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A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil1

André Perin Schmidt Neto

RESUMO
Este artigo visa estudar, baseado nos textos de Luiz Werneck Vianna (WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização
da política no Brasil, In WERNECK VIANNA, Luiz et alii, A judicialização da política e das relações sociais no
Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 47–70. e WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização das relações
sociais, In WERNECK VIANNA, Luiz et alii, A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 149–156.), o aumento na frequência da intervenção do Poder Judiciário, nota-
damente na política e nas relações sociais, buscando seus motivos e avaliando suas consequências. A sociedade
tem buscado no Judiciário a solução para problemas que o Estado como um todo não consegue sanar, o que o
mencionado autor demonstra com o excessivo número de Ações Diretas de Inconstitucionalidade; bem como o
Direito moderno tem invadido todas as relações, cabendo ao Judiciário esta tarefa de aplicar o Direito em cada
vez mais âmbitos. Assim, os julgadores são chamados a concretizar as diretrizes constitucionais e os princípios
fundamentais quando da aplicação da lei, o que acaba por abarrotar de trabalho o Poder Judiciário.

PALAVRAS-CHAVE
Judicialização; intervenção do Poder Judiciário; relações políticas e sociais; aumento de Ações Diretas
de Inconstitucionalidade.

ABSTRAT
This article aims to study, based on the texts from Luiz Werneck Vianna (WERNECK VIANNA, Luiz. A judi-
cialização da política no Brasil, In WERNECK VIANNA, Luiz et alii, A judicialização da política e das relações
sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 47–70. e WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização
das relações sociais, In WERNECK VIANNA, Luiz et alii, A judicialização da política e das relações sociais
no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 149–156.), the increasing frequency of intervention of the
Judiciary in relations, especially in politics and social relations, seeking their motives and evaluating its conse-
quences. The society has sought the Judiciary solution to problems that the state as a whole cannot remedy,
what the mentioned author demonstrates with the excessive number of direct actions of unconstitutionality,
as well the modern law has invaded all the relationships, leaving this to the Judiciary task of applying the law
in each comes more areas. Thus, the judges are called to realize the constitutional guidelines and fundamental
principles when law enforcement, which tends to cram the work of this Institution.

KEY WORDS
Judicialization; intervention of the Judiciary; political and social relations; an increase of Direct Un-
constitutional Actions.

Artigo baseado nos textos de Luiz Werneck Vianna e correspondente ao seminário apresentado em 17/10/2008 na disciplina Fundamentos
1

Sociológicos da Experiência Jurídica – Temas de Sociologia – (A Jurisdicionalização da Política e das Demandas Sociais) – DIRP109, ministrada
pelo Prof. Dr. Raúl Enrique Rojo no Programa de Pós-Graduação em Direito - PPGDir. Mestrado em Direito da Universidade Federal do Rio
Grande Do Sul – UFRGS.
A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil

1 INTRODUÇÃO

A judicialização da política não é fato isolado. As relações sociais, de alguma forma,


têm sido levadas ao Judiciário, o que decorre da função por este exercida, de guardião da
Constituição, notadamente por intermédio do Supremo Tribunal Federal (STF), a quem
compete interpretar a legislação conforme os princípios norteadores da Carta Constitucional,
dando efetividade aos direitos fundamentais previstos neste diploma. Ocorre que, diante da
complexidade da sociedade moderna e da massificação das relações sociais, este Tribunal
passou a editar Súmulas e a dar interpretações conforme a Constituição de modo cada vez
mais frequente.
Diante do crescente número de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIns) e da
intervenção judicial com vistas ao preenchimento das lacunas legais nas hipóteses em que
verificada a inconstitucionalidade de lei, o Supremo tem, praticamente, assumido o papel
do Legislativo, ao ditar a base principiológica das leis brasileiras e ao editar súmulas vin-
culantes.
As ADIns citadas no texto são a forma que o STF tem de irradiar os princípios constitu-
cionais às leis infraconstitucionais.
Quando se fala em aplicação de princípios, é necessário, antes de mais nada, esclarecer
o que é princípio.2
Princípio é uma espécie de norma. As normas se dividem em princípios e regras. As fun-
ções básicas dos princípios são interpretar o direito (Interpretativa); impedir a aplicação da
regra, caso não seja compatível com o princípio (Bloqueadora); e sistematizar a aplicação
do Direito (Integrativa). Assim, pode-se dizer que os princípios visam dar o norte para a
aplicação das leis e flexibilizar a aplicação do Direito, na medida em que adaptam a regra
ao caso concreto. Desta indeterminação surge a subjetividade.
As regras, por sua vez, se caracterizam pela determinação ao estabelecer claramente,
em abstrato, o que é permitido, proibido e obrigatório, visando à coordenação entre as
pessoas. Por isso, o uso dos princípios não dispensa a regra. Não deve haver mais prin-
cípios ou mais regras, pois elas se complementam. O que importa é a discussão quanto

