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Guavira Número 6

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LITERATURA INFANTIL E/OU JUVENIL:
A "PRIMA POBRE" DA PESQUISA EM LETRAS?*

Maria do Rosário Longo Mortatti **

RESUMO: Com o objetivo de contribuir para o debate a respeito de problemas e


possibilidades de perspectivas teórico-metodológicas da pesquisa na área de Letras,
problematizam-se, neste texto, questões relativas à inserção, nessa área de
conhecimento, da literatura infantil e juvenil. Essas questões envolvem: a delimitação da
literatura infantil e/ou juvenil como campo de conhecimento/especialidade
necessariamente interdisciplinar, seu estatuto acadêmico-científico e perspectivas teórico-
metodológicas para a produção de teoria, história e crítica específicas, considerando sua
"inserção substantiva" (mas não exclusiva) na área de Letras.

PALAVRAS-CHAVE: literatura infantil e juvenil; pesquisa em Letras.

Explicação necessária

As considerações aqui apresentadas são uma espécie de síntese das reflexões


sobre o tema, decorrentes de pesquisas que venho desenvolvendo, há já mais de 20
anos, individualmente, e, após 1994, articuladamente às dos demais integrantes do grupo
de pesquisa "História do ensino de língua e literatura no Brasil" (GPHELLB), que
coordeno desde então. Essas pesquisas se relacionam diretamente com minha atuação
profissional, seja como professora do antigo ensino de 1o. e 2o. graus, seja como
professora e pesquisadora na universidade. Muitas dessas reflexões se encontram
registradas em livros e artigos que tive publicados, mas muitas outras ficaram dispersas,
em conferências e palestras como a deste evento e nas inumeráveis aulas que já
ministrei, seja em cursos de formação inicial e continuada de professores da Educação
Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental (CEFAM e graduação em Pedagogia),
seja em cursos de especialização e programas de pós-graduação em Educação e em
Letras.
Tendo sido geradas também nessas situações específicas de interlocução e,
portanto, em estreita relação com as demandas mais imediatas dos sujeitos diretamente
envolvidos, muitas dessas reflexões não foram exatamente previstas, nem gravadas ou
anotadas nos exatos momentos de sua exposição.
De tanto reiterá-las oralmente, porém, e, a cada reiteração, aprofundar alguns
aspectos ou acrescentar outros, na relação dialógica com os envolvidos, nas sucessivas
situações mencionadas e ao longo de tantos anos; de tanto resistir aos "apelos do 'não'" e
persistir na fecunda teimosia científica, estimulada pelos sentidos que tais reflexões vêm
**
Professora Livre-docente - FFC-UNESP-Marília; coordenadora do Grupo de Pesquisa "História do ensino
de língua e literatura no Brasil"; autora de: Leitura, literatura e escola: sobre a formação do gosto (Martins
Fontes); Em sobressaltos: formação de professora (Ed. Unicamp); Os sentidos da alfabetização (São Paulo-
1876/1994) (Ed. Unesp); Educação e letramento (Ed. Unesp). E-mail: mrosario@marilia.unesp.br.

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mobilizando nos diferentes interlocutores, pude reafirmar sua pertinência e relevância; em
decorrência, acabei por registrá-las, pouco a pouco, na memória, como uma lembrança
sempre viva e pronta a se presentificar, com a força da experiência intelectual que se
confunde com as vivências pessoais e como tal se impõe a um simples "farejar" de
indícios de proximidade de uma "madeleine".
Mais ou menos esse foi o efeito, sobre mim, do convite para esta palestra; e foi
mais ou menos assim que me vieram à mente as considerações que aqui apresento
assim como o estímulo para partilhá-las com tão especializado grupo de interlocutores,
cujo ofício envolve pensar também sobre a literatura infantil e/ou juvenil e seus
problemas. Pelo convite para essa prazerosa atividade, agradeço aos organizadores
deste evento.

