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Capítulo 4
PREFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA E
HIERARQUIAS LINGUÍSTICAS NA
INVENÇÃO DO PORTUGUÊS
Joana Plaza Pinto

l. Prenúncio de uma tensão


Quando, por volta de 1997, começava a desenhar minha pesquisa de
doutorado, fui apresentada pela primeira vez a duas obras produzidas
no mesmo período histórico. Uma foi o livro do inglês Roy Harris, The
Language Myth1; outra foi a coletânea em três volumes A linguagem falada
culta da cidade de São Paulo, organizada pelos brasileiros Ataliba de
Castilho, Dino Preti e Hudinilson Urbano. O livro de Harris é de 1981.
A coletânea foi publicada no intervalo entre 1986 e 1988, ainda que suas
"amostras de materiais sonoros" (Preti e Urbano, 1988: 1) tenham sido
geradas durante a década de 1970.
A coletânea A linguagem falada culta da cidade de São Paulo ê já bas-
tante conhecida no Brasil, pois integra a produção do famoso projeto
NURC — Norma Linguística Urbana Culta. Iniciado em 1969, o projeto
foi realizado inicialmente em cinco capitais brasileiras: São Paulo, Rio de
Janeiro, Recife, Salvador e Porto Alegre. Seguindo critérios reconhecidos
dos estudos variacionistas e inspirado explicitamente em projeto da mes-
ma estirpe para a língua espanhola na América, uma das ideias
fundantes do projeto é servir de fonte para análises, sendo assim
disponibilizado o material em coletâneas de transcrições, como aquelas
de São Paulo a que tive acesso, e mesmo em áudio em repositórios nas
universidades

1. Agradeço imensamente a meu orientador, Kanavillil Rajagopalan, que sempre me


indicou despretensiosamente obras que se ajustavam ao fluxo das minhas reflexões. Este
livro de Harris foi uma dessas obras.
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participantes. Atualmente, existe também material do NURC em sítios


eletrônicos, muitos podendo ser acessados de qualquer ponto do pla-
neta2. A coletânea me foi recomendada para que eu a usasse, eventual-
mente, como fonte de dados para minha pesquisa. Voltarei à natureza
dessa indicação adiante.
O livro de Harris (1981: 204), por sua vez, procurava explorar as con-
tradições de pressupostos e argumentos da chamada linguística científi-
ca — a mesma que justificava e fundamentava o repositório do NURC.
Entre tais pressupostos, toda e qualquer versão de homogeneidade era
colocada à prova na obra ao discutir o "continuum de atividade criativa
que em si é a lingua(gem)". Sua obra causou grande impacto na época em
que foi lançada, especialmente pelo desafio que propunha à linguística:
"Desmitilogizar-se". Harris afirmava que os estudos da linguística con-
temporânea são fundados em dois raciocínios logicamente plausíveis,
mas enganosos. Trata-se de duas falácias complementares da tradição
ocidental: a falácia da telementalidade e a falácia da determinabilidade.
De acordo com Harris (1981), a falácia da telementalidade nos leva a
compreender a atividade linguística como transferência de pensamento
de mente para mente através de palavras. Reddy (1979) já argumentava
que nossa linguagem sobre a linguagem mantém intacta a metáfora de
representação, de que algo está nas palavras para ser transmitido. Nes-
se mesmo texto também citado por Harris (1981: 11-12), Reddy (1979)
observa que valeria mais conceitualizar a linguagem usando a metáfora
da entropia, a segunda lei da termodinâmica que afirma que todo siste-
ma tende à desorganização, à descentralização. Para efetivar qualquer
ato linguístico, é necessário dispêndio de energia, esforço de "ato de fé"
de que é possível indicar uma direção de interpretação. Reddy afirma
,1979: 296): "Comunicação humana bem-sucedida envolve um aumento
na organização [do sistema], que não pode acontecer espontaneamente
ou por conta própria". Harris (1981: 8) defende que "a lingua(gem) é
muito diversa para ser pensada como um conjunto único de realizações".
Em relação complementar à falácia da telementalidade, a falácia da
determinabilidade, também nomeada por Harris (1981: 10) como falácia
do "código fixo", fornece uma explicação para o funcionamento da tele-
mentalidade: para transmitir pensamento de uma mente a outra, preci -

2. Este o caso das amostras do Rio de Janeiro, disponibilizadas eletronicamente em:


http://www.letras. ufrj.br/nurc-rj/corpora/corpora_audio.htm.
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samos de um conjunto fixo de correlações entre ideias e símbolos, e a


linguagem seria exatamente este conjunto. Fundamentado nessas duas
falácias, um modelo de comunicação é oferecido: "Indivíduos estão aptos
para trocar seus pensamentos através de significados de palavras por-
que — e na medida em que — eles têm como compreender e aderir a
um plano público fixo para fazer isso" (Harris, 1981: 10). Na opinião do
autor, essas duas falácias sustentam muitas outras ideias e práticas entre
linguistas que constroem (ou inventam) a lingua(gem) como objeto de
estudo, classificação e previsão.
Ao confrontar as ideias de Harris (1981) com o projeto NURC, fiquei
pensativa sobre como esse repositório, assim como tantos outros produ-
tos das pesquisas em uma parte significativa da linguística, dependiam
fortemente dessas duas falácias e do mito da lingua(gem) para se de-
senvolverem. Passados quinze anos desde essa primeira confrontação,
entendo com clareza que essa dependência não se sustenta sem mais
uma falácia: a falácia da prefiguração identitária. Como espero demonstrar
mais detalhadamente 3 , grande parte da pesquisa sobre línguas em geral,
e sobre o português em particular, depende de duas crenças
complementares em homogeneidades variáveis:
(1) a homogeneidade variável das práticas linguísticas, no Brasil es-
pecificamente sustentada pela presunção da "divisão dialetal do
Brasil, tornando evidentes as diferenças regionais" (Universidade
Federal da Bahia, 2012b);
(2) a homogeneidade variável de camadas populacionais em áreas es-
pecíficas (no caso do NURC, urbanas).
Supostamente, a convergência entre tais homogeneidades variáveis
daria origem, por exemplo, "à variante culta da língua portuguesa" (Uni -
versidade Federal do Rio de Janeiro, 1998). A apresentação de Castilho e
Preti (1987: 1) explicita essas crenças: "Nosso objetivo é levar à comuni -
dade científica brasileira um corpus recolhido com a maior homogenei-
dade possível", representando "informantes cultos".
Ainda que desligados do contexto social, os estudos linguísticos cos-
tumam afirmar que estão sempre levando em conta o tal social, espe -
cialmente quando alegam estudar "padrões reais de uso". Para isso, a ho -

3. Para discutir o conceito de identidade em linguística, comentei rapidamente a problemática da


descrição do português do Brasil em outro artigo (Pinto, 2007). Aqui vou além do comentário e
procuro lançar mais luz sobre o problema.
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mogeneidade é qualificada com "critérios" sociais e geográficos. Revisão


sobre as abordagens sociolinguísticas no Brasil (Lucchesi, 2001) aponta
duas grandes tendências de estudo desse conjunto de fenômenos linguís-
ticos: um conjunto de estudos sobre a chamada "norma culta" e outro so-
bre a "norma popular ou vernácula". Essa revisão mostra o que o projeto
NURC exemplarmente confirma: tais tendências se fundamentam expli-
citamente em critérios geopolíticos para escolha ou ênfase de um de outro
conjunto. Os chamados "critérios linguísticos" para a caracterização das
línguas são, assim, dependentes de "critérios sociais", que se fundamen-
tam nas duas crenças que apontei e naturalizam a dicotomia
culto-popular. Essa codependência fecha-se para reflexões sobre as bases
de cada critério, implicando a aceitação do status quo dos dois conjuntos.
A língua portuguesa é analisada assim como conjunto relativamente
homogêneo, passível de ser estratificado em dialetos e variedades,
correspondendo a uma hierarquia linguística desenhada no Romantismo
alemão do século XVIII (língua-nação; região-dialeto ou variedade)
(Hutton, 2010; Migno-lo, 2003). Da mesma forma, a sociedade brasileira
é analisada como um conjunto relativamente homogêneo, passível de ser
estratificado pelo par xifópago classe-escolaridade, correspondendo a
uma prefiguração identitária do Brasil sintetizada por aqueles que falam a
língua portuguesa que importa são também aqueles que pertencem a uma
classe de acesso privilegiado à escolarização. Essa prefiguração encontra
sua força nas ideias de que o ideal da língua é sua homogeneização
escrita e que o acesso a essa escrita padronizada é prática exclusiva de
classes prestigiadas.
Neste capítulo, examino e debato essa prefiguração da identidade de
falante como resultado da descrição do português no Brasil e, em segui-
da, procuro tensionar a relação de tal prefiguração com a sustentação
da separação entre língua, dialeto e variedade, separação instituinte da
mitologia sobre as línguas em geral e sobre o português em particular.

