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ALBERTO VIElRA

D. MANUEL E A AFIRMA:ÇÃO DO PODER RÉGIO NA MADEIRA

Câmara Municipal de GUilarães


2004
Separata de ACTAS do III Congresso Histórico de Guimarães D. MANUEL E A SUA ÉPOCA 24 a 27 de Outubro de 2001

Volume I
111 CONGRESSO HISTÓRICO DE GUIMARÃES

D. MANUEL E A SUA ÉPOCA

D. Manuel e a afirmação do poder régio na Madeira

por ALBERTOVIEIRA (CEHA - Madeira)


111 CONGRESSO HISTÓRICO DE GUIMARÃES

D. MANUEL E A SUA ÉPOCA

D. MANUEL E A AFIRMAÇÃO DO PODER REGIO NA MADEIRA

o período que decorre entre finais do século XV e o primeiro quartel da centúria seguinte foi um dos momentos mais
significativos da História do arquipélago. O progresso e a afirmação da ilha no espaço Atlântico e europeu foram
resultado da dimensão assumida pela cultura da cana-de-açúcar. Tudo isto implicou a evolução do sistema institucional e
religioso montado nos primeiros anos pelo senhorio e capitães. A transformação mais significativa ocorreu sob a
intervenção de D. Manuel, como senhor da ilha (1485-1495) e na qualidade de monarca (1495-1527).
O período de intervenção de D. Manuel, de pouco mais de quarenta anos, foi marcado por profundas transformações
ao nível da estrutura religiosa e administrativa. Aos iniciais municípios na sede das capitanias acrescentaram-se os de
Ponta de Sol (1501), Calheta (1502) e Santa Cruz (1518) e juntou-se a elevação do Funchal à categoria de cidade (1508)
para aí se assentar o novo bispado (1514).
A coroa apostou ainda na regulamentação rigorosa das estruturas fiscais através dos forais do almoxarifado da
alfândega (1499), do Funchal, Machico e Santa Cruz (1515). Esta medida foi antecedida em 1497 com a abolição do
senhorio, fazendo reverter para a coroa todo o património madeirense. A presença da coroa e das instituições que a
representam, ao nível da justiça e da fiscalidade, consolidaram-se, posto que esta ilha era uma das primeiras e principais
fontes de riqueza da coroa que não queria prescindir.

1.

A Madeira no último quartel do século XV

O processo de afirmação da Madeira no espaço atlântico é rápido e resulta de uma aposta em produtos com grande
valor económico no mercado europeu. A ilha, que começou a ser povoada na década de vinte, era em finais do século XV
um espaço fundamental do mundo atlântico.

Povoações

O povoamento, iniciado nas áreas do Funchal e Machico, alastrou rapidamente a toda a costa meridional, levando à
criação de outros locais em Santa Cruz, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol e Calheta. A orografla da ilha
condicionou o povoamento, enquanto a elevada fertilidade do solo e a pressão do movimento demográfico justificaram a
rapidez do processo. Aos primeiros obreiros e cabouqueiros seguiram-se diversas levas de alguns homens livres e a
necessidade de procurar escravos na costa africana.
O povoamento da ilha, iniciado na década de 20 a partir dos núcleos do Funchal e Machico, alastrou rapidamente a
toda a costa meridional, surgindo novos núcleos em Santa Cruz, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol e Calheta.
A costa norte tardou em contar com a presença de colonos, contribuindo para isso as difi
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culdades de contacto por via marítima e terrestre. Não obstante, refere-se já na década de 40 a presença de gentes em S.
Vicente, uma das primeiras localidades desta vertente a merecer uma ocupação efectiva.
O progresso do movimento demográfico foi de encontro ao nível de desenvolvimento económico da ilha reflectindo-
se na estrutura institucional. A criação de novos municípios, das paróquias e a reforma do sistema administrativo e fiscal
foram resultado disso. Ao nível religioso esta situação implicou o desmembramento das iniciais paróquias e o
aparecimento de novas: Santo António, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol, Arco da Calheta e Santa Cruz. O
mesmo sucedeu ao
nível administrativo com o aparecimento dos primeiros juizes pedaneos de Câmara de Lobos e Ribeira Brava. Aqui mais
uma vez é evidente a supremacia da vertente sul da capitania do Funchal. Das quarenta e duas freguesias criadas na
Madeira, nos três primeiros séculos de ocupação, vinte e cinco pertenciam à capitania do Funchal e as restantes à de
Machico.
A aposta e valorização da cidade do Funchal, por questões políticas, económicas e religiosas, conduziram a que se
evidencia desde então a macrocefalia da cidade. A interioridade e o isolamento retardaram e condicionaram a fixação de
colonos na vertente Norte. A vertente sul, porque oferecia as melhores áreas para o aproveitamento agrícola, um acesso
fácil por mar, acabava por cativar a presença dos colonos. Esta tendência manter-se-á até ao século vinte e apenas o
estabelecimento nas últimas décadas do novo traçado viário conduziu poderá contribuir para atenuar esta tendência
histórica.
Ao grupo de mando, de ócio e façanhas bélicas no norte de África, associou-se uma numerosa plêiade de
subordinados (rendeiros, assalariados, mesteres e escravos), que contribuía para o progresso agrícola e mercantil da ilha.
A sua importância na
sociedade madeirense reforçava-se com o progresso económico da ilha. Só em 1483 1 os mesteres fazem ouvir a voz na
vereação por meio de criação da Casa dos Vinte e Quatro. Dois anos mais tarde assumiram uma participação activa na
procissão do Corpo de Deus. O lugar que os mesteres nela ocupavam poderá significar uma hierarquização dos ofícios,
que se fazia de acordo com o estabelecido em 1453 para Lisboa.

Os estrangeiros

A Madeira atraiu a partir de meados do século XV uma vaga de forasteiros, mercê da prioridade na ocupação e na
exploração do açúcar. Só o impediam as ordenanças limitativas da residência na ilha, resultante da sua rápida fixação da
sua intervenção nos circuitos comerciais madeirenses.
A coroa facultou a entrada e a fixação de italianos, flamengos, franceses e bretões, por meio de privilégios especiais,
como forma de assegurar um mercado europeu para o açúcar. Todavia, a grande influência que estes estrangeiros rapida-
mente alcançaram, tornou-se lesiva para os mercadores nacionais e para a coroa,

