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Jovens em conflitos com a lei e ressocialização: uma análise do

sofrimento social no processo de cumprimento de medidas


socioeducativas
Diane Cristina Faustino1

Resumo: A socioeducação, diante do aumento da criminalidade entre jovens no contexto


brasileiro, consolidou-se como uma medida essencial para a ressocialização de sujeitos em
conflito com a lei. Entretanto, um dos grandes paradoxos dessas políticas públicas reside nos
altos índices de reincidência de jovens nos atos infracionais. O principal objetivo deste artigo
é debruçar-se sobre tais paradoxos, buscando entender como os processos socioinstitucionais,
nos quais esses jovens são enredados, produzem sofrimento social. A análise do sofrimento
social será realizada através de estudos sociológicos, etnografias e músicas de rap, que
retratam o cotidiano dos jovens na periferia e as violências as quais são submetidos. A opção
por focar nas dimensões do sofrimento social é importante para demonstrar o modo como as
medidas socioeducativas impactam diretamente na vida destes sujeitos. Destaca-se a
necessidade de compreensão deste fenômeno e a sua complexa dinâmica social, uma vez que
os indivíduos em conflito com a lei sofrem com o estigma de “bandidos”, sendo apartados da
sociedade. Este estudo busca desvendar as nuances da segregação na sociedade urbana
contemporânea, apontando para o modo como as políticas públicas retroalimentam tais
violências.

Palavras-chave: jovens em conflitos com a lei; criminalidade; periferias; segregação;


sofrimento social.

Abstract: Socio-education, in the face of increasing crime among young people in the
Brazilian context, has established itself as an essential measure for the resocialization of
individuals in conflict with the law. However, one of the great paradoxes of these public
policies lies in the high rates of recidivism of young people in infringing acts. The main
objective of this article is to delve into these paradoxes, seeking to understand how the socio-
institutional processes, in which these young people are entangled, produce social suffering.
The analysis of social suffering will be carried out through sociological studies,
ethnographies, and rap music, which portray the daily lives of young people in the periphery
and the violence to which they are subjected. The choice to focus on the dimensions of social
suffering is important to demonstrate how socio-educational measures directly impact the
lives of these individuals. It highlights the need to understand this phenomenon and its
complex social dynamics, as individuals in conflict with the law suffer from the stigma of
“bandits”, being separated from society. This study seeks to unravel the nuances of
segregation in contemporary urban society, pointing to the way public policies feed back such
violence.

Keywords: youth in conflict with the law; crime; outskirts; segregation; social suffering.

1 Artigo produzido como requisito para conclusão da disciplina de TCC, do curso de Licenciatura em Ciências
Sociais da UNIOESTE, sob orientação da Profa. Dra. Mariana Medina Martinez
1
1. Introdução

No presente artigo, abordaremos a socioeducação como medida essencial para o


processo de ressocialização de jovens em conflito com a lei. Buscamos entender como o
processo de socioeducação impacta o sofrimento social na vida de jovens envolvidos
diretamente com a lei e a justiça.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei 8.069/90,
compreende-se como jovem em conflito com a lei o indivíduo entre 12 e 18 anos que cometeu
algum ato infracional, e sugere comportamentos correspondentes a crimes ou contravenções,
previstos no sistema jurídico. Esses atos infracionais podem variar de natureza: pequenos
furtos, envolvimentos com crime organizado, tráfico de drogas, assaltos etc. Embora a
aplicação de medidas socioeducativas esteja integrada a uma rede intersetorial, envolvendo as
esferas municipais, estaduais e federais, um dos grandes paradoxos dessas políticas públicas
reside justamente nos altos índices de reincidência nos atos infracionais.
De acordo com estudos de Souza e Lima (2010), a reincidência nos atos infracionais
envolve fatores psicológicos, sociais e econômicos. A falta de estrutura e acompanhamento
adequado também são vistos como responsáveis pelo índice significativo de reincidências,
segundo pesquisas de Oliveira e Costa (2012), além da falta de políticas públicas, programas
de acompanhamento e a ineficácia das políticas de reinserção social, para Castro e Souza
(2014).
Esta pesquisa, portanto, tem como principal objetivo debruçar-se sobre tais paradoxos,
buscando entender como processos socioinstitucionais, nos quais esses jovens são enredados,
produzem sofrimento social. Trata-se, portanto, da necessidade de entender as experiências
desses jovens dentro do sistema e identificar os motivos que contribuem para o seu
sofrimento, explorando possíveis estratégias de intervenção. A opção por focar nas dimensões
do sofrimento social é importante para demonstrar o modo como as medidas socioeducativas
impactam diretamente na vida destes sujeitos. Analisaremos, portanto, o sofrimento social
para explicar as lacunas e desafios enfrentados no processo de ressocialização.
O tema torna-se importante pela necessidade de compreensão de que jovens em
conflito com a lei são vistos como marginais e sofrem estigmas, mas são indivíduos que estão
envolvidos em contextos de sofrimento. Compreender o sofrimento social vivenciado por
esses jovens permite que sejam criadas medidas e políticas mais efetivas de intervenção, não

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focadas somente na punição e violência simbólica, mas também na ressocialização e
reintegração dos jovens em meio social.
Para a análise do sofrimento social dos jovens em cumprimento de medidas
socioeducativas, foram utilizados como materiais de pesquisa estudos sociológicos que
abrangem aspectos socioeconômicos, educacionais e políticas públicas. Além da análise de
etnografias realizadas a partir do cotidiano dos jovens em conflito com a lei, para um
embasamento teórico mais sólido e uma compreensão mais profunda dos sentimentos. A
partir destes, buscou-se atentar para os sentimentos expressos nos relatos de campo,
relacionados ao sofrimento social.
Também foram utilizadas músicas de rap dos Racionais MC 's como material de
análise, uma vez que suas produções retratam o cotidiano dos jovens na periferia, ao mesmo
tempo em que trazem uma análise sociocultural de grande importância, permitindo
compreender a dinâmica da sociabilidade violenta e periférica.

2. A segregação socioespacial na criminalidade juvenil: uma análise


socioeconômica no contexto brasileiro

Antes da abordagem das medidas socioeducativas, é fundamental se debruçar sobre o


processo de segregação socioespacial vivenciado pela maioria absoluta dos jovens em
conflitos com a lei. Essa compreensão é crucial para identificar os processos estruturais de
exclusão aos quais esses sujeitos estão submetidos. De acordo com as informações divulgadas
pelo levantamento de dados sobre a Política Nacional de Atendimento Socioeducativo
(BRASIL, 2023), cerca de 19,1% dos jovens infratores provêm de famílias com renda de até
um salário-mínimo, enquanto 22% têm renda familiar de até três salários-mínimos. O restante
das famílias está envolvido em atividades informais de trabalho, ou não há informações
disponíveis sobre suas fontes de renda. Esses dados comprovam que a renda e a classe social
são elementos cruciais para compreender as lacunas nos processos das medidas
socioeducativas.
Embora a Constituição Federal do Brasil discorra sobre a garantia de direitos sociais a
todos os cidadãos brasileiros, o acesso aos recursos vitais para a sobrevivência humana não é
um direito social garantido (Azevedo, 2012), uma situação agravada pela marginalização e
segregação socioespacial, resultando em comunidades inteiras privadas de recursos e direitos
básicos. Sobre a desigualdade e exclusão social, Azevedo (2012) traça um paralelo com a
segregação socioespacial: a carência no acesso a recursos vitais e a exclusão não se limitam