2. A invenção do português
No melhor modelo do cientificismo do século XIX, os estudos lin-
guísticos abusam de critérios metodológicos (programáticos, controlados
etc.) para compor "um corpus recolhido com a maior homogeneidade
possível" que represente a "variante culta da língua portuguesa", já que
teríamos uma "divisão dialetal do Brasil, tornando evidentes as diferen-
ças regionais".
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Os critérios, no entanto, escondem seu guia principal: uni tipo de


critério zero, que é a correlação entre as duas homogeneidades variá-
veis que apontei na primeira seção, a das práticas linguísticas e a das
camadas populacionais. Para os demais critérios funcionarem, é indis-
pensável este último funcionar, pois ele tem um papel performativo 4
na construção da língua que se alega descrever. Para descrever o por-
tuguês, é preciso inventa-lo de antemão, deixar fluir um "regime de
verdade" (Foucault, 1979) sobre o português, que, antes de tudo, diz
que ele existe. Para isso nomeamos o que lemos e ouvimos (na rua,
em rádios, na TV, em livros, na internet etc.) de português, criamos
dicionários e gramáticas de português, tratamos fenômenos os mais
dispersos em território brasileiro como português, produzimos "efeitos
de língua portuguesa". Os "efeitos de língua" são as maneiras como
as línguas são materializadas através dos discursos que as descrevem
(Pennycook, 2007) e os discursos da linguística têm um papel funda-
mental nessa materialização.
A "variante culta da língua portuguesa" (Universidade Federal do Rio
de Janeiro, 1998) é também referida como "dialeto social praticado pela
classe de prestígio" (Castilho, Preti, 1987: 3), ou como "padrões reais [sic]
de uso na comunicação oral adotados pelo estrato social constituído de
falantes com escolaridade de nível superior" (Universidade Federal da
Bahia, 2012a) nos compêndios do projeto NURC.
O que é uma "variedade culta"? Ela é definida como de "uma classe de
prestígio". Não há menção direta ao tipo de prestígio a que tal classe tem
acesso, a não ser à particularidade de sua escolaridade. Alguns comentá-
rios de aparente menor importância nos ajudam a preencher essa lacuna.
Num dos volumes da coletânea de São Paulo, encontramos uma reflexão
especial sobre "dois informantes jovens" (Castilho e Preti, 1987: 2-3):
De fato, alguns de seus trechos poderão causar espécie a leitores menos
avisados, em face da presença de estruturas em desacordo com as regras da
língua escrita e da gramática tradicional, além de vocábulos e expressões
populares ou gírios [sic].

4. O performativo é um conceito elaborado pelo filósofo inglês John L. Austin (1976) e desenvolvido
longamente por outros autores e autoras ao longo dos últimos cinq uenta anos. Para os estudos a que
me filio, o performativo não é um tipo especial de enunciado, mas uma visão da linguagem e sua
relação com a construção social do mundo. Resumidamente, os performativos produzem efeitos que
constroem o que alegam descrever em atos de fala ritualizados e iteráveis (Austin, 1976; Butler, 1997;
1993; Derrida, 1990|. Isto significa que, quando falamos sobre como as coisas no mundo são ou como
os eventos aconteceram, o que fazemos não é simplesmente descrever coisas ou eventos, mas produzir
efeitos que constroem o que alegamos descrever.
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Ao destacar e pressupor esse estranhamento ("trechos poderão causar


espécie a leitores menos avisados"), o projeto estabelece uma das "carac-
terísticas" pressupostas desse grupo de falantes: espera-se que esse grupo
fale de acordo com as regras da língua escrita e da gramática tradicional.
Harris (1981: 12) afirma que os suportes metalinguísticos de grande
influência para a falácia do código fixo, que sustenta com a falácia da
telementalidade do mito da lingua(gem), são "os dois grandes instrumentos
da educação europeia, o livro de gramática e o dicionário". Tais suportes
têm um papel central nos "efeitos de língua" por todo o mundo colonizado
— tanto para as "novas línguas descobertas" quanto para as línguas
europeias que se construíram em oposição aos povos nos territórios
colonizados (Errington, 2001; Makoni; Pennycook, 2007; Mignolo, 2003;
Quijano, 2005).
Makoni (2003: 141) sintetiza: "A própria noção de línguas como uni-
dades distintas, ou 'caixas', é um produto do positivismo europeu re-
forçado pelo letramento e padronização". Errington (2001: 21) chama a
atenção para a conexão entre a escrita, o cientificismo e o projeto de
subalternização e controle nas práticas dos estudos linguísticos coloniais
(de missionários e não missionários): "A linguística colonial precisa ser
enquadrada aqui, então, como um nexo de tecnologia (letramento), razão
e fé e como um projeto de conversão múltipla: de paga para cristã, da
fala ã escrita, e do estranho ao compreensível". Em artigo recente, Cama-
cho (2010: 142) retoma os fundamentos judeu-cristãos dessa prática de
padronização dos dialetos:
[n]as culturas ocidentais, ou pelo menos, judeu-cristãs, numerosas institui-
ções têm como uma de suas funções primárias ou secundárias a redução da
diversidade linguística em favor do dialeto padrão. Estão aí para provar os
dicionários prescritivos, as gramáticas escolares, as autoridades institucio-
nalizadas.
Além disso, é já muito sabido que a construção das diferenças entre
as línguas na Europa e suas colônias foi, igualmente, fruto de disputas
políticas nada discretas do século XIII ao século XX — nacionalismos
de vários tipos, amalgamados eficientemente pela modernidade e pela
colonização (Mignolo, 2003). Bagno (2011)5 dá boa amostra disso ao sin-

5. Este artigo de Bagno é bastante instigante. Ele inicia com um destaque importante: "Nunca é
demais lembrar que a questão dos nomes que se dá às línguas escapa da órbita dos especialistas
(filólogos, gramáticos, linguistas) e se vincula muito mais a problemáticas de natureza política,
cultural, econômica e ideológica" (Bagno, 2011: 34). Ainda que concorde integralmente com a segunda
parte da afirmação sobre a vinculação dos nomes das línguas a problemáticas políticas, culturais,
econômicas e ideológicas, não vejo razão alguma para concordar com a primeira parte. É razoável
compreender que
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tetizar como foram construídas as idéias de "língua espanhola" e "língua


