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Curso de Linguística Histórica

2º Semestre de 2014 (FLL 0443)

5.MUDANÇA
MORFOLÓGICA
Prof. Thomas Finbow
Departamento de Linguística (FFLCH/USP)
A REANÁLISE
 Esta aula examina a mudança morfológica, ou seja, adaptações na estrutura
morfológica de itens léxicos e de formas flexionadas, e a evolução de sistemas
morfológicas inteiros.
 A REANÁLISE é a forma mais simples em que a mudança morfológica se
manifesta:
 Uma palavra que era analisada como um item que apresentava uma determinada
estrutura morfológica passa a ser percebida pelos falantes como uma ocorrência de uma
estrutura distinta da primeira ocorrência.
 Biquíni (1 morfema não-analisável) = nome de um atol no Oceano Pacífico onde os Estados
Unidos realizou vários testes atômicos nos anos 60.
 → Reanalisado como uma palavra composta de 2 morfemas:
 bi- “ dois” , “ bi-” + quíni “ roupa de banho” , ou seja, uma roupa de banho de duas peças” .
 A existência de biquíni estimulou a invenção de outras palavras parecidas:
 → mono- “ um” , “ mono-” + quíni > monoquíni “ biquíni sem a peça superior” .
 Lat., minimum = min- “ pequeno” (cf., ingl., minor “ menor” , minus “ menos” ) + -mi-
(superlativo) + -um (desinência flexional).
 Miniature (“ miniatura” ) provocou a reanálise de minimum como se a palavra fosse composta
de dois morfemas em lugar de três:
 mini- “ muito pequeno” + -mum (flexão sem significado) →
 O prefixo novo mini- com o significado de “ muito pequeno” começou a ser acrescentado a
outros substantivos, p. ex., miniskirt “ minisaia” , minicar “ o mini” ...
A METANÁLISE
 Artigo indefinido em francês:
 (masc.)
 Artigo indefinido em inglês: X[œ̃ n] /_+un
#V [œ̃ ] /_+#C
 (fem.) une [yn]
 a / _+#C x an /_+#V
 Árabe: nāranj “ laranja” >
 Ingl. med., a naddre “ víbora” >  esp. una naranja, ptg., uma laranja →
 Ingl. mod., an adder.  Ingl. med., a norange [ə'nɒ.ɹɪnʤə],
 Fr. med., un norange [œ̃ .no'ɾɑ̃.ʤə] >
 Ingl. med., a napron “ avental” >
ingl. mod., an apron.  Fr. mod., un orange [œ̃ n.o'ʀɑ̃ʒ],
 Ingl. mod., an orange [ən'ɒ.ɹɪnʤ].
 Ingl. med., a noumpere “ juiz” ,
“ árbito” > ingl. mod., an umpire.  Fr. mod., la licorne “ unicórnio” :
 Ingl. med., an ewt “ tritão” ,  O unicórnio
+ -cornu = Lat., “tard.,
“ chifre” uni- .“ um” , “ uni-”
chifrado”
“ salamandra aquática” > ingl. mod.,
a newt.  Fr. med., une unicorne = [yn(ə).y.ni'kor.nə]
> (haplologia)
[yn.i'kor.nə] > une icorne
 Ingl. med., an ekename “ apelido” >  (+ art. def.) l’icorne [li'kor.nə] >
ingl. mod., a nickname.
 la licorne, une licorne.
UM CASO DE METANÁLISE EM BASCO
(Descoberto pelo linguista holandês Rudolf P. G. de Rijk, 1995)
 Basco antigo 1: *dan “ agora” .

 Basco antigo 2: *dan “ agora” & orain “ agora”


 Orain < lat., hora “ hora” + sufixo basco -in “ a” , “ em” , ou seja, orain = lit., “ na hora” , cf. ptg. mod.,
agora < lat., hāc hōrā “ nesta hora” ).

 Com freqüência, o basco forma palavras compostas copulativas (composições dvandva, ou seja,
palavras compostas em que os dois elementos são núcleos do sintagma nominal), p. ex.,
 Zuribeltz “ preto-e-branco” , “ alvinegro” (lit., preto-branco). Aitamak “ pais” (lit., “ pais-mães” ).

 orain + dan > oraindan (lit., “ agora-agora” ), talvez “ agora mesmo” .

 No basco antigo, qualquer advérbio de tempo poderia receber o sufixo –dik “ de” , “ desde” :
 Oraindandik “ de agora” > oraindanik “ a partir de agora” (NB /-nd-/ > (/-nn-/) > /-n-/).
 *dan desaparece da língua e, consequentemente, a estrutura morfológica dessa palavra composta se
torna opaca à análise dos falantes por desconhecerem *dan.
 Orain + dan + -dik “ agora” + “ agora” + “ desde” > REANÁLISE >
 Orain + -danik (radical “ agora” + sufixo “ desde” , “ a partir de” ).
 Esse novo sufixo -danik ocorre com qualquer advérbio de tempo: orduan “ então” , iaz “ ano passado” >
orduandanik “ desde então” , “ a partir de então” ; iazdanik “ desde o ano passado” .
A REANÁLISE SEM A PERDA DE ELEMENTOS
 A reanálise pode acontecer sem que um dos elementos desapareça.

 O linguista americano Ronald Langacker (1977) estudou um caso de


“ reanálise sem perda” nos pronomes reflexivos num grupo de línguas
uto-astecas do sudoeste dos Estado Unidos.

 Aparentemente, a forma ancestral das línguas uto-astecas havia um


elemento reflexivo *na, que não aparecia sozinho, mas ocorria em
frases mais compridas.

 Por exemplo, na língua uto-asteca ancestral, a frase “ ele está


trabalhando sozinho” era expressada com DUAS frases “ ele está
trabalhando; ele está sozinho” :
 No uto-asteca ancestral:
 *pɨ-na-kʷa-yɨ “ ele-si-por-está” (4 morfemas)

 “ ele + si + por (ou seja, “ só(zinho)” + está.


REANÁLISE SEM PERDA (cont.)
 Nenhum desses morfemas desapareceu. Entretanto, Langacker conseguiu
demonstrar que os quatro morfemas originais foram reanalisados como dois: {pɨ-}
+ {-nakʷayɨ}.

 As línguas uto-astecas são posposicionais, ou seja, a ordem é Núcleo +


Complemento. Assim, {pɨ-} foi reanalisado como “ si” e o resto ({-nakʷayɨ}) foi
interpretado como uma posposição que significava “ com” ou “ por” .