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apenas ao aspecto social, também são vistas no espaço físico, onde as cidades, vistas antes
como meios de oportunidades e crescimento, tornam-se palco de uma realidade que segrega
populações.
As expressões da segregação em comunidades periféricas são estudadas em mais
profundidade por Feltran (2008). Ao analisar os processos de exclusão de moradores de uma
periferia paulista, Feltran propõe o conceito “Fronteiras”, para compreender os processos
simbólicos e materiais da segregação de populações marginalizadas e suas apartações do
mundo público.2 As fronteiras são uma forma de demarcação e regulação e são marcadas,
principalmente, por tensões e conflitos, conforme explicita no trecho a seguir:

Ao pensar a relação entre as periferias urbanas e o mundo público, numa


sociedade muito hierárquica, é preciso imediatamente lidar com uma série de
polaridades: o descompasso entre a norma igualitária e a desigualdade social,
o paradoxo entre os modos de vida popular e sua figuração pública, a
contradição entre a lógica do direito e a repressão da polícia, a distância entre
a pretensão normativa de pluralismo e os bloqueios seletivos no acesso à
legitimidade pública. (FELTRAN, 2008, p. 25-26)

Seguindo a argumentação de Feltran, fronteiras exercem também um controle social, à


medida que “se estabelecem justamente para regular os canais de contato existentes entre
grupos sociais, separados por elas, mas que obrigatoriamente se relacionam” (Feltran, 2008, p.
27), elas são criadas dentro das próprias cidades, e não somente significam uma simbólica
demarcação de espaços físicos, mas uma regulação de interações sociais. Assim, a segregação
socioespacial não toma somente âmbitos geográficos, mas estende-se para questões de acesso
a oportunidades e recursos.
A demarcação simbólica da segregação, segundo Feltran (2008), se manifesta através
do medo, cada vez mais presente no senso comum, de que a favela representa a “classe
perigosa”. Com isso, constrói-se uma polaridade que marca profundamente a divisão social
urbana. Essa é dada pela distinção dos “cidadãos de bem” e dos “bandidos”, fortalecendo uma
rede de desigualdades e o absentismo das políticas públicas. Conforme Feltran destaca:

“A distinção entre “cidadãos de bem” e “bandidos” no debate sobre o desarmamento


civil, ou sobre os “ataques do PCC” (Primeiro Comando da Capital), a
criminalização dos “motoboys” e o medo que a favela produz na classe média são
sintomas de um mesmo fenômeno: a clareza, cada vez mais presente no senso

2 Gabriel Feltran, em “Fronteiras de Tensão” (2008), apresenta um estudo etnográfico realizado entre os anos de
2005 e 2007, na periferia de Sapopemba, Zona Leste da cidade de São Paulo.

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comum, de que é preciso isolar-se das “classes perigosas”, demarcando as fronteiras
entre favelas e periferias e o mundo social habitável” (Feltran, 2008, p. 30).

A constante política de apartação de “cidadãos” e “bandidos”, é demarcada pela


violência constante. Seja na perpetuação da desigualdade socioeconômica, pela
marginalização da pobreza ou pela influência criminal. Essas dimensões simbólicas da
segregação provocam exclusões estruturais no tecido social, abrem espaço para a violência se
tornar o elemento central das relações sociais e fortalecem a falta de visualização para uma
realidade inferior, o que é esclarecido por Feltran a partir de uma análise sobre política e
violência.
Para Feltran, as fronteiras: “são territórios em que coexistem soluções políticas e
saídas violentas.” (2008, p. 28), e ao mesmo tempo que a política é um meio de regulamentar
as fronteiras, é vista como um “jogo de conflitos desencadeados na conformação da cena
pública, em sua manutenção e transformação” (2008, p.25), enquanto a violência é parte do
ambiente periférico, presente em seu cotidiano, vista nas trajetórias pessoais, familiares e nas
ações coletivas.
Ambas explicam sobre as dinâmicas sociais das periferias, entretanto, se os sujeitos
estão apartados até mesmo da cena pública, o que se resta é somente a violência. Apesar da
violência já pautar o crime como uma realidade desde as primeiras estruturas de formação
dessas regiões, a inserção das práticas de crime organizado contribuiu para o aumento
criminal em diferentes regiões do Brasil.
Feltran (2008) em seu estudo de campo, analisou o crescente aumento de jovens e
adolescentes envolvidos ou na sociabilidade do crime, ou em práticas relacionadas à violência
– nas duas décadas analisadas. Esse fenômeno foi nomeado por ele como “expansão do
mundo do crime”.
Um dos fatores essenciais para a expansão do crime deu-se pela gestão social sendo
ordenada pelo crime organizado. A presença das organizações criminosas passou a ocupar um
lugar central na vida social das pessoas moradoras da periferia. Na experiência paulista, em
meados dos anos 2000, o Primeiro Comando da Capital (PCC), tomava a frente das periferias.
Desde o seu nascimento, nas penitenciárias brasileiras, reivindicando o combate às injustiças
e opressões à população em cárcere, até a sua expansão, os efeitos do PCC nas favelas
regulamentaram diversas políticas de gestão social, desde a permissão para festas nas
comunidades até códigos de conduta.
Os impactos do Primeiro Comando da Capital (PCC) nas comunidades resultaram na
diminuição de conflitos e das taxas de homicídio em bairros periféricos, conforme mostra
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Feltran (2008). Isso se deve, em parte, à adoção das condutas éticas do PCC, que foram
herdadas das organizações formadas dentro das prisões. A organização assumia a
responsabilidade de determinar quem deveria ser morto e trabalhava para evitar brigas entre
casais, familiares e até mesmo em bares. Além disso, o PCC passou a regular o tráfico de
drogas e lidar com questões relacionadas à morte por dívidas em decorrência das drogas, entre
outros, fatores que trouxeram notoriedade a esses grupos e respeito em meio ao medo
(Feltran, 2008).
Outro aspecto de análise relevante para a expansão do crime diz respeito às
ressignificações nas matrizes discursivas pelas novas gerações das periferias. Em relação à
formação de redes de interações sociais entre o lícito e o ilícito, iniciou-se uma reivindicação
de legitimidade com outros sistemas de organização social já estabelecidos, como trabalho,
religião e direitos, por exemplo. Dessa forma, o crime passa a ocupar espaço não apenas
como uma entidade isolada, mas integrado à família, à igreja e às demais instituições das
periferias paulistas, o que acaba influenciando a dinâmica das comunidades e suas relações
com o crime.
A consolidação do PCC também se deu no cenário do tráfico de drogas e nas
atividades de comércios ilegais e informais. Feltran compreendeu que isso ocorreu, em grande
parte, devido à sua expansão estratégica, pois o crime organizado não apenas consolidou-se
nos pontos de venda de drogas, mas também se infiltrou em vários elos da cadeia produtiva de
outros comércios ilícitos, o que contribuiu para sua ascensão e consolidação de poder.
(Feltran, 2008).
Outro fator relevante, ligado às políticas de violência e à segregação entre “bandidos”
e “cidadãos”, é o fenômeno da “multiplicação imaginária do criminoso nos discursos
públicos” (Feltran, 2008, p. 195). Essa “multiplicação imaginária” se dá quando a imagem do
criminoso é ampliada e repetida nos discursos públicos, por meio de uma complexa operação
de autolegitimação. Este procedimento contribui para a expansão da representação do infrator,
não se restringindo unicamente àqueles que perpetraram atos ilícitos, mas também
abrangendo os demais integrantes das periferias.
Como consequência, todos os jovens das periferias são frequentemente estigmatizados
como bandidos, e essa categorização se estende até suas famílias. Essa tendência reforça a
injusta criminalização desses grupos e perpetua a imagem do mundo do crime na mente
pública (Feltran, 2008).