portuguesa" no contexto da formação dos estados espanhol e português,
estabelecendo o lugar de "dialeto" para o galego:
A Galiza passou a formar parte da coroa de Castela e Leão em 1230 e a
partir daí foi perdendo a sua autonomia política a favor de Castela. Esse
quadro político apresenta, de um lado, a Galiza: um território sem governo
próprio durante 750 anos, uma região que é em tudo tributária e dependen-
te de um Estado central espanhol, marcado, ao longo de sua história, por
uma forte política de silenciamento das identidades étnicas subestatais, de
esmagamento das lutas em favor da autonomia dos povos submetidos à sua
coroa e de substituição planejada das línguas locais pela língua oficial, cas-
telhana, que deixa de ser um dialeto local, o dialeto de Castela, para receber
o título nobiliárquico de "língua espanhola". Do outro lado, literalmente do
outro lado do rio Minho, fronteira natural que sempre demarcou os dois
territórios, está Portugal: país independente, reino autônomo desde o século
XII, Estado soberano, inimigo secular de Castela, sempre muito cioso de
preservar sua liberdade política diante da vizinha Espanha, mais poderosa
e maior. [...] Com isso, temos uma língua, o português, língua de um Estado
soberano, e temos o galego, que sempre viveu no inferno do não-ser, porque
lhe falta precisamente um Estado soberano (Bagno, 2011: 36).
Essa amostra indica como o discurso hegemônico que materializa
o português finca raízes na invenção da nação portuguesa, e para isso
esconde interações e conexões entre falantes, homogeneizando práticas
linguísticas diversificadas com o nome de "língua portuguesa".
Makoni (2003: 142) exemplifica esse tipo de materialização com o
caso das descrições de línguas africanas: "Discussões sobre vernáculos
africanos são tanto sobre formas específicas de imaginar a paisagem
sociolinguística africana como são sobre descrições". Esse autor destaca
a naturalização das divisões de línguas africanas como estratégia de
separação das pessoas, o que "facilita a velha tática do 'dividir para
governar' e serve aos interesses neoimperialistas contemporâneos".
Makoni e Mashiri (2007: 77) analisam também o lugar dos dicionários
das línguas "descobertas" no contexto da colonização europeia na
África, interpretando-os como aparato de vigilância e controle:
Dicionários, durante a era colonial, eram parte de um processo que encora-
jou os africanos a internalizarem a epistemologia europeia sobre si mesmos,
criando uma nova visão sobre seus assuntos atuais e sobrepondo novos va-
lores sobre seu passado.

os especialistas não orbitam fora das problemáticas mencionadas; ao contrário, já sabemos que os tais
especialistas são agentes fundamentais na propagação e legitimação dos interesses de nomeação das
línguas, e de forma alguma inocentes herdeiros desses nomes (Errington, 2001; Gardy, Lafont, 1981;
Makoni, Meinhoff, 2006; Makony, Pennycook, 2007; Mignolo, 2003; Souza, 2007).
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Pennycook (2007: 97), por sua vez, chama a atenção para tais suportes
na invenção do inglês: "A construção do inglês padrão foi um projeto que
produziu um conjunto de crenças sobre supostos objetos sacralizados em
dicionários, gramáticas, e manuais de estilo". Souza (2007: 140) também
destaca dicionários e descrições gramaticais diversas (de jesuítas no sé-
culo XVI a linguistas do XXI) como estratégias de dominação dos povos
indígenas no Brasil, produtos de verdadeiros "sequestros de línguas" que
visam "reduzir a profusão de sinais desconhecidos em códigos conhe-
cidos, impondo sentido e controle sobre o que era visto como faltando
ambos". A consequência disso é que "o papel da gramática a serviço de
uma modernidade supostamente progressista foi reiterado, sustentando
a sua instrumentalidade em uma política de desigualdade".
Nas mesmas condições coloniais e neoimperialistas a que foram sub-
metidas a África e a América indígena, as ideias sobre o português no
Brasil naturalizam estrategicamente o uso culto como se dicionários e
gramáticas apenas o refletissem e confirmam a separação tácita entre
culto-letrado X popular-iletrado, ao mesmo tempo em que inventam o
monolinguismo nacional. Os iletrados e populares falariam uma
variedade ou dialeto iletrado e popular de uma mesma língua, ao
contrário dos cultos, que falariam um dialeto ou variedade que segue "as
regras da língua escrita e da gramática tradicional" dessa língua. A
descrição da chamada variedade culta pressupõe que ela corresponda a
esses dois suportes da metalinguagem normativa ocidental, a escrita e a
gramática. Espera-se igualmente que esse grupo "culto" evite vocábulos
e expressões "populares" e gírias, cuidando de naturalizar as diferenças
na unidade linguística nacional — o que garante a naturalização das
desigualdades entre grupos socioeconômicos. Essa suposta separação
entre o culto e o popular perpassa as explicações circulares que
constroem a "variedade culta" do português. O trecho a seguir ilustra
como a caracterização do português culto é cíclica, retornando de modo
repetido ou regular àquilo de que se parte:
É óbvio que, no momento em que conseguimos classificar certo grupo so-
cial, por suas características típicas, como culto (levando-se em conta, par-
ticularmente, seu grau de escolaridade) podemos também, em tese, con-
siderar a linguagem por ele usada como dialeto culto. Da mesma forma
como um grupo considerado inculto praticaria, também em tese, um dialeto
inculto, popular, vulgar, ou como quer que o denominemos (Castilho, Pretti,
1987: 3, destaques meus).
Ainda que em seguida os autores observem a dificuldade de deli-
mitação entre variedades e uma convivência entre estas, os privilégios
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de classe são coextensivos aos privilégios linguísticos: "é óbvio" que as


classes cultas não são apenas "privilegiadas", "escolarizadas" e "letradas",
são também as mais linguisticamente hábeis; "são os falantes cultos, por
certo, os que possuem maior consciência da variação linguística e de sua
adequação à grande diversidade de situações de comunicação" (Castilho,
Pretti, 1987: 3; destaques meus). Acaba-se encontrando aqui mais uma
ideia integrante do critério zero: a fetichização do dialeto de prestígio e
de seus falantes. Falantes cultos são linguisticamente melhores que os
não cultos; enquanto os "populares" não sabem transitar entre varieda-
des ou dialetos, ficando "presos" à variedade que conhecem, os "cultos"
adaptam-se à situação de comunicação:
São essas oscilações naturais do uso linguístico do falante, aliadas ao natural
contato entre os grupos sociais numa comunidade, que explicam a eventual
presença, na linguagem dos falantes cultos [...] de estruturas sintáticas [...] e
vocabulário tipicamente coloquiais, afetivos, gírios [s/c], em aparente desa-
cordo com seu nível de escolaridade (Castilho e Pretti, 1987: 3-4).
Uma espécie de "decepção" paira sobre a ideia de que tais falantes
possam usar estruturas sintáticas e vocabulário "em desacordo com seu
nível de escolaridade". A escola, espaço tecnológico de reprodução e apli-
cação dos suportes metalinguísticos europeus, é aqui fundamental para
a materialização da língua que se diz descrever. Quando o falante não
corresponde ã língua que a escola deveria ensinar — especialmente a
universidade —, está em "desacordo" e, o mais provável, é que esteja
se adaptando à situação de comunicação, pois afinal ele é ótimo nisso.
A proposta é descritiva — supostamente não prescritiva, mas as infor-
mações geradas que desconectam o chamado "falante culto" das carac-
terísticas consideradas "cultas" da língua (entenda-se, características da
estrutura da escrita e da gramática tradicional) são secundarizadas. Fica
difícil saber qual critério é usado para que: a variedade culta é culta
porque é falada por falantes cultos, ou eles são cultos quando falam a
variedade culta?
Em Preti e Urbano (1988: 4-5), um "desacordo" com a estrutura da
escrita, o "anacoluto", é explicado como decorrente da informalidade
da geração dos dados, enquanto características da formalidade dos mes-
mos dados são enfatizadas como "típicas" dos falantes "cultos". Não há
como se enganar: o falante "culto" sempre tem alguma razão "externa"
para usar uma estrutura "popular", mantendo as "características estru-
turais" da variedade culta intactas. Como Cameron (1995: 8) apontou
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bem, "'descrição' e 'prescrição' acabam por ser aspectos de uma única (e