Algumas questões e muitos problemas

Como se pode definir "aquilo" de que trato nesta palestra e que venho
denominando "literatura infantil e/ou juvenil"?
Para iniciar as reflexões, determino, de modo relativamente arbitrário (mas não
inconseqüente) um ponto de partida: com a denominação "literatura infantil e/ou juvenil"
(LIJ), refiro-me a um fenômeno literário-cultural-social — campo de ação, prática,
observável em discursos de/produção de LIJ — e a um correspondente tema de
pesquisa/campo de conhecimento — sistematização teórica (e, por vezes, crítico-
normativa) do fenômeno, observável em discursos sobre/produção sobre LIJ.
De uma perspectiva sincrônica, evidenciam-se problemas de definição do
fenômeno e do correspondente (e explícito como tal) tema de pesquisa/campo de
conhecimento. Esses problemas envolvem questões, como as propostas a seguir.
Não basta que um texto tenha sido escrito como literatura infantil e/ou juvenil ,
ou que seja assim considerado por especialistas (ou críticos, se houvesse), se não
funcionar como tal, por exemplo, nos catálogos das editoras, na utilização que dele
podem fazem educadores e pais, nos estudos que dele faz o pesquisador acadêmico.
Na definição das principais características da produção de LIJ e de seus usos e
funções, nas condições atuais, não se podem desconsiderar, como variáveis
intervenientes e mesmo determinantes, aspectos relacionados aos diferentes agentes
envolvidos, dentre os quais destaco, em uma espécie de "cadeia produtiva": autores -
embora haja um número razoável de bons escritores e ilustradores brasileiros
especializados em LIJ, a produção atual permite pensar que escrever ou ilustrar livros
desse tipo, para leitores "menores de idade", é uma atividade tão simples que pode ser
realizada por quem quiser a ela se dedicar, com boas e instrutivas intenções, mesmo que
careça de engenho e arte; editoras - é grande o número de editoras que investem
fortemente na promoção de um padrão — cada vez mais aperfeiçoado e que chega a
prescindir de "autoria" — de livros de LIJ que são vendáveis, pois estão em consonância
com as demandas do mercado, sob o mecenato do Estado; educadores - são
usuários/mediadores, que tendem a utilizar livros de LIJ, como se não fossem exatamente
livros de literatura, já que a finalidade principal de sua atividade de educadores é ensinar,
aos menores, o útil de uma forma agradável; enfatizam, assim, os aspectos didático-
instrucionais e de "auto-ajuda" dos livros que recebem (das editoras e do Estado) como
"livros de literatura infantil e/ou juvenil", muitas vezes sem distingui-los da categoria mais
geral "livros infantis"; pesquisadores - dependendo dos objetivos e áreas de conhecimento
de suas pesquisas, podem também utilizar textos de LIJ desconsiderando que se trata de
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livros que se apresentam como livros de literatura — o que se observa freqüentemente,
por exemplo, em pesquisas nas áreas de Educação, Psicologia, Biblioteconomia — assim
como pesquisadores da área de Letras podem também utilizar um texto de LIJ como se
fosse de "literatura para adultos"; leitor previsto - crianças ou jovens quase
exclusivamente em situação escolar, que têm acesso aos livros de LIJ com mediação
secundária de educadores, filtrada pela mediação primária de editoras e órgãos
governamentais, que, por sua vez, delegam a pesquisadores acadêmicos a análise e a
seleção de livros de LIJ (dentre o que são oferecidos pelas editoras) a ser divulgados nas
escolas e utilizados por professores para leitura com alunos no ambiente escolar,
predominantemente.
De uma perspectiva diacrônica, evidenciam-se as "origens" dos problemas da
busca de definição do fenômeno e da constituição (indireta como tal) do correspondente
tema de pesquisa/campo de conhecimento. Esses problemas envolvem questões, como
as propostas a seguir.
No caso brasileiro, especificamente, trata-se de um fenômeno, cuja "origem"
vem sendo detectada no final do século XIX, acompanhando o processo de organização
de um aparelho escolar republicano e disseminação de certas concepções de infância,
segundo as quais a criança — leitor previsto para os textos de literatura infantil e
responsável pelo qualificativo "infantil" — é (era) um ser considerado “sem voz” e “em
formação”. Para seu crescimento integral, necessita(va) se submeter: ao processo de
escolarização, como prática sociocultural mediadora entre o mundo adulto e o infantil; e à
aprendizagem da leitura, como prática sociocultural mediadora entre os textos produzidos
por adultos com finalidades de formação e seus leitores infantis. Com a extensão da
escolarização aos jovens, à medida que os mais novos se foram tornando mais velhos, e
com os avanços da psicologia e sua busca de caracterização da infância, distinguindo
essa fase das subseqüentes, como a adolescência, começou-se a apontar, no discurso
sobre, a inclusão/acréscimo de "juvenil" a essa literatura destinada nem a crianças, nem a
