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http://dn.sapo.pt/2008/05/04/opiniao/um_acidente_percurso.html

UM ACIDENTE DE PERCURSO

Nuno Brederode Santos


jurista
brederode@clix.pt

A sondagem do Expresso (e SIC/RR/Eurosondagem) veio revelar a parte visível do preço político que
Cavaco Silva pagou pelas escolhas políticas que fez na sua recente viagem à Madeira. Um preço alto,
que momentaneamente o colocou claramente abaixo do resultado eleitoral que o levou às funções que
desempenha. Durante essa viagem, recorde-se, aceitou não ir à Assembleia Legislativa, preferiu deixar
passar sem reparo a classificação de "bando de loucos" que Jardim dedicou a toda a oposição
parlamentar, recebeu esses partidos no hotel onde se instalou e nada quis ver ou visitar senão aquilo
que lhe foi proposto pelas autoridades locais. Enfim, ainda branqueou tudo isto com um último discurso,
estrita e desmesuradamente elogioso.

Foi, obviamente, uma escolha (mesmo que a não tenha desejado assim). Uma escolha que devotos e
aliados procuraram justificar, sem sucesso, com três ordens de invocações.

Primeiro, com a tese de que estaríamos perante uma normal relação entre um "anfitrião" e a sua visita.
Ora - na síntese feliz de Paulo Portas - "o Presidente da República vai onde quer e quando quer, em
todo o território nacional". Não tem subordinação a ninguém, porque está na casa para a qual o povo o
elegeu. Belém não tinha de aceitar global e acriticamente o programa que o Governo Regional lhe
apresentou. Aliás, nunca tal sucedeu. Essas coisas foram sempre negociadas e a palavra "não" teve de
desempenhar o papel que a língua lhe destinou. Pelo que, pelo menos nesse sentido, Belém quis as
coisas como elas foram vistas no resto do país: capitulação, mais do que mera complacência; receio
político, mais do que manobra diplomática para uma contemporizaçãp necessária. Segundo, com a
peregrina e misteriosa teoria de que tão recatado auto-apagamento teria em vista promover ou facilitar
o diálogo entre os governos da República e da Região - ideia que, às primeiras e subsequentes palavras
de Jardim e Sócrates, voou para longe e nunca mais alguém lhe pôs a vista em cima. Porque é muito
duvidoso que ao Presidente caiba promover o diálogo entre entidades que não coabitam na mesma
esfera do sistema constitucional, o qual, aliás, lhes regula o relacionamento (e ao PR não ocorre
certamente promover o diálogo entre o Governo da República e a Câmara Municipal de Viseu ou a Junta
de Freguesia de S. Mamede). E porque nem duvidoso é que não o deve, nem pode, fazer à custa das
suas competências e da sua missão, jurada e assumida, que é a de garante supremo da Constituição e
do regular funcionamento das instituições (já vinha, de resto, sendo incómodo o seu sistemático silêncio
sempre que o Presidente do Governo Regional defende a "substituição" do regime e da Constituição).

Terceiro, com o "precedente" que teriam constituído, poucos dias antes, os ditirâmbicos elogios de
Jaime Gama ao exemplo democrático de Alberto João Jardim. Mas, por muito que dele se tenha
discordado, Gama não é, como o PR, um órgão unipessoal de soberania. É um "primus inter pares" e foi
por eles eleito. Nem quis vincular a Assembleia, mesmo se a embaraçou. E é um garante de si próprio
(o que, no caso, até não deve dar pouco trabalho).

Num sistema como o nosso, a presidência é geralmente encarada com tolerância e bonomia. E é
importante que o seja, pois o poder moderador do Presidente coloca-o acima das quotidianas querelas
entre órgãos e instituições. Não se trata o Presidente Cavaco (como não se trataram Eanes, ou Soares,
ou Sampaio) com a ligeireza e a desenvoltura opinativas com que se tratou o primeiro-ministro Cavaco -
e eu por mim falo, já que, nesta última qualidade, o zurzi conforme pude (mas guardo o maior recato no
que ao desempenho das suas actuais funções se refere). Porque o Presidente vive e mora lá em cima,
por sobre o normal e desejável contraditório litigante, nesse espaço arbitral, mas não etéreo, que o
povo lhe reservou (e é importante que assim seja). Isto coloca-o acima dos reparos quotidianos, dos
pequenos incidentes e enxovalhos do dia-a-dia. Mas não acima da crítica democrática.

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Talvez por isso, esta descida aos infernos - esta "queda abrupta, sem paralelo no barómetro "
(Expresso), largamente abaixo da maioria que o elegeu (que é também a maioria tout court) - tenha
sido um episódio de aprendizagem a augurar um futuro de maior cuidado. |

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