1 Arquivo Histórico da Madeira, vaI. XV, pp. 134-135.


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pelo que se proibiu «assim soltam ente tratar todos» 2, ordenando-se a proibição da sua permanência na ilha como
vizinhos. O problema foi levado às cortes de Coimbra, em 1472-1473, e às de Évora, em 1481, reclamando a burguesia do
reino contra o monopólio dos mercadores genoveses e judeus no comércio do açúcar; para isso propunha a sua exploração
comercial a partir de Lisboa nas mesmas condições.
A comunidade de mercadores estrangeiros na Madeira foi dominada pelos italianos, a que se seguiam os flamengos e
os franceses; todos surgiram na terra atraídos pelo tão solicitado ouro branco. Os italianos, em especial florentinos e geno-
veses, conseguiram, desde meados do século XV, implantar-se na Madeira como os principais agentes do comércio do
açúcar, alargando depois a sua actuação ao domínio fundiário, por meio da compra e laços matrimoniais.
A actividade comercial, principal móbil da fixação dos estrangeiros, não
absorveu por completo a sua intervenção, pois eles subdividem a sua vida quotidiana entre o comércio, o transporte, a
banca, a produção e as administrações local e central; as primeiras actividades complementavam-se e garantiam-lhes um
pecúlio vantajoso, enquanto a última lhes assegurava as condições e os meios preferenciais para a sua acção. A par disso,
o inter-relacionamento matrimonial com as principais famílias reforçou a sua posição na sociedade madeirense. Foi a
partir da mescla dos primeiros povoadores europeus, oriundos de várias regimes e estratos sociais, que se definiu a
estrutura social das ilhas.
Os mercadores-banqueiros de Florença destacaram-se nas transacções comerciais e financeiras do açúcar madeirense
no mercado europeu. A partir de Lisboa, onde usufruíam uma posição privilegiada junto da coroa, controlaram uma
extensa rede de negócios que abrange a Madeira e as principais praças europeias: primeiro conseguiram da Fazenda Real
o quase exclusivo do comércio do açúcar resultantes dos direitos reais por contrato directo. A manutenção desta rede de
negócios foi assegurada pela acção directa dos mercadores, dos seus procuradores ou agentes substabelecidos.
A penetração deste grupo de mercadores na sociedade madeirense foi muito acentuada. O usufruto de privilégios
reais, o relacionamento familiar favoreceu a sua mistura com a aristocracia terra tenente e administrativa. A sua
intervenção é notada na estrutura administrativa, abrangendo os domínios mais elementares do governo,
como a vereação e as repartições da fazenda, todas com intervenção directa na economia açucare ira. São
maioritariamente proprietários e mercadores de açúcar. Instalaram-se nas terras de melhor e maior produção e tornaram-se
nos mais importantes proprietários de canaviais.
Os franceses e flamengos, a exemplo dos italianos, surgem na ilha, desde finais do século XV, atraídos pelo rendoso
comércio do açúcar. No entanto, não se enraizaram na sociedade insular, mantendo uma condição errante. O seu interesse
era única e exclusivamente a aquisição do açúcar a troco de artefactos, alheando-se da realidade produtiva e
administrativa.

2 Arquivo Histórico da Madeira, vaI. XV, pp. 57 e 68


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A comunidade italiana controlava a quase totalidade do comércio do açúcar com as principais praças europeias sendo
seguida da portuguesa e da castelhana. Os mercadores nórdicos não apresentam uma posição de relevo nestas operações.
Isto demonstra, mais uma vez, que a rota e mercado flamengo se mantiveram sob o controlo da nossa feitoria.
A rede de negócios em torno do trato do açúcar foi criada e incentivada pelo mercador estrangeiro, alemão ou
italiano, que aí aportou depois da reconfortante e vantajosa escala em Lisboa. Ele controlou as principais sociedades
intervenientes no comércio açucareiro, não obstante ter morada fixa em Lisboa, Flandres ou Génova. O seu domínio
atinge, não só, as sociedades criadas no exterior com intervenção na ilha, mas também, o grupo de agentes ou feitores e
procuradores substabelecidos no Funchal. A sua escolha é criteriosa: primeiro os familiares, depois os compatrícios
enraizados na sociedade e só, depois, os madeirenses ou nacionais.
Os procuradores e feitores, na sua condição de interlocutores dos mercadores europeus não se ligam apenas a uma
sociedade, pois distribuíram a sua acção por um grupo numeroso de societários. Estes por sua vez não se prendiam apenas
a uma representação, concedendo-os a um grupo variado de feitores e procuradores

A economia

No principio a necessidade do cardápio e ritual cristão comandaram a selecção das sementes traz idas pelos primeiros
povoadores. O cereal acompanhou os primeiros cavalos de cepas peninsulares no processo de transmigração. A fertilidade
do solo, resultante do estado virgem e das cinzas fertilizadoras das queimadas, fez elevar a produção a níveis inatingíveis,
criando excedentes que supriram as necessidades de mercados carentes, como foi o caso de Lisboa e praças do norte de
África.
Um dos iniciais objectivos que norteou o povoamento da Madeira foi a possibilidade de acesso a uma nova área
produtora de cereais, capaz de suprir as carências do reino, praças africanas e feitorias da costa da Guiné. A última
situação era definida por aquilo a que ficou conhecida como o «saco de Guiné». Os interesses em torno da cultura
açucareira recrudesceram e a aposta na cultura era óbvia. Esta mudança só se tornou possível quando se encontrou um
mercado substitutivo nos Açores.
Até à década de setenta do século quinze a paisagem agrícola madeirense foi dominada pelas searas que se viram
envoltas de parreiras e canaviais. As condições das primeiras arroteias fizeram com que as sementes de cereal lançadas
sobre as cinzas das queimadas frutificassem em abundância. Diz Jerónimo Dias Leite 3 que de um alqueire semeado se
colhiam sessenta, enquanto Diogo Gomes 4 refere «que uma medida dava cinquenta e mais». Cada mosto 5 corrobora o
primeiro mas anota

3 Descobrimento da Ilha da Madeira [...], Coimbra, 1947, p. 19 4 J. M. GARCIA, Viagens dos Descobrimentos, Lisboa, 1983, p. 52 5 António
ARAGÃO, A Madeira vista por Estrangeiros, pp. 36-37.
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que esta relação foi baixando devido à deterioração do solo. Ainda, segundo ele, a ilha produzia 3000 moios de trigo de
que só tinha necessidade de um quarto. O demais era exportado para o reino, tal como o diz Diogo Gomes: «E tinham ali
tanto trigo que os navios de Portugal, que por todos os anos ali iam, quase por nada o compravam» 6.
Em data que desconhecemos foi estabelecido pelo infante a obrigatoriedade de envio de mil moios para a Guiné, o
que era considerado, na década de sessenta um vexame para os funchalenses, que prontamente reclamaram ao novo
senhor da ilha, no que não tiveram grande acolhimento por ser «trato de el-rei». Desde 1461 7, 1000 moios foram suprir
as carências dos assentamentos africanos, ficando conhecidos como o saco da Guiné.
Na década de 60 a valorização do comércio do açúcar fez diminuir a superfície de searas e a produção passou a ser
deficitária. A partir de 14668 a ilha precisava de importar trigo para sustento dos seus vizinhos, sendo impossível manter
as escápulas estabelecidas. Em 14799 a produção dava apenas para quatro meses. O agravamento do défice cerealífero nas
décadas de 70 e 80 conduziu à fome em 148510 e foi preocupação para as autoridades. Primeiro colmatou-se a falta com o
recurso à Berbéria, Porto, Setúbal, Salónica e depois foi necessário definir uma área externa produtora, capaz de suprir as
necessidades dos madeirenses. Desde 1508 11 os Açores são a principal área cerealífera do Atlântico português: as ilhas
açorianas actuam como o celeiro de provimento da Madeira e capaz de a substituir no fornecimento às praças africanas.