normativa) atividade: a luta para controlar a língua através da definição
de sua natureza". E Camacho (2010: 143) é ainda mais direto ao avaliar o
papel da linguística na crítica à normatização da língua:
Não é, entretanto, exclusivamente no âmbito da fixação e da defesa de uma
norma prescritiva que o processo ideológico tende a interferir no domínio
da linguagem. A teoria da linguagem pode basear-se, ela mesma, em certos
valores fundamentais, que confinam com os limites do conteúdo ideológico
e apresentar, nesse caso, um caráter curiosamente normativo, ainda que o
rejeite por princípio. Se, com efeito, procurarmos avaliar a contribuição que
deu a linguística para mudar essa concepção, os resultados não ultrapassam
a linha do alegado critério de cientificidade, mediante o qual é comum opor
a linguística à gramática normativa sobre a base da dicotomia descritivismo/
prescritivismo.
Os limites entre descritivismo e prescritivismo são obscuros quando
os discursos hegemônicos sobre a língua portuguesa ficam incólumes e
as categorias sociais usadas para sustentar os alegados critérios de cien-
tificidade não são submetidas à crítica.
Aposição defendida em Cardoso (2001), autora que é membro do pro-
jeto Atlas Linguístico do Brasil, também conectado ao NURC na Bahia6,
é indicativa de como a descrição de línguas e seus correlatos depende
metodologicamente da estabilidade e homogeneidade de grupos sociais.
Alegadamente, ter "controle de variáveis socioculturais dos informantes"
(Cardoso, 2001: 27) é dever de qualquer descrição de variedade, de dia-
leto ou de língua. Controlar "programaticamente" (Cardoso, 2001: 28)
o perfil de falante informa o perfil de uma variedade. Espera-se que os
dados gerados possam refletir mesmo "o ambiente cultural em que vive
o informante" (Cardoso, 2001: 32). Seguindo as mesmas premissas do
NURC, a autora sintetiza:
O Projeto ALiB [Atlas Linguístico do Brasil] se propõe descrever a realidade
linguística do Brasil, no que tange à língua portuguesa, com enfoque priori-
tário na identificação das diferenças diatópicas e estabelecer isoglossas com
vistas a traçar a divisão dialetal do Brasil, tornando evidentes as diferen-
ças regionais através de resultados cartografados em mapas linguísticos e
de estudos interpretativos de fenômenos considerados (Cardoso, 2001: 34,
destaques meus).
Entusiasta de uma separação dialetal traçada no início de século XX
por Antenor Nascentes (Cardoso, 2012), a autora usa duas metáforas de

6. Os dois projetos estão hospedados no mesmo site da UFBA: http://www.twiki.ufba.br/twiki/bin/


view/Alib/. "AliB" é a sigla para Atlas Linguístico do Brasil.
JOANA PLAZA PINTO

imobilização típicas da geolinguística, a da fotografia e a do mapa, para


discutir o projeto ALiB. A fotografia e o mapa escondem e revelam ao
mesmo tempo o ponto de vista de quem os produz. Escondem, na medi-
da em que não deixam ver quem ou qual situação os produz. Revelam,
na medida em que se pode refazer o percurso e voltar ao olhar que se
esconde. Essas metáforas são reveladoras do controle que constrói pre-
missas de analise — o ponto de vista — e de estabelecimento de limites
da prática linguística que se visa analisar — a fotografia ou mapa. O
ponto de vista estabelece os pressupostos que depois se alega descrever
de tal forma que "dados" divergentes são tratados como fora do perfil
traçado. A fotografia ou mapa é tratado não como produto construído
por esse ponto de vista, mas como se não pudesse ser outro. Além disso,
estabilidade e separação linguística são básicas para definir o dialeto
ou variedade; esta fotografia apaga o movimento que ela congela. Uma
vez percebida uma variável como relevante para aquele grupo suposta-
mente homogêneo, os usos divergentes são eliminados ou explicados a
priori, como é o caso das "estruturas populares" encontradas no "dialeto
culto". As relações entre os dialetos são subsumidas na homogeneidade
e estabilidade do retrato final, e qualquer tipo de interação entre eles é
rejeitada em nome das diferenças a serem destacadas. Como observaram
bem Gardy e Lafont (1981: 77) ao analisarem a diglossia franco-occitana,
tal atitude, que considera a diglossia como um fato realizado, uma situação
estabilizada, apaga evidentemente as tensões que existem entre os funcio-
namentos linguísticos e a ideologia de seus funcionamentos, e mascaram os
mecanismos que produziram e continuam a produzir os fenômenos tomados
como objeto de estudo.
Se o "dialeto culto" é fruto da escolarização e de privilégios difusos, é
possível descrevê-lo sem confrontar seu funcionamento com a ideologia
que constrói e mantém esses privilégios? Sendo a ideologia um sistema
contextualizado e dinâmico, as relações de poder em jogo entre o "culto"
e o "popular" não afetam os dialetos que os qualificam? Se confrontamos
a dinâmica de classe subentendida na dicotomia dos dialetos brasilei-
ros, redes de poder muito mais complexas se fazem emergir, redes que
incluem marcas de identidades controversas e contraditórias do mundo
contemporâneo e que inserem suas malhas num tecido local e global
ao mesmo tempo.
Cardoso (2001: 37) chega a discutir as mudanças no mundo contem-
porâneo, "as grandes transformações pelas quais têm passado as relações
PREFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA í HIERARQUIAS LINGUÍSTICAS NA INVENÇÃO DO PORTUGUÊS 131

entre os povos", e seu possível impacto na metodologia do projeto. Ela


afirma que tais mudanças afetam a estabilidade pressuposta pela
dialetologia, quando do seu surgimento no século XIX: "Isso tudo leva a
que se tenha, hoje, por um lado, usuários da língua mais sedimentados
em suas regiões e, por outro, falantes que não só têm grande mobilidade
mas também convivem com uma massa também móvel" (Cardoso, 2001:
37). Essa sedimentação, essa mobilidade geram práticas linguísticas cada
vez mais difíceis de serem caracterizadas nos moldes tradicionais da
divisão língua-dialeto-variedade.
Ainda assim, a autora defende a manutenção das diferenças regio-
nais (ou diatópicas, como ela prefere) no foco das descrições. Com essa
posição, melhor seria se fosse usada a metáfora da gravura: a "geografia
linguística" do país já tem seu próprio encavo (a diferença regional) e
não está disponível para rabiscos experimentais ao sabor da superfície
encontrada; a imagem que se verá depois de usado o molde da metodo-
logia proposta é sempre a mesma e suas variações não são significativas
para o conjunto da compreensão das práticas linguísticas no Brasil — a
divisão dialetal regional é, ao mesmo tempo, um pressuposto e uma con-
clusão. Hibridizações, conflitos e qualquer tipo de continuum linguístico
tão comuns no mundo contemporâneo (Borba e Ostermann, 2008; Busch
e Schick, 2007; Canagarajah, 2007; Ibrahim, 2003; Maher, 2010; Makoni,
2003; Makoni, Brutt-Griffler e Mashiri, 2007; Makoni e Mashiri, 2007;
Mufwene, 2002; Santos e Cavalcanti, 2008; Winford, 2003) sequer serão
visibilizados pela metodologia homogeneizante e estabilizante.
Lucchesi (2001) apresenta outro foco à dicotomia culto-popular ao
apontar suas raízes na própria formação do Brasil, sustentando sua argu-
mentação predominantemente em estudos sobre a configuração
sociodemográfica do território. O autor observa que, até o século XIX, o
Brasil foi um território dividido entre algumas cidades e vilas e uma
grande área rural. Nas cidades, em sua maioria costeira, ficavam os
órgãos administrativos dos colonizadores e lá, portanto, o consumo da
cultura e da língua da metrópole era mais intenso e sob controle dos
portugueses. Enquanto isso, nas áreas rurais, estava a maior parte da
população, e essa formação bipolar teria tido grande impacto no uso da
língua portuguesa:
Fora dos reduzidos centros da elite, nas mais diversas regiões do país, o
português era levado, não pela fala de uma aristocracia de altos funcionários
ou de ricos comerciantes, mas pela fala rude e plebéia dos colonos pobres.
Além disso, a língua portuguesa tinha que lutar para se impor, em primeiro
JOANA PLAZA PINTO