adultos, como se pode observar especialmente a partir dos anos 30 do século XX, no
Brasil.
Ainda no caso brasileiro, especificamente, também o correspondente tema de
pesquisa/campo de conhecimento tem sua "origem" mais remota em inicialmente tímido
discurso sobre que começa a ser produzido, acompanhando a produção de, no final do
século XIX e início do século XX.
Na constituição desse discurso sobre, os textos e autores que destaco a seguir
se foram constituindo como referência obrigatória para os que tomam a LIJ como objeto
de estudo e pesquisa.
Para Manoel Bergström Lourenço Filho, em artigo publicado em 1943, a
literatura infantil e juvenil, como toda literatura, tem por fim precipuamente o da arte, ou a
"expressão do belo". "Há uma 'literatura' específica para as crianças, justamente porque
estas a consomem; porquanto se torna possível levar-lhes a emoção estética, através das
letras, nas condições naturais de seu gradativo desenvolvimento mental, emocional e
cultural." (Lourenço Filho, 1943, p. 157), o que demanda que aqueles que escrevem para
crianças aceitem e estudem a "estética evolutiva, ou genética", para garantir que a
literatura infantil atinja seu fim: a arte a serviço da formação/educação das crianças e
jovens. O limite da liberdade criadora é, portanto, o agradável a serviço do útil.
É importante ressaltar: tais considerações, elaboradas por um educador,
administrador escolar, psicólogo, editor, autor de cartilhas, livros de leitura e livros de
literatura infantil, encontram-se em um artigo resultante de conferência proferida a convite
da Academia Brasileira de Letras e que se caracteriza como um quase-manual para
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autores de livros de LIJ, pareceristas e membros da Comissão Nacional de Literatura
Infantil (CNLI) 1 , a qual Lourenço Filho integrou, juntamente com outros educadores e
autores de LIJ, que, como ele, aprovaram ou reprovaram originais de livros de LIJ, ou
orientaram autores, ou, ainda, escreveram livros desse tipo, contribuindo decisivamente
para a definição, "na prática", de um conceito operante de literatura infantil e/ou juvenil.
Em conferência para professores primários mineiros, proferida em 1949 e
reeditada em 1979, Cecília Meireles define literatura infantil a partir da preferência das
crianças, que, segundo a autora, recaía sobre os textos literários de fato, com predomínio
da beleza, mesmo que não tivessem sido escritos estritamente para esse público leitor.
Também membro da CNLI, a autora da conferência apresenta seu ponto de vista
marcado por sua condição de poeta e professora, o que lhe permite pensar e praticar a
relação "equilibrada" entre o "agradável e o útil" nos textos de literatura infantil.
Em livro publicado em 1968, Leonardo Arroyo apresenta uma definição
"culturalista" de literatura infantil, que tende a ter seu interesse secundarizado frente à
importante contribuição do inventário de fontes para o estudo do tema, apresentado pelo
autor e conduzido pela tese de que a literatura infantil brasileira tem sua "pré-história" na
literatura didática e escolar de final do século XIX, firmando-se como tal a partir da obra
de Monteiro Lobato. A "evolução histórica" conduzida pelo olhar de historiador e jornalista
retoma, dentre outras, idéias (históricas e teóricas) de Lourenço Filho, que é também o
prefaciador de seu livro, publicado na coleção Biblioteca de Educação, da Editora
Melhoramentos.
Considerando a literatura como uma "manifestação individual" e um "fenômeno
de cultura", em livro com primeira edição em 1984, Nelly Novaes Coelho, aponta como a
"natureza específica" da LIJ como uma das questões mais polêmicas, propondo seu
pertencimento simultaneamente à literatura e à pedagogia e, em decorrência, devendo
seu estudo se vincular às duas áreas correspondentes.
Do ponto de vista da professora e pesquisadora em teoria e história literária,
que é também autora de monumental dicionário crítico de literatura infantil brasileira,
Coelho destaca, ainda, a necessidade de se considerar a literariedade como fator de
definição da LIJ e a necessidade de a crítica literária se voltar para esse aspecto desses
textos, para evitar que a LIJ seja tratada apenas em seus aspectos educativos e
ideológicos.
Em livro publicado em 1984, dedicado ao "mestre Arroyo", Marisa Lajolo e
Regina Zilberman propõem uma história da literatura infantil brasileira de um ponto de
vista que envolve a teoria literária, a história da literatura brasileira e a história da leitura,
com abordagem de caráter sociológico e marxista, características do clima acadêmico-
científico nas ciências humanas, à época da publicação desse livro. Defendem a
literariedade dos textos de literatura infantil, em consonância com os padrões da literatura
brasileira para adultos e em contraposição à tradição herdada de ênfase no caráter
moralizante e pedagogizante dos "textos do gênero". Também tomam Lobato como marco
da literariedade na literatura infantil brasileira e defendem que seu "boom", ocorrido a