A vinha e o vinho

Junto ao cereal plantaram-se os bacelos donde se extraia o saboroso vinho de consumo corrente ou usado nos actos
litúrgicos. O ritual cristão fez valorizar ambos os produtos que, por isso mesmo, acompanharam o avanço da Cristandade.
Em ambos os casos foi fácil a adaptação às ilhas aquém do Bojador o mesmo não sucedendo com as da Guiné. Na
Madeira a cultura da vinha surge com grande evidência no começo do povoamento, sendo a moeda de troca com o
exterior. Cadamosto em meados do século XV ficou admirado com a qualidade e valores de produção das cepas
madeirenses.
A afirmação do vinho da Madeira no mercado atlântico derivou do elevado teor alcoólico que lhe favoreceu a
expansão em todo o mundo. Ele conseguia chegar em

6 J. M. GARCIA, Viagens dos Descobrimentos, Lisboa, 1983, p. 52


7 Arquivo Histórico da Madeira, vol. XV, pp. 11-20
8 Arquivo Histórico da Madeira, vol. XV, pp. 36-40.
9 Cf. António Aragão, A Madeira vista por Estrangeiros, p. 215, nota 9.
10 Ibidem.
11 Cf. Alberto VIEIRA, O Comércio de Cereais dos Açores para a Madeira no século XVII, in Os Açores e o Atlântico (séculos XIV-XVII), Angra do
Heroismo, 1984, p. 652.
condições desejáveis aos destinos mais inóspitos. Em Cabo Verde, S. Tomé ou Brasil o vinho madeirense era preferido
aos demais por ser o único que resistia ao calor tórrido. Os mestres e tripulantes das embarcações, que demandavam a
região equatorial, não escondiam também a sua preferência, pelo que escalavam com assiduidade o Funchal para se
abastecerem de vinho. Este era dos poucos, talvez o único vinho que não avinagrava à passagem nos trópicos, antes pelo
contrário, adquiria propriedades gustativas, o que muito os alegrava.

o mercado do vinho. Os mercados do vinho Madeira diversificaram-se ao longo dos tempos. Apenas o britânico
manteve a fidelidade, sendo o primeiro a apreciar o vinho da ilha desde o século xv. O vinho ganhou fama em toda a
Europa Ocidental através da viva-voz dos apreciadores. Já em meados do século XV, o genovês, Cadamosto 12 refere que
os vinhos da ilha «são em tanta quantidade, que chegam para os da ilha e se exportam muitos deles».
Desta descoberta dos britânicos do século XV ficou testemunho na literatura. Shakespeare insiste na sua presença nas
tabernas e à mesa da aristocracia. Em 1478 Eduardo IV, rei de Inglaterra ordenou a execução de Jorge Plantageneta,
Duque de Clarence, irmão do futuro rei Ricardo lU, por atender contra a soberania régia. De acordo com a lenda o duque
preferiu morrer afogado numa pipa de malvasia. A situação é dramatizada, mais tarde por Shakespeare 13, tendo como
pano de fundo a Torre de Londres. Diz-se que a malvasia em que se afogou o malogrado duque era
oriunda da Madeira. Mas o dramaturgo refere apenas ao vinho Madeira quando na peça sobre Henrique IV, coloca
John Falstaff a vender a sua alma «por um copo de Madeira e uma perna de capão».

A Cana-de-açúcar. A rota do açúcar, na transmigração do Mediterrâneo para o Atlântico teve na Madeira a principal
escala. Foi aqui que a planta se adaptou ao novo ecos sistema e deu mostras da elevada qualidade e rendibilidade. Os
canaviais aparecem por iniciativa do infante que os mandou vir da Sicília.
O infante permitiu que os povoadores construíssem engenhos para a laboração do açúcar sujeitando-se ao pagamento
de 1/3 da produção. Temos notícia apenas do de Diogo Teive, conforme autorização escrita do próprio infante de 145214,
que veio juntar-se ao lagar, propriedade do senhor infante. O fabrico do açúcar fazia-se em exclusivo neste lagar já
existente e no novo engenho de água, pois «... a ninguém que possa fazer outro semelhante e não se podendo todo fazer
que eu dê lugar a quem me prover que faça outro».
Criadas as condições a nível interno por meio do incentivo ao investimento de capitais na cultura da cana-de-açúcar e
comércio de seus derivados, do apoio do senhorio, da coroa e da administração local e central, a cana estava em condições
de prosperar e de se tornar no produto dominante da economia madeirense. O incen

12 António ARAGÃO, A Madeira vista por Estrangeiros. 1455-1700, Funchal, 1981, p. 37. 13 Cf. Alberto VIEIRA, O Vinho da Madeira, Lisboa, 1998.
14 Arquivo Histórico da Madeira, vol. XV, pp. 7-8.
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tivo externo do mercado mediterrâneo e nórdico aceleraram o processo expansionista. Em meados do século XV os
canaviais foram motivo de deslumbramento para Cadamosto e Zurara. O primeiro refere que os açúcares «deram muita
prova», enquanto o segundo dá conta dos «vales todos cheios de açúcar de que aspergiam muito pelo mundo» 15.