 A evidência que comprova que a reanálise ocorreu deste modo está no ramo
númico das família uto-asteca: {pɨ-} atualmente é o pronome reflexivo padrão (ou
seja, “ se” ). {-nakʷayɨ/}desapareceu.

 Contudo, em outros subfamílias uto-astecas, a reanálise ocorreu de outra maneira.

 Em tarahumara, a sequência inteira (/pɨ+na+kʷa+yɨ/) foi convertido em um


pronome intensivo “ (ele) mesmo” , que se transformou no pronome reto da 3ª
pessoa do sing. (ou seja, “ ele” ), embora tenha sofrido uma série de modificações
fonológicas que fizeram com que, hoje, sua forma é /binoj/.
REANÁLISE DE MORFEMAS DE UMA
PALAVRA PARA OUTRA
 O exemplo de metanálise em an ewt > a newt mostra como as divisões morfológicas podem ser alteradas para que um
segmento mude de um morfema a outro (nesse caso, do início do substantivo ao fim do artigo indefinido).

 Entretanto, a reanálise pode ser mais drástica do que isso:


 É possível que um morfema inteiro seja transferido de uma palavra a outra.

 Por exemplo, o basco antigo não distinguia os pronomes interrogativos dos pronomes indefinidos (isso é bastante comum
nas línguas do mundo).
 Nor = “ quem?” e “ alguém” X Zer = “ que?” e “ algo” .

 Quando uma dessas palavras era o sujeito de um verbo, o significado indefinido era marcado no verbo pelo prefixo bait-:
 “ Quem vem?” = *nor dator? X “ Alguém vem” = *nor bait-dator.

 O basco marca o sujeito de um verbo transitivo com o sufixo –k:


 “ Quem está trazendo-o?” = *Nor-k dakar? X “ alguém está trazendo-o” *Nor-k bait-dakar.

 *Nor bait-dator > REANÁLISE > nor-bait dator (prefixo verbal > sufixo pronominal):
 nor “ quem?” X norbait “ alguém” , zer “ que?” X zerbait “ algo” .

 Inicialmente, é possível que essas novas formas pronominais se tenham flexionado de uma maneira curiosa, p. ex., por
infixação, nor-k-bait e zer-k-bait, mas essas formas atípicas provavelmente fossam reanalisados conforme as normas
flexionais da língua (prefixação e sufixação) para produzir as formas do basco moderno:
 Norbait-ek dakar “ alguém está trazendo-o” .
A ANALOGIA
 Imaginem que três verbos novos entram na língua portuguesa: zifir, zoter e zaxar.

 Como vocês formariam a terceira pessoa do singular do pretérito desses verbos?

 E a terceira pessoa plural?

 E os imperativos?
 Zif- -iu. - Zif- -iram. - Zife. - Zifi.
 Zot- -eu. - Zot- -eram. - Zote. - Zotei
 Zax- -ou. - Zax- -aram. - Zaxa. - Zaxai.

 E as demais formas?

 A técnica pela que vocês conseguem produzir essas formas plausíveis sem esforço algum é a ANALOGIA.

 O modelo para a formação desses verbos apresentados acima é tão comum e tão regular que constitui uma regra
da gramática portuguesa, uma das muitas regras que vocês internalizaram ao aprender a falar.

 Entretanto, os falantes criam formas (verbais, nominais, adjetivais, etc.) nas quais invocam analogia com um
número mais restrito de formas já existentes, talvez apenas uma dúzia ou duas, ou até uma só forma.

 Essa analogia é muito frequente e constitui um processo muito poderoso na mudança linguística em geral, mas
especialmente nas alternâncias morfológicas.
OCTOPUS : OCTOPI, OCTOPODES? OU OCTOPUSES?
A CRIAÇÃO ANALÓGICA EM INGLÊS
 Em inglês há uma classe de substantivos derivados do  O comportamento do falante:
latim:
 Cactus : cacti :: octopus : ...?
 Cactus ['kæk.tʊs] “ cacto” .
 Radius ['ɹe͡ ɪ.dɪ.ʊs] “ rádio [de um círculo]” .  ANALOGIA PROPORCIONAL ou ANALOGIA
TETRAPARTIDA.
 Succubus ['sʌ.kjuː.bʊs] “ súcubo” .

 OUTROS PROCESSOS SEMELHANTES:


 Esses substantivos formam seus plurais seguindo o
modelo latino e, portanto, são irregulares em termos  Ingl. med., /w/ > 0 / s_o, p. ex., [swɔɹd] > [sɔːd]
do sistema típico do inglês (<-(e)s> [-s, -z, -ɪz]):
 Cacti ['kæk.tɑ͡ ɪ] “ cactos” .  Porém, swore [swɔː] e swollen [swə͡ ʊln̩ ] não apresentam

essa mudança.
Radii ['ɹe͡ ɪ.dɪ.ɑ͡ ɪ] “ rádios” .
 Succubi ['sʌ.kjuː.bɑ͡ ɪ] “ súcubos” .  Há duas possibilidades para explicar o que ocorreu com
essas palavras:
 Modelo latino:
  MANUTENÇÃO ANALÓGICA:
singular <-us> [ʊs]: plural <-i> [ɑ͡ ɪ].
 Os infinitivos ou presentes desses pretéritos / particípios,
 swear [swɛə], swell [swɛɫ] impediram a mudança.
Octopus ['ɒk.tə.pʊs] “ polvo” é singular.
 RESTORAÇÃO ANALÓGICA:
 Para muitos falantes do inglês, o plural de octopus é
octopi ['ɒk.tə.pɑ͡ ɪ].  Ingl. med., swore [swɔɹə] e swollen [swolən] > [sɔɹə] e
[solən] > [w] foi restaurado, conforme o modelo dos
infinitivos / tempo presente [swɛːɹ] e [swɛɫ] > ingl. mod.,
 Entretanto, na realidade, octopus não é um [swɛə] e [swɛɫ]
empréstimo do latim; a palavra veio do grego e seu
plural em grego é octopodes!
ANALOGIA NA HISTÓRIA DO PRETÉRITO

PORTUGUÊS
Infinitivo: -AR : 1ª p. sing. pret. –ei / infinitivo: -ER, -IR : 1ª p. sing. pret. –i):

 Português moderno: Português medieval:


 Escrever : escrevi Rir : ri Escrise < lat., SCRĪPSĪ Rise < lat., RĪSĪ
 Destruir : destruí Meter : meti Destruxe < lat., DESTRŪXĪ Mise < lat., MĪSĪ
 Sorrir : sorri Sorrise < lat., SUBRĪSĪ

 Dicĕre : dīxī > dizer : disse e trahĕre : traxī (> *troxī) > trouxe (cf. esp. ant., troxe & esp. mod., traje).

