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CLAUDE LÉVI-STRAUSS
Paul Ricoeur: Eu não disse que o sentido fosse sentido pela ou para a
consciência; o sentido é primeiramente o que instrui a consciência; a
linguagem é primeiramente veículo de sentido a ser retomado e este potencial
de sentido não se reduz a minha consciência. Não há que escolher entre o
subjetivismo de uma consciência imediata do sentido e a objetividade de um
sentido formalizado; entre os dois, há o que propõe o sentido, o que diz o
sentido, e é este “a dizer” e “a pensar” que me parece ser o outro lado do
estruturalismo, não designo forçosamente um subjetivismo do sentido, mas
uma dimensão do sentido também ela objetiva, porém de uma objetividade
que só aparece para uma consciência que o retoma. Esta retomada exprime o
aumento da consciência pelo sentido. Eis porque não seria a subjetividade que
eu oporia a estrutura, mas justamente o que chamo o objeto da hermenêutica,
vale dizer, as dimensões abertas por estas retomadas sucessivas; então
coloca-se a questão: será que todas as culturas oferecem tanto a retomar, a
redizer e a repensar?
Jean-Pierre Faye: Sim, mas perdeu os laços que o ligavam ao símbolo inicial.
Claude Lévi-Strauss: É uma questão muito grave, mas não vejo porque se
espera de mim que eu possa responder a ela, pois trata-se aqui do problema
da origem da humanidade, daquilo que os antropólogos físicos chamam de
“hominização”. A partir de que momento começaram a existir seres que
pensavam? Nada sei a respeito, e duvido que nossos colegas da antropologia
física tenham idéias claras sobre este assunto. Ainda mais: duvido mesmo que
possamos apreender teoricamente, no devir, um momento em que o homem
tenha começado a pensar, e eu estaria mais inclinado a admitir que o
pensamento começa antes dos homens.
Jean Lautman: Gostaria de voltar uma vez mais a questão do sentido, porque,
no fundo, se a obra de M. Lévi-Strauss me inquieta, é de certa maneira porque
ele diz que nos exprimimos, mesmo quando não pensamos nos exprimir. Minha
questão vai por etapas.
Logo de início, quando o senhor mostra em L’anthropologie structurale que o
método do shaman se compara à cura psicanalítica, percebi uma espécie de
ambiguidade: por um lado uma crítica subjacente da cura psicanalítica como
não sendo nada de novo uma vez que ela é o método do shaman, por outro
lado uma valorização que eu compreendo muito mais agora que o senhor nos
deu La pensée sauvage, na medida em que, para o senhor, são válidas uma ou
outra destas expressões liberadoras que revelam o homem a si mesmo.
Aceitaria o senhor que se pensasse que de certa forma nos propõe ensaios de
constituição de uma psicanálise coletiva, que se lança não as estruturas
individuais do senhor X ou mesmo ao conjunto das estruturas psicológicas de
uma sociedade, mas remontando mais longe, ao esquema organizador de toda
sociedade? É assim que compreendo o grande interesse que o senhor atribui à
lingüistica, do mesmo modo que à escola psicanalítica francesa
contemporânea, e pelas mesmas razões: lei Zipff, por exemplo, nos mostra
que, falando e acreditando falar livremente, somos de fato governados por
estruturas anteriores à imergência do sentido em nosso próprio pensamento.
Segunda etapa da questão, a propósito da história: Na reflexão crítica relativa à
obra de Jean-Paul Sartre, que o senhor propõe no final de La pensée sauvage,
passo por cima daquilo em que evidentemente estamos de acordo para chegar
a este ponto, que o senhor critica na história: o fato de ela usar um código
muito pobre; o essencial de seu sistema de codificação é a cronologia, e no
fundo é um saber importante mas limitado. Pois o senhor diz que ainda assim a
história é importante. Ora, parece-me que para o senhor a história consiste
com bastante frequência em ser obscurecimento do sentido, que o sentido, na
medida em que é importante, se exprime muito melhor no momento em que,
em sua primeira cristalização, brotam as estruturas da sociedade, do que no
devir do desenvolvimento que lhes é imposto.
Para chegar ao último ponto: fiquei muito admirado quando, nas últimas
páginas de La pensée sauvage, o senhor afirma que os modernos caminhos da
ciência levam a uma aproximação com o mundo da matéria pelas vias da
comunicação.
O senhor mostra que este processo é de fato o processo mesmo do
pensamento mágico, o qual se aproximou sempre das vias da natureza pelas
modalidades da interpretação; ora, pessoalmente, oponho reservas ao
pensamento de que os caminhos da ciência contemporânea e as práticas da
magia sejam absorvíveis no mesmo conjunto. O senhor mostrou bem que
conjunto estruturado existe em um e outro caso, mas – e é aí que não estou de
acordo quando o senhor cita Heiting neste mesmo capítulo – os sistemas
estruturados que operam nas sociedades que o senhor estuda são sistemas
estruturados totalmente saturados, enquanto que os sistemas axiomáticos do
pensamento contemporâneo são sistemas fundamentalmente não saturados.
Parece-me que esta oposição deve levar mais longe, mas eu seria por demais
ousado se pedisse ao senhor que fosse mais longe.
Pierre Hadot: o senhor dedicou seu livro a M. Merleau-Ponty e por outro lado
me foi observado que a expressão espírito selvagem se encontrava em
Merleau-Ponty. Haverá relação entre o pensamento do senhor e o dele? Este
ano já discutimos isso um pouco entre nós.
Claude Lévi-Strauss: Com efeito, creio que uma das razões da atração
exercida pela etnologia, mesmo sobre os não profissionais, é que sua pesquisa
está poderosamente motivada no coração da nossa sociedade, da qual integra
certo número de dramas. Mas devemos estabelecer uma distinção: no fim de
contas, o que é que motivou a constituição da astronomia? Preocupações de
ordem teológica, ou então o desejo de tirar os horóscopos e garantir o sucesso
dos poderosos deste mundo na guerra e no amor. Essas não são, entretanto, as
verdadeiras razões de sua importância, as quais derivam de resultados cujo
interesse se situa em outro plano. Portanto não penso que haja qualquer
contradição entre este duplo aspecto. Podemos muito bem reconhecer que se
praticamos etnologia ou se nos interessamos pela etnologia é por motivos
cientificamente impuros; contudo, se a etnologia vier a merecer que um dia lhe
reconheçamos um papel na constituição das ciências do homem, será por
outras razões.
Paul Ricoeur: Eu pensaria antes que esta filosofia implícita entra no campo do
seu trabalho, onde vejo uma forma extrema de agnosticismo moderno; para o
senhor não há “mensagem”: não no sentido da cibernética, mas no sentido
kerigmático; o senhor está no desespero do sentido; mas salva-se pelo
pensamento de que se as pessoas não têm nada a dizer, pelo menos dizem-no
tão bem que se pode submeter o discurso delas ao estruturalismo. O senhor
salva o senso, mas é o senso do não-senso, o admirável arranjo sintático de um
discurso que não diz nada. Vejo nesta conjunção agnosticismo e
hiperinteligência das sintaxes. Pelo que o senhor é a um tempo fascinante e
perturbador.