As instituições

A estrutura institucional é um dos domínios mais característicos na História das ilhas portuguesas do Atlântico. Ela
adquiriu forma na Madeira e depois expandiu-se e desenvolveu-se nos demais arquipélagos de acordo com as
particularidades de cada. A Historiografia debate-se entre a defesa originalidade do processo e a sua vinculação das
estruturas institucionais peninsulares. As instituições insulares foram resultado do transplante das estruturas institucionais
peninsulares e das inovações geradas pelo novo meio. Foi a partir da primeira e incipiente forma de estrutura
sociallançada na Madeira que ela se ergueu e fundamentou.
No princípio todas as funções de mando ficaram centralizadas nos três homens que comandaram o processo de
povoamento das duas ilhas: João Gonçalves Zarco,
Tristão Vaz e Bartolomeu Perestrelo. Eles dinamizaram o povoamento da área que lhes foi distribuída. Sobre eles
pendia a solução das primeiras querelas institucionais. O progresso sócio-económico criou novas necessidades, entre elas
uma ajustada estrutura institucional.
A concessão em 26 de Setembro de 1433 por carta régia do governo das ilhas da Madeira, Porto Santo e Desertas ao
infante D. Henrique foi o início de uma nova era. O infante permanecia como o senhorio, enquanto os escudeiros, que
haviam dado início ao povoamento do arquipélago, passaram a ser capitães subordinados à sua alçada. Eles ficaram
conhecidos como capitães do donatário, permanecendo como tal até finais do século quinze. As cartas de doação das
áreas, conhecidas como capitanias, confirmaram-no juridicamente. Nelas ficaram estabelecidas a alçada e privilégios.
A estrutura de poder estava perfeitamente delineada. O Senhor fazia-se representar através de delegação de poderes
aos capitães ou de funcionários - o ouvido r, contador, tabeliães e o almoxarife. A trama completava-se com o concelho.
Este representava os Homens-bons e a relação com o Duque era de subordinação.

o senhorio das ilhas

O infante D. Henrique assumiu, desde 1433 16, de pleno direito a posse das ilhas e, como tal, tratou, no imediato, de
estabelecer uma adequada estrutura administra

IS António ARAGAO, A Madeira vista por Estrangeiros. 1455-1700, Funchal, 1981, p. 37; Gomes Eanes
de Zurara, Crónica de Guiné, Capo 11.
16 O Infante e as Ilhas, Funchal, 1994, p. 99.
tiva. Em pouco tempo a ilha da Madeira transformou-se numa horta que, de direito, lhe pertencia. A tudo isto juntou-se
uma estrutura de mando adequada a esta realidade, tendo como ponto fundamental do vértice o Infante. Ainda em 1433 a
coroa concedeu também todo o espiritual das ilhas à ordem de Cristo. Esta doação foi feita a pedido do infante: «E por o
infante dom anrrique meu irmão regedor e governador de dita ordem que no lho Requereu». A coroa reserva para si «o
foro e o dizimo de todo o pescado que se nas ditas ilhas matar».
Qualquer das cartas de doação, do senhorio e capitania, era de duração limitada, correspondendo ao tempo de
governo do monarca. Após a sua morte tudo requeria a confirmação do sucessor. Foi isso que sucedeu em 1 de Junho de
1439, e 11 de Março de 1449 em que D. Afonso confirma as doações.
O período de senhorio o arquipélago conheceu cinco donatários com uma intervenção diversa. O governo de vinte e
sete anos do infante D. Henrique ficaram poucos documentos. A ausência tanto poderá ser resultado da sua perda, mas
fundamentalmente da não existência, pois a administração das ilhas no começo do povoamento não deveria necessitar de
minuciosa regulamentação. O fundamental era o foral do infante e as cartas de doação.
A herança legada pelo infante D. Henrique ao filho adoptivo, o infante D. Fernando, parece ter sido pesada para os
madeirenses que de imediato enviaram procuradores ao reino com um extenso rol de reclamações. A todos os domínios
atendeu o novo senhor, mas manteve sempre a fidelidade ao determinado pelo antecessor. Da intervenção do senhorio
ressalta a vinda em 1466 17 do ouvidor, Dinis Anes de Grã, e a posição assumida pelos juizes ordinários na administração
da justiça.
A actividade de D. Beatriz foi no sentido da organização do sistema tributário com a criação em 1477 das
alfândegas do Funchal e Machico, e o princípio de um sistema defensivo que, por oposição dos moradores, só veio a
concretizar-se mais tarde.
A justiça era uma das principais prerrogativas da alçada do capitão. Ele podia sentenciar as penas de acordo com os
limites estabelecidos na carta. De acordo com isto nomeava os diversos funcionários, como os alcaides e tinham a cadeia
sob a sua alçada.

A Igreja: Nas ilhas portuguesas o rei concedeu o direito de padroado à Ordem de Cristo. Primeiro em 1433 ao
arquipélago da Madeira e, depois, alargado em 1454 a todos os territórios descobertos, situação confirmada por bula papal
de 17 de Março de 1456. O governo espiritual ficou entregue ao vigário de Tomar, por ser a
sede da Ordem de Cristo, e na condição de nullius diocese, isto é fora da alçada de qualquer dioceses. Ao administrador da
ordem competia a construção dos templos, a nomear os ministros e pagar os seus vencimentos. Em todas as ilhas
estabeleceram-se ouvidorias com o objectivo de organizar o exercício do governo eclesiástico. A arrecadação dos dízimos
eclesiásticos permanecia a cargo do almoxarife do infante.

17 Arquivo Histórico da Madeira, vaI. XV, pp. 32-34


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Para cada capitania foi nomeado um vigário, que dependia directamente do de Tomar, tendo como função
administrar a espiritualidade no recinto da sua jurisdição. Destes apenas se conhece o nome dos de Machico e Funchal,
respectivamente Frei João Garcia e João Gonçalves. A situação perdurou no governo do infante D. Henrique, uma vez que
em 146118 uma das exigências dos moradores do Funchal era o aumento do clero, de modo que fosse assegurado o
serviço religioso aos moradores de Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Arco da Calheta. O próprio infante
preocupou-se com a administração religiosa do arquipélago, ordenando a construção de igrejas e capelas, conforme se
deduz do testamento de 146019.

2.

A Madeira sob o governo de D. Manuel (1485-1527)

O período antecedente foi marcado por um franco crescimento e afirmação do arquipélago no mundo atlântico. A
época de D. Manuel foi o momento de consolidação do processo e pleno usufruto.

Economia

O monarca, comprometido com a posição vantajosa dos estrangeiros, mercê dos privilégios que lhes concedera,
actuou de modo ambíguo, procurando salvaguardar compromissos e ao mesmo tempo atender às solicitações que eram
dirigidas. Neste sentido estabeleceu limitações à residência dos estrangeiros no reino, fazendo-a depender de licenças
especiais; quanto à Madeira definiu a impossibilidade de vizinhança sem licença sua, ao mesmo tempo que lhes
interditava a revenda no mercado local. A câmara, por seu turno, baseada nestas ordenações e no desejo dos seus
moradores, ordenou a saída até Setembro de 1480, no que foi impedida pelo senhor. Somente em 148920 se reconhece a
utilidade da presença de estrangeiros na ilha, ordenando D. João II a D. Manuel, então Duque de Beja, que os estrangeiros
fossem considerados como «naturais e vizinhos de nossos reinos».
Os problemas do mercado açucareiro na década de 90 conduziram ao ressurgimento dessa política xenófoba. Os
estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro meses, entre Abril e meados de Setembro, para comerciar os seus
produtos, não podendo dispor de loja e feitor. D. Manuel apenas em 149321 reconheceu o prejuízo que as referidas
medidas causavam à economia madeirense, afugentando os mercadores, pelo que revogou as interdições anteriormente
impostas; as facilidades então concedidas à estada destes agentes forasteiros conduziriam à assiduidade da sua frequência
nesta praça, bem como à sua fixação e intervenção de modo acentuado na estrutura fundiária e administrativa.