 Esse modelo ficou bastante produtivo →


 quaerĕre : quaesīvī > querer : quis(e) “ quis” .
 prehendĕre : prehendī > prender : prise “ prendi” .
 apprehendĕre : apprehendī > aprender : aprise “ aprendi” .

 HABĒRE : HABUĪ > haver : houve SAPĔRE : SAPUĪ > saber : soube

 Iacĕre : iacuī > jazer : jougue (“ jazi” ) placĕre : placuī > (a)prazer : (a)prougue (“ aprazi” ) →
 Credĕre : crēdidī > crer : crove (> crer : cri) Tenere : tenuī > ter : tove (> ter : tive)
 Stāre : stetī > estar : estove (> estar : estive) Attribuere : attribuī > atrever : atrove (> atrever : atrevi)
 Sedēre : sēdī > seer : sove (> ser : fui)
 Ambitāre : ambitāvī > andar : andove (> andar : andei) (cf. esp. mod., andar : anduve ~ andei)

 PONERE : PŎSUĪ > pôr : pus(e) → respus(e) “ respondi” (lat., respondī)

 POTERE : PŎTUĪ > poder : pude → e em reação a alternância –(o)der : -ude, surgiram:
 estude “ estive” , andude “ andei” , tude “ tive” , conuve (< lat., cognōvī ~ cognvuī) “ conheci”
O PARADOXO DE STURTEVANT
 Com frequência, a mudança fonológica regular rompe os
paradigmas flexionais regulares, mas, simultaneamente, as pressões
da analogia tende a manter ou restaurar esses paradigmas regulares.
 Isso gera um conflito fundamental entre a mudança fonológica e a
analogia.

 A MUDANÇA FONOLÓGIA É TIPICAMENTE REGULAR,


MAS ELA PRODUZ IRREGULARIDADE.

 A ANALOGIA É NATURALMENTE IRREGULAR, MAS ELA


PRODUZ REGULARIDADE.
O NIVELAMENTO ANALÓGICO
 Lat., /á/ > Fr. ant., [ai] (ditongação da vogal tônica) > Fr. mod., [ɛ] <ai>
 Lat., /a/ > Fr. ant., [a] (não houve ditongação):
 PESS. LAT. CLÁS. LAT. TAR. FR. ANT. FR. MOD.
 1ª sing. ámō ámo aim aime [ɛm]
 2ª sing. ámās ámas aimes aimes [ɛm]
 3ª sing. ámat ámat aimet aime [ɛm]
 1ª pl. amā́ mus amáms amons aimons [ɛ'mõ]
 2ª pl. amā́ tis amádes > amáiz > amez > aimez [ɛ'me]
 3ª pl. ámant ámant aiment aiment [ɛm]
MAIS UM EXEMPLO DE NIVELAÇÃO
 lat. pré-clás., /s/ > ([z] >) [r] / V_V :
 Flōs (nom.sg.) : flōsis (gen. sg.) : flōsēs (nom, ac. pl.) >
 MUDANÇA FONOLOGICA (/s/ > [z] / V_V, [z] > [r] > flōs :
flōrem : flōris : flōre : flōrēs.
 Honōs (nom.sg.) : honōsem : honōsis (gen. sg.) : honōse (abl.
sg.) : honōsēs (nom, ac. pl.) >
 MUDANÇA FONOLÓGICA > honōs : honō[z]is > honō[r]is ~
honō[z]e > honō[r]e ~ honō[z]ēs > honō[r]ēs > NIVELAMENTO
ANALÓGICO: honōr : honōrem : honōris : honōrēs.
 Sustantivos latinos que sempre exibiam /r/ no nom. sing.:
 labor (nom.sg.) : labōris (gen. sg.) : labōrēs (nom, ac. pl.).
 gladiātor : gladiātōris : gladiātōrēs.
 amor : amōris : amōrēs.
 cultor : cultōris : cultōrēs.
 pistor : pistōris : pistōrēs.
OUTROS EXEMPLOS DE NIVELAMENTO
 O germânico antigo sofreu duas mudanças:  Ingl. ant., frēosan ~ ingl. mod., to freeze
(“ congelar” ) e ingl. ant., (for)lēosan ~ ingl.
 (1) /s/ > [r] / _V́ mod., to lose (“ perder” ):
 (rotacismo diante de vogais tônicas)  frēo[z]an free[z]e lēo[z]an
 (2) Mais tarde, todos os casos de /s/ lose [luz]
intervocálica restante que não haviam 
sido convertidos em [r], se tornaram [z]. frēa[s] fro[z]e lēa[s]
lost [lɒst]
 Essas mudanças provocaram alternâncias  fru[r]on fro[z]e lu[r]on
complexas no radical de certos verbos: lost [lɒst]
 gefro[r]en fro[z]em gelo[r]en
Ingl. ant., cēosan ~ ingl. mod., to choose lost [lɒst]
(“ escolher” ):
 Inf., cēosan [z] ~ choose [z]  O nivelamento da paradigma lose-lost-lost é
apenas parcial, porque ainda exibe algumas
 Pret. sing., cēas [s] ~ chose [z] formas arcaicas com /r/, ou seja, existe o
 Pret. pl., curon [r] ~ chose [z] adjetivo lorn (< particípio (ge)loren), p. ex.:
 Part., gecoren [r] ~ chosen [z]  Lovelorn “ [o amante] desprezado” , “ suspirando
de amor” (originalmente “ perdido de amor” ).
 A única exceção no inglês moderno é o  A lone, lorn figure “ uma figura sozinha e
verbo to be (“ ser” ): desolada” .

  forlorn “ abandonado” , “ desamparado”


Pret., sing., was : pret. pl., were.
(originalmente o particípio do verbo prefixado
forlose < forlēosan).
A OUTRA FACE DA MOEDA
 O cognato do inglês antigo cēosan no alto alemão antigo era kiusan
“ escolher” :
 Infinitivo, kiusan [z] > alem. mod., küren (arc.)
 Pretérito singular, kōs [s] > kor
 Pretérito plural, kurun [r] > koren
 Particípio, gikoran [r] > gekoren

 Outros exemplos:
 Frieren “ congelar” – fror, froren, gefroren,
 cf., ingl. mod., freeze, froze, frozen.
 Verlieren “ perder” – verlor, verloren, verloren.
 cf., ingl. mod., lose, lost, lost (lorn).

