandes taxas de reincidências tratando-se de jovens em
conflitos com a lei. Segundo um estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, entre
2015 e 2019, cerca de 23,9% dos jovens em medida socioeducativa retornaram ao sistema
pelo menos uma vez. A seguir, entenderemos como a reincidência juvenil está relacionada
com a aplicabilidade falha das medidas socioeducativas, bem como a realidade do crime cria
um sentimento vergonhoso para os jovens em conflito com a lei.
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O sentimento vergonhoso, por sua vez, surge quando colocada em cena, dentre outros
elementos, a narrativa familiar, como ilustrado na etnografia de Malvasi (2008), sobre o
sofrimento de Elias em relação à sua família:
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encorajando a retornar ao mundo do crime, como demonstrado na etnografia de Malvasi: “No
momento em que me disse que iria continuar traficando, Elias se auto justificou. Disse que
sua mãe nunca teve nada e que ele nunca teria uma oportunidade.” (Malvasi, 2011, p. 169)
A falta das oportunidades, citadas por Elias, referem-se ao estigma dos jovens
infratores, reforçando as implicâncias dos Racionais MC 's, quando sugerem que, uma vez
que você adentrar ao sistema de justiça, “te chamarão para sempre de ex-presidiário”.
Os jovens em conflitos com a lei, expressam os seus sentimentos de ressentimento e
angústia através de performances e narrativas de sofrimento. Os programas socioeducativos,
por sua vez, não legitimam essas expressões como indicativas de conflitos sociais, optando
por uma interpretação estritamente normativa e padronizada judicialmente para explicar atos
infracionais, e essa abordagem torna difícil de compreender o que está além do indivíduo que
comete um crime, ignorando as experiências cotidianas dos jovens, especialmente os pobres.
Ao serem rejeitados pela sociedade e abraçados pelo crime, é evidente que os
adolescentes recaiam. Ademais, a constante interferência violenta dos meios institucionais,
que, em lugar de oferecer proteção e possibilidades de novos projetos de vidas, reforçam
ainda mais os estigmas que esses jovens carregam. É este ciclo perpétuo de violências, sejam
elas simbólicas, físicas ou morais contra esses jovens periféricos, que explicam os paradoxos
e os limites das medidas socioeducativas.
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Feltran (2008), em sua etnografia nas periferias paulistas, observou diferentes
situações nas quais a força policial foi empregada de maneira exacerbada, tanto nos casos em
que se tornavam necessárias medidas de “operações policiais pontuais” quanto em operações
maiores para enfrentar as chamadas “crises públicas”. Todavia, sua análise de campo o
permitiu observar a seletividade da violência, a partir do estereótipo jovem preto periférico.
A violência sendo legitimada pela lei, reforça a possibilidade das classes médias e a
elite dominante tratarem como justificável o assassinato de pessoas em ações policiais. “O
noticiário sempre faz questão de dizer, na contabilidade dos mortos em chacinas e ações
policiais, quantos entre eles tinham antecedentes criminais, o que aparece como argumento de
legitimação” (Feltran, 2008, p. 323). E, apesar dessa legitimação da violência como um meio
de conquista à ordem social, as atitudes policiais somente reforçam que pretos e favelados são
indivíduos “marcados para morrer”. Não precisam diretamente do envolvimento na
ilegalidade, pois somente a cor de sua pele e sua condição socioeconômica são suficientes
para torná-los sujeitos propensos à morte.
Além da ideia apresentada na seção 2, sobre a expansão do mundo do crime estar
relacionada com a ideia de que todos os indivíduos segregados são vistos como “bandidos”,
por conta do que Feltran (2008) chama de multiplicação imaginária, nessas operações
policiais mais extensivas, “passaram a estar na mira todos os que portavam em seu corpo
sinais que os identificassem como “bandidos”, ou seja, naquele momento, todos os jovens das
periferias” (Feltran, 2008, p. 330).