18 Arquivo Histórico da Madeira, vol. XV, pp. 11-20


19 J. M. Silva MARQUES, Descobrimentos Portugueses, vol. 1, Lisboa, 1988, p. 588-592 20 In As Gavetas da Torre do Tombo, IV, Lisboa, 1964, pp.
169-170.
21 Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVII, p. 369
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A Cana-de-açúcar. A cultura usufruindo do apoio e protecção do senhorio e coroa conquistou o espaço ocupado
pelas searas, atingindo todo o solo arável da ilha em duas áreas: a vertente meridional (de Machico à Calheta). A capitania
do Funchal apresentava as melhores terras para a cultura da cana-de-açúcar na vertente meridional. Em 1494, do açúcar
produzido na ilha apenas 20% é proveniente da capitania de Machico e o sobrante da capitania do Funchal. Em 1520 a
primeira atinge 25% e a segunda os 75%. Em 1494 a maior safra situava-se nas partes de fundo que integrava as comarcas
da Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta com 64%, ficando o Funchal e Câmara de Lobos com apenas 16% 22.
A fase ascendente, que poderá situar-se entre 1450 e 1506, não obstante a situação deprecionária de 1497-1499, é
marcada por um crescimento acelerado que, entre 1454-1472, se situava na ordem dos 240% e no período subsequente até
1493 em 1430%, isto é uma média anual de 13% no primeiro caso e de 68% no segundo. No período seguinte após o
colapso de 1497-1499 a recuperação é rápida de tal modo que em 1500-1501 o aumento é de 110% e entre 1502-1503 de
205%. Esta forte aceleração do ritmo de crescimento nos primeiros anos do século XVI irá marcar o máximo, atingindo
em 1506, bem como o rápido declínio nos anos imediatos. Apenas em quatro anos atinge-se valor inferior ao do início do
século. A situação agrava-se nas duas centúrias seguintes, baixando a produção na capitania de Funchal, entre 1516-1537,
em 60%23.
Na capitania de Machico a quebra é lenta, sendo sinónimo do depauperamento
do solo e da crescente desafeição do mesmo à cultura. A partir de 1521 a tendência descendente é global e marcante, de
modo que a produção do fim do primeiro quartel do século situava-se a um nível pouco superior ao registado em 1470. Na
década de trinta consumava-se a crise da economia açucareira. Giulio Landi 24, que na década de trinta visitou a ilha,
refere que os madeirenses, levados pela ambição da riqueza se dedicavam «apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram
maiores proventos».

o comércio do ouro branco. O açúcar foi, durante mais de um século, o principal activador das trocas da Madeira
com o exterior. As dificuldades sentidas com a penetração no mercado europeu levaram a coroa a intervir no sentido de
manter um comércio controlado, que a partir de 1469 passou a ser feito sob o permanente olhar do senhorio e coroa. A
situação manteve-se até 1508, altura em que a coroa aboliu o regime de contrato.
A partir de uma das medidas tomadas pela coroa (o contingentamento de 1498) para defesa do mercado do açúcar
madeirense poder-se-á fazer uma ideia dos principais mercados consumidores. As praças do mar do norte dominavam o
comércio, recebendo mais de metade das escápulas estabelecidas. Aqui a Flandres adquiriu uma posição dominante, o
mesmo sucedendo com os portos italianos para o espaço mediterrâneo.

22 RAu, Virgínia e MACEDO, Jorge, O açúcar na Madeira no século XV, Funchal, 1992. 23 Cf. PEREIRA, Fernando Jasmins, Estudos sobre História
da Madeira, Funchal, 1991. 24 António ARAGÃo, A Madeira vista por Estrangeiros. 1455-1700, Funchal, 1981, p. 84.
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D. MANUEL E A SUA ÉPOCA

Se compararmos as escápulas com o açúcar consignado às diversas praças europeias no período de 1490 e 1550,
verifica-se que o roteiro não estava muito aquém da realidade. As únicas diferenças relevantes surgem nas Praças da
Turquia, França e Itália, sendo de salientar na última um reforço acentuado de posição, que poderá resultar da actuação
das cidades italianas como centros de redistribuição no mercado levantino e francês.
Os dados da exportação para o período de 1490 a 1550, testemunham esta realidade. A Flandres surge com 39% e a
Itália com 52%. Saliente-se a posição dominante dos mercadores italianos na condução deste açúcar, uma vez que eles
foram responsáveis pela saída de 78% do açúcar.

As instituições. Até 1497 o governo das ilhas esteve subordinado à Ordem de Cristo, sendo a administração
assegurada por governadores e administradores vitalícios. Apenas entre 1470-79, em face da menoridade destes - no caso
D. João (147071) e D. Diogo (1472-74) - o governo foi assegurado por D. Beatriz, na qualidade de tutora dos filhos. Em
1484 a administração passou para o Duque D. Manuel que, quando foi coroado rei em 1495, abriu uma porta para a
mudança da situação, concretizada em 27 de Abril de 149725. Desapareceu a figura do senhorio passando as ilhas para a
posse da coroa.
Foi como D. Manuel, na qualidade de senhorio e rei, que ficaram sedimentadas as maiores alterações das instituições,
que preparam o Funchal para subir à categoria de cidade e, depois, de sede do novo bispado.
O século XVI preludia uma nova realidade para esta relação de poderes que condicionará assíduos atritos entre o
capitão, o município e os oficiais régios. A vinda em 1516 26 do corregedor Dr. Diogo Taveira foi considerada por Simão
Gonçalves da câmara, capitão do Funchal, uma ofensa, retirando-se com família e pertences para Espanha. Na sua escala
algarvia foi receptivo às explicações da coroa. Note-se que no caso dos escravos foi-lhes atribuída a faculdade de justiçar
até a pena doo corte de orelha (1509). A primeira medida tornou-se extensiva a todas as capitanias por ordem régia de
1520. Em 1509 o capitão do Funchal acumulava o cargo de vedor da fazenda.

A Igreja. Extinto o senhorio, a Ordem de Cristo através do vigário de Tomar continuou a superintender o governo
eclesiástico das ilhas até que em 12 de Junho de 1514 27, pela bula "Pro excellenti", foi criado o bispado do Funchal com
jurisdição sobre toda a área ocupada pelos portugueses no Atlântico e Indico. Até esta data todo o serviço episcopal era
feito por bispos titulares aí enviados pelo vigário de Tomar, sendo de referir as visitas a Angra em 1487 e aos
arquipélagos da Madeira e Açores (entenda-se Funchal, Angra e Ponta Delgada) em 1507 e 1508.