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Em síntese, a segregação socioespacial – geradora de desigualdades no acesso à
direitos –, a violência da multiplicação imaginária constante – que estigmatiza todos os
indivíduos nas periferias –, o lapso no auxílio público e as influências causadas pela expansão
do mundo do crime, são consolidadas como constantes banais no cotidiano dos indivíduos e
contribuem para que jovens se vejam presos em contextos de conflitos e marginalização, sem
a possibilidade de saída.
Outrossim, coeficientes relacionados à exacerbada repressão policial, o lapso da
aplicabilidade das medidas socioeducativas e o constante sofrimento social, – assuntos
tratados à frente neste artigo – decidem o futuro de jovens infratores à medida que esses
optam pelo mundo do crime pela falta de oportunidades e busca por prestígio.

3. Socioeducação de jovens em conflito com a lei e seus paradoxos

Segundo os dados da Pesquisa Nacional de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto,


feita pelo Ministério do Desenvolvimento Social entre fevereiro e março de 2018, havia no
Brasil um total de 117.207 jovens e adolescentes cumprindo Medidas Socioeducativas de
Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade. O número é equivalente a cerca
de 82% das medidas socioeducativas aplicadas no país, seguidos pelos 28% restantes que são
referidas as medidas de semiliberdade e internação. Portanto, podemos observar que a política
penal voltada a jovens e adolescentes é focada no modelo socioeducativo de liberdade
assistida.
Conforme Brasil (2024), o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE) é uma política pública voltada para a promoção, proteção e defesa dos direitos
humanos e fundamentais de jovens e adolescentes em práticas de atos infracionais. Portanto, é
responsável direto pelos indivíduos em conflitos com a lei e em MSE. A Lei do Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo n.º 12.594, de 18 de janeiro de 2012, “regulamenta
a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato
infracional” (ECA, 2012). Ainda de acordo com o Estatuto,

Entende-se por Sinase o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios


que envolvem a execução de medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por
adesão, os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os
planos, políticas e programas específicos de atendimento a adolescente em
conflito com a lei. (Estatuto da Criança e do Adolescente, 2012)

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Segundo o SINASE (2006), é visto como essencial que os jovens se tornem alvos de
iniciativas socioeducativas, com objetivo de potencializar a sua formação como cidadãos
autônomos e solidários. Para tal, é necessário capacitar esses indivíduos para estabelecerem
relações mais saudáveis consigo mesmos, com os outros e com o ambiente onde estão
inseridos, ao mesmo tempo que recebem orientações que servirão para evitar a reincidência e
comportamentos infracionais. Conclui-se que é de suma importância que esses jovens
infratores desenvolvam a habilidade de tomar decisões e analisar situações de forma legítima
na lei, tanto em termos de interesse pessoal, quanto de bem-estar coletivo. Esse processo
permite que ampliem suas competências pessoais, interpessoais, cognitivas e produtivas.
As medidas socioeducativas estão previstas no art. 112 a 114 do Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), e são aplicadas para jovens e adolescentes infratores entre 12 e 18
anos. O ECA compreende como necessário, após um ato infracional cometido por um
indivíduo dentro dessa faixa etária, o cumprimento de uma das seis medidas previstas no
Estatuto. A aplicação da medida é feita pelo Juiz da Vara da Infância e Juventude, e leva em
consideração a gravidade do ato infracional, o contexto pessoal do adolescente e a sua
capacidade de cumprir a medida a ser imposta. São elas:

● A advertência (art. 115 do ECA), onde o jovem recebe apenas uma


advertência do Juiz, para que o ato infracional não se repita;
● A reparação de dano (art. 116 do ECA), caso o ato refira-se a danos a
patrimônios públicos;
● A prestação de serviço à comunidade (art. 117 do ECA);
● A Liberdade Assistida (art. 118 e 119 do ECA), a qual um agente do Estado
faz o acompanhamento do jovem por um período determinado, para a garantia da não-
reincidência;
● A Semiliberdade (art. 120 do ECA), que sugere que o jovem em ato
infracional seja alojado em uma instituição com restrição de liberdade durante a
semana, com a permissão de saídas para atividades de cunho educacional ou
convivência familiar aos fins de semana;
● A internação em estabelecimento educacional (art. 121 a 125 do ECA), uma
medida de privação da liberdade de prazo determinado. A última, aplicada para atos
infracionais tidos como graves.

As medidas socioeducativas vêm com uma proposta estratégica para a ressocialização


e visam integrar os indivíduos novamente na sociedade, bem como prevenir reincidências.
Contudo, como veremos a frente neste estudo, a maneira como essas medidas são
implementadas no contexto dos jovens em conflito com a lei, pode gerar sentimentos de

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sofrimento, que resultam em tentativas de resistência ao sistema e, consequentemente, falhas
nos processos de ressocialização.
Apesar da introdução da socioeducação com a implementação das medidas
socioeducativas, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na lei 8.069/1990, apresentou
uma abordagem conceitualmente abstrata sobre o tema. Antônio Gomes da Costa
desempenhou um papel crucial ao centralizar informações sobre o assunto. Para Costa (2006),
o objetivo da socioeducação no Brasil é a preparação dos jovens para a sociedade, pois,

(...) assim como existe educação geral e educação profissional, deve existir
socioeducação no Brasil, cujo objetivo é preparar os jovens para o convívio social
sem quebrar as regras de convivência consideradas como crime ou contravenção no
Código Penal de Adultos.” (Costa, 2006, p. 57)

Através da argumentação de Barbosa (2020), observa-se que a concepção de


socioeducação progressivamente se afasta da busca por uma educação fundamentada em
práticas pedagógicas emancipatórias, visto que suas abordagens tendem a se alinhar cada vez
mais com as diretrizes normativas das políticas públicas do que propriamente com seu
propósito educacional. Ela argumenta que a concepção de socioeducação está gradualmente
desviando-se de seu propósito original de promover uma educação baseada em práticas
pedagógicas que capacitam os jovens. Em vez disso, observa-se uma ênfase crescente na
implementação de políticas públicas e na conformidade legal, em detrimento da promoção da
emancipação por meio da educação. Nesse cenário, as medidas socioeducativas tornam-se
mais um instrumento de controle social do que uma ferramenta de empoderamento. Ainda
salienta que,

(...) a socioeducação como instrumento emancipador, volta a ser prisioneira


das noções de arrependimento e penitência ao ser apropriada pelo Estado na
forma de política pública e direcionada ao sujeito de direito. Essas noções
perduram por todo o processo de reformulação das leis direcionadas aos
direitos das crianças e adolescentes e suas práticas, bem como da própria
Educação, que traz em seu âmago desde o século XVIII uma formação
humanista e cidadã e que usa da punição como metodologia de ensino.
(Barbosa, 2020, p. 102)

Embora a socioeducação busque implementar estratégias de reintegração social,


também traz consigo paradoxos significativos. A escola, que idealmente deveria ser um
espaço de igualdade e oportunidades, muitas vezes se converte em um cenário de reprodução
de sofrimento e desigualdades. Isso leva o jovem em conflito com a lei a se perceber em um