Pobres, pretos e favelados encontram-se submetidos a um contexto de segregação
social produzido, sobretudo pelas instituições estatais. O Estado tem sua presença demarcada
em demasia quanto à atuação violenta.
Segundo Wacquant (2003), a marginalização socioeconômica e a estigmatização racial
se juntam para produzir métodos de execução para um fenômeno que ele chama de
“hipergueto”, um espaço onde o Estado exerce seu poder de forma desproporcional e muitas
vezes violenta. Wacquant argumenta que o Estado, que deveria prover o acesso à serviços e
oportunidades sociais e econômicas, se faz presente, na realidade das favelas, através de
mecanismos de controle e repressão, como a polícia e o sistema de justiça criminal, resultando
21
em uma presença estatal exacerbada, mas de uma forma que perpetua a marginalização e a
exclusão em vez de impedi-las.
No Brasil, essa ideia está relacionada com a forma que as instituições estatais reforçam
a segregação de indivíduos, em que a cor da pele e a classe social são fatores determinantes
para justificar ações violentas. Dessa forma, tornam-se reprodutores assíduos de práticas
segregadoras que são evidenciadas nos lapsos da Justiça criminal e nas operações policiais.
Alguns índices realizados pelo IPEA são capazes de demonstrar essas ações.
No contexto da população em geral, conforme atestam dados do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA, 2023), os afrodescendentes (pretos e pardos) emergem como as
principais vítimas de homicídios, representando 76% dos casos entre os homens e 66% entre
as mulheres. Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), em 2020, no estado do Rio de
Janeiro, 75% dos mortos em confronto com agentes do estado (policiais, bombeiros, agentes
do sistema penitenciário) eram negros, sendo 10% das vítimas menores de 18 anos.
A realidade da morte é retratada pelos Racionais MC’s na música “Fórmula mágica da
paz” (1994):
2 de novembro era finados, eu parei em frente ao
São Luís do outro lado
E durante uma meia hora olhei um por um e o que
todas as senhoras tinham em comum: a roupa humilde, a
pele escura, o rosto abatido pela
Vida dura
Colocando flores sobre a sepultura("podia ser a
minha mãe") Que loucura
(grifos nossos)
22
Humanos, e exacerbadamente ostensivas quando observam como necessário o uso da
violência nos indivíduos que eles próprios marginalizam.
Diante dos fatos, evidencia-se como a presença do Estado nas favelas brasileiras não
está alinhada a uma força de apoio e proteção, e sim configura-se como um instrumento de
opressão e marginalização. A desproporcionalidade da violência estatal, especialmente contra
pobres, pretos e periféricos, é um reflexo de uma sociedade que ainda luta, na tentativa de
superar barreiras da desigualdade e segregação socioespacial e econômica.
Ademais, a ineficácia das medidas socioeducativas contribui para a continuação de um
ciclo de violência interminável. A segregação socioespacial, que leva jovens ao mundo do
crime e os emerge em uma tentativa de prestígio social e econômico, que não conseguem
adquirir pela interferência violenta do Estado, é reforçada por um sistema que não oferece
oportunidades reais de reintegração. Em vez de uma base sólida para a ressocialização, as
medidas adotadas resultam em reincidência, pois os jovens são devolvidos constantemente ao
ambiente que os levou para o crime em primeiro lugar.
As estatísticas do IPEA e do ISP são um lembrete de que a justiça não será cumprida
enquanto as abordagens não forem mudadas. O Estado não toma medidas concretas que
garantam a segurança e bem-estar de todos os indivíduos independentemente de seu status
socioeconômico e sua cor de pele.
Compreendemos, portanto, a forma que a política penal está voltada para um conjunto
social específico, que tange em termos de carências econômicas e sociais. Maesima e Gomes
(2022) problematizam o termo “adolescente em conflito com a lei”, criando o questionamento
se não é, na verdade, a lei em conflito com o adolescente. Estes estão inseridos em um
histórico de vulnerabilidade social, violência e violações dos direitos humanos, e são
pouquíssimos acompanhados pelo Estado, que falha no papel de cumpridor de acesso aos
direitos básicos do ser humano, tais como alimentação, moradia, saúde etc.