25 Arquivo Histórico da Madeira, vaI. XVII, pp. 63-364


26 Arquivo Histórico da Madeira, vaI. XVIII, pp. 577-578
27 p.e Manuel Juvenal Pita FERREIRA, A Sé do Funchal, Funchal, 1963, pp. 63-72
Na capitania de Machico o progresso uno foi tão evidente porque o meio uno
oferecia as mesmas condições em termos de contactos e da afirmação da economia agrícola. Deste modo, só a localidade
de Santa Cruz foi uma excepção, disputando por vezes a primazia com Machico. Daí resultou a criação da vila em 1515.
Inserido no perímetro desta capitania estava toda a costa norte, que, pelas dificuldades de acesso, foi alvo de um
povoamento tardio e lento. Isto contrastava com a do Funchal, onde o progresso se deu a um ritmo galopante, o que
motivou em 150828 a elevação do principal núcleo de povoamento a cidade. Esta atitude da coroa é justificada pelo
elevado número de fidalgos e cavaleiros que aí viviam e o importante movimento comercial do porto.

A política de D. Manuel

D. Manuel, como senhor ou rei, ensaiou uma nova política no quadro do relacionamento do senhorio ou coroa com a
ilha. Este posicionamento provocou mudanças significativas na Madeira entre finais do século XV e princípios da centúria
seguinte. A ideia da ilha como um das principais riquezas parece estar na origem de toda esta actuação. Foi sob este signo
que em 1497 o mesmo fez reverter para o património da coroa, de forma indelével, a ilha da Madeira. Da mesma forma se
reserva para ele a
reforma dos arcaicos forais que regulamentavam a fiscalidade. Esta reforma faz-se pela inexistência dos forais, ou pela
necessidade de adequar os regimentos à nova realidade sócio-económica. Assim, em 4 de Julho de 149929 tivemos o foral
e regimento da alfândega,
O relacionamento dos madeirenses com o senhorio fazia-se através do envio de procuradores ao reino ou do simples
envio de apontamentos em que faziam algumas reivindicações ou sugeriam ao senhorio a forma de actuar face
determinadas situações. Os procuradores eram normalmente mandatados pelas vereações do Funchal e Machico. Para o
período de governo de D. Manuel esta figura da reclamação dos madeirenses foi assídua.

DATA DA RESPOSTA PROCURADORES

1485.Março.22 Luís Mendes de Vasconcelos


João Feruandes do Arco
1489.Junho.11 Luís de Atouguia
1490.Fevereiro.23
1493.Janeiro.13 Álvaro Oruelas
1496.0utubro.12
150 1.Setembro.2
1502.Fevereiro.25
1502.Agosto.16
1504.Junho.15
1512.Julho.25

28 Arquivo Histórico da Madeira, voI. XVIII, pp. 512-513.


29 U. Mendonça DIAS, A vida de Nossos Avós, VoI. lI, pp. 9-10.
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D. MANUEL E A SUA ÉPOCA

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Através dos apontamentos os madeirenses procuravam fazer pressão junto do senhorio ou da coroa no sentido de
vingar os seus interesses. Deste modo analisando os documentos acima referidos podemos apercebermo-nos da
capacidade de persuasão e do poder destes documentos e reclamações junto do senhorio e / ou coroa. Para o período do
senhorio nos dezasseis dispostas às reclamações dos madeirenses nota-se uma grande falta de sintonia entre os interesses
de ambas as partes, actuando de forma dominante o senhorio contra a reivindicação dos madeirenses. Apenas alguns
exemplos. Em 22 de Março de 1485 30 do extenso rol de trinta e nove reivindicações dos madeirenses 21 mereceram um
sim. Já em 13 de Janeiro de 149331 os madeirenses tiveram apenas quatro pretensões aceites num total de 15.
A atitude de afrontamento muda quando acaba o senhorio. O Duque, agora rei, torna-se muito mais benevolente
acatando quase sempre as reclamações vindas da ilha que quase sempre eram acompanhadas de recomendações. Esta
atitude benévola da coroa parece ter sido uma dominante, provocando alguns atritos no caso da existência do senhorio.
Assim em 25 de Abril de 148832 D. Manuel Admoesta os madeirenses por tal atitude, dizendo que «quando queer que
virdes mandado deI Rey meu senhor que vos nam curees de me enviardes perguntar ho que me dito praz porque muyto
mays me hade prazer de comprirdes os mandados e rogos de Sua Alteza que hos meus proprios».
Esta atitude de quase permanente oposição do Duque deverá ter merecido algum comentário da parte madeirense
como se pode verificar em 25 de Agosto de 148833 em que o mesmo reafirmava, que quanto às liberdades e privilégios
«eu tenho muyto mais vontade de vellas acrecentar que de mjmgoar segumdo muy bem todos per obra temdes visto»
Noutra oportunidade o senhorio repreende os madeirenses pelas medidas tomadas sem o seu consentimento. Isto sucedeu
em 7 de Agosto de 1486 34 em que é contrariada a proibição de residência dos estrangeiros na ilha com a seguinte
reprimenda: «e vollo estranho muyto porque cousa de tanta sustancia nom ouvereys de fazer sem meu mandado».
Contrariando esta atitude quase despótica temos a forma de tratamento familiar com que o Duque e Rei trata os
madeirenses nos documentos oficiais. Nos documentos o senhorio ou monarca dirigiam-se aos cavaleiros, escudeiros e
povo, ou então acrescentavam os cargos de prestígio, como os juizes, oficiais, homens bons, mesteres e povo. A partir de
1485 o Duque D. Manuel não esquece esta hierarquia de distinção e de exercício do poder. A grande novidade é o
acrescentamento da palavra amigo. Assim o capitão é «capitão amigo» (148535). Esta forma persiste para além de 1497.
Será isto apenas uma formalidade do relacionamento destas entidades, ou, ao contrário, define uma forma de
relacionamento amistoso?

30 Arquivo Histórico da Madeira, vaI. XV, pp. 147-156.


31 Arquivo Histórico da Madeira, vaI. XVI, pp. 276-282. 32 Arquivo Histórico da Madeira, vaI. XVI, pp. 209-210. 33 Arquivo Histórico da Madeira,
vaI. XVI, pp. 214-216. 34 Arquivo Histórico da Madeira, vaI. XVI, pp. 198-199. 35 Arquivo Histórico da Madeira, vaI. XVI, p. 187
ALBERTO VIEIRA

o período de intervenção de D. Manuel é considerado como dos mais prósperos da História da Madeira. Para isso
contribuiu os lucros gerados pelo comércio do açúcar. A principal preocupação incidia sobre a cultura e mercadoria.
Uma contagem da documentação disponível no Registo Geral da Câmara do Funchal36 evidencia que a grande
preocupação de D. Manuel se prendia com a área económica e a administração.