lugar, contra as variedades da língua franca de base tupi falada na costa


brasileira, chamada língua geral. Por outro lado, a língua portuguesa era
adquirida nas situações as mais precárias pelos escravos, que muitas vezes
preferiam se comunicar entre si, usando uma língua franca africana. Sob
essas ásperas condições, a língua portuguesa se foi disseminando entre a po-
pulação pobre, de origem predominantemente indígena e africana, nos três
primeiros séculos da história do Brasil (Lucchesi, 2001: 102).
A hipótese de Lucchesi é que o papel das línguas indígenas e das
línguas africanas foi de extrema importância nas práticas linguísticas
brasileiras entre o século XVI e XIX, o que é defendido por ele como
uma hipótese de crioulização: "Um processo de transmissão linguística
irregular que marcou decisivamente a formação das atuais variedades
populares da língua portuguesa no Brasil" (Lucchesi, 2001: 104). Sua
posição seria uma entre as duas vertentes dos estudos do português do
Brasil, uma que considera central a influência das línguas indígenas e
africanas na formação do português brasileiro, e outra que considera
que as mudanças e estado atual do português são decorrentes de carac-
terísticas do português europeu e que, depois de período nebuloso de
convivência diglóssica com línguas indígenas e africanas, o português
nacional estaria cada vez mais próximo de seu modelo europeu. Como o
próprio Lucchesi (2001) observa, esta última posição é predominante na
tradição filológica e linguística brasileira, tendo como representantes no-
mes como Serafim da Silva Neto, Gladstone Chaves de Melo, Sílvio Elia,
Mattoso Câmara Jr. e mais recentemente Anthony Naro e Marta Scherre.
Segundo Lucchesi (2001: 98), esses autores
embora admitam a formação de crioulos e semicrioulos decorrentes do
aprendizado imperfeito do português por falantes africanos, negam uma
maior influência destes na constituição do PB [português do Brasil]. Tal po-
sição se justifica pela imagem de unidade e conservadorismo do PB por que
militavam esses autores, decorrente de uma visão de superioridade cultural
do colonizador branco em relação aos aloglotas.
Assim como Scherre e Naro mais tarde, Mattoso Câmara Jr. defendeu
que "a influência das línguas africanas na constituição do PB se resu-
miria à aceleração de tendências prefiguradas no sistema linguístico do
português" (Lucchesi, 2001: 98). Mencionando autores que defendem a
hipótese de crioulização, Lucchesi (2001: 99) aponta que "o processo de
mudança se daria em direção à língua-alvo: o português culto". Nas duas
hipóteses (crioulização ou mudança contínua do português europeu), o
"português culto" é a referência e o objetivo final. Posição descritiva
ou efeito performativo (cf. nota 4)? Mariani (2004: 26) observa que "as
PREFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA E HIERARQUIAS LINGUÍSTICAS NA INVENÇÃO DO PORTUGUÊS 133

línguas são objeto de observações linguísticas e, simultaneamente, o pro-


cesso de descrevê-las reifica certa imagem linguístico-cultural
pré-construída". Com argumentos comparáveis aos de Harris (1981) e
Pennycook (2007), Mariani (2004) defende que há um discurso
hegemônico sobre a língua portuguesa, construído desde os tempos
coloniais, com políticas linguísticas institucionalizadas para propagar e
legitimar esse discurso:
É um discurso que se impõe pela força e pela escrita, ou melhor, impõe-se
com a força institucionalizadora de uma língua escrita gramatizada que jã
traz consigo uma memória, a memória do colonizador sobre a sua própria
história e sobre a sua própria língua (Mariani, 2004: 24).
Nos tempos da chamada linguística científica, a máscara descritiva
dessa hegemonia esconde a falácia da prefiguração identitária e sua hie-
rarquia linguística: os falantes que importam são aqueles que se apro-
ximam do "sistema linguístico" europeu, este também um disfarce da
tradição escrita e gramatical do nacionalismo europeu. Partindo de um
controle de homogeneidade do grupo de falantes, essa prefiguracão
per-forma aquilo que afirma descrever, atribuindo características
relevantes para grupos recortados como relevantes. Assim, a "norma
culta" pertence ao "grupo culto", e a "norma popular" é falada por
"grupos populares". De maneira nada incidental, a "norma culta" é
utilizada como parâmetro para definir a "norma popular" como dialeto,
e suas intersecções regionais, raciais, sexuais como "variedades" ou
"dialetos menores" da norma principal, esta sim considerada como
"língua".

3. Desinventar o português
A descontextualização das dinâmicas sociais naquilo que é chamado
de "linguístico" leva à desconexão entre ciência e ideologia e entre co-
nhecimento e poder (Souza, 2007: 145). A posição de Lucchesi (2001),
por exemplo, é que as diferenças de tratamento do português do Brasil
é um problema de natureza metodológica e não ideológica (ênfase no
culto ou ênfase no popular). Mas, na prática, sua descrição do problema
constrói a hierarquização que procura negar. Sua narrativa da posição de
Naro e Scherre é exemplar:
No plano linguístico, Naro e Scherre (1993) procuram demonstrar que as
mudanças que afetaram a concordância nominal e verbal no Brasil teriam
suas origens, não na simplificação operada pelo contato entre línguas, mas
em mudanças fonéticas que se teriam iniciado em Portugal, sob a ação das
forças de uma deriva românica (Lucchesi, 2001: 99).
134 JOANA PLAZA PINTO

O plano linguístico admite metáfora hierárquica de primeira ordem:


o contato entre línguas geraria simplificação, enquanto a deriva
românica apresenta forças. Não precisa ir longe para perceber que essa
metáfora da crioulização como simplificação das línguas está associada à
metáfora de infantilização do negro. O crioulo como termo pejorativo
para a população africana levada para as Américas é aplicado sem
crítica às práticas linguísticas influenciadas por falantes africanos, para
designar explicitamente práticas incompletas. Como bem mostra
Gonzales (1984), o negro é visto como o infans, sem linguagem, sua fala
é um "tatibitati".
Fanon (1952/2008) discutiu longamente a infantilização da língua fala-
da pelo negro, sempre com referência à língua da metrópole. Ele afirma:
"Não estamos exagerando: um branco, dirigindo-se a um negro, com-
porta-se exatamente como um adulto com um menino, usa a mímica,
fala sussurrando, cheio de gentilezas e amabilidades artificiosas" (Fanon,
1952/2008: 44). Esse autor demonstra que o racismo prendeu o negro
à sua língua como à sua pele; a pele e a língua se relacionam de forma
circular. Sendo negro, sua língua é sempre pior que a língua do branco;
espera-se que ele fale e compreenda de forma menos completa, e, se ele
fala e compreende a língua padronizada — ainda pior se for na forma
escrita — ele é visto como "quase branco" (Fanon, 2008: 36).
Dessa forma, não é de se estranhar a estratégia de negação da influ-
ência das línguas africanas nos chamados dialetos brasileiros, e, quando
há o reconhecimento, o processo só pode ser nomeado com termos ainda
coloniais, como o faz Lucchesi (2001: 101), ao repetir a tradição de inter-
pretação de "crioulos" como "um modelo defectivo de português adquiri-
do precariamente como língua segunda pelos escravos trazidos de África".
A população brasileira que não aderiu ao padrão do português euro-
peu é "popular" e "iletrada", enquanto a parcela "letrada" e "culta" tem
sempre o benefício da dúvida quando usa estruturas "informais" ou "em
desacordo com as regras da língua escrita e da gramática tradicional". O
eurocentrismo organiza a interpretação do português do Brasil, já que as
estruturas linguísticas "encontradas" são apenas uma parte do que garante
a interpretação: a prefiguração identitária de falantes é o que dá força à
diferença entre o "culto" e o "popular", a força do português europeu
contra a simplificação africana e indígena. Há saída? É possível oferecer
outro olhar para as práticas linguísticas do português no Brasil?
Richardson (2007) e hooks (2008) discutem a produtividade subver-
siva dos usos das línguas das metrópoles nas colônias, especialmente
PREFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA E HIERARQUIAS LINGUÍSTICAS NA INVENÇÃO DO PORTUGUÊS 135