Achille Mbembe (2003) mostra como o conceito de necropolítica apresenta-se como
uma dinâmica de poder que confere a certos grupos a decisão de vida e morte de outros. Essa
política de morte é empregada para o extermínio de grupos marginalizados, seja através da
morte física ou da exclusão social, política e psicológica.
Na direção dessa análise estrutural sobre a violência de Estado, para os jovens em
conflito com a lei, a necropolítica está manifestada na forma segregadora e marginal que esses
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são considerados pela sociedade, principalmente quando são levados em consideração as suas
condições de pobreza, o ambiente onde vive e sua identidade étnico-racial. A marginalização
em demasia de um grupo já historicamente oprimido dificulta o processo socioeducativo,
gerando um sentimento de injustiça que reverbera em todas as áreas sociais do contexto
periférico.
Entretanto, as instituições encarregadas das medidas socioeducativas muitas vezes
agravam os traumas desses jovens, reforçando a estigmatização e priorizando abordagens
punitivas que perpetuam a violência. Isso leva o adolescente a ver a instituição como uma
extensão da sociedade desigual e precária em que vive.
A necropolítica vai além de decidir quem vive ou morre, também segrega os
indivíduos marginalizados daqueles considerados merecedores de direitos e oportunidades.
Embora os jovens em conflito com a lei sejam frequentemente rotulados como perigosos e
marginais, é crucial considerar os fatores que os colocam nessa posição. É essencial
reconhecer que “o perigo que esses adolescentes representam para a sociedade não se
equipara ao perigo ao qual eles próprios estão sujeitos devido às suas condições de
vulnerabilidade e exclusão social” (Silveira et al., 2019, p. 252).
O encarceramento em massa de jovens negros e periféricos é uma manifestação
necropolítica. Na perspectiva de Wacquant (1999), o encarceramento da população pobre e
preta representa uma arma de dominação capitalista. As sociedades contemporâneas, em troca
de investigar as causas subjacentes da pobreza e da marginalização, utilizam do sistema penal
como forma de gerenciamento e controle social, marginalizando ainda mais populações
pobres. A marginalização resultante do encarceramento em massa cria um ciclo de pobreza,
perpetua a criminalidade e mantém o ciclo de violência, conforme buscamos mostrar ao longo
deste artigo.
Esse ciclo é evidente no caso dos jovens negros e periféricos em conflitos com a lei, a
considerar que estes são frequentemente segregados e estigmatizados, vistos como ameaças à
ordem social. São jovens em condições de desigualdade social e segregação socioespacial,
com a ostensiva presença da violência em seu convívio. Em vez do apoio institucional, são
encarcerados para melhor controle social. Isso destaca a necessidade de abordagens mais
humanas e inclusivas para lidar com a juventude em risco, em vez de simplesmente recorrer
ao sistema penal (Wacquant, 1999).
Na exploração das políticas de segurança pública e reabilitação social, é preciso
enfatizar o impacto significativo destas na vida dos jovens em cumprimento de medidas
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socioeducativas. O sofrimento social, uma manifestação emocional dos jovens, serve como
parâmetro de identificação da influência dessas políticas em suas vidas. A constante
repressão, o estigma e segregação, exemplificam como o processo de ressocialização torna-se
um desafio para as sociedades periféricas, à medida que a marginalização constante cria
barreiras para a reintegração. Considerando um ciclo de violência que reproduz ações
punitivas, resultando em um sofrimento social disseminado, a necessidade do estudo das
emoções permite compreender os limites e desafios que essas políticas enfrentam, para uma
maior efetividade na reformulação de um processo socioeducativo voltado para estratégias de
inclusão social, focadas na educação e não na punição.
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