 Ou seja, o alto alemão antigo “ preferiu” generalizar a variante com /r/ (ou seja, o
radical da reorganização era o pretérito plural e o particípio) e não a variante com /z/
(infinitivo e pretérito singular), como foi o caso com o inglês antigo.
 “Contaminação”:
 Uma mudança irregular na forma de uma palavra sob a influência de uma outra palavra
com que a primeira está associada de alguma maneira, e.g., male : femelle > male :
female; overt (< fr., ouvert “ aberto” ) e é oxítono. Contudo, covert é só uma variante da
palavra (particípio) covered “ coberto” e, antigamente, era pronunciada da forma
correspondente (ou seja, covered é paroxítono – ['kʌ.vɜd] ~ ['kʌ.vəd] – e covert também
era). Entretanto, o uso frequente dos dois termos como antônimos resultou numa
mudança no posicionamento do acento tônico em covert, que se deslocou para a última
sílaba. Hoje, a maioria dos falantes pronunciam covert como se rimasse com overt.

 Os numerais são especialmente susceptíveis à contaminação, p. ex., em latim,


“ nove” teria sido **noven (com uma nasal coronal), se tivesse evoluído
regularmente; porém achamos a forma novem (com nasal bilabial), que surgiu sob a
influência do numeral seguinte, decem.
 Em russo e em lituano, o numeral para “ nove” deveriam ser **nevyni e **nevyat’,
respectivamente, mas achamos devyni e devyat’, novamente, sob a influência de “ dez”
(dešimt e desjat’).
 Em basco, bederatzu “ nove” (que foi preservado nos dialetos do leste) se tornou
bederatzi na maioria dos outros dialetos, sob a influência de zortzi “ oito” .
 O francês antigo tinha duas palavras para dizer “ habitante nativo” – citeien e denzein –
o primeiro adquiriu um /z/ em francês normando do segundo e o segundo adotou um /i/
do primeiro, ou seja, citesein e denisein (> ingl. mod., citizen “ cidadão” e denizen
“habitante” , “ morador” ).
 Hipercorreção:
 ocorre quando um falante tenta ajustar a sua linguagem ou seu
sotaque na direção de outra variedade que é percebid como mais
prestigiosa do que a variedade nativa do falante, mas ele acaba
exagerando a aplicação do ajuste:
 Inglês britânico → inglês americano: “ acrescenta /r/ pós-vocálico” :
dark, court – [dɑːk] → [dɑɹk], [kɔːt] → [kɑɹt] ... Avocado > avocaRdo.
 inglês americano → inglês britânico: “ converter /uː/ em /juː/” :

 new [nuː] X [njuː], ... do [duː] > [djuː] (dew “orvalho”!)

 Ingl. med., “ trono” = trone [troːn] (< fr. < gr., thronos) → ingl. mod.,
throne [θɹə͡ ʊn] (<th> etimológico para indicar a origem grega que a
pronúncia da fricativa interdental veio depois.
 Isso pode dar errado, p. ex., author ['ɔːθə] (< fr. ant., autour (> fr. mod.,
auteur), ou seja, não vem do grego, mas, aparentemente, a forma
ortográfica estimulou a pronúncia com a fricativa interdental, embora
nunca tivesse nada do grego.
AS SEIS “ LEIS” DE ANALOGIA DE JERZY
KURYŁOWICZ (1947) [1]
(1) Uma marcação (2) Uma forma DERIVADA é
COMPLEXA substituirá uma adaptada para torná-la mais
marcação SIMPLES: TRANSPARENTE
 Alto alemão antigo: FORMALMENTE e
 Gast “ hóspede” / gasti especialmente aproximá-la às
“ hóspedes” > gast / gesti. formas simples das quais é
 > alt. alem. mod., Gast – derivada:
Gäste (marcação plural
dupla: umlaut +  Basco:
sufixação).  Basc. ant., ardi “ ovelha” +
 Boum “ árvore” / bouma ile “ pêlo” > *ardi-ile “ lã”
“ árvores” (marcação > basc. mod., artile
simples – sufixação) > (analogia) > ardi-ile.
 alt. alem. mod., Baum –
Bäume (marcação plural
dupla: umlaut +
sufixação).
AS SEIS “ LEIS” DE KURYŁOWICZ [2]
(3) Uma forma composta (4) Quando uma forma sofre uma
transparentemente de um radical reforma analógica, a forma nova
mais um afixo servirá como modelo ocupará a função primária e a forma
para reformar as formas nas quais a antiga fica apenas em funções
secundárias.
estrutura de radical + afixo não é
transparente.  Inglês:
 Brother (sing.) / brethren (pl.) >
 Basco: (analogia) >
 Non / nun (onde?) = [no-], [nu-]  Brother / brother + -s “ irmão(s)”
(radical interrogativo) + [-n]
(flexão do caso locativo).  Brethren (“ comunidade
monástica” ).
 Nonbait / nunbait “ nalgum luga
 **” I have two brethren, Michael
r” não termina em –n, cf. neman e Paul” .
“ aqui” , orduan “ então” , etxean
“ na casa” .  Hus “ casa” + wif “ mulher” >
huswif “ dona de casa” > hussy >
 Basc. ocidental: nunbait > [analogia] > housewife “ dona de
nunbait + -en. casa” + hussy “ moça levada” ,
“ sapeca” (pejorativação
semântica)
AS SEIS “ LEIS” DE KURYŁOWICZ [3]
(5) Para reestabelecer uma DISTINÇÃO DE (6) Uma FORMA NATIVA pode ser
SIGNIFICÂNICA CENTRAL, a língua RENUNCIA uma REFORMADA sob a INFLUÊNCIA de
outra distinção, tida como menos relevante. uma FORMA NÃO-NATIVA,
especialmente se essa variedade for MAIS
Lat. clás., (2ª declinação): Singular Plural
PRESTIGIOSA do que aquela.

O basco possui um sufixo –tasun para criar
Nom., mūrus substantivos abstratos:
mūrī
 Bakartasun “ solidão”
 Acu., mūrum
mūrōs  (< bakar“ sozinho” ).

  Edertasun “ beleza”
Gen., mūrī
mūrōrum  (< eder “ belo” ).
 Dat., Abl., mūrō  Mas, o basco também adotou alguns
mūrīs substantivos abstratos do espanhol que
terminam em –dad e –dura e alguns
falantes (muitos deles bilíngues) tem
Mudanças fonológicas regulares resultaram nas seguintes assimilado esses sufixos espanhóis
formas no francês antigo: para formar substantivos abstratos
bascos a partir de radicais nativos em
 Singular Plural lugar de –tasun, p. ex., baskardade
. “ solidão” , ederdura “ beleza” .