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ambiente hostil, que reforça sua marginalização em vez de combatê-la, dificultando assim sua
ressocialização.
Torna-se imperativo repensar as estratégias empregadas nos processos das medidas
socioeducativas, de modo que estas possam verdadeiramente constituir meios coesos de
ressocialização, respeitando a singularidade dos jovens e contemplando todos os aspectos que
os conduziram ao sistema de Justiça juvenil. O uso excessivo de práticas punitivas e a
perpetuação do ciclo de violência, podem ser caráter utilizados para reforçar a subalternidade
de jovens em conflitos com a lei, consequentemente dificultando sua reintegração social, o
que aumenta as chances de reincidência. Conforme salientado por Barbosa (2020), a
socioeducação não comporta a punição se forem consideradas prioritárias as práticas
pedagógicas.
Para tratar sobre a relação dos jovens com a justiça e o sistema carcerário, Silveira e
Pinel (2019), introduzem a “lei do mais forte”, presente em instituições socioeducativas do
Brasil as quais uma lei formal não é regida, e sim a formação de um processo de coerção e
poder do mais forte. Essa lei é aderida aqueles que estão em uma posição de legitimar a
violência. Portanto, a relação entre o indivíduo que cometeu o ato infracional e os agentes
cumpridores da justiça e das medidas socioeducativas, pode trazer um sentimento de opressão
por parte do jovem, por este ser obrigado a cumprir regras, ter comportamentos cravados na
obediência e ser mais um número no meio de tantos outros, resumido apenas pelo seu ato
infracional.
Aliadas às práticas de segregação socioespacial, a constante violência e opressão dos
jovens, a falha na estrutura das medidas socioeducativas permite compreendermos os
sofrimentos sociais sofridos pelos jovens em conflito com a lei. Buscaremos, portanto,
compreender como o sofrimento torna-se um fator determinante para a ressocialização, bem
como os motivos que incentivam esses jovens a permanecerem na ilegalidade.

4. Sofrimento social

O conceito de sofrimento social, amplamente discutido nas Ciências Sociais, abarca


diversos aspectos relacionados à qualidade de vida dos indivíduos em situações de
dificuldade. As manifestações das desigualdades variam conforme o contexto social, dando
origem a contornos de difícil delimitação que configuram espaços de exclusão, impactando a
vida cotidiana de muitos. Dentro desse panorama de desigualdade, surge o sofrimento social,

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que pode ser observado tanto em nível individual quanto coletivo, originando-se em contextos
de fragilidade e precariedade social (Werlang e Mendes, 2013).
Na esfera individual, Dejours (1998) examina o sofrimento no contexto laboral e na
rotina dos trabalhadores, destacando que as grandes corporações desempenham um papel
crucial na redução da qualidade de vida ao promoverem condições precárias de trabalho.
Nesse cenário, os trabalhadores enfrentam riscos à sua saúde física e mental (Dejours 1998,
apud Werlang et al., 2013, p. 745). Assim, considerando as exigências diárias do trabalho, as
pressões corporativas e as inevitáveis frustrações decorrentes da quebra de expectativas no
ambiente corporativo, o indivíduo é submetido ao sofrimento.
No âmbito coletivo, o sofrimento social emerge em meio a condições precárias de
vida. Grupos ou comunidades que enfrentam a marginalização e a pobreza, historicamente
segregados dos demais membros da sociedade, experimentam um sofrimento social à medida
que as circunstâncias do dia a dia os conduzem a esse estado. Essa percepção é contemplada
dentro dos contextos de exclusão social, violência e desigualdade.
Bourdieu (2014) apresenta o conceito de violência simbólica, descrevendo-a como um
instrumento para exercer poder por meio de meios simbólicos. Esta forma de violência diz
respeito à maneira pela qual as estruturas sociais de desigualdade e as relações de poder são
capazes de provocar sofrimento, derivado da exclusão e marginalização.
Veena Das, antropóloga indiana, em suas obras, “Social Suffering” (1997) – uma
colaboração com Arthur Kleinman e Margaret Lock – e “Life and Words: Violence and the
Descent Into the Ordinary” (2006), aborda o sofrimento social dentro do contexto da
violência, argumentando que este não é apenas uma experiência individual, mas também
moldado por fatores sociais e culturais. Ela destaca que a violência, e consequentemente o
sofrimento, manifesta-se em assassinatos, ameaças, violações de normas e na visibilidade dos
corpos mortos nas ruas (Parreiras e Lacerda, 2021). Kleinman (1997) complementa o
pensamento de Veena Das, ao sugerir que o sofrimento social engloba experiências de dor,
trauma e distúrbios, estabelecendo conexões com questões morais, de saúde, de justiça, entre
outros. Dessa forma, o sofrimento social é caracterizado como um problema de experiência
social, presente no cotidiano dos indivíduos (Kleinnman, 1997 apud Carvalho, 2008).
Nessa perspectiva, Parreiras e Lacerda, baseados na obra de Das e Nandy (1985),
esclarecem que a análise antropológica do sofrimento deve seguir os processos políticos para
a compreensão de sua dimensão na experiência de sujeitos, conforme mostra o trecho a
seguir:

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A violência não deve ser definida a partir de sua incidência, de suas supostas
causas e consequências, tampouco a partir de tipologias, mas como
experiência relacionada a processos políticos, atravessada por noções de
família e de parentesco, e pela forma como as pessoas utilizam a linguagem
para expressar dor e sofrimento. (Das e Nandy 1985, apud Parreiras e
Lacerda, 2012, p. 01)

Seguindo a proposta deste campo de debate, a seguir faremos uma análise dos
sentimentos expostos pelos jovens em medidas socioeducativas, a partir da leitura de
etnografias com jovens em conflito com a lei, na tentativa de compreender os processos
políticos que atravessam a experiência do sofrimento social desses jovens.

4.1. O Estigma: Te chamarão para sempre de ex-presidiário

O “estigma” por Goffman, (1988), pode ser entendido como uma situação em que um
indivíduo não é apto para a aceitação social. Configurado como uma característica
depreciativa, o estigma distingue um indivíduo dos demais membros de uma categoria
socialmente aceita, afetando a forma com que este é percebido e tratado em sociedade,
podendo resultar em discriminação e segregação.
No contexto dos jovens infratores, a etiqueta de “ex-criminoso”, após o cumprimento
da medida socioeducativa, definirá a percepção da sociedade sobre o indivíduo. O estigma se
manifestará de diferentes maneiras, como a exclusão social, a discriminação e a perpetuação
da desigualdade, resultando em um ciclo contínuo de violência e possível perpetuação da
criminalidade.
O verso abaixo é um recorte da música "Homem na Estrada" (1993), dos Racionais
MC´s. Suas vozes permitem analisarmos, no âmbito sociológico e antropológico, as relações
de poder e as vulnerabilidades das margens. Nela, é narrada a trajetória de um ex-presidiário
que retoma sua liberdade e retorna à sua casa, numa comunidade periférica e violenta de São
Paulo:
Assaltos na redondeza levantaram suspeitas
Logo acusaram a favela, para variar
E o boato que corre é que esse homem está
Com o seu nome lá
Na lista dos suspeitos
Pregada na parede do bar
A noite chega e o clima estranho no ar
E ele sem desconfiar de nada, vai dormir tranquilamente
Mas na calada, caguetaram seus antecedentes
Como se fosse uma doença incurável

Trecho Homem na Estrada, Racionais MC´s


(grifos nossos)
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Apesar de diversas explicações para o sofrimento deste sujeito serem narradas, como a
precariedade material e a violência social, um dos elementos centrais para a compreensão de
sua trajetória é o estigma (em destaque no trecho). Nessa análise, os Racionais MC´s, o
apresentam metaforicamente como “uma doença incurável ". Assim como uma doença
incurável, o estigma é uma marca permanente, o que é evidenciado na dificuldade de ex-
detentos de se reinserir na sociedade devido ao seu histórico criminal.

