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Prefiguracao Identitaria
Prefiguracao Identitaria
Capítulo 4
PREFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA E
HIERARQUIAS LINGUÍSTICAS NA
INVENÇÃO DO PORTUGUÊS
Joana Plaza Pinto
2. A invenção do português
No melhor modelo do cientificismo do século XIX, os estudos lin-
guísticos abusam de critérios metodológicos (programáticos, controlados
etc.) para compor "um corpus recolhido com a maior homogeneidade
possível" que represente a "variante culta da língua portuguesa", já que
teríamos uma "divisão dialetal do Brasil, tornando evidentes as diferen-
ças regionais".
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4. O performativo é um conceito elaborado pelo filósofo inglês John L. Austin (1976) e desenvolvido
longamente por outros autores e autoras ao longo dos últimos cinq uenta anos. Para os estudos a que
me filio, o performativo não é um tipo especial de enunciado, mas uma visão da linguagem e sua
relação com a construção social do mundo. Resumidamente, os performativos produzem efeitos que
constroem o que alegam descrever em atos de fala ritualizados e iteráveis (Austin, 1976; Butler, 1997;
1993; Derrida, 1990|. Isto significa que, quando falamos sobre como as coisas no mundo são ou como
os eventos aconteceram, o que fazemos não é simplesmente descrever coisas ou eventos, mas produzir
efeitos que constroem o que alegamos descrever.
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5. Este artigo de Bagno é bastante instigante. Ele inicia com um destaque importante: "Nunca é
demais lembrar que a questão dos nomes que se dá às línguas escapa da órbita dos especialistas
(filólogos, gramáticos, linguistas) e se vincula muito mais a problemáticas de natureza política,
cultural, econômica e ideológica" (Bagno, 2011: 34). Ainda que concorde integralmente com a segunda
parte da afirmação sobre a vinculação dos nomes das línguas a problemáticas políticas, culturais,
econômicas e ideológicas, não vejo razão alguma para concordar com a primeira parte. É razoável
compreender que
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os especialistas não orbitam fora das problemáticas mencionadas; ao contrário, já sabemos que os tais
especialistas são agentes fundamentais na propagação e legitimação dos interesses de nomeação das
línguas, e de forma alguma inocentes herdeiros desses nomes (Errington, 2001; Gardy, Lafont, 1981;
Makoni, Meinhoff, 2006; Makony, Pennycook, 2007; Mignolo, 2003; Souza, 2007).
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Pennycook (2007: 97), por sua vez, chama a atenção para tais suportes
na invenção do inglês: "A construção do inglês padrão foi um projeto que
produziu um conjunto de crenças sobre supostos objetos sacralizados em
dicionários, gramáticas, e manuais de estilo". Souza (2007: 140) também
destaca dicionários e descrições gramaticais diversas (de jesuítas no sé-
culo XVI a linguistas do XXI) como estratégias de dominação dos povos
indígenas no Brasil, produtos de verdadeiros "sequestros de línguas" que
visam "reduzir a profusão de sinais desconhecidos em códigos conhe-
cidos, impondo sentido e controle sobre o que era visto como faltando
ambos". A consequência disso é que "o papel da gramática a serviço de
uma modernidade supostamente progressista foi reiterado, sustentando
a sua instrumentalidade em uma política de desigualdade".
Nas mesmas condições coloniais e neoimperialistas a que foram sub-
metidas a África e a América indígena, as ideias sobre o português no
Brasil naturalizam estrategicamente o uso culto como se dicionários e
gramáticas apenas o refletissem e confirmam a separação tácita entre
culto-letrado X popular-iletrado, ao mesmo tempo em que inventam o
monolinguismo nacional. Os iletrados e populares falariam uma
variedade ou dialeto iletrado e popular de uma mesma língua, ao
contrário dos cultos, que falariam um dialeto ou variedade que segue "as
regras da língua escrita e da gramática tradicional" dessa língua. A
descrição da chamada variedade culta pressupõe que ela corresponda a
esses dois suportes da metalinguagem normativa ocidental, a escrita e a
gramática. Espera-se igualmente que esse grupo "culto" evite vocábulos
e expressões "populares" e gírias, cuidando de naturalizar as diferenças
na unidade linguística nacional — o que garante a naturalização das
desigualdades entre grupos socioeconômicos. Essa suposta separação
entre o culto e o popular perpassa as explicações circulares que
constroem a "variedade culta" do português. O trecho a seguir ilustra
como a caracterização do português culto é cíclica, retornando de modo
repetido ou regular àquilo de que se parte:
É óbvio que, no momento em que conseguimos classificar certo grupo so-
cial, por suas características típicas, como culto (levando-se em conta, par-
ticularmente, seu grau de escolaridade) podemos também, em tese, con-
siderar a linguagem por ele usada como dialeto culto. Da mesma forma
como um grupo considerado inculto praticaria, também em tese, um dialeto
inculto, popular, vulgar, ou como quer que o denominemos (Castilho, Pretti,
1987: 3, destaques meus).
Ainda que em seguida os autores observem a dificuldade de deli-
mitação entre variedades e uma convivência entre estas, os privilégios
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3. Desinventar o português
A descontextualização das dinâmicas sociais naquilo que é chamado
de "linguístico" leva à desconexão entre ciência e ideologia e entre co-
nhecimento e poder (Souza, 2007: 145). A posição de Lucchesi (2001),
por exemplo, é que as diferenças de tratamento do português do Brasil
é um problema de natureza metodológica e não ideológica (ênfase no
culto ou ênfase no popular). Mas, na prática, sua descrição do problema
constrói a hierarquização que procura negar. Sua narrativa da posição de
Naro e Scherre é exemplar:
No plano linguístico, Naro e Scherre (1993) procuram demonstrar que as
mudanças que afetaram a concordância nominal e verbal no Brasil teriam
suas origens, não na simplificação operada pelo contato entre línguas, mas
em mudanças fonéticas que se teriam iniciado em Portugal, sob a ação das
forças de uma deriva românica (Lucchesi, 2001: 99).
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7. O trecho que leva a esta ideia implícita na produção do NURC afirma explicitamente o oposto: "São
falantes cultos, por certo, os que possuem maior consciência da variação linguística e de sua adequa-
ção à grande diversidade de situações de comunicação" (Castilho e Pretti, 1987: 3).
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tamente significativo" (Seuren e Wekker 1986: 61). Também foi alegado que
a história sui generis das línguas crioulas — com ascendência pidgin e sem
passado histórico — pode ser tomada como uma janela privilegiada para
a linguagem em sua incipiência evolutiva (Bickerton, 1990). Crioulos são,
portanto, opostos às línguas "normais" e "regulares" (i.e., não crioulas) (ver,
por exemplo, Valdman, 1978: 345; 1992: 81; McWhorter 1998: 793, 798-99,
809-12), apenas línguas não crioulas são consideradas línguas maduras com
pedigrees antigos, histórias filogenéticas profundas e estruturas linguísticas
plenamente desenvolvidas.
8. Este artigo de Donna Haraway foi originalmente publicado nos Feminist Studies, vol. 14, n. 3,
em 1988.
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