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FOTO CDC/SCIENCE PHOTO LIBRARYLATINSTOCK

SUPERBACTÉRIAS
O problema mundial da
resistência a antibióticos

Imagem de micrografia eletrônica


de varredura da bactéria MRSA, uma das
mais resistentes a antibióticos na atualidade

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MICROBIOLOGIA

O termo ‘superbactérias’ é atribuído às bactérias que desenvol-


vem resistência a, praticamente, todos os antibióticos. Vários
fatores estão envolvidos na disseminação desses micro-orga-
nismos multirresistentes, incluindo o uso abusivo de antibióti-
cos, procedimentos invasivos (cirurgias, implantação de pró-
teses médicas e outros) e a capacidade das bactérias de trans-
mitir seu material genético. Este artigo aborda as principais
superbactérias conhecidas e as perspectivas futuras desse pro-
blema que responde por um número crescente de infecções
e mortes e aflige profissionais de saúde em todo o mundo.

FABIENNE ANTUNES FERREIRA Programa de Pós-graduação


em Microbiologia, Departamento de Microbiologia Médica,
Universidade Federal do Rio de Janeiro

RAQUEL SOUZA CRUZ Departamento de Microbiologia Médica,


Universidade Federal do Rio de Janeiro

AGNES MARIE SÁ FIGUEIREDO Departamento de Microbiologia Médica,


Universidade Federal do Rio de Janeiro
Email: agnes@micro.ufrj.br

as últimas décadas, o mundo tem


testemunhado uma grande prolifera-
ção de bactérias patogênicas, envol-
vidas em uma variedade de doenças,
que apresentam resistência a múlti-
plos antibióticos. O termo superbac-
térias, muito usado atualmente, re-
fere-se a bactérias que acumularam
vários genes determinantes de resis-
tência, a ponto de se tornarem refra-
tárias a, praticamente, todos os antimicrobianos utilizados nos
tratamentos médicos, deixando clínicos e cirurgiões sem muitas
opções para combater as infecções. Sem dúvida, um dos mais im-
portantes fatores envolvidos na proliferação de superbactérias é a
ampla utilização de antibióticos no ambiente hospitalar, na po-
pulação extra-hospitalar (comunitária) e na agropecuária. >>>

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É preocupante o aumento contínuo das taxas de Atualmente, em países mais ricos, como os Estados
mortalidade relacionadas a infecções por bactérias mul- Unidos, 60% a 70% das amostras de S. aureus encontra-
tirresistentes, em todos os continentes. A partir de dados das em unidades de terapia intensiva (UTI) apresentam
(de 2009) de um grupo de estudo envolvendo o Centro resistência à meticilina (ou seja, são MRSA). Pacientes
Europeu para o Controle de Doenças e a Agência Euro- hospitalizados são, particularmente, mais suscetíveis a
peia de Medicina, estimou-se que, a cada ano, cerca de infecções graves por MRSA, em razão do sistema imune
25 mil pacientes morrem dessas infecções na União Euro- mais comprometido e do uso de procedimentos médicos
peia. Nos Estados Unidos, estudos realizados pelos Cen- invasivos, como cirurgia e implantação de cateteres e pró-
tros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) ava- teses.
liaram que mais de 63 mil pessoas morrem, a cada ano, Essa forma resistente da bactéria S. aureus tem eleva-
de infecções bacterianas associadas a hospitais. Mais in- da capacidade de disseminação, sendo comum encontrar
quietante é o fato de que a taxa de infecções graves por bactérias da mesma linhagem (muitas vezes, geneticamen-
bactérias multirresistentes é ainda maior nos países em te idênticas) em hospitais separados por distâncias conti-
desenvolvimento, como o Brasil, onde os serviços de assis- nentais, gerando verdadeiras pandemias hospitalares. A
tência à saúde são, muitas vezes, precários. maioria das infecções que ocorrem em hospitais é causada
As superbactérias têm surgido a partir de diversas es- por um pequeno número de linhagens internacionais
pécies ou grupos de micro-organismos, alguns dos quais epidêmicas de MRSA. No Brasil e em vários países, está
podem ser encontrados normalmente em nosso corpo amplamente disseminada a linhagem ST239. Além da re-
(na pele e nos intestinos, por exemplo). Entre as espécies sistência múltipla a antibióticos, amostras dessa linhagem
mais associadas à resistência a antimicrobianos estão são capazes de acumular grande quantidade de biofilme
Staphylococcus aureus resistente à meticilina (conheci- – um verdadeiro ‘tapete’ de bactérias que se forma em
da pela sigla MRSA), Acinetobacter baumannii, Entero- superfícies, como as de cateteres, próteses e instrumentos
coccus faecium, Pseudomonas aeruginosa, Clostridium médicos (figura 1).
difficile, Escherichia coli e Klebsiella pneumoniae. É de particular importância o fato de que bactérias des-
A MRSA está, sem dúvida, entre as superbactérias sa linhagem adquiriram a habilidade de aderir e invadir
mais disseminadas no mundo, tanto no ambiente hospi- células das mucosas do trato respiratório humano (figura
talar quanto fora dos hospitais, envolvendo inclusive in- 2), apontada por pesquisadores brasileiros em estudo pu-
divíduos saudáveis. Em 2007, o CDC publicou relato, no blicado em 2005 no periódico científico Journal of Infec-
Journal of the American Medical Association, estimando tious Diseases. Tal habilidade sugere que as superbacté-
que o número de infecções por MRSA nos Estados rias podem não apenas acumular genes de resistência,
Unidos estaria próximo de 100 mil por ano, com cerca mas também adquirir características capazes de afetar a
de 19 mil casos fatais. O número de mortes, segundo o gravidade das doenças.
editorial que comentava o artigo, é maior que o das A década de 1990 foi marcada pela emergência de in-
mortes atribuídas ao vírus da Aids naquele país, no fecções associadas a amostras de MRSA adquiridas na
mesmo ano. comunidade, ou seja, fora dos hospitais, inclusive afetando
indivíduos sadios. Análises dos genomas dessas bactérias
refutaram a possibilidade de linhagens hospitalares te-
EXTRAÍDO DE AMARAL E OUTROS, J. INFECT. DIS. 2005