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
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à maior utilização dos princípios como flexibilizadores das regras. O princípio servirá de
razão excludente quando a regra não for cumprida; isso porque a regra é objetiva e não
permite flexibilizações, pois trata do caso em abstrato, enquanto os princípios, embora
mais abstratos, tratam da concretização da regra considerando-se as condições do caso
concreto.
A vantagem da regra está na objetivação de interesses e na impessoalização do Direito. Por
outro lado, a sua aplicação pura e simples, sem estar em conformidade com os princípios,
na prática, pode causar injustiças. É por tal razão que os princípios constitucionais vêm ser-
vindo como instrumento de sistematização do Direito, o que acarreta a constitucionalização
de diversas áreas, notadamente a do Direito Privado.
Os princípios não pretendem previsibilidade ou inteligibilidade, mas a instituição de va-
lores na aplicação da regra.
Portanto, a regra concretiza o princípio e o princípio adequa a regra ao caso concreto.
A distinção entre regras e princípios, na chamada Teoria das Normas, inicialmente baseou-
se no critério de abstração, afirmando que embora ambos o contemplem, os princípios o
têm em maior grau, havendo aí uma diferença meramente quantitativa. Após análises mais
aprofundadas percebeu-se que, mais do que possuírem as mesmas propriedades em graus
diferentes, princípios e regras possuem propriedades diversas.
A partir dos estudos de Claus Wihelm Canaris, propõe-se uma distinção qualitativa. Sobre
esse assunto – que aqui não se pretende aprofundar – surgem as teorias do inglês Ronald
Dworkin e do alemão Robert Alexy, que trazem novos critérios de distinção. Passa-se a en-
tender que a diferença entre essas normas está na possibilidade de flexibilização, na medida
em que as regras são mais rígidas (nas palavras de Dworkin3: all or nothing, isto é, tudo ou
nada), enquanto os princípios permitem ponderação por meio de regras de prevalência, isto
é, são mais elásticos. As regras, normalmente4, se excluem quando há conflito (quando se
aplica uma não se aplica outra); os princípios se complementam. São diferentes os modelos
de colisão. Nas regras os conflitos são abstratos, necessários e se dão no plano da validade,
já nos princípios, o conflito é contingente. Os princípios levam em conta a adequação, a
necessidade e a proporcionalidade.

DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. 6ª tir. London, Duckworth, 1991.


3

Sem olvidar, evidentemente, a possibilidade de diálogo das fontes.