aqueles usos feitos por africanos escravizados. Ao refletir sobre o senti-


do da linguagem nos tempos da escravidão nos Estados Unidos, hooks
(2008: 859) oferece uma interpretação bem diferente da "simplificação
defectiva" para as práticas linguísticas do povo negro escravizado:
Necessitando da língua do opressor para falar uns com os outros, eles não
obstante também reinventavam, refaziam essa língua de tal modo que ela
falaria além das fronteiras da conquista e da dominação. Nas bocas de afri-
canos negros no chamado "Novo Mundo", o inglês foi alterado, transforma-
do e tornou-se uma fala diferente. O povo negro escravizado pegou pedaços
partidos do inglês e fez deles uma contralíngua. Eles colocaram junto suas
palavras de tal maneira que o colonizador tivesse de repensar o significado
da língua inglesa.
Essa autora interpreta as alterações da língua colonial como atos sub-
versivos de confronto com a dominação, atos de resistência ao controle
racista. Richardson (2007) apresenta uma análise exemplar que coaduna
com as reflexões de hooks (2008). A autora defende que os discursos
dos negros não são um sistema fixo ou estático que se possa descrever
simplesmente como uma versão crioula do padrão da metrópole, mas
sim sistemas dinâmicos e reflexivos. O destaque é para sua propriedade
de ser indireto e crítico, exemplificada pelas músicas usadas no corte do
milho (corn shucking) e na hora da comida (Juba). Ambas eram cantadas
durante a "festa do milho", quando o senhor da plantação convidava
seus amigos para se entreterem com a cantoria dos escravos. Tais músi-
cas continham uma "dupla mensagem", aquilo que parecia apenas sons
de folia expressava a revolta dos escravos (Richardson, 2007: 200). A
autora aponta essa propriedade ao analisar a ironia do rap/hip-hop
afro--americano contemporâneo e, enfatizando o caráter subversivo dessa
atitude linguística, conclui:
Eles estão constantemente inventando, desinventando, redefinindo e re-
construindo a língua para satisfazer as necessidades e as metas deles e, as-
sim, constantemente envolvidos na desinvenção discursiva da identidade e
na desinvenção da linguagem (Richardson, 2007: 213).
Essa interação complexa entre estruturas linguísticas (vocabulário,
sintaxe, prosódia) e usos linguísticos (indiretividade, duplo sentido) nos
leva a pensar sobre as ideologias da linguagem, os sistemas de valoração
que fazem emergir uma ampla rede de "escolhas linguísticas" com pon-
tos de entropia e ambiguidade, que operam as relações de poder através
da submissão, da cumplicidade e da resistência às hierarquias sociais de
que as línguas participam.
JOANAPLAZA P|NT
136 °

No contexto brasileiro da colonização, as práticas linguísticas de ne-


gros e indígenas podem ser compreendidas sem jogar luz nessas ideo-
logias? No contexto pós-colonial, tais praticas devem ser descritas em
referência a um modelo português nacionalista e homogeneizante, que
apagou a diversidade linguística de seu próprio território, sem inserir tal
modelo no sistema ideológico do qual ele faz parte?
Confrontando o sistema ideológico das categorias linguísticas, Degraff
(2005) contesta a excepcionalidade do crioulo e defende que, aquilo que
é visto como fruto de transmissão irregular é, de fato, a forma comum de
funcionamento das línguas. Sua argumentação se inicia chamando aten-
ção para o viés colonial (e neocolonial) da descrição de línguas faladas por
africanos e seus descendentes na diáspora e nas colônias. Tal viés está
muito bem resumido pela pergunta originária nas teorias racistas dos
séculos XVII e XVIII: "Como pode o escravo (menos que humano?) falar
uma língua que soa como a língua plenamente desenvolvida do/a seu/
sua senhor/a europeu/ia (plenamente humano/a?)?" (Degraff, 2005: 535).
O viés produz a conclusão de que as práticas linguísticas desses grupos
eram "aleijadas", levando seus falantes a terem mesmo dificuldades in-
telectuais e cognitivas — nos mesmos termos em que o NURC espera
habilidades linguísticas melhores de falantes "cultos" e deixa implícita a
idéia de que falantes "populares" teriam sérias dificuldades linguísticas7.
Com foco em sua experiência como estudioso e falante do crioulo haitia-
no, mas mencionando também outros estudos de crioulos, incluindo do
português cabo-verdiano, Degraff (2005: 542-543) sintetiza seus achados
entre obras que variam da década de 1970 ao atual século:
Uma série de influentes linguistas tem postulado que a "tenra, muito tenra
idade" dos crioulos (cf. ex. 4) está necessariamente associada com estrutu -
ras extremamente reduzidas que lhes dão "[a] gramática mais simples do
mundo" (McWhorter, 2001) e que limitam drasticamente a expressividade
(por exemplo, Whinnom, 1971; Valdman, 1978, 1992; Seuren e Wekker,
1986). Como estruturas "deficientes" supostamente "constituem um obs -
táculo ao desenvolvimento pessoal intelectual do falante crioulo" (Whin -
nom, 1971:110). Esse empobrecimento estrutural hipotético (por exemplo,
a alegada ausência de morfologia) nos crioulos foi até mesmo promovido ao
status de um "universal histórico" por Seuren (1998: 292-93). Também teste-
munha o pronunciamento categórico de que "há consenso... que as línguas
crioulas têm pouca ou nenhuma morfologia" e que "a ausência (ou extrema
pobreza) de morfologia em línguas crioulas parece ser um dado sólido e al -

7. O trecho que leva a esta ideia implícita na produção do NURC afirma explicitamente o oposto: "São
falantes cultos, por certo, os que possuem maior consciência da variação linguística e de sua adequa-
ção à grande diversidade de situações de comunicação" (Castilho e Pretti, 1987: 3).
PREFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA E HIERARQUIAS LINGUÍSTICAS NA INVENÇÃO DO PORTUGUÊS 137

tamente significativo" (Seuren e Wekker 1986: 61). Também foi alegado que
a história sui generis das línguas crioulas — com ascendência pidgin e sem
passado histórico — pode ser tomada como uma janela privilegiada para
a linguagem em sua incipiência evolutiva (Bickerton, 1990). Crioulos são,
portanto, opostos às línguas "normais" e "regulares" (i.e., não crioulas) (ver,
por exemplo, Valdman, 1978: 345; 1992: 81; McWhorter 1998: 793, 798-99,
809-12), apenas línguas não crioulas são consideradas línguas maduras com
pedigrees antigos, histórias filogenéticas profundas e estruturas linguísticas
plenamente desenvolvidas.

A pergunta de Degraff (2005: 535) poderia ser adaptada aos propó-


sitos deste texto: como pode o português dos africanos e dos indígenas
(não cultos) serem parte do que falantes (cultos) usam hoje, se aqueles
não tinham escrita nem gramática próprias destes? Não ê de se estranhar
que a maior parte de linguistas e filólogos brasileiros tenha resistido à hi-
pótese da crioulização: quem vai querer uma língua de "simplificações",
ausências, sem passado, infantil, incompleta, incipiente? Mais gratificante
é reconhecer certa influência africana e indígena — nos empréstimos
lexicais, de preferência — e juntar-nos à "força" do passado glorioso da
língua de Camões (e melhor ainda se nos esquecermos dos atos
perfor-mativos que inventaram também essa homogeneidade lusitana).
Degraff (2005: 563) conclui que "se ha urna diferença central entre a
mudança de linguagem e crioulização, é na melhor das hipóteses uma
diferença sócio-histórica." Essa diferença é a sócio-história dos estudos
das línguas, que se sustenta, entre outras categorias, na distinção entre
variedade e dialeto e sua relação com a prefiguração identitária na des-
crição. Diante dos estudos do português do Brasil, vê-se rapidamente
que a distinção entre variedade e dialeto mostra-se frágil, uma vez que o
uso dos dois termos é indistinto, não havendo qualquer justificativa para
a escolha entre um ou outro termo. "Variedade culta" e "dialeto culto"
se correspondem; "dialeto" ou "variedade" com qualquer prefiguração
identitária (culta, popular, rural, urbana, formal, informal) também ocu-
pam as mesmas posições na argumentação, com uma diferença entre
autores que admitem o plural como em "variedades populares e rurais"
(Lucchesi, 2001: 113) e aqueles(as) que utilizam exclusivamente o singu-
lar, como "variante culta da língua portuguesa" (Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 1998). A fragilidade da distinção chega ao "nível acima",
ou seja, a distinção entre variedade, dialeto e língua, como se vê no uso
de "língua falada culta" em Preti e Urbano (1988: 1). Se tais palavras são
sinônimas, por que a distinção? Se a distinção é tão frágil, por que mantê-
JOANA PLAZA PINTO
138