1
A respeito da produção de e sobre LIJ de Lourenço Filho assim como da atuação da CNLI, ver,
especialmente a tese de produzida no âmbito do GPHELLB: BERTOLETTI, Estela N. M. A produção de
Lourenço Filho sobre e se literatura infantil e juvenil (1942-1968): fundação de uma tradição. 2006.Tese
(Doutorado em Educação) - FFC - UNESP, Marília.

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partir dos anos de 70 do século XX, caracterizou-se pela busca dessa literariedade,
justamente porque e quando os escritores retomam a tradição de Lobato...
Em livro publicado em 1986, Edmir Perrotti enfatiza a esteticidade/literariedade
como definidora da LIJ, contrapondo "discurso literário" a "discurso utilitário" e "função
estética/formativa" a "função utilitária" (incluindo o "utilitarismo às avessas") dos textos de
LIJ. Do ponto de vista do bibliotecário de formação e pesquisador em ciência da
informação, o "boom" da LIJ brasileira, a partir dos anos de 70, caracterizou-se pela
busca dessa esteticidade/literariedade, também justamente porque e quando os escritores
retomam a tradição lobateana, como o autor exemplifica com O gênio do crime, de João
Carlos Marinho, que analisa no livro mencionado.
O artigo e os livros destacados constituem o que considero um corpus básico
do discurso sobre LIJ, em decorrência de suas características de sistematização e de sua
contribuição para a fundação e consolidação de um tema de pesquisa/campo de
conhecimento. Apesar de suas diferentes formações e pontos de vista teóricos, os
autores dos textos mencionados, porém, apresentam pontos em comum, indicativos de
permanência e rupturas, no que se refere à definição e conceituação da LIJ.
Dentre tantos pontos em comum, constata-se a indicação de um denso
conjunto de problemas históricos e teóricos, relativamente ao discurso de e sobre LIJ,
dentre os quais destaco: a relação direta entre esteticidade/literariedade e
formação/educação/instrução; a acentuação gradativa da esteticidade/literariedade como
fator decisivo da definição e da qualidade dos textos de LIJ; a ausência de uma crítica
específica da LIJ brasileira, como fator de contribuição para avaliação da produção de.
Destaco, ainda, o fato de todos os textos desse corpus básico terem sido
publicados entre os anos 40 e 80 do século XX, após o que essas abordagens não foram
diretamente questionadas, nem se publicaram outros estudos ou pesquisas com o mesmo
grau de abrangência, nem, ainda, abordaram-se devidamente as atuais características da
LIJ, impulsionadas pelas novas tecnologias gráficas e pelas demandas de mercado,
destinadas a leitores distantes do texto escrito e pouco letrados.
Tais constatações vêm ao encontro dos dados contidos no documento Ensino
de língua e literatura no Brasil: repertório documental republicano (Mortatti, 2003), no qual
se encontram 542 referências de textos (livros, capítulos de livros artigos, números
especiais de periódicos, dissertações e teses, publicações institucionais, obras de
referência, verbetes em dicionários, prefácios e apresentações a livros) sobre literatura
infantil e juvenil, produzidos por brasileiros, entre 1885 e 2002. Embora não se pretenda
exaustivo, o conjunto dessas referências indica, além do já apontado anteriormente, que,
embora venha aumentando o número de publicações brasileiras sobre LIJ, a produção
sobre é ainda irrisória, especialmente se comparada com a produção de acumulada até
os dias atuais, indicando que muitas e fecundas são, ainda, as possibilidades de
exploração das questões relativas à LIJ.
Em síntese, questões e problemas como os até aqui apontados, por um lado,
vêm confirmar que "aquilo" de que trato nesta palestra envolve um fenômeno complexo e
multifacetado e um tema de pesquisa/campo de conhecimento ainda emergente, em
nosso país; se a produção de LIJ brasileira já tem mais de 100 anos e sua quantidade
aumenta em proporção geométrica, a produção sobre é setuagenária e em quantidade
insuficiente, ainda, para contemplar a condição complexa e multifacetada do fenômeno
que visa a compreender. Por outro lado, essas questões e problemas sugerem que os
pesquisadores da área de Letras são os potencialmente com mais (ainda que não todas)
condições de dar conta da complexidade e multifacetação do fenômeno — no qual está
envolvida substantivamente a literatura — já que essa é a área cuja tradição teórica e
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metodológica permite melhores condições de acolher a especificidade da literatura, como
objeto de estudo e pesquisa, podendo, por isso, contribuir para a produção de uma
história, teoria e crítica específicas da LIJ (brasileira).