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A grande complicação diz respeito a aplicação das normas, visto que elas mesmas não
determinam como esta se dará. Entra aí a discussão quanto aos limites de tolerância.
Hodiernamente tem-se usado os princípios com grande frequência. A aplicação excessiva,
como não podia deixar de ser, se deve a uma aparentemente oscilação do Direito quanto à
aplicação de princípios e regras.
Historicamente, visando à segurança jurídica, tentou-se empregar a regra sem uma maior
reflexão pelo aplicador, ou seja, a regra pela regra, sem pensar, impondo o que estava pre-
visto em abstrato no caso concreto. Como exemplo, temos a rigidez da visão do juiz como a
boca da lei (bouche de la loi) na França, o nazismo na Alemanha, o fascismo na Itália, etc.
Aplicava-se a regra sem se refletir sobre a justiça no caso concreto.
Por outro lado, a aplicação exagerada dos princípios, em detrimento da regra, traz uma
absoluta insegurança na medida em que possibilita tratar desigualmente iguais e igualmente
desiguais, quase que incentivando a arbitrariedade, ao impor uma abstração absoluta. Do
positivismo ao particularismo, passando pelo positivismo presumido e o particularismo
sensível, a tentativa é encontrar um meio termo.
No Brasil, a frequente inconstitucionalidade das regras levou a comunidade jurídica a
socorrer-se nos princípios. O Poder incumbido da aplicação das normas, e, portanto, dos
princípios, é o Judiciário. A consequência lógica é o atual abarrotamento dos tribunais com
enxurradas de processos, onde o juiz deverá ponderar a regra e o suporte fático, o fazendo
por meio de princípios. A possibilidade do controle difuso de constitucionalidade acaba
por exigir ainda mais dos juízes, que se esforçam para dar conta do crescente número de
demandas judiciais.
Em decorrencia das falhas no Poder Legislativo, os Tribunais Superiores têm recebido
um grande número de Ações Diretas de Inconstitucionalidade. O problema maior está nas
situações em que é declarada a inconstitucionalidade, quando resta um vazio legislativo que,
muitas vezes, não é preenchido pelo Poder Legislativo.
A fim de solucionar esse problema, o STF tem se manifestado adotando interpretações
conforme a Constituição que, por vezes, extrapolam os limites de sua competência, o que
implica, na prática, abrir a possibilidade de que o Judiciário esteja a legislar.
A consequência mais grave está na aniquilação do chamado controle heterogêneo, isto é,
quem faz as leis é o mesmo que as aplica, configurando um verdadeiro atentado ao Princípio
da separação dos poderes.

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O problema é que, como adverte Armando Castelar Pinheiro5, citando Sherwood, “a linha
divisória entre um sistema legal e seu respectivo sistema judicial não é auto-evidente”6.
No mesmo sentido, Ruy Rosado de Aguiar Junior chama a atenção: “a incapacidade do
Estado em regular, pela via formal da lei, as multifacetadas relações sociais, termina por co-
locar nas mãos do juiz o encargo de fazer a adaptação da ordem jurídica ao mundo real”.7
Owen Fiss, em artigo sobre a função judicial no sistema norte-americano, também destaca
que a função do juiz está em “dotar os valores constitucionais de significado”8, o que é feito
“por meio de trabalho com o texto constitucional, história e ideais sociais”9, diversamente
do que se passa no âmbito do processo legislativo:

As legislaturas são de ordem completamente diferente, não estando


ideologicamente comprometidas ou institucionalmente adequadas à busca
do significado de valores constitucionais, mas, ao contrário, consideram
o registro das preferências reais da população – o que ela quer e acredita
que deva ser feito – sua função primária10

PARTE 1 - A judicialização da política no Brasil

No primeiro texto objeto deste artigo11, o autor faz uma pesquisa aprofundada acerca das
Ações Diretas de Inconstitucionalidade: sua distribuição, partes, motivação, origem do diploma

5
“Em particular, a capacidade dos tribunais de julgarem com presteza, justiça e previsibilidade depende de as leis terem sentido claro e
serem bem escritas e consistentes com outras leis e com as práticas comerciais. Da mesma forma, para que os tribunais funcionem de
forma eficiente, os contratos, quer se refiram a partes privadas, quer envolvam o Estado, devem estar corretamente elaborados, ser con-
sistentes com a legislação e conter cláusulas passíveis tanto de verificação como de aplicação. É necessário, portanto, não só a existência
de legisladores e juízes competentes, mas também de advogados e contadores bem preparados.” PINHEIRO, Armando Castelar (Org.).
Judiciário e Economia no Brasil. São Paulo: Editora Sumaré. 2000. p. 24.
6
SHERWOOD et al., 1994, p. 7. apud PINHEIRO, Armando Castelar (Org.). Judiciário e Economia no Brasil. São Paulo: Editora Sumaré. 2000.
p. 24.
7
“[...] precisamos de juízes que tenham condições de compreender a complexidade de sua ação, de perceber que o direito tem suas raízes
submersas em valores históricos, de olhar para a causa das causas que lhe são submetidas, de se preocupar com as circunstâncias pree-
xistentes que determinaram o surgimento do litígio, de apreender as razões que amparam as pretensões das partes, de viver a realidade
presente e de refletir sobre as conseqüências concretas de seu julgamento.” (AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. A função jurisdicional no mundo
contemporâneo e o papel das escolas judiciais. Artigo baseado no texto básico da palestra proferida na Escola Superior da Magistratura do
Rio Grande do Sul – AJURIS, por ocasião da solenidade comemorativa dos seus 25 anos, em Porto Alegre, no dia 17 nov. 2005.)
8
FISS, Owen. Um Novo Processo Civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2004. p. 37.
9
Ibidem.
10
Ibidem.
11
WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização da política no Brasil, In WERNECK VIANNA, Luiz et alii, A judicialização da política e das relações
sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 47–70.

