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Camões O dia em que eu nasci, morra e pereça

Corrente renascentista
O dia em que eu nasci, moura e pereça,
não o queira jamais o tempo dar,
não torne mais ao mundo, e, se tornar,
eclipse nesse passo o sol padeça.

luz lhe falte, o sol se lhe escureça,


mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova
o ar, a mãe ao próprio filho não conheça.

s pessoas pasmadas de ignorantes,


as lágrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,


que este dia deitou ao mundo a vida
mais desgraçada que jamais se viu!
TEMA
A maldição da existência

O dia em que eu nasci, morra e pereça, O seu nascimento foi maldito. O fatalismo.
Não o queira jamais o tempo dar,
Diferencia-se dos outros homens até na
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça. desgraça. Ele é superior, o seu nascimento foi
apocalíptico. O eclipse corresponde ao fim do
A luz lhe falte, o sol se lhe escureça, mundo, era uma intenção divina.
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes, O poeta amaldiçoa o dia em que nasceu e


As lágrimas no rosto, a cor perdida,
deseja, se se voltar a repetir, se deem
Cuidem que o mundo já se destruiu.
fenómenos extraordinários para que todos
Ó gente temerosa, não te espantes, fiquem sabendo que nesse dia nasceu a
Que este dia deitou ao mundo a vida pessoa mais desgraçada.
Mais desgraçada que jamais se viu!

Recusa do dia em que nasceu. Desconcerto pessoal. AUTOBIOGRAFIA


Assunto: O sujeito poético fala sobre o
tempo em que nasceu, revelando
sentimentos disfóricos de que esse
O dia em que eu nasci, morra e pereça,
acontecimento nunca devia ter
Não o queira jamais o tempo dar, acontecido.
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,


Mostre o mundo sinais de se acabar, Soneto apocalíptico.
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, Referências bíblicas: Apocalipse e base no
A mãe ao próprio filho não conheça. Livro de Job. O poeta, a diferença de Job, perde
a confiança.
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida, Imagens violentas (sangue chova o ar).
Cuidem que o mundo já se destruiu. Hipérbole.
Referência ao leitor futuro (ó gente temerosa).
Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!
 Moura/pereça/padeça = morra;
 Rostro = rosto/face;
 Cuidem = saibam;
 Desaventurada = infeliz;
Estrutura interna
Desenvolvimento do tema

O dia em que eu nasci, morra e pereça,


Não o queira jamais o tempo dar, Amaldiçoa o dia em
Não torne mais ao mundo e, se tornar, que nasceu Divisão em partes:
•1ª. parte: 1ª. quadra -
Eclipse nesse passo o sol padeça.
Maldição ao mundo.
A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
Cenário monstruoso •2ª. parte: 2ª. quadra e
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, 1º. terceto - Recriação
A mãe ao próprio filho não conheça. de um cenário
monstruoso para uma
As pessoas pasmadas, de ignorantes, eventual repetição do
As lágrimas no rosto, a cor perdida, Prevê a reação das dia em que nasceu.
Cuidem que o mundo já se destruiu. pessoas
•3ª. parte: 2º. terceto -
Ó gente temerosa, não te espantes, Recusa do dia em que
Que este dia deitou ao mundo a vida nasceu.
Lança o repto final
Mais desgraçada que jamais se viu!
Estrutura interna
Desenvolvimento do tema

O dia em que eu nasci, morra e pereça, O eu lamenta ter nascido, assumindo uma
Não o queira jamais o tempo dar, atitude masoquista nos pedidos formulados,
Não torne mais ao mundo e, se tornar, cujos efeitos poderão atingir toda a
Eclipse nesse passo o sol padeça. humanidade.
O dia do nascimento surge aqui amaldiçoado,
A luz lhe falte, o sol se lhe escureça, mas também personificado, sugerindo o seu
Mostre o mundo sinais de se acabar, poder destruidor.
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.
Efeitos produzidos nos humanos pela
As pessoas pasmadas, de ignorantes, transformação que o sujeito espera que
As lágrimas no rosto, a cor perdida, ocorra na natureza.
Cuidem que o mundo já se destruiu.
Justifica-se e confirma-se o pedido auto e
Ó gente temerosa, não te espantes,
heterodestrutivo que inicia e percorre todo o
Que este dia deitou ao mundo a vida
texto.
Mais desgraçada que jamais se viu!
O dia em que eu nasci, moura e pereça,
não o queira jamais o tempo dar,
não torne mais ao mundo, e, se tornar,
eclipse nesse passo o sol padeça.
1º momento: constitui a maldição e depois
a recriação de um cenário monstruoso que o luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
poeta deseja que se materialize numa
nasçam-lhe monstros, sangue chova
eventual repetição do dia do seu
o ar, a mãe ao próprio filho não conheça.
nascimento.
s pessoas pasmadas de ignorantes,
as lágrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.
2º momento: constitui uma justificação
perante a “gente temerosa” da razão da Ó gente temerosa, não te espantes,
recusa do dia em que nasceu da violência de que este dia deitou ao mundo a vida
um cenário desejado para a sua eventual mais desgraçada que jamais se viu!
repetição.
MODOS VERBAIS UTILIZADOS

O dia em que eu nasci moura e pereça.


Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.
  • Conjuntivo
A luz lhe falte, o céu se lhe escureça,
• Infinitivo
Mostre o mundo sinais de se acabar,
• Indicativo
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas, pasmadas de ignorantes,


As lágrimas no rostro, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.
 
Ó gente temerosa, não te espantes, • Indicativo
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desaventurada que se viu!
Forma poética e rimas
Soneto com rimas:
O dia em que eu nasci moura e pereça. A
Não o queira jamais o tempo dar, B Interpolada
Não torne mais ao mundo, e, se tornar, B
Eclipse nesse passo o sol padeça. A
 
A luz lhe falte, o céu se lhe escureça, A
Mostre o mundo sinais de se acabar, B Emparelhada
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, B
A mãe ao próprio filho não conheça. A
 
As pessoas, pasmadas de ignorantes, C
As lágrimas no rostro, a cor perdida, D
Cuidem que o mundo já se destruiu. E
Interpolada
 
Ó gente temerosa, não te espantes, C
Que este dia deitou ao mundo a vida D
Mais desaventurada que se viu! E
Esquema rimático: ABBA / ABBA / CDE / CDE
Recursos estilísticos
Pleonasmo - Reiteração da maldição.
O dia em que eu nasci moura e pereça.
Não o queira jamais o tempo dar,
•Hipérbole: "Não o queira jamais…
Não torne mais ao mundo, e, se tornar,
destruiu", "Que este dia… que
Eclipse nesse passo o sol padeça. Inversão jamais se viu" - Acentuar bem toda
  a maldição que lança sobre o dia
A luz lhe falte, o céu se lhe escureça, do seu nascimento.
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, Metáfora: “Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar”
A mãe ao próprio filho não conheça.
Enumeração
As pessoas, pasmadas de ignorantes,
• Adjetivação: "pasmadas, perdida, temerosa" -
As lágrimas no rostro, a cor perdida, Palavras carregadas de negativismo.
Cuidem que o mundo já se destruiu.
 
•Nomes carregados de
Ó gente temerosa, não te espantes, Apóstrofe
negativismo: "eclipse, monstros,
Que este dia deitou ao mundo a vida sangue, lágrimas" - Terror, medo.
Mais desaventurada que se viu!

•Modo conjuntivo: "lhe falte", "se escureça", "nasçam-


Anáfora: “Não/ Não”
lhe" - Traduz o intenso desejo de amaldiçoar tudo.
O dia em que eu nasci, morra e pereça, O “eu”
Não o queira jamais o tempo dar, amaldiçoa o dia
Não torne mais ao mundo e, se tornar, em que nasceu
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,


Mostre o mundo sinais de se acabar, Efeitos
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, Maldições produzidos nas
A mãe ao próprio filho não conheça. pessoas

As pessoas pasmadas, de ignorantes,


As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu. Apela às pessoas para que não
se espantem, pois naquele dia
nasceu o ser mais infeliz do
Ó gente temerosa, não te espantes, Mundo
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!
Este texto coloca-nos de chofre em contato com o que há de mais íntimo e
pro­fundo em Camões, isto é, em contato com o próprio poeta.
E como? Em primeiro lugar, pela estreita relação Camões-poeta e Camões-
personagem, Camões-sujeito e Camões-objeto da sua poesia. Depois, pela
situação de desespero que aparece como ponto de chegada de uma série
de temas: ilusão, engano, desengano, sofrimento, frustração... Em terceiro
lugar, pelo tom de ira e furor, de revolta cega e, contudo, lúcida,
especificamente camoniana. E depois, ainda, por temas muito
caraterísticos e definidores da visão da vida do poeta: a ligação do
nascimento e da morte; as relações ambíguas com a mãe; a visão de si
próprio como um ser desmesurado, mesmo monstruoso; a sensação de
desgraça maior.
 
MATOS, Maria Vitalina Leal de, 1987.
Ler e Escrever. Lisboa: IN-CM
Fim

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