TEMAS SENHORIO (1485-95) REI (1495-1517

N.O % N.o %
Açúcar 23 22,8 28 12
Administração 24 23,8 77 33
Igreja 14 13,9 17 7,3
Economia 8 7,9 19 8,2
Total 101 233

Se no período do senhorio (1485-1495) esta atenção se reparte de forma igual, já a partir de 1495 a aposta do rei está
na Administração. O reforço do poder régio, das instituições e funcionários é evidente e conduziu a reacções por parte dos
capitães. Em 1516 37 o rei enviou o doutor Diogo Taveira como corregedor com alçada na ilha. Esta situação não agradou
ao capitão Simão Gonçalves da Câmara que abandonara a ilha para Castela «porque, pelos serviços que tinha feito a EI-
Rei, não lhe merecia meter-lhe corregedor na sua jurdição, sendo ele governador da justiça em toda sua capitania».
O capitão prosseguiu o intento e rumou a Sevilha aonde D. Manuel enviou carta «com grandes promessas e
esperanças de lhe fazer as honras e mercês que tais serviços mereciam, mandando-lhe que viesse pago e tornasse para o
Regno, que ele o despacharia conforme a seus merecimentos» 38. Gaspar Frutuoso conclui: «Assim foi este agravado
capitão, que maiores eram as queixas, que de EI-Rei tinha, do que, na verdade, o caso o pedia; porém, como mimoso
filho, foi logo chamado do seu Rei e satisfeito do que pedia e desejava, que assim mereciam seus serviços».
As questões em torno da produção e comércio do açúcar foram uma preocupação permanente de D. Manuel enquanto
senhor e Rei: A partir dos anos oitenta o mercado do açúcar madeirense enfrente uma crise de crescimento. Primeiro a
procura europeia conduzira a que se colocasse no mercado açúcar de má qualidade.
Depois o alargamento da área produtiva e do açúcar disponível não acompanhado pelo aumento da procura. Esta
crise de subprodução obrigou a coroa a intervir em 149839 no sector comercial estabelecendo um sistema de
contingentamento dos

36 Arquivo Histórico da Madeira, vols. XV-XIX, 1972-1990.


37 Arquivo Histórico da Madeira, vol. XIX, doc. 18, 1516, Junho. 26, pp. 17-18
38 Doutor Gaspar FRUTUOSO, Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, pp. 246-247. 39 Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVII,
p. 372.
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valores de exportação para os principais mercados que passa a ser feito sob o regime de monopólio da coroa.
A medida justificava-se, pois o açúcar era «huma das mays proveytosas de nosos reygnos se poderia perder» sendo
«proveyto de bem comum da dita ylha mays ainda de todos nosos reygnos». Na verdade a Madeira era então uma das
principais jóias da coroa.
A partir de finais do século xv toda a riqueza gerada na ilha deixou de pertencer ao senhorio e passou para o usufruto
da coroa, indo a tempo de financiar as grandes viagens oceânicas e a despesa excessiva da Casa Real. Também, a partir
daqui é evidente que a Madeira perdeu a capacidade reivindicativa perante a coroa. O centralismo régio está patente na
submissão e pronto acatamento pela vereação de todos os regimentos e decretos régios.
O arquipélago foi uma fonte importante de receita para travar o endividamento do reino e manter a opulência da casa
senhorial e real. Nos séculos XV e XVI o principal sorvedouro de dinheiro dos novos espaços recém descobertos e
ocupados era a Casa Real, a carreira da Índia e as praças marroquinas. Apenas entre 1445 e 1481 os gastos da coroa em
dotes e casamentos suplantaram as 812.500 dobras, enquanto que nas guerras com Castela se despenderam 336.000 e na
defesa das praças marroquinas o valor atingiu as 378.000 dobras. Entretanto, no período de 1522 a 1551, as despesas com
a perda das naus da carreira da Índia, por naufrágio ou corso, atingiram 352.150 dobras. Este elevado encargo só poderia
ser coberto com as receitas arrecadadas nas ilhas e novos espaços coloniais. E aqui quando ilha é quase sempre sinónimo
da Madeira.
Durante o século XV e primeiro quartel do seguinte a principal fonte de receita do mundo português estava no açúcar
madeirense. As receitas advinham dos direitos lançados, como o quarto e o quinto, e do comércio do açúcar apurado. No
entanto os dados financeiros disponíveis não evidenciam de forma clara esta situação. Perderam-se os livros de contas,
mas os poucos disponíveis não nos atraiçoam quanto ao volume de negócios em favor da coroa. Primeiro, o senhorio e
depois orei oneraram o produto com diversas tributações que conduziram a que amealhassem elevadas quantias que
usavam em benefício próprio, no pagamento de tenças, esmolas, empréstimos e dívidas.
No primeiro registo das receitas do reino e possessões, datado de 1506, a Madeira surgia com o valor mais elevado
das comparticipações dos novos espaços insulares. Esta situação manteve-se até 1518 mas em 1588 era já evidente a
valorização do mercado açoriano.
Até a década de trinta do século XVI os reditos fiscais resultantes da produção e comércio do açúcar asseguravam
parte importante das fontes de financiamento do reino e projectos expansionistas. Este rendimento em finais do século XV
e princípios da centúria seguinte era superior a cem mil arrobas, atingindo em 1512 as 144.065 arrobas, o que corresponde
a 45.380.475 reais. Este açúcar, depois de retirada a redizima, isto é, a décima parte que era propriedade do capitão do
donatário, era utilizado pela coroa de formas diversas, como meio de pagamentos dos salários, esmolas aos conventos
(Santa Maria de Guadalupe, Jesus de Aveiro, Conceição de Braga) e misericórdias (Funchal, Lisboa, Ponta Delgada),
benesses a príncipes e
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infantes da Casa Real e despesa aduaneira da ilha, enquanto a parte sobrante era vendida, directamente em Flandres pelos
feitores do rei, ou por mercadores, por vezes, a troco de pimenta.
A sua aplicação na ilha era eventual, resumindo-se às despesas como a construção da Sé e alfândega do Funchal,
que receberam, respectivamente, 1.000 e 3.000 arrobas de açúcar. Neste grupo, mas com um carácter quase permanente, poder-
se-á incluir o pagamento dos inúmeros pedidos de socorro e abastecimento das praças marroquinas, o provimento das
armadas da Índia, por norma, em vinho. Sobre as assíduas despesas com o socorro às praças africanas podemos citar, a
título de exemplo, o concedido entre 1508 e 1514 a Safim. Neste período gastaram-se mil arrobas de açúcar e 83.815
reais, enquanto em 1531 o provimento de vinhos às armadas da Índia orçou em 124.490 reais.
Em 1529 com o Tratado de Saragoça foi encontrada uma solução provisória que a curto prazo parecia agradar a ambas as
partes. D. João lU viu-se forçado a pagar 350.000 ducados para assegurar a posse das Molucas que afinal se encontravam
dentro da área de influência de Portugal. Mais uma vez é possível assinalar uma ligação à Madeira, pois terá sido, segundo
alguns, o madeirense António de Abreu o primeiro explorador. Por outro lado os madeirenses contribuíram com avultada quantia de
empréstimo para o pagamento do referido contrato. Manuel de Noronha ficou com o encargo de arrecadar a contribuição
madeirense. João Rodrigues Castelhano é referenciado também como recebedor do referido empréstimo, tendo desembolsado da
sua fazenda 300.000 reais. A este juntaram-se Fernão Teixeira com 150.000 reais e Gonçalo Fernandes com 200.000
reais. O pagamento fez-se nos anos de 1530-31 à custa dos dinheiros resultantes dos direitos da coroa sobre o açúcar.
Os dados fiscais de 1531 permitem uma ideia da evolução da receita e despesa da ilha. Os réditos sobre as rendas do açúcar
foram de 6.990.573 reais de que se gastaram 10% nos vencimentos do clero da capitania do Funchal e 7% no pagamento do
empréstimo que João Rodrigues Castelhano a Coroa para pagar o contrato das Molucas. Mais de cinquenta por cento das
receitas iam directamente para o reino a engrossar os cofres da Fazenda Real. A partir desta informação, ainda que avulsa,
conclui-se que os madeirenses foram activos protagonistas da expansão lusíada dos séculos XV e XVI emprestando a
própria vida e reditos, arrecadados com a safra do açúcar, no financiamento deste projecto e das exorbitâncias e
caprichos quotidianos da Casa Real.
Foi D. Manuel o primeiro monarca a definir as regras rudimentares do orçamento, pelo que o primeiro e mais
rudimentar orçamento que se conhece data de 1526. De acordo com os dados disponíveis as receitas fiscais orçaram em
166.347.611 reais, sendo 12.000.000 (= 7,2%) referentes apenas a Madeira, que conjuntamente com as demais possessões fora
da Europa totalizavam 37.630.000 (= 23%). A cidade de Lisboa, que apenas arrecadava 5% das receitas, absorvia 17% das despesas,
o que implicava o financiamento externo com o recurso aos réditos arrecadados noutras províncias nomeadamente na
Madeira, Açores e Costa da Guine.
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D. MANUEL E A SUA ÉPOCA