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A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil

legal contestado, categorias dos direitos envolvidos e classe temática das normas questionadas,
âmbito de aplicação, entre outras verificações, por meio da análise de uma amostra de 1.935
ADIns ajuizadas no período de 1988 (ano da promulgação da Carta constitucional) e 1998.
Ab initio, o autor afirma que ao Judiciário foi incumbida a tarefa de exercer um controle
sobre a vontade do soberano – o Estado – tendo sido adotado um modelo de controle abstrato
da constitucionalidade das leis.
O poder constituinte confiou ao órgão máximo do Judiciário, chamado de Supremo Tribunal
Federal (STF), pela CF de 1988, a atribuição desse controle, passando a possuir o poder da
última palavra quanto ao tema da interpretação constitucional das normas.
A constitucionalização dos mais diversos ramos do Direito tem o escopo de dar uniformi-
dade ao sistema12 legal. Esta sistematização/uniformização das decisões é exercida pelo STF.
E quando se fala em lei infraconstitucional em desconformidade com a Constituição Federal,
tem-se a possibilidade de ajuizamento de uma ação própria, com a finalidade de impedir
que a norma típica prevista não emane efeitos sob a forma preceito.
Falamos das ADIns. Logo que criadas, passaram a ser vistas como instrumento de signi-
ficativa importância para os direitos da cidadania e para a racionalização da administração
pública.
Destarte, por várias razões, o que o Werneck Vianna chama de “partido de mercado” foi
o vitorioso nas eleições de 1989 e, nem por isso, a vitória dos liberais representou grandes
mudanças. O que parece que Wernek Vianna deixa subentendido é que, com a morte de
Tancredo Neves, o vice José Sarney acabou assumindo a presidência nas eleições de 1985.
Ocorre que este havia sido alçado a este posto por apoio dos militares que acabaram não se
desvinculando totalmente do comando brasileiro, pois, embora findo o regime ditatorial após
décadas, possuíam influência no alto escalão do Executivo. Neste diapasão, a vitória dos
liberais não representou uma mudança tão drástica na instituição do regime democrático e
mesmo quatro anos depois a influência destes mesmos políticos se manteve, não operando
uma guinada forte na presidência do Brasil. Além disso, como afirma o autor, o Executivo
reformador não tinha um parlamento que apoiasse suas propostas. Esse dissenso provocou
um uso excessivo das chamadas medidas provisórias, que originalmente deveriam dedicar-se
a situações de necessidade e urgência.

Se é que se pode falar em sistema na concepção clássica de René David.


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Os anos 90 confirmam a supremacia dos chamados “neoliberais”, que só vão perder terreno
anos mais tarde, com a vitória dos partidos de raiz operária que, com discursos bolchevistas
de mudança social, cativou a população, chegando ao poder.
Antes disso, ainda sob a influência do neoliberalismo, a noção de público foi perdendo
espaço para o privado. A nação deu lugar ao indivíduo. Cresceu o uso das medidas provi-
sórias como instrumento de regulação da sociedade, notadamente no âmbito de matérias
de natureza econômica.
A necessidade de dar continuidade a estas disposições gera nos governos atuais a caracte-
rística de presidencialismo de coalizão, provocando a união mais improvável de partidos.
As medidas provisórias, a bem da verdade, são fruto da relação entre Executivo e Legis-
lativo, que negociam com suas competências. O parlamento, pressionado pelos governos
estaduais, utiliza seu poder de dar continuidade às medidas do Executivo como moeda de
troca com o governo federal. Isso se percebe pela aprovação massiva das matérias propostas
pelo Executivo no Congresso Nacional em um curto espaço de tempo.13
O uso continuado das medidas provisórias provoca a corrosão das formas de controle
parlamentar do Executivo, cabendo ao Judiciário controlá-lo sozinho. Em havendo uma
coalizão entre Executivo e Legislativo e consequente elaboração desmedida de legislações
em conformidade com o interesse da União, a competência fiscal do Judiciário acaba por
tornar-se um trabalho árduo e enorme. Recai sobre o Judiciário, assim, toda a responsabili-
dade do conhecido checkes and balances.
Com a finalidade de “compensar a tirania da maioria, sempre latente na fórmula brasileira
de presidencialismo de coalizão”14, o judiciário acaba por judicializar a política no Brasil.
Nas visionárias palavras do renomado jurista – já que o texto data de 1999 –, época em
que poucos percebiam o problema que aventava:

O Tribunal começa a migrar, silenciosamente, de coadjuvante na produção


legislativa do poder soberano, de acordo com os cânones clássicos
do republicanismo jacobino, para uma de ativo guardião da Carta
Constitucional e dos direitos fundamentais da pessoa humana.15

13
Ao mesmo tempo em que a concentração de poder na União retira dos estados o poder de autonomia em afronta ao pacto federativo,
exigindo que os estados sirvam de base de apoio do governo federal.
14
WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização da política no Brasil, In WERNECK VIANNA, Luiz et alii, A judicialização da política e das relações
sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 51.
15
Idem, p. 53.

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A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil

O autor ressalta, ainda, o elevado número de ADIns propostas por Governadores entre
1990 e 1991, período em que foram elaboradas as Constituições Estaduais, cujos dispositivos
foram contestados no STF.
Por meio de tabelas e gráficos, o texto objeto deste artigo demonstra o percentual de autores
que propuseram as ADIns. Os demandantes mais frequentes são, nesta ordem: as associações,
os governadores, os procuradores, os partidos políticos, a Ordem dos Advogados do Brasil e,
com um reduzido número de ações, os demais, classificados na pesquisa como “outros”.
Em outros gráficos, o autor traz a evolução anual do número de ADIns, a demonstrar a
redução do número de ações propostas por governadores, pelos motivos supramencionados,
bem como o crescente número de ações dessa espécie ajuizada por organizações de traba-
lhadores, profissionais e empresários.
No que tange à origem do diploma contestado, os gráficos demonstram que os Legislativos
Estaduais são responsáveis pela grande maioria das leis tidas como inconstitucionais, seguidos
do Legislativo Federal, do Executivo Federal e, com um percentual menor, dos Judiciários
Estaduais, dos Executivos Estaduais e do Judiciário Federal, em ordem decrescente.
Os Legislativos Estaduais, o Legislativo Federal e o Executivo Federal são os principais
elaboradores de leis de constitucionalidade duvidosa. A liderança dos Legislativos Estaduais
na pesquisa se dá muito em função do motivo que leva os governadores a ser os segundos
colocados em termos de autoria da ação, ou seja, a grande insurgência dos governadores
dos estados contra muitos dispositivos das Constituições Estaduais elaboradas no início da
década de noventa. Isto se pode afirmar com base em outro dado: 88,8% das ações propostas
pelos governadores atacavam legislações estaduais.
No entanto, vale frisar que esse é o motivo para a liderança da pesquisa, mas não permite
a afirmação de que seja a única motivação para as ADIns que contestam essas legislações,
pois os demais autores também costumam contestar legislações estaduais.
O autor ainda classifica as ações conforme as diferentes instâncias da vida social, a fim
de elencar a natureza dos dispositivos questionados. As categorias incluem: (a) administra-
ção pública: legislações que tratem de remuneração, carreiras e organização dos serviços
públicos, criação de municípios e conflito de atribuição entre os poderes; (b) política social:
leis que versem sobre sistema de seguridade social não relacionados com o serviço público
e benefícios sociais; (c) regulação econômica: matéria afeita a regulamentação da econo-
mia, política cambial, monetária, salarial e de preços, programa de privatizações, reforma