 Nom., murs Acu., mur Nom., mur Acu., murs.

Nesta classe de substantivos, não havia uma distinção sistemática


entre singular e o plural, nem entre o nominativo e o acusativo.

Para manter a distinção de número, a língua abandonou a


distinção de caso que geralmente podia ser reconhecido pela
posição da palavra relativo ao verbo. As formas acusativas foram
generalizadas: singular mur e o plural murs.
AS NOVE “ TENDÊNCIAS” DA ANALOGIA DE
WITHOLD MAŃCZAK (1958) [1]
(1) É mais comum que as palavras MAIS
COMPRIDAS sejam REFORMADAS no (2) A ALTERNÂNICA NOS
modelo de palavras MAIS CURTAS do RADICAIS LÉXICOS tende a ser
que o processo inverso, salvo nos ABANDONADA antes de ser
paradigmas flexionais. INTRODUZIDA.
 Ingl. ant., huswif “ ama de casa” > hussy.
 Este processo é o que acabamos de
 REFORMA > housewife (morfemas ver na maioria dos exemplos de
plenos e explícitos: house + wife).
nivelamento analógico, como no
 Hussy foi restrito semanticamente, caso de amons > aimons e amez >
tornando-seperjorativa. Hoje, hussy aimez no francês.
refere a uma menina levada e
malcomportada, uma “ sapeca” .
Contudo, observe que esta segunda
NB Esta “ tendência” de Mańczak concorda tendência de Mańczak contradiz a
com a quarta “ lei” de Kuryɫowicz, ou seja, primeira lei de Kuryɫowicz que prevê
“ quando uma forma sofre reformulação
analógica, a forma nova ocupará a função que “ uma marcação complexa substituirá
primária e a forma antiga fica apenas em uma marcação simples” .
funções secundárias” .
AS “ TENDÊNCIAS” DE MAŃCZAK [2]
(3) As formas FLEXIONAIS (4) As DESINÊNCIAS NULAS
MAIS COMPRIDAS tendem a geralmente são substituídas por
ser reformadas no modelo das DESINÊNCIAS PATENTES em
formas MAIS CURTAS com lugar do inverso.
mais frequência do que o  No inglês antigo e medieval
inverso, EXCETO nos casos em alguns substantivos exibiam
que uma forma exibe um AFIXO plurais nulos.
NULO e a outra manifesta um  Alguns desses substantivos
AFIXO EXPLÍCITO. permaneceram na língua
 Verbo composto latino calefacere moderna, p. ex.,
“ aquecer” (lit., “ fazer quente” ) >  deer, sheep, salmon, trout.
 REMODELADO na base da  Porém, a maioria ganharam
desinência infinitiva –āre, p. ex.,
amāre > uma nova desinência aberta do
plural, p. ex.,
 Este neologismo analógico
calefāre > Fr., chauffer.  Word ~ word > word ~ words.
AS “ TENDÊNCIAS” DE MAŃCZAK [3]
(5) As terminações monossilábicas tendem a (7) As formas do presente tendem a
ser trocadas por variantes polissilábicas com
mais frequência do que o inverso. influenciar o remodelamento dos

outros tempos verbais com mais
Em basco, a inflexão tradicional do caso
alativo (que indica o significado “ a” ou “ par frequência do que o inverso.
a” um lugar) é –a, p. ex.,
 “ para Zarautz” = Zarautza.
 No latim antigo, a desinência
da 3ª pessoa do singular do
 Alguns falantes trocaram esta forma
monossilábica por uma outra flexão
presente do indicativo era –t e
dissilábica –era, p. ex., sua terminação correspondente
 “ para Zarautz” = Zarautzera. no perfeito do indicativo era –
d:
(6) As formas do indicativo geralmente  (pres.) amat : (perf.) amāvid.
provocam a reforma de outras modos
verbais e não o inverso.  No latim clássico, entretanto, os
dois paradigmas apresentam –t:
 O subjuntivo português foi remodelado
parcialmente nas formas do indicativo,  (pres.) amat : (perf.) amāvit.
em particular, a 1ª pess. sing. do pres. do
indic. (veja o próximo slide)
VERBOS PORTUGUÊS COM MODIFICAÇÕES
DE E E O RADICAIS
2ª conjugação: uertĕre “ verter” 3ª conjugação: seruīre “ servir”

Lat. clás. Pt. arc. Pt. mod. Lat. clás. Pt. arc. Pt. mod.

1ª p. sg. pres. indic. uĕrtō vɛrto vẹrto sĕruĭō svrvo sirvo

2ª p. sg. pres. indic. uĕrtis vɛrtes vęrtes sĕruĭs sɛrves sęrves

3ªp. sg. pres. indic. uĕrtit vɛrte vęrte sĕruĭt sɛrve sęrve

A vogal da 1ª pessoa do singular da 2ª conjugação se fecha um grau:


 Ptg. ant., verto [vɛrtu] > METAFONIA POR [u] (vogal alta/fechada
posterior átona)
 > ptg. mod., verto [vẹrtu].
 A vogal da 1ª pessoa do singular da 3ª conjugação se fecha dois graus:
 Ptg. arc., servio [sęɾvjo] > METAFONIA POR IODE (vogal alta/fechada
anterior átona)
 (> Ptg. ant., servo [sẹɾvu] > METAFONIA POR [u] > ptg. mod., sirvo
[siɾvu].

 Todo o singular e a 3ª pessoa do pl. do pres. do subj. quase sempre teve a


mesma raiz da 1ª pessoa do sing. do pres. do indic.

 Seguindo esta relação geral e bem estabelecida, e a despeito do efeito


metafônico do –a final, a palavra vęrta (e muitas outras similares) se tornou
vẹrta e sẹrva se tornou sirva.

 Tal é a força da analogia no seu triunfo sobre a força da modificação


fonológica.