Tentativas de respostas, novas questões e novos problemas

Há, hoje, em uso pelo menos quatro expressões mais comumente utilizadas
para denominar, no caso brasileiro, o fenômeno literário-cultural-social e o correspondente
tema de pesquisa/campo de conhecimento: "literatura infantil", "literatura juvenil",
"literatura infanto-juvenil", "literatura infantil e juvenil". Para os objetivos desta palestra,
venho utilizando a expressão "literatura infantil e/ou juvenil", buscando contemplar essas
diferentes denominações. Uma proposta de definição de seu sentido assim como uma
proposta de abordagem teórico-metodológica, apresentei-as em artigo cujos principais
aspectos sintetizo a seguir.

Por "literatura infantil e/ou juvenil" entendo um conjunto de textos — escritos


por adultos para serem lidos por crianças e/ou jovens — que constituem
um corpus/gênero historicamente oscilante entre o literário e o didático e
que foram paulatinamente sendo denominados como "literatura infantil e/ou
juvenil", em razão de certas características do corpus e certos
funcionamentos sedimentadas historicamente, por meio, entre outros, da
expansão de um mercado editorial específico e de certas instâncias
normatizadoras, como a escola e a academia. (MORTATTI, 2001, p. 182)

Em decorrência da "condição de origem", tem-se uma unidade múltipla


determinantemente constitutiva da LIJ, em especial a brasileira, o que implica, por um
lado, considerar os textos assim denominados como pertencentes a um gênero textual
simultaneamente literário e didático, e, por outro lado, reconhecer que os termos literatura
e infantil e/ou juvenil não se encontram em relação de oposição, mas de
complementaridade, embora indiquem hierarquização semântica constitutiva de sua
natureza: substantivamente literatura, cujo atributo qualificativo é infantil e/ou juvenil.
Nesse sentido, o "impasse" recorrentemente apontado por alguns
pesquisadores em relação tanto à produção de quanto à produção sobre LIJ se torna
pouco produtivo, uma vez que sua assunção obriga a se fazer opção por inserir os
estudos sobre LIJ nesta ou naquela área; e o pesquisador que escolhe abordar a LIJ,
dependendo da área em que atua, é obrigado a fazer opção ou se submeter às "opções",
ou pelo primeiro, ou pelo segundo termo da expressão “literatura infantil e/ou juvenil” —
desconsiderando o termo excluído — e a reduzir o objeto de investigação a um de seus
aspectos constitutivos, de que decorre seu enquadramento em uma das duas áreas de
conhecimento nas quais mais freqüentemente se pensa poderem incluir os estudos sobre
LIJ: Letras ou Educação.
Como já afirmei, as questões e problemas históricos apontados sugerem que
os pesquisadores da área de Letras são os potencialmente com mais (ainda que não
todas) condições de dar conta da complexidade e multifacetação do fenômeno já que
essa é a área cuja tradição teórica e metodológica propicia melhores condições de
acolher a especificidade da literatura, como objeto de estudo e pesquisa, podendo, por
isso, contribuir para a produção de uma história, teoria e crítica específicas da LIJ

