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Agamben - O Cinema de Guy Debord PDF
Agamben - O Cinema de Guy Debord PDF
Giorgio Agamben
Creio que isso se deve à ligação estreita que existe entre o cinema e a história. De onde vem
essa ligação, e de que história se trata?
Mas de que história se trata? É preciso esclarecer que não se trata aqui de uma história
cronológica, mas a bem dizer de uma história messiânica. A história messiânica define-se
antes de mais nada por dois caracteres. É uma história da Salvação, é preciso salvar alguma
coisa. E é uma história última, é uma história escatológica, em que alguma coisa deve ser
consumada, julgada, deve passar-se aqui, mas num tempo outro, deve, portanto, subtrair-se
à cronologia, sem sair para um exterior. É essa a razão pela qual a história messiânica é
incalculável. Na tradição judaica há toda uma ironia do cálculo, os rabinos faziam cálculos
muito complicados para prever o dia da chegada do Messias, mas não paravam de repetir
que se tratavam de cálculos proibidos, pois a chegada do Messias é incalculável. Mas, ao
mesmo tempo, cada momento histórico é aquele da sua chegada, o Messias é sempre já
chegado, está sempre já aí. Cada momento, cada imagem está carregada de história, porque
ela é a pequena porta pela qual o Messias entra. É esta situação messiânica do cinema que
Debord partilha com o Godard das Histoire(s) du cinéma. Apesar da sua antiga rivalidade –
Debord disse em 68 de Godard que ele era o mais tolo de todos os Suíços pró-chineses –,
Godard reencontrou o mesmo paradigma que Debord tinha sido o primeiro a traçar. Qual é
esse paradigma, qual é essa técnica de composição? Serge Daney, acerca das Histoire(s) de
Godard, explicou que era a montagem: “O cinema procurava uma coisa, a montagem, e era
dessa coisa que o homem do século XX tinha uma necessidade terrível”. É o que mostra
Godard nas Histoire(s) du cinéma.
O carácter mais próprio do cinema é a montagem. Mas o que é a montagem, ou antes, quais
são as condições de possibilidade da montagem? Em filosofia, depois de Kant, chama-se às
condições de possibilidade de alguma coisa os transcendentais. Quais são então os
transcendentais da montagem? Existem duas condições transcendentais da montagem, a
repetição e a paragem. Isto, Debord não o inventou, mas fê-lo vir à luz, exibiu estes
transcendentais enquanto tais. E Godard fará o mesmo nas suas Histoire(s). Já não temos
necessidade de filmar, basta-nos repetir e parar. Esta é uma nova forma epocal por relação à
história do cinema. Este fenômeno espantou-me bastante em Locarno em 1995. A técnica
composicional não mudou, é ainda a montagem, mas agora a montagem passa para primeiro
plano, e mostra-se enquanto tal. É por isto que se pode considerar que o cinema entra numa
zona de indiferença em que todos os gêneros tendem a coincidir; o documentário e a
narração, a realidade e a ficção. Faz-se cinema a partir das imagens do cinema.
Estas duas condições transcendentais não podem nunca estar separadas, elas formam un
sistema conjuntamente. No último filme de Debord há um texto muito importante logo no
início: “Mostrei que o cinema se pode reduzir à esta tela branca, e à esta tela preta”. O que
Debord entende por isto é precisamente a repetição e a paragem, indissolúveis enquanto
condições transcendentais da montagem. O preto e o branco, o fundo em que as imagens
estão tão presentes que nem as conseguimos ver, e o vazio em que não há imagem alguma.
Existem aqui analogias com o trabalho teórico de Debord. Se tomarmos, por exemplo, o
conceito de “situação construída” que deu nome ao situacionismo, uma situação é uma zona
de indecidibilidade, de indiferença entre uma unicidade e uma repetição. Quando Debord diz
que é preciso construir situações trata-se sempre de algo que se pode repetir e também algo
de único.
Debord o menciona ainda no final de In girum imus nocte et consumimur igni, quando, em
vez da tradicional palavra “Fim”, aparece a frase: “A retomar do início”. Há aqui igualmente
o princípio que trabalha no próprio título do filme, que é um palíndromo, uma frase que se
volta nela mesma. Neste sentido, há uma palindromia essencial no cinema de Debord.
Desde os seus primeiros filmes e de forma cada vez mais clara, Debord mostra-nos a
imagem enquanto tal, isto é, e segundo um dos princípios teóricos fundamentais de A
sociedade do Espetáculo, enquanto zona de indecidibilidade entre o verdadeiro e o falso. Mas
existem duas maneiras de mostrar uma imagem. A imagem exposta enquanto tal já não é
imagem de nada, é ela própria sem imagem. A única coisa da qual não se pode fazer
imagem é, por assim dizer, ser imagem da imagem. O signo pode significar tudo, exceto o
fato de estar a significar. Wittgenstein dizia que o que não se pode significar, ou dizer num
discurso, o que é de alguma forma indizível, isso mostra-se no discurso. Existem duas
formas de mostrar essa relação com o “sem-imagem”, duas formas de fazer ver o que já não
há nada para ver. Uma é o pornô e a publicidade, que fazem como se houvesse sempre o
que ver, ainda e sempre imagens por detrás das imagens; a outra a que, nessa imagem
exposta enquanto imagem, deixa aparecer esse “sem-imagem”, o que é, como dizia
Benjamin, o refúgio de toda a imagem. É nesta diferença que se articulam toda a ética e
toda a política do cinema.
Giorgio Agamben, «Le cinéma de Guy Debord» (1995), in Image et mémoire, Hoëbeke,
1998, pp. 65-76.