 Nos verbos da 3ª conjugação portuguesa, esse desenvolvimento analógico foi


apoiado pela analogia com a 1ª e 2ª pessoas do pl. do pres. do subj. também,
em que o desenvolvimento do i era fonológico, p ex., sĕruĭāmus > sirvamos.
AS “ TENDÊNCIAS” DE MAŃCZAK [4]
(8) Os topônimos (9) quando um topônimo
preservam arcaísmos nas sofre um processo
suas flexões de caso melhor relacionado com a
do que substantivos analogia, as suas formas
comuns. flexionais casuais afetam
 Em basco, alguns as não-locais mais do que
topônimos conservam as o inverso.
desinências locativa e
alativa antigas -n e -a.  O nomes de algumas
 A maioria das frases
cidades alemães contêm
uma desinência antiga
nominais no basco locativa -en, p. ex.,
moderno adquiriram Baden-Baden (Um
uma desinência locativa balneário cujo nome
nova –an (< *-gan) e deriva da palavra Bad
outra alativa em –ra. “ banho” .)
A MORFOLOGIZAÇÃO
 As vezes, o que era antigamente uma palavra autônoma (morfema
livre) se vê reduzida a um morfema preso, num processo tipicamente
perdendo seu antigo significado lexical por uma função gramatical (a
gramaticalização). Alguns linguistas asseveram que TODOS os
morfemas presos se formam desta maneira.
 Basco antigo: *kide “ companhia” , “ associação” (no basc. mod. esta palavra
quer dizer “ colega” , “ sócio” , “ companheiro” ).
 *kide começou a ser utilizado com sintagmas nominais genitivas para
expressar o conceito de “ na companhia de” , p. ex.,
 gure “ nosso” (< gu “ nós” ) + *kide + art. def. –a + inflexão do caso locativo –n
(“ em” ) > *gure kidean “ na nossa companhia” , cf. gure etxean “ na nossa casa” .
 O conjunto da flexão genitiva -(r)e + *kidean > -(r)ekin (flexão do caso
comitativo = “ com” ), p. ex.,
 Gurekin (“ conosco” ). Nirekin (“ comigo” ). Neskarekin (“ com a menina” ).
 *kide desapareceu da língua no sentido original de “ companhia” , deixando
apenas a nova inflexão.
A MORFOLOGIZAÇÃO DE MENTE
 O substantivo no latim clássico mens “ mente” havia o radical ment- e o caso
ablativo mente (que geralmente expressava sentidos preposicionais).
 No latim tornou-se comum usar mente (abl.) + adjetivos concordando com o
gênero, número e caso com mente (fem., sing., abl.) para expressar o estado de
ânimo em que uma ação foi feito: Devota mente “ com a mente devota” . Clara mente
“ com a mente clara” .
 Inicialmente, não era possível utilizar a construção com adjetivos que não
denotasse atitudes mentais. Outros adjetivos com significados como “ novo” ,
“ igual” , “ óbvio” não podiam aparecer com mente porque o resultado não teria
feito sentido, p. ex., “ com uma mente nova” , “ com uma mente igual” .
 Num determinado momento, os falantes começaram a reinterpretar a presença de
mente como uma simples indicação da MANEIRA em que uma ação foi feita e
não como indicação do estado de ânimo do agente. Isso possibilitou construções
como lente mente e dulce mente (ainda com a concordância feminina). Mente não
era considerado mais uma forma flexionada de mens, mas um marcador da função
adverbial.
 Nas línguas neolatinas atuais, -mente é uma sufixo para formar advérbios de
maneira e pode aplicar-se a quase qualquer adjetivo, p. ex., igualmente (< igual),
absolutamente (< absoluta).
 NB esp. e ptg. mod., lenta- y seguramente / lente e seguramente (só o último adjetivo na
sequência leva o sufixo), mas fr. mod., **lente et sûrement (lentemente et sûrement): o
radical adjetival não pode ser separado do sufixo.
A MORFOLOGIZAÇÃO DE -LY EM INGLÊS
 Ingl. ant., lic “ corpo” > lich (arcaico)
 NB lich-gate “ portão coberto à entrada de cemitério, onde o caixão
aguarda a chegada do padre” .

 Formas derivadas de lic:


 → gelic “ o que possui um corpo comum” > like “ como” :
 p. ex., She is like you “ Ela é como você” .
 → substantivos + -lic “ parecido a” , “ semelhante a” , “ com as
características de” :
 Fæderlic (cf., ingl. mod., father-like, fatherly) “ paterno” , “ como um pai” .
 Manlic (cf., ingl. mod., man-like, manly) “ másculo” , “ viril” .
 → adjetivos ganham o sufixo -lice (lic + inflexão) para significar
“ na maneira de” , “ ...-mente” :
 Slawlice “ lentamente” (> ingl. mod., slowly).
 Cwiculice “ rapidamente” (> ingl. mod., quickly).
A MORFOLOGIZAÇÃO DE PRONOMES EM AFIXOS
 Um outro processo muito comum é os pronomes retos autônomos que
se vêm reduzidos a afixos para indicar concordância verbal ou para
marcar a posse em frases nominais.
 Basco – o verbo joan “ ir” :
 Marcador de concordância é um prefixo. Marcador de concordância é um sufixo.
 noa “ eu vou” (ni – eu) dut “ eu o tenho” (ni – eu)
 hoa “ tu vas” (hi – tu [íntimo]) duk “ tu o tens” (hi – tu [íntimo])
 doa “ ele, ela vai” (sem pronome) du “ ele, ela o tem” (sem pronome)
 goaz “ nós vamos” (gu – nós) dugu “ nós o temos” (gu – nós)
 zoaz “ vós vais” (zu – vós [neutro]) duzu “ vós o tendes” (zu – vós [neutro])
 doaz “ eles, elas vão” (sem pronome) dute “ eles, elas o têm” (sem pronome).

 A maioria (mas não todos) desses afixos bascos são tão semelhantes ao
pronome correspondente que fica bastante claro que os afixos derivam
de uma incorporação dos pronomes livres no radical verbal. Os demais
casos são intrigantes, mas e possível que se trate de uma alternação
antiga no radical pronominal que sofreu nivelação até o ponto de
desaparecer.
CLITICIZAÇÃO
 O primeiro passo no caminho de morfologização (gramaticalização) é frequentemente a cliticização.

 O morfema livre se vê reduzido a um clítico:


 Um clítico é algo que é menos que uma palavra independente, mas que é algo mais do que um
afixo preso. Sempre coocorrem com um outro elemento que serve de “ apoio” estrutural e
fonológico. O clítico forma uma única unidade prosódica com seu apoio. Também, os clíticos
apresentam certas limitações com respeito à posição em que podem ocorrer relativo ao apoio.