No seu braço a tatuagem "DVC", uma passagem,


157 na lei
No seu lado não tem mais ninguém
A justiça criminal é implacável
Tiram sua liberdade, família e moral
Mesmo longe do sistema carcerário
Te chamarão para sempre de ex-presidiário

Trecho Homem na Estrada, Racionais MC´s


(grifos nossos)

Quando um ex-detento é liberado da prisão, a sociedade ainda o vê como uma pessoa


que cometeu um crime. Eles “te chamarão para sempre de ex-presidiário” (Racionais, 1993),
pois reforçam o estigma. Mesmo que haja, juridicamente, o acesso à liberdade, o indivíduo
ainda se vê em uma extensão da prisão: apartado de direitos, reprimido pelo sistema de justiça
e segregado pela sociedade.
Schlittler (2011), mostra em sua etnografia, que uma vez no mundo do crime, a vida
dos adolescentes com passagens pela polícia nunca mais volta a ser a mesma, pois sempre
serão marcados por suas fichas criminais. Um dos exemplos é Juliano (17 anos), recém-saído
da FEBEM 3. O jovem sofreu um acidente com uma moto comprada por ele, porém ainda não
documentada. Após o acidente, a moto foi escondida por seus primos, pois Juliano não tinha
habilitação. No hospital, durante o interrogatório policial, afirmou que a moto era de seu pai.
Mais tarde, a polícia voltou a procurá-lo, acusando-o de ter roubado a moto, baseados em seu
histórico de assaltos. Todavia, pela falta de provas, nenhuma ação policial foi tomada. Juliano
desconfiou que a polícia estava tentando fazê-lo assumir a responsabilidade por um assalto.
(Schlittler, 2011).
Seu caso é parecido com o de Olavo (18 anos), apreendido por tráfico de drogas. No
momento de sua apreensão, declarou-se inocente, pois apesar de suas passagens anteriores,
havia sido preso injustamente pela referida acusação. A informação, contudo, não importava
3 Atual Fundação CASA (Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), do estado de São
Paulo.
13
para a polícia, pois Olavo era resumido em somente mais um ex-presidiário voltando ao local
socialmente imposto como seu habitat: a prisão. (Schlittler, 2011)
Olavo, na etnografia de Schlittler, também relata sobre as barreiras invisíveis e a
discriminação enfrentada nos espaços públicos cotidianos:

A gente sempre ia lá no shopping de sexta a noite, descia de ônibus e


ficávamos lá andando, mas um tempo atrás os dono das lojas começaram a
reclamar que nós estávamos impedindo o movimento. Agora na portaria, os
seguranças não deixam mais entrar qualquer um. Sabe como é: só playboy
pode entrar no shopping, eles entram de carro, nem passam pela vistoria.
Outro dia eu e meu patrão fomos até o shopping para ele tirar dinheiro no
caixa eletrônico e daí, na portaria, o segurança falou para ele: “só o senhor
pode entrar, o garoto não”. Meu patrão começou a brigar com o segurança,
mas achei melhor deixar quieto, senão os caras levam a gente pra uma
“salinha” lá dentro do shopping e espancam a gente até “dizer chega”.
(Schlittler, 2011, p. 109).

Apesar do cumprimento de sua pena, e das tentativas de reintegração à sociedade,


Olavo enfrenta as consequências do seu passado criminal. Isso é evidente na maneira como é
tratado pela segurança do shopping.
Juliano conseguiu um emprego em um supermercado da região, mas foi demitido
ainda no período de experiência. Um dos seus colegas provavelmente havia encontrado
informações a respeito de seu passado criminal, o impossibilitando de continuar em seu
trabalho. (Schlittler, 2011).
A experiência de Juliano não é, todavia, individual: no cumprimento das medidas
socioeducativas, na busca pela reintegração à sociedade, jovens defrontam-se com a
inacessibilidade no acesso a direitos e recursos. Levam consigo a opressão nas áreas de
tentativa de inserção, como nos trabalhos formais e escolas, por exemplo.
Malvasi (2011), em um convite da Fundação CASA, assistiu a uma encenação dos
internos, que eludia uma perspectiva de seus futuros após a internação:

Um jovem sai com o diploma da Fundação CASA (curso de turismo,


empreendedorismo etc.) para procurar emprego. Ao chegar aos
estabelecimentos, o jovem se apresenta e mostra o diploma. Os
entrevistadores demonstram apreensão, afastam-se, mudam de assunto,
evidenciando preconceito pelo fato de o jovem ter passado pela internação.
(Malvasi, 2011, p. 8)

No final da encenação, os estudantes da Fundação riram e zombaram, indiretamente


percebendo que seus destinos já estavam traçados: suas expectativas eram limitadas, uma vez
que seus futuros estavam determinados no instante em que o artigo correspondente aos seus

14
crimes foi anotado ao lado de seus nomes. Nessa lógica, Malvasi ainda sugere que, ainda que
os jovens finalizem suas medidas socioeducativas, a categoria "bandido" será uma realidade
constante, não importando suas ações ou omissões (2011).
Ainda na etnografia de Malvasi (2011), Elias, o jovem em medida socioeducativa,
expressa a sua indignação a respeito do estigma: “Eu nasci aqui na favela, eles nunca vão me
dar um ‘boi’”.4 Perguntei-lhe: “Eles quem?”, “A sociedade”, ele respondeu. (Malvasi, 2011,
p. 13).
Ainda na obra dos Racionais MC’s, uma nova parte da música “Homem na Estrada”
(1993), reflete que, no espaço habitado pelo personagem da canção, não existe a necessidade
de culpabilização para a punição, já que um ex-presidiário já foi sentenciado pela sociedade:

Vão invadir o seu barraco, “É a polícia”!


Vieram pra arregaçar, cheios de ódio e malícia,
filhos da puta, comedores de
carniça!
Já deram minha sentença e eu nem tava na “treta”,
não são poucos e já vieram
muito loucos.
Matar na crocodilagem, não vão perder viagem,
quinze caras lá fora, diversos
calibres, e eu apenas com uma
“treze tiros” automática.

(grifos nossos)

O Homem na Estrada critica a maneira brutal com que a polícia adentra a sua casa,
agindo com violência e banalizando a existência humana. Em destaque no trecho, os policiais
já sentenciaram o seu caminho, ele compreende que de nada adianta a oposição às regras, pois
seu histórico criminal, sua cor e sua moradia são marcações automáticas para a sua morte.
Assim, a estigmatização surge como uma base central para a compreensão do
sofrimento social dos jovens em conflito com a lei. Esta estigmatização, ao moldar a posição
de indivíduos no meio social, origina uma nova forma de segregação social. Na realidade
onde ex-detentos buscam por uma ressocialização digna e anseiam acesso a bens materiais,
tais direitos e oportunidades não são acessíveis para indivíduos que se encontram presentes
em contextos de subalternidade. A luta por uma vida melhor é, portanto, constantemente
impedida pelo estigma de ser um 'ex-presidiário'.

4.2. O desejo pelo status, consumo e prestígio

4 “Boi” diz respeito às oportunidades.