EVOLUÇÃO RECEITAS. 1506-19 (EM MILHARES DE REAIS)

70

. C. Verde

60

50

40 30

20 10

Madeira

Açores

1518-19

A forma de D. Manuel compensar os madeirenses pelos elevados réditos que a


ilha atribuiu à coroa foi através de diversas ofertas referidas pela tradição: A Sé do Funchal recebeu um porta-paz e uma
cruz processional; a igreja matriz da Ribeira Brava a pia baptismal; a de Machico as colunas de mármore do portal da
parede lateral, a escultura a virgem e o menino, os pesos da Câmara; a da Calhe ta o sacrário em ébano e prata.
Note-se ainda que foi sob o ser governo que se construíram os templos mais sumptuosos da ilha; como a Sé do
Funchal e as igrejas de Machico, Santa Cruz, Ribeira Brava e Calheta. Hoje ainda persiste na ilha vestígios evidentes
deste período de prosperidade.
Foi com mesmo sentido de retribuição que o monarca elevou em 21 de Agosto de 1508 40 o Funchal à categoria de
cidade. Segundo o mesmo afirma a vila «tem creçido em muy grande provoraçam e como vivem nelIa muytos fidalIgos
cavalIeyros e pessoas honrradas e de gramdes fazem das polIas quaaes e pelIo grande trauto C...) esperamos C..) muyto
mays se em nobreza e acreçente C...) ».
D. Manuel, desde que tomou posse do senhorio da ilha, apostou na sua valorização político e institucional, fazendo
com que a ilha se moldasse a imagens e semelhança do reino. O Funchal, que crescera de forma desordenada, recebe
orientações urbanísticas. Em 148541 determinou que no seu melhor campo de canaviais, conhecido como campo do
Duque, se traçasse uma praça servida das casas do concelho e
picota da igreja. A necessidade de salvaguarda do núcleo urbano levou a coroa a determinar em 149342 que se
fizesse uma cerca e muros na forma do que acontecia em Setúbal. Todavia a reacção contrária dos madeirenses obrigou o
rei a recuar em

40 Arquivo Histórico da Madeira, vaI. XVIII, pp. 512-513, 515 41 Arquivo Histórico da Madeira, VaI. XVI, pp. 189-192.
42 Arquivo Histórico da Madeira, VaI. XVI, pp. 284.
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9 de Janeiro de 1494 43, ficando esta determinação a ser cumprida por ordem do duque de 8 de Julho 44 do mesmo ano.

Conclusão

o período do governo de D. Manuel foi um dos principais momentos de prosperidade da ilha. O açúcar foi a principal
mola propulsora deste progresso e a fonte da riqueza tão necessária aos madeirenses como à coroa. Os testemunhos deste
processo estão visíveis no redobrado empenho manifestado pelo senhor e rei, como nos vestígios da arquitectura civil e
religiosa.
A afirmação do poder régio é ainda uma evidência indesmentível neste momento, que ficou a marcar o reforço das
instituições da justiça e fiscalidade.

Bibliografia fundamental

COSTA, José Pereira da Costa, (dir., prefácio e notas de), Livro das Ilhas, Angra do ReroísmolFunchal,
SREC/SRTC, 1987.
- (leitura e introdução) Vereações da Câmara Municipal do Funchal. Século XV, Funchal, CERA,
1995

- (leitura e introdução) Vereações da Câmara Municipal do Funchal. Primeira Metade do Século XVI, Funchal, CERA, 1998

PEREIRA, Fernando Jasmins, Estudos sobre História da Madeira, Funchal, 1991.

RAu, Virgínia e MACEDO, Jorge, O açúcar na Madeira no século XV, Funchal, 1992.

VIEIRA, Alberto, O comércio inter-insular nos séculos XV e XVI (Madeira, Açores e Canárias), Funchal,
1987. - Portugal y las Islas, Madrid, 1992. - (coordenação de) História da Madeira, Funchal, SER, 2001

43 Arquivo Histórico da Madeira, VaI. XVI, pp. 292. 44 Arquivo Histórico da Madeira, VaI. XVI, p. 299.

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