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agrária e direito de greve; (d) política tributária: definição de base de cálculo e alíquota de
impostos, incentivos fiscais e zonas de tributação especial; (e) regulação da sociedade civil:
leis que regulem as relações privadas (por exemplo: cobranças) e meio ambiente (incluindo
população indígena); (f) competição política: eleições e partidos políticos; e (g) relações de
trabalho: direitos do trabalhador e organização sindical.
Em tabela que dá a percentagem de cada grupo, percebe-se que 63%, isto é, mais da maioria
das ações, versam sobre assuntos de administração pública. A conclusão que se tira disso
é que o próprio Estado utiliza a máquina pública, em uma relação autofágica. Na prática, o
Estado elabora as normas sobre a própria administração pública e, na esmagadora maioria
das vezes, a própria administração, por meio de seus órgãos competentes e legitimados,
questiona a norma16, e o mesmo Estado, por meio do Judiciário, analisa a constitucionalidade
da medida. Esse processo, que demanda tempo e recursos, acaba por servir unicamente ao
uso da máquina estatal por ela mesma.
A mesma ilação se pode chegar por meio de outras pesquisas recentes que apontam o Estado
(União, Estados e Municípios) como o maior usuário do Judiciário, por ser, de longe, quem
mais figura como parte (autor ou réu) nos processos do Judiciário brasileiro. Nas palavras
de Werneck, o Estado é a figura central dessa engenharia, usando da “burocracia de moldes
hegelianos a quem cabe zelar por um mundo que, além de destituído da capacidade de se
elevar ao plano do interesse geral, se encontraria permanentemente ameaçado pela colisão
errárica dos seus múltiplos fragmentos orientados pelo interesse público.”17
Daí a institucionalização do Direito Administrativo no corpo da Constituição. Não se está
a insurgir-se contra uma Constituição analítica, mas a previsão da organização interna do
Estado brasileiro na Carta Magna parece um exagero que somente a história pode explicar.
O “projeto de modernização autoritária vencedor da Revolução de 30”18 trouxe para dentro
da CF de 1934 um título dedicado aos funcionários públicos (arts. 54 e 168 a 173). Desde
então, as constituições supervenientes trouxeram e ampliaram esta previsão. Chegamos em
1988 com 65 dispositivos, que foram aumentados para 78 graças aos 13 introduzidos pelas
Emendas Constitucionais 18 e 19 de 1998.

16
Isso se pode afirmar com base nas tabelas que cruzam os dados de autoria das ADIns e objeto do Diploma legal contestado, já que entre
os Governadores, 81,9%, e, entre Procuradores, 82,5% das ações se insurgiam contra normas de regulação administrativa.
17
WERNECK VIANNA, Luiz. Op. cit., p. 65.
18
Ibidem.

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A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil

Diante disso, o STF incorpora a função de um órgão superior da administração pública,


uma espécie de conselho fiscal que fica ditando o que está certo e errado na conduta da
gestão do Estado. Desempenha o papel de um típico conseil d’etat francês.
Enquanto nos Estados Unidos a Suprema Corte é constantemente freada em meio a deba-
tes sobre seus limites na intervenção dos negócios internos do Estado, no Brasil, de modo
diametralmente oposto, o chamado judicial review se faz presente na maioria dos casos. Isto
é mais visível nas ADIns de âmbito estadual, já que 79,9% dessas versam sobre categoria
chamada por Werneck Vianna de “administração pública”.
Ainda sobre este ponto, vale mencionar o trecho em que o autor comenta que entre as
ADIns que contestam diplomas de origem federal, as demais classes temáticas aparecem em
maior percentagem,“[...] dado o monopólio normativo da União sobre aspectos centrais da
vida social brasileira, apesar da natureza federativa do pacto republicano”.19
À guisa de conclusão, pode-se afirmar que a política no Brasil tem passado por um processo
de judicialização em função do mau funcionamento dos demais Poderes, o que se percebe
pelo excessivo número de ADIns propostas, como demonstra a pesquisa ora em comento.

PARTE 2 - A judicialização das relações sociais

Busca-se nesta parte, uma resposta à seguinte questão: porque tudo está sendo judicia-
lizado?
A resposta que se apresenta é que o Direito tem invadido todas as relações e o aplicador
(Poder Judiciário) acaba sendo chamado a intervir a todo o momento. Isso porque o Direito
no mundo contemporâneo tem alcançado todas as relações sociais. Mesmo as práticas so-
ciais de natureza tipicamente privadas, como o ambiente familiar, têm intervenção estatal
quando este dita a forma de tratamento que deve ser dispensado pelos pais ou responsáveis
aos menores impúberes.
O Estado regula as relações, ditando normas de conduta no intuito de proteger persona-
gens como:

Idem, p. 66.
19

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(...) mulheres vitimizadas, aos pobres e ao meio ambiente, passando pelas


crianças e pelos adolescentes em situação de risco, pelos dependentes
de drogas e pelos consumidores inadvertidos -, os novos objetos sobre
os quais se debruça o Poder Judiciário, levando a que as sociedades
contemporâneas se vejam, cada vez mais, enredadas na semântica da
justiça. É, enfim, a essa crescente invasão do direito na organização da
vida social que se convencionou chamar de judicialização das relações
sociais20

O Estado normatiza tudo o que pode, desde a educação dos filhos, passando pela lingua-
gem que deve ser usada (como no caso de preconceito racial, quando o Estado dita quais
expressões podem ou não ser usadas, por exemplo, afro-descendente e não negro, face ao
tom pejorativo), até situações íntimas e de natureza individual, como a homossexualidade,
ao permitir ou não a consagração da união civil. Isso tudo se dá no intuito de exercer uma
ação pedagógica para o bem comum. Busca-se induzir a sociabilidade, aproximando os in-
divíduos do Estado para convertê-los em cidadãos.
Entretanto, o regime militar deixou marcas no tecido social, “aprofundando atitude de indife-
rença política da população e dificultando, pela perversão individualista, a passagem do indivíduo
ao cidadão.”21 O processo de transição à democracia dos anos 80 deu lugar aos anos 90 “sem
cultura cívica, sem vida associativa enraizada, sem partidos de massa e, mais grave ainda, sem
normas e instituições confiáveis para a garantia da reprodução de um sistema democrático.”22
A “incapacidade de o Executivo e o Legislativo fornecerem respostas efetivas à explosão
das demandas sociais por justiça”23 fez cair no judiciário a esperança da concretização da
democracia e da cidadania que se espera da recente história democrática brasileira.
Enquanto o legislativo perde espaço na função legislativa para o Executivo, este, por sua
vez, deixa de lado as funções de administração do bem-estar, “sendo progressivamente
alçado à condição de uma agência tecnoburocrática que responde, de forma contingente e
arbitrária, às variações da imediata conjuntura econômica”.24
Na ausência de Estado – pelo que foi visto –, ou de outras formas de regulação social –
como a religião fora outrora –, com a falta de ideologia e a desorganização das estruturas

20
WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização das relações sociais, In WERNECK VIANNA, Luiz et alii, A judicialização da política e das relações
sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 149.
21
Idem, p. 152.
22
Idem, p. 153.
23
Idem, p. 149.
24
Ibidem.

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A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil

familiares em constante crise decorrente das mudanças culturais, coube ao Judiciário o papel
de regulador social.
Parafraseando o autor francês Antonie Garapon, Werneck afirma que “a justiça se torna
um lugar em que se exige a realização da democracia”.25 E complementa mais adiante: “a
percepção cappellettiana do caráter estratégico do acesso à Justiça para a formação da cida-
dania encontrou recepção na magistratura brasileira”.26
Para pôr em prática o sem número de normas editadas pelo Estado no intuito de controlar
seus cidadãos, o Poder Judiciário tem adotado medidas com a finalidade de distribuir jus-
tiça a todos e em tempo. Se atingir a pacificação social ao solucionar conflitos e fazer valer
todas as normas existentes para todos já é tarefa árdua, cumprir essa tarefa de modo célere
é tarefa hercúlea.
Não é de hoje que a morosidade assombra o Judiciário. Uma de suas medidas mais efetivas
tem se dado na área processual, por meio de uma redução das formalidades, como é o caso dos
Juizados Especiais. Por outro lado, a criação desses meios para assumir a posição de disseminador
da democracia abriu a possibilidade de preenchimento do vazio que havia e, de uma hora para
outra, todos tinham, de fato, acesso à cidadania. “[...] pela primeira vez, na história do país, os
pobres teriam acesso à Justiça.”27 Passou-se à estender os direitos às grandes massas.
Outro método de atingir a solução de conflitos de modo célere e evitar o longo andamento
dos processos, o que também se percebe nos Juizados Especiais, é a mediação. Adota-se, de
maneira cada vez mais frequente, a conciliação como forma de pacificação.
Muitas outras reformas foram feitas nos últimos anos, já que a crítica assídua à processu-
alística convencional data do início da década de 90, época em que percebidas as transfor-
mações estruturais das demandas ocorridas no final do século passado.
A complexidade da sociedade moderna gera, também, um grande número de demandas
de massa. Essa hipercomplexidade típica do mundo pós-moderno gera a especialização.
Isso não foi diferente no Poder Judiciário que, para acompanhar a ampliação do Direito e
da sociedade, tem expandido seus segmentos especializados: “direito do trabalho, direito de
família, justiça agrária, tribunais especializados em demandas do consumidor”.28