15
Inconscientemente vem na minha mente inteira
Na loja de tênis o olhar do parceiro feliz
De poder comprar o azul, o vermelho
O balcão, o espelho
O estoque, a modelo, não importa
Dinheiro é puta e abre as portas
(Racionais MC´s Vida Loka pt.II)

O dinheiro, descrito na obra dos Racionais, desempenha o papel de instrumento


facilitador para a conquista de oportunidades. O trecho também enfatiza a satisfação sobre a
possibilidade de adquirir bens materiais e o fato da liberdade de ser capaz de comprar não
somente um, mas dois tênis, representa a condição financeira de não se importar com o
dinheiro a ser gasto, uma realidade paralela a da maioria das pessoas envolvidas em contextos
socioeconômicos desfavoráveis, porém entendidos como impossíveis de conquistar.
O estudo etnográfico de Paulo Malvasi, traz a trajetória do menino Elias em
cumprimento da medida socioeducativa de Liberdade Assistida. Elias recebeu uma medida de
internação em fevereiro de 2009, apreendido por tráfico de drogas. “No dia 20 de fevereiro,
véspera de carnaval, Elias estava vendendo cocaína e crack em frente à sua casa. Eram mais
ou menos 23 horas e ele já contabilizava cinco mil reais em vendas e mil e duzentos de lucro
para si.”5 (Malvasi, 2011, p. 162).
Os ganhos exorbitantes em práticas ilícitas, são um indicativo de como o mundo do
crime torna-se atrativo para indivíduos em carências sociais e econômicas, por criar uma
realidade monetária que os coloca em uma posição de poder e prestígio, não alcançada antes
por meio de trabalho formal.
Na periferia, existe uma distinção entre o "trabalhador" e o "bandido", evidenciando a
exploração do trabalhador mal remunerado que, apesar de ocupar um espaço formal, não
consegue ser respeitado socialmente. Por outro lado, o bandido também busca as mesmas
condições, mas através do crime. Ambos são vistos como alternativas para alcançar uma
melhor qualidade de vida, conforme argumentado por Feltran (2008):

Crime e trabalho são, igualmente, “opções” para garantir o ganho da casa, o


primeiro garante mais claramente esta possibilidade, mas torna a família
vulnerável à polícia e às tragédias; o segundo é menos rentável e mais
legitimamente aceito. Neste plano, trabalhadores não se opõem aos bandidos.
Trabalho e crime são “opções” de levar a vida (Feltran, 2008, p. 167).

5 De acordo com o Fetapergs, em 2009 o salário-mínimo era de R$465,00 (quatrocentos e sessenta


e cinco reais), e o dinheiro recebido por Elias em apenas um dia, contabilizava mais do triplo do
dinheiro recebido por um trabalhador formal em um mês inteiro de trabalho.
16
A necessidade do dinheiro, a dificuldade na inserção no mercado de trabalho e a baixa
manutenção do Estado, levam indivíduos a uma busca emergencial: o crime. Jovens de
periferias entendem que a única forma de acesso à direitos é através do direito econômico, na
garantia do consumo.
O dinheiro obtido de maneira fácil, por meio de poucas horas de trabalho no tráfico,
leva os jovens a acreditarem que não conseguirão alcançar um status econômico elevado e
uma posição social respeitável sem ser por meio do crime. Essa crença é reforçada pelo fato
de que os indicativos não favorecem sua trajetória: esses jovens são estigmatizados mesmo
sem nunca terem cometido atos infracionais. Desde o momento de seu nascimento, a categoria
de “bandido” os acompanha, e a cor das suas peles, suas posições socioeconômicas e os
lugares onde vivem já os colocam em uma posição de opressão pela classe dominante. A
ostentação, o prestígio e o poder, vêm nesse contexto como um meio de sobrevivência às
periferias.
Ainda no estudo de caso de Malvasi (2011), Elias propõe que prefere manter-se no
mundo do crime e viver como um “rei” a voltar à vida normal e viver como um “zé”, pois a
“vida-loka”, apesar de curta, é uma vida valorizada. O pensamento do jovem é baseado nos
grifos dos Racionais MC 's, ainda em “Vida-Loka Pt.II” (2002), onde os artistas questionam:
É melhor “viver pouco como um rei ou muito como um zé?”
O prestígio de Elias foi observado por Malvasi enquanto o acompanhava em um
passeio pela cidade:
Elias saiu de casa pronto para ir comigo ao centro da cidade. Vestindo um
casaco vermelho de gola alta fechada por uma corrente dourada, tênis Nike
brilhando de novo, bermuda larga vermelha e um boné azul e vermelho;
estava animado com o passeio. Chegamos ao centro e ele caminhava com um
estilo facilmente reconhecido pelos seus pares geracionais. Passos largos,
cabeça erguida, gestos largos com as mãos para cumprimentar as pessoas.
Percebi olhares de admiração e outros de atenção de muitos jovens que o
conheciam, e não eram poucos. (Malvasi, 2011, p. 164)

No mundo do crime, o jovem é visto como uma figura de influência, poder e prestígio.
Após ser flagrado no ato infracional e obrigado a cumprir uma medida socioeducativa, esse
mesmo jovem se vê no enfrentamento da realidade do “zé”, que ele busca evitar. Esse é o
mundo das pessoas comuns, que não ostentam marcas de luxo e não dirigem os carros mais
caros. Para ele, a transição pode ser vista como uma derrota, pois o ambiente em que passou a
ser inserido não corresponde às suas aspirações de vida.
Ainda sobre o prestígio do crime:

17
O importante entre os pares é ser reconhecido como o “grande bandido”, o
que proporciona um sinal de respeitabilidade, virilidade e poder. Ser um
bandido confere status. O ladrão, pelo poder da ereção fálica, sustenta os
ideais narcísicos das comunidades pobres. Concede acesso ao que tem valor,
ao que até então estava vedado: dinheiro, carros, motos, roupas bonitas e a
sedução de algumas mulheres inacessíveis (Silveira et al. 2019, p. 251)

Com base em estudos de Manso e Almeida (2009), Fialho (2012) argumenta que o ato
infracional cometido por jovens é motivado pela “situação de precariedade econômica dos
indivíduos, tendo por base a tentativa de responder a necessidades prioritárias como a
alimentação, à educação ou à habitação”. (Manso et al. 2009, apud Fialho, 2012, p. 275).
Portanto, apesar da constante busca pela ostentação, jovens também optam pela
criminalidade para prover a casa. Destaca-se, no trabalho etnográfico de Fialho (2012), a
trajetória de Paulo, que era o meio de sustento de sua casa, por meio do dinheiro do roubo e
de Pedro, que usava do dinheiro do crime para prover alimentos, gás e auxiliar nas contas de
sua família.
Os estudos etnográficos de Feltran (2008) apresentam a trajetória de Ivete, envolvida
no mundo do crime, junto à sua família. “Do crime, a família obtém sua renda e “os filhos “do
crime”, trazem mais dinheiro para a casa do que os filhos “trabalhadores”, e a família “não
passa necessidade” graças a eles.” (Feltran, 2008, p. 173).
Dessa forma, as medidas socioeducativas enfrentam uma grande dificuldade, ao
analisarmos que a ressocialização não garante qualidade de vida e nem condições sociais. Ao
forçar indivíduos a saírem de uma situação que antes viam como ideal – com o prestígio do
crime e a sensação de poder pelo dinheiro ganho –, estes sofrem com um sentimento de
derrota. Ao ressocializar, não existe mais a ostentação, as roupas de marca e a liberdade
adquirida pelo poder, muito menos a qualidade de vida ostensiva, capaz de suprir gastos sem
dificuldades.
O que pode explicar as grandes taxas de reincidências tratando-se de jovens em
conflitos com a lei. Segundo um estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, entre
2015 e 2019, cerca de 23,9% dos jovens em medida socioeducativa retornaram ao sistema
pelo menos uma vez. A seguir, entenderemos como a reincidência juvenil está relacionada
com a aplicabilidade falha das medidas socioeducativas, bem como a realidade do crime cria
um sentimento vergonhoso para os jovens em conflito com a lei.

4.3. A vergonha: reincidência e sofrimento familiar

18
O sentimento vergonhoso, por sua vez, surge quando colocada em cena, dentre outros
elementos, a narrativa familiar, como ilustrado na etnografia de Malvasi (2008), sobre o
sofrimento de Elias em relação à sua família:

Mas a polícia, a diretora da escola, tá todo mundo de olho em você.”