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(brasileira). È o que se observa, por exemplo, com a realização desta palestra sobre esse
tema neste seminário promovido por programa de pós-graduação em Letras.
Aceitando essa "inserção substantiva" (mas não exclusiva) da LIJ na área de
Letras, restam ainda problemas a enfrentar. Considerando, por exemplo, a classificação
atualmente utilizada no Brasil, em que subárea(s) se pode(m) inserir os estudos sobre LIJ:
Teoria literária? Literatura brasileira? LIJ pode ser considerada uma especialidade ou um
campo de conhecimento envolvido diretamente com a área de Letras e a grande área
Lingüística, Letras e Artes? Considerando, ainda, que nessa área se observa, se não uma
recusa, pelo menos pouco interesse no estudo da LIJ, como se se tratasse de um
fenômeno e um campo de conhecimento menos nobres do que outros já consagrados,
como se pode conquistar adequado estatuto acadêmico-científico para os estudos sobre
LIJ, a fim de buscar superar sua condição de objeto e especialidade menores e menos
prestigiados na área de Letras?
Se, porém, é a área de Letras que oferece hoje condições de abordagem mais
adequada das especificidades da LIJ, porque oferece o "instrumental básico e necessário"
para se efetuarem estudos sobre LIJ, os pesquisadores não podem desconsiderar as
demais questões e problemas, que embora não façam parte diretamente de sua formação
acadêmica, estão envolvidos na produção de e sobre LIJ, de acordo com o ponto de vista
que proponho. Embora o fenômeno em questão envolva substantivamente a literatura,
não podem desconsiderar que se trata de fenômeno complexo e multifacetado e que a
unidade múltipla determinantemente constitutiva dos textos de LIJ implica sua inserção —
ainda que adjetiva e, por vezes, restritiva — também em áreas como Educação,
Psicologia, Biblioteconomia, dentre outras, como se constata na dispersa produção sobre,
em especial no âmbito acadêmico, atualmente.
É necessária, portanto, a construção/definição (também pelo uso) de uma
identidade específica desse tema de pesquisa/campo de conhecimento e seus
respectivos objetos de investigação, o que demanda um ponto de vista interdisciplinar, por
parte dos pesquisadores interessados, independentemente da área em que atuam,
sobretudo quando se entende que a tarefa primeira do pesquisador é explicar para
compreender.
Esse ponto de vista interdisciplinar propicia buscar compreender a LIJ não por
fatores externos, nem de forma mecânica, como se seus elementos estivessem
"unificados apenas no espaço e no tempo por uma relação externa", estranhos entre si e
sem que os penetrasse "a unidade interna do sentido" e a "unidade da responsabilidade".
(Bakhtin, 2003. p.XXXIII)
Como, porém, abordar a LIJ, no âmbito da área de Letras, mas de um ponto de
vista interdisciplinar, se a formação do pesquisador é, quase sempre, especializada?
Como proceder a fim de contribuir para a produção de uma história, teoria e crítica
específicas da literatura infantil e/ou juvenil brasileira? Como proceder para a conquista
do reconhecimento da legitimidade do estatuto acadêmico-científico desse campo de
conhecimento ainda emergente?