rem migrado para a comunidade. Além disso, amostras de


MRSA de cepas hospitalares continham múltiplos genes
de resistência, enquanto as linhagens comunitárias tinham,
em geral, apenas o gene mecA, que confere resistência à
meticilina. Nos últimos anos, porém, cepas comunitárias
de MRSA começaram a adquirir resistência a múltiplas
drogas. Estudo publicado em 2010 na revista científica
Science (v. 329, nº 5.998, p. 1.467) revelou que a linhagem
ST398 de MRSA comunitária tem se disseminado também
entre suínos, tanto na Europa quanto na América do Norte.

Tipos novos de resistência_Outras superbacté-


rias em destaque, na atualidade, são as produtoras de
uma enzima denominada carbapenemase. Esses micro-
-organismos estão relacionados a surtos de infecções
hospitalares em todo o mundo, inclusive no Brasil. O
mecanismo de resistência dessas bactérias está dire­ta-
Figura 1. As bactérias são capazes de formar ‘tapetes’ (biofilmes) sobre mente associado à liberação dessa enzima, que perten­-
superfícies plásticas, como as utilizadas em dispositivos médicos ce ao grupo das betalactamases, que atuam rompendo

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MICROBIOLOGIA

EXTRAÍDO DE COELHO E OUTROS, MICROBIOLOGY, 2008

Figura 2. A bactéria Staphilococcus aureus multirresistente (MRSA) da linhagem ST239 (seta) pode aderir às microvilosidades
das células do aparelho respiratório humano