 Um exemplo clássico de cliticização é o caso dos pronomes oblíquos das línguas neolatinas.
 Latim clássico: Iōannēs librum Mariae dabit.
 Latim tardio: Iōannēs illum librum a Mariae dāre habet.
 Fr., Jean donnera le livre à Marie. Ptg., O João dará o livro à Maria.
 Esp., Juan dará el libro a María. Ital., Gianni darà il libro a Maria.
 Latim clássico: Hīc illum illī dabit. Latim tardio: Ille illum illī dāre habet.
 Fr., Il le lui donnera. Ptg., Ele lho dará ~ ele dar-lho-á.
 Esp., Él te lo dará. Ital., Il le lo darà.
 No francês moderno coloquial a função dos pronomes clíticos está se tornando muito
parecida aos marcadores de concordância no verbo para objetos e sujeitos, como há o basco e o
suaíli ou algumas línguas caucásias.
 Fr. mod. col., Jean, il te le donnera, le livre. < Fr. mod. form., Jean te le donnera.
A MORFOLOGIZAÇÃO DE REGRAS
FONOLÓGICAS
 A morfologização também pode referir à situação em que uma regra
fonológica regular para de ser produtiva de forma que seus efeitos
fiquem restritos a determinadas palavras e formas que estavam presentes
na língua quando a regra fonológica foi ativa.
 O inglês medieval tinha sete vogais em pares contrastantes
diferenciados pela duração:
 Vogais curtas: /i e ɛ a ɔ o u/ X Vogais compridas: /iː eː ɛː aː ɔː oː uː/.

 O RELAXAMENTO TRISSILÁBICO:
 Em certas circunstâncias fonológicas, particularmente quando eram seguidas
por dois ou mais sílabas, as vogais compridas se contraíram:
 /iː/ > /i/, /eː/ > /e/, /ɛː/ > /ɛ/, /aː/ > /a/, /ɔː/ > /ɔ/, /oː/ > /o/, /uː/ > /u/, p. ex.,
 Sane [saːnə] : sanity ['sa.nɪ.tɪ]. Serene [se'ɹeːnə] : serenity [se'ɹe.nɪ.tɪ].
 Sign [siːn] : signify ['sɪg.nɪ.fɪ]. Profound [pɹo'fuːnd] : profundity [pɹo'fun.dɪ.tɪ].
 Esse processo constituía uma regra que determinava o que era pronunciável em
inglês medieval.
RELAXAMENTO TRISSILÁBLICO (CONT.)
 Dois acontecimentos importantes alteraram o sistema vigente do inglês medieval:
(1) Todas as vogais compridas mudaram sua qualidade fonética de uma maneira dramática na
Grande Mutação Vocálica (“ Great Vowel Shift” ):
1a. /i:/ > /ə͡ ɩ/ (...> /ai/) 1b. /u:/ > /ə͡ u/ (... > /au/)
pine /pi:n/ “ pinheiro” (> [pɑ͡ ɪn]). doun /du:n/ “ para abaixo” (> down [dɑ͡ ʊn]).
2a. /e:/ <ee> > /i:/ 2b. /o:/ <oo> > /u:/
gees /ge:s/ “ gansos” > (geese [gɪjs]). goos /go:s/ “ ganso” (> goose [gu͡ ws]).
3a. /ɛ:/ <ea> > /e:/ (... > /i:/) 3b. /ɔ:/ <o(a)> > /o:/ (... > /ə͡ ʊ/)
bead /bɛ:d/ “ bolinha” (> [beːd]). gote /gɔ:tə/ “ cabra” (> goat [gə͡ ʊt]).
4. /a:/ > /ɛ:/
name /na:mə/ “ nome” (> [nɛːm]).
(5. (/ɛ:/ <ea> >) /e:/ > /i:/: [beːd] > [bɪjd]) (6. (/a:/ >) /ɛ:/ > /eː/ > / ͡eɩ/: [neːm] > [n ͡eɪm])
O resultado dessa mudança foi que cada vogal comprida ficou bastante diferente da sua
correspondente vogal curta:
[əɪ] : [ɪ] – [iː] : [e] – [eː] : [ɛ] – [ɛː] : [a] – [ɔː] : [ɒ] – [uː] : [o] – [əu] : [ʊ].
(2) Crucialmente, a regra de relaxamento trissilábico parou de operar na fonologia do inglês. Ao
deixarem de ser aplicada de forma sistemática, as alternações vocálicas passaram a ser variantes
morfológicas que marcam o adjetivo e seu substantivo e que têm de ser aprendidas em cada
instância pelo falante quando o indivíduo adquire a língua.
RELAXAMENTO TRISSILÁBICO MORFOLOGIZADA
Hoje, o resultado da lei de Verbose [vɜ.bəʊs] “ verboso” :
relaxamento trissilábico distingue verbosity [vɜ'bɒ.sɪ.tɪ] “ verbosidad
classes morfológicas: e”
adjetivo/substantivo (vain/vanity,
grave/gravity, sane/sanity), Cone [kəʊn] “ cone” : conical
['kɒ.nɪ.kɫ̩ ] “ cônico”
substantivo/verbo
(pronounce/pronunciation), base/ Mode [məʊd] “ modo” : modify
derivado (grain x granary). ['mɒ.dɪ.fɑɪ] “ modificar”
Sane [seɪn] “ são” : sanity ['sæ.nɪ.tɪ] Profound [pɹə‘fɑʊnd] “ profundo” :
“ sanidade” profundity [pɹə’fʌn.dɪ.tɪ]
“ profundidade”
Profane [pɹə.feɪn] “ profano” :
profanity [pɹə'fæ.nɪ.tɪ] “ profanidade” Pirate ['pɑɪ.ɹət] “ pirata” : piracy
(['pɪ.ɹə.sɪ] >) ['pɑɪ.ɹə.sɪ]“ pirataria” ,
Humane [hjuː’meɪn] “ humano” : “ piratagem”
humanity [hjuː'mæ.nɪ.tɪ] “ humanidade”
Obese [əʊ'bɪjs] “ obeso” : obesity
[ə'bɪj.sɪ.tɪ] “ obesidade”
Grain [gɹeɪn] “ grão” : granular Vain [veɪn] “ vão” : vanity [‘væ.nɪ.tɪ]
[‘gɹæ.njulə] “ granular” “ vaidade”
Grave [gɹeɪv] “ grave” : gravity
['gɹæ.vɪ.tɪ] “ gravidade” Private ['pɹɑɪ.ɹət] “ privado” : privacy
['pɹɑɪ.və.sɪ] (USA) ~ ['pɹɪ.və.sɪ] (UK)
Serene [sə‘ɹijn] “ sereno” : “ privacidade”
serenity [sə’ɹɛ.nɪ.tɪ] “ serenidade”
Grain [gɹeɪn] “ grão” :
Clean [klijn] “ limpo” :
cleanliness ['klɛn.lɪ.nəs] “ limpez granary['gɹeɪ.nə.ɹɪ] (USA) ~
a” ['gɹæ.nə.ɹɪ] (UK) “ celeiro”