Outra possibilidade de repostas

Na busca desse estatuto acadêmico-científico, os estudos e pesquisas sobre


literatura infantil e/ou juvenil demandam a leitura crítica de textos de LIJ. A leitura
demandada para esse fim, porém, exige do pesquisador uma relação com os textos de
literatura infantil e/ou juvenil que vá além da relação primordial de envolvimento (positivo
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ou negativo). Essa leitura exige a busca de distanciamento crítico, que parte da pergunta
“por que gostei (ou não)?” — ou uma de suas variantes burocratizadas: “por que devo
gostar ou não?” — e busca analisar a configuração textual, conceito operativo que permite
abordar, de um ponto de vista interdisciplinar, a identidade específica dos textos de LIJ,
ou seja, sua unidade múltipla determinantemente constitutiva.
Com a expressão configuração textual 2 nomeio o conjunto de aspectos
constitutivos de determinado escrito e que conferem sua singularidade como texto: as
opções temático-conteudísticas (o quê?) e estruturais-formais (como?) projetadas por
determinado autor (quem?), que se apresenta como sujeito de um discurso produzido de
determinado ponto de vista e lugar social (de onde?) e momento histórico (quando?),
movido por certas necessidades (por quê?) e propósitos (para quê?) e visando a
determinado efeito em determinado tipo de leitor previsto (para quem?); assim como a
circulação, utilização e repercussão logradas pelo projeto do autor ao longo da história (de
leitura) do texto.
Aplicado ao estudo da LIJ, esse conceito se aproxima da proposta de “critica
integradora” de Antonio Candido 3 e oferece fecundas possibilidades de exploração desse
gênero textual, sem se desconsiderar sua identidade específica.
Em todas as fases do processo de leitura crítica de textos de LIJ, a atividade do
pesquisador é um ato de interpretação, que, como síntese, demanda a análise integrada
dos aspectos constitutivos de determinado texto, a fim de poder reconhecê-lo e interrogá-
lo como configuração textual e dele produzir uma leitura possível e autorizada, a partir de
seus objetivos, necessidades e interesses, ou seja, a partir de seu necessário
envolvimento como pesquisador.
Desse ponto de vista, o trabalho do pesquisador não se restringe à
recuperação e descrição dos textos do corpus escolhido. Tampouco se deve reduzir o
processo analítico a aspectos isolados da configuração textual, como, por exemplo,
aqueles constitutivos de sua “camada mais aparente” 4 (o quê? e como?) ou aqueles que
remetem à sobre-determinação do contexto histórico ou social (quando? e onde?) e suas
marcas ideológicas (por quê? e para quê?), ou, ainda, aqueles que refletem aspectos da
biografia do autor (quem?). Resultantes de um tipo específico de atividade de, com e
sobre linguagem, os textos não escondem nada “por trás”, não demandando operações
de “desvelamento” ou “desnudamento”. Os sentidos e as explicações podem ser
“encontradas” na configuração textual, ponto de partida e de chegada do trabalho
investigativo.
Trata-se, portanto, de um ato de interpretação centrado no conceito operativo
de configuração textual como centro da atividade crítica e com base no qual o
pesquisador deve interrogar os textos de LIJ na posição de um leitor crítico e distanciado
— porque envolvido —, o qual deve produzir um discurso sobre um discurso de. Para
tanto, precisa buscar analisar todos os aspectos da configuração textual, utilizando-se
também de métodos e procedimentos advindos da crítica, teoria e história literárias,
especialmente, mas também de conhecimentos da história do discurso de e sobre LIJ e
das demais áreas de conhecimento envolvidas, o que lhe propicia maiores condições de

2
Para uma expansão do conceito de configuração textual e suas possibilidades de aplicação, ver,
especialmente: MAGNANI, M.R.M. Em sobressaltos: formação de professora. Campinas: Ed. UNICAMP,
1993; MORTATTI, M. R. L. Os sentidos da alfabetização (1876-1994). São Paulo: Ed. Unesp, 2000; e
______. Linguagem, texto e pesquisa histórica em educação. História da educação. v. 3, n.6, p.69-78, out.
1999.
3
CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
4
CANDIDO, Antonio. obra citada.1995.