e inativando o anel betalactâmico, importante com­po- das a infecções com significativa mortalidade. No Brasil,
nente da estrutura química dos antimicrobianos. A quebra bactérias com essa enzima foram registradas pela primeira
desse anel impede a ação do antibiótico. O surgimento e a vez em 2005, mas somente em 2010 elas passaram a causar
disseminação universal desse tipo de resistência (a anti­ surtos mais graves no país: 246 pacientes foram contamina-
bióticos do tipo carbapenemas) representam desafios dos, em vários estados (só em Brasília foram 154), e morre-
tanto para a terapêutica médica quanto para o controle ram 18 pessoas no Distrito Federal e uma no Paraná, segun-
das infecções hospitalares. do a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Bactérias que produzem carbapenemases do grupo A, Uma nova superbactéria, conhecida como NDM-1,
conhecidas como KPC (sigla de Klebsiella pneumoniae- emergiu recentemente na Índia e no Paquistão, gerando
-carbapenemases, por terem sido encontradas inicial- preocupação. O gene blaNDM-1, adquirido por essa bactéria,
mente nessa bactéria), foram descritas nos Estados Unidos determina a produção de uma enzima (uma nova metalo-
desde o começo da década de 2000 e, segundo estudos re- -betalactamase) que confere resistência a quase todos os
centes, têm se disseminado para outros países. Até recen- antibióticos betalactâmicos em uso. O gene foi caracteri-
temente, essas enzimas só haviam sido identificadas em zado pela primeira vez em 2008, na K. pneumoniae e na
E. coli e K. pneumoniae, mas hoje sua produção já foi obser- E. coli, mas pode ocorrer em outras bactérias, como A. bau-
vada em outras, como P. aeruginosa e A. baumannii. manni. Hoje, pacientes infectados com essa bactéria são
A KPC confere resistência a praticamente todos os tratados apenas com antibióticos monobactâmicos, como
antibióticos que têm o anel betalactâmico. Antibióticos aztreonam – esses antimicrobianos têm uma estrutura
carbapenemas (como imipenema, meropenema e erta- diferente de anel betalactâmico, por terem sido sintetiza-
penema) tornaram-se ineficazes contra infecções causa- dos completamente em laboratório.
das por bactérias produtoras dessa enzima. Essas bactérias No entanto, é comum a superbactéria NDM-1 ter outros
também são, muitas vezes, resistentes a outros antibióticos genes de resistência, que a tornam imune a diversos tipos
não betalactâmicos, o que restringe ainda mais as opções de antibióticos (macrolídeos, aminoglicosídeos, rifampici-
de tratamento. Por isso, essas superbactérias estão associa- na, sulfametoxazol e até o aztreonam). Além disso, ela já >>>

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B

A C

Figura 3. ‘Superbactérias’ podem usar diferentes mecanismos para transmitir, a outras bactérias sensíveis, genes de resistência aos antibióticos. Alguns
desses mecanismos são; A) contato entre as duas bactérias (célula-célula); B) liberação de material genético no meio extracelular e captação por outra
bactéria; e C) transferência por meio de bacteriófagos (vírus – em amarelo – que infectam bactérias)

chegou a outras partes do mundo, embora continue restri- Atenção e medidas de controle_ O sucesso
ta ao ambiente hospitalar. Trabalho publicado em 2010 das superbactérias parece depender de três fatores prin-
no periódico científico International Journal of Antimicro- cipais: a presença de elementos genéticos móveis, permi-
bial Agents indica que bactérias NDM-1, restritas ao am- tindo a transmissão de genes de resistência de uma bac-
biente hospitalar, já foram encontradas nos Estados Uni- téria a outra (figura 3); a intensa utilização de an­ti-
dos, no Canadá, na Austrália, no Reino Unido e em outros microbianos, levando à proliferação desses micro-orga-
países europeus, no Oriente Médio, na África e no sudoes- nismos resistentes; e a rapidez com que as pessoas viajam
te da Ásia. Cabe acrescentar que grande parte dos infec- de um país para outro, disseminando tais bactérias entre
tados por bactérias NDM-1 realizou algum atendimento indivíduos de regiões geográficas distintas. Sem dúvida,
médico na Índia e, o que é pior, muitos foram àquele país a questão da múltipla resistência aos antibióticos tornou-
apenas para realizar cirurgias plásticas não restauradoras. -se uma crise sanitária global.

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MICROBIOLOGIA

Países que mantêm controle sam ser adotadas, o quanto antes, para que hospitais e ou-