-la? Por que preocupar-se com "dialetos regionais da língua portuguesa


no Brasil", se a diferença entre dialeto e língua não se mantém?
Cameron (1995) já observava que a busca enfática por padrões lin-
guísticos obscurece a reflexão sobre as categorias sociais envolvidas nos
padrões que se julga descrever e reproduz de forma nada crítica a afir-
mação de que "a língua reflete a sociedade". Ela chega a afirmar que
muitos "sociolinguistas se dão por satisfeitos por trabalhar com ideias
simples e de senso comum sobre o social" (Cameron, 1995: 15). Assim é
que a noção de dialeto encava-se nas diferenças regionais, e não podem
dar conta do mundo contemporâneo. Se há "dialetos" no Brasil, temos
também discursos e imaginário sobre cada um desses supostos dialetos.
Não se trata de uma distinção fonológica, morfológica ou sintática; a dis-
tinção é entre "nordestinos" e "sudestinos", entre "caipiras" e "urbanos",
entre "letrados" e "iletrados", entre "culto" e "popular". Do mesmo modo,
a noção de variedade persegue as distinções de sexo, idade, escolaridade
como se essas fossem naturais, estados comuns do mundo dado, e re-
fletissem causativamente a prefiguração identitária traçada no "controle
programático do perfil de falantes". A iconização de um traço linguístico
como representante básico de um grupo social e o apagamento de todos
os demais traços que contradizem as pressuposições de tal iconização são
práticas ideológicas tanto de falantes em seu cotidiano quanto de falan-
tes em seu trabalho de pesquisa (Makoni e Meinhof, 2006). A diferença
entre os dois tipos de falantes é que os segundos buscam o tempo todo
esconder as tensões entre as estruturas que destacam e a ideologia dos
destaques dessas estruturas (Gardy e Lafont, 1981), enquanto os primei-
ros estão o tempo todo explicitando os valores que fazem seus destaques.
Além de tudo, nenhuma das conclusões sobre o mapa ou cenário lin-
guístico brasileiro confronta seus resultados com políticas linguísticas,
coercitivas ou produtivas, do contexto a que se propõe analisar. Aliás,
contexto é o que menos há na descrição do português do Brasil, a tal
ponto que alguns trabalhos sequer mencionam de onde saíram seus da-
dos analisados, onde foram gerados, em que situação. Este é o princípio
de existência das transcrições do NURC: disponibilizar dados
descontextualizados — como se o contexto de geração de tais dados se
reduzisse ao perfil pré-concebido de falantes (idade, sexo, profissão,
escolaridade, local de nascimento) e à data e formato de geração. Parece
que qualquer transcrição linguística pode ser analisada fora do seu
contexto de geração, de tal forma que se pode inclusive indicar o
material transcrito para
PREFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA E HIERARQUIAS LINGUÍSTICAS NA INVENÇÃO DO PORTUGUÊS 139

pessoas distantes — no tempo (eu mesma recebi a indicação de "usar"


o material do NURC) è no espaço (a disponibilização das transcrições
em página eletrônica remete a essa possibilidade). A "fala-em-interação"
("padrões reais") das gravações que dão origem às afirmações sobre o
português "é entextualização, uma vez que aponta para os processos de
extrair o texto do contexto, posicionando-o em outro contexto e adicio-
nando qualificações metapragmáticas a ele" (Blommaert, 2008: 99).
A prefiguração da identidade de falante da língua portuguesa no Bra-
sil precisa ser discutida à luz dos critérios de delimitação da hierarquia
entre língua, dialeto e variedade: a seleção e a hierarquização de aspec-
tos linguísticos se fundamentam na seleção e hierarquização entre falan-
tes, sendo considerados aspectos relevantes da língua portuguesa aque-
les que distinguem camadas diferentes da população. Essa pressuposta
relação entre identidade social e identidade linguística se sustenta então
na prefiguração performativa do(a) falante e na hierarquia conceituai
entre língua, dialeto e variedade, subalternizando as práticas linguísticas
e identitárias híbridas e compartimentando o continuum linguístico da
realidade brasileira.
Makoni e Pennycook (2007) apresentam uma forma de lidar com essa
armadilha circular da interpretação das línguas e defendem a adoção
do conceito de crioulo como parâmetro para compreender as práticas
linguísticas nos dias atuais. Para isso, uma das atitudes mais importantes
é lidar com as categorias coloniais que integram o quadro das categorias
linguísticas. Por exemplo, a noção de língua que vemos nas distinções
dialetais do português é comparável às formulações da moderna Alema-
nha do século XVIII, "a língua é uma propriedade coletiva de seus falan-
tes nativos, entendidos coletivamente como um Volk ou ethnos ('povo').
O Volk é definido como uma linhagem historicamente contínua de um
grupo que possui uma língua distinta e tem um território distinto"
(Hut-ton, 2010: 640-641). A ênfase ainda hoje nas diferenças regionais e
as metáforas espaciais hierárquicas constantes das descrições
linguísticas do português são desdobramentos desta idéia romântica, que
elevava ao status mais alto o grupo homogêneo que falava uma língua
homogênea num território homogêneo.
A querela entre o português "culto" e o português "popular" só pode
ser entendida nesse contexto como um "legado do colonialismo" (Mako-
ni e Pennycook, 2007: 29), que inventou este enorme território como
monolíngue e tratou de desenhá-lo apagando ao máximo não apenas a
140 JOANA PLAZA PINTO

importância central das práticas linguísticas africanas e indígenas, mas


também os "usos translinguísticos sobrepostos" (Makoni e Pennycook,
2007: 28). Nesse mesmo sentido, Mignolo (2003) observou a produtivida-
de de se pensar o linguajamento, as línguas como estratégias, ao invés de
pensá-las como gramática e escrita, estrutura de qualquer ordem. Que
estratégias se podem adotar para se pensar as práticas linguísticas no
Brasil, de forma a subverter as falácias do legado colonial?

4. Sobre estratégias, olhares e imaginação


Ao se preocupar em mediar as duas vertentes de interpretação da his-
tória sociolinguística brasileira, Lucchesi (2001: 101) propõe uma "inte-
ração entre elas" e, com isso, se abre para a rota do continuam linguístico:
De um lado, o padrão europeu deixa de exercer tão proeminente influência
sobre a normatização da língua, observando-se um afrouxamento do padrão
linguístico entre as camadas médias e altas — em boa parte, devido aos pro-
cessos de interação com as camadas baixas, com uma significativa partici-
pação de segmentos adventícios. De outro lado, verifica-se um nivelamento
linguístico dos falares rurais e populares brasileiros, levando ao desapare-
cimento das marcas mais radicais geradas pelo contato entre línguas, que
marcou a sua formação histórica.
Essas aproximações evidentes entre práticas linguísticas consideradas
como dialetos separados desde o início da descrição das línguas no Bra-
sil, mais bem evidenciadas diante das mudanças irreversíveis no mundo
contemporâneo como a própria geolinguística admite (Cardoso, 2001),
oferece abertura para rever de vez as noções de variedade, dialeto e lín-
gua que sustentam tais descrições.
Até o momento recente da história dos estudos linguísticos, quando
pensamos a variedade do português, pressupomos "um português variá-
vel", unitário e total em si mesmo. Quando pensamos diferenças lin-
guísticas, pressupomos sempre "diferenças estruturais", ícones de cada
região predefinida. Pouco ou nada olhamos as interseções entre práticas
orais, letramentos multimodais, redes supraterritoriais e movimentos,
reais e virtuais, entre fronteiras diversas (fronteiras entre países, entre
grupos, entre pessoas).
Pensamos qualquer alteração na homogeneidade pressuposta como
"exceção" a ser apontada. As estruturas da língua não podem ser senão
aquelas já encontradas no português europeu e nas forças de sua mudan-
ça "natural". O "verdadeiro português" é aquele falado por pessoas nati-
PREFIGURAÇÃO IDENT1TÁRIA E HIERARQUIAS LINGUÍSTICAS NA INVENÇÃO DO PORTUGUÊS 141