Perguntei o que ele pensava disso. “Não vou falar que eu acho bom, porque
fui eu que cometi este erro e tenho que pagar. Deixei vergonha na família,
joguei o nome da minha família na lama. (Malvasi, 2011, p. 163)

Durante a execução de medidas socioeducativas, o Estado busca a integração do


núcleo familiar do jovem infrator. São proporcionados encontros psicológicos, visitas de
assistentes sociais e representantes judiciais às famílias. Tais procedimentos, têm como
objetivo atribuir ao núcleo familiar a responsabilidade pela ressocialização. Ao transferir parte
dos encargos para a família, os quais deveriam ser incumbências do Estado, surge a ideia de
que este está se esquivando de sua total responsabilidade sobre o indivíduo.
Portanto, a ideia é de que, se houver reincidências, estas serão inteiramente atribuídas
ao jovem e ao seu núcleo familiar. “A ação do Estado, aplicada dessa forma, interfere no
papel de cada um dentro do núcleo familiar e o influencia, levando à opressão dos
adolescentes em seu próprio lar.” (Malvasi, 2011, p. 167). A família torna-se, junto às
instituições estatais, um meio de coerção e opressão, na tentativa de institucionalizar o jovem
para evitar que este cometa mais crimes. Nesse contexto, sentimentos que surgem na tentativa
forçada dos jovens para a ressocialização, podem desencadear a revolta. O sentimento de
vergonha também perpassa durante a aplicação das medidas de socioeducação: O jovem, em
processo de ressocialização, ao se ver incluído novamente no ambiente escolar, tem
perpetuado a ideia de vergonha. Já vimos anteriormente como a escola torna-se um meio de
reproduções de desigualdade e uma extensão das medidas punitivas.
Para complementar essa ideia, no contexto do sofrimento social dos jovens em
conflitos com a lei, Barbosa (2020), discute sobre a relutância de muitos jovens em retornar
ou em permanecer na escola. Isso está atribuído a vergonha sentida por não serem
alfabetizados, terem dificuldades no aprendizado e a relutância por carregarem o título de ex-
infratores.
A percepção de solidão, a falta de suporte familiar, o estigma social e a presença
opressiva das instituições judiciais são fatores que dificultam a reintegração dos jovens à
sociedade. Ademais, estes adolescentes não conseguem atender às expectativas das
instituições – família, escola e justiça. A falta de sucesso pessoal, portanto, acaba os

19
encorajando a retornar ao mundo do crime, como demonstrado na etnografia de Malvasi: “No
momento em que me disse que iria continuar traficando, Elias se auto justificou. Disse que
sua mãe nunca teve nada e que ele nunca teria uma oportunidade.” (Malvasi, 2011, p. 169)
A falta das oportunidades, citadas por Elias, referem-se ao estigma dos jovens
infratores, reforçando as implicâncias dos Racionais MC 's, quando sugerem que, uma vez
que você adentrar ao sistema de justiça, “te chamarão para sempre de ex-presidiário”.
Os jovens em conflitos com a lei, expressam os seus sentimentos de ressentimento e
angústia através de performances e narrativas de sofrimento. Os programas socioeducativos,
por sua vez, não legitimam essas expressões como indicativas de conflitos sociais, optando
por uma interpretação estritamente normativa e padronizada judicialmente para explicar atos
infracionais, e essa abordagem torna difícil de compreender o que está além do indivíduo que
comete um crime, ignorando as experiências cotidianas dos jovens, especialmente os pobres.
Ao serem rejeitados pela sociedade e abraçados pelo crime, é evidente que os
adolescentes recaiam. Ademais, a constante interferência violenta dos meios institucionais,
que, em lugar de oferecer proteção e possibilidades de novos projetos de vidas, reforçam
ainda mais os estigmas que esses jovens carregam. É este ciclo perpétuo de violências, sejam
elas simbólicas, físicas ou morais contra esses jovens periféricos, que explicam os paradoxos
e os limites das medidas socioeducativas.

4.4. Violência seletiva: a banalização da marginalização


Quando voltei, os garotos estavam desolados na praça em frente à
lanchonete. Eles haviam sofrido uma “batida” policial na frente de centenas
de pessoas que acompanhavam a festa. O dono desconfiou de que eles
pudessem estar observando o local para tramar um assalto – pelo menos foi
isso que o policial argumentou segundo a versão dos jovens. Elias, que estava
imponente, vaidoso, agora mostrava expressão de revolta e humilhação. Ao
deixá-lo em casa, no momento exato em que chegamos, a polícia passava
lentamente em frente à sua casa. Os policiais olharam com agressividade para
nós, como se fossemos suspeitos. (Malvasi, 2011, p. 164)

O trecho de Malvasi retrata a experiência de jovens estigmatizados como criminosos,


por conta de sua aparência e comportamento, levando a sentimento de revolta e humilhação.
Os jovens são tratados com desconfiança, vistos como “bandidos” mesmo quando estão
apenas participando de atividades cotidianas, como estar em uma lanchonete. A “batida”
policial representa como os jovens são frequentemente vistos como potenciais criminosos e a
constante suspeita e hostilidade são demarcações de um ciclo de conflitos com a lei.

20
Feltran (2008), em sua etnografia nas periferias paulistas, observou diferentes
situações nas quais a força policial foi empregada de maneira exacerbada, tanto nos casos em
que se tornavam necessárias medidas de “operações policiais pontuais” quanto em operações
maiores para enfrentar as chamadas “crises públicas”. Todavia, sua análise de campo o
permitiu observar a seletividade da violência, a partir do estereótipo jovem preto periférico.

Esta repressão é muito seletiva e específica, em teoria legal (porque os atos


criminais ferem a lei) e, na prática, mesmo que exercida ilegalmente (abusos,
excessos e violação de direitos praticados pela polícia), é de todo modo
legitimada social e publicamente. (Feltran, 2008, p. 323)

A violência sendo legitimada pela lei, reforça a possibilidade das classes médias e a
elite dominante tratarem como justificável o assassinato de pessoas em ações policiais. “O
noticiário sempre faz questão de dizer, na contabilidade dos mortos em chacinas e ações
policiais, quantos entre eles tinham antecedentes criminais, o que aparece como argumento de
legitimação” (Feltran, 2008, p. 323). E, apesar dessa legitimação da violência como um meio
de conquista à ordem social, as atitudes policiais somente reforçam que pretos e favelados são
indivíduos “marcados para morrer”. Não precisam diretamente do envolvimento na
ilegalidade, pois somente a cor de sua pele e sua condição socioeconômica são suficientes
para torná-los sujeitos propensos à morte.
Além da ideia apresentada na seção 2, sobre a expansão do mundo do crime estar
relacionada com a ideia de que todos os indivíduos segregados são vistos como “bandidos”,
por conta do que Feltran (2008) chama de multiplicação imaginária, nessas operações
policiais mais extensivas, “passaram a estar na mira todos os que portavam em seu corpo
sinais que os identificassem como “bandidos”, ou seja, naquele momento, todos os jovens das
periferias” (Feltran, 2008, p. 330).
Pobres, pretos e favelados encontram-se submetidos a um contexto de segregação
social produzido, sobretudo pelas instituições estatais. O Estado tem sua presença demarcada
em demasia quanto à atuação violenta.
Segundo Wacquant (2003), a marginalização socioeconômica e a estigmatização racial
se juntam para produzir métodos de execução para um fenômeno que ele chama de
“hipergueto”, um espaço onde o Estado exerce seu poder de forma desproporcional e muitas
vezes violenta. Wacquant argumenta que o Estado, que deveria prover o acesso à serviços e
oportunidades sociais e econômicas, se faz presente, na realidade das favelas, através de
mecanismos de controle e repressão, como a polícia e o sistema de justiça criminal, resultando