Saline [seɪ.lɑɪn] “ salino” : Code [kəʊd] “ código” : codify


salinity [sə'lɪ.nɪ.tɪ] “ salinidade” ['kɒ.dɪ.fɑɪ] (USA) ~ ['kəʊ.dɪ.fɑɪ] (UK)
“ codificar”
Crime [kɹɑɪm] “ crime” : criminal
['kɹɪ.mɪ.nɫ̩ ] “ criminal”
Pronounce [pɹə‘nɑʊnts] “ pronunciar”
Sign [sɑɪn] “ signo” : signify : pronunciation [pɹə’nʌn.sɪ.eɪ.ʃn̩ ] ~
['sɪg.nɪ.fɑ͡ ɪ] “ significar” [pɹə‘nɑʊn.sɪ.eɪ.ʃn̩ ] “ pronúncia”
Type [tɑɪp] “ tipo” : typical
[‘tɪ.pɪ.kɫ̩ ] “ típico”
UM CASO ROMÂNICO DE REGRAS
FONOLÓGICAS MORFOLOGIZADAS
 Também é possível que uma regra puramente fonológica se torne morfologizada pelo efeito de mudança
fonológica.
 O ibero-romance tinha dois graus de abertura entre as vogais médias anteriores /e/ e /ɛ/ (e entre as vogais
correspondentes médias posteriores, /o/ e /ɔ/).
 O galego e o português são as únicas línguas neolatinas que continuam este sistema original.

 (1) Nas variedades ibero-românicas ancestrais do castelhano e nas outras variedades espanhóis, /ɛ/ > [jɛ]
quando foi tônica e continuou sendo /ɛ/ em ambientes atônicos:
 Pré-castelhano:
 1ª sg. [pɛ́ɾdo] > [pjɛ́ɾðo]. 2ª sg. [pɛ́ɾdes] > [pjɛ́ɾðes].
 3ª sg [pɛ́ɾde] > [pjɛ́ɾðe]. 3ª pl. [pɛ́ɾden] > [pjɛ́ɾðen].
 Infinitivo: [pɛɾdér], 1ª pl. [pɛɾdémos], 2ª pl.[pɛɾdéis].
 [sɛntáɾ], [sɛntámos], [sentáis] X [sjɛ́nto], [sjɛntes], [sjɛnta], [sjɛntan]
 Pedra [pɛ́dɾa] > piedra [pjɛ́ðɾa] X pedrero [pɛðɾéɾa].

 (2) O /ɛ/ atônico > [e], assim que o fonema /ɛ/ fusionou com o fonema /e/ (e /ɔ/ fusionou com / o/). Assim,
o sistema vocálico do castelhano perdeu uma oposição de abertura entre as vogais anteriores médias
(médias-altas e médias-baixas):
 p. ex., esp. mod., /i e a o u/ : ptg., fr., ital. mod., /i e ɛ a ɔ o u/
 O fonema /e/ original nunca ditongou (vencér : vénzo, pésca : pescádo).
 Então, a motivação pela ditongação se morfologizou. A alternância no espanhol moderno ficou
imprevisível em termos sincrônicos, porque, sem referência à etimologia e a história da língua, é
impossível prever quais instâncias de /e/ ditongam e quais não ditongam quando estão tônicas.
A CLASSIFICAÇÃO LINGUÍSTICA POR
TIPOLOGIA MORFOLÓGICA [1]
 Wilhelm von Humboldt (1762 – 1835), Friedrich von Schlegel( 1772-1829).

 AS LÍNGUAS ISOLANTES:

 Cada palavra consiste em um único morfema livre. Não há morfologia flexional


em forma de morfemas presos.
 Vietnamita:
 Khi tôi dến nhà bạn tôi, chúng tôi bắt dầu làm
bài.
 Quando eu vir casa amigo eu, plural eu começar fazer lição.
 “ Quando eu cheguei à casa do meu amigo, começamos a fazer lições” .
 Mandarim:
 Wǒ mǎi júzi chī.
 eu comprar laranja comer. “ Eu comprei laranjas [para] comer.
 Muitas línguas de África Ocidental Kwa (ioruba, akan, igbo, eve)
 Samoano:
TIPOLOGIA MORFOLÓGICA [2]
 AS LÍNGUAS AGLUTINANTES:
 Uma palavra pode abranger vários morfemas, mas cada morfema é
claramente uma forma distinta. Os morfemas numa palavra estão
organizados em sequências.
 Finlandês, húngaro e as as demais línguas fino-úgricas, o turco e as outras
línguas turcomanas, o basco (língua isolada), suaíli e muitas outras línguas
bantas e muitas línguas australianas e indígenas, p. ex.,
 TURCO MODERNO:
 Yap –tığ –ım –hata –yı memleket –i tanı –ma –ma –m –a ver –ebil –ir –siniz.
 Fazer-[particípio]-meu erro-[objeto] país-[objeto] conhecer-não-[gerúndio]-
meu-para dar-poder-[tempo]-você.
 “ Você pode atribuir o erro [que] eu fiz a eu não conhecer o país” .
 Avrupa + -lı +-laş + -tır + -ıl + -amı + -yan + -lar + -dan + -sınız.
 Europa – de – tornar-se – causa – passivo – incapaz – o que – plural –
de/desde – você.
 “ Você é um daqueles que são incapazes de serem causados a ser europeus”
TIPOLOGIA MORFOLÓGICA [3]
 AS LÍNGUAS FLEXIONADAS:
 Nestas línguas, uma palavra tipicamente se compõe de vários
morfemas, mas as divisas entre as morfemas são extremamente
difíceis ou inclusive impossíveis de definir.
 De fato, os vários morfemas estão “ embrulhados” num pacote
muito coeso.
 Latim, grego, sânscrito, russo, inglês antigo, muitas línguas indígenas
norte-americanas.
 {arm-} + {-a} {vir-} + {-um} + {-que} {can-} + {-ō}
 Arma + [neutro, plural, objeto direto].
 homem + [masculino, singular, objeto direto] + conjunção coordenativa.
 cant- + [1ª pess. sing. do pres. do modo indic. da voz ativa].
 “ As armas e o homem canto” (Virgílio, Aneida, I. 1. 1).

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