25
Ibidem.
26
Idem, p. 154.
27
Ibidem.
28
Idem, p. 151.

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André Perin Schmidt Neto

De qualquer forma, o que o texto afirma é que há um

[...] processo contemporâneo de crescente invasão do direito na vida


social – e que, no Brasil, teve seu caminho ditado pelo movimento de
auto-reforma do Poder Judiciário – a criação dos Juizados Especiais Cíveis
e Criminais talvez represente um significativo ‘divisor de águas’. Ainda
que integrem o conjunto mais geral de modificações técnicas concebidas
no sentido de aproximar lei e sociedade, [...]29

2 Conclusão

Como conclusão, pode-se afirmar que muitos são os motivos da judicialização das relações
no Brasil, o que tem levado milhões de demandas ao Judiciário. Basicamente, a forma de
Constituição Federal altamente analítica (conta com 250 artigos) e o aprofundamento dos
assuntos administrativos e tributários; a falha do legislativo e das instituições que deveriam
regular suas respectivas áreas (Agências Reguladoras); a excessiva intervenção do Judiciário
que, ao declarar inconstitucional determinada norma, receoso de um vazio legislativo, dita
normas extrapolando sua competência, quando não faz mais: embora não entenda absolu-
tamente inconstitucional, assim o declara por entender que há uma forma melhor de regular
aquela situação, isto é, assumindo a função de otimizador das leis (temas do primeiro texto);
e, por fim, a judicialização das relações sociais pela complexidade do mundo moderno e sua
sociedade de massa, bem como o amplo acesso ao sistema de justiça, têm levado praticamente
todas as questões ao Poder Judiciário, que se vê sobrecarregado, assumindo as funções dos
outros Poderes, enquanto busca a pacificação social, sua função tradicional.

REFERÊNCIAS

AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. A função jurisdicional no mundo contemporâneo e o papel


das escolas judiciais. Artigo baseado no texto básico da palestra proferida na Escola Superior
da Magistratura do Rio Grande do Sul – AJURIS, por ocasião da solenidade comemorativa
dos seus 25 anos, em Porto Alegre, no dia 17 nov. 2005.

Idem, p. 155.
29

Revista da Faculdade de Direito UniRitter • 10 • 2009 95


A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil (Resenha dos textos de Luiz Werneck Vianna)

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2
ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. 6ª tir. London, Duckworth, 1991.

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Subjetividade). In: ZIMERMAN, David; COLTRO, Antonio Carlos Mathias (Org.) Aspectos
psicológicos na prática judiciária. Campinas: Millennium, 2002.

FISS, Owen. Um Novo Processo Civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição
e sociedade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

PINHEIRO, Armando Castelar (org.). Judiciário e Economia no Brasil. São Paulo: Editora
Sumaré. 2000.

WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização da política no Brasil, In WERNECK VIANNA,


Luiz et alii, A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Editora
Revan, 1999, p. 47–70.

WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização das relações sociais, In WERNECK VIANNA, Luiz
et alii, A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Editora
Revan, 1999, p. 149–156.

ANDRÉ PERIN SCHMIDT NETO


Mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, bolsista CAPES, especialista em
Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela mesma universidade, possui graduação
em Cìências Juridicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Atualmente é professor do Pós-Graduação Lato Sensu Especialização em Direito do Consumi-
dor e Direitos Fundamentais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS e trabalha
no Centro de Pesquisa da Escola Superior da Magistratura - AJURIS, onde é pós-graduado,
além de advogar, inscrito na OAB/RS sob o número 69.714.
E-mail: andreschmidt20@hotmail.com

Recebido em 30/07/2009
Aceito em 05/08/2009

Neto, André Perin Schmidt. A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil
(Resenha dos textos de Luiz Werneck Vianna). Revista da Faculdade de Direito UniRitter,
Porto Alegre, n. 10, p. 83-96, 2009.

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