vas e monolíngues, estáveis em sua região e em sua classe. Certamente,


se nosso controle programático do perfil de falantes for cumprido, encon-
traremos exemplares de tal identidade prefigurada. Mas os fenômenos
linguísticos no Brasil podem se reduzir às praticas desse duvidoso grupo?
As lentes que costumamos adotar ao olhar para a linguagem devem ser sig-
nificativamente alteradas para acomodar os fenômenos comunicativos pro-
duzidos por identidades recombinantes, mesmo que estes fenômenos não
possuam ordem gramatical e sintática, ou não possam mesmo ser reconhe-
cidos como parte de um único código padronizável (Jacquemet, 2005: 264).
Não temos que alterar nossas lentes, como propõe Jacquemet (2005),
desarranjar nossos conceitos coloniais e nossas falácias eurocêntricas,
para lidar com a totalidade de fenômenos linguísticos encontrados em
nosso território? Novas lentes não serão mais úteis para a construção de
uma autonomia crítica?
Uma relação atenta e cuidadosa com "fenômenos comunicativos pro-
duzidos por identidades recombinantes" possibilita mudar a nossa forma
de pensar aquele conjunto amplo, complexo e diverso que chamamos de
"português". Richardson (2007: 199) dá a dica de como fazer isso: "É útil
pensar na construção do continuum linguístico como parte e parcela do
continuum sociocultural". A estratégia de compreender as práticas linguís-
ticas do português como um continuum de fenômenos de identidades re-
combinantes aproveita ao máximo a crítica à suposta divisão dialetal e a
prefiguração identitária de que ela depende. Se estamos lidando com um
continuum linguístico, não tratamos mais de uma homogeneidade variá-
vel, ou seja, não se trata mais da mesma língua com diferenças regionais.
No continuum, o mito do "português", construído na narrativa fantasiosa
da "língua nacional" desde o século XIII e mitificada como "herança
que une a nossa nação monolíngue", se desfaz. O português
esparrama--se e se ajunta em consonância com diferentes formas de
diáspora e conexão entre as pessoas. Como bem sintetizou Jacquemet
(2005: 264):
Há alguma evidência de que as interações global/local também estão pro-
duzindo uma nova forma de reterritorialização que dá origem a identidades
recombinantes, geralmente produzidas por meio de encontros entre os có-
digos locais e globais de comunicação. Grupos diaspóricos e locais seme-
lhantes recombinam suas identidades, mantendo presença simultânea em
uma multiplicidade de locais e através da participação em redes eletivas
espalhadas por territórios transnacionais. Essas identidades recombinantes
são baseadas em multipresenças do multilinguismo, e descentrado engaja-
mento político/social.
142 JOANA PLAZA PINTO

O continuum linguístico é uma estratégia para lidar com o português


nos dias atuais, de forma a contestar a falácia da prefiguração identitária
e ao mesmo tempo tensionar as hierarquias linguísticas que tal falácia
sustenta. Entendo o continuum linguístico como a síntese das qualidades
recombinantes das línguas misturadas, das hibridizações e das
crioulizações (Jacquemet, 2005).
Aquilo que chamamos "a estrutura do português do Brasil" é apenas
uma armadilha na viscosidade linguística de tantas hibridizações locais
e globais ao longo do percurso que vai do encontro colonial em 1500 ao
borbulhar das cidades contemporâneas, É preciso abrir, não os olhos ou
os ouvidos, mas a imaginação para novas categorias provisórias, novos
modelos sem enquadre; abrir e deixar aberta nossa forma de lidar com o
português no mundo hoje.
O(a) pesquisador(a) em linguística que pensa fazer uma fotografia ou
um mapa da língua portuguesa no Brasil (ou numa região, ou numa
cidade, ou num bairro etc.) está usando a metáfora da imagem fixa. Se
assumimos que essa língua é um conjunto de fenômenos linguísticos
dinâmicos e complexos, a sugestão da imagem em movimento poderia
parecer uma metáfora bem mais interessante e o(a) linguista faria, no
melhor estilo youtube, um bom vídeo para compartilhamento. O vídeo
captura o movimento e mantém a língua em movimento.
Mas essa mudança metafórica é uma armadilha porque nos prende ao
mesmo modo de construir conhecimento de sempre. Mia Couto (2011:
98), escritor e biólogo moçambicano, no Congresso de Leitura do Brasil
em 2007, propôs: "Quebrar as armadilhas do mundo é, antes de mais,
quebrar o mundo de armadilhas em que se converteu o nosso próprio
olhar". A feminista e primatóloga estadunidense Donna Haraway (1995:
19), ainda na década de 19808, já havia nos ensinado a desconfiar da per-
versidade da visão na ciência moderna:
Os olhos têm sido usados para significar uma habilidade perversa —
esme-rilhada à perfeição na história da ciência vinculada ao militarismo, ao
capitalismo, ao colonialismo e à supremacia masculina — de distanciar o
sujeito cognoscente de todos e de tudo no interesse do poder desmesurado.
Ainda que a autora argumente pela corporificação da visão, proponho
mudar a metáfora do olhar. O mapa, a fotografia e mesmo o vídeo impli-

8. Este artigo de Donna Haraway foi originalmente publicado nos Feminist Studies, vol. 14, n. 3,
em 1988.
PREFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA E HIERARQUIAS LINGUÍSTICAS NA INVENÇÃO DO PORTUGUÊS 143

cam de toda forma um afastamento, uma propriedade de estar externo


ao evento que se mostra; neste conjunto metafórico, somos externos ao
que produzimos.
Para entender o conjunto das línguas no Brasil, a metáfora da rede
parece bem mais compatível com o continuum linguístico com que nos
confrontamos diariamente. Somos nós mesmas(os) parte dessa rede, te-
cida coletivamente, que podemos ver em parte, e de cuja tessitura par-
ticipamos como falantes e como pesquisadoras(es). Para se fazer entrar
nessa rede, é hora de abrir mão dos entrelaçamentos e pontos de sempre
nas tramas do nacionalismo, do colonialismo, do racismo, do sexismo,
do cientificismo; é hora de abrir mão da falácia da prefiguração
identitária fincada nos suportes da escrita e da gramática.
Nossa inspiração deve vir daquilo que ficou fora do "nosso olhar" apri-
sionado, aquilo que permaneceu como "exceção" e como "folclore" no
enquadramento das línguas. Nossa inspiração deve vir das lingua(gen)s
provisórias de "brasiguaios" (Santos, Cavalcanti, 2008), das histórias
comuns renegadas, aqui e além-mar, de africanos e de galegos (Bagno,
2011; Lucchesi, 2001); das transgressões criativas da linguagem das tra-
vestis (Borba, Ostermann, 2008); das apropriações persistentes de pro-
fessores indígenas (Maher, 2010); das reinvenções nos letramentos do
hip-hop (Souza, 2011).
Se a prefiguração identitária é enfrentada e o aparato cientificista jo-
gado fora, o que vemos em todos esses estudos inspiradores, e tantos ou-
tros que já circulam bravamente por aí, é a transfiguração do português
mitológico em fenômenos comunicativos recombinantes de identidades
múltiplas, enraizados, não em mitos falaciosos da linguística científica
eurocêntrica, mas em práticas linguísticas tecidas por falantes nas con-
tradições e surpresas do mundo, atos linguísticos de submissão, domina-
ção e resistência. E o que quer que afirmemos sobre tudo isso, seremos
apenas mais um(a) inventando a língua portuguesa. Menos saber o que
diremos, sonho em saber para que diremos: se para que só alguns con-
tinuem a ser os representantes legítimos dessa língua; ou se para que
a legitimidade dessa língua esteja sempre em construção no continuum
sociocultural e em confronto com as hierarquias linguísticas.

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