ILUSTRAÇÃO CAIO LÍVIO


rigoroso das infecções em seus hos- tros serviços assistenciais continuem a promover a saúde da
pitais, como Dinamarca, Holanda população, sua função principal, sem gerar mais doenças.
e Finlândia, por exemplo, têm con- Não parece surpresa que o nível de infecções causadas
seguido manter as taxas de infec- por bactérias resistentes seja proporcional ao consumo de
ção por MRSA muito baixas. As antibióticos. Assim, a rota mais previsível para controlar a
estratégias de controle vão muito questão da resistência é frear o uso abusivo desse tipo de
além do uso de luvas e máscaras medicamento. É sabido que muitas prescrições são desne-
e de antissepsia eficiente de mãos cessárias ou incorretas, como nos casos em que o médico
e instrumentos médicos. Nesses desconhece o agente causador da doença ou de infecções
países, os hospitais realizam cultu- virais (contra as quais os antibióticos não atuam). O pro-
ras periódicas com amostras de blema ainda é mais grave nos países em que a venda de
pacientes infectados e de não in- antibióticos é regulada de modo inadequado.
fectados que apresentam risco de Em 5 de maio deste ano, o governo brasileiro deu um
contrair a bactéria resistente. Indi- importante passo para restringir o uso abusivo dessas
víduos contaminados permanecem drogas, ao editar a Resolução nº 20, da Anvisa, que dispõe
isolados, em enfermarias separa- sobre prescrição, comercialização e embalagem de anti-
das, até que a superbactéria seja bióticos. A resolução estabelece normas mais rígidas de
eliminada de seu organismo. prescrição pelos médicos, determina a retenção de cópias
Os micro-organismos conti- das receitas em farmácias e drogarias e obriga os comer-
nuam acumulando alterações ge- ciantes do setor a manter livros (tradicionais ou eletrônicos)
néticas (mutações) que garantem de registro dessas vendas, com a identificação dos com-
sua evolução como patógenos de pradores. Os antibióticos – a resolução lista 119 (excluí-
sucesso e, em alguns casos, se tor- dos os de uso exclusivo em hospitais) – devem ter faixas
nam resistentes a todas as drogas, vermelhas na embalagem e, nestas, a informação de venda
mas os pesquisadores continuam apenas sob prescrição médica e com retenção da receita.
buscando novas substâncias anti- Medidas como esta são essenciais para controlar a pro-
microbianas, e algumas têm sido liferação e um potencial predomínio de superbactérias. No
descobertas. Vacinas contra bacté- entanto, muito ainda precisa ser feito. Cabe aos cientistas
rias multirresistentes também são desenvolver pesquisas que levem a novas drogas para com-
objeto de estudos, mas até o mo- bater os micro-organismos multirresistentes, e compete aos
mento nenhuma vacina desse tipo governantes adotar políticas e medidas práticas, implan-
foi aprovada para comercialização. tando o monitoramento constante e o controle da dissemi-
Apesar do esforço de pesquisa nação dessas bactérias modificadas, bem como outras ações
visando descobrir novos antibió­ de promoção da saúde e prevenção de doenças. Finalmen-
ticos, o número de novas drogas te, a população deve se manter informada, para ter condi-
aprovadas para comercialização ções de exercer sua cidadania e exigir seus direitos quanto
vem diminuindo ao longo dos à qualidade dos serviços públicos de saúde.
anos. Além disso, a cada novo anti-
microbiano descoberto, as bacté-
rias adquirem um mecanismo de
resistência e proliferam mesmo Sugestões para leitura
em sua presença. Assim, cada vez mais, os médicos encon-
tram dificuldades para tratar seus pacientes com a dro- AMARAL, M. M.; COELHO, L. R. e outros. ‘The predominant variant of the
Brazilian epidemic clonal complex of methicillin-resistant Staphylococcus
ga mais adequada.
aureus has an enhanced ability to produce biofilm and to adhere to and invade
É notório que a disseminação e o potencial para causar airway epithelial cells’, em Journal of Infectious Diseases, v. 192, nº 5, p. 801,
pandemias das superbactérias merecem monitoramento 2005.
constante e efetivo. Mas são necessárias medidas adicio- KLEVENS, R. M.; MORRISON, M. A. e outros. ‘Invasive methicillin-resistant
nais de controle, em nível nacional e internacional. É im- Staphylococcus aureus infections in the United States’, em Journal of American
Medical Association, v. 298 (15), p. 1.763, 2007.
portante, para isso, que exista uma colaboração estreita
WALSH, T. R. ‘Emerging carbapenemases: a global perspective’, em International
entre países, por meio de redes públicas de vigilância. Journal of Antimicrobial Agents, v. 36 (Suplemento 3), p. S8, 2010.
Surpreende, apesar de todo o avanço da biologia molecular,
da biotecnologia e dos estudos de sequenciamento de
VEJA MAIS NA INTERNET
genomas, que a comunidade científica ainda não tenha >>ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Resistência a antibióticos (em inglês)
redes eficientes para acompanhar a ocorrência de bacté- (disponível em www.who.int/mediacentre/factsheets/fs194/en/)
rias multirresistentes. Políticas públicas efetivas preci-

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