21
em uma presença estatal exacerbada, mas de uma forma que perpetua a marginalização e a
exclusão em vez de impedi-las.
No Brasil, essa ideia está relacionada com a forma que as instituições estatais reforçam
a segregação de indivíduos, em que a cor da pele e a classe social são fatores determinantes
para justificar ações violentas. Dessa forma, tornam-se reprodutores assíduos de práticas
segregadoras que são evidenciadas nos lapsos da Justiça criminal e nas operações policiais.
Alguns índices realizados pelo IPEA são capazes de demonstrar essas ações.
No contexto da população em geral, conforme atestam dados do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA, 2023), os afrodescendentes (pretos e pardos) emergem como as
principais vítimas de homicídios, representando 76% dos casos entre os homens e 66% entre
as mulheres. Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), em 2020, no estado do Rio de
Janeiro, 75% dos mortos em confronto com agentes do estado (policiais, bombeiros, agentes
do sistema penitenciário) eram negros, sendo 10% das vítimas menores de 18 anos.
A realidade da morte é retratada pelos Racionais MC’s na música “Fórmula mágica da
paz” (1994):
2 de novembro era finados, eu parei em frente ao
São Luís do outro lado
E durante uma meia hora olhei um por um e o que
todas as senhoras tinham em comum: a roupa humilde, a
pele escura, o rosto abatido pela
Vida dura
Colocando flores sobre a sepultura("podia ser a
minha mãe") Que loucura
(grifos nossos)

Nessa análise a estrofe em questão denota um cidadão em um cemitério, no feriado do


Dia dos Finados. Ele observa as pessoas que ali estão e, conforme destacado no trecho,
entende as mães dos meninos mortos e suas aparências: pretas, humildes e pobres.

Errado, aqui vale muito pouco a sua vida, a nossa


lei é falha, violenta e suicida
Se diz que, me diz que, não se revela: parágrafo
primeiro na lei da favela
Legal, assustador é quando se descobre que tudo
dá em nada e que só morre o pobre
(Racionais Mc´s, 1994)

Em seguida, os Racionais reverberam sobre a desvalorização da vida preta, tratada


com violência. A aplicabilidade das leis nas favelas são falhas e quase não são observadas
quando se trata da tentativa de ofertar as condições dignas de vida previstas nos Direitos

22
Humanos, e exacerbadamente ostensivas quando observam como necessário o uso da
violência nos indivíduos que eles próprios marginalizam.
Diante dos fatos, evidencia-se como a presença do Estado nas favelas brasileiras não
está alinhada a uma força de apoio e proteção, e sim configura-se como um instrumento de
opressão e marginalização. A desproporcionalidade da violência estatal, especialmente contra
pobres, pretos e periféricos, é um reflexo de uma sociedade que ainda luta, na tentativa de
superar barreiras da desigualdade e segregação socioespacial e econômica.
Ademais, a ineficácia das medidas socioeducativas contribui para a continuação de um
ciclo de violência interminável. A segregação socioespacial, que leva jovens ao mundo do
crime e os emerge em uma tentativa de prestígio social e econômico, que não conseguem
adquirir pela interferência violenta do Estado, é reforçada por um sistema que não oferece
oportunidades reais de reintegração. Em vez de uma base sólida para a ressocialização, as
medidas adotadas resultam em reincidência, pois os jovens são devolvidos constantemente ao
ambiente que os levou para o crime em primeiro lugar.
As estatísticas do IPEA e do ISP são um lembrete de que a justiça não será cumprida
enquanto as abordagens não forem mudadas. O Estado não toma medidas concretas que
garantam a segurança e bem-estar de todos os indivíduos independentemente de seu status
socioeconômico e sua cor de pele.

Apontamentos finais: políticas da morte e o encarceramento em massa

Compreendemos, portanto, a forma que a política penal está voltada para um conjunto
social específico, que tange em termos de carências econômicas e sociais. Maesima e Gomes
(2022) problematizam o termo “adolescente em conflito com a lei”, criando o questionamento
se não é, na verdade, a lei em conflito com o adolescente. Estes estão inseridos em um
histórico de vulnerabilidade social, violência e violações dos direitos humanos, e são
pouquíssimos acompanhados pelo Estado, que falha no papel de cumpridor de acesso aos
direitos básicos do ser humano, tais como alimentação, moradia, saúde etc.
Achille Mbembe (2003) mostra como o conceito de necropolítica apresenta-se como
uma dinâmica de poder que confere a certos grupos a decisão de vida e morte de outros. Essa
política de morte é empregada para o extermínio de grupos marginalizados, seja através da
morte física ou da exclusão social, política e psicológica.
Na direção dessa análise estrutural sobre a violência de Estado, para os jovens em
conflito com a lei, a necropolítica está manifestada na forma segregadora e marginal que esses
23
são considerados pela sociedade, principalmente quando são levados em consideração as suas
condições de pobreza, o ambiente onde vive e sua identidade étnico-racial. A marginalização
em demasia de um grupo já historicamente oprimido dificulta o processo socioeducativo,
gerando um sentimento de injustiça que reverbera em todas as áreas sociais do contexto
periférico.
Entretanto, as instituições encarregadas das medidas socioeducativas muitas vezes
agravam os traumas desses jovens, reforçando a estigmatização e priorizando abordagens
punitivas que perpetuam a violência. Isso leva o adolescente a ver a instituição como uma
extensão da sociedade desigual e precária em que vive.
A necropolítica vai além de decidir quem vive ou morre, também segrega os
indivíduos marginalizados daqueles considerados merecedores de direitos e oportunidades.
Embora os jovens em conflito com a lei sejam frequentemente rotulados como perigosos e
marginais, é crucial considerar os fatores que os colocam nessa posição. É essencial
reconhecer que “o perigo que esses adolescentes representam para a sociedade não se
equipara ao perigo ao qual eles próprios estão sujeitos devido às suas condições de
vulnerabilidade e exclusão social” (Silveira et al., 2019, p. 252).
O encarceramento em massa de jovens negros e periféricos é uma manifestação
necropolítica. Na perspectiva de Wacquant (1999), o encarceramento da população pobre e
preta representa uma arma de dominação capitalista. As sociedades contemporâneas, em troca
de investigar as causas subjacentes da pobreza e da marginalização, utilizam do sistema penal
como forma de gerenciamento e controle social, marginalizando ainda mais populações
pobres. A marginalização resultante do encarceramento em massa cria um ciclo de pobreza,
perpetua a criminalidade e mantém o ciclo de violência, conforme buscamos mostrar ao longo
deste artigo.
Esse ciclo é evidente no caso dos jovens negros e periféricos em conflitos com a lei, a
considerar que estes são frequentemente segregados e estigmatizados, vistos como ameaças à
ordem social. São jovens em condições de desigualdade social e segregação socioespacial,
com a ostensiva presença da violência em seu convívio. Em vez do apoio institucional, são
encarcerados para melhor controle social. Isso destaca a necessidade de abordagens mais
humanas e inclusivas para lidar com a juventude em risco, em vez de simplesmente recorrer
ao sistema penal (Wacquant, 1999).
Na exploração das políticas de segurança pública e reabilitação social, é preciso
enfatizar o impacto significativo destas na vida dos jovens em cumprimento de medidas

24
socioeducativas. O sofrimento social, uma manifestação emocional dos jovens, serve como
parâmetro de identificação da influência dessas políticas em suas vidas. A constante
repressão, o estigma e segregação, exemplificam como o processo de ressocialização torna-se
um desafio para as sociedades periféricas, à medida que a marginalização constante cria
barreiras para a reintegração. Considerando um ciclo de violência que reproduz ações
punitivas, resultando em um sofrimento social disseminado, a necessidade do estudo das
emoções permite compreender os limites e desafios que essas políticas enfrentam, para uma
maior efetividade na reformulação de um processo socioeducativo voltado para estratégias de
inclusão social, focadas na educação e não na punição.

Referências bibliográficas:

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