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produzir sentidos autorizados que conferem singularidade a determinado texto de
literatura infantil e/ou juvenil 5 e contribuir para a construção da identidade específica tanto
do fenômemo quanto do campo de conhecimento.

Considerações finais

Espero que as questões, problemas e propostas que apresentei aqui possam


contribuir para a busca de delimitação e reconhecimento da legitimidade do estatuto
acadêmico-científico desse campo de conhecimento necessariamente interdisciplinar,
fecundo e promissor.
E, frente ao tanto que há por fazer, penso que um bom começo pode ser a
busca da "constituição de uma terminologia própria" para esse campo de conhecimento e
de imposição de seus conceitos, por meio de sua denominação, como marca "do advento
ou o desenvolvimento de uma conceitualização nova, assinalando, assim, um momento
decisivo de sua história". Porque não há "outro meio de estabelecer sua legitimidade
senão por especificar seu objeto denominando-o, podendo este constituir uma ordem de
fenômenos, um domínio novo, ou um modo novo de relação entre certos dados"; porque o
"surgimento ou a transformação dos termos essenciais de um campo de conhecimento"
são os "acontecimentos mais importantes de sua evolução", que "vão suscitar, por sua
vez, novos conceitos. Isto porque, sendo por natureza invenções, eles estimulam a
inventividade". E acrescentam-lhe "uma determinação nova", por serem " 'termos
instrutivos', que se atribuem a um conceito novo designado a partir de uma noção
teórica", mas também, "derivados de uma noção anterior". (Benveniste, 1989, p. 252-253)
Está aberto o necessário debate, cuja maior objetivo é o de contribuir para que
a literatura infantil e/ou juvenil não seja considerada a "prima-pobre" da literatura, e seu
estudo, o "primo-pobre" da pesquisa em Letras.

Referências

ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1968.

BAKHTIN, Mikhail. Arte e responsabilidade (1919). In: ______. Estética da criação verbal . 4. ed. Trad. Paulo Bezerra.
São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.XXXIII.

BENVENISTE, Émile. gênese do termo "scientifique". In: _____. Problemas de Lingüística Geral II. Trad. Ingedore Koch.
Campinas: Pontes, 1989. p. 252-258.

COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil: história, teoria, análise. São Paulo: Quiron, 1984.

LAJOLO, Marisa, ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história & histórias. São Paulo: Ática, 1984.

LOURENÇO FILHO, Manoel Bergström. Como aperfeiçoar a literatura infantil. Revista Brasileira (RJ). V. 3, n.7, p. 146-
69, set. 1943.

5
Como exemplos de aplicação dessa proposta, ver especialmente os resultados das pesquisas de
integrantes do GPHELLB, dentre as quais destaco as desenvolvidas em programa de pós-graduação em
Letras: PINTO, A. Literatura descalça: a literatura “para jovens” de Ricardo Ramos. São Paulo: Arte &
Ciência, 1999; LIMA, S. C. Bem do seu tamanho, de A. M. Machado: a afirmação de um gênero literário.
Dissertação de Mestrado em Letras – UNESP-Assis, 1999; MENIN, A M. C. S. O patinho feio, de Hans
Christian Andersen: o “abrasileiramento” de um conto para crianças. Tese de Doutorado em Letras –
UNESP-Assis, 1999.

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Guavira Número 6

________________________________________________________________________
MEIRELLES, Cecília. Problemas da literatura infantil. São Paulo: Summus, 1979.

MORTATTI, M. R. L. Ensino de língua e literatura no Brasil: repertório documental republicano. 2003 (digitado)

______. Leitura crítica da literatura infantil. Itinerários, Araraquara, n. 17/18, p. 179-188, 2001. (Também publicado em
Leitura: teoria & prática, v.36, p.25 - 32, 2000)

PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.

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